Analogias e contrastes barroquizantes na lírica camoniana
-
Upload
antonio-m-gomes -
Category
Documents
-
view
1.007 -
download
1
description
Transcript of Analogias e contrastes barroquizantes na lírica camoniana
1
Analogias e contrastes barroquizantes na lírica camoniana
António Martins Gomes
(Centro de História da Cultura – Universidade Nova de Lisboa)
Em meados do século XX, Hernâni Cidade, ao prefaciar uma compilação de
poesia cultista e conceptista, revela a existência de marcas prolegómenas do barroco no
texto camoniano:
Os brincos retóricos que uma ou outra vez topamos em Camões, crescem em número e
requinte em Rodrigues Lobo ou D. Francisco Manuel de Melo e multiplicam-se em Frei
Jerónimo Bahia, na busca ansiosa de lumes e formosuras que fazem do seu Lampadário de
Cristal a mais vistosa girândola nessa competição pirotécnica que é a Fénix Renascida.
(CIDADE 1958: VII-VIII)
Em 1965, Jorge de Sena publica no segundo volume da Luzo-Brazilian Review
“Maneirismo e barroquismo na poesia portuguesa dos séculos XVI e XVII”, um extenso
artigo embrionário na identificação de uma corrente maneirista na obra de Camões, e
nele considera que este autor quinhentista se exprime barrocamente para transmitir uma
emoção clássica (cf. SENA 1980: 75).
No início da década de 70, Vítor Manuel de Aguiar e Silva, ao definir o tipo de
linguagem e o estilo da lírica barroca em Maneirismo e Barroco na poesia lírica
portuguesa, identifica um conjunto de elementos estilísticos já presentes na estética
maneirista:
A passagem do maneirismo para o barroco é extremamente difusa e diversos elementos
constitutivos do estilo maneirista transitam para o estilo barroco, sendo mesmo por vezes
difícil separar com nitidez o que é maneirista e o que é barroco. (SILVA 1971: 470)
No mesmo ano de publicação da dissertação de doutoramento de Aguiar e
Silva, Maria de Lurdes Belchior identifica igualmente uma considerável pregnância da
poesia camoniana de características mais recorrentes e imitadas no século seguinte;
nesta ordem de ideias, a autora sugere que a génese do barroco em Portugal também
deve ser procurada nas “agudezas camonianas” (cf. BELCHIOR 1971: 113).
Por sua vez, Maria Lucília Gonçalves Pires refere na década seguinte que
Camões é “[…] um dos poetas mais frequentemente estudados como exemplo pelos
principais teorizadores do conceptismo barroco peninsular – Baltazar Gracián e
Francisco Leitão Ferreira. Para estes autores Camões é um mestre de agudezas e
conceitos.” (PIRES 1987: 96). No tratado de retórica barroca Agudeza y arte de ingenio
(1648), o escritor espanhol escolhe o soneto “Alma minha gentil que te partiste” para os
2
exemplos de correspondência e proporção, e recorre aos poemas “Quando da bela vista
e doce riso” e “Menina dos olhos verdes” como práticas dos argumentos conceituosos;
nos dois volumes da Nova arte de conceitos (1718-1721), o teorizador português
considera Camões um bom imitador da epopeia clássica, chegando a imaginar que se
Virgílio lesse Os Lusíadas orgulhar-se-ia do poeta renascentista como um dos seus
grandes autores epigonais.
Como nota dissonante deste período de recepção literária do génio camoniano,
registe-se o nome de Manuel Pires de Almeida, em cujo Juízo Crítico sobre a Visão do
Indo e do Ganges aponta alguns pormenores deficitários na sua epopeia, sobretudo ao
nível do curto espaço de tempo decorrido entre os acontecimentos narrados e a sua data
da publicação (apenas 75 anos), da falta de heroísmo consequente e verosímil na ação, e
do uso da mitologia como semente maligna de idolatria, entre outros erros.
Durante as seis décadas de ocupação filipina, pressentem-se em algumas
intertextualidades camonianas tanto o eco patriótico que reverbera a obra épica (é o caso
das glosas em oitavas dedicadas à batalha de Aljubarrota pelo magistrado António
Barbosa Bacelar), como a emulação mais profunda da sua estética lírica. Desta última,
citemos a homenagem de Francisco Rodrigues Lobo na Écloga dos Vaqueiros à
composição em redondilha maior “Descalça vai para a fonte”, bem como o diálogo
entre a Vida e o Tempo, desenvolvido por Francisco Manuel de Melo no soneto “V.
Quem me chama dentro de mim? – T. O Tempo ousado.”, numa evocação do soneto
“„Que levas, cruel Morte?‟ „Um claro dia.‟”
Baltazar Gracián e Francisco Leitão Ferreira retiram, com efeito, alguns
exemplos agudos e engenhosos da poesia camoniana, mas, usando as mesmas palavras
de Hernâni Cidade, “as citações que dele se fazem apenas exemplificam o que de mais
moderado há no jogo.” (CIDADE 1957: 119. Itálico do autor)
No intuito de diversificar os contributos para a identificação de algumas
características seiscentistas na poética camoniana, comecemos pelo soneto “Está o
lascivo e doce passarinho”, onde nos é possível assistir a uma exemplar relação
analógica entre um pássaro negligente, perseguido e morto por um caçador, e o coração
irreflectido do sujeito lírico, ferido de morte pelas setas embebidas no deleite pagão de
Cupido. Ainda a partir desta relação, observe-se a marca autoral como imitatio vitae de
índole petrarquista a partir quer da equivocatio instaurada pelo vocábulo “pena”, quer
da analogia estabelecida entre o trinado desmedido da ave – plasmado em verso livre e
3
espontâneo – e esta mesma composição em medida nova, sujeita a uma espartilhação
canónica e racional.
Idêntica analogia pode ser encontrada ainda no soneto “Qual tem a borboleta
por costume”: tal como a frágil mariposa, que esvoaça para a morte ao ser atraída
inevitavelmente pela luz flamejante da vela, assim sucede ao sujeito lírico que,
deslumbrado com o brilho hipnótico dos olhos da bela Aónia (anagrama nominal de
Joana), se martiriza nos seus mais ardentes e fogosos desejos.
“A formosura desta fresca serra” é, por seu turno, um bom exemplo para nos
concentrarmos agora na estrutura contrastiva do claro-escuro, uma das grandes linhas de
força da estética seiscentista. Neste soneto, o estado da natureza altera-se para melhor
ou para pior, em função da presença ou ausência da mulher que prende o coração
masculino; nas quadras, toda a descrição dos elementos da natureza concorre para a
estética clássica do bucólico locus amoenus, a representação pagã de um estado de
espírito apaixonado e ocioso; nos tercetos, a natureza irrompe, qual visão aterradora,
sob a forma agressiva de um locus horrendus. Afinal, as saudades que o sujeito lírico
sente da sua amada não lhe permitem fruir toda a beleza genesíaca que o rodeia; pelo
contrário, o sujeito enoja-se de melancolia e tédio sem uma presença feminina a
potenciar toda a beleza objectiva da paisagem contemplada.
Inspirado no soneto petrarquista “Pace non trovo e non ho da far guerra”
(Canzoniere, CXXXIV), que por sua vez remete ainda para o poema camoniano “Tanto
de meu estado me acho incerto”, o soneto “Amor é fogo que arde sem se ver” é um dos
poemas mais glosados na produção lírica barroca, devido em grande parte à profusão
conceptista de antíteses e paradoxos disseminados ao longo das suas estrofes para
melhor procurar descrever o sentimento amoroso.
Dentro desta dependência intertextual, o poema anónimo “É um nada Amor
que pode tudo,” tem lugar de destaque: publicado na Fénix Renascida1, cada um dos
seus catorze versos oferece-nos um jogo de paradoxos e antíteses e o seu remate
exacerba a indefinição do amor através de duas partículas negativas colocadas no último
verso: “É, por fim, um não sei quê, que não entendo.”. Hernâni Cidade tem sem dúvida
esta composição em mente quando salienta que os autores do período barroco “[…] ao
prazer de comunicar o estado de alma ou a ideia inteligível `multidão dos leitores
médios, preferem o orgulho de, pelo complicado jogo dos finos paradoxos, dos
1 Compilação poética seiscentista em cinco volumes, recolhida e publicada por Matias Pereira
da Silva entre 1715 e 1728.
4
conceitos subtilíssimos, surpreender os leitores de cultura mais rara.” (CIDADE 1957:
118)
Quanto ao poema de Camões, nele se constata que, nesta estrutura conceptista
edificada para que as manifestações de dor se entrelacem com as de prazer, numa
sucessão dicotómica de contradições e antíteses, o acto de descrever o complexo e
desassossegado estado de enamoramento em termos lógicos e dedutivos revela-se um
trabalho inglório. Assim se conclui que o Amor, uma entidade multifacetada e ambígua,
se define paradoxalmente pela sua indefinição.
Um terceiro exemplo onde a relação contrastiva surge em notória evidência na
lírica camoniana é em “Vós sois uma dama”, uma trova com uma ambiguidade causada
pela sua dupla possibilidade de leitura sequencial, onde a donzela destinatária tanto
pode ser despromovida na Cadeia do Ser pelas características negativas que possui
como elevar-se ao mais glorioso e divino pedestal através da sua beleza e graciosidade.
Tanto neste artificioso jogo de palavras e rebuscamento formal, bem como no
encadeamento lógico e na subtileza lúdica do raciocínio, podemos descobrir inegáveis
indícios da estética cultista e conceptista teorizada por Baltazar Gracián. Com efeito,
este poema estaria inicialmente disposto em verso pentassilábico para ser lido numa
sequência vertical ao longo de quatro estrofes, cujo resultado final redundaria numa
crítica mordaz à senhora em questão, com uma linguagem cáustica e corrosiva em
relação às suas qualidades físicas.
Interpretada sob esta única perspectiva, a composição em medida velha
apresentaria simplesmente as características contundentes das cantigas de escárnio
medievais, como disso é emblemático exemplo a trova satírica dedicada à “dona feia”
por João Garcia de Guilhade, uma poesia palaciana de componente lúdica e carácter
circunstancial, destinada ao ócio aristocrático. Contudo, ao emparelharmos as duas
últimas estrofes com as iniciais, instaura-se a equivocatio causada pela dupla
possibilidade de leitura tanto na vertical como na horizontal; instala-se a perplexidade
perante uma segunda leitura, onde a composição se transforma formalmente em duas
oitavas decassilábicas e, em substância, num louvor estreme às qualidades físicas e
morais da dama, o que revela o engenho do seu autor, especializado na arte mágica de
dizer e desdizer, encobrir e descobrir, velar e revelar. Não será esta a mesma técnica do
trompe l’oeil, também usada no soneto “Vencido está de Amor meu pensamento” (onde
uma leitura na vertical de uma letra estrategicamente colocada na sétima sílaba de cada
5
verso forma a expressão cortês “mui alta senhora”), e que se tornará tão recorrente na
perspectiva pictórica da arte seiscentista?
A época renascentista afirma-se historicamente pela sua extrema assertividade,
pela absoluta confiança humana em postulados científicos. Em tom de superioridade
demiúrgica, após tantos mitos ter conseguido derrubar, o homem quinhentista sente-se
não só dono e senhor de todo o já conhecido mundo que o rodeia como também
inabalavelmente seguro do seu próprio destino. No séc. XVII, perante a continuada
decadência a minar o país político, social e económico, a capacidade de espanto perante
a novidade do presente e a incerteza do futuro assemelha-se à das anteriores décadas
maneiristas, varridas pelos ventos nostálgicos da dourada era manuelina. Idêntica
sensação ocorre em “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”, o tão conhecido
soneto camoniano onde sobressai o topos da mudança, tão versejado ao longo do século
XVI, e onde se estabelece uma relação contrastiva entre o passado e o presente através
de expressões antitéticas. A conclusão surge no último terceto, desconcertante em
relação às premissas antecedentes: a própria mudança muda estranhamente para pior,
uma situação anómala que faz da vida uma caminhada ainda mais melancólica e
imprevisível para o sujeito lírico.
Tendo observado nos parágrafos antecedentes as relações analógicas e
contrastivas isoladas em cada um dos exemplos líricos, vejamos agora como as mesmas
podem ser estabelecidas em simultâneo, situação constatável em alguns poemas
seiscentistas. Observe-se o caso do soneto “Desgraça, inveja de tudo”2, de Francisco
Manuel de Melo, que desenvolve uma ironia de oposição, onde o autor se esconde atrás
do sujeito lírico, um pastor em solidão que contempla e invoca o Tejo a correr livre ao
encontro do vasto oceano, e a personificar um estado psicológico diametralmente oposto
ao seu. Ou ainda o modelo do soneto “Formoso Tejo meu, quão diferente”, de Francisco
Rodrigues Lobo, em que o sujeito lírico estabelece uma relação analógica entre si e o rio
através das características mútuas; no último terceto, a verdade dos factos impõe-se na
perspectivação do futuro através de uma acentuada ironia de oposição, onde a natureza
se dinamiza e regenera ao longo do ciclo contínuo das quatro estações ao passo que o
ser humano caminha irremediavelmente para a morte, isto é, sempre para pior.
Os descobrimentos, ao permitirem um melhor conhecimento geográfico do
planeta e, em consequência, uma maior e mais acelerada interpenetração de civilizações
2 Soneto XXII, pertencente à segunda parte das Obras Métricas, intitulada As Segundas Três
Musas do Melodino, e publicada em 1649.
6
e culturas, contribuem para alargar o paradigma da beleza, concretizado no decréscimo
do consenso universal e na emergência de uma relatividade subjectiva. Como imagem
de marca da especificidade histórica do quinhentismo português, o magnífico retrato
físico da escrava Bárbara vem subverter o modelo feminino consagrado por Petrarca,
pois a sua “pretidão de Amor” – a síntese sublime encontrada pelo sujeito lírico para
melhor a definir – abala a objectividade canónica da Beleza na estética ocidental,
desafia as regras do amor impostas pelas estritas barreiras sociais, e instaura um novo
olhar subjectivo: a beleza está apenas e para sempre na perspectiva do observador.
Com efeito, as endechas à escrava Bárbara oscilam entre a imitação deferencial
do ideário petrarquista, no que respeita ao epigonismo do código estrito do amor cortês
e ao encómio incansavelmente sofrido de uma beleza singular, e a imitação diferencial
do fáustico clinamen maneirista, ansiando por superar a mestria canónica da estética
instituída tanto ao nível da mudança do modelo feminino como na opção formal pela
medida velha.
Nesta composição, o jogo cultista é protagonizado pelo ludismo lexical,
nomeadamente pelo estatuto ambíguo da cativa que cativa o sujeito lírico, uma
equivocatio dialéctica entre ser e parecer: afinal, ela é dona e senhora do seu coração. A
partir desta situação espantosa, decorre igualmente um jogo conceituoso, na medida em
que “a coisa amada” tanto se aproxima do modelo petrarquista no traço psicológico, ao
ser elevada ao expoente máximo da devoção amorosa, como dele se desvia no retrato
físico e na insignificância social.
Por sua vez, as grandes analogias conceptistas desta composição fazem-se
através da associação da beleza física da escrava aos mais apreciados elementos da
natureza, tais como as flores, as estrelas do céu ou a rosa nunca vista entre tantas outras,
o que nos remete para a pureza virginal da rosa das rosas, a mais elevada simbologia
floral que enriquece e perfuma o cancioneiro sacro dedicado por Afonso X a Santa
Maria, estrela do dia e flor das flores, instrumento medianeiro da ascensão do homem a
um nível divino.
Também o engenhoso soneto “Uma admirável erva se conhece” entrecruza
uma analogia de dependência e um confronto de situações: tal como o girassol, que
ostenta as suas pétalas assim que o astro-rei se ergue na linha do horizonte, também o
sujeito do poema se sente vivo e excitado apenas quando a mulher amada está perto de
si. Numa estrutura marcada pelo equilíbrio de construção formal e pelo paralelismo
estrófico entre quadras (no geral) e tercetos (no particular), deparamos com uma
7
situação de alternância entre claro e escuro (como nas telas de Caravaggio ou de
Rembrandt), a alegria e a tristeza, o prazer e o tormento, a presença e a ausência,
dicotomias marcadas pela coordenativa adver sativa.
O exemplo do girassol, que acompanha firme e hirto o movimento vital da luz
apolínea e de noite perde a cor e esmorece, adequa-se perfeitamente à relação
estabelecida entre o sujeito lírico e a eleita do seu coração: quando ela está presente, há
alegria e cor, mas na sua ausência instala-se o estado dionisíaco de melancolia e
sofrimento.
Para terminar, o desconcerto do mundo, um topos clássico recorrente na poesia
camoniana, encontra-se exemplarmente representado na esparsa “Os bons vi sempre
passar”, que denuncia sob a forma silogística os erros e as incongruências de um mundo
visto “como um confuso labirinto” (MARAVALL 1997: 210), e em cuja conclusão a
sociedade é equiparada a um gigantesco estado fatalista de contradições e equívocos.
Segundo Aristóteles, o silogismo é o modelo de raciocínio por excelência,
sendo através deste processo dedutivo que, admitida a legitimidade universal das duas
premissas iniciais, se conclui necessária e consequentemente uma nova proposição,
nelas incluída e implicada; tal acontece num dos exemplos mais comuns da lógica
aristotélica – as premissas “Todos os homens são mortais” e “Sócrates é homem”
antecedem a conclusão natural: “Sócrates é mortal”. Transponhamos mutatis mutandis
esta mesma dedução para a “Esparsa ao desconcerto do mundo”: se o primeiro truísmo
assenta em valores universais – enquanto os bons sofrem tormentos e são punidos, os
maus obtêm satisfação e são recompensados –, o segundo entra já no domínio
particular: eu fui mau. A conclusão é, porém, espantosa e desconcertante: eu acabei por
ser punido.
Nesta composição em medida velha, verificamos que o autor quinhentista parte
de uma lógica dedutiva para conceber uma estrutura “anti-silogística”: após ter
observado em seu redor a ocorrência contínua de enormes arbitrariedades sociais e de
ter admitido a verdade universal das duas premissas enunciadas na primeira quintilha, o
sujeito lírico procura seguir o caminho do mal para atingir esse tão desejado “bem”;
contudo, como se verifica na segunda quintilha, já de ordem particular, a consequência
deste seu acto revela-se tão ilógica quanto inesperada, por não ser alcançada a esperada
recompensa.
Se 1580 marca em termos históricos a perda da independência de Portugal, o
início da dinastia filipina e a morte de Camões, então esta mesma data pode ser vista no
8
plano literário como uma fronteira consensualmente estabelecida entre a derrocada final
do majestoso edifício renascentista e a instalação de um espaço circense, em cujo palco
se improvisam jogos dialécticos e praticam acrobacias cultistas para gáudio e espanto
delirante do olhar, o órgão central do sistema barroco (cf. BUCI-GLUCKSMANN
1986: 29).
Com efeito, o Renascimento frui as emoções pagãs do tempo presente, o
Maneirismo anseia numa extrema melancolia pelo passado, e o Barroco vive
desconfiado do futuro numa angustiada consciência da efemeridade da vida. Sendo
Camões um autor arrumado cronologicamente numa linha ténue entre a diástole
classicista e a sístole pós-tridentina, dois mundos tão distintos quanto complementares,
aqui procurámos contribuir para determinar o desenvolvimento de – e usando a precisa
terminologia de João Gaspar Simões – intumescências barrocas (cf. SIMÕES 1955:
399) na sua poesia, a perturbar ainda mais o engenhoso confronto lírico entre o desejo
sanguíneo dos sentidos e o refreamento empedernido da alma.
Bibliografia
BELCHIOR, Maria de Lurdes (1971), Barroco e cancioneiros barrocos, in Os homens e os
livros: séculos XVI e XVII, Lisboa, Verbo.
BUCI-GLUCKSMANN, Christine (1986), La folie du voir. De l’esthétique baroque, Paris,
Éditions Galilée.
CIDADE, Hernâni (1958), Prefácio, in AA. VV., A poesia lírica cultista e conceptista, 2ª ed.,
Lisboa, [Gráf. Santelmo], V-XII.
– – (1957), O século Barroco, in O conceito de poesia como expressão da cultura, 2ª ed.,
Coimbra, Arménio Amado, 107-137.
FERREIRA, Francisco Leitão (1718-1721), Nova arte de conceitos, 2 vols., Lisboa, Oficina de
Antonio Pedrozo Galram.
GRACIÁN, Baltasar (1957), Agudeza y arte de ingenio, 4ª ed., Madrid, Espasa-Calpe.
MARAVALL, José António (1997) A cultura do barroco, trad. Henrique Barrilaro Ruas,
Lisboa, Instituto Superior de Novas Profissões.
MOISÉS, Massaud (1997), O espectáculo barroco: do diálogo ao conceito, in As estéticas
literárias em Portugal – sécs. XIV a XVIII, Lisboa, Caminho, 141-298.
ORS, Eugenio d‟ (1990), O Barroco, trad. Luís Alves da Costa, Lisboa, Vega.
PIRES, Maria Lucília Gonçalves (1988), Reflexões acerca da poética barroca, Claro-Escuro.
Revista de Estudos Barrocos, 1, 39-46.
– – (1987), Camões no Barroco (a crítica camoniana na época barroca), in AA. VV., III Reunião
Internacional de Camonistas (10 a 13 de Novembro de 1980): Actas, Coimbra,
Universidade de Coimbra, 87-98.
SENA, Jorge de (1980), Maneirismo e barroquismo na poesia portuguesa, in 30 anos de
Camões, I, Lisboa, Edições 70, 63-92.
SILVA, Vítor Manuel Pires de Aguiar e (1971), Maneirismo e Barroco na poesia lírica
portuguesa, Coimbra, Centro de Estudos Românicos.
SIMÕES, João Gaspar (1955), Degenerescência barroca, in História da Poesia Portuguesa, I,
Lisboa, Empresa Nacional de Publicidade, 393-468.