Antônio Riccitelli - Direito Constitucional - Teoria Do Estado e Da Constituição - Pesquisável -...

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Direito Constitucional

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  • Antonio RiccitelliAdvogado e administrador. Consultor jurdico e educacional. Mestre e doutorando

    em Direito pela USP. Palestrante e conferencista. Cientista poltico. Representante da OAB no Conselho Parlamentar pela Cultura de Paz junto Assemblia Legislativa do Estado de So Paulo.

    DIREITOCONSTITUCIONAL

    TEORIA DO ESTADO E DA CONSTITUIO

    4a edio

    A

  • Copyright O Editora Manole Ltda., 2007, por meio de contrato com o autor.

    Capa: Eduardo BertoliniProjeto grfico: Departamento Editorial da Editora Manole

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro SP, Brasil)

    Riccitelli, AntonioDireito constitucional: teoria do Estado e da Constituio / Antonio Riccitelli. - 4.ed. rev. - Barueri, SP : Manole, 2007.

    Bibliografia.ISBN 85-204-2502-X

    1. Direito constitucional 2. Direito constitucional - Brasil 3. Estado - Teoria 4. Constituio - Teoria I. Ttulo

    06-7289 CDU-342(81)

    ndices para catlogo sistemtico:1. Brasil: Direito constitucional: Direito 342(81)2. Direito constitucional: Brasil: Direito 342(81)

    Todos os direitos reservados.Nenhuma parte deste livro poder ser reproduzida, por qualquer processo, sem a permisso expressa dos editores. proibida a reproduo por xerox.

    4a edio brasileira - 2007

    Direitos adquiridos pela:Editora Manole Ltda.Avenida Ceei, 672 - Tambor 06460-120 - Barueri - SP - Brasil Tel.: (11)4196-6000 - Fax: (11)4196-6021 www.manoIe.com.br [email protected]

    Impresso no Brasil Printed in Brazil

    A ttoaA C O ttA am A O f octfiTo* ar*Q 9M Q Q f

    ' O

  • Os desvirtuamentos do poder de mando, as falsidades e as injustias, podem transpassar o nosso corao, mas

    nunca abater o esprito, quando este se fortalece na fonte do Direito Divino para lutar pelo direito humano.

    Sa h id M a l F

  • S umrio

    P r e f c io ............................................................................................................................................ix

    c a ptu lo 1. Sociedade, Estado e direito1. A sociedade h u m a n a .......................................................................................................................1

    1.1 O rigens da so c ied ad e ......................................................................................................... 41.2 C onceito de so c ie d a d e ....................................................................................................... 71.3 Finalidades da so c ied ad e ...................................................................................................91.4 T ipos de so c ied ad e ........................................................................................................ 11

    2. E stado ............................................................................................................................................ 142.1 O rigem do E stado........................................................................................................... 142.2 Evoluo histrica do E s ta d o .................................................................................... 152.3 C onceito de E stado ........................................................................................................ 202.4 Estado e n a o ............................................................................................................... 212.5 Elem entos do Estado m o d e rn o ..................................................................................232.6 Estado absoluto m o n rq u ico ...................................................................................... 272.7 Estado liberal d e m o c r tic o ........................................................................................ 29

    3. D ir e i to ..........................................................................................................................................313.1 Conceito de d ire ito ........................................................................................................ 333.2 Direito n a tu r a l ............................................................................................................... 343.3 Direito positivo ............................................................................................................... 353.4 Classificao do d i r e i to ............................................................................................... 363.5 Direito c o n s titu c io n a l..................................................................................................38

  • VIII Direito Constitucional - Teoria do Estado e da Constituio

    c a ptu lo 2. O c o n s ti tu c io n a lis m o

    1. O co n s titu c io n a lism o ................................................................................................................. 411.1 A ntecedentes do co n s titu c io n a lism o .........................................................................441.2 A separao dos P o d e re s ................................................................................................461.3 O fed era lism o .....................................................................................................................521.4 Poder c o n s t i tu in te ........................................................................................................... 601.5 C onceito de C o n s ti tu i o ............................................................................................. 681.6 Classificao das C on stitu i es.................................................................................... 721.7 C ontro le de constituc ionalidade ..................................................................................76

    2. As C onstitu ies p tr ia s .............................................................................................................812.1 A C onstitu io Poltica do Im prio do Brasil de 1824 ..................................... 832.2 A C onstitu io da Repblica dos Estados U nidos do Brasil de 1891................842.3 A C onstitu io da Segunda Repblica dos Estados U nidos

    do Brasil de 1934 ............................................................................................................ 862.4 A C onstitu io dos Estados U nidos do Brasil de 1937 ..................................... 872.5 A C onstitu io da Repblica dos Estados U nidos do Brasil de 1946............. 892.6 A C onstitu io de 1967 - Ato A d ic io n a l.................................................................892.7 A C onstitu io de 1969 - E m enda C onstitucional n. 1 ..................................... 902.8 A C onstitu io da Repblica Federativa do Brasil de 1988 -

    A C onstitu io C idad ................................................................................................. 912.9 As espcies norm ativas na C onstitu io Federal v ig e n te .................................... 93

    CAPTULO 3. D ire ito s e g a ra n tia s fu n d a m e n ta is

    1. As declaraes de d ire ito s ..................................................................................................... 1021.1 O princp io da lib e rd a d e .......................................................................................... 1021.2 O princp io da igualdade ou ison o m ia ................................................................ 1051.3 Classificao das declaraes dos direitos fu n d am en ta is ............................... 1071.4 A D eclarao dos D ireitos do H om em e do C id a d o ...................................... 1091.5 O paradoxo f r a n c s .................................................................................................... 1111.6 Os direitos ind iv iduais ............................................................................................... 1121.7 Os direitos sociais........................................................................................................ 1131.8 O rigem e histrico da p rop ried ade ........................................................................ 1141.9 A funo social da propriedade no direito positivo b ras ile iro ...................... 1181.10 Os direitos da fraternidade ou so lidariedade...................................................... 1211.11 A D eclarao Universal dos D ireitos do H o m e m ............................................. 122

    2. D ireitos hum anos e os Estados su p ran ac io n a is ............................................................ 1252.1 Os atos in ternacionais e o Poder L egislativo ...................................................... 1262.2 Efeitos da m undializao sobre os direitos s o c ia is .......................................... 1282.3 A U nio E urop ia ........................................................................................................ 130

    Bibliografia ................................................................................................................................... 135

  • P refcio

    Revisada e atualizada, na presente edio a obra foi reformulada para atender a docentes, discentes, operadores da rea do direito, bem como aos interessados em conhecer temas jurdicos, polticos e sociais da forma mais objetiva e didtica possvel.

    Resultado de profunda e acurada pesquisa sobre clssicos, histricos, polmicos e relevantes temas do direito, disponibilizou-se tambm elementos introdutrios ao direito constitucional, avanando-se, despretensiosamente, sobre a seara dessa estrutural rea do direito.

    Compilou-se um extenso volume de informaes que reproduz, detalhadamente, inmeras passagens encontradas apenas nos maiores e mais credenciados clssicos mundiais. Partindo-se dos matizes dessas inquietan- tes e peculiares passagens sobre a histria da civilizao humana, abordam- se as relaes entre os indivduos nos diversos contextos, evoluindo para a anlise de sua interao em grupos nas sociedades de complexas organizaes polticas.

    Na perspectiva do pluralismo jurdico, serviram de substrato informaes pouco divulgadas ou at mesmo desconhecidas. Oportunam ente introduzidas no texto, inauguraram uma nova forma de se analisar e apresentar verses dos fatos isoladamente considerados, transcendendo, em muitos casos, a barreira das formalidades cronolgica, terica, emprica e cientfica dos acontecimentos, sem, entretanto, alterar sua essncia historiogrfica.

    Deflui, sem embargo, a partir da leitura, a efetiva possibilidade de se extrair informaes excepcionais sobre relevantes aspectos da histria social, poltica e jurdica do Brasil. Aspectos que, quando catalisados pelo conheci

  • x Direito Constitucional - Teoria do Estado e da Constituio

    mento e/ou natural questionamento humano, esclarecem dvidas recorrentes sobre o atual cenrio poltico-jurdico, nacional e internacional.

    Pelo breve prefcio, percebe-se, sem necessidade de aprofundar-se em uma exegese desta quarta edio, desenvolvida em parceria com a Editora Manole, que este livro, alm de ser revestido do carter padro de uma obra didtica, apresenta um profundo estudo histrico, jurdico e poltico sobre a evoluo da relao do homem social com a organizao estatal.

    Recomenda-se, durante a leitura, navegar randomicamente pelo tempo, atravessando as divises clssicas das eras histricas da humanidade, at ancorar nos portos do conhecimento, extrado de experincias seculares registradas em obras universais. Deseja o autor que, ao final de cada consulta, o leitor sinta-se envolvido em um sentimento de realizao, de esclarecimento, de efeito nico e especial. Confira!

    O autor Inverno de 2006.

  • S o ciedade, Estado e D ireito

    1. A sociedade humana

    No dizer de Aristteles1, o hom em um animal gregrio, no vive isoladamente, mas sim em contato permanente com seus pares, conformando uma vida gregria. Para o filsofo grego, os indivduos dependem uns dos outros para sua prpria subsistncia e, desde seu aparecimento na face da Terra, sempre viveram em grupos. Unidos por necessidades materiais, biolgicas e culturais, constituram grupos familiares que evoluram at atingir o estgio de sociedades organizadas. Quando agrupados por vnculos predominantemente polticos e jurdicos, esses ncleos familiares formam sociedades conhecidas como Estado. Quando unidos por relaes mais sutis, evoludas e organizadas, comungando de conscincia social, das mesmas tradies, lngua e cultura, integram grupos sociais denominados de nao. No se infira da, porm, serem esses os elementos nicos necessrios formao de uma sociedade, mas inmeros outros, como os vnculos de interesses minimamente definidos que coexistem a fim de justificar as ligaes entre os indivduos que decidem viver em grupos. Aspectos como a cultura e a produo de novas tecnologias, decorrentes do intelecto humano, diferenciam o homem dos animais irracionais, que tambm vivem em grupos, mas restringem-se a cum prir as leis naturais, garantidoras de sua sobrevivncia e da manuteno das respectivas espcies.

    1 /\ poltica.

  • 2 Direito Constitucional - Teoria do Estado e da Constituio

    A cultura aqui considerada o resultado da determinao sistemtica do homem de desejar melhorar o ambiente e ampliar suas conquistas obtidas por meio do convvio social ao longo do tempo. O ser hum ano adapta-se ao meio enfrentando adversidades, criando novas formas de relaes sociais

    e tecnologias a fim de satisfazer suas O ser humano adapta-se ao meio crescentes necessidades,enfrentando adversidades, criando novas Conforme ensina Srgio Resen-formas de relaes de convvio social de de Barros2, a origem histrica dose tecnologias a fim de satisfazer suas deveres-poderes, decorrente da neces-crescentes necessidades. sidade de fundam entar o princtpio-

    fim comunitrio, pilar lgico e elo de fixao dos direitos humanos, apresenta-se para a sociedade hum ana em m om ento imediatamente anterior ao processo de concentrao e institucionalizao da coao social, anteriorm ente difusa e natural. Encontra-se mencionado elo, efetivo princpio comunitrio, desde os tempos da remota aldeia tribal evoluindo para os deveres-poderes supranacionais e superesta- tais, denominados por Srgio de Barros de direitos de solidariedade. C ronologicamente, os tempos dos deveres antecederam os tempos dos direitos dem onstrando que o estudo da evoluo dos direitos deve ser precedido do estudo da evoluo das relaes sociais, at chegar era dos direitos. A necessidade gera o dever que gera o poder3. Oboedientia fecit regem, ou seja, no h poder de com andar sem dever de obedecer, bem como obliga- tio et jus sunt correlata, vale dizer, no h direito de exigir sem obrigao de cumprir. Assim, tanto na gerao atual e singular de um direito como na gerao histrica e geral dos direitos, o direito nasce da obrigao e o poder nasce do dever.

    A era dos direitos humanos como a nica idia poltico-moral aceita universalmente foi bem explorada por Norberto Bobbio4, segundo o qual a era dos deveres foi anterior e perdurou por sculos. A era dos direitos foi ocorrendo progressivamente e atingiu seu pice nas revolues liberais burguesas, tendo como fundo ideolgico e objeto a relao de governo e a governabilidade, respectivamente. Na civilizao ocidental, cuja origem remonta Mesopotmia e ao Egito, tendo como raiz a cultura greco-romana,

    2 Direitos humanos', paradoxo da civilizao, p.2.3 Ibid., p.3.4 A em dos direitos, p.57.

  • Sociedade, Estado e Direito 3

    a moral social passou a considerar alm do tradicional enfoque sob o prisma social o prprio indivduo5.

    As dinmicas sociais forjam o nascimento da cultura, de forma evolutiva e aditiva ao que foi criado por geraes anteriores, a fim de tornar a convivncia social mais til e de melhor qualidade. Nessa dimenso, os antigos romanos cultuavam a cultura agri, que representava a cultura da terra ampliada demonstrando tambm o progresso tecnolgico das conquistas humanas, e a cultura anim i> representada pelas conquistas do esprito, como o folclore e as artes6.

    A origem da sociedade pode ser estudada sob vrias teorias7. Uma delas favorvel idia de sociedade natural, em decorrncia da prpria natureza humana, outra justifica a sociedade apenas como conseqncia de um ato de escolha. Ambas, no entanto, relacionam a posio do indivduo na sociedade e no Estado, gerando relevantes consideraes sobre as diretrizes da organizao, do funcionamento e da existncia do Estado.

    Outro aspecto pertinente ao presente estudo a importncia da relao social para a filosofia do direito. Conforme as lies de Alar Caff Alves8, h uma conexo marcante entre pensamento e realidade caracterizada por questes e relaes sociais, vale dizer, no h como dissociar os fundam entos ideolgicos adotados por um pensador sem considerar o contexto social da realidade por ele vivida. Justifica-se, destarte, a bem-vinda diversidade dos mltiplos e distintos pontos de vista dos grandes pensadores. As relaes humanas no devem ser analisadas apenas sob vnculos subjetivos ou interpessoais, mas tambm precisam ser estudadas sob a gide dos bens de produo, de carter objetivo. Sobtal aspecto, quando ento so deno- As relaes estruturais fundamentam aminadas pelo emrito professor de produo dos aspectos materiais da vidaestruturais, justificam a existncia de social, frum de conflitos e contradiesrelaes sociais aliceradas alm de li- da sociedade civil,gaes afetivas, ticas ou intersubjeti-vas. As relaes estruturais fundamentam a produo dos aspectos materiais da vida social, frum de conflitos e contradies da sociedade civil.

    Deseja-se, em uma sociedade organizada e harmnica, que as relaes e os processos interajam e se completem, mas normalmente no bem as-

    5 BARROS, Srgio Resende de. Direitos humanos: paradoxo da civilizao, p.5.6 FILOMENO, Jos Geraldo Brito. Manual de teoria geral do Estado e cincia poltica, p.29.7 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado, p.9.8 O que a filosofia do direito?, p.77.

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    sim. Na prtica, verifica-se a coexistncia de diferentes interesses plasmados em contradies apresentadas por grupos sociais antagnicos que almejam objetivos distintos. As relaes estruturais no s classificam os processos de produo da vida material como caracterizam as distintas classes sociais, determinando o momento, o quantum e quem produzir. Emergem influenciando as formas e os conceitos sobre a concepo dos problemas e solues, conforme os valores de cada sociedade, em determinados momentos histricos, alimentando assim sistemas diversos. Determinam o grau de evoluo de uma sociedade, conforme o nvel de complexidade dos relacionamentos intersubjetivos. Nesse diapaso, transparece claramente a diferena entre a singeleza de produo de bens em um sistema feudal e a tecnologia exigida para a manuteno de um dinmico sistema capitalista.

    1.1 Origens da sociedade

    A manifestao mais antiga de que se tem conhecimento sobre a teoria da origem natural do Estado encontra-se na afirmao de Aristteles (A Poltica, 1. 9.) datada do sculo IV a.C.: o hom em naturalmente um animal poltico e, comparando-o aos outros animais, estes constituem meros agrupamentos formados pelo instinto, pois o homem, entre todos os animais, o nico que possui a razo, o sentimento do bem e do mal, do justo e do injusto Na Idade Mdia, as idias de Aristteles encontram respaldo em Santo Toms de Aquino, para quem o homem , por natureza, animal social e poltico, vivendo em multido, ainda mais que todos os outros animais, o que se evidencia pela natural necessidade (Summa Theologica, I, XCVI, 4).

    Dentre as inmeras doutrinas filosficas sobre a origem da sociedade, duas merecem destaque: a teoria orgnica e a teoria mecnica. A teoria orgnica considera a sociedade como um organismo vivo composto de vrios rgos, cada um desempenhando determinada funo em benefcio do conjunto de indivduos que a integram. Cinge-se a necessidade de evidenciar que os excessos conduzem a distores indesejveis. Assim, por exemplo, considerando-se uma sociedade predominantemente por seu ngulo orga- nicista, tornar-se-iam irrelevantes os interesses individuais, privilegiando-se os coletivos, resultando, em tese, em uma sociedade totalitria.

    Por seu turno, a teoria mecnica enxerga a sociedade como um conjunto de pessoas que convivem sem interagir, cada um faz o que quer, segundo seus princpios e crenas, agindo com liberdade e autonomia totais. Nesse caso, os excessos resultariam em um ambiente catico, pois cada indivduo

  • Sociedade, Estado e Direito 5

    se comportaria segundo seus interesses particulares, isto , de forma individualista e egosta. Os excessos da teoria mecnica, analogamente, configuram uma sociedade totalmente desorganizada e catica, conhecida como anrquica9.

    Opondo-se teoria de sociedade natural, para os quais a sociedade apenas o produto de um acordo de vontades, de um contrato terico celebrado entre os homens, encontram-se vrios autores classificados pela doutrina como contratualistas. Defendem como origem da teoria contratualista a obra de Plato denominada A Repblica, em virtude de esta fazer referncia a uma organizao social construda racionalmente10. Posteriormente, j em 1651, o contratualismo mais solidamente proposto como sistematiza- o doutrinria por Thomas Hobbes, particularmente em sua obra Leviat. Segundo Hobbes, todos os homens so naturalmente iguais, preocupados com a sistemtica possibilidade de serem alvos de questionamentos materiais ou morais pelos prximos, fato que os leva a um estado de desconfiana desencadeando reaes instveis e precoces de agresso a fim de evitarem ser vtimas do egosmo e da insegurana do outro materializados em agresses prvias. Em virtude de potenciais ocorrncias sugere Hobbes a utilizao da razo fundamentando, destarte, a celebrao do contrato social. Como decorrncia da celebrao de mencionado contrato, considerado como um ato racional, o hom em comprometido com a manuteno das leis da natureza, preocupado com a restrio dos outros dentro de seus respectivos limites e por temor a castigos reconhece a necessidade da existncia de um poder concreto e artificial criado pelo homem natural para sua proteo e defesa representado pelo Estado". Preceptor do futuro rei Carlos II da Inglaterra, Hobbes sutilmente sugere, por meio da base contratual da sociedade e do Estado, o embasamento para o absolutismo. Somente no ocaso do sculo XVII as obras do compatriota John Locke reagiriam s idias absolutistas de Hobbes.

    Autor de vrias obras claramente antiabsolutistas e geralmente classificado como contratualista, Locke era detentor de marcante formao religiosa e apresentava inclusive derivaes para a teologia. Apesar de ter falecido em 1704, conseguiu, por meio de suas inmeras obras publicadas no perodo de

    9 FILOMENO, Jos Geraldo Brito. Manual de teoria geral do Estado e cincia poltica, p.27.10 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado, p.12.11 HOBBES, Thomas. Leviat. Parte I, Cap. XVIII.

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    1685 a 1720, influenciar a Revoluo Inglesa, conhecida como Gloriosa, do fim de 1688, bem como a independncia americana em 177612.

    Outro renomado autor contratualista que analisou o homem em seu estado natural, portanto anterior criao da sociedade, foi Charles de Se- condat, o baro de Montesquieu, que por meio de sua clssica obra O Esprito das Leis apresentou alternativas teoria de Hobbes, evidenciando leis naturais que tambm conduzem o homem a escolher a vida em sociedade, como o desejo de paz, a percepo da necessidade de sobrevivncia representada pela procura de alimentos, a atrao natural entre os sexos opostos, bem como o desejo de viver em sociedade decorrente da conscincia que os homens tm de sua condio13. Entretanto, quem mais se destacou sobre a teoria contratualista foi Jean Jaques Rousseau, por meio de sua clssica obra O contrato social, de 1762, cujo contedo justificava a existncia e a organizao da sociedade a partir de um contrato social, influenciando diretamente a Revoluo Francesa de 1789. Segundo Jean Jacques Rousseau14, apesar de a ordem social ser um direito sagrado, fundamento de todos os outros, ela no advm da natureza, mas encontra respaldo em convenes, levando concluso de que no a natureza humana, mas sim a vontade, o fundamento da sociedade. Conclui Rousseau no Livro II, Captulo XI, da mencio

    nada obra que o maior bem de todos, Considerando-se uma sociedade que tambm deve ser o fim de todademocrtica, como conseqncia natural legislao, formado por dois objetosda satisfao consciente das vontades principais: liberdade e igualdade,humanas, no se pode negligenciar a Atualmente a teoria consideradainfluncia do contratualismo; tambm predominante a que defende a idiano possvel considerar o homem de que a sociedade o resultado deisoladamente, mas mister adjetivar os uma necessidade natural do homem,indivduos como homens sociais. incluindo a participao da conscin

    cia e da vontade. No se pode negligenciar a influncia prtica e marcante da presena do contratualismo no conceito de democracia. No possvel, portanto, considerar o homem isoladamente, mas sim a ele referir-se como homem social.

    12 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado, p.14.13 Ibid., p.16.14 O contrato social, Livro I, Cap. I.

  • Sociedade, Estado e Direito

    1.2 Conceito de sociedade

    Considerado o cone do naturalismo, o filsofo grego Aristteles j no sculo IV a.C. expressava sua clebre concluso sobre a necessidade natural do homem acerca da convivncia social na mxima o homem naturalmente um animal poltico. Aristteles influenciou historicamente o rom ano Ccero no sculo I a.C., o autor medieval e provavelmente seu maior seguidor Santo Toms de Aquino e, mais modernamente, o italiano Ores- te Ranelletti, para quem onde quer que se observe, independentemente da poca, o homem sempre encontrado em convivncia, por mais simples e rstica que seja, com seus semelhantes. Segundo ele, fora da realidade da vida imaginar o homem vivendo completamente isolado, s e prximo aos outros homens sem ter com eles nenhuma relao. Acrescente-se ainda que, conforme leciona Ranelletti, para o ser hum ano associar-se aos seus semelhantes, satisfazer suas necessidades, atingir os fins de sua existncia condio essencial de vida15. Sublinhando a posio daqueles que defendem a teoria de sociedade natural como decorrncia da prpria natureza humana, a sociedade o resultado da fuso de um impulso associativo natural com a natural cooperao da vontade individual de cada pessoa.

    Cinge-se a necessidade de observar a dificuldade de conceituar sociedade, pois, com efeito, a demonstrao da tese distintiva da sociedade de um simples agrupamento de seres humanos reunidos por interesses comuns, circunstanciais e imediatos torna-se compulsria. Assim, o agrupam ento efmero de indivduos unidos por uma greve objetivando determ inado aumento salarial no configura aexistncia de uma sociedade. O con- O conceito de "sociedade" exigeceito de sociedade exige elementos elementos identificadores de vnculosidentificadores de vnculos efetivos, efetivos, dos interesses e conveninciasdos interesses e convenincias co- comuns de determinados indivduos emuns de determinados indivduos e o preenchimento de eventuais lacunaso preenchimento de eventuais lacu- existentes nas relaes sociais entre estesnas existentes entre estes e os ideais e os ideais de manuteno do grupode manuteno do grupo defendidos defendidos por outros,por outros.

    Outro elemento antolgico configurador de determinada sociedade adotado pela doutrina majoritria representado pelas relaes sociais. Os mlti-

    15 DALLARI, Dalmo de Abreu. Mementos de teoria geral do Hstadoy p. 11.

  • 8 Direito Constitucional - Teoria do Estado e da Constituio

    pios interesses e objetivos dos indivduos que integram uma sociedade encontram-se organizados e regulamentados em normas de conduta as quais orientam suas relaes sociais. Imprescindveis manuteno da ordem para a convivncia social, as normas de conduta ou vnculos jurdicos16 tm como foco preliminar e principal a persecuo de objetivos sociais e a conseqente satisfao dos interesses de seus integrantes. Estabelecem relaes de direitos e obrigaes entre eles e o local de convivncia comum. Assim, o clube desportivo um exemplo clssico da aplicao das referidas normas de conduta s relaes sociais de determinado grupo de indivduos que comungam objetivos e interesses comuns. Constitudo por elementos sociais, os scios, e pelo elemento fsico, representado pela sede social, e por se tratar de pessoa jurdica, rene, simultaneamente, os vrios elementos necessrios caracterizao de uma sociedade. Em um clube desportivo os indivduos convivem, harmonicamente, unidos por objetivos comuns, gerando direitos e obrigaes entre si e com o clube, sob determinadas normas de conduta, compartilhando relaes sociais. Sem embargo, analogamente pode-se estender o referido esquema aos vrios tipos de sociedade, adaptando-se, evidentemente, aos correspondentes fins sociais de cada uma delas.

    Acrescente-se a importncia atribuda ao tema tanto pelo legislador constitucional plasmado em vrios dispositivos da Constituio vigente como pelo legislador infraconstitucional, particularmente pelo exposto na Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002, o Cdigo Civil de 2002. Destarte, tor- na-se relevante observar que os mais diversos objetos motivadores da formao das inmeras sociedades sujeitam-se s normas de determinado sistema jurdico vigente. Em nosso sistema, o Cdigo Civil de 200217 determina, em seu art. 45, o mom ento e a forma de constituio de novas sociedades, bem como a necessidade do registro de eventuais alteraes. Conjugado com o caput do art. 20 do Cdigo Civil de 1916, que determinava que as pessoas jurdicas tm existncia distinta da dos seus membros18, demonstra de forma hialina que o intuito principal, em um primeiro momento, e os demais interesses que forjaram a criao de determinada sociedade geram o surgi-

    16 FILOMENO, Jos Geraldo Brito. Manual de teoria geral do Estado e cincia poltica, p.25.17 Art. 45. Comea a existncia legal das pessoas jurdicas de direito privado com a inscrio do

    ato constitutivo no respectivo registro, precedida, quando necessrio, de autorizao ou aprovao do Poder Executivo, averbando-se no registro todas as alteraes por que passar o ato constitutivo.

    18 Corresponde ao art. 53 do Cdigo Civil de 2002. Art. 53. Constituem-se as associaes pela unio de pessoas que se organizem para fins no econmicos. Pargrafo nico. No h, entre os associados, direitos e obrigaes recprocos.

  • Sociedade, Estado e Direito 9

    mento de um novo ente que, como j se verificou anteriormente, dotado de personalidade jurdica e existncia autnoma em relao aos membros que o criaram. Deflui da citada autonomia a necessidade de garantir, por meio de um conjunto de normas, a

    Deflui da desejvel autonomia da nova pessoa jurdica criada a sobrevivncia

    dos direitos individuais de forma harmnica e racional, imprescindveis promoo do bem-estar coletivo e dos

    interesses de cada um.sobrevivncia dos direitos individuaisde forma harmnica e racional, mantendo assim a ordem e o ambiente, im prescindveis promoo do bem-estar coletivo e ao atendimento, na medida do possvel, dos interesses de cada um.

    Verificar-se- mais adiante que a complexidade para a manuteno do equilbrio de mencionada equaotorna-se muito maior tratando-se das relaes entre o cidado e o Estado.

    Sumariando a esto, em linhas gerais, os argumentos bsicos justifi- cadores de que a sociedade um fato natural definido pela necessidade que o ser hum ano tem de sentir-se apoia-

    A sociedade um fato natural determinado pela necessidade que o ser

    humano tem de sentir-se apoiado por seus semelhantes, a fim de atingir a realizao

    de fins no apenas materiais, mas tambm de conscincia e vontade humanas,

    necessrias para sua existncia social.do por seus semelhantes, a fim deatingir a realizao dos fins no apenas materiais, mas tambm de conscincia e vontade humanas, necessrias para sua existncia social.

    1.3 Finalidades da sociedade

    A teoria contratualista, que justificava a origem convencional da sociedade humana, era identificada com o jusnaturalismo pela posio slida e cientfica atribuda por Emmanuel Kant ao contratualismo, pela idia de pacto social indispensvel a uma convivncia pacfica do homem que, em seu estado de natureza, era por Hobbes considerado irracional, o homem lobo do homem'9, ou ainda, pela proposta mais humana e racional de Locke20. Todas essas teses, segundo nosso prisma, justificam a existncia do Estado para atender aos interesses da sociedade humana.

    19 "Homo homini lupus. Frase do filsofo Plauto, que, segundo os frades franciscanos, significa o lobo mora dentro de cada um de ns, como um animal acuado pronto para dar o bote.

    20 MALUF, Sahid. Teoria geral do Estado, p.71.

  • 10 Direito Constitucional - Teoria do Estado e da Constituio

    Nesse aspecto, o filsofo ingls lohn Locke atribui doutrina contra- tualista o sentido hum ano e liberal. Segundo ele, o Estado deve respeitar e garantir os direitos fundamentais da pessoa humana, anteriores e superiores ao dever da responsabilidade daquele em regulamentar as relaes pblicas da vida em sociedade.

    Para o representante mximo da teoria contratualista, Jean Jacques Rousseau, natural de Genebra no incio do sculo XVIII (1712-1778), o Estado existe para promover o bem comum. Justifica-se sua existncia enquanto atender vontade do povo, que tem o inexorvel direito de alte- r-lo, renovando assim o contedo do contrato. Leon Duguit21 considera a tese de Rousseau inspiradora da filosofia pantesta de Hegel, que, como de conhecimento pblico, fundamentou a doutrina absolutista e violenta dos juristas germnicos. Em que pese a crtica de renomados juristas e filso

    fos, fundamentando a fragilidade do A teoria do contrato social transcende contratualismo em seu contedo me-s teses de respeitveis doutrinas e tafsico e deontolgico, no h comovincula-se histrica e definitivamente aos dissoci-la da gnese do Estado libe-ideais revolucionrios e contemporneos ral e da inspirao filosfica da Revo-plasmados pela idia de liberdade e luo Francesa. A teoria do contratoigualdade, inerentes ao homem a partir social transcende s teses de respeit-de sua concepo biolgica. veis doutrinas e vincula-se histrica

    e definitivamente aos ideais revolucionrios e contemporneos plasmados pela idia de liberdade e igualdade, inerentes ao homem a partir de sua concepo biolgica.

    Segundo a corrente conhecida como determinista, no h finalidade ou objetivo a ser atingido, mas apenas uma sucesso natural de fatos nos quais o homem no consegue interferir. Os autores intitulados finalistas defendem a existncia de uma finalidade social, naturalmente e livremente escolhida pelo homem. Emerge, preliminarmente, a dvida natural sobre o valor axiolgico dessa finalidade, sendo universalmente aceita e representada pelo bem comum. Em seguida, questiona-se: como conceituar o bem comum evitando excluses? Leciona Dalmo Dallari22 que o conceito mais amplo, feliz e universal sobre o bem comum foi elaborado pelo papa Joo XXIII, na Enc- clica, II, 58, Pacem in Terris: O bem comum consiste no conjunto de todas as condies de vida social que favoream o desenvolvimento integral da personalidade hum ana. Vale observar que no h referncia a uma espcie

    21 Ibid.y p.74.22 Elementos de teoria geral do Estado, p.24.

  • Sociedade, Estado e Direito 11

    particular de bens, mas sim a um conjunto de condies, incluindo a ordem jurdica, a garantia de elementos que favoream o desenvolvimento integral da personalidade humana, bem como os valores materiais e espirituais, julgados individualmente por cada homem como necessrios para a efetiva consolidao e expanso de sua personalidade. Portanto, quando se afirma que a sociedade humana tem por finalidade o bem comum, significa que esta persegue a criao de condies que possibilitem a cada homem ou grupo social a realizao de seus interesses pessoais.

    Com efeito, a tese de que para tudo que existe h um objetivo ou finalidade correspondente contribui para confirmar que independentemente de quais sejam os elementos constitutivos finais das sociedades, estes integraro o objetivo particular a que se destina cada uma delas. Sem embargo, conclui-se, por exemplo, que o objetivo de uma sociedade mercantil o Independentemente de quais sejamlucro; o de uma sociedade religiosa, a os elementos constitutivos finaisevoluo espiritual; e o de um clube das sociedades, estes integraro osocial, o desenvolvimento de eventos objetivo particular a que se destinasociais23. cada uma delas.

    1.4 Tipos de sociedade

    A fim de atingir o bem comum, os grupos humanos submetem-se a um poder e procuram manifestar seus desejos por meio de aes ordenadas. Como decorrncia principal de referidos comportamentos agregados a uma finalidade e ao poder social emerge a gerao em profuso de novas sociedades. Godoffredo Telles Jr. (A criao do direito, vol. II, p. 597-8) atribui ao fenmeno o ttulo de processo de integrao, que, segundo ele, o resultado da evoluo e complexidade de indivduos integrantes de sociedades prim itivas organizadas originalmente de maneira simples e homognea, os quais possuem aptides e tendncias semelhantes e preferem constituir grupos parte em um movimento de diferenciao. Apesar de autnomos, necessitam dos demais grupos para sobreviver, solidarizando-se e convivendo harmoni- camente para obter por meio de um movimento de coordenao o benefcio comum gerado pelas atividades desenvolvidas pelos outros. Em virtude dos interesses naturalmente conflitantes das sociedades e da improbabilidade de obteno de uma harm onia espontnea dos indivduos, justifica-se a neces-

    23 FILOMENO, Jos Geraldo Brito. Manual de teoria geral do Estado e cincia poltica, p.33.

  • 12 Direito Constitucional - Teoria do Estado e da Constituio

    sidade de existncia de um poder social superior que promova a conciliao em razo de um objetivo superior consubstanciado no bem comum.

    Assim, a classificao das sociedades tema plural e controverso.O socilogo italiano Filippo Carli (Le Teorie Socielogiche, p. 30), por

    exemplo, classifica as sociedades segundo critrios que as motivem. Nessadimenso, h aquelas que buscam

    Assim, a classificao das sociedades fins no especificados e difusos, co-tema plural e controverso. mo famlia, cidade e Estado. Por ou

    tro prisma, h sociedades que objetivam fins determinados e so tambm voluntrias, em decorrncia de livre escolha, e conscientes. Por fim, h sociedades, segundo Carli, que perseguem fins determinados e no so voluntrias, em virtude de seus membros participarem delas de forma compulsria, como ocorre nos casos dos fiis de uma igreja.

    Catlin24 define as sociedades privadas como agrupamentos considerados sociedades com finalidades sociolgicas, no necessariamente organizadas ou legalmente reconhecidas. No caso de serem criadas com fins especficos, podem ser denominadas de associaes. Por outro lado, segundo Catlin, freqentemente as sociedades formam organizaes para a realizao de uma funo permanente e exigem daqueles que a integram um padro de vida cuja concluso imprevisvel. Estas ltimas so consideradas como societa- tesperfectae por autores medievais quando respectivas existncias independem da vontade de outra.

    Objetivamente, podemos dividir as sociedades em duas espcies25: a) as de fins particulares, com finalidade definida espontaneamente por seus membros. Suas atividades so dirigidas diretamente para o objetivo inspirador de sua criao por atos conscientes e voluntrios; b) as de fins gerais, cujo objetivo se apresenta de forma indefinida e genrica e persegue a criao de ambiente necessrio para que os indivduos e as demais sociedades que delas participem possam atingir seus fins particulares. A participao nas mesmas sociedades geralmente vincula compulsoriamente os atos de vontade prpria. Normalmente so conhecidas como sociedades polticas, particularmente por no se vincularem a um objeto determinado, perseguindo a integrao de todas as atividades sociais que orbitam em seu entorno.

    Portanto, so sociedades polticas, incluindo-se o Estado, aquelas que geram condies de realizao de interesses particulares de seus integran-

    24 Tratado de poltica, p.84.25 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado, p.48.

  • Sociedade, Estado e Direito 13

    tes, no permitindo que estes interfiram na vontade geral das aes de outrem, mas sim os considerando. A clula mater da sociedade poltica em seu sentido mais restrito e de aceitao universal a famlia e em seu contedo mais amplo o Estado.

    A clula mater da sociedade poltica em seu sentido mais restrito e de aceitao universal a famlia e em seu contedo

    mais amplo o Estado.

    Questionrio 1

    1. Qual o significado para Aristteles da expresso "o homem um animal gregrio!

    2. Quais so os elementos fundamentais para a formao de uma sociedade?3. Qual a importncia das relaes estruturais para as sociedades, segundo a

    filosofia do direito?4. Como avaliado o grau de evoluo de uma sociedade?5. Apresente trs teorias sobre o surgimento das sociedades.6. Qual foi a contribuio de John Locke para o contratualismo?7. Em que consiste a teoria do contrato social de Jean-Jacques Rousseau?8. Qual a essncia da teoria finalista sobre sociedade?9. Quais so as principais finalidades das sociedades?10. Quais so as principais espcies de sociedade?

  • 14 Direito Constitucional - Teoria do Estado e da Constituio

    2. Estado

    Conforme anteriormente verificado, o termo Estado designa o sentido mais amplo de uma sociedade politicamente organizada. Do latim status, significa estar firme e representa uma situao permanente de convivncia ligada a uma sociedade poltica. Presente pela primeira vez em 1513, na obra O Prncipe, de Nicolau Maquiavel, o termo Estado foi utilizado para indicar a sociedade politicamente organizada e orientada por um poder soberano. O conceito de Estado passa a ser utilizado pelos italianos para representar as cidades independentes e, pioneiramente, estabelece duas formas de governo: a monarquia (o principado) e a repblica. Alguns autores no admitem sua existncia antes do sculo XVII, sendo para essa corrente essencial validar a aplicao do termo Estado apenas sociedade poltica dotada de certas caractersticas bem definidas. Entretanto, para a maioria da doutrina a designao do termo Estado deve estar vinculada a todas as sociedades polticas que, com autoridade superior, fixaram as regras de convivncia de seus membros.

    2.1 Origem do Estado

    H vrias teorias relativas poca do surgimento do Estado. Entre elas, as principais sero a seguir apreciadas. A corrente representada por Eduard Meyer, historiador, autor de Histria da Antiguidade, publicado entre 1921 e 1925, e por Wilhelm Koppers, etnlogo, considera a existncia do Estado vinculada existncia da prpria sociedade, desde que o homem vive na Terra. Para esses autores, o Estado um elemento universal na organizao social da humanidade. O utra corrente representada pela maioria dos estudiosos do tema admite a existncia da sociedade humana, durante certo perodo, sem o Estado, que surgir posteriormente para atender s necessidades de grupos sociais. A terceira corrente representada por autores renomados, como Karl Schmidt, Giorgio Balladore Pallieri (A doutrina do Estado, vol. I, p. 16) e Jos Carlos Ataliba Nogueira (Lies de teoria geral do Estado, p. 46-7). Segundo eles, o Estado representa apenas a sociedade poltica dotada de caractersticas bem definidas, cujo conceito surge no sculo XVII, a partir da prtica da soberania. Pallieri aponta como o surgimento oficial do Estado, no m undo ocidental, a assinatura da Paz de Westflia, em 1648, tese defendida tambm pelo autor brasileiro Ataliba Nogueira26.

    26 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado, p.52-3.

  • Sociedade, Estado e Direito 15

    Dentre as inmeras teorias sobre a formao dos novos estados, interessa-nos particularmente as que fundamentam as origens familiar ou patriarcal e as de causas econmicas ou patrimoniais.

    Assim, a teoria que defende a criao do Estado a partir do ncleo social familiar justifica-se pela ampliao de cada famlia primitiva gerando, cada uma, um novo estado.

    Alguns autores, defensores da origem dos novos Estados baseada em causas econmicas ou patrimoniais, fundamentam sua tese no contedo da obra de Plato, A Repblica, quando no subttulo Dilogos, do Livro II, afirma que o nascimento de um Estado o resultado das necessidades dos Assim, a teoria que defende a criaohomens, pois, segundo ele, ningum do Estado a partir do ncleo socialbasta a si mesmo, todos ns precisa- familiar justifica-se pela ampliao demos de muitas coisas. Com efeito o cada famlia primitiva gerando, cadaEstado teria nascido para atender as uma, um novo Estado,diversas necessidades materiais degrupos sociais por meio dos benefcios da diviso do trabalho, integrando os indivduos s distintas atividades profissionais, configurando nesse diapaso o motivo econmico.

    Entre os defensores da criao dos novos estados por razes patrim oniais destacam-se Marx e Engels. Essa teoria foi expressa particularmente na obra deste ltimo intitulada A origem da famlia, da propriedade privada e do Estado. Em seu tratado Engels nega haver o Estado nascido com a sociedade, mas sim ser este preliminarmente um produto da sociedade quando esta atinge certo grau de desenvolvimento. Tornou-se clebre sua afirmao: inventou-se o Estado27. Alguns processos atpicos de formao de novos estados merecem destaque. Lembrando a submisso genrica dos povos dominados por Roma e, contemporaneamente, as potncias vencedoras que, objetivando ampliar seus territrios e fortalecer seus domnios polticos, estimulam a criao de novos estados nos territrios dos vencidos.

    2.2 Evoluo histrica do Estado

    Historicamente, a diviso clssica das fases do Estado, desde a sua origem, compreende o Estado antigo, o Estado grego, o Estado romano, o Estado medieval e o Estado moderno.

    27 A origem da famlia, da propriedade privada e do Estado, p. 102 e 160.

  • 16 Direito Constitucional - Teoria do Estado e da Constituio

    O Estado antigo, tambm conhecido como oriental ou teocrtico28, era caracterizado pela precocidade e pela fragilidade de definio entre as antigas civilizaes do Oriente propriamente dito ou do Mediterrneo. Havia uma confuso entre a famlia, a religio, o Estado e a organizao econmica, no sendo possvel distinguir o pensamento poltico da moral, da religio, da filosofia ou mesmo das doutrinas econmicas. A atribuio do termo teocrtico ao Estado antigo decorre da marcante presena do fator religioso. A autoridade dos governantes, bem como as prprias normas de comportamento individual e coletivo, advinha de um poder divino, Omnis potestas a Deo. O monarca era considerado um representante do poder divino na terra, fato que fundamentava a teoria da irresponsabilidade do Estado, vale dizer, o rei, monarca ou prncipe, representante de Deus e do Estado, no pode errar, no pode ser responsabilizado por seus atos.

    O Estado grego ou helnico no deixou vestgios claros sobre sua uni- cidade. O elemento bsico, testemunha de sua efetiva existncia, a cida- de-estado, conhecida como polis, expresso mxima da sociedade poltica helnica. O objetivo principal da polis era a auto-suficincia. Segundo Aristteles29, a sociedade composta de diversos pequenos burgos formava uma cidade completa munida dos meios necessrios para se abastecer por si prpria, alcanando, destarte, a finalidade para a qual foi criada. A idia de auto-suficincia proposta por Aristteles foi determinante para a preservao da cidade-estado helnica, fundamentalmente porque influenciou, diferentemente do procedimento do Estado romano, a prtica da no-agregao territorial ou tnica dos povos conquistados.

    Caracterizado pela longa durao e pela extensa rea ocupada, o Estado romano, alicerado em base familiar de organizao, no obstante posies doutrinrias contrrias, no s expandia seus domnios anexando territrios dos povos conquistados como tambm oferecia privilgios queles que se submetiam s leis e aos costumes romanos. O esprito romano da poca muito bem retratado nas aclamaes de Virglius, na obra Eneida, canto VI, versos 851 a 853, que declara: Lembra-te, romano, de sujeitar os povos a teu imprio. Cabe-te a misso de im por a paz e os costumes, poupar os vencidos e dobrar os soberbos.30

    28 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado, p.62.29 A poltica, p.8.-,0 MEIRELLES, Helly Lopes. Direito municipal brasileiro, p.33. Traduo do autor para: Tu regere

    Imprio populus, Ronuwe, memento. Hae tibi ernnt artes, pacisqtte imponere morem, parcere subjectis et debellare superbus".

  • Sociedade, Estado e Direito 17

    Assim, os povos politicamente organizados ungidos com privilgios, por se submeterem pacificamente aos costumes e leis romanos, recebiam o ttulo de municpios31.

    A organizao administrativa ro- "Lembra-te, romano, de sujeitar osmana era complexa, abrangendo car- povos a teu imprio. Cabe-te a missogos eletivos e temporrios. Os curiais de impor a paz e os costumes, poupar os eram eleitos pela Assemblia dos Ci- vencidos e dobrar os soberbos."dados, denominada vires, cuja condio para a elegibilidade era a posse de bens. O Conselho, composto de cem vires, chamava-se cria e desempenhava funes legislativas e de fiscalizao, equivalentes s funes do Senado romano. Os magistrados superiores, denominados por vires judicundo duumvires, duumviratum, ocupavam o topo da organizao administrativa e podiam ser representados por dois ou quatro juizes, cujas funes executivas e judiciais correspondiam s funes do prefeito contemporneo. Referidas caractersticas justificam, em geral, a aceitao pelos povos conquistados das leis e dos costumes romanos. Essa situao lhes interessava, pois concedia privilgios e proteo de Roma. J na fase do Estado medieval, quando emergia a idia de imprio, ainda que tivesse o status de plebeu, o romano ao conquistar amplos direitos gozava de situao superior de qualquer indivduo pertencente aos povos conquistados.

    No incio do sculo XIII, o imperador Caracala concedeu a naturalizao a todos os povos do Imprio. Observa Geraldo de Ulhoa Cintra32 que o objetivo de Caracala foi poltico: a unificao do Imprio; foi religioso: objetivava ampliar os adoradores dos deuses romanos; foi fiscal: queria obrigar os peregrinos a pagar imposto sobre as sucesses; e foi tambm social: visava a simplificar e facilitar as decises judiciais nos casos que versavam sobre o estado e a constituio das pessoas. Segundo alguns autores, a iniciava o fim do Imprio Romano, consolidado pelo Edito de Milo, em 1313, quando Constantino garantiu a liberdade religiosa desencadeando por influncia do cristianismo o desaparecimento da idia de superioridade dos romanos, base da unidade do Estado romano.

    A determinao de caractersticas que identificam o Estado medieval no tarefa das mais fceis. A sistemtica busca pelo universal gera para a esfera conceituai de Estado a fase mais instvel e diversa. O cristianismo fundamenta a tese da universalizao pregando a no-distino entre os

    31 Etimologicamente o termo municpio originou-se de mnus, eris, do latim, ddivas, privilgios e do verbo latino capere (capio, is, cepi, captum, ere).

    32 De sltilit civiuuis, p.54.

  • 18 Direito Constitucional - Teoria do Estado e da Constituio

    homens em virtude de suas origens, mas sim sugerindo a igualdade independentemente de classes sociais, considerando infelizes aqueles que ainda no houvessem se convertido ao cristianismo. Interessavam a aceitao da unidade da Igreja e a integrao dos cristos em uma sociedade poltica nica, baseada em motivos religiosos e prticos, perseguindo, predominantemente, o Estado universal que congregasse toda a humanidade sob normas reguladoras de comportamentos padro, tanto na esfera pblica quanto na particular. Nesse diapaso, o papa Leo III, a fim de estimular a afirmao do Imprio e da cristandade como unidade poltica, concede, no ano de 800, o ttulo de imperador a Carlos Magno33. Entretanto, conflitos inesperados de ordem poltica entre os poderes sobre temas religiosos e temporais ensejaram o incio de lides insolveis entre o papa e o imperador, que iriam posteriormente resultar na confirmao da supremacia absoluta dos monarcas sobre a ordem temporal.

    A polmica gerada, na poca, entre a Igreja e os monarcas bem ilustrada em notas de rodap na obra de Dalmo Dallari34, em que so apresentados dois fatores determinantes para a evoluo da relao e as respectivas conseqncias histricas. O primeiro ocorreu no sculo XI, quando o imperador da Alemanha Henrique IV nomeou feudalistas eclesisticos para bispados alemes. O papa Gregrio VII declarou nulas as nomeaes. Inconformado, Henrique IV convocou todo o bispado alemo objetivando o afastamento do sumo pontfice. Informado sobre tal conspirao, o papa publicou um ato de excomunho, bem como determinou o no-reconhecimento por qualquer Estado cristo da autoridade de imperador de Henrique IV. Este ltimo, sentindo-se impotente para resistir ou reagir, em janeiro de 1077 realizou a histrica peregrinao a Canossa, nos Alpes italianos. Vestido de buril e descalo, prostrou-se de joelhos na neve aguardando pelo perdo do papa Gregrio VII.

    Outro fator relevante para a compreenso da evoluo na relao Igreja e monarcas, que vai culminar com o advento do Estado moderno, representado pelas pblicas diferenas ocorridas no sculo XIV entre o papa Bonifcio VIII e o rei da Frana Filipe, o Belo. Acusado pelo sumo pontfice de cobrar impostos excessivos sobre os bens da Igreja na Frana, o rei proibiu que fosse enviada qualquer quantia em dinheiro da Frana para Roma, sendo, em decorrncia, ameaado de excomunho. A relao agravou-se em virtude da priso de um bispo francs em 1301, acusado de conspirar a favor

    33 Ibid., p.66.34 Elementos de teoria geral do Estado, p.67.

  • Sociedade, Estado e Direito 19

    da Inglaterra. Incrdulo quanto acusao contra o bispo, o papa Bonifcio VIII, condenando publicamente o ato do monarca francs, tentou julgar o bispo em Roma. Diante disso, Filipe, o Belo, aproveitando o contexto bem diverso daquele existente no sculo XI, acusou o papa de interferncia em assuntos de ordem temporal e tentou realizar um concilio para dep-lo. Persistindo a situao de ataques verbais violentos e recprocos, publicou-se na Frana um edito acusando o papa Bonifcio VIII de dissoluo e de haver tramado a renncia de seu antecessor, Celestino V. Surpreendido enquanto repousava no Castelo de Anagri, em setembro de 1303, o sumo pontfice foi preso pelos soldados do monarca francs comandados por Guilherme de Nogaret. Todos os bens do castelo foram distribudos populao local. Alegando que se submetia autoridade do papa apenas em matria espiritual, Filipe, o Belo, autorizou a libertao de Bonifcio VIII alguns dias depois de sua priso. Regressando a Roma e sentindo-se humilhado e muito abatido, o sumo pontfice Bonifcio VIII viria a falecer algumas semanas mais tarde. Referido episdio marcou claramente uma expressiva vitria do absolutis- mo, anunciando de forma radical o nascimento de um novo Estado.

    As invases dos povos germanos, godos, eslavos, entre outros, conhecidos como brbaros, representaram vetores introdutores de novos costumes e fomentaram a criao de inmeros novos Estados. Assim, verifica-se a celebrao de acordos e at mesmo alianas de povos cristos desunidos com povos brbaros, objetivando fins econmicos e, em alguns casos, gerando relaes amistosas. sob a gide desse cenrio instvel, confuso e de sistemtico conflito blico entre cristose no-cristos, emblema do Estado Sob a gide de um cenrio instvel,medieval, que foi pavimentado o ad- confuso e de sistemtico conflito blicovento do Estado moderno. entre cristos e no-cristos, emblema

    Como decorrncia, mencionado do Estado medieval, pavimentou-se ocenrio favoreceu ainda a supervalo- advento do Estado moderno,rizao da posse da terra, que se tornaria, naturalmente, o fator principal e regulador da vida social no Estado medieval, sendo aceito um sistema administrativo organizacional militar vinculado diretamente ao status patrimonial denominado de feudalismo.

    O Estado moderno o resultado de um conjunto de itens que abrangem as deficincias polticas e sociais do Estado medieval, o desejo de restabelecimento da unidade do Estado romano e o incontrolvel crescimento do n mero de proprietrios representados por famlias preocupadas com a produo de subsistncia. Por outro lado, a crescente intolerncia dos senhores

  • 20 Direito Constitucional - Teoria do Estado e da Constituio

    feudais diante das caprichosas e indiscriminadas exigncias de monarcas irresponsveis que autorizavam o progressivo ndice de taxao sobre seus bens gerava uma situao insustentvel de relaes blicas, causando prejuzos incalculveis de ordem econmica e social. Como decorrncia principal toma fora a idia da necessidade da unidade que se materializa com a efetiva afirmao de um poder soberano circunscrito em determinada rea territorial. Conforme se verificou anteriormente, a assinatura do tratado de paz de Westflia representa, para a maioria da doutrina, o documento formal gerador do nascimento do Estado moderno.

    2.3 Conceito de Estado

    A definio, que apesar do forte teor poltico no negligencia a necessidade da observao da finalidade jurdica, elaborada j no sculo retrasado, a apresentada por Leon Duguit35, por volta de 1925. Duguit define Estado como uma fora material irresistvel, atualmente limitada e regulada pelo direito.

    A maioria dos autores italianos adota o conceito de Estado vinculado predominantemente ao elemento jurdico acima da presena da fora, de

    vendo todos os demais elementos, Duguit define Estado como uma fora segundo essa teoria, estar integradosmaterial irresistvel, limitada e regulada a uma ordem jurdica, a fim de serpelo direito. considerados componentes do Esta

    do. Foi a partir do sculo XIX que a escola alem representada por Gerber demonstrou a importncia da introduo da idia de juridicidade no conceito de Estado. Jellinek quem fixa o conceito de Estado como pessoa jurdica ao defini-lo como corporao territorial dotada de um poder de mando originrio.

    Hans Kelsen, entretido em observar a noo jurdica de Estado, define-o como ordem coativa normativa da conduta humana, omitindo na viso de V.E. Orlando36 fatores no jurdicos indispensveis compreenso completa do termo Estado.

    A doutrina ptria37 conceitua Estado como a ordem jurdica soberana que tem por fim o bem comum de um povo situado em determinado territrio. Justifica sua definio procurando demonstrar a presena de todos os ele-

    35 Trait de droit constitutionnel.36 Diritto pubblico generale.37 DALLARI, Dalmo de Abreu. Mementos de teoria geral do Estado, p. 119.

  • Sociedade, Estado e Direito 21

    mentos essenciais componentes do Estado, e apenas estes. Adorna com cores fortes e generosas atribuindo soberania a caracterstica da prpria ordem jurdica e elemento portador natural do poder. O bem comum vinculado a um povo afirma o aspecto poltico do Estado, bem como auxilia na limitao da ao jurdica e poltica deste, mostra-se presente na territorialidade.

    2.4 Estado e nao

    O conceito de nao se fortalece quando, durante a vigncia do Estado medieval, os europeus preocupados com os efeitos das sistemticas guerras e das instabilidades sociais almejavam a conformao de unidades polticas e sociais slidas e seguras. Emerge o termo nao com forte apelo emocional para um povo, incluindo classes econmicas privilegiadas como a burguesia, que se sentia impotente diante do quadro catico e desejava impedir aes militares desconexas e de conseqncias imprevisveis para o bem- estar geral. Surge assim o conceito cientfico e artificial de nao, fortemente estimulado pela burguesia, no sculo XVII, como smbolo da unidade popular, a fim de agregar ao poder econmico j alcanado a conquista do poder poltico. Era mais fcil envolver o povo na luta contra o absolutismo em nome da nao, conceito mais abstrato e de apelo emocional, sugerindo ser esse o vetor preliminar e o caminho natural para a conquista do governo do Estado. Com o enfraquecimento da monarquia, simbolizado, particularmente, pelas revolues liberais burguesas norte-americana e francesa, os governantes sucessores justificavam suas investidas sobre pequenos Estados pela fora mstica da expresso nao. Destarte, em nome da importncia e da grandeza das naes, territrios como a frica e a sia sofrem, durante o sculo XIX, forte imposio imperialista. Posteriormente, j no sculo XX, o m undo assiste perplexo s conseqncias trgicas de sentimentos nacionalistas exacerbados materializados em duas guerras mundiais, desencadeadas sob pretextos da preservao de unidades polticas componentes de uma mesma nao e do desejo de consolidar a supremacia de naes conside- Percebe-se, assim, que a criao do termoradas superiores. Percebe-se, assim, nao surgiu muito mais para justificarque a criao do termo nao surgiu uma realidade sociolgica que paramuito mais para justificar uma rea- fundamentar algum vnculo jurdicolidade sociolgica que para funda- entre seus componentes,mentar algum vnculo jurdico entre seus componentes.

  • 22 Direito Constitucional - Teoria do Estado e da Constituio

    A comunidade, elemento caracterizador de nao, composta de pessoas ligadas por uma confiana recproca, por vnculos de sentimentos comuns, considerando-se decorrncia lgica o fato de tambm desenvolverem costumes comuns.

    A regra geral aceita pela maioria dos juristas a do plurinacionalismo, vale dizer, em cada Estado h pessoas pertencentes a distintas naes. O Estado persegue a unidade jurdica procurando respeitar os valores fundamentais e plurais dos indivduos e conciliar a diversidade cultural com a igualdade jurdica. Surge a necessidade de os Estados se organizarem a fim de atingir a unidade na diversidade, gerando condies facilitadoras para uma convivncia mais harmnica das diversas comunidades, restringindo discriminaes, bem como garantindo a participao mais ampla possvel no exerccio do poder poltico. A adoo de organizao federativa exemplo clssico de delegao a cada unidade federada o poder de deliberar sobre determinados interesses, desde que no conflitem com os interesses do governo federal.

    Pode-se a partir das informaes previamente abordadas sobre eventuais semelhanas ou diferenas existentes entre os conceitos de Estado e de nao chegar a algumas concluses. Em razo de a nao ser uma comunidade e o Estado uma sociedade, percebe-se uma diferena bsica entre am bos, dificultando a idia daqueles que desejam afirmar que o Estado uma nao ou mesmo o resultado da evoluo desta. Interessa aos Estados criar uma imagem nacional, de apelo emocional, buscando o sentimento comum de solidariedade entre os seus membros e tentando evidenciar os efeitos sociais positivos dos diversos grupos como resultantes de toda a sociedade,

    bem como formar uma conscincia Interessa aos Estados criar uma imagem de comunidade,nacional, de apelo emocional, buscando o Nesse sentido, o conjunto desentimento comum de solidariedade entre aes propostas pelos Estados, comoos seus membros e gerando a conscincia a submisso a um governo comum, ode comunidade. uso da mesma linguagem, a aceitao

    de diversos valores culturais comuns, a comunidade de interesses, pode ser considerado insuficiente para fazer do Estado uma nao, mas definitivamente muito til para a obteno de maior solidariedade na persecuo dos objetivos da sociedade poltica. Portanto, quando o indivduo, geralmente por iniciativa prpria ou at por razo involuntria, se desvincula de uma ordem jurdica estatal para ligar- se a outra verifica-se, de fato, no a troca de nacionalidade, mas sim a tro ca de cidadania. Afigura-se despicienda a indagao a respeito de costumes

  • Sociedade, Estado e Direito 23

    ou valores culturais daqueles indivduos que pretendem a mudana. Fato que fundamenta a concesso limitada de direitos pelos Estados aos cidados adotados, pois se torna claro que o ato jurdico o qual confere ao pretendente uma nova cidadania no obrigatoriamente o integra nova comunidade.

    2.5 Elementos do Estado moderno

    Sobre as vrias definies do Estado moderno percebe-se uma ntida preocupao dos historiadores, e dos doutrinadores particularmente, com o nmero e a essencialidade dos elementos que formam esse Estado. Alguns autores consideram apenas a soberania e o territrio como elementos essenciais. A maioria defende a existncia de trs elementos na composio do Estado moderno, mas ainda assim h controvrsias quanto a esses elementos. Assim, os elementos considerados materiais, povo e territrio, so pacificamente aceitos como fundamentais pela quase totalidade da doutrina, transparecendo a divergncia quanto ao terceiro elemento denominado por muitos de formal ou abstrato. Segundo Del Vecchio38, o terceiro elemento que caracteriza formalmente o Estado o vnculo jurdico, no qual os indivduos encontram a perseguida unidade materializada pelo direito. Groppali39 entende ser bvia a necessidade de uma finalidade para que as pessoas aceitem conviver de determinada forma, sob uma ordem de organizao e sob um poder, acrescentando, por conseqncia, um quarto elemento.

    Posio doutrinria distinta apresenta Dalmo Dallari40, considerando quatro as caractersticas essenciais componentes do Estado, a saber: a soberania, o territrio, o povo e a finalidade. Segundo ele, tais elementos representam a sntese que conduzir a um conceito de Estado que lhe parece mais realista em virtude de considerar todas as peculiaridades verificveis no plano da realidade social. Conclui afirmando que a noo de ordem jurdica j se acha implcita, uma vez que se vai analisar determinada sociedade, e todas so, segundo ele, ordens jurdicas, diferentemente da finalidade que prpria de cada Estado, que no deixa de ser poltica, mas que apresenta certas peculiaridades.

    A soberania considerada o fundamento do Estado. Conhecido como elemento institucional, o poder soberano o fator que efetivamente carac-

    '8 Teoria do Estado.9 Doutrina do Estado.40 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado, p.72.

  • 24 Direito Constitucional - Teoria do Estado e da Constituio

    teriza o Estado, representando o povo e o territrio, respectivamente, os elementos social e territorial.

    Evidenciando a importncia da soberania em nosso sistema ptrio, integra esta a dico do art. Io, I, da Constituio Federal vigente41. Atualmente

    o conceito de soberania recepciona o A soberania considerada o fundamento termoneoliberal5Wpran

  • Sociedade, Estado e Direito 25

    te-lhe razo, pois nos afigura excessivamente simplista a teoria de Duguit, que considera o governo um simples fato social e no um fato jurdico. Um governo no deve basear-se em uma simples manifestao de vontades pessoais, mas sim na lei que a expresso da vontade geral. No Estado democrtico, o governado no obrigado a obedecer a atos discricionrios e ilegais, ou a ordens ilegais, que podem ser anuladas por uma autoridade superior.

    Cinge-se a necessidade de estudar outra doutrina, fato relevante para haver parmetro de comparao e melhor compreenso do complexo tema. O fenecimento da Igreja romana consumou-se no fim da Idade Mdia. Apesar da volta do papado a Roma, com Gregrio XI, em 1377, no se restabeleceu o prestgio da Santa S, ensejando a centralizao absoluta do poder das m onarquias medievais. Inaugurou o absolutismo monrquico, no sculo XV, o rei da Frana Luiz XI, anexando os feudos Coroa, subjugando a nobreza e colocando em prtica a violenta poltica unificadora sustentada por Riche- lieu e Mazarin, chegando o sistema ao apogeu com o rei Luiz XIV.

    Considerado o mais moderno e influente escritor renascentista, Nicolau Maquiavel, florentino nascido em 1469, foi secretrio da segunda chancelaria do Domnio Senhorial e do Ofcio dos Dez da Liberdade e da Paz at 1512. Escreveu a obra Discursos sobre Tito Lvio, glorificando a Repblica romana e extraindo da histria meios pelos quais as repblicas podem expandir-se e durar. Sua mais importante obra, O Prncipe, publicada em 1531, alguns anos aps a sua morte, Maquiavel a havia dedicado aos membros da Casa dos Medicis, na pessoa de Loureno de Medicis, que seria logo depois o papa Leo X. A famlia era detentora do Domnio Senhorial de Florena, prestigiada pelo papado e uma das mais poderosas oligarquias da Itlia. Por seu turno, apesar de ser considerada uma das mais influentes entre os Estados italianos, a Casa dos Medicis no envolve a Igreja na publicao da obra. Por meio do pronunciamento do arcebispo de Canturia, a Igreja a considera, desde o incio, uma obra escrita pela mo do diabo. Denunciado em 1557, post mortem, como impuro e celerado pelo papa Paulo VI e, em seguida, condenado pelo Concilio de Trento, Maquiavel teve seu nome incluso no ndex'H.

    Sem embargo, o contedo da obra de Maquiavel fundamentalmente representado, considerando-se o ponto de vista dos lderes medievais, pela falta de tica, pelo excessivo cinismo e pela desconsiderao de valores mo-

    44 No sentido eclesistico, representava o catlogo de livros ou publicaes, cuja leitura era proibida pelas autoridades catlicas, a quem se atribua o encargo de censura. SILVA, De Plcido e. Vocabulrio jurdico, p.426.

  • 26 Direito Constitucional - Teoria do Estado e da Constituio

    rais, itens norteadores e indispensveis ao exerccio de um governo eficiente. Assim, historicamente, as lies emanadas da obra do autor florentino, Ni- colau Maquiavel, tornaram-se referncia para os doutrinadores e historia

    dores de temas relativos a questes de Assim, historicamente, as lies emanadas Estado.da obra do autor florentino, Nicolau Interessa ao presente estudo a ci-Maquiavel, tornaram-se referncia para os tao de algum as passagens de suadoutrinadores e historiadores de temas obra que bem retratam o carter derelativos a questes de Estado. falsidade, dissim ulao e crueldade

    que deveriam orientar a ao do prncipe, ou governante, devendo este demonstrar uma aparncia de conduta virtuosa, valendo tudo, a fim de manter o seu Estado'111:

    O Prncipe deve ser ao m esm o tem po am ado e tem ido, m as, com o isso no

    sem pre possvel, m elhor que se faa tem ido.

    Se preciso ofender algum , que a ofensa seja de tal form a que no possibilite

    vingana.

    bom que se saiba que existem dois m odos de com bater: pela lei o u pela fora:

    o prim eiro p rprio dos hom ens; o segundo, das feras; m as com o sucede que o

    p rim eiro m uitas vezes no basta, convm recorrer ao segundo.

    Ao prncipe tudo permitido para atingir seu objetivo maior, que a manuteno do seu Estado, inclusive utilizar-se de meios como a hipocrisia, a infmia, a falsidade, a crueldade, a mentira e o cinismo. Sumariando, suas aes so norteadas para responder s circunstncias especficas de cada

    45 MALUF, Sahid. Teoria geral do Estado, p. 116. Outras passagens da obra de Maquiavel, dignas de nota: O cuidado maior de um Prncipe deve ser o da manuteno do seu Estado; os meios que ele utilizar para esse fim sero sempre justificados e tero o louvor de todos, porque o vulgo se deixa impressionar pelas aparncias e pelos efeitos - e o vulgo quem faz o mundo.Em geral melhor que o Prncipe se faa temido, isto porque, dos homens em geral, se pode dizer que so ingratos, volveis, falsos, tementes do perigo e ambiciosos de ganho. Enquanto se lhes fazem benefcios so todos fidelssimos: oferecem seu sangue, seu dinheiro, sua vida, seus filhos, contanto que a necessidade esteja longe, mas quando esta chega, ento se revoltam.O Prncipe que confia nas palavras dos homens sem procurar se garantir por outro lado est perdido; porque as amizades que se conseguem no por grandeza d alma, mas por dinheiro ou favores, so, embora merecidas, amizades falsas que no podem ser levadas em conta na hora da adversidade.Acima de tudo deve-se evitar despojar as pessoas dos seus bens, pois o homem esquece mais depressa a morte de seu pai do que a perda do seu dinheiro.Quando um Prncipe est frente do seu exrcito, com uma multido de soldados s suas ordens, ento absolutamente necessrio que ele no d a menor importncia pecha de cruel.

  • Sociedade, Estado e Direito 27

    momento, levando em conta a natureza humana, admitindo e justificando todos os meios utilizados no exerccio do poder. No obstante, relevante sublinhar que Maquiavel considerado, pelos mais conceituados autores46, o maior terico do absolutismo monrquico. Acrescente-se o fato de que, em razo de suas obras apresentarem os princpios doutrinrios do Estado moderno, ele contemporaneamente considerado o fundador da cincia poltica moderna. Destarte, conclui-se que os pressupostos polticos, sociais e legais orientadores dos Estados democrticos, de fato, em que pesem respeitveis opinies contrrias, baseiam-se mais na teoria homo homini lupus que nas filosofias jusnaturalistas e contratualistas de Locke e Rousseau. Ironicamente, os princpios propostos por Maquiavel, originalmente rejeitados pelo povo, refletem a realidade do Estado moderno, fato confirmado, por exemplo, em uma das preciosas lies de Padre Antnio Vieira, quando afirma que: os reinos, no os pesa a Justia na balana; mede-os na espada

    2.6 Estado absoluto monrquico

    Durante o Estado absoluto monrquico, o monarca governava de m aneira plena e o fazia em nome de Deus. Justificava-se o excessivo poder como fruto de teorias que isentavam o rei de qualquer responsabilidade. Com efeito, teorias como a do direito divino, omnis potestas a Deo (segundo o apstolo So Paulo), ou na Inglaterra the king can do no wrong, fundamentavam a irresponsabilidade do monarca baseadas na tese de que todo o poder emanava de Deus e em seu nome era na terra exercido.

    A clebre Reforma, liderada por Luthero e Calvino, representou o pice da corrente reacionria, no seio da prpria cristandade, configurando o apogeu do absolutismo, resultado da violenta reao dos monarcas contra a supremacia do papado, uma das principais caractersticas do Estado medieval. Na seara poltica, os monarcas radicalizaram concentrando todos os poderes em suas prprias mos. Conforme anteriormente verificado, a m onarquia absoluta fundamentava-se sobre teorias, sendo a mais conhecida a do direito divino, segundo a qual a autoridade do rei advinha diretamente de Deus; era considerada de natureza divina. Deflua dessa autoridade o exerccio do poder de imperium, ato exclusivo do rei, considerado pessoa sagrada, isenta de qualquer tipo de imposio pessoal.

    46 Ibid., p. l l 7.

  • 28 Direito Constitucional - Teoria do Estado e da Constituio

    Durante o sculo XVI, os maiores doutrinadores do absolutismo m onrquico foram o italiano Giovanni Botero e o francs Jean Bodin. O m em bro da ordem dos jesutas e assessor do arcebispo de Milo Giovanni Botero escreveu vrias obras sobre o tema, valendo destacar Raison d tat. Influenciadas por ensinamentos de maquiavelistas, todas as obras de Botero exerceram considervel peso sobre o pensamento poltico no incio do sculo XVI, e, apesar de seu cargo de assessor do arcebispo So Carlos Borromeu, Botero defendia a adoo de meios considerados heterodoxos no mbito da moral evanglica quando o assunto era combater os hereges. Pregava, inclusive, referindo-se ao tratamento a ser dispensado a estes, que o Prncipe deve conduzi-los verdadeira religio, seduzindo-os com favores, e dever em pregar meios violentos quando o favor no der resultado47. Consolidou-se, a partir da segunda metade do sculo XVI, a conjuno da exclusividade da propriedade ao seu dono com o poder de imperium, conferindo aos m onarcas o duplo conceito de senhoriagem, prprio do feudalismo, e de imperium no sentido mais amplo que lhe davam os antigos imperadores romanos. Leon Duguit magistralmente sintetiza mencionada coincidncia de poderes ao afirmar que a realeza que funda o Estado moderno associa as concepes latina e feudal da autoridade - imperium e senhoriagem.

    Luiz XIV, o Rei Sol, representou o smbolo do absolutismo monrquico, particularmente por sua clebre declarao LEtat cest m oi, nomeando-se,

    assim, como a prpria personificao Leon Duguit magistralmente sintetiza do Estado. Outros que lhe sucede-mencionada coincidncia de poderes ao ram, como Luiz XV e posteriormenteafirmar que "a realeza que funda o Estado Carlos I, em declaraes semelhantesmoderno associa as concepes latina e confirmavam o absolutismo. Sobre-feudal da autoridade - imperium tudo este ltimo, quando conduzidoe senhoriagem". ao patbulo pelas foras vitoriosas da

    revoluo de Cromwell, declarou: a liberdade do povo consiste nas leis que lhe assegurem a vida e bens prprios, nunca no direito de se governar por si mesmo. Este direito do so- berano.'18

    O antiabsolutismo encontra na figura do filsofo ingls John Locke seu maior e mais determinado defensor.

    Em sua obra Segundo Tratado de Governo Civil, Locke declara abertamente o direito de liberdade do povo, fonte nica do poder, materializada

    47 Ibid., p. 120.48 Ibid., p. 121.

  • Sociedade, Estado e Direito 29

    na limitao do poder do monarca pela soberania do povo. Baseada nos princpios liberais da teoria contratualista, a obra de Locke teve importncia histrica no apenas como cone da luta contra o absolutismo, mas tambm como referncia para a clssica diviso dos trs Poderes, propondo preliminarmente a distino entre o Legislativo e o Executivo. O antiabsolutismo encontra na figura do

    Corolrio da implantao do sis- filsofo ingls John Locke seu maior etema parlamentarista de governo na mais determinado defensor.Inglaterra, a obra de John Locke foi,ainda, a justificao doutrinria de uma das revolues liberais burguesas, a Revoluo Gloriosa de 1688. Como jusnaturalista, Locke confirma a an- terioridade e superioridade dos direitos naturais do homem em relao ao Estado. Na segunda parte de sua obra Ensaios sobre o Governo Civil, Locke desenvolve a teoria contratualista de Hobbes, emprestando propriedade o carter de direito natural, diante do qual o Estado deve restringir-se ao dever de reconhec-lo e proteg-lo e jamais pretender assumir sua paternidade.

    Em sua terceira e no menos importante obra intitulada Cartas sobre a Tolerncia, John Locke defende a laicizao total do Estado moderno, vale dizer, a escolha de uma religio deve ser totalmente livre, sem nenhum a interferncia do Estado. Sua doutrina liberalista foi mantida por inmeros juristas e filsofos dos sculos subseqentes, destacando-se os franceses Charles de Secondat, o Conde de Mon-tesquieu, e Jean-Jacques Rousseau. A doutrina liberalista de Locke, seguidaConsolidava-se, assim, a irresistvel por Montesquieu e Rousseau, consolidoue inexorvel trajetria que conduzi- a irresistvel trajetria que conduziriaria marcante Revoluo Francesa, histrica Revoluo Francesa,inaugurando uma nova e auspiciosa inaugurando, assim, uma nova eera da civilizao humana. auspiciosa era da civilizao humana.

    2.7 Estado liberal democrtico

    As historicamente conhecidas revolues liberais burguesas pavimentaram o advento do Estado liberal de direito, quando as teorias divinas abso- lutistas so substitudas pela teoria democrtica, esta alicerada na origem popular representada pela mxima: todo poder emana do povo, por ele exercido e a ele deve prestar contas. A essncia ideolgica das revolues liberais burguesas era exatamente restringir o excesso de poder atribudo ao m onarca, em virtude das teorias divinas absolutistas, segundo as quais este tudo

  • 30 Direito Constitucional - Teoria do Estado e da Constituio

    podia, desde deliberar sobre eventuais aumentos de impostos at decidir sobre a continuidade ou no de exerccio do sagrado direito prpria vida de seus sditos.

    No lugar do rei, coloca-se a lei, fortalece-se a resistncia s ilegalidades fazendo emergir aes enrgicas, de eficcia imediata, conhecidas como remdios constitucionais. Entre eles, destacam-se o habeas corpus, o habeas data, o mandado de segurana, a ao direta de inconstitucionalidade, entre outros.

    A primeira revoluo liberal burguesa, conhecida como Revoluo Gloriosa49, ocorreu na Inglaterra em dezembro de 1688, quando o rei Jaime I, da

    dinastia dos Stuarts, por razes pol- A essncia ideolgica das revolues ticas e religiosas, para no ser presoliberais burguesas era exatamente ou sofrer leses corporais, fugiu pararestringir o excesso de poder atribudo ao a Frana. O resultado principal de talmonarca, em virtude das teorias divinas ocorrncia foi a assinatura, em feve-absolutistas. reiro de 1689, pelo povo, pelos bur

    gueses e pelo baixo parlamento, de um pacto chamado Bill o f Rights, cuja conseqncia mais importante foi a pavimentao da efetiva implantao do sistema de governo parlamentarista na Inglaterra. Tal sistema delegou ao Parlamento a misso de elaborar as leis, transformando-o no Poder Legislativo. Restou ao monarca a tarefa de mero executor das leis, representando o Poder Executivo.

    Questionrio 2

    1. Comente as principais teorias sobre o surgimento do Estado.2. Quais eram as principais caractersticas do Estado romano?3. Qual o significado da afirmao de Friedrich Engels "inventou-se o Estado"?4. Qual foi a importncia da relao entre a Igreja e o Estado medieval para o

    advento do Estado moderno?5. H diferena entre Estado e nao?6. Defina Estado moderno.7. Quais so os elementos bsicos do Estado moderno?8. Explique a importncia da soberania para a existncia do Estado.

    4* Atribuiu-se o termo Revoluo Gloriosa, segundo renomados historiadores, em razo de no ter havido derramamento de sangue.

  • Sociedade, Estado e Direito 31

    3. Direito

    A conscincia ju rd ica do m u n d o assem elha-se a um a rvore ciclpica

    e m ilenria, de cujos galhos nodosos rebentam os densos ram os e, deles, a

    florao dos direitos. Q u an d o em vez, as flores legais em urchecem sob o im

    placvel calor do tem po e a ventania evolucionista e revolucionria, o riunda

    das carncias sociais, agita as ram agens e as faz ro lar para o solo poroso, onde

    so transform adas em adubo e absorvidas pelas razes poderosas e insaciveis.

    E, sem elhante quela rvore retorcida e m edonha, onde os sacerdotes d ru i-

    das d ep en d u ra ram (consagrada s divindades) a espada de lm ina azulada,

    m archetada de o u ro , de Jlio Csar, perdida na batalha de Georgvia, nas

    Glias (M irko Jelusich. Caesar. T raduo de M arina Barros. Ed. G lobo. Porto

    Alegre, 1941), essa rvore desafia o q ue im or e o frio das estaes, pois o seu

    cerne tem tal tessitura lenhosa que faz lem brar fios retorcidos de cobre novo.

    As geraes inquietas, sob a sua som bra espessa, foram passando, num a tro

    pelam ento irresistvel e fatal, e delas resta apenas um a descolorida poeira de

    tijolos cuneiform es e uns am arro tados pergam inhos e papiros, am arelados

    pelo bolor dos esconderijos e dos escaninhos. Cada florao, ao seu tem po,

    pareceu a m elhor coisa que poderia ser ou to rgada a um escravo, bestializado

    pelos sofrim entos fsicos e pelas to rtu ras espirituais im postas pelos dogm as das

    religies brbaras. Insp irados, em sua m aioria, pelos deuses, aos dspotas o n is

    cientes e p o r eles m andados insculpir em d ioritos, tal o Cdigo de H am urabi,

    ou gravar apressadam ente em om oplatas de carneiro, tal as prim eiras achegas

    do Alcoro, esses d ireitos odo raram as suas pocas e foram , a um tem po,

    herm ticos e eqitativos. E as legislaes que os foram substitu indo m uitas

    vezes retrocederam , m uitas vezes seguiram cam inho enviesado, m uitas vezes

    derivaram p o r um a Via pia cujos tm ulos m arcassem os seus sublim ados

    precursores e os seus processos elaboratrios. N aturalm ente que p o r falta de

    vibrao, a lei se oxida, em perra e se gasta sua finalidade, a exem plo dessas m a

    quinarias que se decom pem lentam ente, sob a lepra espessa da ferrugem nos

    oites das fbricas e das usinas. O u tras m aqu inarias m ais rendosas lhes to m a

    ram o lugar e elas se to rn aram esquecidas e ignoradas. E, num a sobrevivncia

    p u ram en te terica, essas leis tm p o r vezes lam pejos de citaes eruditas. Mas

    esses lam pejos am ortecidos so de velhas jias que j no servem para a leveza

    da in d u m en tria m oderna. C onservam -se bibliograficam ente no escrnio de

    suas teim osas encadernaes encouradas, cujas lom badas a inda exibem , n u m

    triste fim de luxo, as letras de ou ro dos ttu los m aculados. Ren Fulop M iller

    teria um rem ate adm irvel ao seu livro dedicado aos condutores de povos,

  • 32 Direito Constitucional - Teoria do Estado e da Constituio

    sonhadores e rebeldes se tivesse feito o elogio da frase de N ietzsche sobre a

    necessidade num sentido m ais social do que poltico (Ren Fulop Miler. Os

    Grandes Sonhos da H um anidade. T raduo de Ren Ledoux e M rio Q uin tana.

    Ed. Globo. Porto Alegre, 1937). Em verdade, a necessidade o fato social que

    m odifica os sistem as de vida e a econom ia dos povos, atravs da renovao

    dos direitos. D urkheim ro tu lou escrupulosam ente o fato social com o coisa.

    Os direitos sem pre foram espelhos das pocas. O Tigre e o Eufrates refletiram

    m enos o povo m esopotm ico do que o baixo-relevo descoberto p o r M organ,

    represen tando Sham ash, o deus da justia, en tregando ao rei faustoso o cdigo

    cuneiform e. E o Tibre, com suas guas tin tas do sangue rom ano, desde Rm ulo,

    m uito m enos re tra tou o povo das sete colinas do que a Lei das XII Tbuas.

    Insp irados nas necessidades de cada tem po, eles n o foram benignos nem

    draconianos: foram o esprito atio de Slon e a alm a acanhada de D racon,

    trad u zind o os m erecim entos de suas pocas. Desta form a, a fora acessual dos

    direitos nunca procedeu do individualism o, pois o hom em sem pre foi um fio

    do tecido social, ou um a lasca da linha de cum eeira das civilizaes. O s artfi

    ces dos direitos dos povos no fizeram o u tra coisa seno olhar argu tam ente a

    sua sociedade e p in t-la . Os re tra tos ju rd icos apenas revelam os seus estilos,

    porm as fisionom ias estam padas nos pergam inhos, nos tijolos, nas pedras e

    nas tbuas eram as m esm as do seu am bien te .50

    Onde houver sociedade, organizada ou no, h o direito, ubi societas ibi ius. Essa a mxima que prevalece desde tempos imemoriais. Vale dizer, a partir do mom ento em que duas ou mais pessoas compartilham um espao comum, a nasce a necessidade de regulamentar os direitos e as obrigaes de cada um com relao aos outros. Regulamentao desnecessria imaginando-se uma ilha onde vive apenas um ser humano.

    A cincia, em geral, busca o conhecimento do novo, do desconhecido, a fim de transform-lo. Uma cincia em particular persegue a especializao de um conhecimento de forma sistemtica e progressiva, gerando o aprim oram ento da tcnica, que por sua vez assume mltiplas funes e objetivos, dentre eles, a criao das profisses tcnicas. Contem poranea- mente, as pessoas procuram por especialistas, como criminalistas, civilis- tas, ambientalistas e no mais simplesmente por qualquer advogado. As cincias sociais tm por principal objetivo o estudo da sociedade hum ana, cujo axioma o fato de o hom em viver naturalmente em sociedade. A

    50 ALTAVILA, Jayme de. Origem dos direitos dos povos, p .9 -10.

  • Sociedade, Estado e Direito 33

    cincia do direito, inserida no mbito das cincias humanas, que por sua vez se encontram na esfera das cincias sociais, tem como objetivo p rin cipal o estudo das relaes sociais que envolvem a manifestao hum ana do poder.

    O Imprio Romano, que durou mais de vinte sculos, de 753 a.C. at 1453 d.C., com a queda de Constan- tinopla, reconhecidamente a nao que transformou o direito, historicamente herdado da cultura grega, em instrumento do governo.

    0 Imprio Romano, que durou mais de vinte sculos, de 753 a.C. at 1453

    d.C., reconhecidamente a nao que transformou o direito, historicamente

    herdado da cultura grega, em instrumentodo governo.

    Os cidados dos pases conquistados pelos romanos gozavam de certa segurana, pois adquiriam naturalmente a cidadania romana e passavam a ser protegidos por Roma. pblico o episdio no qual Saulo declarou ter o direito de ser julgado pelas leis romanas, em virtude de ser cidado romano, diante do que passou a gozar prontamente do respeito do centurio51.

    3.1 Conceito de direito

    O termo direito lato sensu pode assumir vrios significados. Um deles o da norma