Anotações a Vertigem Das Listas

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A vertigem das listas ( Umberto Eco) Retórica da enumeração Desde a Antiguidade, a retórica sempre apreciou as listas. Nessas listas, mais do que mencionar quantidades, priorizava-se atribuir propriedades às coisas, redundante e reiteradamente. A enumeratio é uma forma de acumulação que aparece com constância na literatura medieval, mesmo quando os termos listados não parecem coerentes entre si. Outra forma de acumulação é a congérie, sequência de palavras ou frases que significam a mesma coisa, onde se reproduz o mesmo pensamento sob diversos aspectos. Não há definição interessante na retórica tradicional daquela que nos parece ser a gula da lista, a sua vertigem, em especial da lista longa de coisas diversas (embora um único universo de discurso, como a bebida ou o dinheiro, as torne homogêneas). Coleções e tesouros O catálogo de um museu representa um exemplo de lista prática, que se refere aos objetos existentes em determinado lugar e, enquanto tal, é necessariamente finita. Uma coletânea, entretanto, é sempre aberta e sempre poderia se enriquecer de alguns novos elementos. Essa possibilidade, porém, pode torná-la incongruente. Paul Valéry, em 1923, manifestava sua irritação em relação ao museu: “Vejo-me num tumulto de criaturas congeladas, cada uma delas exigindo, sem conseguir, a inexistência de todas as outras [...] Diante de mim, desenvolve-se no silêncio uma estranha desordem organizada. [...] Esta vizinhança de maravilhas independentes e inimigas, e tanto mais inimigas quanto mais se parecem, é paradoxal [...] O homem moderno, extenuado pela enormidade de seus técnicos, é empobrecido pelo próprio excesso de suas riquezas [...] Um capital excessivo e, portanto, inutilizável.” Hoje, as objeções apontadas por Valéry perderam a validade: o museu tornou- se claro, solar, amigável, acolhedor, alegre e quase sempre a distribuição das salas é tal que favorece a relação entre a obra e seu contexto. O “capital excessivo” de que fala Valéry ainda está presente nos museus, já que estes são feitos de coleções particulares, e a coleção particular tem uma característica voraz, pois “nasce de uma rapina”. Nasce com esta rapina a acumulação de objetos insignes, o orgulho de incrementar o acúmulo.

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A vertigem das listas

( Umberto Eco)

Retórica da enumeração

Desde a Antiguidade, a retórica sempre apreciou as listas.

Nessas listas, mais do que mencionar quantidades, priorizava-se atribuir

propriedades às coisas, redundante e reiteradamente.

A enumeratio é uma forma de acumulação que aparece com constância na

literatura medieval, mesmo quando os termos listados não parecem coerentes

entre si.

Outra forma de acumulação é a congérie, sequência de palavras ou frases que

significam a mesma coisa, onde se reproduz o mesmo pensamento sob

diversos aspectos.

Não há definição interessante na retórica tradicional daquela que nos parece

ser a gula da lista, a sua vertigem, em especial da lista longa de coisas diversas

(embora um único universo de discurso, como a bebida ou o dinheiro, as torne

homogêneas).

Coleções e tesouros

O catálogo de um museu representa um exemplo de lista prática, que se refere

aos objetos existentes em determinado lugar e, enquanto tal, é

necessariamente finita.

Uma coletânea, entretanto, é sempre aberta e sempre poderia se enriquecer

de alguns novos elementos. Essa possibilidade, porém, pode torná-la

incongruente.

Paul Valéry, em 1923, manifestava sua irritação em relação ao museu:

“Vejo-me num tumulto de criaturas congeladas, cada uma delas exigindo, sem conseguir, a inexistência de todas as outras [...] Diante de mim, desenvolve-se no silêncio uma estranha desordem organizada. [...] Esta vizinhança de maravilhas independentes e inimigas, e tanto mais inimigas quanto mais se parecem, é paradoxal [...] O homem moderno, extenuado pela enormidade de seus técnicos, é empobrecido pelo próprio excesso de suas riquezas [...] Um capital excessivo e, portanto, inutilizável.”

Hoje, as objeções apontadas por Valéry perderam a validade: o museu tornou-

se claro, solar, amigável, acolhedor, alegre e quase sempre a distribuição das

salas é tal que favorece a relação entre a obra e seu contexto.

O “capital excessivo” de que fala Valéry ainda está presente nos museus, já

que estes são feitos de coleções particulares, e a coleção particular tem uma

característica voraz, pois “nasce de uma rapina”.

Nasce com esta rapina a acumulação de objetos insignes, o orgulho de

incrementar o acúmulo.