Ana Vidigal. Casa Dos Segredos

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! #$%$ &'% ()*+)&'% &) !,$ -.&.*$/ Às vezes, a melhor forma de esconder uma coisa é à vista de toda a gente. Beatriz Colomina, Privacy and Publicity: Modern Architecture as Mass  Media Esta cidade que nunca se apaga da mente é como uma armação ou um reticulado em cujas casas cada um pode dispor as coisas que lhe aprouver recordar. Italo Calvino, Cidades Invisíveis Em vez de se seguirem caminhos sinuosos, vai-se diretamente ao âmago da questão: quando é que um labirinto é também uma casa? Ou talvez se deva inverter a pergunta: quando não é uma casa? Este é um dos conjuntos de ideias que a Casa dos Segredos de Ana Vidigal explora e nos leva a explorar de uma forma provocatória. Simultaneamente uma obra arquitetónica e escultural, readymade monumental e instalação, contentor e conteúdo, este trabalho foi concebido para o enorme átrio do Pavilhão Central do Instituto Superior Técnico (IST) em Lisboa. Escrevo «foi» como uma ficção criada pelos calendários da produção de catálogos: na altura em que estou a escrever este texto, a peça está ainda a ser feita e existe somente como uma série de investigações cada vez mais refinadas, propostas, fotografias e maquetas. Pergunto-me até que ponto este texto consegue acompanhar o ritmo da obra que aborda e que, por sua vez se dirige ao texto. Portanto, imaginem comigo o seguinte: estamos em pé num dos quatro lados do gigantesco primeiro andar do majestoso Pavilhão Central do IST, com o seu design panótico e centralizado, um tipo de organização espacial favorecido pelos regimes autoritários. Os nossos corpos encontram-se miniaturizados e intimidados pela escala do edifício e, simultaneamente, desmaterializados num dramático chiaroscuro da luz do dia filtrada pela magnífica clarabóia art deco. O

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Ensaio de catálogo para a exposição da Ana Vidigal no Instituto Superior Técnico, a inaugurar no dia 23 de Março, 2012

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A Casa dos Segredos de Ana Vidigal

Às vezes, a melhor forma de esconder uma coisa é à vista de toda a gente.

Beatriz Colomina, Privacy and Publicity: Modern Architecture as Mass

 Media 

Esta cidade que nunca se apaga da mente é como uma armação ou um

reticulado em cujas casas cada um pode dispor as coisas que lhe aprouverrecordar.

Italo Calvino, Cidades Invisíveis 

Em vez de se seguirem caminhos sinuosos, vai-se diretamente ao âmago da

questão: quando é que um labirinto é também uma casa? Ou talvez se deva

inverter a pergunta: quando não é uma casa? Este é um dos conjuntos de ideias

que a Casa dos Segredos de Ana Vidigal explora e nos leva a explorar de umaforma provocatória. Simultaneamente uma obra arquitetónica e escultural,

readymade monumental e instalação, contentor e conteúdo, este trabalho foi

concebido para o enorme átrio do Pavilhão Central do Instituto Superior

Técnico (IST) em Lisboa. Escrevo «foi» como uma ficção criada pelos

calendários da produção de catálogos: na altura em que estou a escrever este

texto, a peça está ainda a ser feita e existe somente como uma série de

investigações cada vez mais refinadas, propostas, fotografias e maquetas.

Pergunto-me até que ponto este texto consegue acompanhar o ritmo da obraque aborda e que, por sua vez se dirige ao texto.

Portanto, imaginem comigo o seguinte: estamos em pé num dos quatro lados

do gigantesco primeiro andar do majestoso Pavilhão Central do IST, com o seu

design panótico e centralizado, um tipo de organização espacial favorecido

pelos regimes autoritários. Os nossos corpos encontram-se miniaturizados e

intimidados pela escala do edifício e, simultaneamente, desmaterializados num

dramático chiaroscuro da luz do dia filtrada pela magnífica clarabóia art deco. O

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que vemos, ao espreitar por cima do corrimão no átrio central são as formas

 bem definidas de um labirinto cujas paredes exteriores formam um retângulo.

O retângulo ecoa o enquadramento arquitetónico mais vasto do átrio, um

retângulo dentro do outro. Desenhado com um padrão simples de linhas em

arranjos geométricos, o labirinto em si é simultaneamente plano e volume,

sólido e evanescente, pois a superfície para a qual olhamos a partir de cima (o

teto do labirinto) está forrada por espelhos. Olhamos então de cima para o teto

 banhado de luz, duplicando o teto sobre as nossas cabeças em fragmentos

geométricos luminosos e conferindo ao labirinto um opulento trompe l’oeil ,

dissolvendo-se ao mesmo tempo a certeza dos seus contornos.

Tomando as escadas que descem para o rés-do-chão, é-nos apresentada, claro,

uma vista totalmente diferente. Na realidade, a palavra «vista» não descreve

adequadamente a vista, pois em vez da perspetiva totalizante que se tinha de

cima – um panorama de algo que conseguimos controlar com o nosso olhar, um

cenário que apresenta o espaço mais abaixo como uma figura ou um mapa –

aqui somos convidados a participar: o nosso olhar é substituído pela imersão

física. Por definição, é-nos impossível captar o todo do trabalho com um único

olhar; de facto, não conseguimos de forma alguma contemplá-lo apenas através

do nosso olhar. Pelo contrário, o nosso acesso é ativado pelo efeitofenomenológico de caminharmos através do seu espaço.1 Aqui, os nossos

caminhos usuais – travessias múltiplas do espaço vasto enclausurado por uma

orla exterior de pilares posicionados a intervalos regulares – são imediatamente

anulados pelas paredes do labirinto, apresentando uma espécie de fortificação

tanto para o nosso olhar como para o nosso corpo. Estes bastiões são

interrompidos apenas em dois pontos de entrada, localizados simetricamente

em cada um dos lados menores do retângulo. Estas entradas convidam-nos e ao

mesmo tempo guiam-nos: somos imediatamente confrontados com a

possibilidade, e com a necessidade (se atravessarmos o átrio sem termos que

andar à volta da sua periferia) de ocuparmos fisicamente o labirinto, invadindo-

o fisicamente e seguindo o seu curso até um coração, ou casa, colocado

assimetricamente numa posição quase central. Aqui, depois de entrarmos,

1 Muito se tem escrito sobre as diferentes dimensões políticas oferecidas pelas perspetivas de

cima e de baixo. Ver em particular o ensaio de Michel de Certeau, ‘Marches dans la ville’, emL’Invention du quotidien: arts de faire  , Paris: Gallimard, 1980.

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vemos que o labirinto é constituído por filas de cacifos metálicos de dois pisos,

um género de compartimentos pequenos que se fecham com cadeados, que

habitualmente se utilizam em instituições e lugares públicos para salvaguarda

de bens pessoais.

As especificações que acompanhavam o convite para produzir uma

exposição/instalação que coincidisse com as comemorações do centenário do

IST não continham quaisquer restrições em forma ou conteúdo, mas exigiam

que alguns aspetos do instituto fossem utilizados, consultados, abordados ou

referenciados. Fundado em 1911 por Alfredo Bensaude, reformador da

educação científica e engenheiro, o IST foi posteriormente albergado sob a égide

de um outro engenheiro famoso e antigo aluno do próprio instituto, Duarte

Pacheco. Em 1932 foi nomeado Ministro das Obras Públicas no governo de

Salazar e mais tarde, em 1938, tornou-se famoso, entre outras coisas, por um

projecto ambicioso lançado para promover monumentos, pontes e escolas como

parte integrante da promoção do orgulho nacional (senão mesmo de

consciência imperial). Duarte Pacheco supervisionou a construção do edifício

que acolhe o IST numa das melhores zonas de Lisboa, adotando para o primeiro

campus português uma visão utópica de inspiração autoritária. O arquiteto das

novas instalações desta universidade especializada em ciência e tecnologia,construída entre 1929 e 1942 foi Porfírio Pardal Monteiro, cuja tarefa era imensa

e complexa, e constrangida por financiamentos. 2 

Em termos ideológicos e institucionais existe muito que Vidigal poderia ter

explorado, uma vez que nas interligações de memórias públicas e privadas que

são tão centrais na sua obra, mais do que uma vez tocou na história do

Salazarismo e do seu impacto nas vidas das pessoas, tanto da metrópole como

das colónias. Em particular, as instalações Penelope (2000) e Void (2007), bemcomo o projeto ainda a decorrer Memento Mori

(http://anavidigal.blogspot.com/2011/08/projecto-memento-mori.html ),

abordam questões relacionadas com os efeitos da Guerra Colonial Portuguesa

2 Para uma excelente discussão e perspetiva geral do projeto no contexto da carreira de Duarte

Pacheco, ver o catálogo Duarte Pacheco – Do Técnico ao Terreiro do Paço publicado como parte dascelebrações centenárias, Lisboa: Instituto Superior Técnico, 2011.

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no domínio do privado, «trazendo a guerra para casa» por assim dizer. 3 

Contudo, no IST ela não optou por nada tão simplista como a exploração dos

fundamentos ideológicos sobre os quais se estruturou o projeto arquitetónico,

mas sim pelas formas como uma instituição vai além da sua concha física; a

forma como é definida pela sua história e trajetória, os diferentes

posicionamentos ideológicos ao longo do tempo e, com significado especial, os

processos e as práticas que promove e, assim, os seus diferentes usos e

finalidades.

Em resumo, a crítica institucional – o desiderato de certas práticas de instalação

em incorporarem a desconstrução de ideologias subjacentes à instituição na

qual a própria obra está a ser exibida ou se encontra albergada – não é central

da prática de Vidigal. Para ela isto seria demasiado pomposo, demasiado linear,

demasiado orientado por ideias. Não que o trabalho dela desdenhe ideias:

fervilha com elas. Mas as ideias de Vidigal não são nada senão lhes for dado

corpo, forma e cor; produzidas, ancoradas e reveladas por reviravoltas verbais e

apimentadas com um humor conhecedor. Portanto, a arte dela não é uma arte

de orientação concetual, se por «concetual» entendermos uma formulação

esqueleto da qual foi removida a carne das aparências visuais. Pelo contrário, o

trabalho dela é estimulado pela visão, por reflexos de perspetivas quecombinam diferentes níveis de significado com as nuances de veículos de

significado sempre em movimento: imagens, motivos, frases. Por outras

palavras: a sua visão não é desconstrutiva mas sim reconstrutiva, procurando

não tanto dissecar noções abstratas mas sim mobilizar formas em que o mundo

fenomenológico se tenha idealizado: um mundo percetual recheado de ideias e

gerador de pensamentos. Em suma: as suas ideias não são descarnadas mas

sim, muito literalmente, substanciadas. Com o seu sentido apurado do grau em

que os substratos das ideologias se encontram firmemente alojados na cultura

material, Ana Vidigal sempre gostou de explorar no mundo cultural as

graduações de significado dos seus signos e símbolos e, sempre que necessário,

subverter os seus pressupostos com tiradas astutas, contundentes, tanto verbais

como visuais.

3  Bringing the War Home (trazendo a guerra para casa) foi o título dado pala artista americana

Martha Rosler, muito admirada por Vidigal, a uma série de obras fotográficas feitas na altura daGuerra do Vietname e retomada durante a Guerra do Iraque em 2004 e 2008.

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Ciente de que qualquer peça que produzisse teria que ser específica para o local

e, por virtude do local, monumental em escala, Vidigal começou a sua pesquisa

com a sua máquina fotográfica, visitando diversos departamentos e centros do

IST: física nuclear, engenharia biológica e química, química e física molecular,

engenharia e tecnologia marinha, engenharia mecânica e elétrica, química

estrutural, etc. Visitou estes locais armada com um sentido inato do seu próprio

leque de possibilidades – uma vasta paleta de perícias e metodologias –

mantendo intacta a fronteira entre estas áreas de pesquisa e a sua própria

pesquisa, sem se deixar tentar pela presunção pretensiosa de adotar uma

linguagem pseudo-científica. A sua missão era encontrar algo que pudesse

utilizar aqui, algo adequado de forma a ser consistente com os seus próprios

interesses e procedimentos de trabalho, honesto, perante as limitações de umapossível conversa entre a sua arte e as ciências e, contudo, algo que falasse

também sobre a instituição e com a instituição em que se intervém.

Um plano inicial implicava o uso de enormes contentores utilizados em obras

de construção no campus e dos detritos produzidos por estas obras, como se

perguntassem: o que é que tem que ser eliminado, deitado fora, de maneira a

que se possa construir, conceber, criar. Esta pergunta é tão importante para a

arte como o é para a ciência: o que é que constitui o lixo. Foram concebidasoutras possibilidades durante as visitas aos departamentos individuais. Vale a

pena mencionar aqui o Departamento de Engenharia de Minas, cujos arquivos

fizeram ecoar o fascínio de Vidigal tanto com noções como com formas de

arquivo: por outras palavras, o arquivo tanto enquanto método como enquanto

estética. Mas trabalhar com material de arquivo acarretaria imensas questões de

segurança, burocracia e autorizações. No entanto, a noção desencadeou uma

série de associações. Como é geralmente o caso com o seu procedimento de

trabalho, o projeto foi redirecionado pelo acaso e pelo coincidente até chegar

aos cacifos dos estudantes do IST.

Os cacifos! Num instante ela percebeu que, mesmo sem qualquer intervenção,

estes apresentavam possibilidades e significados deliciosos. O seu aspeto usado

e maltratado situavam-nos se não na história, então pelo menos em duração, no

tempo. Sendo diminutos espaços privados para uso dos estudantes – para o uso

potencial de todo e qualquer estudante – eles congregam o colectivo dainstituição e a colónia prodigiosa de abelhas trabalhadoras individuais que a

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constituem. Assim, os cacifos representam para Vidigal a fronteira entre a

instituição educativa e de investigação que, coletivamente, constituem o núcleo

que irá produzir os cientistas das gerações futuras. Na sua articulação deste

patamar, o trabalho da artista inspira-se num corpo de crescimento incremental

de obras internacionais, que se infiltram nos espaços públicos e mediáticos,

ancoradas por um vasto leque de disciplinas que escorrem para os interstícios

da cultura e se relacionam de uma forma muito dinâmica com a sua

contemplação. Estas obras diversificam o próprio local, também com a

esperança de fazer com que nós (contempladores, espectadores, público)

olhemos para o local de uma forma diferente, mesmo depois de o trabalho ter

sido removido ou desinstalado. «A característica que distingue a arte

contemporânea orientada para o local (site specific)», escreve Miwon Kwon, «é aforma como a relação da obra de arte com a atualidade do sítio (local) e com as

condições sociais do enquadramento institucional (como local) se encontra

subordinada a um local discursivo determinado, que é delineado como um

campo de conhecimento, intercâmbio intelectual, ou debate cultural».4 Por

outras palavras, o «local» que tal obra ocupa é mais alargado do que a sua

simples localização física, ocupando também um espaço no discurso.

Mas havia mais coisas que atraíam Ana Vidigal para os cacifos. Conjuntamente,estes cacifos, com a sua aparência de fileiras cerradas de contentores metálicos

verticais, ombreando não somente numa fila horizontal potencialmente infinita,

mas empilhados também verticalmente, têm afinidades com a aparência de um

arquivo à moda antiga. Assim, eles sugerem coincidências com a promessa do

arquivo em termos de organização e de totalidade integral. (Ao longo do último

século, houve muitos artistas que trabalharam com ideias deste género de

objetivo do arquivo e a concomitante e necessária «devastação de tal

promessa»5 de infinita possibilidade.) Os cacifos também apresentavam

4 Miwon Kwon, One Place After Another: Site-Specific Art and Locational Identity , Cambridge MA.e Londres: The MIT Press, p. 26.

5 Lynne Cooke, Introdução a Gerhard Richter. Atlas , Dia Foundation, Nova Iorque, 27 Abril 1995– 25 Fevereiro 1996, texto disponível online:

http://www.diaart.org/exhibitions/introduction/54 . Além de Richter, outros artistas atrabalhar com um material tão abundante e quase de arquivo, incluem nomes como HanneDarboven, Mark Dion, Craigie Horsfield, Roni Horn e Christian Boltanski. Ver RuthRosengarten, Entre Memória e Documento: A viragem arquivística na Arte Contemporânea , Lisboa:Museu Colecção Berardo, 2012.

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possibilidades formais e iconográficas pujantes, pois são simultaneamente

práticos e carregados de peso metafórico. Enquanto indiciam histórias pessoais

e a redução de objectos e pertences à categoria de «estritamente necessário»,

eles falam também sobre a articulação ambígua entre aquilo que se guarda na

memória e aquilo que é relegado para esquecimento. Vidigal observou

percetivamente: «Esses mesmos espaços que guardam coisas que não queremos

esquecer são também espaços onde guardamos o que queremos esquecer. Isto é

uma coisa óbvia, que fazemos todos os dias: guardar bem guardado o que não

queremos guardar, mas é por vezes tão automático que nem reparamos ou não

queremos reparar».6 

Na segunda metade do século XX, a arte dos memoriais públicos e o seu estudo

recordaram-nos o terreno ambivalente ocupado pela – bem como da dinâmica

complexa entre – memória e esquecimento. De menção especial neste contexto é

o trabalho de Jochen Gertz, cujo monumento contra o fascismo era uma coluna

feita de forma a desaparecer gradual e completamente de vista.7 Da mesma

forma, os projetos do arquiteto de origem polaca Daniel Libeskind dão

prioridade ao vazio não somente como espaço entre formas, mas como uma

lacuna significante e significativa, reencenando simbolicamente os buracos na

memória histórica alemã. Assim, no seu melhor, o discurso do memorial naúltima parte do século XX explorou a dialética entre amnésia e anamnésia,

reconhecendo que pela sua natureza estática e imutável, as formas mais fixas e

monumentais tendem a desencadear a obliteração da memória, ao mesmo que

tempo que aquilo que é mais efémero e evanescente ou intangível captura a

imaginação coletiva como uma assombração e pode desencadear as formas

mais emotivas de memória.

Mas havia mais. As propriedades formais dos cacifos eram ideais para osobjectivos de Vidigal: tanto divisíveis em compartimentos individuais – células

que também podem servir de expositores – como em múltiplos, unificados

6 Ana Vidigal no seu blog, http://anavidigal.blogspot.com/search?updated-max=2012-01-23T12:24:00Z&max-results=3&reverse-paginate=true

7 Gertz acredita que se use a ausência e o desaparecimento como poderosa estratégiamnemónica. Aqui estou a referir-me ao seu, e de Esther Shalev-Gertz, famoso Harburg

 Monument against Fascism, War and Violence (1983) num subúrbio de Hamburgo, mas também a

outros projetos incluindo o seu monumento contra o racismo Square of the Invisible Monument (1993) em Saarbrücken, Alemanha.

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como uma colmeia num banco monumental de volumes repetidos, os cacifos

proporcionam à artista a possibilidade de combinar forma minimalista com

conteúdo maximalista. A forma minimalista desempenha um papel mais

importante que em muitos outros projetos realizados por Vidigal, não somente

por causa da escala do espaço e do trabalho, mas também porque aqui é

precisamente a simplicidade desbastada da forma que assume uma espécie de

ética de austeridade, uma seriedade moral. «Nas artes», escreve o historiador

 britânico Tony Judt, «a seriedade moral remete para uma economia da forma e

contenção estética».8 Por sua vez, esta seriedade figura na escala ética da crítica

institucional com a qual alguns artistas contemporâneos procuram «subverter»

(a própria palavra tornou-se banal) as substruturas ideológicas das instituições

e das suas casas materiais (arquitetónicas). Esta austeridade formal – nãonecessariamente um termo que se associasse ao trabalho de Vidigal – garante a

esta instalação a sua seriedade. Estando ligada à memória da exploração do

espaço e do volume na arte minimalista, convida-nos a observar plenitude na

escassez e diferença na semelhança, convida-nos a prestar atenção ao intervalo e

à interrupção espacial, bem como ao volume e à forma.

Contudo, se o Minimalismo esteve, historicamente, aliado a um esvaziamento

de conteúdo na arte, ao dar à sua instalação a forma (ainda que simplificada) deum labirinto, Ana Vidigal posiciona o seu trabalho para um diálogo com uma

longa linhagem história e mítica; enche o seu trabalho com conteúdo implícito.

Desde o antigo Egipto, passando por Creta, pelas culturas indígenas americanas

e australianas, bem como pelas da Escandinávia, Rússia e América Latina, os

labirintos ocupam um lugar especial e querido nas mitologias e têm estimulado

a imaginação de artistas e arquitetos, bem como de escritores: pensem nos

labirintos que se encontram em Pylos, ou no mosaico romano de Conímbriga

em Portugal; ou nos chãos em mosaico das catedrais góticas como Chartres ou

Amiens; ou nos vários labirintos de arbustos, pedras ou sebes feitos em

diferentes períodos e em diferentes locais (Rutland, Cornwall, Hampton Court)

no Reino Unido; pensem nos labirintos descritos por Virgílio, Ovídeo e Plínio o

Velho , Dante e Borges, Jung, Octavio Paz, Gabriel Garcia Marquez, mas também

implícita e estruturalmente em Italo Calvino e Umberto Eco, W.B. Yeats e James

8 Tony Judt, O Chalet da Memória , trad. Pedro Bernardo, com revisão de Jorge Palinhos, Lisboa:Edições 70, 2011, p. 37

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  9

 Joyce.

Típica e formalmente, o que caracteriza um labirinto é o seu convite não

meramente para contemplação, mas sim para movimento, para atravessar

caminhando. Combinando as associações míticas com o facto de só poderem serconhecidos depois de atravessados por um corpo, os labirintos aparecem no

trabalho de artistas (concetuais e land artists) da década de 1970: exemplos

incluem o trabalho de Robert Morris, Dennis Oppenheim, Charles Simonds,

Richard Long e Richard Fleischner. Ao escrever sobre o seu famoso  Maze (1972),

Alice Aycock disse o seguinte sobre a sua estrutura de madeira com doze faces

de cinco anéis concêntricos erigidos numa quinta da Pensilvânia:

«originalmente, esperava ter criado um momento de pânico absoluto – quando

a única coisa importante era sair dali».9 Pelo contrário, construído não como um

círculo mas sim como um retângulo, o labirinto de Vidigal tem uma teleologia

clara, induzindo em nós, por esta razão, não tanto pânico mas sim desassossego

conforme ele nos vai mergulhando na estrutura física da razão burocrática.

Certamente que, na sua conceção e escala, ele é imersivo, mas nos seus pontos

claros de entrada e retirada, é menos catacumba que coração de uma biblioteca

ou, na verdade, de uma casa.

Pensem em ocupar os depósitos de qualquer biblioteca antiga, em particular de

uma biblioteca académica bem fornecida: a metáfora da biblioteca enraíza o

labirinto de Vidigal na instituição de pesquisa e ensino na qual ele está

construído. No entanto, as metáforas de casa e lar enraízam-se não na

especificidade do local, mas sim na obra inteira de Vidigal. Esta associação é

explícita no título deste trabalho: Casa dos Segredos. Penso que qualquer visitante

vai sentir o labirinto de Vidigal não como o problema que Teseu teve que

resolver, mas sim como se seguisse um padrão familiar a casas históricas, sejamelas pequenas ou grandiosas (digamos palácios dos séculos XV e XVIII),

operando no princípio de ligação, com salas adjacentes que conduzem umas às

outras, permitindo que os ocupantes andem de uma para outra e, claro,

impossibilitando aquilo a que hoje chamamos de privacidade. (Temos que nos

maravilhar com a invenção brilhante do corredor ao serviço da privacidade,

algo que hoje em dia tomamos como dado adquirido nas nossas casas.)

9 Alice Aycock, «Maze», in Alan Sondheim, ed., Post-Movement Art in America , New York: E. P.Dutton, 1975, p. 105.

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Como é frequentemente hábito seu, Vidigal procura na cultura de massas o

título para o seu trabalho, neste caso um programa popular em Portugal de

televisão-realidade do canal TVI e que usava a agora bem conhecida fórmula de

um grupo de residentes num espaço fechado, um espaço de privacidade

artificial, cuja quarta parede fictícia é removida para que os telespectadores

possam ver. O uso que Vidigal faz da cultura popular e de massas no seu

trabalho é diverso e tem múltiplos níveis. Frequentemente irónico, não deve ser

subestimado como uma fonte fértil tanto em humor como em invenção formal.

Aqui, o título liga-se a duas características da instalação: por um lado, a

formação do todo que é regular, emparedada, parecida com uma casa; por

outro lado, os usos a que são postas as suas partes constituintes. Porque cada

porta de cacifo fechada oculta da nossa vista não só o retrato resumido de um

indivíduo, mas também uma colecção de objectos simultaneamente banais e

preciosos, certamente significativos, quanto mais não seja para o uso imediato e

temporário a que são postos (por exemplo, lembro-me aqui de notas tiradas

durante uma aula específica: importantes no aqui e agora mas frequentemente

dispensáveis no futuro). Guardamos a nossa propriedade privada nos nossos

cacifos, coisas que não queremos ver perdidas ou roubadas, mesmo que não nos

queiramos lembrar particularmente delas. Os cacifos hiperbolizam emminiatura a função de uma casa, desempenhando num palco diminuto a

dialética de partilha e privacidade que se desenrola nas nossas vidas

domésticas.

Sabemos que existe um continuum entre privacidade e secretismo. A evolução

das normas de privacidade está geralmente associada a um processo

civilizador, à renúncia do instinto e às lições aprendidas com a necessária

repressão, sublimação e gratificação adiada (Freud), acompanhadas pelo baixardo patamar de nojo relativamente ao corpo e aos seus processos e funções

(Norbert Elias). 10 O continuum entre privacidade e secretismo tem sido

sublinhado na história da vida privada, acompanhando o nascimento do

indivíduo moderno. Na verdade, os historiadores da vida privada

demonstraram como a «privatização e o escondimento afetam todos os aspetos

10 Ver Sigmund Freud, O Mal-Estar na civilização [1930], trad. Isabel Castro Silva, Lisboa:

Relógio d’Agua, 2008; Norbert Elias O processo civilizador (1939) , trad. Ruy Jungmann, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990. 

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da existência: arquitetura, disposições para dormir e comer, relações com os

criados, educação das crianças – na realidade, a “invenção” da infância como

um estado separado de desenvolvimento, que precisa de ser separado da idade

adulta e especialmente da sexualidade adulta».11 A ligação entre secretismo e

sexualidade tem, além disto, sido amplamente explorada, inicialmente por

Freud e mais tarde na «contra-ciência» crítica de Michel Foucault que tanto

aplaudiu como se opôs a Freud. A análise de Foucault centra-se no discurso que

produz as ligações entre sexualidade, segredos e curiosidade.

Mas não são somente a sexualidade e o desejo que entraram no domínio da

privacidade e do secretismo, a dor também entrou. «O sofrimento, tal como o

desejo, transforma a privacidade em secretismo», escreve Adam Philips. «De

um ponto de vista psicanalítico, um sintoma é uma forma (secreta) de

perguntar por algo (escondido)». Mas tal como o desejo, o sofrimento é

(seguindo Phillips) «o segredo que talvez não consigamos guardar. Porque tem

o potencial para romper as nossas fantasias de auto-suficiência, pode desejar-se

e temer-se o sofrimento, como um meio legítimo de contacto e partilha entre

pessoas».12 Posto de outra forma, «eu quero estar só» pode ser uma outra

maneira de dizer «quero que traces o teu caminho através do labirinto e me

encontres». A casa – esse recetáculo do indivíduo moderno, esse contentor derelações familiares que instigam e ensaiam outras relações sociais, também o

local de segredos e vergonha inter-geracionais – é o primeiro teatro

experimental do sujeito. Aqui, as distâncias e interseções entre mostrar e

esconder – entre comunhão e separação – são experimentadas pela primeira

vez. Fechar a sua porta, talvez mesmo afixando um letreiro de PRIVADO, é a

primeira exploração da criança em querer perder-se e querer ser encontrada.

Então, a casa como lar é o contentor e o enquadramento daquilo que é mais

importante para o sujeito moderno, privado: «o alcance da infância, as

necessidades da frustração, o significado da sexualidade, os terrores e tentações

da solidão e da auto-suficiência, o apelo da violência nas relações humanas, os

11 Peter Brooks, Body Work: Objects of Desire in Modern Narrative , Cambridge, MA. e Londres:Harvard University Press, 1993, p. 15.

12 Adam Phillips, Terrors and Experts , Londres: Faber and Faber, 1995, p. 33. Eu já abordeianteriormente a relação entre segredos e sintomas no trabalho de Vidigal em Segredos e sintomas:

A produção paralela de Ana Vidigal , in Ruth Rosengarten e Luisa Soares de Oliveira, Ana Vidigal ,Lisboa: Assírio & Alvim 2003.

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segredos guardados de si mesmo e dos outros».13 

 Já referi que a casa e o lar são veículos poderosos de conjuntos estabelecidos de

imagens e de relações, tanto reais como simbólicas, das quais o labirinto é

somente uma e aquilo que é secreto ou está escondido é uma outra. Também járeferi que existe uma relação mais próxima entre lembrar e esquecer do que a

que é frequentemente reconhecida. Esta relação abala a própria noção de

secretismo: um segredo é algo que desejamos partilhar com um determinado

indivíduo em momentos que definem intimidade, ou algo que realmente

necessitamos guardar para nós mesmos? Será que o secretismo deseja

secretamente a indiscrição? Se o tivermos esquecido, é mais ou menos segredo?

O cacifo, já referi também, desempenha em miniatura algumas das funções do

doméstico, aos quais se podem associar adjetivos como «em segurança» ou

«seguro». Aqui temos então, um cacifo, onde Ana Vidigal coloca alguns dos

seus pertences mais queridos, os seus livros preferidos e os diários e cadernos

de apontamentos, engrossados com colagens, que ela vem colecionando há

trinta anos.

Mas existe ainda uma outra maneira de uma casa poder ser uma «casa de

segredos», que é servindo como instrumento mnemónico. Neste sentido, a casatanto contém como liberta os significados que se encontram nela alojados, nela

projetados. Porque uma casa que nós conhecemos bem – por exemplo, o nosso

lar – pode servir como uma mnemónica espacial prototípica. Desde os tempos

antigos que se utilizou, como instrumento para melhorar a memória, um

método chamado «o palácio da memória» (mas também conhecido como loci ou

«passeio mental»). Em termos simples, o sujeito memoriza a planta de um lugar

específico, digamos uma fila de lojas numa rua familiar, ou a disposição das

salas num edifício. Tradicionalmente, este edifício é um «palácio», embora paramuitos baste algo menos imponente: para Tony Judt, é um chalet onde ele

passou temporadas em criança durante as férias de esqui com a família.14 O

13 Adam Phillips e Leo Bersani, Intimacies , Chicago: University of Chicago Press, 2008, p. i.

14 Tony Judt, 1948-2010. No final da sua vida Judt ficou paralisado do pescoço para baixodevido a uma doença neuromotora progressivamente incapacitante, de forma que o passeiopelo seu chalet mental se tornou ainda mais emotivo pois nesta altura ele mal conseguia falar,quanto mais movimentar-se. O chalet mental também se tornou para Judt, um armário , «cheio

de reminiscências utilizáveis, recicláveis e multiusos, facilmente acessíveis a uma mente dependor analítico». Ver O chalet da memória , op. cit., p. 22.

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sujeito liga palavras e conceitos particulares a espaços individuais, formando

gradualmente uma memória pictórica mais elaborada, texturada e detalhada

deste enquadramento espacial. Ao descrever a cidade onírica de Zora a Kublai

Kan, o Marco Polo da ficção de Italo Calvino descreve um itinerário como está

descrito nos manuais de mnemónica: «Esta cidade que nunca se apaga da

mente é como uma armação ou um reticulado em cujas casas cada um pode

dispor as coisas que lhe aprouver recordar: nomes de homens ilustres, virtudes,

números, classificações vegetais e minerais, datas de batalhas, constelações,

partes de um discurso. Entre todas as noções e todos os pontos do itinerário

poderá estabelecer um nexo de afinidades ou de contrastes que sirva de

mnemónica, de referência instantânea para a sua memoria».15 

O sistema é, tal como Judt reconhece e admite, imperfeito: sobreposições,

lacunas e identificações erróneas entre um espaço e uma memória é o mais

perto que se consegue chegar da reconstrução: o esquecimento e a lembrança

aliam-se e conspiram nesta armação, este «reticulado em cujas casas cada um

pode dispor as coisas que lhe aprouver recordar». Entre querer recordar e

recordar existe um espaço tão vasto quanto o espaço existente entre lembrar e

esquecer, uma zona completa de possibilidade mental. O que poderia descrever

melhor esse passeio mental, esse arquivo de pertences pessoais, que o labirintomnemónico de Ana Vidigal?

Ruth Rosengarten

 Janeiro, 2012.

15 Italo Calvino, Cidades Invisíveis , trad. José Colaço Barreiras, Lisboa: Teorema, 1990, p. 19.