ANO XXI - Julho 2014 - nº84

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ANO XXI - Julho 2014 - nº84

CAPAImagem estilizada do quadro “A Sinagoga”, óleo sobre tela, Marc Chagall, 1917

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Tishá b´Av, o nono dia do mês hebraico de Menachem Av, é o dia mais triste do calendário judaico – a data em que foram destruídos ambos os Templos de Jerusalém. Desde a queda do Segundo Templo, vários eventos trágicos – tanto para o Povo Judeu como para o restante da humanidade – ocorreram nessa data.

O nono dia de Av e as Três Semanas de Luto que o precedem são dias de autorreflexão, em que devemos fazer um exame de consciência, tanto individual como coletivo.

Contudo, o judaísmo não vê com bons olhos a tristeza. Diz um ensinamento judaico que tudo que ocorre na vida é para o bem e que devemos nos esforçar para enxergar a luz. Mesmo em meio à escuridão. Qual, então, o aspecto positivo da data mais triste do ano judaico?

Tishá b’Av é também uma data que simboliza a eternidade judaica. É a própria evidência de que, apesar de todas as adversidades e tragédias que vivenciou, o Povo Judeu não apenas sobreviveu, mas floresceu. Qualquer pessoa que tivesse presenciado a queda do Segundo Templo de Jerusalém, o poderio romano e a destruição da pátria judaica, poderia apostar que o poderoso Império Romano duraria para sempre e que o Povo de Israel logo desapareceria da Terra. Ocorreu o inverso. O Império Romano desapareceu, tendo sido relegado aos livros de História. Já o Povo de Israel, apesar do exílio, das perseguições, dos massacres, da assimilação e do genocídio, permanece uma nação forte e vibrante. Um povo que foi expulso de sua pátria há dois milênios, a ela retornou, construiu um estado moderno e, em 66 anos, tornou-se um oásis de democracia, tecnologia e progresso no Oriente Médio.

Mark Twain,um dos grandes escritores norte-americanos, escreveu o seguinte a respeito dos judeus: “Se as estatísticas estão corretas, os judeus constituem apenas um por cento da raça humana (...). Adequadamente, jamais se ouviria falar dos judeus; porém se fala, e sempre se ouviu falar deles (...). Suas contribuições aos grandes nomes do mundo na literatura, ciência, arte, música,

Carta ao leitor

finanças, medicina também estão fora de proporção com seu pequeno número. Têm feito uma luta maravilhosa no mundo, em todas as épocas; e o têm feito com as mãos atadas nas costas (...)”.

As palavras de Mark Twain reverberaram ao longo dos séculos. O que ele escreveu a respeito do Povo Judeu vale especialmente para a geração que sobreviveu ao Holocausto, reconstituiu um Estado Judeu na Terra de Israel e fez com que o judaísmo voltasse a florescer.

“Somos a geração de Jó e de Jerusalém”, escreveu Elie Wiesel. De fato, a geração do Holocausto sofreu mais do que qualquer outra. Mas foi ela que liderou o retorno a Israel e Jerusalém e reconstituiu um Estado Judeu na Terra de Israel.

Tishá b’Av é o dia de Jó e de Jerusalém. Por um lado, é a data mais difícil do calendário judaico. Por outro, celebra a imortalidade do Povo Judeu. No nono dia de Av, jejuamos, lamentamos e nos enlutamos – tanto pela destruição da Casa de D’us como pelo exílio e sofrimento de nosso povo. Mas Tishá b’Av contém uma centelha sutil, mas muito poderosa: a constatação de que sobrevivemos aos assírios, aos babilônios, aos romanos, aos inquisidores, aos nazistas e a todos aqueles que lutaram, em vão, contra a eternidade dos Filhos de Israel.

Há uma tradição que ensina que Tishá b’Av, o dia em que caíram os dois Templos, será a data na qual o Terceiro Templo será erguido. A partir de então, o nono dia de Av deixará de ser o dia mais triste do calendário judaico e passará a ser o mais feliz.

Esperamos que essa era de paz se inicie em breve, para o Povo de Israel e para a humanidade toda.

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primeiro comentário de Rashi sobre a Torá merece a devida atenção.“No princípio, D’us criou os céus e a terra...” (Genesis, 1:1). “No princípio”: Declarou Rabi Yitzhak: a Torá não deveria ter começado por nenhum outro verso a

não ser: “Que este mês (Nissan) seja para vós o primeiro dos meses do ano” (Êxodo, 12:2), que é a primeira mitzvá que o Povo Judeu recebeu como mandamento. Qual a razão, então, para a Torá iniciar o relato da Criação com Bereshit? Porque – “Ele revelou a Seu povo o poder de Seus feitos, para lhe conceder a herança das nações (Salmos, 111:6). Pois caso os povos do mundo dissessem a Israel, “Vocês são ladrões, pois tomaram pela força as terras de sete nações (de Canaã)”, Israel poderia responder-lhes: “A terra toda pertence ao Santo, Bendito é Seu Nome. Ele a criou – e a deu àquele que a Seus olhos Lhe pareceu apropriado. E Ele a deu a eles (as nações de Canaã) por uma expressão de Sua vontade; e Ele a retirou deles e a deu a nós por uma expressão de Sua vontade”. Rashi

Rashi é o “pai de todos os comentaristas” e Genesis é o primeiro dos cinco livros da Torá – a única obra de autoria Divina conferida ao ser humano, transmitida por D’us a Moshé no Monte Sinai. O fato de Rashi iniciar seu comentário sobre a Torá da forma como o faz é altamente significativo, pois ressalta a inestimável

importância da Terra de Israel – para o Criador do Universo, para a Torá – que é a Sua Vontade e Sabedoria – e para o Povo Judeu.

O que é intrigante sobre esse primeiro comentário é o seu timing. Rashi viveu há quase mil anos: um milênio após a destruição do Segundo Templo Sagrado de Jerusalém e o subsequente exílio do Povo Judeu da Terra de Israel, e quase um milênio antes da criação do moderno Estado de Israel. Quando Rashi escreveu seu comentário, os judeus já viviam no exílio há mil anos e não podiam retornar à sua pátria legítima. Naquele então, o assim-chamado Novo Mundo nem sequer havia sido “descoberto”. Seu primeiro comentário, portanto, é um anacronismo – um assunto que deixou de ser relevante mil anos antes de sua vida – ou profético – uma questão que seria extremamente relevante quase um milênio após seu falecimento. Como Rashi viveu uma vida sobrenatural e sua obra foi guiada pela Divina Providência, podemos seguramente pressupor que suas palavras foram proféticas. De fato, seu primeiro comentário sobre a Torá é hoje mais relevante do que nunca.

Posse da Terra

Um judeu que crê na Torá e um cristão que acredita na Bíblia Cristã não necessitam de convencimento de que a Terra de Israel é a pátria do Povo Judeu. Se há um tema

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A Terra de Israel: Pátria Eterna do Povo Judeu

“O Eterno D’us disse a Avram: ‘De onde você se encontra, olhe

para o norte e para o sul, para o leste e para o oeste. Eu darei

a você e aos descendentes, para sempre, toda a terra que você

está vendo... Agora vá e ande por esta terra, de norte a sul e

de leste a oeste, pois Eu a darei a você’” (Genesis 13:14-17).

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que ecoa ao longo de todo o Tanach – a Torá, os Nevi’im (os Profetas) e os Ketuvim (os Escritos), é o fato de que a Terra de Israel é o presente eterno de D’us ao Povo Judeu. Na Torá, vemos que D’us repetidamente reafirma essa promessa a nossos Patriarcas e a Moshé, e lemos sobre o Êxodo do Povo Judeu do Egito e sua jornada através do deserto a caminho da Terra Prometida. Os Nevi’im relatam como o Povo Judeu conquistou a Terra e lá estabeleceu um país. Os Livros de Josué e dos Juízes detalham as guerras travadas e vencidas. O Livro de Samuel relata que o Rei David fundou e deu o nome à cidade de Jerusalém, que estabeleceu como a capital de Israel, e onde reinou por 33 anos. O Livro dos Reis narra que o Rei Salomão, filho do Rei David, construiu o Templo Sagrado de Jerusalém, e que a Terra de Israel foi dividida em dois reinos – o Reino de Israel (Malchut Israel) e o Reino da Judeia (Malchut Yehudá).

Historicamente é indiscutível que houve um Estado Judeu na Terra de Israel durante mais de mil anos e que a cidade de Jerusalém foi fundada e nomeada pelo maior dos reis judeus, David. Outrossim, é inegável que a Terra de Israel é um dos pilares do Judaísmo. É verdade que continuamos judeus mesmo tendo vivido no exílio por dois milênios, mas muitos dos mandamentos da Torá não podem ser cumpridos se a Terra de Israel não estiver sob soberania judaica. Por essa razão, nos últimos dois mil anos, os judeus, em todo o mundo, oram, no mínimo,

três vezes ao dia, para que D’us nos tire do exílio e nos leve de volta à Terra de Israel. Ao término de cada evento judaico significativo, como Yom Kipur e o Seder de Pessach, proclamamos: “No ano próximo em Jerusalém” – Bashaná haba’á b’Yerushalaim”, para nos recordar que a vida judaica e o cumprimento de seus preceitos não estão completos se estivermos fora de Eretz Israel e se o Templo continuar em ruínas. Durante dois mil anos, nem um dia sequer transcorreu em que o Povo Judeu se tivesse esquecido da Terra de Israel ou tivesse renegado seu direito à mesma.

A alegação de que o Povo Judeu retornou a Eretz Israel em virtude do Holocausto ou que o Movimento Sionista influenciou os judeus a retornarem à sua Pátria ancestral, portanto, é um absurdo. Durante dois mil anos, dia após dia, temos ansiado pelo retorno à nossa Terra e orado a D’us para permitir que tal acontecimento ocorra. Fomos exilados de nossa Terra não por opção, mas porque foi conquistada por nações estrangeiras, que exterminaram milhões de judeus e escravizaram e exilaram a grande maioria dos sobreviventes. Através dos séculos, muitos judeus tentaram retornar à sua Pátria, mas foram impedidos pelas nações que a ocupavam. É importante observar que todo judeu que crê na Torá não duvida que a Terra de Israel seja nossa herança eterna. A diferença entre os judeus que apoiam o Estado de Israel e aqueles que

Campo de flores no deserto do Negev

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não o fazem não é que os judeus antissionistas negam nosso direito à Terra de Israel, mas apenas acreditam que um Estado Judeu somente deveria ser estabelecido após a vinda do Mashiach. Mas, nenhum judeu que acredite na Torá pode negar que Eretz Israel é a herança eterna do Povo Judeu.

A presença judaica na Terra de Israel também é um dos pilares do Cristianismo, pois Jesus foi um judeu que vivia na Judeia, assim como os demais fundadores do Cristianismo. Não surpreende, portanto, o fato de milhões de cristãos de todo o mundo – não apenas os evangélicos, mas também os católicos – serem ardorosos defensores do Estado de Israel.

O Cristianismo se originou na Terra de Israel e seus seguidores creem que um dos pré-requisitos da Redenção Messiânica seja o retorno do Povo Judeu à Terra de Israel.Como veremos abaixo, o comentário de Rashi não se dirige a judeus e a cristãos que acreditam na Bíblia – estes não necessitam de serem convencidos – mas àqueles que questionam o direito dos judeus à Terra de Israel. Rashi ensinou aos judeus e aos nossos aliados cristãos a responder àqueles que desejavam – e que D’us não o permita – apagar a presença judaica da Terra de Israel.

Para se entender o comentário de Rashi e sua profunda relevância para os nossos dias, precisamos definir adequadamente certos conceitos históricos e geopolíticos.

O “Testamento de Adão e Eva” e a posse da terra

A quem pertence o mundo? A D’us ou aos homens? Quem estipula os limites territoriais dos países? Será a Organização das Nações Unidas – um organismo fundado apenas em 1945, cujo Conselho de Segurança é controlado pelas potências mundiais e cuja Assembleia Geral é composta praticamente por países que não são democráticos e que não respeitam os direitos humanos? Questões de posse territorial são muito complexas e controversas porque o mundo não foi criado com linhas divisórias. A humanidade nunca chegou a um acordo sobre como dividir o mundo.

Um incidente histórico envolvendo o Brasil serve de excelente exemplo de quão complexos os direitos territoriais podem ser. Nos idos de 1500, quando Espanha e Portugal “descobriram” o Novo Mundo, dividiram-no por meio do Tratado de Tordesilhas. Mas, já por volta de 1504, os franceses marcavam sua presença no litoral da América Portuguesa, por duas razões: eles, também, estavam interessados no pau-brasil, mas, o mais importante, eles desejavam desafiar a política de Mare Clausum (“Mar Fechado”) acertada entre Portugal e Espanha pelo Tratado de Tordesilhas. O rei da França, Francisco I, insistia no “direito de navegar no mar de todos”. Os portugueses sentiram que suas possessões territoriais recém-adquiridas estavam sendo ameaçadas pelos franceses. O rei de Portugal, D. João III, queixou-se à sua contraparte francesa, que lhe replicou: “Gostaria muito de ver o testamento de Adão e Eva dividindo as terras do Novo Mundo entre Portugal e Espanha”. Com tal declaração, o rei francês expressava seu não reconhecimento do Tratado de Tordesilhas. Afinal, quem ou o que determinara que esses territórios pertenciam à Espanha e Portugal? Por que teriam esses dois países mais direito ao Novo Mundo do que as demais nações europeias? A Coroa portuguesa, percebendo que corria risco de perder a posse dos recém-descobertos territórios para outras nações, decidiu ocupar o Brasil. Percebeu que se não ocupasse o país e o desenvolvesse, os franceses certamente o fariam.

Esse episódio histórico é extremamente revelador. A monarquia francesa estava certa: em nenhum lugar no “Testamento de Adão e Eva” (o Livro de Genesis, que narra a Criação Divina do mundo) consta que o Novo Mundo pertencia aos espanhóis e portugueses. Ademais, que autoridade estabeleceu e legitimou o rio jordão

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milhares de anos, mas nunca construíram um país. Nunca houve governo central nem jurisdição central. Os ingleses não invadiram um país e o dominaram: não havia país constituído. Ademais, pode-se argumentar que o território foi adquirido pela guerra e não por roubo, pois as tribos nativas do Novo Mundo haviam conquistado os territórios de outras tribos. Os ingleses fizeram com as tribos indígenas o que estas faziam umas com as outras. Pode-se, então, argumentar que conquista e ocupação de território são formas legítimas de uma nação adquirir um território. Pertenceriam, então, os Estados Unidos à Grã-Bretanha, que lutou com muita garra para conquistar e ocupar o território e estabelecer as bases do país?

Evidentemente, a maioria dos americanos não acreditam que estejam vivendo em território roubado e que devam abandonar o país e devolvê-lo aos descendentes das populações nativas daquela terra. E, apesar de o país ter começado como colônia inglesa, os americanos achariam ridícula a ideia de que seu país pertence à Inglaterra. Afinal, os americanos deram tudo de si para construir uma nação. Declararam a independência da Grã-Bretanha e lutaram uma guerra longa e difícil para obter sua liberdade. Cultivaram a terra e construíram suas instituições. Redigiram uma Constituição e criaram um código de leis e sistema jurídico. Construíram fazendas e fábricas, estradas e serviços públicos, casas e edifícios, escolas e hospitais. Adotaram uma bandeira e compuseram um hino, criaram uma moeda nacional, ergueram um sistema de governo e foram atrás, com sucesso, do reconhecimento de outros países.

Tratado de Tordesilhas? Portugal alegava que as terras recém-descobertas lhe pertenciam, mas se não se tivesse apressado em habitá-las e as desenvolver em um país, arriscava perdê-las aos franceses.

A propriedade territorial talvez seja uma das questões geopolíticas mais complexas porque são inúmeros os critérios que podem ser utilizados para determinar quais territórios pertencem a que países. Com efeito, qual deveria ser o principal critério para decidir a quem pertence uma terra? A seus habitantes originais, àqueles que a habitam por mais tempo, àqueles que lutaram e a conquistaram ou àqueles que a desenvolveram?

Falemos dos Estados Unidos, como exemplo. Antes da chegada dos europeus ao que hoje é o território americano, milhões de pessoas, a “população nativa”, habitava aquela terra. Os europeus exterminaram quase todos – milhões de pessoas – ativa ou passivamente. Os poucos que sobreviveram foram expulsos de sua terra e submetidos às leis do novo país estabelecido onde eles e seus ancestrais viviam há milhares de anos. Será que esse fato histórico indiscutível significa que os Estados Unidos pertencem à população nativa daquela terra? Serão os Estados Unidos um país ocupado? Será o governo americano ilegítimo? Se a população nativa dos Estados Unidos exigisse suas terras de volta, teria direito a recebê-las?

Pode-se argumentar, contudo, que os habitantes nativos da América do Norte viviam no território, mas não eram seus legítimos proprietários. Eles lá habitavam há

mapa desenhado por abraham bar yaaqov para uma hagadá, impressa em amsterdã entre 1695 e 1696, foi um dos primeiros exclusivamente em hebraico. a rota do êxodo e a subdivisão das tribos de israel são claramente indicadas

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A população nativa pode ter habitado nesse território antes dos americanos, e os ingleses podem ter estabelecido as bases do país, mas os cidadãos dos Estados Unidos da América construíram um país praticamente do zero. A maioria das pessoas concorda, pois, que o país é legítimo e pertence ao povo americano. Os direitos religiosos e históricos do Povo Judeu à Terra de Israel

À luz dos conceitos geopolíticos acima discutidos, podemos começar a apreciar o primeiro comentário de Rashi sobre a Torá.

Acerca do Tratado de Tordesilhas, o monarca francês estava certo em sua resposta ao rei de Portugal: em nenhum lugar no Livro de Genesis – o “Testamento de Adão e Eva” – consta que o Novo Mundo pertencia exclusivamente à Espanha e Portugal. Não encontramos no Livro de Genesis ou em nenhum outro livro da Torá ou da Bíblia Cristã que os Estados Unidos pertencem à população nativa do território, aos ingleses ou aos americanos. Em nenhum lugar está escrito que a Crimeia pertence à Rússia ou à Ucrânia. Isso se aplica a todos os países. Há apenas uma exceção – Israel.

O “Testamento de Adão e Eva” bem como o restante do Tanach e da Bíblia Cristã afirmam explícita e inequivocamente que a Terra de Israel pertence ao Povo Judeu, tendo-lhe sido legada como herança por

Aquele que criou e detém todo o Universo. Essa verdade foi eloquentemente expressa pelo Arcebispo de Viena, Cardeal Christoph Schönborn, em 2005: “Uma única vez na história humana D’us escolheu um país como legado e o ofertou a Seu povo escolhido”. O Cardeal declarou também que a obrigação que recaía sobre os judeus de viverem na Terra de Israel continuava válida até os dias de hoje. O primeiro comentário de Rashi sobre a Torá é dirigido a todos que alegam crer na Bíblia, mas que, no entanto, questionam o direito do Povo Judeu à Terra de Israel. Por meio de seu comentário, Rashi lhes diz: se vocês creem em D’us e na Torá (ou na Bíblia Cristã), devem concordar que a Terra de Israel é a herança eterna do Povo Judeu. Pois o Livro de Genesis nos diz que D’us criou os Céus e a Terra – e, portanto, toda a terra Lhe pertence, não ao homem –, e como detentor de todo o mundo, Ele tem o direito de dá-la a quem quiser. A Terra de Israel pertence ao Povo Judeu porque seu Verdadeiro Proprietário a deu como legado a esse povo.

Esse comentário de Rashi é a resposta que o rei português não pôde dar ao rei francês acerca do Brasil, mas que os judeus podem dar a seus antagonistas quando se trata de Israel: sim, está escrito no “Testamento de Adão e Eva” que a Terra de Israel pertence ao Povo Judeu.

Mas, e aqueles que não creem no Tanach ou na Bíblia Cristã ou não acreditam que política e religião deveriam se misturar? Nossa abordagem em relação a tais pessoas é perguntar-lhes: a quem pertence a terra? A seus habitantes originais, àqueles que a conquistaram por meio de guerras e ocupação, ou àqueles que nela ergueram um estado? Independentemente da resposta, a conclusão será que a Terra de Israel pertence ao Povo Judeu. Pois nós, judeus, somos os habitantes nativos dessa Terra. Por outro lado, nós a conquistamos – não uma vez apenas, mas duas. E nela construímos um país judaico por duas vezes – uma vez na época do Tanach, e, novamente, há 66 anos, com a criação do moderno Estado de Israel.

Os judeus são a população nativa da Terra de Israel. Havia milhões de judeus que viviam em um próspero reino judeu – de fato, dois reinos – Israel e Yehudá – milhares de anos antes do surgimento do Cristianismo e do Islamismo. Isso sem falar que quase todos os países que hoje constituem as Nações Unidas nem sequer existiam. Assim como as populações nativas da América, também nós fomos massacrados por invasores estrangeiros, que mataram milhões de judeus, escravizaram e exilaram a maioria dos sobreviventes

A Cidadela de David foi construída no período hasmoneu

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e destruíram nossas cidades e nosso Templo Sagrado. Durante milhares de anos, nós, judeus, sonhamos por nosso retorno ao nosso Lar. Nunca deixamos de ansiar pelo retorno à Terra de Israel e particularmente à Jerusalém. Através dos séculos, sempre que possível, os judeus retornaram à sua Pátria. Mas, ao se estabelecer uma analogia com a fundação dos Estados Unidos, os judeus podem ser comparados não apenas com as tribos nativas, mas com os colonizadores ingleses e com os cidadãos americanos. Como os ingleses, nós conquistamos o território – primeiro na época de Yehoshua ( Josué) e, novamente, nas guerras que o Estado de Israel moderno teve que lutar contra os países vizinhos que almejavam destruí-lo. Finalmente, como os americanos, expulsamos os colonizadores que ocupavam nossa terra (ironicamente em ambos os casos, os ingleses), declaramos a independência e construímos um belo país.

O Povo Judeu na Terra de Israel transformou o deserto em um pomar, construiu a única democracia do Oriente Médio e desenvolveu as mais bem treinadas forças armadas no mundo. O Estado do Povo Judeu desenvolveu um dos melhores sistemas educacionais do mundo, provê atendimento de saúde gratuito para todos os seus cidadãos, judeus ou não. O Estado de Israel também construiu uma economia sólida e estável e conquistou não apenas reconhecimento internacional, mas também a admiração de países em todo o mundo, que se voltam a Israel em busca de auxílio em questões tecnológicas, médicas, de defesa e na luta contra o terrorismo.

É fato que os judeus apenas se tornaram maioria na Terra de Israel após o Holocausto. Isso porque as potências que a ocupavam apenas permitiam que um número muito limitado de judeus fizesse aliá. Na verdade, se os ingleses não tivessem imposto o Livro Branco, milhões de judeus teriam ido a Eretz Israel e o Holocausto não teria custado a vida de quase sete milhões de judeus.

É um fato histórico e incontestável que havia um antigo país judeu na Terra de Israel. Mas o fato de que nós éramos os habitantes originais daquela terra e que fomos expulsos de nossa pátria foi ignorado pelo mundo por quase dois mil anos. Como nossas legítimas alegações e reivindicações foram ignoradas – e tiveram consequências catastróficas –, tivemos que retornar ao nosso Lar não apenas como seu povo nativo, mas também como guerreiros – prontos para resgatar nossa Pátria – e como os construtores de um novo estado. Os judeus retornaram

à Terra de Israel como uma nação preparada para fazer o que fosse necessário para erguer um país em um território onde nenhum estado fora estabelecido desde a queda do Reino de Yehudá. Após quase dois milênios, a terra do Povo Judeu se tornou novamente um país – um estado independente – e, Jerusalém, novamente a capital de um país.

A transformação espiritual da Terra

Os argumentos acima apresentados – religiosos, históricos e geopolíticos – são refutações claras a qualquer alegação de que o Povo Judeu não tem direito à Terra de Israel. O Estado de Israel é um dos poucos países no mundo cuja legitimidade não pode ser refutada. Contudo, nenhum outro país tem que lutar por seu direito à existência como Israel. Além de lutar contra países que querem destruí-lo fisicamente, Israel tem de justificar sua identidade judaica e seu direito à terra que é sua. Por que Israel, entre todos os países, é acusado de roubo – de se apossar de território que não lhe pertence? Por que essa acusação é levantada contra Israel – e não contra países da Europa, Ásia e todos os países que foram fundados nas Américas? O primeiro comentário de Rashi sobre a Torá nos dá essa resposta.

A proibição contra roubo é um dos sete mandamentos que se aplicam a todos os seres humanos – a todos os descendentes de Noé. Se a conquista territorial por meio da guerra é sinônimo de roubo, por que não encontramos em nenhum lugar na narrativa bíblica menção à punição Divina a uma nação por conquistar a terra (e seus habitantes) de outro povo? É claro que a conquista militar não está incluída na definição de roubo segundo a Torá (V. Shulchan Aruch HaRav, 649:10).

No entanto, a conquista da Terra Prometida pelos judeus e sua transferência de posse dos cananeus, nação que originalmente a habitava e que já não existe, para o Povo Judeu constituiu uma mudança muito mais profunda e de longo alcance do que qualquer outra transferência de terra por conquista. Quando o Povo Judeu conquistou a Terra que D’us lhes legara, modificou a própria essência da Terra. O potencial espiritual da Terra Prometida se tornou realidade – passando por uma transformação: tornou-se Eretz Israel, a Terra do Povo Judeu – para todo o sempre. Nunca mais essa terra poderia essencialmente pertencer a qualquer outro povo. Como está escrito no Livro de Levítico (26:32), “E eu assolarei a terra, e se espantarão disso os vossos inimigos que habitarem nela”, o que significa que nenhuma outra nação poderá

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viver nela de forma pacífica e bem sucedida. A terra não pode, em tempo e forma alguma, ser removida de seu relacionamento intrínseco com o Povo Judeu. Por essa razão, mesmo em nosso exílio, quando “estivemos exilados de nosso país, e afastados de nossa terra”, ainda nos referíamos a ela como “nosso país” e “nossa terra”.

Essa é a razão mais profunda, espiritual, para tantos países odiarem o Estado de Israel – para sermos acusados de nos termos apossado da Terra e para que as Nações Unidas condenem Israel mais do que a qualquer outro país. Os inimigos do Povo Judeu se ressentem de Israel pelo fato de alegarem que não tínhamos o direito de conquistar e transformar a essência da Terra Prometida, impedindo permanentemente as outras nações de dela se apossarem. Para os nossos antagonistas, essa transformação constitui um ato de roubo, de apropriação indébita.

Não precisamos nos intimidar com tais acusações. Rashi nos ensinou muito bem como responder a elas: “Toda a terra pertence ao Santo dos Santos, Bendito Seja; Ele a criou”. Em outras palavras, a Terra de Israel é a herança eterna do Povo Judeu porque D’us assim o decidiu. Se alguém não estiver satisfeito com essa situação, as reclamações devem ser dirigidas ao Criador, Dono dos Céus e da Terra. Muitas pessoas podem achar essa linha de argumentação absurda. Podem não acreditar ou se importar com o que dizem a Torá ou Rashi, e podem

achar que essa explicação espiritual é pouco convincente para tanto sentimento anti-israelense. Nossa resposta a tais céticos é que o fenômeno da transformação espiritual da Terra de Israel foi corroborado pela História: desde quando o Povo Judeu foi expulso da Terra de Israel até quando para lá retornou – quase dois mil anos depois – aquele território nunca se tornou um país independente. Foi conquistado muitas vezes pelas potências mundiais, mas nunca se tornou o país-sede de outra nação. A Terra de Israel somente foi um estado independente quando foi o país do Povo Judeu: durante templos Bíblicos, como detalha o Tanach, e desde o estabelecimento do Estado de Israel.

Quanto a Jerusalém, a cidade somente foi capital de dois países – do Israel antigo e do Israel moderno. Vemos o mundo proclamar, hoje, seu amor por Jerusalém – muitos querem internacionalizar a cidade – mas, estranhamente, nenhum país que a tenha conquistado a fez sua capital. Os líderes muçulmanos alegam que a cidade é sagrada para o Islã e, contudo, nem o Império Otomano nem a Jordânia a fizeram sua capital enquanto a cidade esteve em seu poder. Consideremos: Amã não tem significado para o Islã e, mesmo assim, quando a Jordânia conquistou a metade de Jerusalém na Guerra de 1948, não transferiu sua capital de Amã para Jerusalém. O mesmo se aplica a todos os seus demais conquistadores: o Vaticano organizou as Cruzadas para conquistar Jerusalém, mas nunca a fez

1. Vista aérea da Cidade de David e, ao norte, o Monte do Templo, Jerusalém 2. Nos restos de um jarro na Cidade de David uma inscrição: “Jerusalém”, 4º seculo a.E.C. 3. Moedas datadas da época da Grande Revolta encontradas em Silwan, em Jerusalém

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sua capital; preferiu permanecer em Roma, mesmo tendo o Cristianismo se originado na Terra de Israel.As palavras de Rashi foram, de fato, proféticas. Muitas nações podem negar nosso direito à Terra de Israel, mas como ela pertence a D’us – que a legou ao Povo Judeu como uma herança eterna – e como a essência da terra foi transformada em Eretz Israel, não há nada que algum ser humano possa fazer para mudar essa realidade. A Terra de Israel, em sua totalidade, pertence ao Povo Judeu, e Jerusalém é sua capital, eterna e indivisível. Durante dois mil anos, tanto a Terra Santa quanto a Cidade Santa aguardaram pelo retorno de seus filhos. O desabrochar do deserto e o crescimento de Jerusalém é uma indicação de que a Terra e sua capital estão exultantes com a volta de seus filhos ao lar.

Um ponto final e importante precisa ser esclarecido sobre a Terra de Israel: suas fronteiras foram demarcadas por Aquele que criou e detém o mundo todo. As fronteiras de todos os demais países estão sujeitas a discussão: podem ser conquistadas pela guerra, compradas ou renunciadas. As de Israel, não. Pela lei Bíblica, os limites de Eretz Israel não podem ser aumentados nem diminuídos. Explicando: como muitas leis da Torá se aplicam apenas à Terra de Israel, é imperativo que sejam estipuladas corretamente. Isso significa que se o Povo Judeu fosse conquistar territórios além das fronteiras da Terra de Israel, o território conquistado não seria parte da Terra

Santa. Por outro lado, se o Povo Judeu fosse abrir mão de partes da Terra de Israel, seria em vão: a terra não perderia sua santidade nem receberia seus novos habitantes. As decisões dos seres humanos – das Nações Unidas, da União Europeia, dos Estados Unidos – mesmo do Governo de Israel – não mudarão jamais essa realidade.

Aqueles que desejam desmembrar a Terra de Israel – expulsando os judeus de sua legítima Pátria – particularmente de Jerusalém e da Judeia e Samaria (Yehudá v’Shomron) – estão na contramão da História. Não terão êxito. Após dois mil anos de exílio, finalmente voltamos para casa, para nunca mais sermos exilados. Como o Primeiro Ministro Binyamin Netanyahu declarou perante as Nações Unidas: “Em nossos dias, as profecias Bíblicas estão-se realizando. Como disse o profeta Amós: ‘Eles reconstruirão cidades arruinadas e nelas habitarão. Eles plantarão vinhedos e beberão seu vinho. Eles cultivarão jardins e comerão seu fruto. E eu os fincarei sobre seu solo para jamais serem novamente expulsos’. Senhoras e senhores, o Povo de Israel voltou para casa para nunca mais ser expulso de lá”.

1. Vista aérea de Cesaréia 2. Vista aérea da cidade antiga de Cesaréia e do anfiteatro romano 3. Do Palácio de Herodes, no extremo norte de Massada, uma vista privilegiada do Mar Morto

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BIBLIOGRAFIA

The Lubavitcher Rebbe - Rabi Menachem Mendel Schneerson, Studies in Rashi: The Land of Israel (Genesis 1:1) - by , Kehot Publication Society

nossas festas

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omo tanto o primeiro quanto o segundo Templo Sagrado de Jerusalém tombaram em Tishá b’Av, esse dia

simboliza o exílio do Povo Judeu da Terra de Israel e todos os problemas e sofrimentos daí decorrentes. Milhões de judeus foram massacrados quando o antigo estado judeu desmoronou e outros milhões foram exterminados pouco antes do moderno Estado Judeu renascer. No meio tempo – quase 2.000 anos – o Povo Judeu continuamente sofreu horrores indescritíveis: discriminação e demonização, expulsão em massa e pogroms, conversões forçadas e Inquisições – tudo isso culminando no Holocausto.

Mesmo a fundação do Estado Judeu não significou um fim ao violento antissemitismo. Israel é o único país no mundo cujos inimigos conclamam à sua aniquilação. Além

de ter de lutar guerras por sua sobrevivência, o Estado de Israel sempre foi alvo de covardes atos terroristas, que visam a assassinar indiscriminadamente civis inocentes, inclusive bebês e crianças, mulheres e idosos. Mesmo após termos retornado à nossa Pátria ancestral, não encontramos paz.

Tishá b’Av é o dia mais triste no calendário judaico, mas não é o único dia de luto para o nosso povo. Em Israel, o Yom HaShoá – Dia da Recordação do Holocausto – ocorre no dia 27 de Nissan. Nessa data, recordamos os quase sete milhões de judeus (não seis milhões, como muitos pensam) exterminados pelos vilões mais diabólicos da história da humanidade. Alguns dias mais tarde, no quarto dia do mês de Iyar, Israel observa o Yom HaZikarón – Dia da Recordação. Este ano, o Estado Judeu recordou suas 23.169 vítimas de guerra e terrorismo.

C

heróis judeus – presente e passado

tishá b´av – o nono dia do mês hebraico de Menachem av

– é o dia nacional de luto para o Povo Judeu. nessa data,

jejuamos durante mais de 24 horas e choramos a queda

de Jerusalém e seu templo sagrado e os muitos outros

episódios trágicos na História Judaica, vários dos quais

ocorreram ou se iniciaram em tishá b’av.

Tishá b’Av não é um dia apenas de tristeza, mas também um dia em que devemos fazer um balanço em nossa consciência, um Cheshbon Ha’Nefesh. Além de jejuar e observar as restrições e costumes do dia, relatamos os pecados e erros que levaram à destruição e ao exílio – o ódio infundado entre os judeus e a guerra civil que eles enfrentaram mesmo quando lutavam contra Roma. No nono dia de Av, nós também recordamos os pecados que levaram à queda do Primeiro Templo: idolatria, violência, imoralidade e flagrante desrespeito pela Torá.

O processo de Cheshbon Ha’Nefesh é sempre benéfico: sempre podemos melhorar, individual e coletivamente. No entanto, uma autocondenação excessiva não o é. Não podemos culpar-nos por todas as tragédias que se abateram sobre o nosso povo. Não temos o direito de

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julgar-nos e a outros judeus de forma tão desfavorável. Nossos antepassados que viveram no antigo Israel podem ter feito escolhas insensatas e erros graves – alguns cometeram mesmo pecados terríveis – mas nada justificou 2.000 anos de exílio e sofrimento. Nada do que eles fizeram justifica os pogroms, as humilhações e as expulsões em massa, as fogueiras da Inquisição, as câmaras de gás e os diabólicos experimentos médicos do Holocausto. Nada justifica o assassinato de sete milhões de pessoas, inclusive de quase dois milhões de crianças, durante a Shoá.

As inúmeras perguntas acerca da razão para os sofrimentos desproporcionais do Povo Judeu não são novidade, naturalmente. Estão bem além do escopo deste artigo.

Talvez estejam além do escopo de todas as palavras que já foram pronunciadas por seres humanos. A Torá, que é o projeto Divino para o mundo e uma fonte pura e não adulterada da Sabedoria Divina, provê as respostas a todas as perguntas, exceto a uma – a questão do sofrimento humano. De fato, D’us não nos forneceu respostas a tais questões.

À luz do silêncio da Torá, como nós, judeus, podemos lidar com as questões levantadas por Tishá b’Av? O que dizer a nossos filhos quando eles nos perguntam sobre o Holocausto? O que dizer a nós mesmos? Como continuar a ser um judeu que tem confiança em D’us e orgulho de seu povo, apesar dos dois milênios de sofrimento?

A resposta não reside, como muitos creem, na criação do Estado de Israel. Os triunfos militares do Estado Judeu não removem a dor inexorável do Holocausto. É por isso que o país inteiro para e observa dois minutos de silêncio em Yom HaShoá e discute, ano após ano, quais as lições que devemos aprender do Holocausto.

Não podemos reescrever a História. As palavras, por mais bonitas ou inspiradoras que sejam, não podem mudar o passado: elas servem de pouco conforto para aqueles que sofreram ou perderam entes queridos. Só se pode mudar o presente e o futuro. Há apenas uma coisa que podemos fazer acerca do passado: mudar a maneira como o percebemos. Não podemos desfazer as tragédias ocorridas em Tishá b’Av ou as que ocorreram em virtude de

destruição de jerusalém pelos romanos comandados por tito, david roberts, 1850

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o Povo Judeu. O Império Romano, que tinha ocupado a Terra de Israel e destruído o segundo Templo Sagrado de Jerusalém, desejava extirpar o judaísmo da face da Terra mediante a proibição, sob pena de morte, do ensino da Torá. Apesar do decreto romano, certos rabinos e líderes judeus, Rabi Chanina ben Teradyon entre eles, continuaram a estudar e ensinar a Torá. Eles perceberam – assim como o percebeu Roma – que a Torá é o sangue vital do Povo Judeu. Para difundir a Torá para o maior número possível de judeus, garantindo, assim, a sobrevivência de seu povo, Rabi Chanina dava aulas em público, apesar do perigo daí decorrente.

O Talmud nos conta o seguinte relato: Certa vez, Rabi Chanina ben Teradyon fez uma visita a seu colega e mestre, Rabi Yose ben Kisma,

que estava enfermo. Este último, preocupado com a segurança do discípulo, volta-se para Rabi Chanina e diz: “Chanina, meu irmão, não sabes que dos Céus nos impuseram, como governantes, esta nação (Roma), que destruiu a Morada de D’us, queimou Seu Santuário, matou Seus filhos piedosos e fez com que perecessem seus nobres, e esse governante estrangeiro ainda vive... E, no entanto, contaram-me que você passa os dias dedicado ao estudo da Torá, e realiza encontros públicos, à luz do dia, para difundi-la, com um rolo da Torá abertamente em seu colo. Ficarei surpreso se eles não o queimarem vivo, junto com o rolo da Torá”.

Rabi Chanina ignora a advertência de seu mestre. Faz, então, uma pergunta a Rabi Yose ben Kisma, cuja resposta devia ser óbvia: “Rebe, merecerei um lugar no Mundo Vindouro?”. A resposta de Rabi Yose foi ainda mais desconcertante: “Eu não sei”, disse. “Diga-me uma ação positiva sua que justificasse o seu mérito de receber um lugar no Mundo Vindouro”.

Rabi Chanina conta a Rabi Yose acerca de um ato de caridade que ele realizou e, após ouvi-lo, Rabi Yose lhe diz que ele terá, sim, seu lugar assegurado no Mundo Vindouro.

Poucos dias depois, Rabi Yose ben Kisma deixa este mundo. Ele era um homem tão proeminente que até mesmo os dignitários romanos vão a seu funeral. Ao retornarem do cortejo fúnebre, encontram Rabi Chanina ensinando a Torá em público, com um rolo da Torá em seu colo. Enrolaram-no nesse pergaminho da Torá e puseram fogo nele. Para prolongar seu sofrimento, os romanos trouxeram tufos de algodão, molhados n’água,

Tishá b’Av, mas podemos perceber a História Judaica de forma diferente. Não podemos trazer de volta à vida aqueles que morreram no Holocausto, mas podemos vê-los sob uma luz diferente.

Para manter nossa fé em D’us e nos orgulharmos com nossa história e herança, precisamos ver a História Judaica sob diferentes lentes. Precisamos entender que a história de nosso povo é feita de heroísmo e de martírio.

a história de Rabi Chanina ben teradyon

Um dos maiores Sábios da História Judaica foi Rabi Chanina ben Teradyon, sogro de Rabi Meir – Rabi Meir Ba’al Haness (o Mestre do Milagres). Rabi Chanina viveu durante tempos muitos difíceis para

Arco de Triunfo de Tito, Roma. Foi erguido no ano 81 E.C. em comemoração à conquista de Jerusalém pelo imperador Tito Flávio.

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colocando-os sobre seu coração, para que ele morresse lentamente. Enquanto o fogo cresce, os alunos perguntam a Rabi Chanina: “Mestre, o que vê?”. E ele responde: “O fogo está consumindo o pergaminho em branco da Torá, enquanto as letras estão subindo aos Céus”.

Muitos comentários foram escritos sobre essa enigmática passagem talmúdica. Ela dá origem a muitas perguntas. Como pôde Rabi Chanina ben Teradyon, um Sábio que dedicou e arriscou sua vida para ensinar e difundir a Torá, duvidar que ele teria um lugar no Mundo Vindouro? Ainda mais perturbadora foi a resposta de Rabi Yose, de que não estava certo sobre o lugar de Rabi Chanina no Olam Habá.

A resposta não é que eles eram pessoas que duvidavam de seu valor. A resposta é que para homens da estirpe de Rabi Chanina ben Teradyon, morrer pela Torá era um privilégio e não um ato de sacrifício que requeria a recompensa de um lugar no Mundo Vindouro. Para um judeu como ele, o ensinamento, a divulgação e a preservação da Torá eram atos supremos: ele iria estudar e divulgar o judaísmo ainda que arriscasse a sua vida. Ele estava pronto a abrir mão de sua vida em prol da Torá, independentemente de receber como garantia uma recompensa em sua vida futura.

Suas palavras finais a seus alunos refletem sua atitude frente a vida e a morte: a parte física do rolo da Torá – o pergaminho – está queimando, mas a parte espiritual – suas letras, que transmitem santidade ao rolo da Torá – estão subindo aos Céus, retornando à Fonte de toda a santidade. De modo semelhante, Roma e os outros inimigos do Povo Judeu podem queimar rolos de Torá

e destruir corpos judeus, mas não conseguem tocar nossa alma e a luz do Judaísmo – pois esta eles não conseguem extinguir.

a história de Rabi akiva

Ao longo de toda a História Judaica, houve vários Sábios, que, como Rabi Chanina ben Teradyon, abriram mão de sua vida para assegurar a eternidade do judaísmo. O mais famoso deles foi Rabi Akiva.

O Talmud narra o seguinte: quando Moshé subiu ao Monte Sinai para receber a Torá, D’us lhe revelou os feitos de Rabi Akiva, que iria viver muitas gerações mais tarde. Após ter uma visão da extraordinária sabedoria e erudição desse Sábio, Moshé perguntou a D’us: “Mestre do Universo, tendo alguém como ele, é a mim que entregas a Tua Torá? Entrega-a através de Rabi Akiva”. D’us lhe respondeu: “Cala-te! Foi assim que decidi e a ti não cabe opinar”. Moshé então pergunta a D’us: “Mestre do Universo, mostraste-me os ensinamentos de Torá de Rabi Akiva, agora mostra-me a sua recompensa”. “Vira-te”, D’us diz a Moshé. Ele assim o faz e o que vê o choca: ele vê o corpo mutilado de Rabi Akiva, após ser executado por Roma. “Mestre do Universo!”, Moshé protesta, “Esta é a Torá e esta é a sua recompensa?!”. D’us lhe responde, “Cala-te! Foi assim que decidi e a ti não cabe opinar”.

Para apreciar quão significativa e quão enigmática é essa passagem do Talmud, precisamos entender quem foi Rabi Akiva. Em toda a História Judaica, ele foi o único a ser comparado a Moshé Rabenu. Segundo algumas opiniões, ele até superou o nível espiritual do maior profeta judeu de todos os tempos.

nem o judaísmo

nem o Povo Judeu

glorificam o martírio

e a morte. Valorizamos

a vida acima de quase

tudo. Grande parte

do destino de nosso

povo não foi

escolhido por nós.

Ruínas do Segundo Grande Templo destruído no ano 70 E.C. quando Jerusalém foi tomada pelos romanos

nossas festas

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Rabi Akiva foi o maior mestre do Talmud – pilar da Lei, Tradição e Sabedoria Judaicas. Ademais, ele, sozinho, salvou o judaísmo. Moshé Rabenu trouxe a Torá dos Céus à Terra, mas foi Rabi Akiva quem assegurou que não fosse perdida. O judaísmo existe hoje graças a Rabi Akiva.

Como Rabi Chanina ben Teradyon, Rabi Akiva também viveu na Terra de Israel durante tempos muito difíceis, quando o Império Romano fez de tudo para extirpar o judaísmo da face da Terra. Percebendo que a Torá corria o risco de se perder, Rabi Akiva organizou e sistematizou seus ensinamentos para que fossem adequadamente transmitidos de uma geração a outra.

Ensinam nossos Sábios que “Toda a Torá está de acordo com os ensinamentos de Rabi Akiva”. Isto porque graças ao seu trabalho incessante em prol do judaísmo

e graças aos ensinamentos que transmitiu a seus discípulos principais – entre eles, Rabi Shimon bar Yochai – autor do Zohar – e Rabi Meir Ba’al HaNess – o Mestre dos Milagres – a Torá não se perdeu.

Por ter ensinado a Torá em público, Rabi Akiva foi preso e encarcerado pelas autoridades romanas, que o sentenciaram à morte. O governador romano na Terra de Israel não se contentou com meramente executar o maior Sábio judeu. Por ter frustrado os malignos planos de Roma, por ter salvo o judaísmo e, assim, assegurado a sobrevivência do Povo Judeu, Akiva seria torturado até a morte. Roma escolheu para ele a forma mais excruciante de execução: ele seria rasgado, pedaço por pedaço, até morrer, com rastelos de ferro. Como Rabi Akiva reagiu à sua morte? Protestou ao Mestre do Universo, como Moshé havia feito por ele?

Vejamos este relato talmúdico sobre sua execução. Enquanto o carrasco romano realizava a pavorosa execução – e seu corpo era rasgado, em pedaços – Rabi Akiva sorria – quase rindo, mesmo. Ninguém entendia o que se passava. O governador romano, não acreditando no que via, virou-se para ele e disse: “Você deve ser um demônio! Não é possível que um ser humano possa suportar tanto sofrimento e fique sorrindo!”. Os alunos de Akiva, chocados com o que viam, perguntaram-lhe: “Rebe, o que está acontecendo? Como pode sorrir num momento destes?”.

Prestemos atenção às palavras finais de Rabi Akiva – dirigidas tanto a seus carrascos quanto a seus alunos. “Este é o momento mais glorioso de minha vida!”, declarou. “Todos os dias, de manhã e à noite, recito o Shemá: proclamo minha fé em D’us, proclamo a unicidade de D’us, proclamo como devemos amar a D’us, assim como está escrito:

Fortaleza de Jerusalém, sem as muralhas, Torre de David, David Roberts, 1839

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‘E amarás o Eterno, teu D’us, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua força’. Sempre entendi a parte ‘com toda a tua alma’ como sendo ‘às custas de tua alma’, e sempre me perguntei quando teria a oportunidade de cumprir este mandamento – sacrificar minha alma em favor de D’us”.

“Hoje isso está acontecendo”, Rabi Akiva concluiu. “Hoje estou sendo morto por ser judeu. Hoje estou sendo morto por minha fé em D’us e por fortalecer esta fé entre os demais. Não é, então, este, o grande momento de minha vida – quando posso renunciar à minha vida em favor de D’us?”.

A seguir, Rabi Akiva recitou o verso inicial do Shemá: “Escuta, ó Israel, o Eterno é nosso D’us, o Eterno é Um”, e sua alma ascendeu à Eternidade.

Assim ensina o Talmud: no ponto mais alto dos Céus reside a alma de Rabi Akiva, bem como as almas de todos os judeus de todas as gerações que foram mortos pelo simples fato de serem judeus.

Uma nação de mártires

A história de Rabi Akiva não é apenas a história de um único homem, mas de uma nação. O maior de nossos Sábios personificou seu povo. Através de nossa história, mas especialmente durante o Holocausto, muitos caminharam para a morte com o Shemá em seus lábios. Muitos caminharam para as câmaras de gás não apenas rezando, mas cantando. No Holocausto, quase sete milhões de judeus foram assassinados, morreram Al Kidush Hashem – pela santificação do Nome de D’us. Eles pagaram o preço supremo por serem judeus. Eles foram submetidos a um

teste ainda mais difícil do que o de Avraham e Itzhak.

Diz-se que “morre Al Kidush Hashem” um judeu morto pelo simples fato de ser judeu. Tal morte significa a maior das elevações espirituais. No entanto, nem o judaísmo nem o Povo Judeu glorificam o martírio e a morte. Valorizamos a vida acima de quase tudo. Grande parte do destino de nosso povo não foi escolhido por nós. Não buscamos nem provocamos um ataque a nosso povo e a nosso estilo de vida. O Povo Judeu nunca constituiu ameaça aos países onde viveu.

A grande maioria dos judeus assassinados no Holocausto eram pobres e religiosos. Não eram ameaça para ninguém – política ou economicamente, muito menos em aspecto belicoso. Eles não esperavam nem provocaram uma confrontação com o mal. Mas, diz-se que a verdadeira medida da força de um povo é como eles se alçam para dominar o momento quando surge a confrontação. Apesar de seu indescritível sofrimento, o Povo Judeu manteve-se judeu durante os 2.000 anos de sua Diáspora, e, mais notadamente, durante o Holocausto. Há inúmeras histórias de judeus que deram sua vida para salvar a de outros. Apesar de viverem à sombra de seus carrascos, eles não perderam a coragem nem a dignidade. Havia judeus nos campos de morte que colocavam diariamente os Tefilin, que comiam Matzá em Pessach, que acendiam velas de Shabat. Havia judeus famintos – verdadeiros esqueletos humanos – que se recusavam a comer em Yom Kipur; outros que abriam mão da ração semanal para conseguir emprestado um livro de orações, para poderem recitar algumas rezas. Havia judeus

que dançavam em Simchat Torá enquanto eram conduzidos à morte, o que levou seus carrascos nazistas a comentarem, entre si, o que o carrasco romano disse à Rabi Akiva: “Não podem ser seres humanos. É impossível que um ser humano aguente tanto sofrimento e se alegre desta forma...”

Durante o Holocausto, quando a escuridão caía sobre o mundo e nosso povo era consumido em chamas, os Céus estavam lotados com milhões de judeus que chegavam. Quando pensamos naquela geração de judeus – no que passaram e sobreviveram e como foram capazes de reconstruir o Povo Judeu e restabelecer a Pátria Judaica na Terra de Israel e revigorar o Judaísmo – torna-se claro que a capacidade de nosso povo é praticamente ilimitada.

A era do Holocausto foi uma era de heróis e mártires judeus e eles se alçaram mais alto do que as estrelas – eles ascenderam à Eternidade. Eles fizeram o impossível. Eles conseguiram o impensável. E se alguém se perguntar como o Estado de Israel pôde vencer a Guerra da Independência – como os judeus de Israel venceram contra grandes adversidades – foi porque eles não lutaram sozinhos: lutaram ao lado de uma legião Celestial de quase sete milhões de judeus.

o Legado de Joseph trumpeldor

Através da História Judaica, muitos judeus renunciaram à sua vida em favor de D’us e do Judaísmo. Mas sempre houve judeus que arriscaram e até renunciaram à vida pelo Povo Judeu e por nosso direito de viver em liberdade e dignidade. Um dos maiores mártires modernos do nosso povo foi Joseph Trumpeldor.

nossas festas

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Nascido em 1880, ele era um judeu russo destemido – um socialista ardente e precursor do sionismo – que perdeu um braço no cerco de Port Arthur durante a guerra russo-japonesa. Trumpeldor mudou-se para a Terra de Israel, tornando-se líder da Legião Judaica – precursora das Forças de Defesa de Israel. Em 1o de março de 1920, centenas de árabes atacaram o assentamento de Tel Hai, na Alta Galileia. Trumpeldor foi seriamente ferido na sangrenta batalha que se seguiu. Quando chegou um médico, era muito tarde. Trumpeldor, ciente que estava prestes a deixar este mundo, confortava o médico e seus irmãos-em-armas dizendo: “Ein davar, tov lamut be’ad artzeinu” (Não faz mal, é bom morrer por nossa terra).

As palavras finais de Joseph Trumpeldor se tornaram o lema oficioso do Estado de Israel. Mas não visavam a promover a morte para a Pátria. Ele estava dizendo

a seus irmãos-em-armas que não chorassem pela forma de sua morte: ele lhes reassegurava que aceitava sua morte com bravura. Trumpeldor entendeu que seu sacrifício contribuiria, ao menos em parte, para o restabelecimento de uma Pátria judaica, e, portanto, para a salvação do Povo Judeu. Em seus últimos momentos de vida, esse herói judeu percebeu que sua vida e sua morte não tinham sido em vão: seu legado contribuiria para a eternidade de seu povo. De fato, ele foi saudado como herói nacional por todos os lados do espectro político antes e após a criação do Estado Judeu.

Como Rabi Chanina ben Teradyon e Rabi Akiva, Joseph Trumpeldor teve uma morte famosa. Milhões de judeus na Diáspora e mais de 20.000 judeus no Estado de Israel também deram sua vida pelo judaísmo e pelo seu povo, mas suas mortes não foram famosas e seus nomes não são encontrados no Talmud nem nos livros-texto das escolas de Israel.

O tema do último Yom HaShoá em Israel foi, “Toda pessoa tem um nome”. De fato, cada um deles teve seu nome. Eram filhos e filhas, pais e mães, irmãos e irmãs, maridos e mulheres, professores e amigos. O fato de seus nomes não se terem tornado famosos torna seu martírio ainda mais significativo. Talvez não saibamos seus nomes, mas jamais os esqueceremos.

Neste Tishá b’Av, o Povo Judeu, a mais antiga nação que vive na face da Terra, se prostrará de luto e recitará a Meguilat Eichá – as Lamentações de Jeremias. Jejuaremos e rezaremos, e, ao lembrarmos os sofrimentos de nosso povo, lamentaremos e choraremos – abertamente ou em nosso coração. Mas ao fazê-lo, também devemos sentir-nos

abençoados por pertencer a uma nação de heróis e mártires – do passado e do presente. Neste último Yom HaZikarón, o Primeiro Ministro Binyamin Netanyahu fez uma declaração sobre os 23.169 mártires do Estado de Israel que se aplica também a todos os judeus de todas as gerações que morreram por serem judeus. “Não estaríamos aqui se não fosse pelo seu sacrifício. Não estaríamos aqui não fosse por sua disposição em entregar sua vida para que pudéssemos estar aqui”. D’us abençoe sua memória. D’us abençoe o Povo Judeu, e D’us abençoe o Estado de Israel.

tishá b’av: o Dia da Redenção

Agora concluiremos com uma história do Talmud sobre Rabi Akiva, que sempre insistiu que tudo que D’us faz é para o bem e que foi aquele que enfrentou sua morte com júbilo e orações.

Após a destruição do segundo Templo Sagrado, quatro Sábios – Rabban Gamliel, Rabi Elazar ben Azariá, Rabi Yeshoshua e Rabi Akiva – estavam a caminho de Jerusalém. Quando chegaram a Har HaTzofim e viram a cidade de Jerusalém destruída, rasgaram suas vestes em sinal de luto. Chegando ao Monte do Templo, viram uma raposa surgir do local onde era o Kodesh HaKodashim. Este era o local mais sagrado do Templo, onde apenas o homem mais santo de Israel, o Cohen Gadol, podia entrar, e apenas no dia mais sagrado do ano – Yom Kipur. Ao presenciar essa cena, Rabban Gamliel, Rabi Elazar e Rabi Yeshoshua começaram a chorar, mas Rabi Akiva pôs-se a sorrir. Eles então lhe disseram: “Por que sorris?” Ao que ele respondeu: “Por que estão a chorar?” E eles disseram: “É um local sobre o qual Joseph Trumpeldor

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está escrito: ‘o não-Cohen que se aproximar, morrerá’ (Números 1:51) e agora ‘raposas vagueiam por lá’ (Lamentações 5:18). Não é para chorarmos?”

Rabi Akiva replicou: “Por essa exata razão, estou sorrindo. Pois está escrito: ´Buscarei para Mim testemunhas confiáveis, Uriah, o Cohen, e Zechariahu ben Yeverechiahu´ (Isaías 8:2). Qual a ligação entre Uriah e Zechariah? Uriah profetizou na época do Primeiro Templo, enquanto Zechariah o fez durante o Segundo Templo. Por que, então, são mencionados junto?”. Rabi Akiva, então, explica: “Ao mencionar os dois profetas junto, as Escrituras tornam a profecia de Zechariah dependente da de Uriah. Na profecia deste último, está escrito: ‘Portanto, por sua causa, Tzion será arado como um campo’. Na profecia de Zechariah está escrito: ‘Os idosos e as idosas sentar-se-ão, novamente, nas ruas de Jerusalém’.

Rabi Akiva conclui, então: “Enquanto a profecia de Uriah não tinha sido realizada, eu temia que a de Zechariah tampouco o seria. Agora que a de Uriah foi realizada – e Jerusalém e o Monte de Templo estão totalmente devastados – é certo que a profecia de Zechariah – a construção do Terceiro Templo – será realizada”. Então os Sábios lhe disseram: “Akiva, tu nos confortaste. Akiva, tu nos confortaste”.

Há dois milênios, em Tishá b’Av, caiu o segundo Templo de Jerusalém. Fomos exilados de nossa Pátria. Quatro milhões de judeus foram massacrados apenas na cidade de Bethar. A profecia de Uriah de fato se cumpriu. E agora esperamos o cumprimento da profecia de Zechariah. Há uma tradição de que Tishá b’Av é a data de nascimento do Mashiach e a data na qual ocorrerá a Redenção Messiânica. E quando isso ocorrer, o 9 de Av se transformará do dia mais triste para o mais jubiloso do nosso calendário.

Ainda não há paz em Jerusalém nem no restante do mundo, mas está prestes a vir. Todos os judeus se reunirão na Terra de Israel, o Terceiro e eterno Templo será construído e o sofrimento e a morte serão varridos da face da Terra. Mais milagroso ainda: todos os mortos retornarão à vida – todos os entes queridos que perdemos retornarão a nós.

Que seja a Vontade de D’us que esse dia ocorra muito em breve, em nossos dias – Bekarov BeYamenu Mamash – Amén, ken yehi ratsón.

BIbliografia:

Talmud Bavli: Tratados Berachot, Menachot, Avodá Zará, Makot

Talmud Yerushalmi: Tratado Berachot

Palestra do Rabi Dr. Schochet, Jacob Immanuel, Judaism: Discourse - Questions and answers with Immanuel Schochet - www.youtube.com

Blum, Ruthie, Trumpledor Revisited

www.israelhayom.com

judeus no kotel hamaaravi. alexander bida, 1862

homenagem

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o dia 15 de junho de 2014 a comunidade judaica de São Paulo perdeu um dos seus principais pilares,

fundador de importantes instituições; o mundo das finanças perdeu uma importante personalidade e o mundo da benemerência judaica e não judaica perdeu uma alma nobre, um homem generoso, sempre disposto a apoiar as causas dignas e a atender os que necessitassem de sua ajuda. Moise deixa uma grande lacuna ou, como diria Rabi Nachman de Bratislav, “uma Cadeira Vazia”.

Nascido em Beirute, Líbano, Moise era o quinto dos oito filhos de Jacob E. e Esther Safra. Seu pai nasceu em Alepo, em 1891, na Síria, então parte do Império Otomano. Ali vivia uma florescente e estável comunidade judaica, com instituições culturais, educacionais e religiosas sólidas, integrada economicamente

à sociedade síria. Nos anos de 1920, Jacob E. foi enviado a Beirute, onde se estabeleceu. Casou-se com sua prima Esther e tiveram oito filhos: Elie, Eveline, Edmond, Arlette, Moise, Huguette, Gaby e Joseph. Na cidade onde constituiu família, Jacob E. foi um grande benemérito e um dos líderes comunitários, exemplo seguido pelos seus descendentes, que se espalharam pelo mundo.

Na década de 1950, como consequência do cenário político no Líbano decorrente da independência do Estado de Israel, a família Safra deixou o país rumo à Itália. Essa não foi a última parada do clã, que começou a se espalhar pelo mundo. Em 1954, três filhos de Jacob E., Edmond, Moise e Joseph, escolheram o Brasil para recomeçar a vida, constituir família e erguer um dos grupos empresariais mais sólidos do País, com ênfase no setor bancário. No início, Moise

n

Moise Safra z’l

Um homem bom e justo, um dos principais banqueiros

do Brasil, um grande filantropo que serviu de

inspiração para toda uma geração.

trabalhou no ramo de importações e exportações, mas, em 1957, a família Safra formou uma financeira que viria a se tornar o Banco Safra e fundou a Filobel, uma das maiores indústrias têxteis do país.

Em 1969, Moise casou-se com Chella Cohen e teve cinco filhos: Jacob, Azuri, Edmundo, Esther e Olga. Apesar dos inúmeros negócios, obrigações sociais e comunitárias, Moise e Chella sempre dedicaram tempo à sua família, a seus filhos, genros, noras e netos. Eles sempre foram sua prioridade.

Em 1998, ele fundou um Family Office, M. Safra & Co., com sede em Nova York e São Paulo, independente do império bancário familiar. Em 2006, Moise vendeu sua parte ao irmão Joseph e começou a diversificar seus interesses comerciais. Em 2012, Moise comprou o prédio comercial Plantantion Place, em

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Londres, e, em 2013, em parceria com a gigante chinesa Zhang Xin, adquiriu 40% de participação no edifício General Motors, em Manhattan, Nova York.

atuação comunitária

O nome Safra está inserido na história da comunidade judaica paulista em suas mais diversas manifestações – educação, assistência social, saúde, cultura. Com seus irmãos Edmond e Joseph, Moise foi, em 1959, um dos fundadores da Congregação Beneficente Sefardi Paulista, conhecida como Beit Yaacov. A primeira Sinagoga da Beit Yaacov está localizada na rua Bela Cintra. Como presidente da instituição durante anos, acompanhou de perto o seu desenvolvimento e fortalecimento, a fundação de novas sinagogas, como a sinagoga do Guarujá, a Beit Yaacov Veiga Filho, bem

como o crescimento do Netzah, seu movimento juvenil. Foi também um dos fundadores da Escola Beit Yaacov.

Não havia projeto comunitário de que não participasse, junto com sua esposa Chella, não apenas em São Paulo e Rio de Janeiro, mas em todo o Brasil e no exterior. Em Nova York, Miami ou Israel, Moise não limitou sua atividade filantrópica às comunidades judaicas.

Chella e Moise Safra estão entre os principais mantenedores do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo. Em 2010, a instituição inaugurou um sofisticado auditório com seu nome. O casal esteve envolvido na reforma da unidade neonatal do Hospital São Paulo, ligado à Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), para a ampliação de sua estrutura e instalação de novos equipamentos.

Conhecido por fazer doações regulares no Brasil e no exterior, Moise jamais esqueceu suas raízes familiares na Síria, apesar de nunca ter vivido no país. Em homenagem ao seu passado, destinou recursos para a construção de um centro comunitário para judeus oriundos da Síria em Nova York. Com previsão de inauguração no final de 2014, o projeto será nomeado Centro Comunitário Moise Safra.

Foram muitas as outras obras em que o casal esteve envolvido além das mencionadas. Durante a Mishmará, os rabinos afirmaram que é difícil enumerar os inúmeros atos de bondade que Moise realizou durante sua vida.

O rabino Efraim Laniado disse que quando a pessoa termina sua missão na Terra, D’us manda os anjos ao mundo para ouvir o que dizem sobre a pessoa. E não houve

homenagem

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quem não falasse belas coisas sobre Moise. Lembrou-se, também, de uma ocasião quando ele lhe telefonou para dizer que chegara ao seu conhecimento que alguns judeus no Rio passavam necessidade e ele queria enviar ajuda aos mesmos. Já o rabino David Y. Weitman disse: “No mundo atual, onde os perigos do sucesso são óbvios, tais como egocentrismo, perda de autenticidade e sensibilidade, Moise Safra conseguiu manter intactos os valores milenares judaicos aprendidos com seu pai, Jacob E. Safra. Grande filantropo e mecenas ele atendia a todos com seu coração generoso. Ele estava ciente de que D’us o contemplara com riqueza para que ele pudesse ajudar os outros em sua volta, e fazer do mundo um lugar melhor”.

Todos os que o conheciam sabiam que Moise era um homem que não se contentava apenas em doar, mas

Moise e Chella Safra

de um parente. Mas ela não sabia usar um orelhão. Sem fichas para usar o telefone, Moise deu-se o trabalho de ir até um bar e comprou uma ficha, ligou para o número que a senhora tinha e mandou chamar seu parente. Então, o filho lhe perguntou por que se dera todo aquele trabalho para uma pessoa humilde e desconhecida. Ao que Moise lhe respondeu que era fácil fazer favores para um rei, mas o difícil era ajudar uma pessoa simples...

Moise foi um homem que sempre se manteve fiel às leis e tradições judaicas, sendo mesmo a personificação do mais importante mandamento do judaísmo: a prática de atos de bondade, generosidade e caridade. Rabi Moshe ben Maimon, Maimônides, o maior filósofo judeu e um dos principais legisladores da Lei Judaica, escreve que há oito níveis de Tzedaká – cada um maior do que o outro. O nível mais alto de todos – o insuperável e de maior valor – é ajudar alguém que esteja passando por dificuldades financeiras, para que ele possa se restabelecer e não mais ter que depender dos outros. Esse grau de Tzedaká se manifesta de diferentes formas: emprestar dinheiro ao necessitado, convidá-lo a participar de algum negócio ou ajudá-lo a encontrar trabalho. Moise cumpriu esse e os demais graus superiores do mandamento e o fez da melhor forma possível – com o máximo de discrição – preservando a dignidade das outras pessoas.

Ensinam os nossos sábios que todo ato de bondade que um ser humano realiza cria um anjo para si e que todos os anjos criados acompanham sua alma quando ele sai da dimensão terrestre e adentra

sabia ouvir, sentia empatia pelo sofrimento alheio e, junto com sua esposa, se envolvia nos problemas das pessoas, sempre encorajando os necessitados e procurando soluções. Ele costumava visitar doentes no hospital, fossem eles amigos ou apenas conhecidos. Ajudava jovens com poucas condições financeiras a estudar e a se casar.

Azuri, seu filho, relatou em um discurso emocionado em nome de toda família na cerimônia da Mishmará, como seu pai lhe ensinara, quando ele era ainda uma criança de apenas 8 anos, que quando queremos ajudar alguém, devemos nos antecipar em atender suas necessidades. Ele lembrou que, numa ocasião, quando saíam juntos da sinagoga, viram uma senhora humilde que havia chegado a São Paulo, vinda do Norte, e estava perdida. Tinha nas mãos um pedaço de papel com o número do telefone

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25 julho 2014

Moise e Chella Safra e seus filhos (da esq. para direita) Azuri, Olga, Edmundo, Esther e Jacob, São Paulo, 2013

o Mundo Superior. Não há dúvida de que uma enorme legião de anjos recebeu Moise Safra no dia em que ele retornou sua alma ao Criador. Todas as bênçãos das quais ele usufruiu na Terra foram apenas um vislumbre das recompensas eternas e imensuráveis que o aguardam no Mundo da Verdade.

manifestações

Para Cláudio Lottenberg, presidente do Hospital Albert Einstein, “Moise era uma pessoa dotada de uma sensibilidade instintiva, para quem a palavra amor era um exercício do cotidiano. Ele conseguia conciliar a visão de um empresário com a de um humanista. É uma perda muito grande. Moise era um grande doador do Einstein e eu o considerava meu conselheiro. Muitas vezes conversei com ele sobre questões do Hospital e ele nos apoiava em todas as nossas obras”.

“Moise Safra deixa um legado importante para o sistema financeiro nacional e internacional”, disse Roberto Setubal, presidente do Itaú Unibanco.

Para Lázaro de Mello Brandão, presidente do Conselho de Administração do Bradesco, “Moise foi um dos mais respeitados nomes do mundo das finanças nacional e internacional. Acreditou e investiu no Brasil, representando a melhor tradição do setor bancário brasileiro”.

“Pessoas do mundo inteiro têm feito declarações sobre seu papel no setor financeiro, sobre suas contribuições. Amigos mais próximos compartilham lembranças e atributos pessoais que fizeram dele uma pessoa maravilhosa. Nesse momento, só posso pensar nele como meu irmão querido, com o qual compartilhei durante toda a vida momentos felizes, sucessos e dores. É muito

difícil descrever o sentimento de perder um irmão. A perda de meu irmão Moise deixa um vazio em meu coração”. Joseph Safra

Por ocasião do seu 75o aniversário, sua esposa, filhos, noras, genros e netos lhe fizeram uma linda homenagem, em que disseram: “Moise Safra, um grande homem, um grande marido, pai e avô está sempre em nosso coração. Obrigado por fazer parte de nossas vidas. Sua história é um exemplo para todos nós. Você é um mestre na arte de viver, suas palavras são sempre sábias e carinhosas, seu lema é honestidade e sensatez, sua compaixão com o próximo sempre nos emocionou. Você sempre usou justiça e respeito em suas decisões, seu olhar sempre verdadeiro e amoroso, seu sorriso contagiante iluminado, a vida inteira nos ensinou e cativou com seu jeito humilde e grandioso de ser. Este é o seu legado”.

certa altura de sua fascinante trajetória, Hecht empenhou-se com devoção em angariar fundos destinados

aos judeus que confrontavam os mandatários ingleses na antiga Palestina. Nessa tarefa, decidiu obter doações, talvez vultosas, dos magnatas judeus que eram donos dos maiores estúdios de Hollywood porque o admiravam e respeitavam. (No decorrer de sua prolífica carreira, Hecht teve quatro indicações e duas vitórias nos Oscars).

Na ida para a Califórnia, tinha como primeiro nome da lista o produtor David O. Selznick, seu amigo de longa data, responsável, entre muitos outros, pela realização do filme E o Vento Levou, cujo roteiro foi escrito pelo próprio Hecht. Não foi uma conversa agradável. Irritado, Selznick disse que não queria nem ouvir falar das agruras

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dos judeus mesmo porque ele era antes de tudo um patriota americano. Hecht não se abalou e fez-lhe uma proposta: “Então, telefone para cinco amigos seus, que não sejam judeus, e pergunte se você é judeu ou americano. Se responderem americano, você ganha 20 mil dólares; se disserem que é judeu, eu recebo uma contribuição de 20 mil dólares”. Dito e feito: os cinco disseram que Selznick era acima de tudo judeu e Hecht, com o cheque no bolso, partiu feliz em busca de novos doadores.

Ben Hecht nasceu no Brooklyn, Nova York, em 1894, filho de imigrantes russos. O pai, alfaiate no ramo de confecções, mudou-se depois com a mulher e o único filho, Ben, para Wisconsin. O menino costumava passar o verão em acampamentos perto de Chicago, cidade aonde acabou se fixando e onde começou no jornalismo como

apor Zevi Ghivelder

BEN HECHT- um judeu acima do bem e do mal

este ano assinala o 120º aniversário do nascimento de Ben

Hecht. este notável jornalista, escritor, autor teatral,

roteirista de dezenas de filmes e sionista combativo,

avultou como uma das mais consagradas celebridades

americanas do século passado. ao longo de toda a vida,

ele jamais foi indiferente aos rumos do mundo, em geral,

e ao povo judeu, em particular.

por Zevi Ghivelder

repórter, cobrindo os mais variados assuntos. Depois da 1ª Guerra Mundial foi mandado para Berlim como correspondente do jornal Chicago Daily News. Permaneceu durante dois anos na Alemanha e ali escreveu seu primeiro romance, intitulado Erik Dorn, que alcançou significativo sucesso. Depois de três peças encenadas na Broadway, que tiveram pouca repercussão, a fama chegou em 1928 quando lançou a peça The Front Page (A Primeira Página), em parceria com Charles MacArthur. O espetáculo teve 276 apresentações e, desde então, tem tido frequentes novas versões tanto nos Estados Unidos como em palcos de todo o mundo. É uma engenhosa e cativante comédia que já foi vista no Brasil e sua versão para o cinema, com Jack Lemmon e Walter Matthau nos principais papéis e direção de Billy Wilder, também alcançou expressivo êxito.

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27 JUlHo 2014

Ben Hecht foi um dos primeiros homens de letras a perceber o perigo do nazismo desde a sua tomada do poder, em 1933. Passou a escrever em sua coluna diária, publicada em diferentes jornais americanos, dezenas de artigos contra o regime instalado na Alemanha e também contra o fascismo que crescia na Itália. Pouco depois da invasão da Polônia, em 1939, e já sabendo dos massacres contra os judeus, sentiu, como ele mesmo escreveu, “ferver o meu sangue judaico”. Assim anotou em suas memórias: “O assassinato em massa de judeus estava apenas começando e todo o meu judaísmo veio à superfície. Não sei se senti pena das vítimas, mas sei que rugia em mim um enorme impulso de violência contra os criminosos nazistas”.

Ao mesmo tempo, passou a escrever ácidos textos dirigidos aos judeus americanos que se alienavam em

face do que estava acontecendo na Europa. Também conclamou os governos dos Estados Unidos e da Inglaterra a fazerem algo em favor dos judeus e sua ira foi aumentando na mesma proporção em que suas palavras estavam sendo ignoradas.

Em 1941, Hecht recebeu uma visita que iria mudar os caminhos de sua vida. O recém-chegado, vindo da antiga Palestina, apresentou-se como Peter Bergson, mas seu verdadeiro nome era Hillel Kook, sobrenome que preferiu esconder porque era sobrinho do então rabino-chefe de Jerusalém e assim evitava comprometer sua família. Bergson fora discípulo de Vladimir Jabotinsky (falecido em Nova York no ano anterior), fundador do movimento revisionista no âmbito do sionismo, que deu origem à Irgun, organização clandestina chefiada por Menachem Begin,

que optara por combater e sabotar os ingleses na Palestina. A Irgun não julgava que as ações políticas e diplomáticas de líderes como Chaim Weizmann e Ben-Gurion poderiam fazer com que a Grã-Bretanha abdicasse do seu mandato na Terra Santa.

Bergson instou Hecht a atuar em duas frentes: usar de sua influência nos meios jornalísticos e artísticos americanos no sentido de obter apoio para a causa revisionista e endossar a coleta de fundos para as atividades da Irgun. Hecht abraçou as duas tarefas com intenso fervor. No dia 16 de fevereiro de 1943, já ciente do Holocausto, redigiu um anúncio que foi publicado em página inteira no New York Times, provocando inusitado furor. O texto dizia: “À venda para a humanidade: 70 mil judeus. Garantia de que são seres humanos. 50 dólares por cabeça”.

Ben Hecht, 1943

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No mesmo mês escreveu para a publicação American Mercury um artigo intituladoO Extermínio dos Judeus, dramático relato ainda desconhecido pelos americanos sobre os horrores do Holocausto. O texto foi reproduzido na revista Reader’s Digest, a de maior circulação nos Estados Unidos. A partir de seu prestígio pessoal, organizou uma reunião de jornalistas a escritores no apartamento do famoso autor teatral e romancista George S. Kaufman. Em sua autobiografia, A Child of the Century, escreveu: “Compareceram 30 pessoas, alguns amigos, alguns inimigos, todos judeus. Disse-lhes como seria importante se todos nos uníssemos para denunciar os crimes do nazismo. Se juntássemos nossos talentos talvez fossemos capazes de impedir os massacres. Quando terminei minha fala, não houve nenhum aplauso e eu nem esperava que houvesse. O que me espantou, foi que uma dúzia dos convidados se levantou e foi embora sem sequer se despedir. Na saída, Beatrice, a mulher de George, disse que estava muito sentida com o que tinha acontecido e chamou a minha atenção para o fato de eu ter tocado no ponto fraco daquelas pessoas: eles se consideravam mais americanos do que judeus. Preferi não discutir. Entretanto, Moss Hart (diretor de teatro que veio a contar entre seus grandes sucessos o musical My Fair Lady) aproximou-se de mim e disse que estava disposto a colaborar de todas as formas. O mesmo me foi repetido pelo compositor Kurt Weil”.

Entusiasmado com aquelas adesões de tamanha relevância, Hecht concebeu e promoveu um colossal evento artístico na arena do Madison Square Garden de Nova York, sob o título Nós Jamais Morreremos. Com música de Kurt Weil e texto do próprio Hecht, a apresentação de

Ellen, filha de Stella, a fundadora do célebre Actor’s Studio, que namorou Brando durante alguns anos, recordou: “Num dos ensaios, o desempenho de Marlon foi tão intenso que Luther, o patriarca de nossa família, chegou a chorar.

Na verdade, Brando não estava apenas representando. Ele se preocupava com o destino dos refugiados judeus, assim como anos mais tarde se empenhou na campanha dos direitos civis e dos direitos dos índios”. (No meio da temporada, em virtude de outro compromisso já assumido, Marlon Brando foi substituído por Sidney Lumet, que se tornaria um dos maiores diretores do cinema americano). Em princípio a peça era para ficar apenas um mês em cartaz, o tempo disponível do teatro, mas acabou se prolongando por quase um ano e depois percorreu diversos estados americanos, e chegou, inclusive, aos campos de refugiados da Europa tendo sobreviventes do Holocausto como intérpretes. Um dos momentos mais emocionantes da peça ocorria quando o personagem David, interpretado por Marlon Brando, dizia o seguinte monólogo: “Judeus, onde estão vocês? Onde vocês estavam enquanto prosseguia a matança? Onde vocês estavam enquanto seis milhões de judeus eram assassinados? Onde estavam suas vozes para impedir os massacres?

Não houve voz nenhuma. E vocês, judeus da Inglaterra? Judeus fortes, judeus ricos, judeus aristocráticos, poderosos e geniais. Onde estavam seus protestos que poderiam ter apagado os incêndios? Em lugar nenhum! E isto porque vocês não queriam se expor como judeus. Vocês deixaram os judeus morrerem

uma noite só contou com a presença de 40 mil emocionados espectadores. O espetáculo foi produzido por dois grandes nomes: o cineasta Ernest Lubitsch e o legendário produtor Billy Rose, com direção geral de Moss Hart, e tendo como mestres de cerimônia dois dos mais famosos atores do cinema daquela época, ambos judeus, Paul Muni (pseudônimo artístico de Meshilem Meir Wiesenfreund) e Edward G. Robinson (pseudônimo de Emmanuel Goldenberg). Em julho, o espetáculo foi apresentado no Hollywood Bowl, em Los Angeles, e transmitido pela televisão.

Entretanto, o grande êxito teatral de caráter sionista da autoria de Ben Hecht ainda estava por vir. No dia 5 de setembro de 1946 estreou no teatro Alvin, na Broadway, a peça A Flag is Born (Nasce uma Bandeira), tendo nos principais papéis Paul Muni, Celia Adler (da aclamada dinastia teatral dos Adler) e um ator principiante chamado Marlon Brando. O filho de Celia Adler conta que quando a mãe chegou em casa, voltando do primeiro ensaio da peça, disse: “Tem um rapazinho no elenco, nem me lembro do nome dele, que é um grande talento”.

Ben Hecht, 1944

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contanto que vocês mesmos não fossem identificados como judeus. Seu silêncio merece a maldição. Vocês se esconderam atrás de seus sotaques britânicos, um bom disfarce para não serem vistos como judeus”. Anos depois, Brando lembrou que em uma das apresentações, quando terminou o monólogo, uma senhora levantou-se na plateia e gritou, dirigindo-se a ele: e você, onde estava? “Quis responder que quando a guerra começou eu tinha apenas 15 anos de idade, mas preferi me calar para não interferir na profunda emoção daquela mulher”. O clímax do espetáculo acontecia quando a música de Kurt Weil entrava com vigor e o elenco agitava uma bandeira azul e branca parecida com a atual bandeira de Israel. A escritora americana Miriam Chaikin, uma das colaboradoras de Bergson, escreveu: “É um canto de esperança que dá lugar a um sentimento de força e de orgulho destinado a acordar os corações adormecidos dos judeus americanos”. O escritor Victor Navasky, então

adolescente, ao fim dos espetáculos percorria a plateia com uma cesta na qual os espectadores depositavam quanto dinheiro quisessem para a causa sionista. Anos mais tarde, já bem-sucedido, ele escreveu: “O público assimilou com grande entusiasmo a mensagem da peça. Valeu-me como um despertar político para a questão de os judeus conquistarem sua pátria”. Walter Winchell, o mais famoso e respeitado jornalista americano daquele tempo, assinalou: “É uma peça que deve ser vista, ouvida e lembrada. Vai mover seus corações e fazer derramar torrentes de lágrimas dos seus olhos. Aconselho que levem muitos lenços para o teatro”. O texto continha uma corrosiva crítica quanto à atuação dos ingleses na Palestina. Em Londres, o jornal The London Evening Standard enfatizou: “Jamais um espetáculo tão anti-britânico foi apresentado num palco dos Estados Unidos”.

O volume de dinheiro arrecadado pela cesta de Navasky no Alvin e em outros teatros americanos, a par de

fundos complementares, serviu para que Hecht e Bergson comprassem uma embarcação dos anos 1930, caindo aos pedaços, chamada Argosy, incorporada depois da 2ª Guerra à Guarda Costeira dos Estados Unidos, rebatizada como Abril, e em seguida descartada como sucata. A Tyre Shipping Company, uma empresa de fachada do movimento revisionista, comprou o navio de 400 toneladas que começou a ser reformado para transportar passageiros, ou seja, imigrantes ilegais para a Palestina. Itzhak Ben Ami, um dos colaboradores de Bergson, foi incumbido de contratar a tripulação.

Anos mais tarde, ele recordou: “Eu tinha que encontrar idealistas e aventureiros dispostos a enfrentar aquela dura missão. Acabei reunindo 20 homens com 20 razões diferentes para se juntarem a nós. Não eram todos judeus. A maioria era composta por católicos irlandeses dispostos a entrar em qualquer briga contra a Inglaterra”.

Tuxedo Park, NY. “Blue Moon”, com Ben Hecht ao piano e Jimmy Salvo cantando

PERSONALIDADE

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A função de capitão coube ao veterano comandante Robert Levitan, que chamou para ser seu imediato o experiente marinheiro Walter Greaves, sobrevivente de três ataques de torpedos durante a 2ª Guerra. Um dos marinheiros, de 33 anos de idade, era um negro do Brooklyn chamado Walter Cushenberry: “Como negro, eu sabia o que era a perseguição e não me conformava com o fato de os judeus refugiados da guerra estarem sendo perseguidos”. Ainda com o nome de Abril o pequeno navio zarpou para o porto de Bouc, na França, em dezembro de 1946. Rumou para a Palestina em março de 1947, com 600 pessoas a bordo, e em alto mar recebeu o nome definitivo de SS Ben Hecht. No mar Mediterrâneo, a embarcação foi interceptada por um destróier britânico e escoltada até o porto de Haifa. Os refugiados foram levados para a ilha de Chipre e a tripulação foi encarcerada na fortaleza de Acre, de onde escapou durante o célebre e espetacular ataque conjunto da Haganá e da Irgun, tal

como mostrado no filme Exodus. O navio Ben Hecht foi incorporado à nascente marinha do Estado de Israel em 1948.

Voltando a A Flag is Born, a peça estava programada para representações no National Theater, em Washington, mas Hecht rescindiu o contrato porque o teatro não permitia a entrada de negros. Ele soube, então, que o Maryland Theater, na mesma região da capital, aceitava negros, contanto que se acomodassem no balcão. Na noite da estreia, Ben Hecht sentou-se na plateia acompanhado de dois amigos negros. Em face disso, a direção do teatro liberou ingressos para os negros em quaisquer assentos. O caso teve tanta repercussão, que a cidade de Baltimore aboliu as restrições aos negros em todas as suas casas de espetáculos.

Entretanto, enquanto Hecht era aplaudido e admirado nos Estados Unidos, a reação inglesa à peça

A Flag is Born foi devastadora. O governo britânico ficou particularmente revoltado com um artigo de Hecht sob o título O Ataque É a Melhor Defesa, no qual comparou a luta da Irgun à luta dos americanos contra os colonizadores ingleses. Lord Rothermere, dono do jornal Daily Mail, escreveu que Hecht “é um vulcão sionista vitriólico”. A embaixada britânica em Washington tentou convencer o presidente Truman a ordenar a deportação de Peter Bergson, mas seu pedido não foi atendido. Mais uma vez, Winchell saiu em defesa de Hecht evocando o mesmo exemplo. Os jornais ingleses reagiram, dizendo de uma forma ou de outra que Hecht e Winchell não passavam de “uma praga de dois idiotas”. Em 1948, a Associação dos Exibidores Cinematográficos da Inglaterra proibiu que qualquer filme que tivesse a participação de Ben Hecht fosse levado às telas de cinco mil cinemas do país. Foi uma medida que doeu em seu bolso. Os produtores de Hollywood, aos quais havia proporcionado lucros de centenas de milhões de dólares, nem mais lhe atendiam seus telefonemas. Não queriam correr qualquer risco que lhes levasse a perder o importante mercado inglês. Para minimizar seu prejuízo, Hecht concordou em receber a metade do que costumava receber por seus roteiros e inclusive concordou que seu nome não constasse nos créditos dos filmes de sua autoria. Essa proibição só foi levantada quatro anos depois e Ben Hecht fez o seguinte comentário: “Que coisa impressionante! Um grande império declarou guerra contra um homem só e depois fez a paz!” Mas a animosidade de Hecht com relação aos ingleses foi de tal natureza que, em 1972, oito anos depois da sua morte, o crítico teatral Anne Sargent, Richard Kneeland E Terry O’Quinn NA TEMPORADA DE 1980-81.

PEÇA ESCRITA POR BEN HECHT E CHARLES MACARTHUR

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31 julho 2014

Kenneth Tynan, então diretor do National Theater de Londres, decidiu encenar uma nova montagem da peça A Primeira Página. A atriz Helen Hayes, viúva de Charles MacArthur, aceitou de imediato, porém Rose, a viúva de Hecht, e portanto herdeira meio a meio dos direitos autorais, recusou-se a dar permissão para a realização do espetáculo “em um país que tanto perseguiu meu marido”. Foram necessárias muitas idas e vindas e rendas diplomáticas por parte dos britânicos até que ela permitisse o projeto.

Há pessoas nos Estados Unidos, notadamente em Nova York, que até hoje se lembram dos peculiares e inflamados discursos que Hecht costumava fazer para convencer os alienados ou para angariar fundos: ”Vou dizer-lhes algumas coisas que vocês talvez não gostem de ouvir. Eu recebi um telegrama de Tel Aviv, assinado por Menachem Begin, no qual ele me pede que façamos o possível e o impossível para ajudar os judeus que estão lutando na Terra Santa e enfrentando enormes dificuldades. Os inimigos são muito

mais numerosos do que nós, mais bem equipados e contam com recursos ilimitados. Por mais que isto não nos agrade, esta é a verdade. Vocês talvez me perguntem o que os judeus americanos têm a ganhar com o renascimento da nação de Israel. Eu lhes respondo com outra pergunta: o que vocês perderam quando seis milhões de nossos irmãos estavam sendo assassinados na Europa? Se nossa vontade e nossos espíritos forem despertados decerto venceremos! Uma nação judaica há de permitir que possamos

viver lado a lado com as demais nações do mundo. Sou obrigado a recorrer à imagem da luta de David contra Golias. Eu lhes peço, judeus, comprem uma pedra para a atiradeira de David!”.

Ben Hecht abandonou o ativismo sionista pouco depois do estabelecimento do Estado de Israel por ocasião do polêmico episódio do afundamento do navio Altalena. Para quem não está a par, vale lembrar que o Altalena foi uma embarcação carregada de armas que seriam entregues à Irgun quando as forças de defesa de Israel, embora já empenhadas na guerra pela independência, ainda não estavam organizadas em uma só unidade e sob um comando central. O julgamento de Ben-Gurion era no sentido de que o país deveria contar com um só exército e que a Irgun não poderia constituir-se como um exército em separado. Em face da obstinação da Irgun de não entregar os armamentos em seu poder, só restou a Ben-Gurion a amarga decisão de mandar bombardear e afundar o Altalena, ancorado próximo à costa de

casa de ben hecht, construída em 1888

personalidade

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da peça O Mercador de Veneza, de Shakespeare, que alguns estudiosos apontam como uma expressão de antissemitismo. Lê-se em seu rascunho: “Eu sinto muito que os judeus deixem de reconhecer Shylock como seu irmão. Jamais o considerei um vilão. Pelo contrário. Vejo-o como um dos raros heróis judeus da literatura clássica, talvez o único. Shylock foi um vingador dos insultos proferidos contra os judeus”.

Ben Hecht, um judeu acima do bem e do mal, morreu de um súbito ataque cardíaco, aos 70 anos de idade, em seu apartamento da rua 67 West, em Nova York. À beira do túmulo, seu elogio fúnebre foi feito por Menachem Begin.

hecht e selznick no set de filmagem de “adeus às armas”, 1957

ZEVI Ghivelder,ESCRITOR E JORNALISTA

BIBLIOGRAFIA

“Ben Hecht: The Man Behind the Legend”, de William MacAdams, editora Scribner, EUA, 1990. “A Child of the Century”, de Ben Hecht, editora Primus Plume, EUA, 1985.

1931 – The Front Page (A Primeira página)1932 – Scarface (A Vergonha de uma nação)1934 – Twentieth Century (Século Vinte)1934 – Viva Villa! (Viva Vila)1938 – Nothing Sacred (Nada é sagrado)1939 – Gone With the Wind (E o vento levou)1939 – Gunga Din (Gunga Din)1940 – Foreign Correspondent (Correspondente estrangeiro)1940 – His Girl Friday ( Jejum de amor)1945 – Spellbound (Quando fala o coração)1946 – Gilda (Gilda)1946 – Notorious (Interlúdio)1948 – Rope (Festim Diabólico)

1950 – Edge of Doom (Alma em revolta)1951 – Strangers on a Train (Pacto sinistro)1952 – Angel Face (Alma em pânico)1955 – The Man With the Golden Arm (O homem do braço de ouro)1956 – Trapeze (Trapézio)1956 – The Hunchback of Notre Dame (O Corcunda de Notre Dame)1957 – A Farewell to Arms (Adeus às armas)1959 – John Paul Jones (Ainda não comecei a lutar)1962 – Mutiny on the Bounty (O grande motim)1963 – Cleopatra (Cleópatra)1974 – The Front Page (Nova produção)

Principais roteiros escritos por Ben Hecht

Tel Aviv, fazendo vítimas fatais que se encontravam a bordo. Para Ben Hecht aquela foi uma ferida que jamais se fechou.

Entretanto, seu judaísmo permaneceu atuante. Em 1954 escreveu sua autobiografia A Child of the Century, aclamada pelo público e pela crítica. Em 1961 publicou o

romance Perfidy (sem tradução para o português) sobre a controvérsia até hoje existente a respeito da deportação dos judeus da Hungria para Auschwitz. Hecht deixou, ainda, um projeto inacabado sob o título Shylock, My Brother.

Trata-se de um estudo sobre a personalidade do personagem judeu

33 JULHO 2014

m 24 de maio, um atirador disparou no Museu Judaico de Bruxelas, em uma das principais capitais diplomáticas do planeta,

e ceifou a vida de quatro pessoas. No dia seguinte, eleições para o Parlamento europeu produziram contornos claros de um fenômeno temido há anos: o avanço da extrema direita, com raízes historicamente fincadas na xenofobia e no antissemitismo.

A votação para uma das instituições mais opacas da União Europeia, geralmente condenada às margens do noticiário, ganhou destaque inaudito. Serviu para uma miríade de análises e interpretações, levando em consideração as especificidades de cada um dos 28 países que integram o bloco sediado em Bruxelas. No entanto, um fenômeno inquestionável repousa sobre o avanço das forças políticas ligadas

ao nacionalismo exacerbado, com plataforma anti-imigração e rechaço à integração do continente.

“É um terremoto político”, comentou Manuel Valls, primeiro-ministro francês, sobre os resultados inéditos em seu país. A Frente Nacional, de extrema direita, amealhou 26% dos votos, deixando para trás a oposição de direita, o UMP, e o governista PS, do presidente François Hollande. A líder do partido, Marine Le Pen, persegue a estratégia de levar a organização fundada por seu pai, Jean Marie, aos holofotes principais da política francesa, ambicionando nada menos do que conquistar a presidência do país em 2017.

Negacionista contumaz do Holocausto, Jean Marie Le Pen liderou a FN de sua fundação, em 1972, até 2011. Tentou a presidência do país pela primeira vez em 1974, quando obteve escassos

E

O avanço doracismo na Europa

A Europa, mergulhada na sua mais grave crise social

e econômica desde a 2ª Guerra Mundial, resgata

fantasmas como o terrorismo e o racismo, responsáveis

por instaurar no continente uma atmosfera de temor,

incerteza e desilusão.

POR JAIME SPITZCOVSKY

0,74% dos votos, capitaneando um partido formado, entre outros, por ultracatólicos e colaboracionistas franceses do nazismo. Na eleição presidencial de 2012, Marine alcançou a marca de 18%, avançando sobre o voto de operários e da classe média cercada pela crise socioeconômica e por um horizonte sombrio de futuro. O desemprego na França orbita na casa dos 10%.

A herdeira de Jean Marie Le Pen se esforça para reconstruir a imagem do partido, tentando, por exemplo, afastar o rótulo de antissemita. Mas as conexões familiares e as raízes históricas de seu movimento alimentam uma caudalosa desconfiança. Em nota oficial, o Conselho Representativo das Instituições Judaicas da França (CRIF), organização “guarda-chuva” da comunidade francesa, declarou: “A História nos ensinou que crises econômicas promovem

ATUALIDADES

ATUALIDADEs

34

Manifestação em homenagem às vítimas do atentado do Museu Judaico da Bélgica, Paris

Na Alemanha, Grécia e Hungria, grupos abertamente antissemitas e embebidos no neonazismo registraram conquistas. O Partido Nacional Democrático alemão recebeu 1% dos votos, responsáveis por uma entre as 751 cadeiras do Parlamento europeu. Udo Voigt, líder do partido, tem enfrentado diversas tentativas de banir o partido, criado em 1964 e que nunca conseguiu juntar eleitores em número suficiente para participar do Parlamento alemão. Agora, no entanto, o neonazista Voigt frequentará a sede do legislativo da União Europeia.

O húngaro Jobbik contabilizou 15% dos votos, transformando-se na segunda maior força política do país. Outro partido antissemita, o grego Aurora Dourada, ultrapassou a marca de 9%. Os dois grupos também alimentam racismo em relação a ciganos e outras minorias.

“Acredito firmemente que deve ser banido”, afirmou sobre o Aurora Dourada o vice-ministro da Justiça, Transparência e Direitos Humanos da Grécia, Konstantinos Karagounis, em entrevista ao jornal israelense

“The Jerusalem Post”. Interessante notar sua mudança de posição. Antes da eleição de maio, Karagounis havia classificado a proibição do grupo neonazista de “contra- produtiva”.

Vários líderes do Aurora Dourada já foram presos, depois do assassinato de um militante esquerdista, acusados de “dirigir uma organização criminosa”. Uma batalha jurídica se iniciou, e a Justiça grega terminou liberando a participação dos neonazistas gregos na eleição para o Parlamento europeu.

Depois de apuradas as urnas, Marine Le Pen se apressou a anunciar a formação de um bloco de extrema direita no Parlamento europeu, ao lado de aliados vindos da Bélgica, Holanda, Áustria e Itália. Brandiam como prioridade impedir o avanço da integração continental. Do lado de fora do Legislativo, em Bruxelas, manifestantes gritavam “fascistas na prisão”.

Embora os partidos tradicionais ainda mantenham a maioria dos votos na Europa, a extrema direita e, em geral, novos partidos à esquerda abocanham fatias crescentes do eleitorado, apoiados num discurso de mudanças. Na Espanha, o Podemos, criado a partir dos protestos de rua, quase chegou à marca de 10% dos votos, enquanto na Grécia, com 26,6%, o vencedor foi o Syriza, cujo líder, Alexis Tsipras, qualificou de “catastróficas” as condições impostas pela União Europeia e pelo Fundo Monetário Internacional em seu auxílio financeiro a Atenas.

Pesquisa da Liga Antidifamação, instituição norte-americana arquitetada para auscultar a antissemitismo no planeta, apontou a Grécia como o país com maior

nacionalismo e isolacionismo, que são acompanhados pela rejeição ao outro, por sentimentos racistas, xenófobos e antissemitas”.

O fotógrafo e pintor francês Ron Agam, expoente da comunidade judaica, desenhou um quadro desolador: “A democracia da França corre perigo”, afirmou em entrevista ao site algemeiner.com. “Judeus na França estão agora ensanduichados entre um crescente antissemitismo dos elementos do islamismo radical francês e, uma crescente extrema direita que acabará revelando sua face verdadeira mais cedo ou mais tarde”.

Além da FN, cruzando o canal da Mancha, o Partido pela Independência do Reino Unido promove ações para rejeitar o rótulo de antissemitismo. Seu líder, Nigel Farage, prefere descrever o ideário como “anti-imigração e anti-integração europeia”, e pode atualmente gabar-se de um feito histórico: com 27% dos votos, deixou para trás os tradicionais trabalhistas e conservadores, que monopolizam há décadas a vida política britânica.

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de mais diálogo sobre como combater o ódio, a xenofobia e o antissemitismo”, exortou comunicado das lideranças comunitárias búlgaras.

Pululam no continente outros episódios de intolerância. No dia 4 de maio, num subúrbio de Bruxelas, a polícia recorreu a jatos d´água para dispersar cerca de 500 participantes da “Primeira Conferência Europeia da Dissidência”, arquitetada pelo antissemita belga Laurent Louis e que havia sido proibida pelas autoridades locais. Entre os convidados do evento, o infame artista francês Dieudonné M´bala M´bala, um dos principais porta-vozes do antissemitismo contemporâneo.

Dias depois, e às vésperas das eleições para o Parlamento europeu, o atentado contra o Museu Judaico de Bruxelas. A Europa do século 21 não pode tolerar a volta da mácula do antissemitismo, do racismo e da xenofobia. Cabe às autoridades europeias agir, com vigor e rapidez, para que a intolerância retorne à lata de lixo da História.

1. Gabor Vona, líder do Jobbik húngaro 2. marine Le Pen, A herdeira de Jean Marie Le Pen 3. Ronald Lauder fala com jornalistas à saída do museu judaico de bruxelas 4. cerimônia religiosa pelas vítimas do museu judaico

índice do sentimento racista, excetuando Oriente Médio e norte da África. Segundo o levantamento, 69% dos entrevistados sustentaram visões antissemitas. Um exemplo: registrou-se 85% de aprovação ao mito “os judeus detêm poder demasiado no mundo dos negócios”.

Em Tessalônica, no final de maio, vândalos atacaram o cemitério judaico. Hoje restam na cidade 1,5 mil judeus, enquanto antes do Holocausto a comunidade reunia 50 mil pessoas. Após o ataque, Evangelos Venizelos, ministro das Relações Exteriores da Grécia, declarou que seu governo “fará tudo o que for possível para encontrar e prender os perpetradores desse ato antissemita e odioso, que vai de encontro aos valores democráticos e de tolerância da sociedade grega”.

Enquanto o governo grego promete reagir, na Bulgária a comunidade judaica local pediu às autoridades mais proteção e a prisão do responsável pelas pichações antissemitas feitas no muro da sinagoga da capital, Sofia, no começo de junho. “Precisamos, também,

JAIME SPTIZCOVSKY,foi editor internacional e correspondente da Folha de S. Paulo em Moscou e em Pequim.

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a rua central do bairro do Bom Retiro, a José Paulino, funcionou o Bar Jacob, único endereço que muitos

viajantes traziam no bolso no longo trajeto entre o Leste europeu e o porto de Santos, no litoral da capital.

Aberto em 1928, o bar e mercearia de Jacob Givertz já era um ponto estabelecido quando as maiores ondas migratórias de judeus chegaram a São Paulo, no fim dos anos 1930, em decorrência da eclosão da 2ª Guerra Mundial na Europa. Parentes e amigos informavam em cartas aos interessados em cruzar o oceano Atlântico que, quando chegassem a São Paulo, procurassem um judeu simpático, sempre atrás do balcão do estabelecimento administrado por Givertz, a mulher Anna, natural de Odessa, na Ucrânia, e as quatro filhas.

No endereço onde hoje funciona uma loja de roupas de proprietário coreano, um grande balcão de madeira revestido com mármore dividia espaço com poucas mesas onde clientes se revezavam para alimentar o corpo com as especialidades iídiches e o espírito das tradições que remontavam às suas origens. Era no Bar Jacob que muitos imigrantes judeus recém-chegados ao Brasil recebiam as cartas dos parentes que haviam deixado para trás.

Nessa época, o Bom Retiro já estava consolidado como principal destino final de judeus vindos da Europa atraídos pela presença de parentes e conterrâneos. A formação da colônia judaica no bairro intensificou a atividade comercial praticada na região, impulsionada, no início do século 20, pela construção da Estação da Luz, entre outras obras viárias, que trouxe prosperidade ao bairro.

Npor Zevi Ghivelder

A história do bar jacob, referência para os judeus

Entre garrafas de vinho, barris de arenque importado

e conservas de pepino azedo, muitos imigrantes judeus

encontraram a primeira referência familiar na nova cidade

que escolheram morar, a então quase rural São Paulo do

fim da década de 1920.

POR Mariana Pollara Zylberkan

Antes disso, ainda nas últimas décadas do século 19, o Bom Retiro teve uma participação mais bucólica na história de São Paulo. As margens dos rios Tietê e Tamanduateí, que circundam o bairro, abrigaram chácaras e fazendas da elite paulistana que para lá se dirigiam em busca de momentos de lazer.

A vocação pacata do bairro mudou com a chegada da estrada de ferro construída pela São Paulo Railway, que ligava o porto de Santos ao interior paulista produtor de café. Nas proximidades da Estação da Luz, foram construídos galpões para armazenar a carga a ser escoada ao porto, dando início, assim, ao desenvolvimento econômico do bairro que, na década de 1930, teve seu ápice com a consolidação do comércio através dos imigrantes judeus.

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No Bar Jacob, os recém-chegados encontravam crédito para comprar os primeiros insumos, recomendação de emprego e fiador para assinar o contrato de aluguel, no caso, o próprio Jacob Givertz, que ajudou, ao lado de muitos conterrâneos, a estabelecer o primeiro polo judaico na cidade de São Paulo. Em 1934, o primeiro censo do estado de São Paulo estimou em 4,5 mil os judeus do bairro do Bom Retiro, número que representava 36% dos moradores do distrito.

A disponibilidade de estender a mão a desconhecidos, além de representar um dos valores judaicos mais valiosos, era uma forma desse imigrante da cidade polonesa de Rubishoff, localizada a 18 quilômetros da fronteira com a Ucrânia, multiplicar a prosperidade que conquistou, apesar de tantos quilômetros distantes de suas origens.

O então rapaz de 18 anos, que deixou a família para encontrar o irmão mais velho, estabelecido há alguns anos em Nova York, já não teve muita sorte logo no início. Diagnosticado com conjuntivite, Givertz foi proibido pela vigilância sanitária de desembarcar na cidade americana, que sofria de um surto de tracoma, doença oftalmológica mais agressiva do que a branda inflamação que o acometeu. Mesmo assim, ele foi obrigado a seguir para a próxima parada do transatlântico: a cidade de Buenos Aires.

Às margens do Rio da Prata, o jovem imigrante polonês encontrou uma cidade pujante, com uma elite disposta a desfrutar da recém-adquirida prosperidade econômica. Em 1914, um ano antes de o futuro fundador do Bar Jacob desembarcar em Buenos Aires, a Argentina havia acabado de passar, em menos de 30 anos, de importador para principal

produtor de trigo da América do Sul, o que fez da capital portenha a segunda cidade mais importante das Américas, atrás somente de Nova York.

No mesmo período, impulsionada pela riqueza vinda do campo, a população de Buenos Aires saltou, entre 1895 e 1914, de 660 mil para 1,5 milhões de habitantes, sendo que um terço eram estrangeiros. Entre os 94 mil russos e poloneses que moravam na Argentina nas primeiras décadas do século 20, Givertz logo definiu o destino que parecia carregar junto com o próprio nome. Givertz é uma corruptela da palavra em polonês que significa condimento. Ele conseguiu emprego como garçom em um bar à beira do rio da Prata, na região da cidade muito procurada, na época, para passeios em família. Lá foi inaugurado o primeiro passeio público de Buenos Aires, o Alameda.

estação da luz, são paulo, 1920

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Além do trabalho de garçom, Givertz encontrou na cidade de Buenos Aires a companheira de toda a vida e mãe de suas quatro filhas: a judia natural de Odessa, Anna Roubinovitch. Eles se conheceram entre uma celebração e outra da comunidade judaica polonesa em Buenos Aires e se casaram quando Anna completou 16 anos. Jacob tinha 21 anos.

Assim como o marido, Anna imigrou para a cidade de Buenos Aires em meio a circunstâncias determinadas por terceiros. Caçula, Anna era ainda criança quando embarcou em um navio rumo à América do Sul acompanhada da mãe, Fany Roubinovitch, para reencontrar a irmã mais velha, Feigue, que havia imigrado para a Argentina para fugir da perseguição da polícia czarista.

Por influência do namorado, Feigue Roubinovitch pertencia a um grupo de comunistas que enfrentavam a estrutura política russa totalitarista. O ativismo político da primogênita era algo inimaginável por seus pais, até o dia em que o namorado comunista lhe confiou a guarda de sua arma quando percebeu o cerco do exército czarista se fechar ao seu redor. Os oficiais chegaram a vasculhar a casa de Fany e seu marido em busca de armas e panfletos propagandistas da causa comunista. Para a sorte de todos na família, sua mulher pensou rápido e, diante do alarde dos vizinhos sobre a invasão dos oficiais no vilarejo em que moravam, escondeu o revolver dentro do sutiã. Passado o susto, o simples vendedor de frutas de Odessa decidiu pelo bem de todos embarcar a filha e o namorado comunista para se casarem na América do Sul. Na Rússia pré-comunista, os cidadãos que ousassem se opor ao regime czarista eram enviados a cumprir penas perpétuas na Sibéria.

Diante da escolha entre a Sibéria e a América, Moshe Rabinovitch achou que o segundo destino seria melhor para sua família. Ele dera como certo o envio da família para as terras isoladas no norte do Cazaquistão ao descobrir o envolvimento da filha mais velha, Feigue, com grupo de rebeldes comunistas contrários à ditadura czarista.

Anos depois, em 1913, saudosa da primogênita e ansiosa para conhecer os netos nascidos no além-mar, a então futura sogra de Jacob Givertz embarcou rumo à Argentina com a filha caçula. Já em terras portenhas, Fany foi informada sobre o falecimento do marido e decidiu não voltar mais a Odessa.

Em Buenos Aires, Jacob e Anna geraram as filhas Rebeca e Olga. Mais uma vez, o casal seria afetado por circunstâncias externas que os empurrariam a se mudar novamente.

A partir de janeiro de 1919, Buenos Aires foi afetada pelo seu primeiro pogrom contra os judeus durante evento histórico conhecido como Semana Trágica. Uma série de motins foi deflagrada na capital portenha por integrantes do movimento socialista contra as autoridades policiais e grupos paramilitares.

Neste período, Buenos Aires se tornou palco da deflagração de uma greve organizada por trabalhadores de diversos setores da economia para exigir redução da jornada de trabalho e validação dos direitos trabalhistas. A força policial, então, dirigiu seus contingentes a combater o que a população acreditava ser a razão do caos argentino no início do século 20: a conspiração comunista arquitetada por imigrantes judeus vindos da Rússia que viviam no país.

Sem dominar o idioma, ele soube se destacar no trabalho ao treinar e conseguir equilibrar no mesmo braço até cinco pratos de uma só vez. Anos depois, já dono do Buffet Jacob, o imigrante polonês soube perpetuar a lição aprendida para atrair a atenção dos clientes ainda no primeiro emprego em terras americanas.

Nos Bar Mitzvot e casamentos que iria servir muitos anos depois, Givertz ensaiava uma espécie de coreografia com seus garçons para anunciar o começo dos serviços. Enfileirados e vestidos em ternos brancos, os garçons atravessavam o salão de festas carregando bandejas na altura dos ombros recheadas com gefilte fish e enfeitadas por velas reluzentes. O efeito espetaculoso era ainda maior quando as luzes do salão eram apagadas e a iluminação era feita apenas pelo fogo que vinha das bandejas.

Jacob Givertz

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Casas de famílias judias e sinagogas foram destruídas arbitrariamente por integrantes de grupos paramilitares e muitos imigrantes tiveram que sair da Argentina. Pelo menos, um dos 700 mortos durante a Semana Trágica era judeu.

Diante do clima de instabilidade, Givertz e sua família decidiram aceitar o convite do irmão de Anna, que prosperava à frente de uma loja de móveis usados na rua Dom José de Barros, no centro de São Paulo. Casado e pai de duas filhas, Givertz se mudou para São Paulo.

Durou pouco o tempo longe das mesas e panelas. Dois anos depois, Givertz abriu o Bar Jacob que, mais tarde, daria origem aos serviços de bufê para casamentos e Bar Mitzvot da comunidade judaica paulistana.Desde o dia que abriu as portas, o Bar Jacob sempre foi um negócio estritamente familiar. No Brasil, Givertz e Anna tiveram mais duas filhas: Aida e Carlota. As quatro moças se habituaram a dividir a rotina entre as aulas no Grupo Escolar João Kopke e na Escola Tiradentes e o trabalho atrás do balcão no bar do pai.

A abertura das portas do bar todas as manhãs era feita por elas, que ainda lavavam o balcão de mármore e recebiam os blocos de gelo entregues pela Companhia Antártica, logo cedo, antes de os clientes chegarem. Como o bar ficava aberto até a madrugada, Anna e o marido sempre pouparam as filhas do trabalho noturno, ficando eles responsáveis por encerrar as atividades, todos os dias.

Cotidianamente, Jacob pegava o bonde na Avenida Tiradentes rumo ao Mercado Municipal de São Paulo para fazer as compras que abasteceriam o bar. Após empacotar

as encomendas, ele voltava para o bar de charrete, onde a mulher e as filhas o aguardavam para ajudar a descarregar e guardar as compras.

Quase diariamente era o próprio Jacob quem abastecia os tonéis de madeira onde eram feitas as conservas de pepino azedo. Os pepinos frescos eram lavados e acomodados dentro de uma solução composta por partes iguais de vinagre e água, temperada com cabeças de alho e ramos de dill. A iguaria simples era também a mais versátil e popular entre os clientes – acompanha os sanduíches de pastrami no pão preto ou servia de acompanhamento para o arenque, que repousava sempre à mostra na vitrine refrigerada por enormes barras de gelo.

Era sobre os tonéis de madeira, onde as conservas de pepino eram curtidos lentamente no tempero ácido, que as filhas caçulas de Jacob costumavam sentar-se para escutar as corridas de

Durou pouco o tempo

longe das mesas e

panelas. Dois anos

depois, Givertz abriu

o Bar Jacob que, mais

tarde, daria origem

aos serviços de bufê

para casamentos

e Bar MITZVOT da

comunidade judaica

paulistana.

Anna e Jacob Givertz com o genro Leopoldo de avental

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cavalo transmitidas pelo rádio. Era no mesmo canto do Bar Jacob que a filha mais nova Carlota passou os primeiros meses de vida, acomodada dentro de uma caixa de maçãs, forrada por cobertores, e sempre sob o olhar atento da mãe Anna, que assumia a dupla função de trabalhar no bar e cuidar das quatro filhas.

No nascimento de Carlota, Jacob tinha esperança de que seu desejo de ser pai de um filho homem – para perpetuar seu sobrenome nas gerações anteriores – finalmente seria atendido. Assim que a mulher Anna começou o trabalho de parto na casa da família, um sobrado a poucos metros do bar, Jacob colocou sobre o balcão do bar todas as garrafas de bebida que dispunha e prometeu uma rodada grátis aos clientes se a parteira voltasse com a notícia de que ele seria pai de um menino.

Diante da frustração, Jacob guardou calmamente as garrafas de volta nas prateleiras e os clientes perderam a chance de tomar um trago grátis. Mesmo assim, ele conseguiu suprir o desejo de ser pai de um homem através da terceira filha, Aida, de personalidade destemida e companhia constante do pai nas

idas ao barbeiro. Jacob levava a terceira filha e também a caçula para cortar os cabelos no estabelecimento voltado apenas para homens.

Enquanto de dia o Bar Jacob funcionava como mercearia, comercializava conservas e outros produtos importados, à noite o local virava ponto de encontro de atores e atrizes do teatro iídiche, que forravam as paredes do estabelecimento com cartazes escritos no alfabeto hebraico para divulgar as peças que encenavam. Era lá também que os grupos de teatro vendiam ingressos para as apresentações.

Tanto as filhas quanto Jacob e Anna se habituaram a fazer as refeições no próprio bar e, como lembra sua filha caçula Carlota, a única ainda viva, sempre após os empregados. Ela conta que o pai sempre colocava em prática a máxima de que é preciso antes garantir a alimentação daqueles que dependem de você para só depois sentar-se à mesa.

Apesar do clima familiar do bar Jacob, não eram poucas as vezes que clientes bebiam além da conta

e, mesmo nesses momentos, a autoridade imposta pelo carisma de Givertz convencia os beberrões a deixar as confusões da porta do bar para fora. “Vamos brigar lá fora”, repetiam os mais exaltados.

Foi justamente por ser pai de quatro filhas que Jacob deixou o Bom Retiro por volta de 1938. Nessa época, o prefeito de São Paulo era Prestes Maia que, empenhado em concluir as obras de alargamento da Avenida Ipiranga, parte integrante de seu Plano de Avenidas, que visava expandir o centro, proibiu as prostitutas de trabalharem na avenida o que empurrou o meretrício para as pacatas ruas do Bom Retiro.

A transformação do bairro em polo de prostíbulos se deu pela proximidade com a linha de trem da ferrovia Santos-Jundiaí e também devido à própria formação pouco planejada das vias, que desenhou muitos becos e ruas sem saída, onde qualquer atividade podia ser praticada de forma escondida, longe dos olhos de quem estava ao redor.

Assustado com a nova vizinhança que passou a circundar o Bar Jacob, seu fundador decidiu partir com a família para a cidade de Santos, no litoral paulista. Todas as economias juntadas ao longo dos anos foram empenhadas na abertura de um restaurante no balneário. Infelizmente, as circunstâncias não favoreceram a nova empreitada e após um par de anos todos voltaram ao Bom Retiro.

Algum tempo depois de voltar a São Paulo, Givertz percebeu que seria mais rentável apostar na diversificação do negócio e, por isso, começou a se dedicar a organizar festas de casamento e Bar Mitzvot da comunidade judaica paulistana. interior do Bar Jacob. as filhas Aida e Carlota

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As primeiras festas foram realizadas em um salão no subsolo da sinagoga localizada na Rua Newton Prado, no Bom Retiro. As iguarias do Leste europeu eram servidas à francesa por garçons trajados de branco. O próprio Jacob acompanhava o serviço de perto e se tornava inconfundível no salão graças à gravata borboleta que sempre usava e se tornou sua marca registrada. O requinte do bufê era sempre finalizado com a distribuição aos convidados de maçãs devidamente arrumadas em bandejas de prata. Importadas e caras na época, as maçãs sempre acabavam antes mesmo de os garçons alcançarem o centro do salão com suas bandejas.

Aos poucos os negócios foram prosperando, apesar de Jacob sempre receber os pagamentos de seus clientes de forma parcelada. Nessa época, o Buffet Jacob dividia as atenções dos convidados de seus clientes com outra atração obrigatória nas celebrações da comunidade judaica. A música ao

vivo ficava a cargo de Samuel e sua Orquestra, conjunto musical especializado em canções típicas judaicas, liderado pelo barbeiro que se transformava em violinista após o expediente. Samuel dividia as cadeiras na barbearia e também o palco nas festas com um rapaz que tocava acordeom. Além de músico e barbeiro, ele também fazia bicos como eletricista.

Os anos foram passando e Jacob viu uma a uma suas quatro filhas casarem e também se despediu tristemente de sua companheira de vida, Anna, que faleceu jovem após sofrer cinco ataques cardíacos.

Após a perda irreparável, Jacob se associou ao genro Leopoldo, marido de sua filha Olga, para abrir o Salão Israel, em 1951. A nova empreitada levou Jacob a voltar à mesma Rua José Paulino que o acolheu quando desembarcou com a família em São Paulo e também onde ele se consolidou como referência de comida e solidariedade judaica.

Com a saúde cada vez mais debilitada pela evolução da diabetes, que acometia seus pés com infecções recorrentes, Jacob foi aos poucos deixando os negócios sob a responsabilidade do genro e da filha Olga, porém, nunca deixou de trabalhar. Alguns anos depois, ele ainda abriu a Mercearia e Buffet Jacob na Rua Prates, em frente ao Parque da Luz.

Alguns anos depois de sua morte, as festas no salão Maison Suisse, um dos últimos endereços onde o Buffet Jacob atuou, não tiveram mais forças para continuar e cessaram. Mesmo assim, a história de Jacob Givertz e seu Bar Jacob ecoam na memória dos muitos imigrantes que frequentaram o estabelecimento e experimentaram, além dos pratos lá servidos, a simpatia do senhor sempre de gravata borboleta.

mariana pollara zylberkan,é bisneta de Jacob Givertz. Baseou-se em relato e guardados de ILDA KLAJMAN, neta de Jacob Givertz

As festas do Buffet Jacob, sendo que a foto do meio é a do Barmitzvá de Sergio Ferd o primeiro neto de Jacob

PERSONALIDADE

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rin recebeu vários prêmios pela contribuição que deu ao mundo, juntamente com Larry Page, também sócio cofundador da Google. Em novembro de 2009, ainda segundo a revista, Brin e Page estavam em 5º lugar

entre as pessoas mais poderosas do mundo. Seu invento literalmente mudou a forma como o mundo funciona e vem influenciando a vida de bilhões de habitantes do planeta. Pode-se afirmar que a Google indiscutivelmente entrou na cultura predominante – o verbo “to google” foi recém-incluído no Oxford English Dictionary.

A missão da Google Inc. com receitas de mais de RS$ 6 bilhões ao ano é “Organizar o mundo da informação e torná-lo universalmente acessível e útil” e seu lema é “Não seja perverso”.

Deixando a União Soviética

Sergey nasceu em 21 de agosto de 1973, em Moscou, na Rússia. Era o primeiro filho de dois matemáticos judeus, Michael e Eugenia, ou Genia como é chamada. Em Moscou os Brin viviam em um pequeno apartamento de três quartos, com 35 metros quadrados, no centro da cidade, que compartilhavam com a avó paterna de Sergey.

Em 1979, quando ele tinha apenas seis anos, Sergey deixou a então União Soviética junto com os pais e seu irmão mais novo, Samuel, rumo aos Estados Unidos. A decisão de deixar a Rússia tinha sido tomada por seu pai, desgostoso de como eram tratados os judeus na União Soviética. Oficialmente, não havia antissemitismo. Em 1931, o próprio Stalin escrevera que “o antissemitismo era um fenômeno profundamente hostil ao regime soviético”. Mas, na realidade, o milenar antissemitismo russo permeava toda a sociedade e os judeus eram muito discriminados.

O pai, Michael Brin formara-se em Matemática na Universidade Estadual de Moscou; sua esposa, Genia, também se formara na Escola de Mecânica e Matemática de Moscou. Apesar das dificuldades que teve que enfrentar por causa do antissemitismo, Michael conseguiu concluir seu doutorado, mas sua vida acadêmica estava estagnada.

Tentando impedir os judeus de ocuparem postos na alta hierarquia profissional, os dirigentes comunistas dificultavam e, em certos casos, negavam-lhes a entrada às universidades. No Departamento de Física da Universidade de Moscou, por exemplo, não eram aceitos porque líderes soviéticos não confiavam neles

b

Sergey Brin, o homem por trás da Google

Aos 40 anos de idade, Sergey Mikhaylovich Brin é

cofundador e Diretor de Projetos Especiais na Google Inc.

Sergey é dono de uma fortuna pessoal avaliada, hoje,

em US$ 30 bilhões. Na lista da Forbes de 2013, ele estava em

21º lugar entre as 100 pessoas mais ricas do mundo.

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JULHO 201447

para trabalharem na pesquisa de foguetes nucleares. O próprio pai de Sergey teve que abandonar seu sonho de se tornar um astrônomo. Ainda na Universidade de Moscou, as admissões de alunos para outros departamentos eram decididas através de exames. Os judeus eram avaliados em salas diferentes das de outros candidatos – morbidamente chamadas de “câmaras de gás” – e eram avaliados com severidade ainda maior.

Numa entrevista, Sergey conta que, em 1977, após ter participado de uma conferência de Matemática em Varsóvia, seu pai disse à sua mãe que era hora da família deixar o país. Na conferência, ele havia interagido livremente com os colegas dos Estados Unidos, França, Inglaterra e Alemanha e descobrira “que os intelectuais do Ocidente não eram monstros”, como a propaganda soviética queria

fazer parecer. Preocupava muito aos pais que seus filhos enfrentassem a mesma discriminação que eles, caso permanecessem na Rússia.

Em setembro de 1978 seus pais solicitaram formalmente um visto de saída. Michael foi imediatamente demitido e Genia também foi obrigada a deixar seu emprego. Nos oito meses seguintes, sem qualquer renda fixa, eles viram-se forçados a aceitar empregos temporários enquanto esperavam, não sabendo se seu pedido de visto seria concedido. Foi nesse período que Michael começou a ensinar a Sergey programação de computadores.

Muitos judeus soviéticos nunca conseguiram obter vistos de saída, mas os Brin tiveram sorte e, em maio de 1979, a família foi autorizada a deixar o país. Eles estavam entre os últimos judeus que tiveram a permissão de deixar a União

Soviética antes da era de Gorbachev. Com a ajuda da HIAS – Hebrew Immigrant Aid Society, estabeleceram-se nos Estados Unidos. No decorrer de sua história, a instituição ajudou milhares de judeus a deixar países onde eles corriam risco de vida e a construir vida nova no mundo livre. Em reconhecimento, em 2009, Sergey doou US$ 1 milhão à instituição, onde sua mãe, Eugenia, é hoje membro do Conselho.

A vida na América

Quando a família finalmente aterrissou na América, em outubro de 1979, os Brin foram recebidos no Aeroporto Kennedy, em Nova York, por amigos de Moscou. A primeira lembrança que Sergey guarda dos EUA foi seu deslumbramento, sentado no banco de trás de um carro, com os veículos gigantescos voando pela autoestrada, enquanto seus anfitriões os levavam para Long Island.

1 MIchael BRIN e euGENIA EM COLLEGE PARK, MARYLAND 2. SERGEY COM O PAI EM WASHINGTON, 1980 3. SERGEY BRIN

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PERSONALIDADE

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Os Brin estabeleceram-se em Adelphi, Maryland. Encontraram uma casa para alugar, simples, de blocos de concreto, em um bairro de classe média baixa, perto da Universidade de Maryland e matricularam o filho na Paint Branch Montessori School. Seu pai ingressou no Departamento de Matemática da Universidade e sua mãe conseguiu um emprego na NASA, em pesquisa na área de meteorologia.

Para Sergey, seu primeiro ano nos Estados Unidos foi difícil; seu conhecimento de inglês era rudimentar e ele falava com um sotaque pesado. Pressupõe-se sempre que crianças e jovens aprendem rapidamente um novo idioma, mas ele teve dificuldades em aprender o inglês.

Segundo seus professores, ele não era uma criança especialmente sociável, mas tinha autoconfiança de ir atrás de suas ideias. Sua vida girava em torno de quebra-cabeças, mapas e joguinhos de matemática que ensinavam a multiplicar.Para os pais de Sergey, aquela era uma vida nova e livre. Livres para

trabalhar e ir onde quisessem e serem abertamente judeus. Eles nunca foram religiosos. Para eles, como para muitos outros imigrantes da Europa Oriental, ser judeu era algo étnico, baseado em valores e tradições, não uma experiência religiosa. Michael costumava dizer que se havia um valor judaico que a família Brin mantinha sem restrições este era o amor aos livros e à educação.

Apesar de Sergey frequentar a escola pública, recebeu a maior parte da sua educação em casa. Seus pais, ambos matemáticos, alimentaram o seu interesse por essa ciência e pelo domínio da língua russa. Quando ele tinha nove anos, o pai lhe deu seu primeiro computador, um Commodore 64. A partir de então, seu interesse pela Matemática e pela Computação disparou.

Em setembro de 1990, após ter frequentado o Ensino Médio na Eleanor Roosevelt High School, o rapaz entrou na Universidade de Maryland, para estudar Matemática e Ciências da Computação. Em meados de 1990, semanas antes de fazer 17 anos, seu pai chefiou

um grupo de alunos superdotados em Matemática em um programa de intercâmbio de duas semanas na União Soviética. Ele decidiu levar também a sua família. Seria uma oportunidade de visitarem os familiares que ainda viviam em Moscou, inclusive o avô paterno de Sergey, ele também um PhD em Matemática, como Michael. Na época o império soviético se desmoronava e, no olhar desanimado de resignação das pessoas, Sergey pôde ver, em primeira mão, o futuro sombrio que teria sido o seu. No segundo dia da viagem, chamou o pai e lhe disse: “Obrigado, por nos ter tirado da Rússia”.

Sergey formou-se pela Universidade de Maryland em 1993. Seus dons para as Ciências Exatas não passaram despercebidos. Ganhou uma bolsa da Fundação Nacional de Ciências e foi para a Universidade de Stanford para uma pós-graduação em Ciências da Computação. O M.I.T. o rejeitara... Já em 1993, era estagiário na Wolfram Research, fabricante do software Mathematica.

Atraente, com um sorriso fácil, e uma energia sem fim, Sergey, transborda uma grande autoconfiança. Em Stanford, era conhecido por seu hábito de irromper na sala dos professores sem bater à porta. Um de seus orientadores se recorda: “Ele era um jovem impetuoso, um tanto atrevido, costumava entrar nas salas dos professores sem bater na porta. Mas era tão inteligente, que aquilo se esvaía, e nós o relevávamos”. Sergey participava da vida social da Universidade e praticou todos os tipos de esportes: gostava de esquiar, patinar, tudo. O pai contou que certa vez lhe perguntou se estava fazendo algum curso avançado. Ao que ele respondeu “sim, natação avançada”.a família brin, 2002

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de pesquisa usado para explorar a Web. Juntos eles desenvolveram o algoritmo PageRank. Após analisar as informações do BackRub com desse algoritmo, perceberam que um mecanismo de busca baseado no PageRank produziria melhores resultados do que as técnicas existentes.  Baseavam-se na ideia de usar os links entre as páginas Web para classificar sua importância relativa. Usando os conceitos acadêmicos de citações nas pesquisas como medida de local e valor, Larry e Sergey aplicaram essa ideia à Web: se uma página se liga à outra, de fato estaria “citando” ou lançando um voto para aquela página.

BackRub, sua primeira ferramenta de busca, foi instalada nos servidores da universidade em 1996, mas passou a ocupar tanto espaço de banda larga que ficou difícil para a instituição gerenciá-la. Em 1997, os dois “cientistas” decidiram renomear sua ferramenta para “Google”, baseado em “googol”, termo matemático utilizado para um número muito grande, mas não infinito. Um googol equivale a 1,0 × 10100, ou seja, o dígito 1 seguido de cem zeros. Assim, Google se tornava um nome que abria infinitas possibilidades de informação.

1 Ferramenta de Busca é um programa para procurar palavras-chave, fornecidas pelo usuário, em documentos e bases de dados. No contexto da internet, um motor de busca permite procurar palavras-chave em documentos alojados na World Wide Web, como aqueles que se encontram armazenados em websites.

sergey brin e larry page

a sua contribuição decisiva, um trabalho intitulado “The Anatomy of a Large-Scale Hypertextual Web Search Engine”, ou “A Anatomia de um Motor de Buscas na Web para Hipertexto, de Larga Escala”.

Sergey conta que ele e Larry “abarrotaram seus dormitórios com computadores baratos” e testaram uma nova ferramenta de busca1 na Web. O projeto cresceu rapidamente. Os dois logo perceberam que tinham conseguido criar um mecanismo de busca muito superior aos que existiam até então.

Criando o Google

A ferramenta de busca criada por Brin e Page classifica as páginas da Web com base na popularidade e possibilita fazer pesquisas na internet sobre qualquer tipo de assunto ou conteúdo.

Como vimos acima, a ideia do Google nasceu quando Brin e Page estavam trabalhando em um projeto de pesquisa para sua tese. Começaram por explorar as propriedades matemáticas da Rede Mundial (WWW). Seu projeto de pesquisa foi inicialmente chamado de “BackRub”. Era um mecanismo

Continuou em Stanford para fazer o doutorado em Ciências da Computação, centrando seu interesse na área de “Data Mining” – exploração de grandes quantidades de dados em busca de padrões consistentes para detectar relacionamentos sistemáticos entre as variáveis. Foi quando ele começou a pensar no poder de grandes conjuntos de dados e como poderia analisá-los para detectar padrões e resultados inesperados.

Em Stanford, ele conheceu Larry Page, judeu e filho de um cientista da Computação da Universidade Estadual de Michigan, Dr. Carl Victor Page, que estava fazendo o doutorado na mesma área. Em entrevista para a revista The Economist, Brin revelou que, num primeiro momento, os dois jovens “não se deram bem”: “Nós somos ambos do tipo ‘detestável’. Mas, apesar de discordar na maioria dos assuntos, logo nos tornamos almas-gêmeas intelectuais e amigos íntimos”.

O foco de Sergey Brin foi o desenvolvimento de sistemas de classificação de dados, enquanto que Page visava aprofundar “o conceito de se inferir a importância de um trabalho de pesquisa a partir de suas citações em outros trabalhos”. Era assim que se determinava a importância de uma página na web – baseando em quantas outras páginas tinham links levando a ela. Juntos, foram autores do que é considerada

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No princípio, a ferramenta utilizou o site de Stanford, sob o domínio google.stanford.edu.

Larry e Sergey tentaram vender a ideia por US $1 milhão, mas não encontraram interessados. Durante o boom da tecnologia da década de 1990, o que interessava aos investidores eram os portais, como Yahoo! e AOL, que ofereciam inúmeras ferramentas como e-mail, notícias, meteorologia. Acreditava-se que esses portais dariam maior retorno financeiro. Ninguém estava interessado em ferramenta de buscas.

Apesar da falta de receptividade, os dois jovens sabiam que haviam criado algo importante. Por isso, decidiram trancar a faculdade e ir adiante com o projeto. Os pais de Sergey não receberam bem a decisão, estavam céticos e “definitivamente chateados”, como chegou a revelar a mãe de Sergey. “Nós acreditávamos que qualquer pessoa em seu juízo perfeito deveria obter um doutorado”.

Levantaram os fundos necessários para dar inicio à implementação do projeto entre os professores de Stanford, familiares e amigos. Conseguiram juntar o suficiente para comprar alguns servidores e alugar a famosa garagem em Menlo Park de uma amiga, Susan Wojcicki. Susan é hoje a vice-presidente sênior da Google e é encarregada na Youtube de Engenharia e Gerenciamento de Produtos. Nessa mesma época, Brin conheceu a irmã de Susan, Anne, sua futura esposa.

A decisão de levar o projeto adiante logo deu frutos. Depois de uma rápida demonstração, Andy Bechtolsheim, co-fundador da Sun Microsystems (ele mesmo um imigrante judeu alemão), fez um cheque de US$ 100 mil para a

“Google Inc.”. O problema era que a “Google Inc.” ainda não tinha sido formalmente criada e, durante duas semanas, enquanto lidavam com a papelada, os jovens não tinham como depositar o cheque. Outro investidor em empresas de tecnologia, David Cheriton, professor de Ciências da Computação de Stanford, foi um dos primeiros a perceber o potencial da Google e investiu outros US$100 mil no projeto. Em 2013, a fortuna de Cheriton foi estimada em US$ 1,7 bilhão.

Sergey Brin e Larry Page conseguiram levantar US $1 milhão e lançaram, em 4 de setembro de 1998, a Google, Inc. A empresa ainda funcionava na garagem em Menlo Park. No ano seguinte, a empresa tinha oito funcionários e transferia seus escritórios para Palo Alto, na Califórnia – essas instalações são conhecidas como Googlepex. Fizeram sua oferta pública inicial de ações em agosto de 2004, tornando Brin e Page bilionários. Desde então, Google tornou-se a ferramenta de busca mais popular do mundo, recebendo uma média de 5,9 bilhões de consultas por dia (dado de 2013).

De 2001 a 2011 Brin atuou como presidente de Tecnologia, dividindo com Page a responsabilidade do dia a dia da empresa. Page ocupou a função de CEO e Eric Schmidt, a de Presidente executivo.

Sergey é, hoje, o Diretor de Projetos Especiais na Google, trabalhando com os melhores engenheiros do país. Ele se dedica agora ao Google X, o “secret lab” da empresa. Os óculos digitais, conhecidos como Google Glass, foram o primeiro grande projeto dele na X.

O Google Glass é um dispositivo semelhante a um par de óculos,

A missão da Google

Inc. é “Organizar

o mundo da

informação e torná-

lo universalmente

acessível e útil” e

seu lema é “Não seja

perverso”.

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que, fixados em um dos olhos, disponibiliza uma pequena tela acima do campo de visão. A pequena tela apresenta ao seu usuário mapas, opções de música, previsão do tempo, rotas de mapas e, além disso, efetua chamadas de vídeo ou tira fotos de algo que esteja dentro do raio de visão e compartilha a foto imediatamente pela Internet. Para tirar uma foto usando os óculos basta dizer “Tirar foto”. E pronto!

Segundo Sergey, a ideia que motivou o desenvolvimento do Google Glass foi que os smartphones inerentemente nos distanciam das experiências no mundo real – e ele queria um dispositivo que nos permitisse obter informações digitais sem nos desconectar das demais pessoas. Incomodava-o o fato de que o futuro significava um mundo em que as pessoas andariam olhando para baixo, mexendo nos seus smartphones. A Google X também está desenvolvendo carros sem motoristas, entre outros.

1. com Anne Wojcicki 2. em israel, com shimoN peres. 3. saboreando um falafel

Vida fora da Google

Brin casou-se em 2007 com Anne Wojcicki, numa cerimônia íntima em uma ilha particular nas Bahamas, totalmente não convencional.

Os noivos estavam num banco de areia e os convidados os alcançavam nadando. O traje dos noivos era um maiô branco e uma sunga preta, respectivamente. Eles ficaram casados até 2013 e têm dois filhos.

Os interesses de Sergey vão além da Google. Ele e Anne fundaram e dirigem a Fundação Brin Wojcicki. Classificada em 2012 como a quinta organização beneficente dos Estados Unidos. Naquele ano de 2012, a fundação destinara mais de US$ 223 milhões para seus projetos.

A fundação tem doados recursos para as mais diversas causas e projetos. Entre essas, a Michael J. Fox Foundation para a cura do Mal de Parkinson. Brin tem um

interesse pessoal nessa Fundação e na descoberta da cura para o Mal de Parkinson. A seguir, explicamos a razão para tal.

Em 2006, sua esposa Anne fundou uma empresa de genômica e biotecnologia chamada 23andMe que a produz kits para testes de DNA. Quem estiver interessado em mapear seu genoma precisa apenas enviar pelo correio o kit com uma amostra de saliva e, em pouco tempo, recebe 600 mil marcadores genéticos. O preço do kit da 23andMe é US$ 99, enquanto em outros lugares pode chegar a US$ 1 mil. O kit foi considerado pela revista “Time” como a maior invenção do ano de 2008.

Como testador da versão alfa, Brin teve a oportunidade de analisar seu genoma, descobrindo que tinha uma mutação genética com altas possibilidades de ser vir a sofrer do Mal de Parkinson. Seu teste deu positivo para o gene LRRK2.

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Nem todos com Parkinson têm uma mutação deste gene e nem todos com esta mutação têm a doença. Mas este gene aumenta a probabilidade da pessoa vir a ter a doença. Em 1999, a mãe de Sergey havia sido diagnosticada com Parkinson, mas, na época, as pesquisas indicavam que a doença não era hereditária. Após o mapeamento, Brin percebeu os riscos que corria e se empenhou em diminuí-los.

Ele chegou a doar US$ 50 milhões para a pesquisa da doença. Concentrou as pesquisas em diferentes tipos de abordagem científica, afastando-se do método científico clássico.

Sergey acredita que se coletando grandes quantidades de informação e a análise de grandes conjuntos de dados, pode-se perceber um padrão que levaria a outros resultados. Ele propõe que se ignore o uso do método científico em favor de um

Google Glass, o primeiro grande projeto de brin na X

tipo de ciências mais “à la Google”. Ele quer primeiro coletar os dados, para então encontrar os padrões que levem às respostas. E ele tem o dinheiro e os algoritmos para fazê-lo. Na lista da Forbes-2014 dos 15 Empreendedores que mais retribuem à Comunidade, Brin está em 4º lugar.

Sergey produziu mais de uma dúzia de trabalhos acadêmicos. É membro da Academia Nacional de Engenharia e recebeu o título de membro da Fundação Nacional de Ciências, além de participar do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Computação na Universidade de Stanford, onde fez o mestrado.

Sergey gosta muito de esportes, pratica yoga, mergulho e kite-surfing (surfe à vela). Em 2008, investiu US$ 4, 5 milhões em uma companhia chamada Space Adventures - uma empresa americana de turismo especial que coloca viajantes em órbita.

Gigante da internet

Ao longo dos anos, a Google lançou inúmeros novos produtos e adquiriu várias outras empresas de internet, além de fazer parcerias com grandes companhias para se tornar um dos negócios de internet com crescimento mais rápido no mundo. Em 2006, adquiriu o YouTube, o site mais popular de streaming de vídeo feitos pelos usuários, por US $1,65 bilhões em ações.

O braço filantrópico da Google Inc., a Google.org, foi criado em 2004 para atuar em áreas que afetam a sociedade como um todo. Desenvolve, por exemplo, tecnologias que ajudam a abordar temas globais como educação, crise energética, gerenciamento da fome e outros. Entre os produtos inovadores da Google estão AdSense/AdWords, Google News, Google Maps, Google Earth, Chrome, Gmail, como também o sistema Android para telefonia celular.

Prêmios e reconhecimento

Em 2003, tanto Brin como Page receberam o MBA honorário do IE Business School, “por incorporarem o espírito empreendedor e dinamismo de comando para a criação de novas empresas...”. Em 2004, a dupla recebeu o prêmio da Fundação Marconi, o maior em Engenharia, e foram eleitos membros da Fundação Marconi na Universidade de Colúmbia. Ao anunciar a sua escolha, John Jay Iselin, presidente da Fundação, parabenizou os dois pela sua invenção “que mudou fundamentalmente a forma como a informação é recuperada. Sergey Brin e Larry Page hoje se juntam a um quadro seleto de 32 pioneiros mais influentes no mundo da Tecnologia da Comunicação ...”.

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om uma equipe multidisciplinar de alto nível, utiliza todos os recursos tecnológicos e informações precisas para mostrar quem são os verdadeiros vilões da história.

Israel está no meio de uma batalha para ganhar a opinião pública – travada principalmente através da mídia. Para garantir uma cobertura justa da mídia internacional sobre Israel a HonestReporting foi criada em 2000, em Israel, por dois estudantes britânicos. Trata-se de uma organização não-governamental, sem fins lucrativos, e sem vínculos com nenhum instituição judaica da Diáspora ou do Estado Judeu, partidos ou movimentos políticos. Esta desvinculação de qualquer esfera oficial lhe tem garantido credibilidade junto à opinião pública e, também, à mídia. Fundada por Joe Hyams e Simon Ploske, em Yom Kipur, logo após a eclosão da segunda intifada na Cisjordânia e na Faixa de Gaza, pretende desmascarar o que considera uma sistemática tendenciosidade em relação a Israel na mídia ocidental. Como fazer isso, com tanta pressão dos inimigos de Israel?

c

Para vencer a guerra que a mídia faz contra Israel

Quem responde a essa pergunta é Joe Hyams, atual CEO da organização, em sua visita ao Brasil em maio último quando concedeu uma entrevista à Morashá: “Mostrar a realidade de Israel e do Oriente Médio através de fatos, dados e análises para defender o Estado de Israel, país demonizado pela mídia internacional nas últimas décadas, não é uma tarefa fácil. Especialmente quando sabemos que uma parte dos profissionais e empresas do setor têm posições preconcebidas em relação a Israel, independente do tema em questão, e a outra tem um grande desconhecimento sobre o país e as questões ligadas ao Oriente Médio, em geral.

A nossa preocupação é a influência e o impacto que esses segmentos têm na opinião pública, de modo geral, inclusive a juventude judaica. Por isso, este trabalho exige perseverança, determinação e vigilância contínua”. Durante sua permanência em São Paulo, ele participou de encontros com pais e alunos da Escola Beit Yaacov e com outras instituições da comunidade, explicando o trabalho realizado pela organização, sua importância para Israel e a Diáspora.

O caminho para enfrentar esta nova batalha começou

a ser traçado há 14 anos, quando dois jovens estudantes

britânicos criaram, em Israel, o HonestReporting, uma

organização que tem como objetivo defender o Estado

Judeu e desmascarar a falta de equilíbrio das notícias

quando o tema é o Oriente Médio.

IsRaEL

israel

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nossos inimigos estão nela há mais de 40 anos – e a nossa desvantagem é imensa. Mas nós acreditamos que podemos diminuir os prejuízos e reverter esse quadro desde que se tenha consciência da realidade e da gravidade da situação”, diz Hyams. Ressalta, ainda, que é preciso ter a percepção e a convicção de que este é um trabalho importante e deve ser realizado.

Para ganhar pontos nessa guerra não basta conquistar o coração do público, é preciso, também, conquistar sua mente. Apresentar fatos concretos, dados plausíveis e explicações coerentes que façam as pessoas prestarem atenção, ouvirem e analisarem a situação sob novas óticas, aprendendo a identificar as calúnias, as distorções, as mentiras. Para Hyams, o apoio de um público bem-informado é fundamental para o fortalecimento do Estado de Israel no cenário internacional. Neste

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Um levantamento de dados realizado pela organização indica que, desde o ano 2000, já foram obtidos mais de centenas de pedidos de desculpas, retratações e revisões de notícias. “Nossos esforços estão mudando o perfil da mídia e as reportagem sobre Israel em quase todo o mundo. Nós nos dedicamos a defender Israel contra o preconceito dos meios de comunicação e, também, a fornecer ferramentas educativas e recursos para quem estiver interessado em trabalhar em prol de Israel ”.

A organização busca assegurar a realização de reportagens honestas e transparentes sobre o país, através de um monitoramento constante dos veículos de comunicação, procurando detectar informações erradas e, também, deturpadas. Simultaneamente, presta assessoria a jornalistas estrangeiros na cobertura do Oriente Médio, tanto fornecendo informações, dados e fatos, quanto

Simon Plosker, editor no Media Center, apresenta o projeto “Combatendo a tendenciosidade da mídia”

sugerindo pautas e intermediando contatos para as matérias. Este trabalho é realizado através do Media Center, sediado em Jerusalém, que conta com uma equipe multidisciplinar de profissionais preparados para cumprir esta tarefa, assessorando jornalistas baseados em Israel ou apenas em visita ao país e aos territórios palestinos. Isso garante o livre fluxo de informações. O Centro recebe, em média, mais de mil solicitações, por ano, de jornalistas interessados em cobrir a região.

“A guerra entre Israel e seus inimigos não está mais sendo travada apenas nos campos de batalha. Tanques e bombas não são as únicas munições capazes de causar danos irreversíveis. Palavras e imagens, quando bem manipuladas, têm efeitos igualmente nocivos. Infelizmente, esta é uma guerra na qual Israel entrou há pouco tempo –

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Nós nos dedicamos

a defender Israel

contra o preconceito

dos meios de

comunicação e,

também, a fornecer

ferramentas

educativas e recursos

para quem estiver

interessado em

trabalhar em prol

de Israel.

processo, não basta a correção dos fatos distorcidos nem a exposição das falhas da ética jornalística. É necessário, também, incentivar a publicação de reportagens positivas e não apenas de correção de fatos. “Nossa luta é contra a desinformação e a manipulação de fatos e imagens que dão às pessoas uma falsa impressão sobre o conflito no Oriente Médio. Infelizmente, notícias negativas sempre ganham manchetes lidas por grandes públicos e, quando há retratação, geralmente ninguém presta muita atenção e o espaço dedicado não é o mesmo”, ressalta Hyams.

Apesar de existir há apenas 14 anos, alguns números revelam a força e a credibilidade da organização, cujo site – www.honestreporting.com – tem mais de 140 mil assinantes. Cerca de 70% de seus recursos é decorrente de doações particulares, 23% de federações e fundações privadas e 1% de investimentos bancários e anúncios. O orçamento anual incluiu investimentos para manutenção do Media Center, monitoramento da mídia, direitos digitais, relações públicas, construção de comunidades online, conferências internacionais e despesas gerais. No ano passado, HonestReporting obteve a graduação 4 estrelas do Charity Navigator para gerenciamento fiscal e compromisso com responsabilidade e transparência. Dentro dessa perspectiva, o HonestReporting organiza, também, programas específicos para grupos judaicos, tão suscetíveis à influência da mídia internacional quanto os demais. Segundo Hyams, é muito importante que os jovens conheçam a realidade para que possam se sentir orgulhosos de Israel e, consequentemente, atuem em defesa

do país. “Que não se deixem enganar pelos que deturpam a imagem do país, com ou sem intenção”. Nos Estados Unidos, a organização trabalha dentro das universidades, através das Hillel House, que congregam os estudantes judeus.

Como parte de sua agenda anual, HonestReporting organiza, ainda, missões a Israel para judeus e não judeus de vários campos de atuação, que incluem uma passagem pela sede em Jerusalém, com palestras e várias outras atividades, que permitem aos visitantes terem uma noção concreta da realidade do país. “A experiência nos mostrou que uma viagem a Israel é, muita vezes, mais eficiente do que várias conferências, pois, quando estão no país as pessoas conseguem visualizar a geografia da região, sua extensão e a complexidade regional. Elas têm a oportunidade de ver de perto a integração entre os grupos étnicos que compõem a sociedade israelense, a coexistência de diferentes culturas,começando, assim, a ver de outra maneira as notícias divulgadas pela mídia”.

Nos últimos tempos, a HonestReporting tem-se dedicado a lutar contra a campanha internacional denominada Boicote, Desinvestimentos e Sanções – BDS (em inglês, Boycott, Desinvestment and Sanctions) cujo objetivo é, em última instância, deslegitimar o país. Lançada pelos palestinos e seus aliados em 2005, propõe a adoção de embargos a produtos e serviços de empresas israelenses produzidos nos territórios ocupados. Na verdade, gradativamente foi ampliando seu alvo para Israel como um todo. Isto é o que a HonestReporting tem procurado mostrar através de um trabalho constante. Joe Hyams, São Paulo, 2014

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o afirmar que “a inteligência não é uma estrutura estática, mas um sistema aberto, dinâmico, que pode continuar a

se desenvolver ao longo da vida”, o psicopedagogo judeu-israelense, romeno de nascimento, revolucionou os conceitos e dogmas vigentes nas décadas de 1950 e 1960, relativos ao desenvolvimento de indivíduos com dificuldades de aprendizagem, portadores ou não de necessidades especiais. Ele foi o pioneiro na criação e aplicação do conceito de que a Inteligência Humana pode ser trabalhada e desenvolvida.

O fundamento básico do pensamento de Feuerstein é que todos os seres humanos – independentemente de sua idade, limitação ou condição socioeconômica – têm a capacidade de melhorar de forma significativa seu aprendizado e, consequentemente, seu nível de

funcionamento. Os resultados obtidos em seu Instituto, ao longo de décadas, e a aplicação de suas teorias em mais de 80 países, demonstram que ele tinha razão. Arrancando aplausos efusivos sempre que falava em público, Feuerstein era dono de um bom humor contagiante.

Ao morrer em abril último, aos 92 anos, Feuerstein – cuja marca registrada eram a barba espessa e a boina que usava para substituir a kipá – deixa como legado a gratidão e o reconhecimento de milhares de pessoas que viram sua vida se transformar por acreditarem nas teorias que ele criou, além de seguidores em todo o mundo, inclusive no Brasil. Atualmente, mais de duas mil pesquisas estão sendo realizadas inspiradas e baseadas em seus trabalhos, com indivíduos das mais variadas faixas etárias – de crianças a idosos, com diferentes perfis, em diversos países.

apor Zevi Ghivelder

Reuven Feuerstein, além dos limites da mente

“imagine um método além de limites, que melhora o

aprendizado das crianças pequenas com síndrome de

down e dos superdotados e de qualquer indivíduo entre

estes padrões; que abre as portas das universidades para

estudantes menos privilegiados e pode, também, evitar

demência nos idosos. pois este é o Método Feuerstein”.

Suas teorias vêm sendo aplicadas tanto em salas de aula quanto em clínicas e consultórios. Em 1992, recebeu o Prêmio Israel para Ciências Sociais e, em 2012, foi um dos nomes indicados para o Nobel da Paz.

Em seu velório, no pátio do Instituto Feuerstein, foi homenageado como o grande homem que inovou o processo de educação de pessoas com necessidades especiais, mudando sua vida. “Ele foi o Einstein da educação”, disse a professora Pnina Klei, da Universidade Bar Ilan. Pai de quatro filhos – o rabino Refael Feuerstein (que continua sua obra, no Instituto), Daniel Feuerstein, Aharon Feuerstein e Noa Schwartz –, o psicopedagogo tinha vários netos, dois dos quais falaram em seu funeral. Um deles é portador da Síndrome de Down.

O Instituto Feuerstein está presente em mais de 26 países, através

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de 70 Centros de Treinamentos Autorizados (Authorized Training Centers – ATC), que atuam sob a supervisão do Instituto em Israel e são gerenciados por especialistas treinados e certificados em Israel.

sua vida

Reuven Feuerstein nasceu em 1921, em Botosani, na Romênia, no seio de uma família chassídica, sendo o quinto de nove irmãos. Desde cedo já dava sinais de ser dotado de uma personalidade especial. Começou a ler aos três anos, em três línguas: iídiche, o idioma materno; hebraico, o paterno; e em romeno, o de sua terra natal. Sua habilidade era tanta que ensinava outras crianças, até mais velhas, a lerem. Certa vez, em uma das milhares de palestras que proferiu ao longo de sua vida – contou o seguinte episódio: “Quando eu tinha oito anos, mandaram-me um garoto de 15 que

não conseguia aprender a ler e eu lhe ensinei a ler em hebraico. Como? Ensinei-lhe a ler uma prece. E não parei mais”.

Quando jovem estudou na Escola de Professores de Bucareste. Na época em que a Alemanha invadiu o país, frequentava o curso de Psicologia no Onesco College, tendo que interromper sua formação educacional. Durante a 2ª Guerra Mundial, o jovem Reuven foi prisioneiro um ano em campo de concentração e depois em prisões nazistas. Ao término do conflito, em 1945, emigrou para a então Palestina sob Mandato Britânico, onde começou a lecionar para crianças sobreviventes do Holocausto.

“Elas foram para Israel depois de passar três a quatro anos nos campos de concentração. Seus pais haviam morrido nas câmaras de gás. Algumas chegaram a Israel

como esqueletos. Eram totalmente analfabetas aos oito, nove anos de idade. Eu não podia aceitar a ideia de que fossem mentalmente limitadas. Passei mais de sete anos trabalhando com essas crianças. Não conseguiam organizar o pensamento, nem suas ações. Uma noite, em Jerusalém, um dos meninos, de oito anos, deitou-se ao meu lado e então começamos a ler Filosofia juntos”. Este foi o começo de uma longa carreira centrada no atendimento das necessidades psicológicas e educacionais dos imigrantes, refugiados e outros segmentos especiais da população israelense.

Feuerstein retornou à Europa para completar seus estudos em Psicologia Clínica e Geral na Universidade de Genebra, onde foi aluno de acadêmicos como Andre Rey e Jean Piaget, assistindo seminários e palestras proferidos por intelectuais como Carl Jung e Karl Jaspers.

prof. reuven feuerstein

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Em 1970 obteve o doutorado em Psicologia do Desenvolvimento na Universidade Sorbonne, na França. Ao longo das décadas de 1950 e 1960, o professor Feuerstein ocupou o cargo de diretor de Serviços Psicológicos do Departamento da Aliat Hanoar (a Aliá Juvenil) na Europa. Nesta função, era o responsável pelo encaminhamento dos jovens imigrantes aos vários programas educacionais de Israel. No decorrer das entrevistas, ele percebeu que quando os testes de coeficientes de inteligência eram aplicados às crianças marroquinas, seu resultado era baixo. Porém, pôde notar, também, que quando o formato do teste era adaptado ao padrão de pergunta-resposta e aplicado por um mediador, o resultado era muito superior. A experiência na Aliat Hanoar levou-o a questionar os rígidos conceitos sobre o fato da inteligência ser estática e a considerar que as diferenças culturais nos modelos de aprendizagem eram aspectos importantes a considerar no processo de avaliação da inteligência.

Foi nessa mesma época que ele começou a desenvolver estudos sobre crianças com baixo desempenho e seu potencial de mudança. Através de pesquisas ele descobriu que o ponto central para a educação especial era o relacionamento mediado. Inicialmente utilizava as ferramentas que havia desenvolvido para avaliar e ensinar cognição para crianças com Síndrome de Down e, eventualmente, com vítimas de enfartes, demências e paralisia cerebral e autismo.

suas ideias e ideais

O método desenvolvido por Feuerstein é único e internacionalmente reconhecido

para Feuerstein o

homem tem capacidade

de reversão e de

superar as limitações,

desde que abordado

da maneira correta e

com os instrumentos

adequados. o

método Feuerstein

procura identificar

os pontos fortes dos

indivíduos e não suas

vulnerabilidades.

como tal. Concentra-se na pessoa e no que é capaz de realizar, ao invés de centrar-se em suas limitações. Para isso, utiliza ferramentas que estimulam os alunos a superar seus limites preestabelecidos e conseguir mais do que poderiam esperar. Com base em tais conceitos, criou as Teorias da Modificabilidade Cognitiva Estrutural (MCE) e da Experiência da Aprendizagem Mediada (MLE), que o consagraram como um dos maiores educadores das últimas cinco décadas. É, também, o autor do Programa de Enriquecimento Instrumental (PEI) criado a partir da demanda de professores por métodos que pudessem solidificar seu trabalho no formato curricular. Ele desenvolveu 14 “instrumentos” com séries de exercicios usados por mediadores e estudantes para enriquecer funções cognitivas e construir o hábito de se ter um pensamento eficiente.

Dentro da perspectiva do psicólogo, o educador é a peça-chave. Sobre isso, dizia: “Ele transmitirá os valores, as motivações, as estratégias. Ajudará a interpretar a vida. Nós, educadores, estamos mais em jogo do que a criança e jovens. Se não formos capazes de ensinar, será impossível aprender”. Iniciado com crianças sobreviventes do Holocausto, seu método se concentra na figura do mediador, aquele que enriquece a realidade imediata com novas informações e significados. Para ele, o ser humano tem capacidade de reversão e de superar as limitações, desde que abordado da maneira correta e com os instrumentos adequados. O método Feuerstein procura identificar os pontos fortes dos indivíduos e não suas vulnerabilidades.

Os resultados do programa já foram documentados em mais de

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1.500 pesquisas científicas, que atestam resultados extremamente positivos junto aos mais diversos públicos. Diferente de programas que objetivam apenas o conteúdo do curso, o PEI (Programa de Enriquecimento Instrumental) proporciona aos estudantes conceitos, habilidades, estratégias e técnicas necessárias ao funcionamento do pensamento. Corrige as deficiências de estudantes, dando-lhes a capacidade de pensarem de forma a ter habilidades essenciais como análise, interpretação e conclusão. Mostra como usar estas habilidades para melhorar o aprendizado e seu currículo, ao mesmo tempo em que desenvolve a motivação intrínseca dos alunos.

O trabalho realizado com as crianças sobreviventes do Holocausto foi fundamental para o desenvolvimento do método Feuerstein, porque mostrou que os testes de coeficiente de inteligência então realizados não levavam em consideração a experiência horrorosa que tinham vivido. Sobre esse período, o professor costumava dizer: “Quando avaliamos as crianças diferentemente, através de uma rotina para medir a capacidade de aprendizagem ao invés de seu desempenho presente, descobrimos que todas elas tinham um potencial que tinha sido completamente camuflado nos testes de QI padronizados”. Feuerstein percebeu que os pais dessas crianças não tinham podido dar ordem e significado às experiências dos filhos, como é geralmente o caso.

Sua intervenção chamada de “Experiência de Aprendizagem Mediada” ajuda a corrigir deficiências cognitivas e mostra que a inteligência é modificável, não fixa. Feuerstein costumava dizer que as habilidades cognitivas são ensinadas

e enriquecidas com experiências culturais e que até mesmo os indivíduos que eram mentalmente limitados podiam estender sua capacidade intelectual de forma drástica”. Podemos contrariar o determinismo genético”, repetia constantemente.

A partir da década de 1980, o professor e psicólogo desenvolveu o Método Feuerstein para aplicação em indústrias comerciais, governamentais e militares, visando o aprimoramento das ferramentas cognitivas dos funcionários. Este método é utilizado em inúmeras indústrias na China, Índia, América do Sul, África e Canadá.

Os resultados desse método são conhecidos também no Brasil, há anos. Em janeiro último, o SENAC São Paulo, em parceria com o Instituto Feuerstein, realizou um seminário internacional com cursos inéditos na América Latina. Foi o primeiro evento sul-americano da organização israelense realizado em São Paulo e apresentou aos participantes a teoria e a prática da Modificabilidade Cognitiva Estrutural, a Experiência de

Aprendizagem Mediada e o uso e a intervenção cognitivas com o Programa de Enriquecimento Instrumental (PEI). Em 1999, o SENAC São Paulo se tornou um Centro de Treinamento Autorizado do Programa de Enriquecimento Instrumental e, desde então, são ministrados cursos que têm como fundamento o programa desenvolvido pelo professor israelense.

Feuerstein jamais desistia de um indivíduo, lembrou, em seu funeral, o Rabino Rafael Feuerstein, seu filho e continuador de sua obra, não se rendendo diante dos obstáculos. Costumava dizer que a inteligência é imprevisível e pode ser modificada.

O ser humano não é um objeto imutável. Não interessa se o jovem ou criança tem dificuldades, tem síndrome de Down, é autista ou cego. “Nós procuramos transformar a inteligência na sua estrutura mais significativa. Com nosso Programa de Enriquecimento Instrumental, ensinamos os alunos a organizar e usar a informação. Mais importante do que saber, é aprender como usar este saber”.

história

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á quatro décadas, aproximadamente, a pesquisa dos cristãos novos ibéricos vem fazendo avanços

consideráveis. Valiosos trabalhos já foram publicados sobre a dinâmica dos tribunais do Santo Ofício, o modo de vida judaico e o cumprimento de preceitos por parte dos cristãos novos, a difusão de uma literatura antijudaica em Portugal durante os 300 anos em que atuou a Inquisição e a inserção desses conversos em suas novas comunidades da Europa e do Novo Mundo.

No entanto, é bastante escasso o material histórico acerca dos itinerários e rotas de fuga escolhidos pelos cristãos novos, principalmente aqueles que exerciam profissões necessárias para a sociedade ou a corte real. Médicos de origem cristã nova trabalhavam diariamente na Península Ibérica e na Bacia

do Mediterrâneo entre 1580 e 1640, época em que Espanha e Portugal constituíam um único Reino. Muitos deles são lembrados rapidamente nas fontes inquisitoriais. No Arquivo Nacional da Torre do Tombo conserva-se uma lista de médicos cristãos novos que fugiram de Portugal em 1614, no auge da união hispano-lusitana. Esta lista nominal (ANTT, maço 7, Mss. 2578-2644) inclui minibiografias de quase 70 médicos cripto-judeus que abandonaram o país rumo a “nações livres”, como Marrocos, França, Holanda, Inglaterra, o Império Turco-otomano e, também, em direção ao “Novo Mundo”, esquivando-se às constantes perseguições organizadas pelo Santo Ofício.

Physicus, cirurgicus e boticarius

É comum fontes medievais portuguesas elencarem profissões

hpor Zevi Ghivelder

Médicos cristãos novos abandonam portugal em 1614

Médicos e cirurgiões exerceram a medicina em Portugal

na idade Média e início dos tempos modernos. seus

sobrenomes são citados nos “Livros de Chancelaria

real dos reis de Portugal” ou em obras dedicadas à

medicina lusitana. Na “Lista de 1614”, encontrada em Lisboa

no arquivo Nacional da torre do tombo, achei dados

curiosos sobre esses profissionais da saúde.

POr rEUVEN FaiNGOLD

específicas vinculadas à arte da medicina. Primeiramente, encontramos o physicus ou medicus, responsável por detectar diversos tipos de lesões e doenças (sejam estas físicas ou psicológicas). Mas, a partir do século 13, começou-se a exigir do physicus o diploma de cirurgicus, um especialista formado nas universidades europeias, profissional capacitado para operar fraturas, realizar cirurgias de órgãos vitais e efetuar qualquer tipo de procedimento médico. Em Portugal, contrariamente aos países da Bacia do Mediterrâneo, tais como Grécia, Itália, Creta, Espanha e sul da França, o médico clínico e o cirurgião portavam o título de magister ou mestre. O farmacêutico era o boticarius, mas a manipulação dos medicamentos era feita pelo apothecarius. Uma profissão menos valorizada em Portugal era a de barbeiro, o responsável pela extração de dentes, infusões de sangue e

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raspagem do paciente antes das cirurgias.

Em Portugal regiam as mesmas normas que vigoravam em outros países da Europa. Neles havia uma rígida fiscalização das atividades médicas e os profissionais que atuavam nessas áreas recebiam suas licenças dos próprios governos, entrando automaticamente nas guildas (associações de profissionais) destinadas aos médicos. Tanto médicos como cirurgiões constituíam “comissões especializadas”, cujo objetivo era testar as aptidões daqueles que desejavam ingressar nas especialidades médicas. A maioria dos judeus fazia parte dessas comissões, que outorgavam aos candidatos a tão almejada “licentia practicandi” ou “licentia curandi”.

Segundo a tradição europeia, era proibido aos médicos lusitanos mudar de área de trabalho. Porém,

certas vezes, encontramos exceções, como os médicos cristãos novos Gaspar Lopes, que abriu uma loja de fios de seda, ou Manuel de Mello, que atuou como cônego na cidade francesa de Nantes.

Como especialistas da saúde, os médicos deviam comunicar aos governos os nomes dos pacientes doentes ou feridos sob seus cuidados, o tipo de tratamento por eles recomendados e as etapas sugeridas para sua recuperação. Também deviam informar todos os casos de óbito. Quando as brigas de rua causavam a morte de um dos envolvidos, as partes sobreviventes eram punidas. Este tipo de legislação era bastante comum em países mediterrâneos, tais como Espanha, Itália, Grécia, Sicília e Creta e sul da França.

Na Idade Média, os médicos portugueses eram na sua maioria

judeus, atingindo 63% da população médica do país. Este dado estatístico derruba o preconceituoso mito de que os médicos judeus tinham repulsa pelas cirurgias, autópsias ou por procedimentos cirúrgicos mais delicados nos quais era necessário abrir o corpo do paciente.

QUEM EraM Os MÉDiCOs?

A “Lista de 1614” fornece valiosa informação acerca da origem, lugar de nascimento, moradia e idade dos médicos cristãos novos. Seus nomes e sobrenomes aparecem sob a grafia hispano-portuguesa, sendo possível desvendar os motivos que levaram seus ancestrais nos séculos 12-13 a se assentarem em terras lusitanas.

O estabelecimento do Santo Ofício da Inquisição em Portugal, em 1536, após longa negociação entre o Estado e o Papado, gerou uma violenta onda de perseguições com

Boticario Judeu nas Cântigas de Santa Maria de Alfonso X, o Sábio. Miniatura do Manuscrito del Escorial. séc. 13

história

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No que tange aos salários dos médicos judeus, a “Lista de 1614” nos fornece poucas informações, registrando uma faixa salarial razoável: um cirurgião recebia 1.600 réis e um médico-mór, 2.000 réis mensais. Consultando uma obra sobre as profissões e a vida econômica na sociedade portuguesa, encontramos que, naquela mesma época, um barbeiro da corte ganhava entre 600-650 réis mensais, um alfaiate entre 700-750 réis e um ferreiro poderia receber até 1.200 réis/mês. Sendo assim, tudo indica que a saída de Portugal não estaria relacionada com reivindicações salariais, pois todos se sustentavam condignamente.

PErFiL FÍsiCO DOs MÉDiCOs

A lista dos médicos judeu-portugueses descreve com detalhes os traços físicos e as características psicológicas desses profissionais, encontrando-se, também, ligações entre os próprios familiares. Fruto de relações endogâmicas, eles se casavam com “Mulheres da Nação”, ou seja, com cristãs novas. Leonora

frequentes ataques endereçados aos novos convertidos. Este fato originou uma fuga de médicos, a maioria deles descendentes dos judeus “batizados em pé”, à força, em 1497. Como veremos a seguir, vários foram os itinerários ou rotas de fuga dos exilados.

Na lista aparece um número considerável de médicos nascidos em aldeias e vilarejos densamente povoados por judeus, enquanto apenas uma pequena minoria nasceu em grandes centros urbanos de Portugal. Assim, em Lisboa, capital da metrópole, quase não achamos médicos cristãos novos, à exceção do “Physico-mór do Rei” e de um número reduzido de boticários a serviço da nobreza. O principal porto do império ultramarino foi uma “parada obrigatória” para aqueles aventureiros que emigravam rumo ao Oriente.

Dentre as regiões geográficas mais procuradas pelos médicos cripto-judeus, podemos mencionar a região montanhosa das Beiras, com seis localidades: Lamego, Covilhã, Viseu, Trancoso, Fundão e Belmonte, Alentejo, as vilas próximas ao Porto e o cinturão de Lisboa. A “Lista de 1614” revela, também, que boa parte dos médicos morava na Espanha, e atravessava a fronteira para trabalhar em Portugal.

Há, também, informação relevante sobre as idades desses profissionais. De um total de quase 70 médicos, 23 abandonaram Portugal na faixa dos 40-50 anos. Os médicos jovens (cinco entre 21-30 anos) raramente deixavam o país, enquanto três médicos mais idosos (entre 70-80 anos), tampouco abandonaram tão facilmente seu território natal. Há outros 33 médicos listados sem registro de idade.

da Cunha, mulher do médico Gaspar Lopes, é retratada como uma “mulher de 40 anos, rosto pálido e doente, boca torta desdentada e fala defeituosa”. Leonor Rodrigues, mãe do médico Antônio Lopes, era uma “mulher de mais de 60 anos, obesa, alta, nariz grande, boca torta desdentada, muito doente, com manchas no rosto, fruto de erupção cutânea”.

As mulheres dos médicos possuem atributos e qualidades especiais. A mulher de Pero Francês se chama Catharina Alves. Viajou para a França, onde ficou famosa por ensinar “a Lei Hebraica”, ou seja, ritos e preceitos judaicos. Há, ainda, na lista descrições específicas dos médicos lusos: Francisco Mourão possui “corpo ereto, estatura baixa, rosto delicado, barba ruiva, bons dentes e, acima de sua orelha direita, vestígios de uma cicatriz”. O filho do cristão novo João Rodrigues é um “médico de 50 anos, baixo e magro, barba longa escura, olhos grandes pretos e é tido como um homem experiente, sábio e astuto”. Já o médico Vasco Gomes aparece retratado como “um homem de 33 anos, alto, louro, com pequenas sardas no rosto, nariz largo, olhos grandes, gosta de falar, tem mãos delicadas e longas, com manchas, notando-se uma lesão no dedo mindinho”. O doutor Lopo Mendes, de 70 anos, “tem barba e cabelos brancos, corpo grande, com sinais de curvatura”.

Poucas são as descrições psicológicas desses médicos se comparadas com as físicas. Menciona-se o médico Lopo Gil, que trabalhava em Vila Viçosa, de vez em quando, “se faz doudo” (doido), enquanto seu colega, o médico Gaspar Lopes e sua esposa Leonarda da Cunha, “caíram em prantos” por terem que abandonar Portugal.

antónio luís, cristão novo, lente de medicina na universidade coimbra, na época de d. joão iii

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MOtiVOs Para DEiXar O PaÍs

Quatro seriam os principais motivos para os cristãos novos “judaizantes” abandonarem a pátria portuguesa por volta de 1614. Em primeiro lugar, as perseguições inquisitoriais. O clima de extrema violência, medo e terror instaurado pelo Santo Ofício, originou uma fuga coletiva rumo a países do norte da África, Europa e regiões distantes do vasto Império Turco-otomano. A interferência imposta por esta instituição na vida pessoal dos médicos e suas famílias teve motivações variadas: há os que foram descobertos ainda antes de deixar o território, como o licenciado Lopo Nunes e sua esposa Antônia; há os que escaparam sem serem pegos, como o doutor André Vaz; e há, também, aqueles, como Rui Mendes, sua mulher e seu filho Antônio, cujos familiares ou amigos foram tomados prisioneiros, mas eles conseguiram fugir. Outro grupo estava composto por médicos que não conseguiram escapar do Reino, pois respondiam a processos inquisitoriais.

Em segundo lugar, havia médicos e cirurgiões perseguidos por participarem em atentados e assassinatos. Eram tentativas frustradas de atirar com armas de fogo, que às vezes causavam lesões físicas em cristãos. Na “Lista de 1614” há dois médicos cristãos novos, Mestre Jorge e Joseph Camelo, ambos indiciados por causar danos físicos a cristãos, acontecimentos que, certamente, devem ter acelerado sua saída do país. Joseph Camelo chegou a ser procurado pelas autoridades locais “por atirar com um pistolete e ferir um certo Marcos D´Abreu”, mas conseguiu fugir a tempo para o Reino de Castela, na Espanha.

A maioria dos médicos vivia dignamente com seus recursos, porém, como acontece em toda sociedade, há, também, aqueles que encontram dificuldades para obter o sustento. A “Lista de 1614” relaciona dois médicos de nome Manoel Nunes e Lucas Fernandes, cuja saída do país foi motivada por dificuldades econômicas. Ambos saíram de Portugal em “situação de extrema pobreza, passando a viver no Brasil”.

E, por último, as pestes e epidemias que atingiram boa parte da população da Europa no século 17 foram a gota que faltava para terminar com esse capítulo dos médicos cristãos novos em Portugal. A sociedade lusitana precisou combater estes males em diferentes épocas de sua história: 1348, 1356, 1384, 1415, 1432-1435, 1437-1438, 1464, 1477 e entre os anos 1480-1497. Nos anos 1599 e 1600, uma devastadora epidemia dizimou milhares de portugueses, o que levou médicos como Luiz Gomes, de 50 anos, morador de Porto, a fugir com toda sua família de sua cidade natal para a França.

itiNErÁriOs DOs MÉDiCOs

A unificação das Coroas de Espanha e Portugal, que duraria 60 anos (1580-1640), não alterou a política persecutória imposta pelo Santo Ofício aos conversos. Em ambos os países, os olhos da Igreja e a Inquisição continuariam a vigiar aqueles conversos que pretendiam deixar a Península Ibérica. Especificamente em Portugal o batismo forçado de 1497, o pogrom de 1506 em Lisboa (ver Morashá 53) e o estabelecimento da Inquisição em 1536, pelo rei D. João III, foram responsáveis por uma rígida política de marginalização dos cristãos novos da sociedade lusitana, perseguindo-os ainda antes de abandonar o Reino rumo às novas comunidades florescentes da Europa. A fuga era a única opção para salvar suas vidas. Neste contexto, fica evidente que os cristãos novos com profissões liberais, dentre elas a medicina, conseguiriam com maior facilidade sair e se integrar às novas comunidades.

Dentre os médicos que fugiram de Portugal é importante distinguir aqueles foragidos após ser concedido o “perdão geral” de 1605 e aqueles que não usufruíram desta autorização por parte do Estado. Diferente da política imposta na Espanha, Portugal decidiu abrir e fechar suas fronteiras por curtos espaços de tempo. Cada cristão novo disposto a deixar o país devia encaminhar uma petição às autoridades e pagar altas quantias pela saída do Reino. Em 1605, por exemplo, os foragidos pagaram 1.700.000 ducados à coroa. Nessa política de enriquecimento dos cofres públicos, encontramos aportes de um grande número de cristãos novos espanhóis (a maioria castelhanos) bem como de portugueses.

zacuti lusitani, medici, & philosophi praestantissimi, praxis medica admiranda. lugduni, 1637

história

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A “Lista de 1614” não fornece informações sobre os perigos eminentes encontrados pelos foragidos rumo às novas comunidades. Tampouco menciona os falsos “salvo-condutos” obtidos pelos médicos conversos ou faz qualquer referência aos familiares que fugiam junto com eles. Os médicos levavam consigo bens materiais, como ouro e prata, no entanto, isto não é mencionado na documentação pesquisada.

Tudo indica que as condições para abandonar o território luso rumo à Europa eram difíceis e nem todos os médicos cristãos novos estavam dispostos a se aventurar por itinerários geralmente desconhecidos. A saída destes, com ou sem bens materiais, foi sempre um projeto pessoal de cada profissional, mas

nunca uma empreitada coletiva. Segundo a “Lista de 1614”, na hora da partida é possível detectar cinco itinerários ou rotas de fuga: das cidades de Portugal rumo às regiões da Galícia e Madri (norte e centro da Espanha); via Espanha rumo a Nantes, no sul da França; rumo à Itália (por terra ou via marítima); até os Países Baixos: Flandres e Antuérpia; ou ainda do porto de Lisboa rumo ao “Novo Mundo”: Brasil, Peru e Nova Espanha (região do México).

Driblando a presença permanente dos corregedores (policiais que vigiavam portos e fronteiras), os médicos conversos conseguiam ingressar nas pequenas cidades e fugir das perseguições inquisitoriais. Os pequenos vilarejos eram “postos intermediários” nessa longa jornada rumo às grandes metrópoles da Europa.

CONCLUsÕEs FiNais

As informações recolhidas pela “Lista de 1614” e “Livros de Chancelaria Real dos Reis de Portugal” nos permitem reconstruir o perfil de uma verdadeira elite cristã nova composta por rabinos, cortesãos, administradores, fiscais de impostos e, naturalmente, médicos e cirurgiões.

Mesmo estudada parcialmente, essa relação de nomes revela dados biográficos bastante significativos sobre os médicos que atendiam à população lusa no início do século 17. O documento histórico nos coloca diante de profissionais da saúde pouco estudados, um grupo seleto de enorme importância na pesquisa da medicina judaica portuguesa.

Prof. Reuven Faingold é historiador e educador, PHD em História Judaica pela Universidade Hebraica de Jerusalém. É sócio fundador da Sociedade Genealógica Judaica do Brasil e membro do Congresso Mundial de Ciências Judaicas de Jerusalém.

BIBLIOGRAFIA

Azevedo, Pedro, Médicos cristãos novos que se ausentaram de Portugal no princípio do século Xvii. Arquivo Histórico da Medicina Portuguesa, N.S, vol. 5 (1914), págs. 153-172.

Gonçalves, I., Físicos e cirurgiões quatrocentistas: As cartas de exame. Do tempo e da história i (1965), págs. 69-112. Lemos, M., História da Medicina em Portugal. 2 vols. Lisboa 1889. Pines, J., Essai sur l ’Histoire des Medicins au Portugal. imprensa Médica Xvii (1953), págs. 265-274. Roth, C., The Qualifications of Jewish Physicians in the Middle Ages. Speculum 28 (1953), págs. 834-843. Shatzmiller, J., On Becoming a Jewish Doctor in the High Middle Ages. Sefarad XLiii 2 (1983), págs. 239-250.

Cenas no interior de uma farmácia. ilustração nO “Cânone da medicina” de Avicena, Florença.

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COMUNIDADES

difícil traçar a história dos judeus que viveram nesse território, pois esta se entrelaça com a da região. Ao longo

dos séculos, a Ucrânia foi cobiçada, conquistada e dividida entre inúmeras nações. Khazares, varegues, mongóis, lituanos, poloneses, russos, austro-húngaros e soviéticos dominaram, em algum momento de sua história, parte do território ucraniano. Assim como o território, seus habitantes passavam de uma soberania à outra. No caso da população judaica, isso significava que esta teria que se sujeitar à postura e às discriminações e restrições do novo poder dominante relativas aos judeus.

Gregos e Khazares

A partir do século 7 antes da Era Comum (a.E.C.), os gregos instalaram colônias na parte norte da costa do Mar Negro (sul da atual Ucrânia), uma área estratégica para

o comércio marítimo, e nas terras férteis da Península de Taurica ou Tauris (atual Crimeia). Desde o início dessa colonização havia judeus vivendo nas cidades-estados gregas. Inscrições datadas do ano 80 da E.C., descobertas no Bósforo, uma das principais cidades-estados gregas, testemunham a existência de uma comunidade judaica estruturada, já possuidora de uma casa de orações.

No século 7 da E.C., os khazares, um novo poder militar vindo do Cáucaso e da região Cáspia, subjuga as tribos eslavas e conquista a região. O Império Khazar (ca. 650 – ca. 965/968), que chegou ao seu apogeu no século 8, durante o reinado de Būlān, estendia-se das estepes ucranianas às terras que se avizinham ao Rio Ural, e da região do Meio Volga ao Cáucaso do Norte, na cidade de Astrakhan, no Mar Cáspio. Acredita-se que durante o reinado de Būlān, por volta do ano de 740

é

A vida dos judeus na Ucrânia até início do século 20

Os judeus viviam no território da atual Ucrânia centenas

de anos antes do estabelecimento da nação ucraniana, no

século 9. Sua história foi marcada por sofrimento e muito

sangue judeu derramado em solo ucraniano. Mas foi, também,

o lugar dos shtetls, onde nasceu o Chassidismo e viveram

grandes Rebes, onde floresceu o sionismo e onde nasceram

e viveram personalidades da História e da Literatura judaica.

da E.C., a dinastia real, as classes dominantes e, em seguida, parte da população se converteram ao judaísmo.

O século seguinte foi marcado pela prosperidade. Uma das mais importantes rotas de comércio da época, que conectava as três partes do mundo até então conhecido, atravessava os domínios khazares. Atraídos pela prosperidade e pela possibilidade de viver numa nação onde o judaísmo era a religião dos governantes, um grande número de judeus se estabeleceu no Império Khazar. Muitos vinham dos domínios bizantinos para escapar às constantes discriminações, perseguições e conversão forçadas ao cristianismo grego-ortodoxo. No século 9, havia judeus em todas as regiões que hoje constituem o território ucraniano, principalmente às margens do rio Dnieper e no leste e sul da Ucrânia.

COMUNIDADES

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A existência de um reino judaico no Cáucaso desperta, em meados do século 10, o interesse de Rabi Hasdai ibn Shaprut, médico pessoal dos califas de Córdoba, Abd-al-Rahman III, e seu filho, Hakam II. Rabi Ibn Shaprut era, também, ministro da corte e diplomata encarregado, entre outros, das negociações com delegações estrangeiras que chegavam ao Califado.

Por volta do ano de 950, Ibn Shaprut envia uma missiva ao rei dos khazares indagando sobre a história de seu povo. A carta chega às mãos de Joseph, o rei khazar, através dos bons ofícios de dois judeus que haviam acompanhado uma delegação a Córdoba. Em sua resposta, o rei Joseph relata o início da história dos khazares e sua conversão ao judaísmo. A troca de correspondência entre Rabi Ibn Shaprut e o rei Joseph, que ficou conhecida como a “Correspondência Khazar”, é um dos poucos documentos conhecidos de autoria khazar e uma das poucas fontes primárias da história desse império.

Por volta de 966, tribos eslavas lideradas por príncipes russos invadem o Império. Os khazares retiram-se para seus domínios na Península da Crimeia, a Khazaria, como era chamado seu estado, e mantêm sua independência até meados do século 11, quando são conquistados pelos russos e pelos bizantinos.

Estado Rus’ Kievana e a identidade ucraniana

Varegues da Escandinávia – chamados de Rus’ – conquistam, no século 9, o território que hoje engloba três nações eslavas orientais modernas: a Ucrânia, a Bielorrússia e a Rússia Ocidental, lançando as bases

para o Rus’ Kievana (Kyivan Rus’), o primeiro estado eslavo oriental. A criação desse estado é de suprema importância para a região, pois, do ponto de vista historiográfico, estabeleceu as bases da identidade nacional dessas três nações.

Em 877, os rus’ conquistam Kyiv (Kiev) e fazem dela a capital de seu estado – Kyivan Rus’. Essa localização estratégica da nova capital, situada na confluência de dois rios, Dnieper e Pripyat, e no cruzamento das principais rotas comerciais Norte-Sul e Leste-Oeste, vai ser fundamental para a rápida ascensão de seu império. Kyivan Rus’ atingiu seu apogeu nos séculos 10 e 11, com um território de 800 mil km2, que se estendia desde as montanhas dos Cárpatos até o rio Volga, e do Mar Negro até o Mar Báltico.

Um dos grandes pontos de inflexão da história ucraniana foi a conversão, no século 10, do povo ao cristianismo greco-ortodoxo. Essa conversão vai ser crucial, também, para a história dos judeus da Ucrânia, por ser marcada por um profundo e endêmico antijudaismo. Logo após a conversão, o clero ortodoxo passou a incitar o povo contra os judeus. Em Kiev, por exemplo, Theodosius (1057-1074), abade do Mosteiro Pechersk Lavra, pregava a necessidade de “viver em paz com os amigos e inimigos, mas com seus próprios inimigos, não os inimigos de D’us: os judeus e os hereges”. Em Chernigov, uma das mais antigas comunidades judaicas, também os judeus passaram a ser alvo da hostilidade da população.

A partir de 1054, as lutas entre príncipes de Rus’ levaram à fragmentação do Kyivan Rus’ em 13 principados. Dois deles são de grande importância na história da região, em geral, e na judaica, em

particular: o de Kiev e o da Galícia-Volínia. Em 1187, a palavra Ucrânia (Ukrayina) é usada pela primeira vez para descrever o principado de Kyiv (Kiev) e o da Galícia.

O Principado de Kiev

O Principado de Kyiv, que ocupava a área da Ucrânia da margem direita do rio Dnieper, foi o mais importante principado de Kyivan Rus’. Desde a fundação de Kiev, mercadores judeus haviam sido atraídos à cidade, que era um próspero centro comercial situado nos cruzamentos das rotas de comércio, que uniam, de um lado, a Europa Ocidental, e, de outro, as províncias do Mar Negro, a Europa Oriental e o continente asiático.

Uma carta escrita por judeus de Kiev, encontrada na Guenizá do Cairo, revela que havia judeus vivendo na cidade e em outras partes na Ucrânia central já no século 10. Sob o governo do príncipe Svyatopolk II (1093-1113), os judeus eram protegidos e usufruíam de total liberdade em termos comerciais, tendo mesmo confiado a alguns deles a cobrança de impostos do principado.

Já era marcante a dicotomia entre os interesses dos governantes e o antijudaismo do povo, funesta herança do cristianismo greco-ortodoxo. Em 1113, logo após a morte de Svyatopolk, os judeus de Kiev foram vítimas do primeiro pogrom. Mas, apesar das dificuldades, continuaram a viver lá e em outros locais do principado, tendo sido fundamentais para seu desenvolvimento comercial, ajudando a conectar a região com os centros mais desenvolvidos da época.

Com o crescimento econômico da região, aumenta o influxo de judeus oriundos da Khazaria, do Império

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Bizantino e da Europa Ocidental, particularmente da Renânia (em alemão, Rheinland), uma região no oeste da Alemanha. Em crônicas da metade do século 12, há frequentes citações do “Portão Judaico” de Kiev. E os rabinos alemães do período referem-se, em seus escritos, a judeus que viajam com suas mercadorias para a “Russ”. Há referência a Kiev, também, nos relatos de viajantes judeus da época, entre os quais, Benjamin de Tudela e do Rabi Petachiah de Ratisbon (Regensburg, na Bavária).

No início do século 13, os mongóis invadem a região semeando terror, morte e destruição, e os judeus sofrem amargamente, assim como o restante dos habitantes. Em 1240, liderados por Batu, neto de Genghis Khan, os mongóis tomaram Kiev pondo fim à independência do principado, que passa a fazer parte do Império Mongol.

Principado de Galícia-Volínia

O Principado de Galícia-Volínia surgiu em 1199, resultante da união

Kiev, foi caindo em mãos da Lituânia.

A expansão do Grão-Ducado da Lituânia atingiu o seu auge em meados do século 14, quando este incluía o território da atual Bielorrússia e da maioria dos territórios ucranianos, além de parte da Polônia e Rússia.

Os grão-duques concederam privilégios a todos os judeus em seus domínios. Em Kiev, o número de judeus aumentou consideravelmente e eles desfrutavam de muita prosperidade.

Em 1386, o casamento entre Jogaila, grão-duque da Lituânia, e Edviges I, rainha da Polônia, vai ser de extrema importância na história da região. Além de o casamento ter sido condicionado à conversão de Jogaila e outros nobres lituanos ao catolicismo, criou-se uma união dinástica entre a Polônia e a Lituânia.

No decorrer do século seguinte, em todo território sob a união dinástica da Polônia e a Lituânia aprofunda-se o processo de “polonização”. Quando passa a ser necessário ser católico para fazer parte da cúpula governamental e militar, a maior

de dois principados distintos, Volínia (região oeste da Ucrânia) e Galícia (hoje, Ucrânia Ocidental). Durou 150 anos e foi um dos três estados mais importantes que emergiram da desintegração de Kyivan Rus’.

A Galícia-Volínia atingiu o apogeu nos séculos 12 e 13. Um grande número de judeus alemães se estabeleceu na Galícia e em outras cidades na parte oeste da Ucrânia, a partir do século 12. Em Lviv1 estabeleceram-se logo após a cidade ter sido fundada, em meados do século 13. Por causa de sua localização mais no oeste da atual Ucrânia, a Galícia-Volínia não foi invadida por hordas nômades vindas do Leste mantendo um considerável grau de independência até 1340. Mas, acabou sendo presa de seus vizinhos católicos: a Polônia ficou com a Galícia e a Lituânia, com a Volínia. A Comunidade Polaco-Lituana

Enfraquecidos por conflitos internos e invasão dos mongóis e dos tártaros, os principados ucranianos ofereceram pouca resistência à hegemonia lituana. Progressivamente, a maioria das terras de Rus’ Kievana, inclusive

1 Lviv – Quando a cidade foi tomada pela Polônia, seu nome mudou para Lvov.

Shtetl em Tzostianetz, fotografia, Ucrânia, 1888

COMUNIDADES

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parte da elite ucraniana e lituana se converte ao catolicismo.

Durante longo tempo, os judeus sob o domínio dos grão-duques lituanos gozavam de direitos sociais e econômicos mais favoráveis do que os vigentes na Polônia. Por isso, em 1389, com a união da Polônia e Lituânia, para assegurar aos súditos judeus os seus direitos, outorgou-se lhes uma carta-privilégio. O documento não só lhes garantia participação em pé de igualdade com os comerciantes cristãos como, também, assegurava-lhes a compra e o uso de terras.

Cem anos mais tarde, em 1495, os judeus são expulsos da Lituânia, causando a emigração de muitos para a Crimeia, mas serão readmitidos em 1503. Em fins do século 15 havia judeus ocupando importantes posições financeiras em Lvov e Kiev, sendo que na corte circulavam médicos, banqueiros, grandes comerciantes e arrendatários judeus.

O processo de “polonização” foi concluído em 1569 com a União de Lublin, que transformou o Reino da Polônia e o Grão-Ducado da Lituânia em um único estado, a Primeira República da Polônia, conhecida, também, como a Comunidade Polaco-Lituana ou das Duas Nações. Oficialmente, a Polônia era uma república governada por um rei eleito pela nobreza polonesa, a szlachta.

Nos séculos seguintes, o estado polonês continuou a se expandir para o Leste, tornando-se um dos maiores e mais populosos países da Europa. A República abrangia os territórios do que são hoje a Polônia e a Lituânia, a Bielorrússia e a Letônia, grande parte da Ucrânia e Estônia, além da região ocidental da atual Rússia.

Vida judaica

No final da Idade Média, milhares de judeus de várias partes da Europa Ocidental se haviam estabelecido na Polônia. As Cruzadas, as expulsões, os pogroms, a Peste Negra os haviam forçado a buscar refúgio no leste da Europa. A grande maioria instalou-se nos domínios da Coroa Polonesa, que, a partir do final do século 13, concedera condições favoráveis ao seu assentamento, com amplas garantias jurídicas.

Os direitos concedidos pela Coroa Polonesa lhes haviam aberto novas oportunidades econômicas tanto da zona rural como nas cidades onde lhes era permitido viver. Na medida que prosperavam, a população cristã se ressentia da competição. Repetidamente, em inúmeras cidades, durante os séculos 17 e 18, acumulavam-se os pedidos à Coroa para que esta determinasse que, naquela cidade, não podiam viver judeus. Era o famoso non

tolerandis Judaeis. Em Kiev, em 1619, conseguiram, pela primeira vez, expulsá-los.

Em meados do século 17, estavam na Ucrânia 45 mil dos 150 mil judeus que viviam nas terras sob o domínio polonês na margem direita do Rio Dnieper, nas províncias de Volínia, Podólia, Bratislaw, Ruś Czerwona e Kiev. A população judaica era organizada em kehilot (congregações) dirigidas por um conselho comunitário composto de rabinos e personalidades da comunidade. Na Polônia, um nível adicional foi acrescentado: um conselho nacional, o Conselho das Quatro Terras (Vaad Arba’ah Aratzot), composto pela maioria dos rabinos proeminentes e líderes leigos da época.

O ídiche era o idioma utilizado por todos os judeus. A vidas girava em volta de suas sinagogas. Sua profunda religiosidade lhes era fonte de consolo e determinava todos os aspectos de seu cotidiano. O estudo judaico era de primordial importância. A fama de uma cidade não residia em sua importância econômica, mas no número de suas ieshivot e na reputação de seus rabinos. Em meio à população polonesa, na qual só o clero e uma minoria da alta nobreza eram educados, e 90% do povo não sabiam nem ler nem escrever, era praticamente nulo o analfabetismo entre os judeus.

O Sistema Arenda

A partir de1569, quando foi criada a Primeira República da Polônia, foram disponibilizados aos judeus amplos lotes de terra, na Ucrânia, pertencentes à alta nobreza polonesa. Judeus vindos de toda a Europa foram para essa região. Os nobres poloneses lhes arrendavam Coroa em prata para enfeitar a Torá,

Ucrânia, primeira metade do século 19

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Interior da Sinagoga de Gvozdec, Ucrânia, século 17

suas propriedades e os judeus as administravam através do chamado sistema arenda.

O nobre polonês, dono de enormes propriedades de terra, era o governante absoluto dos camponeses, servos semi-escravizados, que viviam em suas propriedades. O fato de os senhores das terras serem católicos, os servos ucranianos greco-ortodoxos e os administradores judeus era fonte de grande tensão.

Pelo sistema arenda, a nobreza polonesa arrendava não apenas a terra, mas todos os ativos fixos de sua propriedade, tais como moinhos, destilarias, hospedarias e outros. O contrato incluía, também, o direito exclusivo de destilar e vender bebidas alcoólicas. Cabia ao arrendatário coletar impostos, pagamentos e produtos agrícolas dos servos. O judeu que fechava o contrato levava consigo, além de sua família, todos os que quisessem acompanhá-lo como subarrendatários. Acabou-se criando uma classe média judaica na zona rural ucraniana e a receita advinda da arenda e da venda de bebidas alcoólicas constituía, em grande parte, o esteio da economia judaica.

Cresce o número de judeus de tal forma que foi sancionada uma lei transferindo o status jurídico e fiscal dos judeus da Coroa aos nobres. Esses passaram a construir cidadezinhas, os shtetls, onde eram judeus a maioria dos habitantes.

O sistema de arenda era um verdadeiro barril de pólvora pronto a explodir. Para aumentar suas receitas, os latifundiários exigiam pagamentos cada vez mais elevados dos arrendatários judeus, e o não pagamento tinha seríssimas consequências. Para conseguir fazer

face a tais compromissos, os judeus pressionavam os camponeses. Líderes judeus sensíveis aos males que sofriam estes últimos tentaram aliviar seu fardo. Em 1602, por exemplo, rabinos e o conselho comunitário de Volínia pediram aos arrendatários judeus que os camponeses não trabalhassem aos sábados e nas festas. Para a grande maioria dos servos ucranianos ortodoxos não importava muito quem era o responsável por sua miserável situação. Os judeus, “infames infiéis e estrangeiros”, representantes dos nobres poloneses católicos, eram vistos como os culpados por impor sobre eles um pesado ônus econômico. O ódio religioso e o profundo ressentimento acabaram se concretizando em perseguições violentas e massacres terríveis. Para piorar a situação, não sendo os judeus aliados formais da nobreza polonesa, eles não estavam, automaticamente, sob sua proteção.

Os massacres de Chmielnicki em 1648-1649

Em meados do século 17 a Polônia foi sacudida por duas décadas de lutas internas e externas (1648-1667), chamadas na história polonesa de “Dilúvio” (em polonês, Potop). O ressentimento contra o poder polonês veio à tona em várias revoltas rapidamente reprimidas. Mas, em maio de 1648, a situação saiu do controle do governo.

Uma rebelião de cossacos e camponeses ucranianos, liderada pelo chefe cossaco Bohdan Chmielnicki, alastrou-se por todo o território da atual Ucrânia. Chmielnicki, à frente de um exército de cossacos do Dnieper e de tártaros da Crimeia, transformou a insurreição numa luta política para acabar com o domínio polonês na região, que teve repercussões internacionais. Suas forças semearam morte e terror

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por onde passavam. Ao capturar as cidades e os vilarejos poloneses, judeus e padres católicos eram cruelmente assassinados, sendo poucos os que se salvaram. Apesar de serem os poloneses o principal alvo, foi sobre os judeus que se abateu toda a sua fúria. Estima-se que havia 150 mil judeus vivendo no território da atual Ucrânia.

Judeus das áreas rurais dirigiram-se às cidades procurando proteção. Milhares deles batalharam ao lado dos poloneses nas cidades fortificadas, que se transformaram para eles em armadilhas mortais. Na hora do perigo, os poloneses sempre abandonavam os judeus sozinhos.

A literatura martirológica judaica da época recorda o massacre de comunidades como Nemirov, Ostrog e Narol. Em Tulchin, soldados poloneses entregaram os judeus em troca de suas próprias vidas; em Tarnopol impediram os judeus de entrar, apenas para dar alguns exemplos da barbárie. Em Dubno, dois mil judeus que viviam na cidade e redondezas foram massacrados

porque os poloneses não permitiram que se refugiassem na fortaleza. Segundo a tradição, os túmulos estavam localizados próximos ao muro oriental da Grande Sinagoga, onde era costume orar pelos mortos durante o jejum de Tishá B’Av.

O pesadelo chegou praticamente ao fim em agosto de 1649, quando um tratado assinado entre Chmielnicki e a Coroa Polonesa restabeleceu o domínio do governo polonês nas partes da Ucrânia onde vivia a maior população judaica.

Uma das crônicas judaicas da época descreve a devastação e a obscena brutalidade: “Muitas comunidades além do Dnieper, como Pereyaslaw, Baryszowka, Piratyn e Boryspolê, Lubin, Lachowce (...) tiveram morte cruel e amarga. Alguns de seus integrantes foram esfolados vivos e sua carne atirada aos cães; outros tiveram as mãos e membros decepados e seus corpos atirados na estrada só para serem destroçados pelos carros e esmagados pelos cavalos (...). O inimigo massacrou mulheres crianças no colo de suas

mães (...). Atrocidades semelhantes foram perpetradas em todos os lugares por onde passavam...”.

É muito difícil determinar o número total de vítimas judias dos massacres de 1648 e 1649, conhecidos entre os judeus como Gzeyres takh vetat (Malignos decretos). As crônicas judaicas dizem que foram 100 mil, mas há relatos de que foram 300 mil e que mais de 300 comunidades foram destruídas. Foi decretado um dia de jejum (20 de Sivan) e preces especiais foram compostas em memória das vítimas.

No entanto, apesar da magnitude do desastre, muitos judeus retornaram à Ucrânia após ter sido restaurada a calma, mas décadas se passaram até novamente se tornarem importantes no contexto do judaísmo polonês.A história da Ucrânia daria mais uma guinada quando Chmielnicki procurou a ajuda dos russos, que invadiram o nordeste da Polônia e a Ucrânia. Em 1655, os suecos invadiram a Polônia Ocidental. Ao final daquele ano, quase toda a Polônia estava ocupada por

Reprodução do teto da Sinagoga de Chodorow, Ucrânia. Pintado por Israel Lisnicki em 1714 . Museu da Diáspora Tel Aviv

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cossacos, russos e suecos. No ano seguinte, todavia, o exército polonês foi reorganizado e fez recuar os invasores. Mas a Polônia se encontrava em estado caótico e era grande a deterioração econômica.

No século 18, o ódio acumulado pelas massas ucranianas volta à tona. A desordem geral e a agitação dos padres greco-ortodoxos levaram à formação de bandos conhecidos como Haidamacks, compostos por cossacos da Rússia, Ucrânia e servos fugitivos.

Os Haidamacks atacaram a Ucrânia em 1734, roubando e destruindo muitas cidades e vilarejos, assassinando grande número de nobres poloneses e milhares de judeus. O comandante das forças Haidamacks, Wasski Washchilo, proclamara que o objetivo da revolta era “destruir o Povo Judeu para proteger o cristianismo”. De acordo com o censo oficial de 1764 viviam no território da atual Ucrânia 258 mil judeus, mas acredita-se que eram mais de 300 mil. Bandos de Haidamacks acabaram destruindo comunidades em Fastov, Granov, Zhivotov, Tulchin e Dashev. Em 1768, os judeus de Uman foram alvo de um terrível massacre. Segundo relatos de testemunhas, entre 50 mil e 60 mil judeus foram cruelmente assassinados.

Os massacres não interromperam a imigração judaica para a Ucrânia apesar das tensões entre os judeus e as populações ucranianas ao longo do século 19.

Chassidismo

O Chassidismo apareceu primeiramente nos povoados da Ucrânia no início do século 18. Uma mistura de sofrimentos e

sentimentos, aglutinada por uma debilitante pobreza, serviu de pano de fundo para o surgimento dos movimentos chassídicos.

O fundador Rabi Israel Ben Eliezer, o Baal Shem Tov (o Besht), nasceu na Podólia, em 1700. Na época, as comunidades judaicas estavam afundadas em desespero, com a intensificação dos pogroms e das acusações de assassinato ritual contra os judeus. Ademais, a Polônia enfrentava graves dificuldades econômicas e tensões sociais que afetavam o dia-a-dia e sustento das populações judaicas. Esses fatores, aliados à desilusão decorrente do episódio de Shabetai Zvi – um pseudo-cabalista que alegara ser o Mashiach –, reforçaram a procura de sinais da redenção messiânica.

Os líderes religiosos, à época traumatizados pelo episódio de Shabetai Zvi, baniram o ensino do misticismo judaico, ficando o estudo da Torá restrito à elite. Deve-se lembrar que, naquele então, somente a erudição da Torá era considerada o caminho do judaísmo, mas eram poucos os que podiam dar-se ao luxo de estudar. Os livros sagrados eram raros e caros e a maioria trabalhava dia e noite para sobreviver. Barreiras, incluindo diferentes sinagogas, separavam os cultos dos incultos, os ricos dos pobres, os líderes dos homens do povo.

Grande parte da vida do Baal Shem Tov foi dedicada a aliviar a sensação de desespero – tranquilizar os judeus, animar seu espírito deprimido e eliminar temores e ansiedades. Para os judeus da Europa Central e Oriental, especialmente aqueles que viviam na miséria e sofrimento, ele passou a ser a materialização da esperança. Quando deixou esse mundo, em 1760, não houve um

único vilarejo judaico na Ucrânia e no resto da Europa Oriental que não estivesse sob a influência do Baal Shem Tov e de seus ensinamentos.

Com sua morte, a liderança do movimento passa para o discípulo que lhe era mais próximo – o Maguid, Rabi Dov Baer (1710-1772), que se estabeleceu na cidade de Mezeritch, na Volínia. Rabi Dov Baer enviou discípulos para espalhar os ensinamentos do Baal Shem Tov.

A cidade de Berditchev, localizada na atual Ucrânia, está inexoravelmente ligado ao nome de Rabi Levi Yitzhak – “o advogado do Povo Judeu perante o Trono Celestial”. Rabi Levi Yitzhak foi dos mais famosos alunos de Rabi Dov Baer. Este foi

Judeus ucranianos na sinagoga, na visão do pintor Robert Guttman

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2 Cheder - Quarto, em hebraico. Pequena escola onde se ensinava aos meninos os fundamentos do judaísmo, da língua hebraica e das orações.

o Rebe dos Rebes foi o mestre dos pilares espirituais do Chassidismo: Rabi Shneur Zalman de Liadi – o fundador do movimento Chabad-Lubavitch –, o Vidente de Lublin e os dois “irmãos sagrados”, Rabi Elimelech de Lizensk e Rabi Zusia de Anipoli.

O domínio russo

Os 20 anos de guerra que colocaram a Polônia contra invasores suecos e russos resultaram em uma deterioração econômica e em tensões sociais, e no final do século 18, a Polônia deixa de existir como país soberano, sendo dividida entre seus poderosos vizinhos em 1772, 1793 e 1795. A Prússia ficou com a parte ocidental até o Mar Báltico, a Áustria com um pedaço central que incluía a Galícia, mas coube à Rússia ficar com a maior parte do território- a Ucrânia, Lituânia e Polésia.

Centenas de milhares de judeus se tornam súditos indesejáveis dos czares, antes disso não lhes era permitido se estabelecerem nos domínios dos czares. Sua história foi bem diferente, mais sofrida do que a daqueles que ficaram sob domínio austro-húngaro, bem como das populações judaicas que viviam na Europa Ocidental e Central. O regime czarista foi um dos exemplos mais persistentes de autocracia da História. Os soberanos exerciam poder absoluto e, no século 19, ainda existia uma ordem pré-moderna de classes sociais: de um lado, privilégios aristocráticos, e, de outro, um sistema legalizado de servidão. No final do séc. 19 e início do séc. 20, em todo o território

russo, o antissemitismo era uma política oficialmente sancionada pelo governo, algo que não acontecia em outros países europeus. Dentre todas as minorias que viviam sob o jugo czarista, a mais hostilizada era a judaica; os maus-tratos, a hostilidade e o desprezo eram uma constante. A política czarista era uma mistura de desprezo e medidas discriminatórias, e de esforços para “regenerá-los”, “russificando-os” e os obrigando a se “amalgamar” com a população cristã.

Por breve tempo, depois de 1772, a czarina Catarina II, a Grande, expressou certa benevolência em relação aos novos súditos judeus, concedendo-lhes o direito de residência. No entanto, pressionada por negociantes cristãos de Moscou, que queriam impedir a atuação de comerciantes judeus, em 1791 a Czarina proíbe os judeus de se estabelecerem na Rússia Central, no “solo da Mãe Rússia”. Uma exceção foi feita no antigo território do sul da Ucrânia. Esta região, a “Nova Rússia”, foi aberta aos judeus e outras minorias com o intuito de povoar a área e desenvolver sua economia. A cidade principal, Odessa, tornou-se rapidamente importante centro de vida judaica.

Em 1775, a Czarina promulgou um decreto determinando o confinamento dos judeus – dessa vez não em guetos, mas numa parte de seu Império, a chamada “Zona de Residência” ou “Território do Acordo” – em russo, Cherta Osedlosti.

Na área que incluía a antiga Polônia, Ucrânia, Bielorrússia e Lituânia passaram a viver mais de 90% dos judeus do Império. Eles só podiam se aventurar fora da área delimitada com permissão especial, de curta validade, de difícil obtenção. Esse confinamento forçado prevaleceu até

a queda do regime czarista, em 1917.Nos território da atual Ucrânia os judeus ainda viviam em cidades em shtetls, onde eram a maioria da população. De acordo com o censo oficial de 1847 por volta de 600 mil judeus viviam no território da atual Ucrânia, mas acredita-se que eram mais de 900 mil. Suas vidas não haviam mudado, continuavam a falar o iídiche e seus filhos estudavam nos cheders2. A vida ainda girava em volta das sinagogas, dos Rebes, das leis judaicas e das festas do calendário judaico. No decorrer do século 19, progressivamente, os judeus dos vilarejos migraram para povoados e cidades maiores, onde, em muitos casos, se tornaram um amplo segmento das classes pobres trabalhadoras.

Súditos dos czares, os judeus dos territórios ucranianos (com exceção dos judeus da Galícia que estavam sob o domínio austro-húngaro) estavam sujeitos a todas as leis e imposições promulgadas pelo governo imperial. Em 1804, Alexandre I promulga o “Estatuto dos Judeus”. Grande parte das medidas visava sua “russificação”. Outro estatutos atacava as bases econômicas da população judaica, proibindo-a de arrendar terras, comercializar bebidas alcoólicas, inclusive dirigir tabernas. Milhares de judeus ficaram de um dia para outro sem meios de sustento. O governo czarista queria convencer os servos de que sua vida miserável e sofrida era “consequência” das atividades econômicas dos judeus, e não de sua exploração por nobres latifundiários.

É difícil dizer qual dos czares russos foi pior para os judeus. Mas, não há dúvida de que Nicolau I foi um dos piores. Odiava todas as minorias mas, em particular, os judeus. Entre outras

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medidas que atingiram a população judaica Nicolau I reduziu ainda mais drasticamente a área de residência permitida aos judeus, proibiu o uso de vestuário tradicional judaico e do uso da língua iídiche. Ele foi o responsável pelos famigerados “Decretos Cantonais” publicados em 1827. Era obrigatório para todos os homens do Império se alistar a partir de 18 anos, com a duração de 25 anos, o decreto determinava, porém, que os judeus se alistassem aos 12 anos e, até completarem 18 anos, vivessem em escolas “cantonais”. O objetivo era convertê-los; se resistiam às pressões psicológicas, eram submetidos a cruéis castigos. Em 1844, o czar aboliu as kehilot e colocou os judeus diretamente sob a supervisão da polícia e das autoridades municipais.

A situação dos judeus apresentou alguma melhora com a subida ao trono do Czar Alexandre II (que reinou de 1855 até 1881), que iniciou de imediato reformas para implantar um sistema de produção capitalista incentivando a indústria, o comércio e a construção de uma rede de estradas de ferro. Em 1861, emancipou os 47 milhões de servos russos.

Ninguém tinha mais esperanças no novo Czar do que os 3 milhões de judeus que viviam na Cherta. Durante seu reinado: o odiado alistamento compulsório foi reduzido para seis anos, e foi abolido o “acantonamento” dos jovens judeus. Em 1865, permitiu que os chamados judeus “úteis” – comerciantes, banqueiros, artistas e artesãos qualificados e os que tinham curso superior – se estabelecessem na própria Rússia, pois o Czar queria que o capital e o talento judaicos fossem usados para o desenvolvimento da economia de seu império.

Comunidades judaicas formadas por grandes comerciantes, financistas, industriais, artistas e acadêmicos surgiram em várias cidades, principalmente em Odessa. Esses judeus vestiam-se seguindo os padrões ocidentais, falavam russo e seus filhos frequentavam escolas

russas, e muitos adotaram as ideias da Haskalá.

Nas duas últimas décadas do governo de Alexandre II, a Rússia vivenciou um impressionante desenvolvimento econômico. Empresários judeus destacavam-se no comércio e no sistema bancário. Graças a seu acesso ao capital e às relações internacionais, eles estabeleceram as bases do moderno sistema financeiro da Rússia e foram responsáveis pela construção e financiamento de 75 % do sistema ferroviário do país.

Mas, nuvens pretas se avizinhavam da população judaica. Na década de 1870, Alexandre II deu uma guinada reacionária adotando ideias do nacionalismo eslavo, que pregava uma volta aos valores russos e desprezava qualquer ideia liberal. Como era de se esperar, os judeus foram os grandes alvos da nova política. Até início do século 20, foi-se gradualmente acumulando contra eles uma enorme massa de legislação discriminatória.

A fase relativamente liberalizada terminou abruptamente em 1881,

Sinagoga em Kiev, inicio séc.20

Placa para enfeitar a Torá, Ucrânia, século 19

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quando Alexandre II foi assassinado por revolucionários. Seis semanas após a sua morte, por ocasião da Páscoa, inicia-se, no sul da Ucrânia, uma onda de violência. Os pogroms duraram dois anos, espalhando terror e derramamento de sangue por cerca 150 localidades. Enquanto matavam os judeus e suas propriedades eram saqueadas e destruídas, a polícia e o exército eram mantidos afastados, por vários dias, antes de intervir.

Segundo vários historiadores, os pogroms foram iniciados, acobertados ou organizados pelo ministro do Interior. Na época, o governo russo negou qualquer responsabilidade, mas não há dúvida de que se não há “provas” de uma participação direta do governo, há certeza, no mínimo, de sua conivência, haja vista o alastramento rápido e simultâneo dos pogroms por toda a Rússia. Os oficiais do governo cinicamente justificavam-nos, afirmando que eram “culpa” dos próprios judeus, já que não passavam de “uma explosão

de raiva dos camponeses contra a população judaica”.

Em 1882, o governo czarista deu mais um passo contra a população judaica. O novo conjunto de leis, intitulado as “Leis de Maio”, era extremamente discriminatório e cruel, restringindo ainda mais sua liberdade de movimento e de residência. Tornava extremamente difícil, senão impossível, seu acesso à educação e à atividade econômica. Os judeus russos não podiam comprar terras, ter cargos públicos, ser professores universitários. Segundo o censo de 1897 viviam nos territórios ucranianos sob domínio russo 1.927.268 judeus. Pressionados de todos os lados, a grande maioria deles viviam em condições críticas. 

O choque emocional provocado pelos pogroms de 1881-82 e as Leis de Maio tiveram várias consequências. Entre outras, acelerou a formação do Movimento Sionista e a fuga de judeus russos para o

Ocidente. Calcula-se que, entre 1881 e 1918, cerca de 1 milhão e 300 mil judeus deixaram o Império Russo. Com a subida ao trono do novo czar, Alexandre III, o ódio aos judeus assumiu inúmeras formas, desde a organização de pogroms até a falsificação e a publicação dos famigerados “Protocolos dos Sábios de Sião”. Sob a proteção de “eslavófilos” – cujo credo centrava-se no conceito da “Santa Madre Rússia” e da “Rússia para os russos”, da Igreja Ortodoxa – que deu sua aprovação religiosa – e do governo – agindo nos bastidores – o antissemitismo se tornou um movimento bem organizado, “respeitável” mesmo.

A violência era abertamente instigada pelo governo, que passou a manipular abertamente o sentimento antijudaico das massas russas, com dois objetivos. O primeiro era tentar reduzir a população judaica da forma a mais rápida e drástica possível. O segundo, canalizar a insatisfação popular, especialmente entre os camponeses, alimentando o seu ódio contra os judeus.

O intuito do governo czarista era controlar uma onda revolucionária muito mais abrangente que acabaria eclodindo no início do século 20 e poria fim ao odiado regime czarista. Para muitos judeus, parecia o fim de seu sofrimento. Mal sabiam que era o início de outro pesadelo...

Bibliografia:

Dubnow, Simon, History of the Jews in Russia and Poland: From the Earliest Times Until the Present Day, Ed. Nabu Press, 2010 Dubnow, Simon, Works of Simon Dubnow. Kindle edition Meir ,Natan M. Kiev, Jewish Metropolis: A History, 1859-1914 (The Modern Jewish Experience), Ed. Indiana University Press , 2010

Judeus religiosos em frente à Sinagoga de Przemysl, na Galícia, em 1905

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REVISTA MORASHÁ

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CARTAS

Gostaria de agradecer por terem me enviado

a Morashá na hora exata! Fiquei emocionada

quando abri a revista lindíssima, com mensagens

fantásticas um pouco antes de iniciar o Seder. É

realmente um tesouro a ser colecionado. Bruna DayanPor e-mail

Felicito toda a equipe da Morashá, uma revista que honra a tradição de bem educar do judaísmo. O número de abril com o anexo dedicado ao Seder de Pessach está realmente irretocável. O capricho não é só nos aspectos primordiais da divulgação religiosa associada à qualidade cultural. A impressão é belíssima, a arte visual de alto nível e a impressão em excelente papel. Fazendo parte da pequena kehilá de Vitória, Espírito Santo, gostaria de saber da possibilidade de me tornar assinante, pois os números a que ocasionalmente tenho acesso são do meu filho.Renato GuéronVila Velha - ES

Quero agradecer por esses anos todos de rica instrução que a equipe de Redação da Morashá tem-nos proporcionado. Nossa gratidão não pode ser expressa em palavras, nem mesmo um gadol assir tová, nem um TODÁ RABÁ em letras maiúsculas podem descrever como é bom receber tantas informações sobre nosso povo e sua herança milenar. Em especial agora, com a chegada do meu neto Isaac, terei motivos adicionais para continuar amando a publicação e, junto com a Hagadá, estudar cada mitzvá e nossa Torá com meu pequenino.Ivan LiñaresPor e-mail

Muito obrigado pelo envio da Morashá. Gostei muito da Carta ao Leitor e que belo o suplemento para o Seder. Vale destacar, entre outros, Os fundamentos do Judaísmo, As 20 Crianças de Hamburgo e o artigo sobre Moacyr Scliar.

Marcio Shmuel Gomes Rio de Janeiro - RJ

Parabéns à Morashá. Quero agradecer à equipe da revista pela felicidade de poder receber esta relíquia, um tesouro de ensinamentos que enriquecem a nossa identidade judaica. Inês RosenthalRio de Janeiro - RJ

A Morashá é uma revista maravilhosa e impressionante a cada edição. Fernando Boldrin.Ribeirão Preto - SP

Gostaria muito de agradecer o recebimento da Morashá de Pessach. Parabéns pela excelente publicação que muito honra ao povo judeu. Choil PloskRio de Janeiro - RJ

Desejamos parabenizar, mais uma vez, pela excelência dos artigos da publicação e agradecer pelos envios que recebemos faz  muitos anos.David Gerzvolf GubinManaus - AM

Frequentei por muito tempo o Shil Da Vila, (Adat Yschurum) no Bom Retiro, depois me mudei para Joinville e passei a frequentar o SIP Curitiba. Fiz aliá, fiquei dois anos e meio em Beer Sheva, e frequentava a Beit Knessset Ohel Rachel e a Yeshivah Orot Ysrael, na mesma cidade. Regressei ao Brasil há dois meses e provavelmente retorne ao Shil da Vila mais para festas e alguns shabatot por mês. Não vi até hoje uma revista tão bem editada como a Morashá, feita com amor e carinho, nos exemplares que sempre recebia de amigos pode-se notar o nível de empenho em sua produção. Ela traz sempre temas de muita importância para nós. E sem dúvida para meus filhos será mais uma fonte constante de informação e ligação com nossas tradições e interesses.

Vangelis Maciel LopesVotuporanga - SP

Nós, da Biblioteca “Olíria de Campos Barros”, agradecemos a doação da revista e suplemento da Morashá, edição 83, abril 2014. Será um prazer incluí-los em nosso acervo e disponibilizá-los à população de Diadema.Fabio Orsi Meschini, Bibliotecário Prefeitura do Município de DiademaSecretaria de Cultura, Serviço de Biblioteca e DocumentaçãoDiadema, SP