Análise de A Megera Domada

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Análise de A Megera Domada, de Shakespeare

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A obra de William Shakespeare um fruto de seu tempo: enquanto revela os conceitos que sua sociedade tinha sobre a mulher, evidencia que ali tambm poderia existir uma mulher forte, mas que seria combatida. Este seu segundo texto j carrega aquelas que seriam suas marcas: o humor, a ironia, a inverso de papis. Mas carrega tambm Catarina Minola, sua primeira personagem feminina forte. Esta mulher que Catarina representa sintomtica: a Inglaterra de Shakespeare era a mesma de Elizabeth I (1588-1603). A possibilidade de uma mulher forte no absurda, j que o poder esta na mo de uma mulher mantinha um governo de estabilidade e era, portanto, de se esperar que, mesmo nas condies que sero mostradas a seguir sobre a condio da mulher, estas gozassem [...] de maior liberdade do que suas irms na Europa continental. Os viajantes que vinham do estrangeiro ficavam surpresos com o comportamento delas, que no eram confinadas em casa como na Espanha e em outros pases: alm das igrejas, elas tinham permisso de frequentar outros lugares pblicos, tais como mercados, feiras e teatros, onde se constituam em uma parte importante dos espectadores.[footnoteRef:1] [1: Anna Stegh Camati. Questes de gnero e identidade na poca e obra de Shakespeare. 2008, p. 5.]

A trama, entretanto, ainda masculina: o heri Petruchio, que alcanou a faanha de domar a megera. Para as quatro mulheres contra algo em torno de 20 homens presentes na trama (Catarina, Bianca, a hoteleira do prlogo e a viva notando que nem nomes as duas ltima tm), apenas em um momento h uma cena s para elas, uma conversa entre Bianca e Catarina e at aqui fica claro a presena da submisso, neste caso de Bianca para Catarina. O papel das irms na pea oposto, porm se inverte at o desfecho da trama. No inicio, Catarina a megera, vista como brusca, irritada e voluntariosa[footnoteRef:2]. Envolver-se com uma mulher desse porte era encarado como algo terrvel. Enquanto isso Bianca era uma jovem doce e afvel. Uma mulher da Idade Mdia deveria ser uma esposa bastante rica, jovem, formosa e educada, como convm a uma dama de qualidade[footnoteRef:3], como Hortnsio fala a Petruchio sobre Catarina na pea, a fim de convenc-lo a casar-se com ela, coisas que Catarina no era pelo menos no formosa e educada. No final da trama, quem desrespeita seu marido Bianca, no respondendo ao seu chamado, mas Catarina, agora domada por Petruchio, d o exemplo de servido e obedincia e, alm de tudo, parece estar convencida da autoridade do esposo. O comportamento feminino insubordinado era visto de mau jeito no perodo, como mostrado na trama, j que uma das preocupaes das personagens que Catarina seja mal falada devido ao seu comportamento explosivo no incio da histria, fazendo com que ela no tenha a popularidade que Bianca tem entre os pretendentes, e como confirmado por Christiane Klapisch-Zuber [2: William Shakespeare, A megera domada. So Paulo: Abril Cultural, 1978. p.397] [3: Idem]

[...] a insubordinao das mulheres no apenas objecto da reprovao dos maridos; incorre igualmente na reprovao colectiva.[...] A insubordinao da mulher pe em perigo a prpria ordem do mundo e provoca aqueles rituais em que a redeno passa pelo escrnio.[footnoteRef:4] [4: C. Klapisch-Zuber. A mulher e a famlia. In: LE GOFF, J. (Org.). O Homem Medieval. Lisboa, 1989, p.207.]

Entre Catarina e Bianca tambm h uma relao hierrquica, sendo que a ltima deve fazer tudo que a outra mandar por ser mais nova[footnoteRef:5]. Essa relao reflete tambm na questo do casamento: Bianca s pode casar depois que Catarina arranjar um marido, por definio do pai, j que era mal visto a irm mais velha casar depois da mais moa, pelo risco desta ficar solteira e no ter filhos o matrimnio era importante por conta da descendncia deixada. Este um ponto de virada na trama, j que a mais nova tem vrios pretendentes e Catarina, por conta do gnio forte, tem dificuldade para arrumar admiradores. No importava aqui se Catarina, por ser mais velha, recebesse o maior dote de seu futuro marido, mas sim que ambas recebessem um bom dote, a altura de sua posio social. [5: William Shakespeare. Op. Cit., p.403]

Na Idade Mdia, a mulher tem uma posio de submisso. A justificativa, tanto poltica, cientifica e religiosamente, a de que o homem mais forte. Por exemplo, para a Igreja, a mulher no totalmente a imagem de Deus, j que veio da costela de Ado, este sim representante da imagem divina. O imaginrio da poca era propenso a ver a mulher como responsvel pelos males do mundo, ideia que tambm est ligada imagem de Eva, responsvel pelo pecado original. Ao final da pea, Catarina confirma a ideia de submisso da mulher a seu marido, evidenciando a fora e autoridade do homem:Causa-me vergonha ver as mulheres [...] pretenderem o mando, a supremacia e o domnio estando destinadas a servir, amar e obedecer. Por que nossos corpos so to delicados, frgeis e tenros, imprprios para as fadigas e agitaes do mundo, a no ser porque a qualidade gentil de nosso espirito, de nossos coraes, deve achar-se em harmonia com nosso exterior?[footnoteRef:6]. [6: Ibidem, p.461]

Georges Duby, em sua obra Idade Mdia, idade dos homens Do amor e outros ensaios, relaciona essa subordinao ideal entre esposos com a ordem natural divina das coisas: Esse amor se mostra respeitoso, naturalmente, das relaes de subordinao necessria que a Providncia instituiu entre os dois sexos. O amor do marido por sua mulher se chama estima, o da mulher por seu marido se chama reverncia.[footnoteRef:7] [7: Georges Duby.Idade Mdia, Idade dos homens. So Paulo: 1989. p. 58]

O autor tambm atribui essa subordinao condio da mulher. Alm disso, ela est intimamente relacionada com a ordem social da poca, com o papel que cada um dos sexos tinha na sociedade: [...] o homem que toma mulher, qualquer que seja sua idade, deve comportar-se como snior [mais velho, senhor] e manter essa mulher sob rdeas. [...] a mulher um ser fraco que deve necessariamente ser subjugado porque naturalmente perversa, que ela est destinada a servir o homem no casamento e que o homem tem o poder legtimo de servir-se dela. [...] o casamento forma o embasamento da ordem social, e que essa ordem se funda sobre uma relao de desigualdade e reverncia [...].[footnoteRef:8] [8: Georges Duby.Idade Mdia, Idade dos homens. So Paulo: 1989. p.30]

Apesar de referir-se ao sculo XII, em muito se assemelha a fala do autor com os acontecimentos descritos na pea e a mensagem passada por ela principalmente na declarao final de Catarina. Christiane Klapisch-Zuber outra autora que explica essa relao entre o homem e a mulher, relacionando-a justificativa religiosa e tambm aos papis desempenhados por cda um dos sexos na sociedadeA autoridade a palavra-chave que domina a viso masculina das relaes entre os conjuges [...]. o homem, primeiro ser da criao, a imagem de deus mais semelhante ao original, a natureza mais perfeita e mais forte, deve dominar a mulher. [...] ao mesmo tempo que justificam a subordinao da mulher, justificam igualmente a diviso das tarefas que da deriva. O homem tem uma autoridade natural sobre a mulher.[footnoteRef:9] [9: C. Klapisch-Zuber. Op. Cit., p..205]

A liberdade de escolha da mulher quanto ao matrimnio existia, mas era limitada. Bianca poderia declarar seu amor por algum, mas o dote era decisivo na escolha feita pelo pai, que firmava o acordo final.A instituio do casamento tem tambm papel importante na definio dos papis do homem e da mulher na sociedade, na diviso dos poderes e funes dentro e fora do casamento. A mulher tem a funo de servir, enquanto o homem de dominar.Teu marido teu senhor, tua vida, teu guardio, tua cabea, teu soberano; quem cuida de ti, quem se ocupa de teu bem estar. ele quem submete seu corpo aos trabalhos rudes, tanto na terra quanto no mar. [...] S impor de ti o tributo do amor, da doce e fiel obedincia: paga bem pequena para to grande divida. A mulher tem as mesmas obrigaes em relao ao marido do que um sdito em relao ao prncipe.[footnoteRef:10] [10: William Shakespeare. Op. Cit., p.461]

Os vnculos de parentescos da sociedade feudal so fundamentais, principalmente pelo fato da vida politica ser feita de alianas. Era preciso um casamento que garantisse patrimnio e no diminusse a linhagem, sendo a funo desta, casar bem: ceder o sangue e vantagens que poderiam levar para outra a linhagem, como glria e honra, no apenas bens materiais. O acordo nupcial era estratgico, pois garantia justamente que a escolha do cnjuge fosse a melhor, que afastasse o risco de diminuir o patrimnio, como fica evidente nos trechos a seguir: Aquele que puder assegurar minha filha o melhor dote, esse ter o amor de Bianca. / Conhecestes meu pai muito bem; sou o nico herdeiro de suas terras e de seus bens, que entre minhas mos antes prosperaram que diminuram. Nessas condies, se conseguir fazer-me amar por vossa filha, dize-me que dote receberei ao tom-la como esposa?[footnoteRef:11] [11: Ibidem, pp. 406 e 414]

O dote tem papel fundamental para a concretizao dos dois casamentos. Como observado na fala acima, Petruchio estava preocupado com seu dote, mas Batista, pai de Catarina e Bianca, se preocupa com o que as filhas viriam a receber quando da morte dos maridos. Petruchio, cujo pai j havia falecido, quem garante a herana para Catarina caso morresse, mas, no caso de Lucncio, cujo pai estava vivo, a garantia era dada por este. Isso indica que os filhos no tinham controle sobre o patrimnio e precisavam do pai para fazer suas negociaes. Os pretendentes ao matrimnio esto sempre reafirmando seus antepassados, principalmente a figura do pai e seus feitos, tanto que Lucncio obrigado a contratar algum para se passar por seu pai para conseguir se casar com Bianca e mesmo Petruchio o cita para garantir o casamento com Catarina. A partir do sculo IX[footnoteRef:12], o casamento passa a ser para o cristianismo, indissolvel e j aceito pela aristocracia ainda no sculo XII[footnoteRef:13]. O trecho abaixo d a entender que, caso Lucncio e Bianca se cassassem em segredo, nada poderia ser feito a respeito, podendo ser entendido como uma referencia a esta indissolubilidade: [...] Poderamos, quem sabe, casar-nos clandestinamente. Uma vez realizado o casamento, que o mundo dissesse o que quisesse, porque ela seria s minha a despeito de todo mundo.[footnoteRef:14] [12: Phillipe Aris. O casamento indissolvel. In: Andr Bjin (Org.). Sexualidades Ocidentais. So Paulo: Brasiliense, 1985, p.169.] [13: Ibidem, p.178.] [14: William Shakespeare. Op. Cit., p.424]

Mas se apresenta o problema: a indissolubilidade do casamento deveria ser possvel na Itlia renascentista catlica, mas no na Inglaterra elisabetana, ento anglicana. Questionamos, portanto, o ponto de vista adotado por Shakespeare: o ingls, onde morava, ou o italiano, onde se passa a histria?Curioso que a nica meno a uma figura religiosa no texto justamente no momento do casamento. Isso mostra um papel pequeno do sagrado na vida cotidiana, que aparece apenas para consolidar e legitimar uma situao. [...] por exemplo, em Itlia, em pleno sculo XVI, os poderosos continuaram a celebrar essa cerimnia [matrimnio] num ambiente famliar e apenas na presena do notrio. Pelo seu prprio formalismo, o ritual religioso que rodeia a cerimia revela os limites da influncia prtica da Igreja [...].[footnoteRef:15] [15: C. Klapisch-Zuber. Op. Cit., p.198]

Apesar de se citar a igreja, no h como entender se a cerimnia se d dentro ou fora deste ambiente. O hbito de se realizar o casamento fora da igreja era comum desde o sculo XII e passa a ser dentro da igreja por volta do sculo XVII, quando foi escrito o texto por Shakespeare. Bianca: Calma e rapidamente, senhor, pois o padre est pronto./Biondello: [...] Quero ver a igreja em cima de vs.[footnoteRef:16] O em cima de Biondello pode ser entendido tanto dentro como fora da igreja. [16: William Shakespeare. Op. Cit. p.450]

Quando alguma regra do casamento era quebrada, o problema deveria ser resolvido internamente a justia era privada , ou seja, dentro da prpria famlia se chegava a uma resoluo. A dominao da megera pode ser usada como exemplo nesse caso: frente mulher intratvel, Petruchio estabeleceu um plano para dom-la. A necessidade de dominao vem justamente do fato de Catarina ser tida por Petruchio como um bem: Serei dono daquilo que me pertence. Ela faz parte de meus bens, meus bens mveis; ela minha casa, meu mobilirio, meu campo, meu celeiro, meu cavalo, meu boi, meu burro, meu tudo.[footnoteRef:17] [17: Ibidem, p.246]

difcil entender se Shakespeare, nesta obra foi irnico ou no, se a megera de fato uma critica aos costumes da sociedade ou se ele est concordando com a posio dos homens de seu texto. Outro ponto de duvida em relao prpria Catarina: esta fingia ou no estar domada por seu esposo? possvel que sim, aps ver que a nica maneira de conseguir viver com aquele homem, graas s limitaes impostas por ele, seria se submetendo, ou pelo menos fingindo-o. Philippe Aris trata deste tema em Sexualidades ocidentais; segundo ele [...] estas [as esposas] so convidadas a ser submissas [...]. A submisso aparece com a expresso feminina do amor conjugal. [...] O amor assim, que apropriao, no vm de uma s vez [...]. por essa razo que no h nada de chocante, mesmo para as concepes morais mais exigentes, se os casamentos so negociados em funo das alianas e dos bens. A Igreja apenas teria preferido em princpio que essa negociao fosse aceita pelos futuros cnjuges, e no imposta a eles.[footnoteRef:18] [18: Phillipe Aris. O amor no casamento. In: Andr Bjin (Org.). Sexualidades Ocidentais. So Paulo: Brasiliense, 1985, p.158]

Desse modo, podemos pensar que Catarina, pressionada pelas atitudes de marido, aceita a realidade de seu casamento, subordinando-se idia do que seria, na poca, o amor conjugal pelo lado feminino: a submisso. Portanto, um ponto claro na obra: a felicidade conjugal s atingida com a submisso da mulher.Referncias bibliogrficas:ARIS, Phillipe. O amor no casamento. In: _________, BJIN, Andr (Org.). Sexualidades Ocidentais. So Paulo: Brasiliense, 1985, pp.153-162._______. O casamento indissolvel. In: _________, BJIN, Andr (Org.). Sexualidades Ocidentais. So Paulo: Brasiliense, 1985, pp.163-182.CAMATI, Anna Stegh. Questes de gnero e identidade na poca e obra de Shakespeare. 2008. Disponvel em: http: //www.utp.br/eletras/ea/ eletras16/texto/artigo_16_2.pdf. Acesso em 10/06/2015.DUBY, G. O que se sabe do amor na Frana no sculo XII?. In: ____________. Idade Mdia, Idade dos Homens. Do amor e outros ensaios. So Paulo: 1989, pp. 29-40.______. A matrona e a malcasada. In: ____________. Idade Mdia, Idade dos Homens. Do amor e outros ensaios. So Paulo: 1989, pp. 41-58.KLAPISCH-ZUBER, C. A mulher e a famlia. In: LE GOFF, J. (Org.). O Homem Medieval. Lisboa, 1989, pp. 193-208. SHAKESPEARE, William. A Megera Domada. So Paulo: Abril Cultural, 1978._______. Comdias: teatro completo. Rio de Janeiro: Agir, 20086