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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP ALVARO LUIZ TRAVASSOS DE AZEVEDO GONZAGA O DIREITO NATURAL DE PLATÃO NA REPÚBLICA E SUA POSITIVAÇÃO NAS LEIS DOUTORADO EM DIREITO São Paulo 2011

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

ALVARO LUIZ TRAVASSOS DE AZEVEDO GONZAGA

O DIREITO NATURAL DE PLATÃO NA REPÚBLICA E SUA POSITIVAÇÃO NAS

LEIS

DOUTORADO EM DIREITO

São Paulo

2011

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ALVARO LUIZ TRAVASSOS DE AZEVEDO GONZAGA

O DIREITO NATURAL DE PLATÃO NA REPÚBLICA E SUA POSITIVAÇÃO NAS

LEIS

DOUTORADO EM DIREITO

Tese apresentada à Banca Examinadora

da Pontifícia Universidade Católica de São

Paulo, como exigência parcial para

obtenção do título de Doutor em Filosofia

do Direito e do Estado sob a orientação do

Prof. Doutor Cláudio De Cicco.

São Paulo

2011

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BANCA EXAMINADORA

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À memória de meu pai, FRANCISCO LUIZ GONZAGA NETTO,

que platonicamente libertou sua alma do corpo,

À minha mãe, SHIRLEY, e aos meus irmãos, ERICIO e FABIANA,

pelo constante apoio,

A minha doce esposa Nathaly,

que gerou o que de melhor temos em nossas vidas, o pequeno Alexandre.

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AGRADECIMENTOS

Ao Professor Claudio De Cicco, que francamente me orienta na vida e na

academia.

Meus mais sinceros agradecimentos a todas as pessoas que, de alguma

forma, tornaram a realização deste trabalho possível. Sob o risco de cometer

injustiças agradeço nominalmente os amigos André Luiz Freire, Cauê Nogueira de

Lima, Dalton Oliveira, Edson Luz Knippel, Henrique Garbellini Carnio, Flávio Viana

Filho, Lara Barros, Maria Carolina de Assis Nogueira, Magali Gallello, Sergio Gomes

da Silva, Wallace Ricardo Magri.

Agradeço ainda aos professores que diretamente ou indiretamente me

orientaram nessa empreitada. Em especial aos Professores Haydée Maria Roveratti,

Marcio Pugliesi, Márcia Alvim, Tercio Sampaio Ferraz Junior, Willis Santiago Guerra

Filho por suas preciosas observações em aula, banca de qualificação ou conversas

informais que inspiram cada vez mais o universo e o ambiente acadêmico de uma

verdadeira instituição de ensino superior.

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RESUMO

A presente tese predispõe-se a estudar o pensamento platônico na

perspectiva do Direito Natural, em especial na República, e sua consequente

positivação e integração na obra As Leis. Visamos apresentar como a doutrina

platônica de justiça não muda radicalmente, mas se completa com a conjugação das

obras mencionadas. Para isso, partiremos da proposta temporal lógica do

pensamento platônico, bem como da pesquisa de sua concepção de Justiça a fim de

verificarmos a maturidade de sua postura com relação à organização da pólis.

Palavras Chaves: Teoria da Justiça, Platão, Virtudes Cardinais, República, As Leis.

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ABSTRACT

This thesis will study the platonic thinking under the Natural Law perspective,

especially in The Republic, and its following concretization and integration in Laws.

We aim to observe how the platonic doctrine does not change radically, but rather

completes itself with the combination of the two mentioned works, for which we shall

weave our analysis setting out from the logical temporal proposition in the platonic

thinking, considering also the research of his conception of Justice in order to verify

the maturity of its posture as it relates to the organization of the polis.

Key words: Theory of Justice, Plato, Cardinal Virtues, Republic, Laws.

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VIII

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 11

1. CONTEXTO HISTÓRICO DE PLATÃO NO ESTADO GREGO ....................................... 14

2. OS PRECURSORES DO PENSAMENTO PLATÔNICO .................................................. 27

2.1 O pré-platonismo nos pré-socráticos ......................................................................... 27

2.2 Os sofistas – O contraponto para Platão ................................................................... 35

2.3 Sócrates ..................................................................................................................... 38

3. PLATÃO: ENTRE A TEORIA E A AÇÃO .......................................................................... 44

3.1 Biografia ..................................................................................................................... 44

3.2 Obras e fases ............................................................................................................. 50

4. A JUSTIÇA EM PLATÃO DA PRIMEIRA PARA A SEGUNDA FASE .............................. 52

4.1 A justiça em Protágoras: breves considerações (1ª fase) ......................................... 52

4.2 A mudança de posição: a Justiça em A República (2ª fase) ..................................... 56

4.2.1 A maturidade de Sócrates .................................................................................. 58

4.2.2 A república platônica .......................................................................................... 61

4.2.2.1 A justiça na cidade ...................................................................................... 63

4.2.2.2 Da cidade para o indivíduo ......................................................................... 69

4.2.2.3 O conflito da alma – A akrasia .................................................................... 70

5. A MUDANÇA DE POSIÇÃO SOBRE A COERCIBILIDADE – A MITO-LOGIA

EM PLATÃO: DO MITO DE GIGES AO MITO DE ER E DO MITO DE ER ÀS LEIS ........... 72

5.1 Considerações iniciais ............................................................................................... 72

5.2 O Mito de Giges e o Mito de Er .................................................................................. 73

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IX

5.3 O corpo em Giges e a alma em Er ............................................................................. 76

5.4 Do Mito de Er para o logos de As Leis ....................................................................... 79

6. A MATURIDADE DE PLATÃO – A JUSTIÇA NA TERCEIRA FASE EM AS LEIS .......... 81

6.1 Considerações iniciais ............................................................................................... 81

6.2 Os XII Livros de As Leis ............................................................................................. 84

6.2.1 Livro I – A guerra; as virtudes divinas e humanas;

a embriaguez; a educação e as marionetes ................................................................ 84

6.2.2 Livro II – Os banquetes e vinho, educação com base nas virtudes;

. experiência dos mais velhos e os coros ................................................................... 87

6.2.3 Livro III – A origem das constituições; hierarquia do Estado;

legisladores e o povo; a questão da coercibilidade ..................................................... 90

6.2.4 Livro IV – Os homens de virtude; o acaso e a ocasião;

formas de governo; “a divindade é a medida de todas as coisas”;

deveres perante os pais; o legislador e o médico e o prelúdio ou preâmbulo ............ 95

6.2.5 Livro V – A alma e o julgamento, os bens, o corpo, a vida digna;

sanções de origem humana, organização do estado, distribuição da renda;

santuário e deuses; graus de excelência das constituições ...................................... 102

6.2.6 Livro VI – A escolha, os tipos e a importância do magistrado;

votações para os cargos da nova constituição, Estado e Religião, casamento;

escravo, equiparação da mulher face ao homem; a procriação ................................ 109

6.2.7 Livro VII – A educação física e mental dos jovens ........................................... 115

6.2.8 Livro VIII – Legislação das festividades e sacrifícios às divindades, os jogos

militares, amor e riquezas,

perversões amorosas, o amor, as questões da agricultura, relações entre vizinhos,

comércio e economia coletiva ................................................................................... 120

6.2.9 Livro IX – O direito criminal .............................................................................. 123

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X

6.2.10 Livro X – A impiedade, suas formas e hierarquias, a alma ............................ 127

6.2.11 Livro XI – O direito civil e o direito comercial .................................................. 134

6.2.12 Livro XII – A proposta sobre o justo e outras questões .................................. 141

7. DIREITO NATURAL E DIREITO POSITIVO NA ANTIGUIDADE ................................... 148

7.1 Considerações iniciais ............................................................................................. 148

7.2 O jusnaturalismo na Antiguidade ............................................................................. 150

8. O DIREITO NATURAL DE PLATÃO NA REPÚBLICA

E SUA POSITIVAÇÃO NAS LEIS ...................................................................................... 156

8.1 Considerações iniciais ............................................................................................. 156

8.2 Trasímaco e o positivismo jurídico ........................................................................... 156

8.3 O divino e o direito natural para Platão .................................................................... 158

8.4 O direito natural em A República e sua positivação em As Leis .............................. 161

CONCLUSÃO ..................................................................................................................... 164

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................... 169

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INTRODUÇÃO

Dando continuidade à nossa dissertação de mestrado – A Justiça em Platão e

a Filosofia do Direito –, tratamos nesta tese de compreender o pensamento platônico

na perspectiva do Direito Natural, em especial na República e sua consequente

positivação e integração na obra As Leis.

O trabalho se justifica porque, embora existam diversos estudos sobre as

obras e o pensamento platônico, poucos são desenvolvidos em programas de pós-

graduação em Direito, e quando são feitos, habitualmente, pouco se fala sobre sua

última obra, As Leis. Como bem adverte o Professor Dalmo Dallari em seu prefácio

para a tradução brasileira da obra, é correto dizermos que Platão é inexplorado

nessa riqueza de ideias que trasbordam em As Leis. Com isso, a maioria das

pesquisas desenvolvidas focam esforços na compreensão de sua República e

dificilmente apresentam a maturidade de suas ideias na última fase de seu

pensamento.

Para isso, a presente tese tem por objetivo apresentar que a doutrina

platônica sobre a justiça não muda radicalmente, mas se completa com a

conjugação da obras A República e As Leis, sendo que naquela se apresenta o

melhor modelo de cidade, e nesta o segundo melhor modelo de organização social.

Especificamente, adotaremos a exposição da teoria da justiça platônica a fim de

verificarmos a hipótese de que, em As Leis, Platão amadurece seu pensamento e

nota que, além da punição da alma, são necessárias leis coercitivas para os injustos,

no plano sensível.

A condução metodológica da pesquisa se estruturou a partir da proposta

temporal lógica precedente, ou divergente, do pensamento platônico, bem como da

pesquisa da concepção platônica de Justiça nas obras Protágoras, A República e

As Leis, a fim de verificar o amadurecimento de sua postura com relação à

organização da pólis.

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Posto isso, e a fim de uma melhor compreensão dos temas a serem

desenvolvidos, elaboramos um referencial teórico nos capítulos 1, 2 e 3; o

desenvolvimento da tese nos capítulos 4 a 8 e a consequente conclusão.

O primeiro capítulo consiste em uma breve exposição do contexto histórico de

Platão no Estado grego, considerando a necessidade de compreender os períodos

da história grega: pré-Homérico; Homérico; Arcaico, Clássico e Helenístico.

O segundo capítulo busca a relação dos precursores que de alguma forma

influenciaram o pensamento platônico. Então exporemos brevemente o pensamento

de alguns pré-socráticos, dos sofistas que ofereciam a possibilidade de

contraposição nos diálogos e de seu grande mestre Sócrates.

O terceiro capítulo guarda atenção para a compreensão da biografia e da

classificação e posicionamento das obras e fases do pensamento Platônico, para

que, com isso, possamos entender com mais clareza a evolução e sua mudança de

posicionamento à medida que este avança em seus escritos.

Expostas a biografia e as fases do pensamento platônico, podemos avançar

para o quarto capítulo, em que é disposto o pensamento platônico sobre a Justiça da

primeira para a sua segunda fase de sua doutrina. Para isso, exporemos

respectivamente as classificações expostas em Protágoras e na sua República.

O quinto capítulo visa transitar da segunda para a terceira fase do

pensamento platônico, com a proposta de coercibilidade que é apresentada na obra

As Leis. O mote para apresentar esse complemento à sua teoria se dá com a

análise dos Mitos de Giges e de Er.

Feita a correlação mito-lógica do pensamento platônico chegamos ao estudo

da fase de maturidade filosófica do pensador. Será no sexto capítulo que exporemos

breves considerações e uma rememoração dos XII livros de sua obra As Leis, afim de ressaltarmos, na obra, aspectos fundamentais à tese defendida

O sétimo capítulo abrirá caminho para compreender como eram o Direito

Natural e o Direito positivo na Antiguidade. Tais considerações se põem

imprescindíveis para atingirmos o próximo capítulo.

A partir das considerações feitas nos capítulos anteriores, no capítulo oitavo,

chegaremos à tese deste trabalho. Objetivando criar o elo necessário para a

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compreensão dos elementos jusnaturalistas na República e sua positivação nas

Leis desenvolvemos argumentos que se interrelacionam com os capítulos

anteriores, a fim de propor a tese do Direito Natural de Platão na República e sua

positivação em As Leis.

Por fim, expusemos nossas conclusões deste trabalho a fim de verificarmos

nossa tese.

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1. CONTEXTO HISTÓRICO DE PLATÃO NO ESTADO GREGO

Ainda que nem sempre se possa encontrar nas fontes do Direito Grego aquela objetividade e método que o Direito Romano proporcionaria, verifica-se quão expressiva foi a contribuição do primeiro para os fundamentos da ciência política e das instituições de Direito Público.1

Para compreender o pensamento de Platão e sua teoria da justiça, devemos

volver nossos olhares para o contexto histórico em que se inseria esse pensador.2

É preciso compreender o processo de construção da democracia ateniense,

bem como quem eram os “trinta tiranos”. Além disso, conseguiremos compreender

em que contexto se deu a positivação das leis atenienses, e com isso, entendermos

porque Platão sente a necessidade de complementar sua doutrina de A República

com o pensamento disposto em As Leis.

Gerson Pereira Filho pronuncia-se no seguinte sentido:

Encontramos poucas abordagens na bibliografia de estudos de Platão e do Platonismo que consideram a relação entre história e filosofia nos diálogos como sendo uma temática que mereça atenção. Em muitos casos, é negada até mesmo a possibilidade de que haja um pensamento histórico em Platão e até entre os pensadores gregos.

(...)

Ressaltamos aqui alguns indícios que, acreditamos permitirem identificar elementos desse “sentido da história” na obra platônica

a) Existe uma reflexão sobre o tempo nos diálogos. Embora esses textos deixem transparecer uma concepção mítica, centrada na idéia do retorno cíclico e nos cataclismos como divisão temporal, podemos perceber uma temporalidade construída nas relações dramáticas dos personagens e na temporalidade da pólis a partir

1 AZEVEDO, Luiz Carlos de. Introdução à história do direito. São Paulo: RT, 2005, p. 51. Sobre o legado grego para o direito. 2 A construção deste capítulo teve como referencial teórico as seguintes obras: AZEVEDO, Luiz Carlos de. Op. cit.; DE CICCO, Cláudio. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2010; LIMA FILHO, Acácio Vaz de. O poder na Antiguidade aspectos históricos e jurídicos. São Paulo: Ícone, 1999; LOPES, José Reinaldo de Lima. O direito na história. 2. ed. São Paulo: Max Limonad, 2002; PEREIRA FILHO, Gerson. Uma filosofia da história em Platão – O percurso histórico da cidade platônica de As Leis. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2010.

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dos acontecimentos humanos, em especial naqueles decorrentes das ações políticas.

b) A concepção de uma filosofia antropológica, compreendendo o homem enquanto ser político, ético, que desenvolve a noção de coletividade e cidadania e que passa a perceber o ser humano como dotado de liberdade, o que nos permite aproximar essa idéia da noção de ‘sujeito histórico’, desenvolvida posteriormente pela historiografia ocidental.

c) A investigação das origens, que parte inicialmente de um sentido ontológico e cosmológico da realidade em seu significado mítico, mas que caminha, ainda que timidamente, para a investigação daquilo que denominamos ‘origens históricas’ das cidades, dos conflitos, das decadências, dos acontecimentos humanos, abrindo a possibilidade para explicação da mudança e do devir do homem e da cidade.

d) A percepção das mudanças e acontecimentos, no contexto político, social, econômico e cultural da Grécia, oferecendo elementos para uma interpretação da história universal.

e) A invenção da dialética como método epistemológico que foi fundamental para posterior compreensão da história humana, em especial com Hegel e Marx.3

Além desses elementos citados acima, podemos elencar tantos outros fatores

da necessidade da conjugação da história com o pensamento Platônico; a

sabermos:

a) Os conflitos internos na Cidade Grega;

b) As guerras e suas causas;

c) As desigualdades, os centros de poder e a corrupção;

d) As mudanças de costumes e das técnicas de produção;

e) O papel do ser na Pólis.

Tradicionalmente, a história da Grécia Antiga é divida em cinco períodos

distintos, o Período Pré-Homérico (séc. XX a.C. ao século XII a.C.), no qual houve a

formação da cultura creto-micênica e a imigração de povos indo-europeus para a

Grécia; o Período Homérico (século XII a.C. ao século VIII a.C.), neste período

começa a evolução política da Grécia com a fixação dos indo-europeus, houve a

divisão em Genos (Famílias coletivas constituídas por um grande número de

pessoas sob a liderança de um patriarca, eram pequenas organizações sociais e

econômicas na qual seu chefe supremo era o pater), logo depois em Fratrias (união 3 PEREIRA FILHO, Gerson. Op. cit., p. 35-36.

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de alguns genos para enfrentar um inimigo comum), sequencialmente em Tribos

(Reunião de Fratrias. Comandadas pelo filobasileu, o supremo comandante do

exército), para Demos (união de várias tribos), e por fim cidades-estados;4 o período

arcaico (século VIII a.C. ao século VI a.C.) é época na qual a pólis se firmou. Vale

destacar que a privatização de terras e a dissolução da comunidade gentílica

levaram a profundas transformações na sociedade; o período clássico,

correspondente ao apogeu grego (século V a.C. ao século IV a.C.), época na qual

viveram Sócrates e Platão; o período helenístico (século IV a.C. ao século III a.C.),

caracterizado pela fusão da cultura grega com a oriental. Exporemos brevemente

tais períodos e destacaremos o período clássico, época em que Platão viveu.

Sobre as cidades-estados, seguem as considerações de Norberto Luiz

Guarinello, que farão com que estudemos as duas principais pólis grega, com

organização político-social sólida, quais sejam: Atenas e Esparta.

(...) diferença mais crucial entre presente e passado, a da própria forma da existência social. O mundo greco-romano não se estruturava como os Estados-nacionais contemporâneos, mas de modo bem distinto, como cidades estado. Aqui, defrontamo-nos com um primeiro problema: é tão difícil oferecer uma definição cabal de cidade-estado (...) eram muito diferentes entre si: nas dimensões territoriais, riquezas, em suas histórias particulares (...).

Povos distintos, culturas diferentes, com seus próprios costumes, hábitos cotidianos, leis, instituições, ritmos históricos e estruturas sociais (...). Não é fácil (talvez seja impossível) dar conta de tantas histórias, tão diferenciadas, ao longo de quase dois milênios.5

Destacamos, também, a questão da idade e dos antepassados respeitando a

tradição no modelo antigo:

(...) diz respeito à distinção entre jovens e velhos. cidades-estado eram comunidades fundadas e legitimadas no passado comum, na tradição, no respeito aos antepassados. De um modo geral observa-se um forte domínio dos mais velhos sobre os mais jovens, mesmo que estes últimos fossem os responsáveis, em ultima instância, pelo esforço militar que garantia a independência, ou a expansão, de suas comunidades. Em muitas cidades, a autoridade dos mais velhos era garantida por uma série de mecanismos, como o poder, por vezes importante, atribuído aos conselhos de anciãos, ou limites

4 Com a crise da sociedade alterou-se a estrutura interna das genos. Assim, os mais próximos do pater tinham as melhores terras (eupátridas, “bem nascidos”), a sociedade começou a se dividir, houve a segunda diáspora e, com tal instabilidade, várias tribos se uniram em comunidades independentes que deram origem as cidades-estados, ou pólis. 5 GUARIELLO, Norberto Luiz. Cidades-estado na Antiguidade Clássica. In: PINSKY, Jaime; PINSK, Carla Bassanezi (orgs.). História da cidadania. 2. ed. São Paulo, 2003, p. 30.

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etários para o acesso às magistraturas principais, geralmente na faixa dos trinta ou dos quarenta anos. (...) Esse apego à tradição é uma diferença significativa entre os antigos e modernos (...).6

Nos próximos parágrafos faremos uma breve rememoração dos principais

elementos de cada período histórico Grego.

O Período Pré-Homérico7 se caracteriza pela existência de duas culturas mais

ou menos hegemônicas que dominavam o que mais tarde seria a Grécia Antiga. Os

cretenses, ou minóicos, foram a primeira civilização com estruturas sócio-político-

culturais e econômicas complexas na região.8 É originária da Ilha de Creta, no mar

Egeu e, de acordo com o que os historiadores podem observar se caracterizou por

ser uma sociedade matriarcal.

Entre 2000 a.C. e 1700 a.C., os primeiros povos indo-europeus denominados

aqueus imigraram para o sul da península balcânica, onde fundaram a cidade de

Micenas, berço de uma nova civilização que, ao conquistar Creta, fundiu aspectos

da cultura minóica com a micênica, resultando na cultura creto-micênica que

dominou a Grécia até o século XII a.C.

Entre os anos de 1700 a.C e 1400 a.C., em um novo ciclo de imigrações indo-

europeias chegaram à península os povos eólicos e jônicos. Em 1200 a.C., a última

e mais devastadora imigração indo-europeia ocorreu, a dos dóricos, que eclipsou a

civilização creto-micênica levando à primeira diáspora grega quando os habitantes

do continente migraram para as ilhas do mar Egeu e para a Ásia menor, impondo à

Grécia um período de grave crise, denominado Período Homérico.

No Período Homérico a civilização grega se organizava na forma de

comunidades gentílicas que se caracterizavam pela associação de indivíduos

através dos laços consanguíneos. Por volta do século VIII a.C, as comunidades

6 Idem, ibidem, p. 37. 7 Homero, poeta grego do séc. VI a.C., autor dos poemas Ilíada e Odisseia, é usado como ponto de referência para subdivisão da história grega, já que em seus versos, retratou o modo de vida dos antigos helenos. 8 Até hoje parte dessa civilização permanece em mistério absoluto, pois ainda não se decifrou por completo o alfabeto cretense, que é dividido pelos historiadores e linguístas em linear A e linear B. Mesmo na tradução completa do alfabeto linear A existem enormes dificuldades para o entendimento dessa civilização, pois, segundo os historiadores, esse alfabeto registrava apenas mercadorias, trocas comerciais e estoques de armazéns, dificultando o entendimento de muitos aspectos da cultura e política da sociedade cretense, porém, os registros mostram que essa civilização mantinha trocas comerciais intensas com os mais diversos povos do mundo, pressupondo, dessa forma, que eles constituíam uma sociedade avançada tanto do ponto de vista tecnológico como do econômico.

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passaram a ser mais complexas por meio de novas associações entre os genos,

resultando em grupos como a Fratria, as Tribos e os Demos, que, mais tarde, deram

origem às cidades-estados. Esse processo foi acompanhado de uma diferenciação

de classes sociais que se protrai no tempo.

Sendo os genos associações fundamentalmente familiares, os grupos mais

próximos às origens do clã, ou seja, os grupos associados aos mais velhos,

chamados de pater tiveram privilégios na distribuição de riquezas, entre essas, as

terras. Esses grupos privilegiados acabariam se tornando uma classe social distinta,

as aristocracias das cidades-estados e são denominados eupátridas (bem-nascidos,

em grego). Os que tiveram uma distribuição mediana de riquezas foram chamados

de georgóis (agricultores) e os que ficaram completamente desprovidos de riqueza

material, foram chamados de thetas (marginais). Esses grupos desprovidos de bens

migraram para regiões fora da Grécia, notadamente a ilha da Sicília, o sul da

Península Itálica e algumas regiões mediterrânicas do sul da atual França. Tal

processo ficou conhecido como a “segunda diáspora grega”.

Como consequência desse processo histórico, temos a fundação de cidades-

estados gregas fora da Grécia, como a cidade de Siracusa, na Sicília, de Nápoles,

no sul da Itália e de Marselha no sul da França. Esse fator, mais tarde, aliado à

futura expansão comercial das cidades na Grécia levou a cultura grega a influenciar

os povos dessas regiões, como os etruscos e os romanos; além de contribuir para a

própria expansão das cidades gregas. As movimentações humanas duraram até o

século VIII, em que, tradicionalmente, chegamos ao Período Arcaico.

Com o fortalecimento de certos grupos sociais, a maioria das cidades-estados

da Grécia foi dominada, política e economicamente por esses grupos, formando

assim, oligarquias. Algumas cidades-estados se transformaram em democracias,

enquanto outras se mantiveram oligárquicas. Serão citados aqui os dois exemplos

mais conhecidos, e talvez, os mais importantes, desses modelos de política: Esparta

e Atenas.

Esparta era uma cidade-estado que ficava na península do Peloponeso, e era

cercada por montanhas que faziam sua defesa natural e que conquistou toda a

região ao seu redor. Tinha uma estrutura social dividida rigidamente em três classes

sociais: os espartanos, que eram os descendentes dos conquistadores dórios e

únicos a ter cidadania, posse de terras e monopólio do poder militar, religioso e

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político, os periecos, que eram descendentes dos povos que foram submetidos ao

domínio dos dórios e se dedicavam ao comércio e artesanato e, por fim, os hilotas,

que eram propriedade do estado, portanto servos, que compunham a maior parte da

população e faziam a maior parte do trabalho agrícola.

O poder em Esparta funcionava da seguinte forma: a cidade se organizava

numa diarquia, ou seja, dois reis com funções religiosas e militares. Os maiores

poderes eram exercidos pelo Éforato, composto por cinco membros eleitos

anualmente que dirigiam o Estado, pela Gerúsia, composta por vinte e oito homens

maiores de sessenta anos, que controlavam a atividade dos monarcas e atuavam no

campo legislativo, e, por fim, existia a Apela, composta por todos os espartanos

maiores de trinta anos, que tinha funções eletivas e legislativas. Todo esse sistema

foi criado para perpetuar o modo de vida espartano, extremamente oligárquico,

militarizado e rígido. Para controlar os hilotas pela força e continuar as conquistas

militares, os espartanos tiveram que dirigir a educação9 do cidadão à obediência

absoluta à autoridade e para a habilidade física, essencial no meio militarizado.

Atenas, outra pólis de destaque, situava-se na Ática, teve a ocupação

realizada pelos aqueus, depois pelos eólios e principalmente pelos jônicos. Não foi

invadida, entretanto, pelos dórios, já que se localizava numa região montanhosa e

próxima ao mar. Atenas também não foi deixada de lado pelas transformações que

ocorreram no Período Homérico, no qual, em seu seio, também ocorreu o

fortalecimento de alguns grupos sociais.

A monarquia foi mantida durante muito tempo em Atenas até que os

aristocratas, já fortalecidos, e descontentes com ela, destituíssem-na e a

substituíssem pelo Arcontado, formado por nove arcontes, com mandatos anuais

9 É possível estabelecer um comparativo sobre a questão da educação em Esparta e a educação no pensamento platônico. Esparta valorizava muito a educação, em especial a educação física. Acreditavam os espartanos que a cidade só se fortaleceria se tivesse uma educação qualitativamente boa. Entretanto, sobre essa postura dos espartanos de dar ênfase aos exercícios físicos, Platão observou que sua principal falha era exatamente a ênfase. Acreditava que a boa educação resultava de um composto da ginástica e da música, aqui entendida como a educação humanística em geral. Além disso, Platão compreendia que a obsessão militarista impedia-os de saberem conduzir-se em tempos de paz e mesmo em administrar as sociedades conquistadas que não tinham os mesmos, isso porque o objetivo final da pólis espartana seria desenvolver exclusivamente a coragem (thimos). A título de exemplo: um jovem, transformado num soldado, não teria receio de nada que envolvesse as artes militares, as manobras em campos de batalha ou as ameaças dos inimigos da coletividade. A coragem, antes de tudo, era uma obsessão espartana. Por consequência, não apreciavam nenhum tipo de tolerância, nem desenvolveram sensibilidades outras que os tornassem mais humanos e cordatos.

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que detinham tanto funções religiosas e militares como funções judiciais. Neste

período foi estabelecido também o Areópago composto pelos eupátridas, que

deviam controlar a atuação dos arcontes. Dessa forma, foi consolidado o período

oligárquico em Atenas.

A sociedade ateniense era então segmentada socialmente entre os

eupátridas (já mencionados), os demiurgos (thetas que permaneceram na pólis

durante a segunda diáspora e a colonização de alguns lugares do Mediterrâneo ou

georgóis que perderam suas terras. Dedicavam-se ao artesanato e ao comércio) e

os escravos (prisioneiros de guerra ou de endividamento se tornaram

progressivamente a base de toda a produção agrícola e atuaram em todos os ofícios

em Atenas).

Essa estrutura organizacional gerou uma série de conflitos e tensões sociais

enormes. Os diferentes interesses dos eupátridas (manter-se no poder), os

comerciantes do litoral (participar do poder) e os demiurgos (péssimas condições de

vida, escravizados muitas vezes pelos eupátridas e sem direitos políticos, visavam

transformações radicais na sociedade ateniense) levavam esses grupos a uma

tensão social cada vez maior, até se tornar insustentável.

A luta de classes e o crescimento do comércio e da pólis foram fatores que

possibilitaram uma série de reformas que eram os reflexos dessa profunda divisão

social. Um dos reformistas foi Drácon, que em 621 a.C., colocou as leis do Estado

na forma escrita, o que as tornou mais difíceis de serem manipuladas (elas antes

eram mantidas pela tradição oral).10 Como afirma José Reinaldo Lima Lopes sobre a

lei positiva na Grécia:

A escritura das leis na Grécia, todos sabem, resulta de processos revolucionários. Transformada a composição dos grupos de poder, fazem-se de Drácon (621 a.C.), em Atenas, põem fim à solidariedade familiar e obrigam ao recurso aos tribunais nas disputas entre clãs. O grande propósito é abolir a justiça familiar, fonte de sangrentos conflitos. À cidade compete decidir e manter a paz.11

10 Essa postura de Drácon, de transformar a tradição oral em tradição posta (positivada) por leis escritas, pode se assemelhar à postura platônica de verificar que a pólis só é justa quando possui leis claras que garantam os direitos a todos os cidadãos. Do mesmo modo que Drácon sofre pressões sociais para tomar essa medida, Platão sofre pressão, de seus adversários, para rever sua teoria e apresentar uma espécie de código que positive As Leis. 11 LOPES, José Reinaldo de Lima. Op. cit., p. 39-40.

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Depois de Drácon, em 594 a.C., outro legislador teve um pouco mais de

ousadia. Sólon eliminou a escravização por dívidas e dividiu os privilégios sociais

censitariamente. Sendo assim, a riqueza do indivíduo determinaria sua posição

social,12 o que favoreceu os demiurgos ricos (comerciantes do litoral) e desagradou

os eupátridas, que perderam seu monopólio. Sólon fundou a Bulé, que tinha

quatrocentos membros, representantes das quatro tribos da Ática, a Eclésia, uma

assembleia popular que aprovava as medidas da Bulé e o Helieu, um tribunal de

justiça aberto aos cidadãos.

O contexto político ateniense torna-se ainda mais intenso com as reformas

políticas de Sólon. Essas mudanças possibilitaram o aparecimento dos tiranos. O

primeiro tirano de Atenas foi Pisístrato, que governou Atenas entre 561 a.C. e 527

a.C. e realizou inúmeras obras públicas, gerando emprego para as camadas menos

favorecidas, o que amenizou sua fúria. Pisístrato foi sucedido pelos seus filhos

Hiparco e Hípias, que não conseguiram manter a situação política estável, até que

em uma revolta liderada por Clístenes, este consegue espaço e toma o poder da

pólis.

Atenas foi dividida em dez tribos por Clístenes, em vez das quatro tribos

anteriores, acabando de vez com o papel político tradicional das famílias, genos e

frátrias e retirando o controle político dos eupátridas. A “Bulé” foi reorganizada para

comportar quinhentos membros (cinquenta de cada tribo), os quais se revezariam no

governo da Pólis, ao Arcontado foi acrescentado mais um membro, tendo assim, dez

membros, um representante de cada tribo e por fim, a Eclésia, com seis mil

representantes de todas as classes, que teve maiores poderes decisórios e de

regulamentação dos outros órgãos públicos, votando as propostas da Bulé, além de

poderem votar o ostracismo.

Não devemos esquecer que a democracia de Clístenes, apesar de ter

permitido o avanço econômico e político de Atenas, criando uma importante

oposição com Esparta (que seria obscurecida durante muito tempo pela guerra com

os persas) era excludente. Apenas homens, adultos e filhos de pai e mãe atenienses

poderiam ter direito político, e esta era uma parcela mínima da população, deixando

de fora os estrangeiros (metecos), mulheres e escravos.

12 Para Platão, na República, como veremos no capítulo IV, isso seria reprovável, uma vez que as virtudes dos homens determinariam se eles seriam de bronze de prata ou de ouro.

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O Período Clássico tem como referencial o seguinte cenário: enquanto a

estrutura democrática de Atenas se consolidava, os persas avançavam em direção

ao oeste. Sob o comando do Imperador Dario I chegaram à Ásia Menor, onde

atacaram Mileto, Éfeso e as ilhas de Samos e Lesbos. Após algum tempo de

submissão, os esforços foram insuficientes, permitindo que os persas destruíssem

Mileto e iniciassem seu avanço sobre a Grécia. É desta forma que tem início as

Guerras Médicas.

A situação beligerante contra os persas culminou na união militar das pólis

gregas, denominadas Confederação ou Liga de Delos. Tal confederação consistia

na coligação das cidades-estados, sendo que cada uma deveria contribuir com

navios ou dinheiro, que eram depositados na ilha de Delos. Quase a totalidade dos

estados gregos do Mar Egeu aliou-se, comandados por Atenas, que assumiu a

ofensiva contra os persas e libertou algumas províncias da Ásia Menor, vencendo a

decisiva batalha do Rio Eurimedon, em 468 a.C.

Em 449 a.C., foi assinada a Paz de Cálias ou Paz de Címon, na qual os

persas comprometiam-se a abandonar o Mar Egeu. Desse modo, o Mediterrâneo

Oriental ficou aberto à frota ateniense, que, sem nenhum tipo de rivalidade, pode

facilmente expandir seu comércio exterior. No geral, as cidades-estados gregas

estavam militarmente mais fortalecidas.

O período entre os anos de 461 a.C. e 429 a.C. é considerado a “Idade de

Ouro” de Atenas, quando a cidade viveu o seu auge econômico, político, militar e

cultural. Foi governada, nesse ínterim, por Péricles, e nesses trinta anos tornou-se a

cidade mais importante da Grécia, graças às reformas implantadas tanto em nível

cultural como em nível político, voltadas ao aperfeiçoamento da democracia.

Embora aristocrata de nascença, Péricles deu amplitude à democracia

ateniense,13 permitiu o ingresso e a participação política de parcelas da população

antes excluídas. Atenienses de baixa renda, envolvidos no trabalho para garantir a

sobrevivência, não podiam dedicar-se à participação política. Péricles retirou uma

13 Essa democracia está muito distante dos moldes democráticos que temos na atualidade. É possível dizer que tal democracia ateniense era uma forma de oligarquia, uma vez que somente os cidadãos (as mulheres, crianças, e metecos não eram considerados cidadãos) usufruíam dos privilégios da igualdade perante a lei e do direito de falar nos debates da Assembleia.

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série de restrições à cidadania, embora os cidadãos ainda constituíssem uma

minoria.14

Sobre a Democracia Ateniense, Acácio Vaz de Lima ensina:

Aqui, uma observação se impõe. A Democracia Ateniense costuma ser vista como um arquétipo dos regimes democráticos, em geral, inquinaram os regimes democráticos – e as fraudes eleitorais, são um destes vícios. Ora, a realidade histórica era outra. Também na Democracia de Atenas, houve uma prática de falcatruas eleitorais; também nela, o povo foi vitimado pela astúcia dos demagogos e dos oportunistas. Aqui, como alhures, há uma sensível diferença entre o modelo e a “praxis”.

Contra as mazelas da Democracia Ateniense, se insurgia Platão; bem como os seguidores do partido “laconizante”, que viam, em Esparta, um modelo a ser seguido.15

Com o passar dos anos, o predomínio de Atenas na Confederação de Delos

transformou-se em imperialista: havia interferência ateniense na política e sociedade

dos demais estados aliados. Após pressões, o tesouro de Delos foi transferido para

Atenas. Alguns Estados-membros quiseram se retirar, entretanto, Atenas obrigou-os

a permanecer por meio da força, transformando-os de aliados em inimigos que lhe

pagavam tributos.16

Com isso, o desenvolvimento e a manutenção da democracia ateniense

dependiam desse imperialismo, dos tributos cobrados das outras Pólis, da prata

extraída das minas do Láurio, além do intenso comércio. Ou seja, a democracia

ateniense e o crescimento dessa pólis só foi possível, pois escravos, ou outras pólis

ajudaram em demasia tal crescimento.

14 Sobre os dados populacionais da época: LOPES, José Reinaldo de Lima. Op. cit., p. 33-34: “Alguns dados sobre o período clássico ajudam-nos a ter uma idéia material da vida. Segundo Cook (1971:131), Atenas, por volta de 480 a.C., contava 30.000 cidadãos (homens adultos livres), 90.000 mulheres e crianças, bem menos residentes estrangeiros e escravos, num total aproximado de 150.000 habitantes. Já em 430 a.C. a figura se altera: São 40.000 cidadãos (homens adultos livres), 120.000 mulheres e crianças, 20.000 estrangeiros residentes e 60.000 escravos, numa população total girando em torno de 250.000 habitantes (...)”. Sobre a mortalidade: “A mortalidade em Atenas apresentava-se mais ou menos assim: de cada 100 adultos com 20 anos, 70 viviam até os 30, 25 viviam até os 60, 7 viviam até os 80. Morria-se, pois, relativamente cedo, seja pelas condições de saúde seja por causa das guerras. O casamento ocorria na média entre os 30 e 40 anos para os homens (portanto após o serviço militar ou outras tarefas), e para as mulheres aos 20. A mortalidade feminina era agravada pelo parto, que ainda representava risco de vida em muitas ocasiões”. 15 LIMA FILHO, Acácio Vaz de. Op. cit., p. 108. 16 Há quem diga que Péricles tinha uma postura democrática com Atenas, mas Atenas tinha uma relação tirânica com as outras cidades.

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As cidades-estados que se opunham ao expansionismo ateniense, e viam

nisso um perigo econômico e político (afinal, seus interesses eram os maiores

ameaçados), criaram – lideradas por Esparta – a Confederação do Peloponeso.

Com o nascimento da Liga do Peloponeso, em 431 a.C., Atenas e Esparta

entraram em conflito direto, por conta de uma disputa comercial entre Atenas e

Corinto (aliada de Esparta). Esparta tinha grande poderio terrestre, enquanto Atenas

tinha força naval. De início, Esparta obteve vantagem, arrasou os campos e obrigou

seus habitantes a se refugiarem dentro das muralhas atenienses. A superpopulação

ajudou a propagar uma epidemia17 que atingiu, inclusive, Péricles. A partir daí, foi

uma guerra de desgaste: durante dez anos os conflitos se estenderam sem que

houvesse vitórias ou derrotas decisivas.

Em 421 a.C. foi assinada a Paz de Nícias, rompida por Atenas sete anos

depois. Reiniciadas as lutas, estas só se encerraram com a vitória espartana na

Batalha de Egos Potamos (404 a.C.). Atenas teve que renunciar seu império,

entregando seus navios e demolindo suas fortificações.

Com isso, tem início o período de hegemonia espartana, com ascensão dos

governos oligárquicos e a decadência da democracia ateniense. O sistema

democrático até então vigente em Atenas, foi substituído por trinta atenienses

aristocráticos (governo dos Trinta Tiranos). Deste modo, a democracia ateniense

sucumbiu a Esparta, na Guerra do Peloponeso.

O domínio de Esparta durou pouco tempo, uma vez que Tebas, localizada no

estreito de Corinto, crescia rapidamente como potência bélica da Grécia. Tebas se

opôs a Esparta e com a tática militar dos generais Epaminondas e Pelópidas, os

tebanos venceram a batalha de Leutras (371 a.C.) e iniciaram sua supremacia, que

também foi de duração curta.

Os domínios sucessivos entre as cidades-estados gregas enfraqueciam toda

a Grécia, de modo a torná-las alvo fácil para o avanço de outra potência. E foi isso

que aconteceu com o avanço da Macedônia que acabou com a hegemonia grega

trazendo para essa época o Período Helenístico, que exporemos a seguir.

17 Não há um acordo entre os historiadores: os medievais descrevem como peste negra, porém é muito mais provável que pudesse ter sido outra doença como sarampo ou varíola.

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Isolada do mar, a Macedônia fica situada ao nordeste da Grécia continental.

Seus habitantes, descendentes dos indo-europeus e que falavam uma língua

derivada do grego, eram chamados pelos gregos de bárbaros.

Enquanto as cidades gregas estavam em plena decadência, como vimos,

com as continuas guerras travadas entre si, os macedônios fortaleciam-se e

iniciavam conquistas aos territórios gregos vizinhos. A época, a Macedônia era

reinada por Filipe II (359 a.C. – 336 a.C.), que venceu a batalha de Queroneia em

338 a.C., iniciando sua hegemonia.

Com o assassinato de Filipe II, sucedeu-o seu filho, Alexandre que foi

educado por Aristóteles. Alexandre assimilou os valores da cultura grega. Além do

domínio da região balcânica consolidado, atravessou o Helesponto em 334 a.C. e

Iniciou seu avanço sobre o Oriente.

Foi na batalha de Grânico que venceu os persas e conquistou a Ásia Menor.

Estendeu seu domínio, em seguida, sobre o Oriente Próximo, chegando até o Egito,

onde fundou a primeira das várias cidades com o nome de Alexandria. Avançando,

chegou com suas tropas até as margens do rio Indo, na Índia.

Voltando suas campanhas militares, iniciou uma organização de seu exército

e escolheu a Babilônia como sede de seu império. Morreu jovem, aos 33 anos, e

seus sucessores não conseguiram manter unidade e força no enorme império criado

por Alexandre, que acabou sendo dividido entre quatro generais: Ptolomeu, que

ficou com o Egito, a Fenícia e a Palestina; Seleuco, com a Pérsia, a Mesopotâmia e

a Síria; Cassandro, com a Macedônia; e Lisímaco, com a Ásia menor e a Trácia.

A divisão do Império Alexandrino e as lutas internas que se seguiram,

enfraqueceram-os e possibilitaram a conquista romana que se concretizou nos

séculos II e I a.C.

Importante destacar que a ação de Alexandre viabilizou uma fusão cultural

entre a cultura grega e a cultura oriental. A essa fusão nomeamos de Helenismo,

que além de buscar mais realismo nas pinturas trouxe também grandes impulsos às

ciências, seja na astronomia com Ptolomeu, na geografia com Eratóstenes, na

matemática com Euclides ou na Geometria com Arquimedes. No campo político, os

avanços da democracia foram eclipsados pelo retorno do despotismo oriental, na

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qual a autoridade do governo era inquestionável. Na filosofia, Estoicismo e

Epicurismo são as correntes de pensamento que ganham força na época.

Ao interpretar Benoist-Méchin, Cláudio De Cicco assim se manifesta sobre o

Helenismo:

Com efeito, Alexandre colocara sua espada a serviço da cultura. As lições de seu mestre Aristóteles não tinham sido baldadas. O Grande sonho de Alexandre era helenizar todo o mundo, isto é, comunicar aos povos da Ásia os valores da cultura grega e seus progressos no campo filosófico, em que Sócrates, Platão e Aristóteles se elevam ao monoteísmo e à concepção da dignidade humana, dele decorrente.18

Do exposto, e do período que viveu Platão, devemos destacar o período

Clássico, que foi o apogeu ateniense e grego. O Século de Ouro teve em Péricles a

grande figura imperialista-militar que liderou Atenas para sua ascensão política (com

a democracia), militar (com o exército) e cultural (com a filosofia).

18 DE CICCO, Cláudio. Op. cit., p. 53.

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2. OS PRECURSORES DO PENSAMENTO PLATÔNICO

Neste capítulo, analisaremos alguns pensadores da Antiguidade que

precederam Platão. Exporemos brevemente o pensamento pré-socrático, sofista e

socrático. Importante o estudo desses pensadores, pois, é preciso saber onde se dá

o nascedouro da filosofia ocidental, bem como compreender os sofistas e o

pensamento socrático, pois são figuras centrais para os diálogos platônicos e,

consequentemente, seu estudo, auxilia na compreensão da construção de sua

teoria.

2.1 O pré-platonismo nos pré-socráticos

Em uma época de crises e mudanças históricas e políticas, surgem os

primeiros filósofos da história da humanidade. Chamados de filósofos da natureza

ou cosmocêntricos. Como menciona a própria nomenclatura, eles volviam seus

olhares para o mundo da natureza, da organização das coisas, buscavam o absoluto

numa determinação real da natureza.

Os pré-socráticos recebem essa nomenclatura não pela questão cronológica,

pois, a exemplo, Anaxágoras, um dos últimos pré-socráticos, foi contemporâneo de

Sócrates, mas sim por sua identidade na preocupação investigativa, pois tinham na

physis seu objeto de estudo.19

Eram “empíristas” – na verdade, não existia tal termo nessa época, portanto,

dizemos que eram observadores da natureza. Suas obras, escritas em verso ou

poesia se perderam. Tudo que temos dos pré-socráticos são algumas frases ou

alguns parágrafos escritos por outros autores (doxografia, que consiste no relato das

19 CHAUÍ, Marilena. Introdução à história da filosofia. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. v. 1, p. 53.

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ideias de um autor quando interpretadas por outro autor), em obras que

sobreviveram e chegam até nós.20

O pensamento político pré-socrático terá um papel muito importante no

pensamento platônico, pois estes abrem o campo reflexivo da filosofia, e com isso

oferecem subsídios para suas argumentações21 políticas, jurídicas e filosóficas.

Por isso, estudaremos alguns pensadores das escolas pré-socráticas que

temos. Da Escola Jônica teceremos comentários sobre Tales de Mileto,

Anaximandro de Mileto, Anaximenedes de Mileto e Heráclito de Éfeso; da Escola

Pitagórica ou Itálica, exporemos notas sobre Pitágoras de Samos; da Escola Eleata

grafamos sobre Parmênides de Eleia. Tamanha sua importância, e dificuldade de

classificá-lo como um pensador de determinada escola, exporemos também o

pensamento de Anaxágoras de Clazômenas.

Começamos com Tales de Mileto (624 a 546 a.C.), filho de Examies e

descendente da família Télida, que reinou um período na província Jônica de Mileto.

Era uma dos sete sábios da Grécia arcaica e o primeiro filósofo da Grécia. Cunhou a

palavra filosofia (Filo = amizade + Sofia = sabedoria), sendo certamente o primeiro

filósofo ocidental da história. Não se conhece nenhuma obra deixada por Tales.

Diógenes Laércio menciona 200 versos escritos por ele e que tratavam de

astronomia.22

Além das discussões astronômicas, matemáticas23 e até mesmo sobre a

democracia,24 Tales discutia muito sobre filosofia. Apoiado na crença comum de boa

20 No século XVIII, o alemão Hermann Diels leu toda (ou boa parte) a literatura grega e separou todas as passagens (diretas ou indiretas) com informações sobre algum filósofo pré-socrático. Reuniu essas passagens e as publicou no livro Die Fragmente der Vorsokratiker (Os fragmentos dos pré-socráticos) e a partir daí os pensadores dessa época ficaram conhecidos com o nome “pré-socrático”. 21 Para isso, estudaremos alguns pensadores das escolas pré-socráticas que temos. Da Escola Jônica, teceremos comentários sobre Tales de Mileto, Anaximandro de Mileto, Anaxímenedes de Mileto e Heráclito de Éfeso; da Escola Pitagórica ou Itálica, exporemos notas sobre Pitágoras de Samos; da Escola Eleata grafamos sobre Parmênides de Eléia. Tamanha sua importância, e dificuldade de classificá-lo como um pensador de determinada escola, exporemos também o pensamento de Anaxágoras de Clazômenas. 22 Tales nada deixou escrito. Os filósofos e escritores que surgiram depois dele apresentaram um resumo de seus ensinamentos, como Plutarco, grande historiador romano. 23 Seus conhecimentos de geometria lhe permitiram medir a altura das pirâmides partindo da medição de suas sombras. Considerava a lua como um corpo opaco que recebia a luz do sol. Sabia calcular as revoluções da Lua e do Sol, além de prever eclipses e dividia o ano em 365 dias. 24 VERNANT, Jean-Pierre. As origens do pensamento grego. 7. ed. Trad. Isis Borges B. da Fonseca. São Paulo: Bertrand, 1992, p. 94 e 95: “Advento da Pólis, nascimento da filosofia: entre duas ordens de fenômenos os vínculos são demasiado estreitos para que o pensamento racional não apareça, em suas origens, solidário das estruturas sociais e mentais próprias das cidades grega.

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parte da humanidade no sentido de que nada vem do nada ou volta ao nada,

procurava, na natureza, um elemento de que todas as coisas se originassem e para

a qual voltassem. O questionamento básico de Tales de Mileto consistia no seguinte:

De Onde Vim? Dos quatro elementos da natureza, encontra na água como principal

elemento para explicar a origem de tudo. Segundo Tales, podemos justificar que a

água25 é a fundadora do início da vida por vários motivos, apresentamos alguns

deles expostos por Plutarco, quais sejam:

a) Afrodite nasce de Cronos (Saturno) a partir do corte de sua bolsa escrotal.

Seu testículo cai nas espumas das águas e nasce a Deusa do Amor;

b) Dá-se porque a água está em todos os lugares; sem água, não vivemos, e

boa parte de nossos corpos é composta de água;

c) A água é a causa da umidade e se sabe que a semente ou o sêmen de

todos os animais é úmido; ora, se os animais nascem da umidade não podemos

supor que o Universo nasce da umidade?;

d) A umidade é necessária para a nutrição e fecundação das plantas como a

semente dos animais, porque as plantas e os animais morrem quando ficam secos?;

e) O sol e os astros parecem que se nutrem dos vapores ou da umidade da

terra;

f) A Terra flutua sobre as águas.

A contraposição ao pensamento de Tales também é de Mileto, filho de

Praxíades, Anaximandro de Mileto (610 a 547 a.C.) é descrito por Teofrasto como

concidadão, discípulo e sucessor de Tales. Foi astrônomo, geógrafo, matemático e

político. Seus trabalhos mais importantes são na cosmologia, isto é na descrição

hipotética da criação do mundo.

Assim recolocada na história, a filosofia despoja-se desse caráter de revelação absoluta que as vezes lhe foi atribuído, saudando, na jovem ciência dos jônios, a razão intemporal que veio encarnar-se no tempo. A escola de Mileto não viu nascer a Razão; ela construiu uma Razão, uma primeira forma de racionalidade. Essa razão grega não é a razão experimental da ciência contemporânea, orientada para a exploração do meio físico e cujos métodos, instrumentos intelectuais e quadros mentais foram elaborados no curso dos últimos séculos no esforço laboriosamente continuando para conhecer e dominar a Natureza. (...) De fato, é no plano político que a razão, na Grécia, primeiramente se exprimiu, constituiu-se e formou-se. (...) Quando nasce em Mileto, a filosofia está enraizada nesse pensamento político cujas preocupações fundamentais traduz e do qual tira uma parte do seu vocabulário”. 25 Mais especificamente, a physis deriva do úmido.

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30

Crítico do pensamento de Tales e de Anaxímenes, Anaximandro, em seu

tratado Sobre a natureza ou do desenvolvimento das coisas, afirma que não se pode

explicar a origem dos elementos naturais pelos próprios elementos;26 é impossível

ter como ponto de apoio de uma doutrina algo determinado como a água. Por isso, o

mundo não poderia vir da água nem de qualquer outro elemento.

Para ele, a formação das coisas se dá pela existência complexa e simultânea

de elementos contemporâneos uns dos outros e confundidos primitivamente no caos

que era o mundo em seu começo. Fundamentava sua explicação com o conceito

que apresentava de infinito. Para ele, o infinito é imutável e variável nas suas partes:

Imutável, pois existe, e não existe nada maior que o infinito que possa mudá-lo

entretanto é variável, porque os elementos que nele se encontram podem ser

separados e unidos ou aproximados por semelhanças e afastados por diferenças.

Deste modo, Anaximandro acredita que há um princípio indeterminado,

chamado por ele de Ápeiron,27 Esse elemento é, nas suas palavras, “um motor

imóvel que movimenta os motores móveis”, o apeíron tudo inclui, tudo governa.28

O pensamento de Anaximandro é refutado por Anaxímenes de Mileto (585-

529 a.C.)29 que não seguiu os passos daquele explicando o mundo a partir de um

elemento indeterminado. Assim como Tales de Mileto, procurou um ponto de apoio,

uma coisa determinada e certa. Para ele o mundo, a physis, veio do ar (pneuma),30

pois este elemento tem atributos magníficos, tais como a imensidade, o infinito e o

movimento.31

26 Afirmava: “Nem água nem algum dos elementos, mas alguma substância diferente, limitada, e que dela nascem os céus e os mundos neles contidos”. 27 A crítica elaborada em desfavor de Anaximandro reside no fato de que ele adotou um princípio que não pode ser considerado como elemento material porque, ao contrário de Tales, propõe o Ápeiron que não é algo sensível, material, palpável. 28 Essa ideia motriz é retomada por Platão em As Leis para justificar a causa primeira como veremos em 895a-b. 29 Tem a seguinte frase atribuída a si: “Como nossa alma que é ar, nos mantemos unidos, assim como o sopro e o ar abarcam o cosmo”. 30 Além de Anaxímenes de Mileto, outro pré-socrático que podemos citar é Empédocles de Agrigento (cerca de 490 – 435 a.C.) que também teceu comentários sobre o ar. Empédocles foi o primeiro a reconhecer a existência do ar atmosférico como substância separada. 31 CHAUÍ, Marilena. Op. cit., p. 64: “A grande originalidade de Anaxímenes, perante Tales e Anaximandro, consiste no fato de que a multiplicidade, transformação e ordenação do mundo se fazem por alterações quantitativas em um único princípio: menos ar (rarefação) e mais ar (condensação) determinam toda a variação e organização do real. O ar, elemento universal, invisível e indeterminado, por sua força interna própria, movimenta-se: contraindo-se ou dilatando-se, vai engendrando todos os seres determinados como manifestações visíveis de uma vida perene. O cosmos vive no ritmo de uma respiração gigantesca que o anima e mantém coesas suas partes”.

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31

Recebeu duras críticas ao seu pensamento, como as que foram incutidas a

Tales, acrescidas de que é impossível explicar o início por meio de algo sem forma e

que não vemos. Além disso, para alguns naquela época, a função do ar era

preencher o vácuo, mais nada.

Já Anaxágoras de Clazômenas (497-428 a.C.),32 filho de Hegesiboulos, se

mudou para Atenas por razões desconhecidas, e é citado por muitos como o pré-

socrático mais importante. Ensinou em Atenas durante cerca de trinta anos, até ser

acusado de impiedade por sugerir que o Sol era uma massa de ferro candente e que

a Lua, além de proceder da Terra, era uma rocha que refletia a luz do Sol. Fugiu,

então, para a Jônia, estabelecendo-se em Lâmpsaco.

Anaxágoras foi um dualista, pois acrescentou o nous – espírito ou inteligência

– aos elementos físicos que compõem a realidade. O nous seria uma força de

natureza imaterial capaz de ordenar as coisas – a causa motora e ordenadora que

promove a separação dos elementos contidos no "magma" original.

Em sua obra, Fedão (97 d.C.), Platão escreve que, segundo Anaxágoras, o

nous é o organizador e a causa de todas as coisas. As verdadeiras causas se

encontrariam nessa "inteligência", sendo as demais, naturais e concretas, simples

concausas ou causas secundárias.

XLVI – Ao ouvir, porém, certa vez alguém ler num livro de Anaxágoras – segundo dizia – que a mente é organizadora e causa de tudo, fiquei satisfeitíssimo com semelhante causa, por parecer-me, de algum modo, muito certo que a mente fosse a causa de tudo, tendo imaginado que, a ser assim mesmo, como coordenadora do Universo, a mente disporia cada coisa em particular pela melhor maneira possível. Se alguém quisesse explicar a causa de como alguma coisa nasce ou morre ou existe, teria apenas de descobrir qual é a melhor maneira para ela existir, sofrer ou produzir seja o que for. Segundo esse critério, só o que importa ao homem considerar, tanto em relação a si mesmo como a tudo o mais, é o modo melhor e mais perfeito. Desse jeito, ficaria necessariamente conhecendo o pior, por ambos serem objeto do mesmo conhecimento. Depois dessas reflexões alegrei-me ao pensar havia encontrado em Anaxágoras um professor da causa das coisas (...).

32 Seguem algumas máximas atribuídas a esse pensador: “Prefiro uma gota de sabedoria do que toneladas de riqueza”; “Mede-se a grandeza de uma ideia pela resistência que ela provoca”; “De todos aqueles que consideramos felizes, não há um que o seja”; “Em cada coisa há uma porção de todas as outras, exceto a alma, que algumas coisas contêm”.

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32

Essa questão guarda forte relação com o pensamento platônico, uma vez

que, como veremos ao final dessa tese, Platão considera que o homem, para

organizar sua cidade ideal, deve buscar na inteligência divina, que se manifesta na

natureza, inspiração para a estrutura e a ordem inteligente da organização da pólis.

Por seu turno, Heráclito de Éfeso (540-476 a.C.) era filho de Blison, de

família que ainda conservava prerrogativas reais (descendentes do fundador da

cidade). Para o pensador em comento, tudo é constante processo; nada é estático.33

Diz que um homem não se banha duas vezes no mesmo rio.34

Como ensina Pugliesi:

(...) a alma é uma emanação do fogo celeste e vive apenas em contato com esta fonte da vida. Ela se renova incessantemente pela respiração e pela sensação. A geração é a transformação da semente liquida em sopro seco, portanto, é o fogo latente na terra que, através do estado líquido, reverte a seu estado primitivo na alma humana. O sopro mais seco constitui a alma mais forte e na morte, o sopro de vida se esvai e a alma retorna gradativamente ao estado terroso. A energia da vida individual depende de comunhão mais ou menos seguida com o fogo celeste, lama do mundo soberanamente inteligente e sábia. Assim, as almas são desiguais quanto à força e é difícil o autodomínio, contudo quando o homem sonha ou reflete, consegue se isolar e retirar-se a um universo pessoal. Essa individualização possível em um sistema que unifica o universo pelas leis de movimento permanente dá a primeira grande pista da formação do conceito de indivíduo a partir daquele isolamento de alma.35

Quanto à teoria da Justiça, temos as observações de Carlos Eduardo

Meirelles Matheus, com relação a Heráclito, em comparação com Anaximandro, que

nos leva a uma compreensão mais ampla do pensamento Platônico:

Anaximandro havia se referido à ‘injustiças’ que ocorre quando há desencontros ou conflitos durante os movimentos naturais dos corpos. Mais tarde, Heráclito divergiu de Anaximandro, ao dizer que todo conflito que provoca injustiça é inerente ao próprio processo

33 Seguem algumas frases atribuídas a Heráclito: i) “Este mundo, o mesmo de todos os (seres), nenhum deus; nenhum homem o fez, mas era, é e será um fogo sempre vivo, acendendo-se em medidas e apagando-se em medidas”; ii) “Nos mesmos rios entramos e não entramos, somos e não somos”; iii) "Não se pode entrar duas vezes na mesma corrente de um rio". 34 José Renato Nalini dispõe o seguinte em Por que filosofia? (São Paulo: RT, 2008, p. 77-78): “Para Platão, a verdadeira ciência não tem como objeto os seres cambiantes do mundo de Heráclito – ninguém se banha duas vezes no mesmo rio. O objeto da ciência é algo imutável, eterno e real. Além e acima da realidade sensível – a opinião – deve existir uma realidade inteligível – a verdade atingida pela razão”. 35 PUGLIESI, Marcio. Mitologia greco-romana: arquétipos dos deuses e heróis. 2. ed. São Paulo: Madras, p. 36.

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33

universal. Para Heráclito, os movimentos celestes se confrontam em sucessivas oposições recíprocas, produzindo-se, como resultado, seu ‘justo’ equilíbrio. Portanto, a justiça resultaria de um equilíbrio entre elementos contrários. Talvez se possa dizer que, antes de Platão, a justiça era entendida como o ‘ajustamento’ necessário de forças – que se opõem exatamente para estabelecer a ‘ordem’ cósmica

(...)

Esta noção de uma justiça natural presente na ordem universal foi também uma das principais fontes inspiradoras da busca de conhecimento e da reflexão sobre a presença da justiça como uma idéia na qual Platão, buscava um sentido oculto para a vida humana.36

Em contraposição a Heráclito, Parmênides de Eleia37 (530 a 460 a.C.). Filho

de Pietro e discípulo de Xenófantes e depois de Pitágoras, Parmênides nasceu na

Eleia (colônia Jônia, na Itália) atingindo a fama por volta de 475 a.C. Aos 25 anos,

visitou Atenas, e por volta dos 70 anos conheceu Sócrates. Foi o fundador da escola

eleática.

Se, para Heráclito, como vimos, há uma constante mudança, para

Parmênides a essência não muda. As pessoas podem até mudar, a água pode até

não ser a mesma, mas a sensação, a lembrança, a essência do ato praticado é

sempre a mesma.

O poema de Parmênides nos oferece – ao lado dos fragmentos de Heráclito –

uma das doutrinas mais profundas do pensamento pré-socrático. De difícil

interpretação, o poema divide-se em três partes: o prólogo, o caminho da verdade

(alethéia) e o caminho da opinião (doxa).

No prólogo, o filósofo é conduzido à presença da deusa que lhe promete a

revelação da verdade. No fim do prólogo, o poema distingue “o coração inabalável

da verdade”, das “opiniões dos mortais” o que permite distinguir as duas partes

sequentes de sua doutrina.

À doutrina do caminho da verdade, o filósofo distingue dois caminhos de

investigação, o do ser e o do não-ser, sendo que o primeiro caminho é o da certeza,

pois conduz à verdade, e o segundo não leva à verdade. 36 MEIRELLES MATHEUS, Carlos Eduardo. A noção de justiça em Platão. In: PISSARRA, Maria Constança Peres; FABRINI, Ricardo Nascimento (orgs.). Direito e filosofia – A noção de justiça na história da filosofia. São Paulo: Atlas, 2007, p. 18. 37 No diálogo platônico intitulado Parmênides, discute-se a natureza da realidade, se é múltipla ou única, bem como a teoria das formas é apresentada.

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34

A terceira parte do poema ocupa-se do caminho da opinião. Nesse momento,

desenvolve sua cosmologia, sendo que para ele o ser é uno, contínuo, único, eterno

e não preso numa duração sem principio nem fim.38-39

O último pensador pré-socrático que destacamos é Pitágoras de Samos40

(582-497 a.C.).41 Filósofo e matemático que viveu de 582 até 497 a.C. em Samos,

uma ilha do Mar Egeu, situada muito perto de Mileto, onde viveu Thales. Fundou a

Escola Pitagórica.

O ideal de sua matemática vem do belo.42 Observa a natureza pelas cordas e

sons de instrumentos musicais e, com isso, prova algumas de suas teorias

matemáticas. Tal observação da natureza é a busca de ordenar intelectualmente o

que se reproduz de maneira ordenada na natureza. Buscou explicar a origem,

physis, do mundo afirmando que era no número (arithmós)”.43 Na Matemática, ficou

famoso pelo seu teorema no qual a soma dos quadrados dos catetos é igual ao

quadrado da hipotenusa.

Importante destacar que Pitágoras identificava as leis como a relação

numérica de igualdade entre uma ofensa e sua reparação. Buscava justificar as leis

pela proporcionalidade que há nas cordas da lira. Pitágoras acreditava que:

38 Note que na doutrina Platônica boa é alma que se governa pelo conhecimento que só pode ser verdadeiro, ao passo que a opinião pode ser verdadeira ou falsa, e mesmo sendo verdadeira é mais fraca e insegura que o conhecimento. 39 Essa busca da essência e do não mutável nos remete novamente à doutrina platônica no que tange à questão do conhecimento verdadeiro do sábio e da opinião. 40 Diálogos (Menon, Banquete e Fedro). Trad. Jorge Palekat. 5. ed. Introdução de Paul Tannery. Rio de Janeiro: Ed. Globo, p. 33-34: “Em suma, segundo a concepção histórica que se tem do pitagorismo, pode-se ser levado a exagerar desmedidamente a influência dessa escola sobre Platão ou, ao contrário, a reduzi-la quase a nada, principalmente no que se relaciona com o ponto de vista estritamente filosófico. Sob o ponto de vista cientifico e político esta influencia foi incontestavelmente muito grande, mas nem por isso se deve exagerá-la”. 41 Em Górgias (508a), Platão critica aqueles que não querem estudar geometria, pois como ele mesmo associa estreitamente o conceito de isotes, da igualdade geométrica, fundamento do cosmos físico, às virtudes políticas sobre as quais repousa a nova ordem da cidade. 42 Cosmo (Universo) significa em sua gênese “belo”. 43 CHAUÍ, Marilena. Op. cit., p. 68-69: “Como teria chegado a essa idéia? Os exercícios espirituais da comunidade pitagórica eram realizados ao som da lira órfica ou a lira tetracorde (lira de quatro cordas), e é muito provável que Pitágoras tivesse percebido que os sons produzidos pela lira obedeciam a princípios e regras para formar os acordes e para criar a concordância entre sons discordantes, isto é, os sons da lira seguem regras de harmonia que se traduzem em expressões numéricas (as proporções). Ora, se o som é, na verdade, número, por que toda a realidade – enquanto harmonia ou concordância dos discordantes como o seco e úmido, o quente e o frio, o bom e o mau, o justo e o injusto, o masculino e o feminino – não seria um sistema ordenado de proporções e, portanto, número? A proporção ou harmonia universal faz com que o mundo possa ser conhecido como um sistema ordenado de opostos em concordância recíproca e por isso, assim como Pitágoras foi o primeiro a falar em philosophía (...) foi o primeiro a falar no mundo como kósmos”.

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35

há uma música universal e que não a ouvimos porque nascemos e vivemos em seu interior e não possuímos o contraste do silêncio que nos permitiria ouvi-la. No mundo, as cordas da lira são as esferas celestes, onde se encontram os astros, e a esfera terrestre, onde nos encontramos. A música ou harmonia universal é a relação proporcional e ordenada entre as esferas ou entre os céus e a terra.44

Acreditava, ainda, na transmigração das almas, ou seja, acreditava que as

almas poderiam reencarnar passando por diferentes corpos, tanto humanos como

animais. Acreditava que a alma poderia se purificar, libertando-se da “roda do

nascimento” com o conhecimento ou a vida contemplativa, ou seja, somente por

meio da theoria. Sobre esse tema, os doxógrafos trazem ensinamentos muito úteis,

que posteriormente são resgatados por Platão na Tripartição da alma que apresenta

em sua teoria.45

2.2 Os sofistas – O contraponto para Platão

Os sofistas eram professores viajantes que por determinado preço vendiam

ensinamentos práticos do conhecimento. Levando em consideração os interesses

dos alunos, davam aulas de eloquência e sagacidade mental. Ensinavam

conhecimentos úteis para o sucesso dos negócios públicos e privados.

Os sofistas se preocuparam com o homem e com o seu modo de viver no mundo. Intentavam entender um ser que sente, deseja e pensa, e cuja existência oferta questões de inteligência e de moralidade e, por essa razão, estudaram a subjetividade. E, se, como a maioria dos historiadores da filosofia pensa, filosofaram para justificar sua arte oratória – os sofistas possibilitaram, ainda, o desenvolvimento a toda filosofia platônica em seu intento de fundamentar o saber para desalojar a relativização sofística. A transição do estudo do cosmo e do homem em seu interior para o homem como objeto de estudo significa a contribuição mais efetiva desses filósofos de transição.46

44 Idem, ibidem, p. 69. 45 Idem, ibidem, p. 68: “Ele (Pitágoras) teria dito que aos jogos olímpicos comparecem três tipos de homens: os que vão para comerciar e ganhar a expensas de outros; os atletas, que vão para competir e exibir suas qualidades ao público; e os que vão para contemplar os torneios e avaliá-los. Assim também existem três tipos de almas: as cúpidas, presas às paixões; as mundanas, presas às vaidades da fama e da glória; e as sábias, voltadas para a contemplação”. 46 PUGLIESI, Marcio. Filosofia geral e do direito – Uma abordagem contemporânea. Tese de Doutoramento em Filosofia pela PUCSP, 2009, p. 37.

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36

As lições sofísticas tinham por objetivo o desenvolvimento do poder de

argumentação retórica, e do conhecimento de outras doutrinas. Eles transmitiam um

conjunto de raciocínios e concepções, que seriam utilizados na arte de convencer as

pessoas.

Segundo essas concepções, não haveria uma verdade absoluta. Tudo seria

relativo ao homem, ao momento e a um conjunto de fatores e circunstâncias. Os

sofistas não tinham como objetivo a verdade, pois estas, segundo eles, podem ser

instáveis e relativas. Daí se justifica a visão sofista de que a justiça não poderia ser

plena, pois ao sustentarem que o ser humano não estava apto a alcançar a verdade,

fizeram inferir que as instituições político-jurídicas da pólis grega também não o

poderiam fazer, o que reflete a impossibilidade de se praticar plenamente a justiça.

Essa relativização da justiça ocasionaria certo desprezo às leis.

A ideia de podermos relativizar as verdades poderia abalar a filosofia de

Sócrates e de Platão, e por conta disso, eles consideravam os sofistas como seus

inimigos, alcunhando-os de “demagogos que usavam falsos argumentos”. Em

contrapartida os sofistas muito estudavam e buscavam acumular o máximo de

conhecimento, em especial sobre a linguagem.47

Com isso, devemos observar que os sofistas podem ser estudados sob uma

ótica positiva. Podem ser classificados em duas gerações.

A primeira geração de sofistas é formada por aqueles conhecidos como

negativos no que tange ao conhecimento e à crença nos deuses, mas são positivos

no que se refere à moral e ao Estado. Destacamos Protágoras e Górgias como os

sofistas dessa geração; e, também, Hípias como pensador da transição dessa

geração.

Protágoras de Abdera (480-410 a.C.), filho de Neandrios, o qual afirmava

como tese principal que o “homem é a medida de todas as coisas”,48 ou seja,

defendia a ideia de que as coisas são relativas para cada um, volvendo, assim, os

olhares do cosmo para o homem. Para Protágoras, não podemos nos prender a

47 CHAUÍ, Marilena. Op. cit., p. 161: “Embora não tivesse o sentido pejorativo que veio a adquirir posteriormente, a palavra sofista tinha um sentido ambíguo, conotando aquela pessoa cuja habilidade extrema provocava uma mescla de admiração, temor e desconfiança. Exatamente por isso os inimigos, aproveitando-se dessa ambiguidade, chamarão os sofistas de charlatães e mentirosos”. 48 Ideia contraposta pelo ateniense nas Leis em 716c-d ao afirmar que a divindade é a medida de todas as coisas.

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verdades absolutas, pois elas não existem. Além disso, escreveu sobre o uso

adequado das palavras e fez progredir a gramática; atribuiu à arte de falar o poder

de tornar vitoriosas as causas.49

Já Górgias de Leontini (485-375 a.C.) foi um grande estudioso e teórico, por

assim dizer, da linguagem e da retórica. Ensinou a arte da retórica na Sicilia e em

Atenas. É possível encontrar Górgias no diálogo socrático que leva sua alcunha;

nesta obra ao discutir sobre o que é ou não é natureza extrai as seguintes

conclusões: i) nada existe; ii) se existisse, não seria conhecido; iii) se fosse

conhecido, não poderia ser comunicado.

Hípias de Élide (527 e 510 a.C) era filho de Diopites e pode ser considerado

um sofista de transição da primeira para a segunda geração. Coloca a questão da

distinção do direito natural das leis positivas, tal questão é bem debatida na

Antígona de Sófocles.

A segunda geração dos sofistas destaca-se pelas mudanças circunstanciais

na Grécia, sendo que a moral, o direito e o Estado emanam do jogo dos egoísmos

individuais, da mesma maneira que a ordem do cosmo se deduz do jogo dos átomos

na escola atomista. Eurípedes é o poeta que representa essa época. Direito Natural,

política e retórica também são pontos de toque desta geração. Destacamos Cálicles,

Trasímaco e Crítias.

Cálicles é um personagem encontrado na obra Górgias que tem até sua

existência questionada. Defende o direito natural do homem de se libertar das leis

escritas e de se impor como senhor, segundo o direito da natureza. Trasímaco da

Calcedônia é encontrado no Livro I da República Platônica.50 Apresenta para

Sócrates um sistema ético-político que será apresentado no desenvolvimento sobre

o que é justo. Crítias foi um dos trinta tiranos e tio de Platão; dá explicação para a

crença nos deuses como invenção de um político sagaz.

Com isso não podemos descartar ou banalizar o pensamento sofista, uma vez

que há nele uma grande importância para a própria construção do pensamento

filosófico, na medida em que são os sofistas que contribuem para que os diálogos de

49 Desenvolveremos no capítulo IV o diálogo entre Sócrates e Protágoras escrito por Platão. 50 Exporemos com mais detalhes as questões desse diálogo no capítulo IV deste trabalho.

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Sócrates, escritos por Platão, prosperem, além do que a democracia ateniense é

desenhada por muitos argumentos trazidos pelos sofistas.

2.3 Sócrates

Nenhum outro julgamento, à parte o de Jesus Cristo, deixou uma impressão tão forte na imaginação do homem ocidental quanto o de Sócrates. (...) Foi Platão quem criou o Sócrates de nossa imaginação, e até hoje é impossível determinar até que ponto é produto do gênio criativo de Platão.51

Sócrates foi um dos pensadores mais importantes da tradição filosófica

ocidental. A fonte mais importante de informação sobre Sócrates que temos é

Platão, que, em seus diálogos, retrata Sócrates como mestre da razão e da busca

pela verdade. Assim, Sócrates nada escreveu. Acreditava que a escrita petrifica e a

palavra vivifica, desta forma imaginava que se escrevesse algo poderia ser

interpretado de maneira equivocada no futuro, tendo seus posicionamentos

petrificados ou imobilizados para sempre, ao passo que sua palavra poderia ser

transmitida a todos mantendo seu pensamento livre e vivo.

Na época da oligarquia dos trinta tiranos em Atenas, os governantes tentaram

fazer Sócrates cúmplice na execução de Leon de Salamina, cujos bens desejavam

confiscar. Sócrates recusou-se a participar da indigna trama, perdendo, deste modo,

a simpatia que tinha dos tiranos. Ana Elias Pinheiro diz o seguinte:

(...) Não é efectivamente difícil que Sócrates tenha sido considerado uma ameaça à constituição democrática, quando do seu círculo tinham feito parte indivíduos como Alcibíades, democrata radical e de percurso irregular, que com facilidade traía a sua cidade a favor de interesses pessoais, como Crítias, que tinha precisamente integrado, derrotada Atenas por Esparta, o governo oligárquico dos Trinta Tiranos (cf. Xenofonte, Memoráveis, 1.1.1; 1.2.12-16; Platão, Apologia, 33a-b; Diógenes Laércio, 2.40).52

51 STONE, Isidor Feinstein. O julgamento de Sócrates. Trad. Paulo Henrique Britto. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 21. 52 Trecho extraído da introdução de Ana Elais Pinheiro. In: XENOFONTE. Memoráveis. Coimbra: Fundação Caluste Gulbenkian, 2009, p. 13.

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Mais tarde, em 399 a.C., Sócrates foi acusado pelo regime democrático de

Atenas53 de ter corrompido a juventude, por difundir ideias contrárias à religião

tradicional, tendo sido condenado a morrer bebendo cicuta.54

Xenofonte, assim dispõe sobre a acusação que recaia sobre Sócrates em

Memoráveis 1.1.1:

A sentença lavrada contra ele dizia qualquer coisa como: Sócrates é culpado diante da lei por não reconhecer os deuses que a cidade reconhece e por ter introduzido divindades novas; e é culpado ainda por corromper os jovens.55

Nas palavras de Wolf: “Desde que no ano de 399 a.C. o estado ateniense o

condenou a beber cicuta mortal, um verdadeiro gênero literário nasceu da noite para

o dia: ‘a discussão socrática’”.56

Importante destacar que Sócrates aceitava as leis de Atenas e isto resta

patente, uma vez que ele se curva à decisão imposta pelo Estado ateniense57 e que,

muito provavelmente, à luz de toda sua teoria, considera sua pena injusta e

desapropriada, mas como respeita a cidade e as leis por ela positivadas, concorda

com sua reprimenda.

Outro argumento que pode fazer com que acreditemos no motivo de Sócrates

aceitar sua pena é o fato de ele defender a imortalidade da alma e a transitoriedade

do corpo. Assim, para Sócrates, a pena aplicada pelos seus juízes, possibilita sua

libertação do velho corpo que tinha, para sua saudável e sábia alma.

Para Platão, como veremos, o fato de a Pólis grega ter condenado seu

grande mestre, fará com que ele não acredite no sistema democrático proposto em

53 Embora distinto de nosso regime democrático atual, a época assim era considerado o regime ateniense. 54 Em Fédon, 57b, Platão diz apenas ser veneno, e descreve seus efeitos, de maneira mais branda, em 115b-118a. 55 XENOFONTE. Op. cit., p. 57. 56 WOLFF, Francis. Sócrates. 4. ed. São Paulo: Brasiliense, p. 9. 57 XENOFONTE. Op. cit., p. 26 (Introdução de Ana Elais Pinheiro): “A defesa de Sócrates diante dos juízes parece ter sido, na realidade, uma não defesa. O sistema jurídico ateniense não contemplava a figura do advogado; assim sendo competia, quer aos promotores de uma acusação, quer aos seus arguidos, a defesa das suas motivações embora pudessem contratar para o efeito os serviços de logógrafos profissionais que se encarregavam de organizar os processos e de compor os discursos a pronunciar no tribunal. Instruído o processo, diante dos juízes, a ambas as partes era concedido igual tempo para apresentarem as suas razões”.

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Atenas, e o convidará para a propositura de um sistema ideal em que as leis do

Estado observem e se subordinem ao Direito Natural.

Episódio importante a ser destacado sobre Sócrates se deu com o

questionamento do Oráculo de Delfos sobre “o que sabia”, tendo afirmado: “Só sei

que nada sei”, e então o oráculo afirma ser Sócrates o homem mais sábio. Ao

perceber a complexidade das coisas, e que os conhecimentos transmitidos naquela

época eram os dos sofistas, que, necessariamente, não tinham compromisso com a

busca pela verdade, necessariamente, Sócrates percebe que todos os

conhecimentos não são necessariamente verdadeiros, e, deste modo, coloca em

dúvida o que supostamente sabe, afirmando não conhecer nada. É assim que surge

sua famosa frase: Sei que nada sei.58

Assim, essa máxima socrática não surge por uma ignorância dos conteúdos

apresentados pelos sofistas da época, mas como uma atitude crítica filosófica de

buscar a verdade. Nega os dogmas e as supostas verdades para questionar

positivamente a fim de buscar uma verdade filosófica.

Desde jovem, (Sócrates) caminhava pelas ruas de Atenas espalhando dúvidas, instaurando a incerteza, perguntando e reperguntando, implantava a força revolucionária do negativo (apophatikón), a irônica força que destruindo germinava sempre o novo. Mostrava que essas representações eram apenas opinião (doxá), e não ciência (epistême).59

Sobre a verdade, Sócrates apresenta sua dialética como caminho para

lembrarmos do que foi esquecido, a alethéia. O termo grego Alethéia significa o

caminho para a verdade, ou então não esquecimento, pois lethe significa

esquecimento e seguido da partícula negativa “a” cria o “não esquecimento”.

Sócrates acreditava que conhecer a verdade seria retornar aos conceitos

esquecidos para buscar a verdade. Todas as verdades estavam em nós,

esquecidas. O meio para que chegássemos à verdade absoluta, ou a doxa seria o

método dialético que consiste na busca das verdades absolutas ou dos

esquecimentos universais, recuperamos tais esquecimentos pela anamnese que

58 WOLFF, Francis. Op. cit., p. 48: “É justamente isto que Sócrates, ao confessar que nada sabe (quer dizer, nenhuma ciência das coisas), orgulha-se de saber ‘eu o reconheço, possuo uma ciência ...’ Que espécie de ciência? Aquela que é, a ciência própria do homem”. 59 BENOIT, Hector. Sócrates, o nascimento da razão negativa. São Paulo: Ed. Moderna, 2006, p. 9.

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acontece com a recuperação da memória e pela maiêutica exercitamos a

aprendizagem.

A dialética divide-se em exortação e indagação e esta última se divide em

refutação e maiêutica. A exortação consiste no convite ao diálogo; a indagação é o

questionamento do tema que será dialogado. Dentro da indagação teremos a

refutação que consiste na exposição dos preconceitos para que possamos rebatê-

los e parir o conhecimento por meio da maiêutica que explicamos a seguir.

Dentro do método dialético, Sócrates acreditava que o conhecimento deveria

ser “parido”, ou seja, deveria passar por um estágio de gestação até chegar a seu

nascedouro. Fazia uma analogia com a função de sua mãe, parteira, e dizia que

assim como as mulheres conseguem gerar uma vida após um tempo de gestação, o

homem pode gerar o conhecimento, a verdade, a partir também de uma gestação.

Enquanto as mulheres parem uma vida, os homens parem uma verdade, um

conhecer.

Sobre a definição da maiêutica socrática destacamos o que observa Francis

Wolff sobre essa técnica de conhecimento:

Assim se justifica a técnica socrática de investigação filosófica a que Platão chamava sua ‘maiêutica’. Sócrates, segundo ele, pretendia ter herdado esta arte da interrogação de sua mãe, parteira. Ora, dizia ele, de acordo com os costumes religiosos, só as mulheres que não podem mais parir é que podem fazer partos, quer dizer, conforme o caso, conduzir o parto a bom termo suavizando as dores, ou fazer abortar. ‘minha arte maiêutica tem as mesmas atribuições gerais. A diferença é que se aplica aos homens e não às mulheres, e é as almas que auxilia no trabalho de parto não aos corpos.60

Em Teeteto, 150-151 a.C., Sócrates mostra ao personagem que dá nome ao

diálogo que seu método é análogo à arte obstétrica realizada pelas parteiras com a

diferença de que ao invés de partejar corpos, Sócrates parteja as almas dos homens

que estão na iminência de conceber o que é verdadeiro.

A minha arte obstétrica tem atribuições iguais às das parteiras, com a diferença de eu não partejar mulher, porém homens, e de acompanhar as almas, não os corpos, em seu trabalho de parto. Porém a grande superioridade da minha arte consiste na faculdade de conhecer de pronto se o que a alma dos jovens está na iminência

60 WOLFF, Francis. Op. cit., p. 54-55.

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de conceber é alguma quimera e falsidade ou fruto legítimo e verdadeiro. Neste particular, sou igualzinho às parteiras: estéril em matéria de sabedoria, tendo grande fundo de verdade a censura que muitos me assacam, de só interrogar os outros, sem nunca apresentar opinião pessoal sobre nenhum assunto, por carecer, justamente, de sabedoria. E a razão é a seguinte: a divindade me incita a partejar os outros, porém me impede de conceber. Por isso mesmo, não sou sábio não havendo um só pensamento que eu possa apresentar como tendo sido invenção de minha alma e por ela dado à luz.61

Deste modo, para Sócrates, o conhecimento deve ser “parido”, ou seja, deve-

se produzir, investigar até concluir algo, que, no caso, é a geração do conhecimento

ou a verdade, e é o papel do filósofo exercer o papel de obstetra e, como a parteira,

auxiliar na parturição.

Segundo Robinson tal método traz um salto qualitativo aos partícipes do

diálogo, isso porque, embora traga num primeiro momento, raiva por parte do

interpelado, em seguida, a vergonha que o reveste o convida para a reflexão da sua

ignorância.62

Sobre a frase atribuída a Sócrates “a escrita petrifica e a palavra vivifica”

podemos inferir que tal assertiva representa sua crítica aos textos escritos que

chegaram até nós – paradoxalmente – pelos textos escritos por Platão. Em seu

tempo existia uma exaltação do logos através da oralidade, e o texto escrito

paralisava o ato, aprisionando o escritor ao texto, que após escrito não podia mais

se libertar da própria prisão que criou para si mesmo. Pensava que a fala, a

oralidade, dinamizava o pensamento, traduzindo com maestria a vida que é

dinâmica, assim como a fala.

Uma palavra pode ser polissêmica, ou seja, ter diversos sentidos a depender

do modo que for dita. Um texto escrito não consegue capturar esses sentimentos

além de não atingir todos os públicos, podendo ser interpretado de infinitas formas.

Mesmo não tendo escrito nada, alguns de seus discípulos, como Xenofonte e

Platão, e alguns de seus opositores, como Aristófanes, em As Nuvens, grafaram

textos que narram alguns diálogos de Sócrates ao longo de sua vida.

61 PLATÃO. Teeteto. Trad. Carlos Alberto Nunes. Belém: Ed. UFPA, 1988. 62 ROBINSON, R. Plato’s Earlier Dialectic. 2. ed. Oxford: Oxford at the Clarendon Press, 1962, p. 18.

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De todos que escreveram sobre Sócrates não resta dúvida que foi Platão

quem ganhou mais destaque. Platão, em sua primeira fase, como veremos, dedicou

todos seus escritos em homenagem ao seu grande mestre.

Assim se manifestam Winton e Garnsey:

E a experiência de Sócrates foi fundamental à carreira intelectual de Platão. Sócrates é apresentado por Platão como o modelo do homem bom, a antítese do protótipo do homem mau, do tirano, e sua importância para Platão está simbolizada em seu papel de protagonista em todos os diálogos primitivos e médios. Na verdade, Sócrates aparece em todas as obras de Platão, com a única exceção de seu único trabalho, As Leis.63

Sobre os últimos instantes de Sócrates, narra Platão em Fédon, traduzem sua

crença na imortalidade da alma e na justiça divina. Com sua vida e com sua morte,

Sócrates provocou a fé profunda em sua tese de que injustiça não deve ser

combatida com injustiça.

Ao longo do trabalho, veremos como as questões relacionadas à alma e à

justiça divina guardam forte relação com o pensamento platônico.

63 WINTON, R. I. e GARNSEY, Peter. Teoria política. In: FINLEY, M. O legado da Grécia – Uma nova avaliação. Trad. Yvette Vieira Pinto de Almeida. Brasília: UnB, 1998, p. 56.

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3. PLATÃO: ENTRE A TEORIA E A AÇÃO

Se o apontar à justiça como horizonte político faz de Platão um filósofo do direito revolucionário, sua legitimação do Estado e do soberano como os responsáveis pelo destino de toda a sociedade revela seu corte de classe e sua filosofia política de dominação. A originalidade de Platão, sua singularidade no todo do pensamento jurídico e seu incômodo para a filosofia do direito prosseguem ainda hoje.64

Para a compreensão do pensamento Platônico é preciso expor, ainda que sua

biografia e uma proposta de organização de sua produção bibliográfica. O estudo de

sua vida mostra como agiu e pensou ao longo dos anos; assim como o estudo da

proposta de organização de sua obra possibilita melhor compreensão de sua

estruturação teórica.

3.1 Biografia

Nascido em 7 de maio de 427 a.C.,65 Platão, segundo Diógenes Laércio, em

Atenas ou em Egina. Faleceu em 348-7 a.C. Tais datas são dotadas de grande

significado, uma vez que Platão nasceu no ano seguinte ao da morte de Péricles e

faleceu dez anos antes da batalha da Queroneia, a qual permitiu a Filipe da

Macedônia a conquista do mundo grego.

Estudar a biografia de Platão, como dissemos, deve ter em vista sempre a

história grega:

64 MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do direito. São Paulo: Atlas, 2010, p. 62. 65 WATANABE, Ligia Araújo. Platão por mitos e hipóteses. 2. ed. São Paulo: Moderna, 2006, p. 18. Para Watanabe, não é possível dar precisão ao ano, quanto mais à data exata de seu nascimento. Os gregos não contavam os anos como nós o fazemos, apenas numerando-os abstratamente. Os anos tinham, na verdade, nomes de pessoas. Era costume atribuir ao ano, por exemplo, o nome do arconte principal (era o título dos membros de uma assembléia de nobres da Atenas antiga, que se reuniam no arcontado), denominado, por isso, arconte epônimo. Um grego então diria: “Platão nasceu no arcontado de Animías”, quando nós, a bem da verdade – e se saltarmos as complexas etapas do procedimento de datação – cientificamente poderíamos apenas dizer: “Platão deve ter nascido no ano de 427 a.C.”.

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O contexto de desenvolvimento da filosofia platônica esteve marcado pela contradição entre o período áureo da cultura humanista e racionalista e o início da decadência do período helenístico. Foi a fase em que o ‘espírito grego’, numa expressão hegeliana, começou a viver a angustia da decadência. A grandeza Grega, particularmente ateniense, passou do esplendor comercial às crises e subordinações econômicas; da invenção da democracia ao fracasso dos regimes e constituições que culminaram com as dominações estrangeiras; da incomparável produção técnica e artística para uma era de incertezas e transições. A filosofia também se transformou e mudou de sentido e papel diante das novas realidades. O futuro grego tornou-se obscuro e pouco promissor após o século IV a.C. O agravamento dos conflitos entre as cidades, culminando com a Guerra do Peloponeso, a corrupção, os desmandos e as crises sociais, com certeza deixaram seus efeitos nos debates e reflexões dos filósofos desse tempo.66

O nome Platão é, na verdade, um apelido que surgiu por conta de possuir

ombros muito largos. O nome que seus pais lhe deram foi Arístocles. Naquele

tempo, as pessoas se apresentavam com seu patronímico,67 ou seja, apresentavam-

se utilizando como referência inicialmente seu nome, seguido de sua pátria, sua

localidade mais específica na pólis, sua filiação e seu apelido: “Arístocles de Atenas,

filho de Aríston e de Perictione, do demo de Colutés, conhecido como Platão”.

Platão era filho de Aríston e Perictione, pertencendo a uma tradicional família

de Atenas estando ligado, pelo lado materno, a grandes personalidades do meio

político. Sua genitora descendia do grande legislador Sólon, era irmã de Cármides e

prima de Crítias, dois dos trinta tiranos que dominaram Atenas durante algum tempo.

Sobre isso é importante a advertência que nos faz Acácio Vaz de Lima:

É preciso não perder de vista que Platão era um aristocrata, tendo recebido a educação reservada aos jovens pertencentes à aristocracia; assim, fica mais inteligível a mundividência revelada em “A República”.68

Teve dois irmãos mais velhos, Adimanto e Gláucon, e uma irmã, Potone, que

foi mãe de seu discípulo e sucessor, Seusipo. Segundo narra O Parmênides, teve

ainda um irmão, por parte de mãe, Antífon, filho de Pirilampes. Talvez seja possível

atribuir o desapreço de Platão pelos políticos de seu tempo ao convívio e,

consequentemente, ao conhecimento dos bastidores políticos, adquirido desde 66 PEREIRA FILHO, Gerson. Op. cit., p. 57. 67 Tal termo significa “relativo a pai”. No entanto, não seria demais dizermos que a pátria ou pátrio significa “dizer respeito aos pais” (pai e mãe) e pátria (terra de nascimento dos meus pais). 68 LIMA FILHO, Acácio Vaz de. Op. cit., p. 109.

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criança, bem como por serem eles que condenaram seu grande mestre a morte.

Sobre Platão, a liberdade e a política seguem os dizeres de Tercio Sampaio Ferraz

Junior:

Com Platão, o sentido político domina: livre é o homem cuja ação se dirige ao Bem (não a um bem), pois o Bem o conduz à sua autarquia e, assim, à liberdade. Assim como livre (autárquica) é a pólis em que domina aretê, assim também livre é a alma cujo saber sobre o Bem domina as forças inferiores da alma. Contudo, a liberdade para cada um não é independência, mas o permanecer firme junto ao que lhe é melhor. Pressupõe deliberação pelo que é melhor, mas não livre escolha (opção espontânea da vontade, faculdade de arbítrio). Trata-se antes de uma compulsão de identificar o próprio ser na sua plenitude, o que Platão explica por meio da hipótese da preferência da alma que, em algum momento, pré-existindo no mundo anterior (mundo das formas ou idéias), alcança o Bem de modo intuitivo, tomando-o para sua própria vida futura. Sendo determinante a vida passada para a vida futura, a preferência torna-se base da responsabilidade de cada um pela sua vida.69

A juventude de Platão foi marcada por ter conhecido seu maior mestre,

Sócrates, que como vimos, foi condenado pela pólis ateniense à pena capital

bebendo cicuta. Em vão foram as tentativas de Platão e de alguns de seus

companheiros de se apresentarem como fiadores do mestre.

Platão aparece na vida de seu mestre Sócrates primeiramente sob a forma de sonho. Tendo Sócrates sonhado com um cisne e tendo Platão se apresentado no dia seguinte a ele para ouvir as palestras deste já então famoso filósofo, Sócrates concluiu que o cisne de seu sonho era seu novo discípulo. O cisne representava para os gregos de então um atributo simbólico do deus Apolo, um sinal do caráter apolíneo de seu discípulo Platão. Ser apolíneo significava ser amante da ordem, da beleza tranqüila e da razão paciente e calculista – imagem que por muito tempo foi conferida a todo o Classicismo e à arte clássica grega, em particular –, em oposição ao caráter dionisíaco, do deus Dioniso, deus da embriaguez e da des-razão, e ao caráter barroco das artes, em particular, que é, no entanto, tão grego e tão clássico quanto o caráter apolíneo.70

Face à injustiça que Sócrates havia sofrido, Platão aprofundou sua descrença

na democracia, como era apresentada em Atenas, como a melhor forma de governo,

e, por consequência, não conseguia acreditar que as leis positivadas nessa época

69 SAMPAIO FERRAZ JUNIOR, Tercio. Da liberdade como liberdade de consciência e seu percurso histórico. In: GONZAGA, Alvaro de Azevedo e GONÇALVES, Antônio (coords.). (Re)pensando o Direito – Estudos em homenagem ao Professor Cláudio De Cicco. São Paulo: RT, 2010, p. 304. 70 WATANABE, Ligia Araújo. Op. cit., p. 34.

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fossem justas, motivo pelo qual apresenta sua proposta de Direito Natural na

República, que se confirma e deve ser positivado nas Leis.

Para Platão, o mais sábio e mais justo de todos os homens não poderia ter

sido tratado daquele modo. Platão trata, alegoricamente, o ocorrido com sua

alegoria da caverna, disposta no Livro VII de A República:

Platão dispôs em seu Livro VII da obra A República, a alegoria da caverna. (Tal alegoria pode ser divida em 4 partes. A primeira (514-521a) a Alegoria da Caverna; a segunda (517-521b) a interpretação da alegoria; a terceira parte (521-531b) trata sobre qual cultura científica deve ter o filósofo; e, por fim, na quarta parte (531 até o final do livro) são apresentados os caminhos da dialética. Nesse tópico nossa pretensão é analisar a primeira parte deste livro. Platão pede a Glauco para imaginar homens vivendo em uma caverna na qual a entrada é grande. Esses homens são prisioneiros e vivem com grilhões (correntes) no pescoço e nas pernas. Dentro da caverna existem objetos que são exibidos atrás dos homens presos. A projeção destes objetos é feita no fundo da caverna. Como os homens habitantes da caverna não se volvem espontaneamente, convivem apenas com as projeções e não com os objetos propriamente considerados.

Entretanto, se os homens virarem seus rostos, deverão sair da caverna, sendo que está saída é muito árdua, para ver a luz do sol, que consiste na verdade, ou no bom, no belo, no justo. Mas, para atingir a verdade nessa luz, devem se acostumar antes com a luz da lua para futuramente habituar-se à luz do sol e então compreender a inteira verdade, e assim também refletir sobre o Bem. Nesse sentido, o trabalho para atingir a verdade é árduo.

Importante ressaltar que as pessoas presas na caverna não quebram por si só os grilhões que as prendem. Elas são libertas, forçadas a se levantar e a virar o pescoço. O ato de virar o pescoço não é gratuito no texto platônico, representa uma conversão mental, pois libertos não teriam mais seus olhos voltados ao mundo sensível, das aparências, mas sim ao mundo inteligível, ao mundo das ideias. Além disso, a Alegoria da Caverna não compreende a libertação de todos os homens; apenas aqueles que têm um natural filosófico, ou seja, somente quem possui a capacidade de compreender o bom o belo e o justo conseguem sair da caverna. Após a contemplação da verdade, na alegoria, o homem deve voltar para dentro da caverna para explicar aos demais que as projeções, vistas por eles, são falsas, e que a verdade esta lá fora. Ou seja, deve aquele que saiu voltar para alertar os outros do engodo no qual estão envolvidos. Entretanto, aquele que volta à caverna é morto pelos que lá se encontram agrilhoados.

A alegoria da demonstra bem a doutrina das ideias platônicas (mundo das ideias). O bem reside em algo inteligível que os homens devem buscar para que possam viver da forma correta. A sabedoria

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e o bem existirão apenas naqueles que volveram seus rostos e saíram da caverna; são estes os que possuem o natural filosófico.71

Em tal alegoria, mostra como aqueles que vivem no mundo das sombras,

guiados por opiniões, podem praticar atos injustos com aqueles que conhecem o

bom, o belo e o justo.

Com a morte do grande mestre, o núcleo de estudos liderado por Sócrates

ficou disperso. Nesse momento, Platão retirou-se para Mégara, com outros colegas

e ali conheceu Euclídes, que já havia pertencido ao grupo socrático, mas agora se

dedicava a uma escola filosófica que mais tarde fundaria, vinculando o socratismo e

o eleatismo.72 A seguir, foi ao sul da Itália (Magna Grécia), onde conviveu com

Arquitas de Tarento. O famoso matemático e político pitagórico deu-lhe um exemplo

vivo de sábio governante, apontado por Platão em sua obra A República como

sendo a solução ideal para os problemas políticos.

Em continuidade, Platão realizou sua primeira viagem para a Sicília, quando,

em Siracusa, ligou-se a Díon, sobrinho do tirano Dionísio, o velho. Conquistando a

amizade e a inteira confiança de Díon, apresentou, reiteradamente, propostas para

interferir com o seu pensamento político na forma de governar em Siracusa, sem

obter sucesso no seu intento. Visitou ainda o norte da África. Em Cirene, inteirou-se

das pesquisas matemáticas desenvolvidas por Teodoro, particularmente daquelas

referentes aos irracionais.73

Platão dispôs de boa parte de seu patrimônio em suas viagens.74 Sabe-se

que foi com o dinheiro ofertado por Díon, que comprou, em 387 a.C., perto do

ginásio de Academo, um pequeno jardim. Ali edificou uma capela dedicada às

Musas, construiu pórticos e estabeleceu um lugar de reunião que se transformou na

sua célebre escola – A Academia –, capitaneada pelo fundador até seus últimos

71 Alvaro de Azevedo Gonzaga. A alegoria da caverna em matrix. In: GONZAGA, Alvaro de Azevedo e GONÇALVES, Antônio (coords.). (Re)pensando o Direito – Estudos em homenagem ao Professor Cláudio De Cicco. São Paulo: RT, 2010, p. 55-56. 72 MORA, J. Ferrater. Dicionário de filosofia. São Paulo: Loyola, 2001, t. II, p. 809: “Dentre os pré-socráticos, são chamados de eleatas Xenofonte de Colofonte, Parmênides de Eléia, Zenão de Eléia e Melisso de Samos [...] Característica dos eleatas era, com efeito, a afirmação da unidade do que existe”. 73 Os irracionais matemáticos foram inspiração para a doutrina platônica, pois representariam a justa medida que nenhuma linguagem consegue exaurir. 74 No testamento que fez ao filho do seu irmão Adimanto, verifica-se que o filósofo dispunha de modesta fortuna.

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dias.75 Esse acontecimento, acentuam os comentadores e historiadores da Filosofia,

é de extrema importância para a história do pensamento ocidental. Platão foi o

primeiro dirigente de uma instituição permanente de investigação científica e

filosófica, voltada para a pesquisa original e concebida como conjugação de

esforços de um grupo que vê o conhecimento como algo vivo e dinâmico e não,

como na maioria das academias, inclusive as atuais, como sendo um corpo de

doutrinas a serem simplesmente resguardadas e transmitidas.

Platão dedicou-se ao ensino e à formulação teórica em sua Academia por

cerca de vinte anos. Entretanto, um fato novo interrompeu essas atividades: em 367

a.C. morreu o tirano de Siracusa, Dionísio I, sucedido por Dionísio II. Díon chama

novamente Platão a Siracusa. Afirma-se que o jovem Dionísio é simpático às ideias

políticas do filósofo. Aceitou então o convite de Díon, partindo para Siracusa.

Parecia esse o momento propício para reformar a vida política da cidade.

Como a pólis era governada por apenas um indivíduo, favorável às suas ideias,

bastaria convencê-lo para que tudo se encaminhasse da maneira almejada, ou seja,

conforme seus entendimentos acerca da organização social da República. Todavia,

sua empreitada não teve o sucesso esperado. Platão não conseguiu mudar as

disposições de Dionísio II, que se indispôs com Díon, fato que implicou o exílio do

filósofo.76 Diante das dificuldades circunstanciais, Platão voltou para Atenas e

confinou-se em seu papel puramente filosófico.

Platão, exemplo raro da grandeza humana, morreu aos 81 anos em uma festa

realizada em Atenas. Durante a festa, se afastou para um canto e dormiu. Quando

foram acordá-lo pela manhã, já estava morto. “Uma multidão acompanhou seu

sepultamento”.

75 A academia, de nível superior, com vários professores, subsistiu, até 529 d.C., quando foi fechada, após nove séculos de atividade, pelo imperador Justino, objetivando fortalecer o cristianismo em Constantinopla. 76 Em 392 a.C., Díon derruba Dionísio, o tirano do poder, mas também é assassinado. O exílio de Platão o livrou de ser vendido como escravo por não pagar suas dívidas. É, talvez, uma lenda, para frisar a desgraça do filósofo.

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3.2 Obras e fases

A maior parte dos comentadores de Platão divide seus diálogos em três

fases, são elas: 1ª fase: Diálogos da juventude ou socráticos; 2ª fase: Diálogos da

Maturidade ou fase média e a 3ª fase: Diálogos tardios ou da velhice. Tais diálogos

demonstram uma mudança77 no pensamento de Platão ao longo dos tempos.78

As obras da fase socrática, que têm em Sócrates a figura central,

caracterizam o início da escrita dos primeiros diálogos platônicos. As ideias

apresentadas nessas obras são distantes das ideias que Platão defendeu e que

imortalizaram seu pensamento ao longo do tempo. Tais diálogos giram em torno de

questões morais. Diversos são os diálogos dessa fase,79 o que podemos citar com

mais destaque para as questões que interessam ao Direito é Protágoras, uma obra

que classifica a justiça sob a ótica Socrática da unidade das virtudes, e que pode ser

classificada como a justiça latíssimo sensu.

As obras da fase média, por seu turno, caracterizam-se por um

questionamento da conhecida doutrina das ideias.80 Na maioria dos diálogos, Platão

coloca Sócrates no tema central das obras e tem neste o porta-voz de suas

doutrinas. Suas obras principais são: A República (Livro II ao X), Hípias Maior, O Banquete, Menon e Fedro. Para nossa análise interessa muito o estudo dos Livros

da obra A República, ou Da Justiça, principalmente no que tange à classificação da

justiça ideal para Platão, que pode ser vista como justiça lato sensu.

77 Sobre mudança ou evolução do pensamento platônico, bem como sobre as fases das suas obras temos autores que não comungam desta proposta de divisão, nesse sentido: TRABATTONNI, Franco. Platão. Trad. Rineu Quinalia. São Paulo: Annablume, 2010, p. 23-25. 78 Algumas obras são de difícil localização, tais como Górgias, Eutidemo e Menexeno (obras como transitórias da primeira para a segunda fase); e Crátilo (obra transitória da segunda para a terceira fase). 79 Carmides (da temperança), Críton (do dever), Eutifron (piedade), Hípias Menor (falsidade), Ion (a Ilíada), Laques (coragem), Górgias, o Livro I da República. 80 É nessa fase que Platão desenvolve sua teoria da ciência, sendo passível desta apenas o que nunca muda. Para ele, a ciência concerne certa unidade que ultrapassa a multiplicidade de particulares. Por conta disso, Platão diferencia corpo de alma. Mostra que o corpo não é objeto do conhecimento, pois é um obstáculo para conhecermos o real, uma vez que está no campo das sensações e, no máximo, pode participar como particular do conceito, mas nunca será o conceito. Já a alma é imutável, está no pensamento, de modo que só é acessível pelo intangível. A rigor, é a alma é a expressão verdadeira do indivíduo, que pode, assim, ter acesso ao real. Essa distinção é muito importante na obra A República, pois ao partir do indivíduo para justificar a cidade, Platão parte da alma do indivíduo e suas características, e não do corpo deste, pois assim a cidade seria mutável, é assim que se justifica o destaque para os Mitos de Er e de Giges.

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Após diversas criticas à doutrina das ideias, Platão começa a se questionar

na terceira fase, e ainda na doutrina das ideias, entretanto, aplica-se a um estudo de

coisas novas e simples. Algumas das obras que foram escritas nesse momento

foram: Parmênides, Teeteto, Sofista, Político, Timeu e Crítias. Recebeu críticas

quanto à inexistência de coercibilidade de sua teoria da justiça.81 Nesse diapasão, a

resposta surge com a obra As Leis, na qual Platão apresenta a mesma estrutura

social de A República, mas com a necessidade de positivar leis dotando-as de

coercibilidade, bem como uma organização de leis para que os cidadãos possam

participar de maneira plena da pólis. Tal estrutura proposta, de positivar o justo,

pode ser vista como uma justiça estrito sensu.

Podemos sistematizar as obras e suas épocas da seguinte maneira:82

Primeira Fase Segunda Fase Terceira Fase

Carmides (da temperança)

Críton (do dever)

Eutifron (piedade)

Hípias Menor (falsidade)

Ion (a Iliada)

Laques (coragem)

Livro I da República

A República (Livro II ao X)

Hípias Maior

O Banquete

Menon

Fedro

Parmênides

Teeteto

Sofista

Político

Timeu

Crítias

As Leis

81 O Mito de Giges, dentre outras coisas, visa mostrar a necessidade de leis coercitivas. 82 A classificação apresentada apóia-se na de Roberto Bolzani Filho, na introdução de A República. Trad. Anna Lia de Almeida Prado. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. X-XIII.

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4. A JUSTIÇA EM PLATÃO DA PRIMEIRA PARA A SEGUNDA FASE

4.1 A justiça em Protágoras:83-84 breves considerações (1ª fase)

Como já exposto em nossa dissertação de mestrado,85 Protágoras ou Dos sofistas é considerada uma das mais belas obras de Platão. Trata-se de um diálogo

entre Sócrates e Protágoras, que aborda questões como a Justiça e a

separabilidade ou unidade das virtudes cardinais, quais sejam: Justiça, Coragem,

Temperança, Sabedoria e Piedade (Prudência).86

O diálogo se inicia com o relato de Sócrates sobre o diálogo travado com

Protágoras: Hipócrates entra na casa de Sócrates e informa sobre a chegada de

Protágoras à cidade de Atenas. Sócrates escuta Hipócrates enaltecer Protágoras

como sendo um orador eloquente.

Sócrates critica os sofistas, antes de partirem para encontrar Protágoras.

Afirma a Hipócrates que se deve oferecer dinheiro àqueles que são peritos em algo.

Assevera que os escultores ou os poetas são peritos em alguma arte, seja em

esculpir algo ou em grafar uma poesia, e, questiona a Hipócrates em 312-d; em que

arte o sofista Protágoras é perito? Nesse momento Hipócrates afirma ser “na arte de

ensinar a falar bem”.

Inconformado, Sócrates insiste e questiona sobre o que entende o sofista por

“ensinar a falar bem”. Nesse momento, Hipócrates não sabe dizer sobre que matéria

83 Todas as citações das obras Protágoras e A República serão feitas a partir das edições traduzidas direto do grego por Carlos Alberto Nunes: Protágoras. Trad. Carlos Alberto Nunes. Belém: Ed. UFPA, 2002 e A República. Trad. Carlos Alberto Nunes. Belém: Ed. UFPA, 2000. 84 Em que pese a controvérsia sobre a localização da obra Protágoras, se na primeira ou na transição para a segunda fase do pensamento platônico, não resta dúvida que esta antecede A República no que tange as teorias expostas por Platão. Para nossos estudos nessa tese isso é suficiente para que possamos prosseguir. 85 A justiça em Platão e a filosofia do direito. PUC-SP, São Paulo, 2007. 86 Nos diálogos de juventude, as virtudes são em número de cinco (saber, justiça, coragem, temperança e piedade) como veremos em Protágoras. Entretanto, nos diálogos de transição, as virtudes de excelência são apenas quatro, uma vez que piedade passa a não ser considerada uma virtude distinta da justiça, mas sim uma extensão desta.

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Protágoras transmite ensinamentos aos seus discípulos. Deste modo, Sócrates

apresenta a que perigo Hipócrates irá expor sua alma, ou seja, entregá-la a alguém

que nem ao certo sabemos que matéria transmite, correndo o risco ainda de

enfraquecer ou fortalecer sua alma, uma vez que não há segurança se o que os

sofistas ensinam efetivamente a verdade.

Desse modo, Sócrates apresenta sua definição para os sofistas em 313-c:

são mercadores, ou traficantes de vitualhas para alimentar a alma, sendo que

devemos alimentar nossa alma de conhecimento verdadeiro e não de mercadorias

ignoradas de sua utilidade.

Sócrates e Hipócrates, após esse diálogo, foram visitar Protágoras, que se

encontrava na casa de Cálias, filho de Hipônico. Estavam presentes na ocasião

Sócrates, Protágoras, Hipócrates, o anfitrião Cálias, Pródico, Hípias, Crítias e

Alcebíades.

O diálogo tem início com a indagação socrática sobre o que Protágoras

ensinaria ao jovem Hipócrates.87 Protágoras responde que ensinará ao jovem

mancebo a virtude da arte da política e a formação de bons cidadãos. Nesse

momento, Sócrates afirma que a virtude não pode ser ensinada.88

Para retrucar o argumento de que as virtudes podem não ser ensinadas,89

Protágoras explica o Mito de Prometeu e Epimeteu, em 320c.90 Afirma Protágoras

87 Vale-se da mesma indagação feita a Hipócrates em 312d qual seja: aquele que tiver aulas contigo voltará para casa com um progresso em que matéria, a respeito de quê? 88 Sobre a possibilidade das virtudes serem ensinadas, Platão, mostra bem em Menon ou Da virtude que nada aprendemos, apenas rememoramos os conceitos que sabíamos através de nossas almas, como vimos, a alethéia ou não esquecimento. 89 TRABATTONNI, Franco. Op. cit., p. 66: “A tese de Protágoras se sustenta no pressuposto que a verdade e o saber possam existir separadamente do bem e do útil. Se não é possível convencer alguém que tenha uma opinião falsa a mudar para uma verdadeira, mas é possível conduzi-lo a uma melhor e mais útil, e isto significa que o bem não é uma coisa que se possa conhecer. Se de fato pudéssemos conhecer o bem, tal conhecimento seria uma sensação, e assim sendo, todas as opiniões do que é o bem seriam igualmente válidas. Nessas condições, não existiria mais a possibilidade de distinguirmos aquilo que é mais ou menos bom ou útil, e, consequentemente, também deixaria de existir a possibilidade concreta de modificar as atitudes dos homens em relação a isso. Assim, Platão pode refutar Protágoras, somente se, de alguma forma, conseguir provar que distinguir o verdadeiro do falso em geral é necessário para distinguir o que é útil (ou bom) daquilo que não é”. 90 Protágoras narra que houve um tempo que só havia deuses e não existiam criaturas mortais. Quando o destino determinou o momento para que as criaturas mortais fossem criadas, os deuses plasmaram nas entranhas da terra, utilizando-se de uma mistura de ferro e de fogo, e no momento certo de tirá-los da terra para a luz. / Prometeu e Epitemeu foram incumbidos de conferir as qualidades adequadas para cada criatura. Epitemeu pediu a Prometeu que deixasse a seu cargo a distribuição das qualidades, cabendo a Prometeu a revisão final das distribuições. Assim, Epitemeu distribuiu as qualidades entre os seres de acordo com o critério da compensação, exemplo aos que

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que os homens com o conhecimento e o fogo tinham as condições necessárias para

serem levados da terra para a luz. Como possuíam conhecimento, diferentemente

dos animais, tinham consciência da existência dos deuses e, deste modo,

rapidamente levantaram altares e fabricavam imagens de deuses; começaram

também a coordenar palavras, sons, vestuário, calçados e leitos.

Como asseverou Protágoras para Sócrates em 321, entretanto, os homens

não possuíam a sabedoria política que se encontrava com Zeus. Por viverem os

homens dispersos, eram dizimados pelos animais que possuíam condições físicas

melhores que as deles. Nesse contexto predatório, no qual os homens

desorganizados politicamente precisavam de uma organização, Zeus interfere e

ordena que Hermes leve “aos homens o pudor e a justiça como princípio ordenador

das cidades e laço de aproximação entre os homens” (322c). Indagado por Hermes

sobre o modo de distribuição da justiça e do pudor, conta Protágoras que Zeus

afirma categoricamente que a distribuição deve ser equânime para todos os

homens, pois as cidades não subsistirão “se o pudor e a justiça forem privilégios de

poucos como se dá com as demais artes” e assevera, em 322d, que “todo homem

incapaz de pudor e de justiça sofrerá a pena capital, por ser considerado flagelo da

sociedade”.

Depois da exposição do Mito de Prometeu e Epitemeu, Sócrates elogia a bela

oratória de Protágoras. A partir dessa exposição, Sócrates afirma que as virtudes

são as seguintes: Justiça, Coragem, Temperança, Piedade e Sabedoria.91 Com isso,

indaga a Protágoras se a virtude é completa, vindo a ser partes dela a justiça, a

temperança, a coragem, a piedade e a sabedoria, ou se todas essas qualidades são

apenas nomes diferentes de uma única unidade, deste modo pergunta se as

virtudes são separáveis ou se estas devem sempre ser vistas juntas em uma

unidade. tinham velocidade seriam fracos; aos fortes, lentidão. Além disso, todos os seres se alimentariam de fontes diversas, pois deste modo haveria a manutenção da preservação. / Após dotar todos de qualidades, apenas a geração do homem não havia sido dotado de nenhuma qualidade. Com os animais providos do necessário para serem levados da terra para a luz e a geração dos homens despida de qualidades, Prometeu, a fim de assegurar a salvação dos homens, roubou de Hefeso e de Atena a sabedoria das artes juntamente com o fogo e deu aos homens. / Por ter penetrado na morada de Atena e Hefeso, e ter roubado o fogo dos deuses para os homens Prometeu foi severamente castigado. PUGLIESI, Márcio. Mitologia greco-romana... cit., p. 109-110: “Júpiter, ainda desejoso de punir Prometeu, ordenou a Mercúrio que o conduzisse ao monte Cáucaso e que lá o acorrentasse. Assim, foi feito, e o deus ordenou a uma águia, filha de Tífon e de Equidna, que devorasse eternamente o fígado do demiurgo dos homens”. 91 Platão jamais argumentou por que são apenas essas as virtudes cardinais e não outras.

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Acredita Protágoras que as virtudes podem existir juntas, mas que podem ser

separadas. Sócrates não comunga desta ideia e acredita que todas as virtudes

cardinais são encontradas juntas.

Para dar robustez a sua proposta, Sócrates apresenta quatro argumentos

sendo um deles rebatido por Protágoras: O primeiro argumento, contido entre os

parágrafos 330b-7 a 332a-1, tem por base provar que a Justiça e a Piedade são

uma coisa só;92 O segundo argumento está contido entre os parágrafos 332a a

333b, no qual Sócrates se propõe a provar que a sabedoria é igual à temperança ou

a moderação;93 O terceiro argumento, rebatido por Protágoras e contido entre os

parágrafos 350a a 351a, visa provar que Coragem é igual à Sabedoria;94 o quarto

argumento, pois o terceiro foi desmontado por Protágoras, contido entre os

parágrafos 351b a 360d, tem por base provar que a Sabedoria e Coragem são uma

coisa só.95

A tal concepção de que não há separabilidade das virtudes, temos duas

interpretações: a tese da bicondicionalidade ou da reciprocidade e a tese da unidade

ou da identidade.

A reciprocidade ou bicondicionalidade, defendida por diversos comentadores,

como Vlastos,96 consiste na distinção das virtudes, porém na condição de ter todas

ou nenhuma. Em outras palavras, as virtudes são distintas, mas quem tem uma tem

todas. Por seu turno, a tese da unidade ou da identidade, significa que as virtudes, 92 Sócrates questiona Protágoras se a justiça é uma coisa, ou se ela não é nada, Protágoras concorda que é alguma coisa. A mesma resposta dá para a piedade, ou seja, que a piedade é uma coisa. Posteriormente, afirma que a justiça é igual a ser justo e a piedade é igual a ser pio. Deste argumento Protágoras não discorda. A partir dessas premissas, Sócrates começa o seguinte raciocínio: 1º A partir da ideia que as virtudes são separáveis podemos dizer que: “A justiça não é piedade”; 2º Assim: “A justiça é não piedade”; 3º Por consequência: “A justiça é ímpia, e portanto a piedade é injusta”. 93 A partir da concordância de Protágoras de que “cada contrário, portanto, só tem um contrário, não muitos” (p. 71), Sócrates empenha seu argumento em provar que tanto a temperança quanto a sabedoria contêm o mesmo oposto: a ignorância; portanto são a mesma coisa e possuem o mesmo significado. 94 Com a afirmação de Protágoras, de que corajoso é o homem que se atira com conhecimento, Sócrates depreende a primeira premissa: todo homem corajoso é audaz, e, consequentemente, a segunda premissa afirma que todo homem conhecedor é audaz. Sócrates introduz, então, uma terceira premissa que Protágoras não havia dito, qual seja: todo audaz é corajoso e, com efeito, a quarta premissa afirma que todo não conhecedor não é audaz. Mas, Protágoras intervém, em 350c-d: “Porém não fui perguntado se os homens audazes são corajosos” e conclui que o fato de todo corajoso ser audaz não significa que todo audaz é corajoso (essa assertiva não foi demonstrada). 95 Sócrates propõe uma tese hedonista, associando o bem ao prazer, e o mal à dor. Para fazer valer essa tese, analisará uma opinião do senso comum. 96 VLASTOS, G. Platonic’s studies. 2. ed. Princeton: Princeton University Press, 1973.

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(a justiça, a coragem, a temperança, a piedade e a sabedoria) são nomes diferentes

para uma mesma coisa, qual seja a Virtude. Assim, chamar um homem de justo

significa chamá-lo de Virtuoso ou de sábio.

Definição Forma Simbólica97

Tese da

reciprocidade ou

bicondicionalidade

Quem tem uma virtude tem todas V(C=J=T=S)

Tese da unidade ou

da identidade As virtudes cardinais são nomes

diferentes para a Virtude V=J=T=S=C

Tal tese, seja da bicondicionalidade ou da unidade das virtudes, nos traz uma

ideia ampla do conceito de justiça, é por conta disso que consideramos como uma

definição universal, moral latíssimo sensu de Justiça na doutrina Platônica.

Como veremos a seguir, Platão abandona essa tese e propõe um novo

modelo de justiça, que não prescinde das virtudes, mas não as une

condicionalmente.

4.2 A mudança de posição: a Justiça em A República (2ª fase)

Como já exposto em nossa dissertação de mestrado, a obra A República ou

Da Justiça surge com mais de dez anos da fundação da Academia de Platão.

Dez livros dividem a obra, dos quais a maioria pertence à época dos “diálogos

médios”. Platão terminou A República em aproximadamente 375 ou 374 a.C.

Ao contrário da primeira fase, com exceção do Livro I, Sócrates não é mais

apresentado refutativo ou elêntico. É apresentado como porta voz da doutrina

Platônica sobre a Justiça. Nessa obra, como veremos, Platão abandona quase por

completo sua teoria intelectualista da unidade das virtudes, defendida em

Protágoras. Apresenta na República a teoria que ficou conhecida como a tripartição

97 Onde: V – Virtude; C – Coragem; J – Justiça; T – Temperança; S – Sabedoria.

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da alma. Tal teoria aceita a akrasia ou o conflito interno. Platão apresenta sua

cidade ideal e, consequentemente, justa.

A obra de Platão pode ser vista como uma precursora dos estudos

sociológicos. Em seus estudos, Luis Recaséns Siches, ao escrever sobre o âmbito

dos predecessores da sociologia invoca o pensamento de Platão nos seguintes

termos:

Assim, por exemplo, Platão, nos primeiros livros de sua República, estuda as causas que geram a sociedade, o processo de divisão do trabalho neste, a estrutura da cidade, e, no final, faz uma espécie de Sociologia política sobre as formas defeituosas de governo, que se afastam do ideal, e analisa a passagem de uma e outra dessas formas; e em seu livro As leis, em que planeja a realização aproximada, praticamente viável, do ideal do Estado, faz não poucas observações sobre aspectos de realidade sócio-política [...].98

Richard Oliveira bem resume a obra que comentamos:

Todo trabalho que lhe caberá, então, realizar ao longo das páginas da República resume-se, portanto, à tarefa de explicitar racionalmente a articulação essencial entre justiça e excelência, demonstrando, por ai, que a vida mais feliz para o homem é a vida justa, entendida como um bem digno de escolha por si mesmo, independentemente, das recompensas exteriores – políticas, sociais ou econômicas – que ela eventualmente possa ocasionar.

Podemos destacar alguns aspectos interessantes sobre esta obra, tais como

o papel da mulher e a organização da família na cidade ideal platônica.

O Livro V inicia-se com uma discussão sobre o papel da mulher em sua

cidade ideal.99 Para Platão a mulher não é vista como alguém que não mereça

espaço nessa sociedade justa, não leva em consideração a questão do gênero

humano, mas sim sua natureza. Deste modo, a mulher pode exercer qualquer

função na cidade concebida por Platão, seja produtora, guardiã ou sábia (433d-e).

Pensa desse modo, pois todos devem participar da vida pública, seja na esfera

98 RECÁSENS SICHES, Luis. Tratado de sociologia. Trad. João Baptista Coelho Aguiar. Rio de Janeiro: Ed. Globo, 1965. v. 1, p. 45. 99 Sobre esta questão: GUARIELLO, Norberto Luiz. Op. cit., p. 37: “embora a posição das mulheres variasse em cada cidade, em cada âmbito cultural, é fato que elas permaneceram à margem da vida pública, sem direito à participação política, restringidas em seus direitos individuais, tuteladas e dominadas por homens que consideravam o lar, o espaço doméstico, como o único apropriado ao gênero feminino. As mulheres eram, certamente, membros da comunidade – mas membros, por assim dizer, menores”.

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política, seja na militar, o que nos lembra que Platão admirava Esparta.100 Essa

participação das mulheres nas classes superiores demonstra uma integração plena

e uma perspectiva de unificação da cidade, superando as oposições entre homens e

mulheres.101

Em 457d, nesse novo modelo social, as mulheres não teriam esposos, seriam

comuns a todos os homens. Consequentemente, os filhos seriam de todos também.

A paternidade da prole poderá ser reconhecida pela faixa etária, de modo que todos

serão filhos deste pai. Devem-se evitar relações incestuosas. Em 459-a, Platão

propõe uma procriação da comunidade de um modo eugenético, ou seja, deveriam

ser promovidas festas para que casais acasalassem; nessas festas sorteios a fim de

formar os casais seriam feitos e sutilmente manipulados pelos governantes para que

as qualidades naturais de cada um se encontrassem. Essa seleção não é baseada

na raça, mas sim na intelectualidade e na moral de cada um. Aquele que

desrespeitar os sorteios deverá ser punido, pois está sendo injusto com a cidade.

4.2.1 A maturidade de Sócrates

O Livro I da República é considerado pela maioria dos comentadores como

uma obra independente cujo título seria “Trasímaco”. Acredita-se que sua

elaboração ocorreu na juventude de Platão e deveria pertencer ao período de

escritos socráticos ou diálogos jovens platônicos,102 pois nesse livro ainda

apresenta-se um Sócrates refutativo e o diálogo que se finda com uma aporia.

Entretanto, tal livro foi absorvido pela obra que agora comentaremos e integra sua

totalidade. Roberto Bolzani assim se manifesta:

Mesmo que, como julgam alguns intérpretes, Platão tenha escrito esse primeiro livro como um diálogo independente, bem antes do restante do diálogo, o que importa é que passou a ver nele o adequado modo de introduzir o tema da justiça, partindo de uma concepção comum e pragmática de justiça, típica de um sofista como Trasímaco, e que deveria exercer grande influência nos meios

100 Essa igualdade entre homens e mulheres, exposta por Platão há séculos atrás, só veio a ganhar corpo, entre nós brasileiros, efetivamente em 1988 com a Constituição Federal que em seu art. 5.º, I, dispõe sobre essa a igualdade entre homens e mulheres. 101 VEGETTI, N. Guida alla lettura della Repubblica di Platone. Roma: Ed. Laterza, 1999, p. 67. 102 Ver, Carlos Alberto Nunes, na introdução à obra A República, p. 3.

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políticos. Pode-se mesmo dizer que uma das tarefas de A República é desqualificar essa concepção.103

Inicia-se o diálogo com uma descrição da descida de Sócrates até o Pireu,

onde se realizava uma festa em homenagem à Deusa Bendis da Trácia104 que era

reverenciada por Céfalo e sua família. Céfalo era um rico meteco105 que vivia com

seus filhos Polemarco e Lysias. Durante a festa, Sócrates desce ao Pireu e sua

descida (katábasis) é muito significativa, pois se entende como a representação de

um momento de amadurecimento filosófico, seu saber que não sabe vai ser

colocado à prova na casa de Céfalo.

O primeiro diálogo se dá entre Sócrates e Céfalo. A conversa gira em torno da

velhice, da vida, da riqueza e de alguns posicionamentos morais de Céfalo, que

defende a felicidade como algo que não depende da infinidade de desejos que

possam se realizar, mas depende da paz que a mente adquire com a temperança e

a justiça, ou seja, os velhos têm a capacidade maior de serem justos. Tanto

Sócrates como Céfalo não aceitam a injustiça e a impiedade, mas ambos não

conhecem o que seja a justiça em si. Com a visão de quem se volta para atividade

comercial, Céfalo propõe, em 331b, uma concepção comum de justiça, diz ter muito

apreço pelas riquezas, mas apenas pelas que são obtidas pelo homem comedido e

prudente, uma vez que somente este saberá utilizá-las em benefício da prática de

atos justos, como

não ludibriar ninguém nem mentir, mesmo involuntariamente nem ficar a dever, sejam sacrifícios aos deuses, seja dinheiro a um homem, e depois partir para o além sem temer nada.

Desses exemplos de Céfalo, Sócrates conclui, em 331d, que a justiça pode

ser resumida como “dizer a verdade e restituir aquilo que se tomou”.

O filho de Céfalo, Polemarco, retoma a discussão invocando o Poeta

Simônides, em 331e, para citar uma concepção de justiça que consiste na seguinte

assertiva que se interpreta em consonância com a típica moral de sua época: “Por

ser justo, respondeu, dar a cada um o que lhe é devido, máxima que se me afigura 103 A classificação trazida apóia-se naquela apresentada por Roberto Bolzani Filho na introdução de A República, p. XXV. 104 Bendis é a deusa da Lua na Trácia e oferece vidência, magia e proteção àqueles que a procuram. 105 ANNAS, J. Introduction a la République de Platon. Paris: Ed. Puf, 1994, p. 28. Por ser meteco, Céfalo por mais que fosse rico vivia na Grécia sem direitos de um cidadão comum, tais como participar politicamente na cidade.

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bem enunciada”.106 Sócrates assevera que a frase é vazia, pois pressupõe uma

justiça sem um objeto específico, ao contrário da medicina, que tem por objeto as

doenças do corpo, ou a cozinha, que tem por objeto específico os temperos para a

formação de pratos saborosos. Sendo assim, fica difícil definir a justiça sem definir

seu lugar ou o seu objeto.107

Polemarco, então, diz que a especificidade da Justiça é fazer o bem,

favorecendo os amigos e prejudicando os inimigos. Essa concepção taliônica não foi

aceita por Sócrates, pois se assim fosse, implicaria a possibilidade de uma pessoa

justa utilizar tanto a justiça quanto a injustiça para realizar seus fins, o que é

contraditório, e não pode ser aceito, quem age deste modo é tirânico. É estabelecida

uma conexão entre justiça e melhoria das pessoas. Não é próprio do homem justo,

praticar o mal, pois ele deve praticar ações que melhorem as pessoas e prejudicar

os inimigos não irá melhorá-los sendo, portanto, injusto.

Terminado esse diálogo, retomam o debate proposto durante o diálogo

anterior. É este o ponto alto do livro I. Segundo Sócrates, Trasímaco avançou nos

dois como se fosse um animal de rapina e começou sua argumentação a fim de

dilacerar o argumento-método socrático (336b).

Trasímaco oferece como primeira definição para a justiça, em 338c, como

sendo “justo não é mais nem menos do que a vantagem do mais forte”. Porém, a

vantagem do mais forte é também pautada em outra proposição de Trasímaco que

seria a de que o mais forte é aquele que governa e promulga leis. Por conseguinte,

as leis promulgadas devem estar de acordo com os interesses do governante, e

consequentemente, o justo é o que é sancionado pela lei, devendo os

transgressores ser punidos. Para Trasímaco, as leis tiranas são justas em uma

tirania, as leis democráticas são justas em uma democracia, pois atendem aos

interesses de quem governa. Desse modo, o mais forte é quem governa e os mais

fracos são os governados.

A partir desse conceito que Trasímaco traz de justiça, é possível concluir que

é correto tirar vantagem em qualquer coisa. Esse desejo irrefreável em tirar

vantagem de toda sorte indistintamente pode ser chamado de pleonexia, que nada 106 É conveniente lembrar que esta será a noção de direito dos romanos: a arte de dar a cada um o que é seu. 107 Sócrates desenvolve o mesmo sistema de raciocínio em Protágoras para apresentar sua concepção de sofista.

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mais seria que a oposição da justiça. Um poder tirânico tem por marca exagerar nas

medidas e, consequentemente, não ter como escopo o bem dos mais fortes e dos

mais fracos, mas baliza-se na injustiça de auferir em demasia ao mais forte.

Sócrates critica o posicionamento de Trasímaco, em 342a-e, e começa a

discursar sobre a arte108 e seu objeto, ou seja, aquele que exerce verdadeiramente

sua arte não a utiliza em causa própria. A arte deve se concentrar no

aperfeiçoamento do objeto, e não na vantagem que se deve tirar dele. Após

exemplificar com vários casos, conclui que o justo não deve buscar seu próprio

interesse.

Trasímaco, em 343d, faz as seguintes afirmações: “Por toda parte o homem

justo perde do injusto” e diz também “nunca viste na dissolução da sociedade levar o

justo nenhuma vantagem sobre o injusto, porém sempre o inverso”. Será sobre

essas afirmações que Sócrates irá se concentrar em 349b a 350c, dizendo que não

é interesse do homem justo galgar, tirar vantagens de seu semelhante. Somente um

incompetente, sem domínio da arte, se tornaria injusto e enganaria alguém. Assim,

injusto é o ignorante, que não reconhece a justa medida a que se deve ater, e deste

modo, produz conflitos, divisões de grupos e incapacidade para a cooperação.

Sócrates, mais adiante, começa a defender que a justiça é uma virtude,

entretanto, a discussão termina em aporia, pois quando Sócrates começa a buscar

uma definição para justiça o eixo do diálogo toma outro rumo. Em 353b, Sócrates

afirma que cada coisa tem uma atividade e que cada coisa faz melhor essa função

que todas as outras.109 Trasímaco e Sócrates discutem se a justiça é um vício ou

virtude, ignorância ou sabedoria e ao final do Livro I estabelece-se um silêncio e

Trasímaco se retira do diálogo e apenas assiste aos próximos diálogos.

4.2.2 A república platônica

A partir do Livro II, há uma mudança de método. O método refutativo socrático

dá lugar ao discurso mais fluente, no qual a personagem Sócrates é porta-voz da

teoria platônica. Trasímaco, antes combativo e debatedor, assume um papel de

108 Essa arte nada mais é do que a virtude do objeto. Exemplificando seria a função que um objeto tem. 109 Esse parágrafo será muito importante para fundamentar sua teoria da organização social.

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espectador, passivo, querendo aprender com Sócrates. Tal postura de Trasímaco é

fundamental para o projeto de cidade ideal platônica.110

A teoria platônica a ser apresentada por Sócrates baseia-se na tripartição da

alma, pois só desse modo é possível aceitar a ideia da acrasia ou a fraqueza da

vontade.111

No início do Livro II Glauco, apoiado por Adimanto, e inconformado com a

aparente vitória de Sócrates, obtida com o silêncio de Trasímaco, pergunta a

Sócrates, em 357b-d: em qual das três alternativas se encontra a justiça: a) bens

que almejamos possuir por si mesmos e não por suas consequências, a exemplo

alegrias, prazeres inocentes; b) bens que almejamos tanto por si mesmos como por

suas consequências, por exemplo, conhecimento, a saúde; c) bens que não

desejamos tanto por si mesmos, mas pelas consequências, por exemplo: vantagens

monetárias ou de qualquer natureza que nos possam proporcionar.

Sócrates aceita a segunda proposição, entretanto, Glauco adverte que a

maioria não concebe essa via, a maioria seguiria a terceira opção. Sócrates não

concorda com essa concepção, pois a justiça não pode ser vista como consequência

de alguma coisa, deve ser concebida como um bem em si.

Depois dessas considerações, Glauco, ainda inconformado com o silêncio de

Trasímaco continua advogando a ideia de que a justiça não é um bem em si; para

isso, conta o Mito do Anel de Giges, (que será exposto em mais detalhes no próximo

capítulo), segundo o qual Giges levou a cabo atos pérfidos após ter a posse de um

anel mágico que o tornava invisível perante o olhar dos seus semelhantes e extrai a

seguinte conclusão em 360d: “Ninguém é justo por livre iniciativa, mas por coação”.

Quando questionado sobre como resolveria esse caráter injusto com os deuses,

Glauco responde que como teria muitas riquezas, não haveria problema em uma

outra vida, bastava pagar aos deuses e tudo estaria resolvido.112

Com o elogio que Glauco fez à injustiça, Adimanto, seu irmão, não satisfeito,

reforça a ideia em 366d “ninguém é voluntariamente justo”, salvo se for dotado de

110 Como veremos, é fundamental que todos queiram aprender com o filósofo, se deixando persuadir por ele. 111 Esse conflito do homem, que não era possível nos diálogos jovens, como vimos em Protágoras, agora é aceita na República. 112 O Mito de Er, que será exposto no capítulo V desta tese, consiste na resposta ao Mito de Giges sendo um contra ataque de Platão no sentido da impossibilidade de comprar os deuses.

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uma capacidade divina que faz com que sinta “aversão à injustiça ou se tenha

tornado esclarecido pelo conhecimento”.

4.2.2.1 A justiça na cidade

A partir dessas ilações de Trasímaco, de Glauco e de Adimanto, Sócrates

deverá argumentar e apresentar sua doutrina sobre a Justiça. Entretanto, o início da

defesa se dá de maneira indireta, pois o que havia sido proposto era a definição de

Justiça e sua manifestação na alma do indivíduo.

Sócrates, porém, não fala do indivíduo, começa a descrever o que seria a

cidade justa, ou seja, parte da justiça no domínio maior (cidade) para depois

encontrá-la no domínio menor (homem), 369a. Para tanto traçará um perfil da

sociedade elementar, a partir da situação econômica de seu tempo e as condições

para que uma sociedade possa existir.

Esses raciocínios hipotéticos113 partem de um tempo imaginário no qual um

indivíduo chama outro para ajudá-lo em algum empreendimento, mais tarde chama

um outro, e outro. Por serem várias as necessidades de cada um, vários indivíduos

se reúnem no mesmo local, para reciprocamente se auxiliar, desse modo se

constituem as cidades.

Sócrates, em 369d, descreve as necessidades básicas que encontrarão os

que acabaram de se agrupar em uma sociedade. A primeira grande necessidade é a

alimentação; a segunda é referente à moradia; a terceira são as vestes e coisas

semelhantes. A partir dessas necessidades é mister que na cidade tenhamos um

lavrador, um pedreiro; um tecelão e até mesmo um sapateiro e mais alguns artesãos

para outras necessidades do corpo.

Em 370b, desses quatro ou cinco é possível concluir que “nascemos com

disposições diferentes, cada um com mais jeito para determinado trabalho”. Com

isso, o trabalho mais perfeito será mais bem desenvolvido com a pessoa se

aplicando a apenas uma atividade,114 e não a muitas. Acrescenta a essa pequena

113 ROUSSEAU, Jean Jacques. Discurso sobre a origem da desigualdade. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 234: Diversos foram os pensadores que buscaram a situação originária da espécie humana, Rousseau foi um deles com seus raciocínios hipotéticos condicionais. 114 Retoma o argumento de 353b.

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cidade carpinteiros, ferreiros e muitos outros profissionais para que existam

instrumentos para a cidade poder funcionar.

Assim a cidade ganha tamanho e não pode mais ser considerada pequena.

Com esse crescimento é necessária a criação de uma moeda, bem como relações

com cidades vizinhas, a fim de melhorar a economia local. Quem faria esse

comércio seriam os comerciantes, que nada mais são que “indivíduos fracos

fisicamente e incapazes de qualquer outra ocupação” (371d).

Glauco, em 372c, interrompe o discurso de Sócrates e questiona se nessa

cidade as pessoas vivem apenas de pão seco. É nesse momento que Sócrates

introduz a ideia de luxo ou das cidades fartas, para tanto cita em 373b os artistas,

pintores, camareiras e padeiros.

Esse luxo que se apresenta, é necessário proteger seu patrimônio, bem como

expandir seus territórios para que os luxos existam a contento. Não é possível que

os próprios cidadãos se incumbam disso, uma vez que só é possível exercer a

atividade que lhe é própria.

Deste modo, a recém criada classe dos produtores, não poderia exercer esse

labor. É necessário criar uma nova classe que exerça a arte da competição bélica, é

assim que surgem os guardiões. Com isso, temos uma sociedade estruturada com

produtores e guardiões, sendo que nenhum é mais importante que o outro; todos

são necessários.

Com isso, Sócrates se põe a imaginar o que devem ter os guerreiros, e

conclui que devem ter um bom treinamento e a parte da alma conhecida como

thimós, que consistiria na tolerância, na gentileza com os cidadãos (mansos com os

familiares) e corajosos (agressivos com o inimigo). Nesse momento, Sócrates se põe

em aporia, pois não sabe como encontrar alguém gentil e corajoso ao mesmo tempo

(375c). É em 375e que encontra poria para esta dúvida; apresenta como saída

procurarmos guardiões com as características de um cão que é dócil com a família e

bruto com os inimigos.

Com relação à educação dos Guardiões, Sócrates afirma que devemos atuar

em dois pontos, na seguinte ordem: a) a formação cultural e; b) a formação do

corpo.

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Assim, no Livro II da República, Sócrates apresenta como devem se

organizar dois estamentos da sociedade, quais sejam, os produtores e os guardiões.

Sendo que, os produtores devem produzir objetos e alimentos necessários para a

sociedade e os guardiões devem agir com gentileza com familiares e brutalidade

com inimigos.

Entende que a formação cultural deve se dar por meio da música que

alimenta a alma e subtenderá discursos. Tais discursos, segundo Sócrates, poderão

ser verdadeiros ou mentirosos e devem ser vigiados. Devemos começar pelos

discursos mentirosos, pois estes contêm algo de verdadeiro, e desde crianças

balizando-se nessas histórias, entenderão como deverão agir. Em 377c, Sócrates

estabelece a censura asseverando que todos os escritores de fábula deverão ser

vigiados, para que possamos aceitar as boas e rejeitar as ruins.

O Livro III continua com a apresentação dos guardiões e a organização da

cidade ideal.

Sócrates afirma em 389b que é lícito aos dirigentes da cidade mentir, seja

para enganar os inimigos, sejam os próprios cidadãos, caso essa medida traga

vantagem à comunidade. Vale frisar, que somente para os governantes cabe a

possibilidade da mentira. Aos demais que habitam essa cidade é proibido mentir,

uma vez que estes não terão o bom cálculo e não terão sabedoria sobre seus

atos.115-116

Em 392 começa a falar das artes e assevera que o guardião, em sua

educação, deve ser guiado pelos ensinamentos adequados à luz de sua função nas

cidades. Além disso, não deverá ser guiado pelos discursos de alguém que não

saiba o que é bom para a cidade, por exemplo, os poetas ou os atores.117

115 Veremos mais a frente que são os filósofos que possuem esse bom cálculo, uma vez que balizam-se pela razão. 116 Em que pese o Brasil não adotar a forma de governo proposta por Platão, o expediente da mentira pode ser encontrada de forma mais branda em nossa atual Constituição Federal. O art. 5.º, XXXIII garante o direito de informação, mas esta pode ser omitida caso exista a necessidade do sigilo imprescindível para a segurança da sociedade e do Estado; transcrevemos: XXXIII – todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado; (...)” (grifo nosso). 117 No Livro X faz uma crítica aos poetas e aos artistas que produzem falsos conteúdos baseados em opiniões falsas.

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Em 395b, Sócrates reduz a natureza humana a centavos, pois afirma que

esta é cunhada em moedas de baixo valor. Por conta disso, e para manter a ordem

na pólis, é necessário que os guardiões se dediquem inteiramente à liberdade da

cidade. Para que tenhamos a proteção, os governantes devem dispor aos guardiões,

desde sua infância118 o que eles deverão imitar; desse modo, as crianças se

tornarão corajosas e temperantes nos moldes dos que governam e que impõem os

conteúdos dos conhecimentos verdadeiros.

Em 407d, Sócrates delineia uma ideia favorável à eugenia, na qual “não valia

a pena tratar de quem se revelava incapaz de viver o tempo fixado pela natureza, o

que não seria de proveito nem para ele nem para a comunidade”.

Sócrates é questionado, em 412b, a partir do momento que temos os

produtores e os guardiões, quem deve mandar e quem deve obedecer. A partir

deste parágrafo até o final do Livro III, Sócrates apresenta quem seriam os

verdadeiros guardiões da cidade, aqueles que possuem conhecimento verdadeiro.

Aqueles que na cidade são os sábios e deveriam governá-la, seriam os

filósofos. No Livro IV, em 429a, Sócrates assevera que são poucos os que

pertenceriam a essa classe e que são eles que detêm um único conhecimento

denominado sabedoria.119

Sendo assim, temos três classes nessa cidade; a saber:

(I) Produtores (artesãos, agricultores);

(II) Guardiões (soldados, guardas);

(III) Governantes (filósofos).

Em 415a-b, Sócrates aproxima essas classes a qualidades de metais como o

ouro (governantes); prata (guardiões) e bronze ou ferro (produtores).

Já no Livro IV, em 427d, Sócrates retoma as quatro virtudes cardinais

estudadas nos diálogos jovens de Platão; a sabedoria, a coragem, a temperança e a

justiça. Em 429a-d, as classes da cidade são relacionadas cada uma com uma

virtude cardinal, a saber:

118 No Livro IV, em 425a Sócrates afirma que os jogos e brincadeiras de crianças podem ser censuradas. 119 O Sábio, ou o Filósofo, disposto no Livro IX, já nasce com o dom natural filosófico.

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(i) os produtores estão ligados com a temperança;

(ii) os guardiões estão ligados com a coragem e;

(iii) os governantes estão ligados com a sabedoria.

Por serem três classes, apenas três virtudes, das quatro cardinais, foram

relacionadas. A virtude excetuada foi à justiça. É nessa questão que devemos nos

ater agora.

Platão acredita que os produtores são temperantes, os guardiões são

temperantes e corajosos e os governantes são temperantes, corajosos e sábios.

Nesse momento, abandona a tese da unidade das virtudes, ou seja, aquele que tem

uma virtude, tem todas as outras. Passa a acreditar que essas virtudes podem ser

encontradas separadamente.

A justiça é aplicada na cidade em 432b a 435a. Como já dissemos, Sócrates

acredita que cada indivíduo só poderá exercer, na cidade, uma única ocupação, qual

seja, aquela que naturalmente se encontre habilitado. Sendo assim, a justiça reside

em cada um cuidar do que lhe diz respeito. Cada indivíduo deve cuidar das suas

atribuições, pois, deste modo, a cidade terá a justiça reinando nela.

A justiça é algo que deve ser partilhado por todos, ou seja, produtores,

guardiões e sábios deverão ser justos; esse é um dos motivos que nos leva a crer

que a cidade e a alma foram divididas em três partes e não quatro.

Quando cada um exerce sua função e, por consequência, com a justiça

imperando, podemos inferir que existe apenas uma classe que aglutina as quatro

virtudes cardinais, vistas nos diálogos jovens de Platão, qual seja, os filósofos que

são temperantes, corajosos, sábios e justos. O modo pelo qual exercerão a justiça

será diferente dos demais; o que fará com que eles sejam e ajam com justiça é seu

conhecimento/sabedoria; essa função da alma, a sabedoria, existe fortemente

apenas nestes indivíduos. Sendo assim, o conhecimento trará racionalmente o

caminho para a justiça, que não é uma função da alma, mas que deve residir em

todas as funções, seja pelo conhecimento ou pela opinião.

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Nessa cidade justa os produtores, os guardiões e os sábios deverão agir

conforme seus papéis sociais.120 Entretanto, caso algum indivíduo queira, por

qualquer motivo, exercer função diversa daquela que é apto, este dá elementos para

uma cidade injusta. A título de exemplo um produtor não deve querer ser um

guardião, pois não tem capacidade para sê-lo, mas caso isso aconteça essa cidade

será injusta. Por outro lado, um guardião ou um sábio tem condições de serem

produtores, mas não devem ser, pois se isso acontecer estes não exercerão na

plenitude suas capacidades e consequentemente serão injustos.

A questão que surge é a seguinte: Mas o que fará com que homens de

bronze aceitem sua classificação e homens de prata não queiram ser de ouro? A

resposta para esse questionamento está na Justiça. Os guardiões e os produtores

aceitarão essa divisão social, pois são justos. Além disso, foram educados pelos

sábios desde crianças, como vimos, com um sistema dirigido a adequá-los às

necessidades dessa cidade justa. É por isso que Platão acredita que devemos

controlar ou expulsar uma companhia de atores ou poetas que queiram fornecer

conteúdos morais diversos dos que são ensinados para os cidadãos.121

Assim, Sócrates havia asseverado, em 369-a, que a justiça poderia ser

investigada primeiro na cidade e posteriormente poderia ser analisada no indivíduo.

Dedicou os Livros II ao IV a essa análise. Concluiu que cada ser tem uma habilidade

específica que deve ser utilizada em benefício da cidade, e que temos três classes

de homens na cidade (produtores, guardiões e sábios), para cada homem existe

uma virtude que os caracteriza (temperança, coragem e sabedoria). Deste modo,

aqueles que agirem em consonância com suas funções darão forma a uma cidade

justa, uma vez que a justiça consiste em fazer as coisas que lhe são próprias.

120 Conforme veremos mais a frente, as duas primeiras classes agem por opiniões verdadeiras, enquanto a última age com conhecimento, sabedoria. 121 Entretanto, é possível encontrar um ponto de fuga a essa teoria platônica. Podemos ter cidadãos injustos que não se convençam das ideias expostas pelos sábios. A título de exemplo podemos citar a própria bibliografia de Platão. Na obra Górgias, Cálicles, inconformado com as ideias expostas se retira do diálogo e não retorna mais. Nesse caso, Platão não apresenta nenhuma saída na obra A República, mas entendemos que apresenta nas Leis, pois confere as leis o caráter educativo em seus preâmbulos, pois explica o porque agir conforme a lei, bem como o caráter retributivo com a aplicação da pena a quem não segui-la. Sendo assim, aquele que for injusto e não quiser exercer sua função será penalizado para que exista a manutenção da justiça.

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4.2.2.2 Da cidade para o indivíduo

No Livro V, a teoria moral, fundada nos diálogos jovens na unidade das

virtudes, será modificada com a tripartição da alma, que tem como base cognitiva a

opinião verdadeira e o saber.

Platão faz uma distinção entre o conhecimento e a opinião em 478a-e.

Assevera que o conhecimento tem como base a verdade e a opinião ao que é e não

é verdadeiro. Desse modo, a opinião é o meio termo entre o não ser (ignorância) e o

conhecimento (sabedoria). Esse intermédio demonstra que a opinião pode ser

falível, ao contrário do conhecimento, mas como os que detêm conhecimento irão

governar os que não têm, os governados terão apenas opiniões verdadeiras.122

No Livro VI, Platão continua a discussão da opinião e do saber. Em 485b,

enaltece os filósofos e diz que estes amam a verdade, e por isso são os únicos

capazes de revelar alguma coisa sobre a essência eterna, uma vez que desejam

apreender toda a substância. São temperantes de tal maneira que odeiam a riqueza,

caso contrário, serão equiparados a qualquer pessoa do senso comum. O filósofo é

corajoso no sentido de não temer a morte; ama a justiça e concentra as quatro

virtudes cardinais, por conta de sua sabedoria. Em 478a, Sócrates diz que todas as

qualidades enumeradas estão articuladas umas às outras, de tal modo que o filósofo

execute-as com simplicidade, graça e elegância. É necessário que exista uma

relação entre o conhecimento e o que é verdadeiro. O conhecimento tem um

conteúdo do sistema ideal, esta é uma peculiaridade de A República, em que todo

processo de construção de um modelo ético e político se dá pela oposição entre

saber e opinião.

122 Assim, considerando que o conhecimento, que é sempre ligado à verdade, e à opinião que pode ser verdadeira ou falsa, podemos entender que cada uma dessas posturas estão ligadas a uma parte da alma. A sabedoria possui um conhecimento verdadeiro, deste modo sempre caminham para o que é verdadeiro ou certo; os corajosos, na maioria das vezes, possuem opiniões verdadeiras e habitualmente caminham, assim como a sabedoria para o verdadeiro; por seu turno os temperantes, se fossem guiados por suas opiniões, na maioria das vezes caminhariam para opiniões falsas. Mas como os corajosos e os temperantes se guiam pelo conhecimento do sábio, suas opiniões serão sempre verdadeiras.

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4.2.2.3 O conflito da alma – A akrasia

A cada virtude cardinal, Platão irá ligar um tipo de motivação, ou parte da

alma. Os temperantes (produtores) estão ligados com a parte da alma conhecida

como a epitimia ou apetite; os corajosos (guardiões) estão ligados com o thimós, ou

parte iraciva da alma; e os sábios estão ligados pelo logos, ou a parte racional da

alma.123 Esquematicamente a ligação da divisão da sociedade, com as virtudes e as

partes da alma seria a seguinte:

(i) produtores -----------→ temperança -----------→ epitimia;

(ii) os guardiões -----------→ coragem ------------→ thimós;

(iii) os governantes -----------→sabedoria --------→ logos.

Essa mudança de posicionamento, com aceite da akrasia,124 Platão busca

apresentar uma teoria da ação mais potente na República, tal teoria não será

alterada substancialmente, após a exposição nessa obra.

A teoria da ação apresentada no Protágoras era fortemente intelectualista,

pois é defendido que a ação humana é baseada exclusivamente em elementos

cognitivos (precisamos ver melhor o que é isso). Exemplificando, se creio que o

objeto “x” representa o que é melhor, e tenho condições de, através da ação,

alcançar o objeto “x”, necessariamente irei agir tendendo para a conquista do objeto

“x”. Dessa forma, o fenômeno da akrasia, ou seja, o conflito interno de desejos, não

é considerada na teoria da ação de Protágoras.

Platão percebe que é importante considerar a akrasia na teoria da ação, e

para conseguir a integração desse fenômeno, precisará modificar radicalmente sua

teoria, propondo uma alma tripartite.

Em 439-c, trabalha com o exemplo de um conflito da alma relacionado com a

bebida; você sabe que não deve beber, mas quer beber; sendo assim, seu logos

não quer beber, mas sua epitimia (apetite) quer que beba. Outro exemplo,

apresentado por Platão, seria o de Leôncio, que ao saber que do outro lado de um

123 Modernamente, o ideal do Estado de Direito demonstra essa organização necessária, na qual a força é subordinada à sabedoria e a Lei, ou seja, o logos deve governar tanto o thimós como a epitimia. 124 É possível encontrar o termo adaptado para a ortografia portuguesa grafando-se acrasia.

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muro existiam corpos jogados um sobre o outro tem desejo de vê-los (epitimia), mas

tem pudor e não quer vê-los (thimós).

Um exemplo contemporâneo seria uma mulher que queira comer chocolate:

racionalmente sabe que não deve comê-lo (logos), mas impulsivamente quer comê-

lo (epitimia), então, por um momento tem a crença que comer aquele derivado de

cacau é certo, embora possa lhe fazer mal.

Para Platão, nesse momento, não importa se a pessoa bebe ou não, vê os

corpos ou não, o que importa é que a partir dessa ideia temos a possibilidade de

encontrarmos conflitos morais.125 Esse princípio foi posteriormente denominado por

Aristóteles de “principio da não contradição”, ou seja, posso ter vontades diferentes,

mas não na mesma função: não posso saber e não saber, ter o impulso e o não

impulso, minhas motivações devem ser diferentes.

Quanto ao filósofo, segundo Platão, este deve sempre se guiar pela razão ou

logos, afirma isso, pois acredita que aquele que tem conhecimento – por ser tão

grande – jamais deixaria que partes não tão fortes de sua alma prevalecessem. A

título de exemplo, um sábio jamais se embriagaria sabendo que tal comportamento

lhe faria mal e racionalmente não valeria a pena. Como asseveramos no tópico

anterior, o jurista também deve se balizar pela razão.

Com a teoria da tripartição da alma, Platão abandona a tese reducionista.

Agora acredita que a harmonia entre o thimos, a epitimia e seu fio condutor, o logos

trariam a justiça. Sendo assim, a alma é harmônica por causa da justiça.

125 Nessa exposição, Platão não direciona sua filosofia para o resultado que será alcançado, mas claramente quer que ou o conhecimento, ou no mínimo a opinião verdadeira prevaleça.

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5. A MUDANÇA DE POSIÇÃO SOBRE A COERCIBILIDADE – A MITO-LOGIA EM PLATÃO: DO MITO DE GIGES AO MITO DE ER E DO MITO DE ER ÀS LEIS

5.1 Considerações iniciais

Para que possamos expor a questão do mito em Platão, é importante

fazermos uma consideração inicial sobre o tema.

Em que pese Platão, aparentemente, ter abandonado gradativamente uma

justiça de cunho mitológico, substituindo-a por uma justiça baseada no nomos (a lei

positiva e escrita), entendemos que a forma com que Platão apresenta e

fundamenta seus argumentos é uma maneira sui generis. Isso porque seus

argumentos valem-se do mythos e do logos. Nesse sentido, acordamos com a

posição de Jean-François Mattéi que assevera que, com a tensão entre mito e

razão, a argumentação e a narrativa nasce a filosofia Platônica como uma mito-

logia. Nas suas palavras:

A narrativa fabulosa define um espaço autônomo e todos os traços deste se opõem aos da pesquisa dialética. A forma lógica do mito é o monólogo, e não o diálogo; seu procedimento retórico deve-se à narração, e não à argumentação; a sua mediação simbólica é a imagem, e não o conceito; sua finalidade epistemológica repousa sobre a verdade, e não sobre a verificação; enfim, sua referencia ontológica é a totalidade do mundo, e não a realidade singular da coisa. O mito assume a respeito da vida cotidiana uma distancia manifestada pelo afastamento da narrativa e pelo o alheamento do narrador. É notável que os mitos sejam todos confiados a uma voz estrangeira: o Estrangeiro de Eléia, o estrangeiro de Atenas, a estrangeira de Matinéia, Timeu de Locros, Protágoras de Abdera, o sacerdote egípcio de Saís, e mesmo Sócrates cuja atopia faz pensar em ‘um estrangeiro que é guiado’ em sua própria cidade (Fedro, 230-c). O Mito Platônico é, assim, a narrativa encadeada de um conjunto de episódios dramáticos, pela voz de um narrador estrangeiro com a intenção de tornar manifesto, por meio de uma figura especifica, o conjunto dos seres relacionados ao invisível.

(...) O mito faz parte, por ai, da estrutura mimética que caracteriza a teoria platônica do conhecimento e apresenta um jogo de espelhos

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que reflete de maneira inextricável a fala e a escrita, o olhar e a escultura.126

Neste capítulo objetivamos apresentar a necessidade da existência de leis

coercitivas. Para tanto, exporemos brevemente o Mito de Giges e o Mito de Er.127

Cada um desses mitos, dispostos em A República, visa mostrar como é preciso leis

coercitivas para que os homens sejam justos (Giges), bem como é possível

conceber uma espécie de coercibilidade inteligível à alma (Er).

Entretanto, tal justificativa, contida no Mito de Er, não é suficiente para que a

justiça impere na cidade ideal. Com isso, Platão, em As Leis, muda de posição, sem

abandonar sua teoria de organização social de A República, acrescendo o

elemento coercitivo.

5.2 O Mito de Giges e o Mito de Er

Disposto pela mitologia grega e retomado por Glauco no Livro II de A República (359-d-a 360-d),128 O Mito de Giges ilustra a questão da coercibilidade e

sua necessidade para o império da justiça. Podemos apresentá-lo da seguinte

forma:

Giges era um pastor a serviço do rei da Lídia. Por conta de um grande

temporal que acompanhou um tremor de terra, o solo se abriu, formando-se uma

fenda no lugar em que ele levara a pastar o seu rebanho. Ao ver isso, entrou na

abertura e viu entre outras maravilhas um cavalo de bronze, oco e com portas em

seus flancos. Ao abrir uma dessas portas, Giges viu o esqueleto de um gigante,

inteiramente despido que deixava apenas um anel de ouro numa das mãos à vista.

Giges retirou o anel e voltou para a superfície.

Na reunião habitual dos pastores, para apresentar o relatório mensal do

estado do rebanho ao rei, compareceu também Giges com o anel no dedo. Sentado

no meio dos outros pastores, Giges virou a pedra do anel para a palma da mão.

126 MATTÉI, Jean-François. Platão. Trad. Maria Leonor Loureiro. São Paulo: Unesp, 2010, p. 160-162. 127 Sobre a questão da distinção do mito e da alegoria já nos pronunciamos: A alegoria da caverna em matrix, p. 54-55. 128 Para narrar esse mito nos apoiamos pelo narrado por Glauco na República, entre 359-d a 360-d e por PUGLIESI, Márcio. Mitologia greco-romana... cit., p. 251-252.

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Imediatamente se tornou invisível aos que ali estavam para a reunião, mas ouvia e

via todos que ali estavam.

Quando volvia novamente a pedra do anel para o outro lado, voltava a ser

visível. Com esse instrumento trabalhou para ser um dos mensageiros para o rei.

Chegado à corte, seduziu a rainha e com a sua ajuda matou o rei, apoderou-

se do trono, casando-se com ela e assumindo o poder.

Com a apresentação do mito ora exposto, Glauco assevera para Platão que

na hipótese de haver dois anéis iguais a esse, sendo um deles usado pelo homem

justo e o outro pelo injusto, ninguém, absolutamente, segundo tudo indica, revelaria

resistência para conservar-se fiel a justiça.

Na verdade, entende Glauco, ao narrar esse mito, que ninguém é justo por

livre iniciativa, mas por coação. Nas suas palavras, em 360d.

Todos os homens são de parecer que a injustiça lhes é de muito mais proveito do que a justiça, no que estão certos, como o dirá o defensor da presente proposição. Pois o indivíduo com semelhante poder, que não decidisse a praticar nenhuma injustiça nem a tocar nos bens alheios, seria tido na conta de infelicíssimo pelos observadores, e inteiramente destituído de senso, muito embora uns para os outros o elogiassem, enganando-se mutuamente, de medo de virem a ser vítimas de alguma tramóia de qualquer deles.

No Livro X de A República (614b a 621b), Platão rejeita a tese de Glauco

disposta a partir do Mito de Giges com a narrativa do Mito de Er. Na narrativa deste

mito, Platão visa demonstrar que é preciso praticar a justiça para fortalecer a alma;

entende que, caso não pratiquemos na vida atos justos, seremos castigados pelos

deuses futuramente. Relatamos brevemente esse mito:

Er, filho de Armênio, morreu em combate. No décimo dia, quando eram

recolhidos os corpos em começo de putrefação, verificou-se que o de Er encontrava-

se em perfeito estado. Ao ser colocado na pira funebre,129 Er reviveu e contou o que

viu no outro mundo. Disse que quando sua alma saiu do corpo, partiu com a

companhia de muitas outras pessoas e foram parar em um lugar maravilhoso com

duas fendas na terra e duas fendas no céu, ambas contíguas. Entre essas duas

fendas, estavam sentados alguns juízes que anunciavam a sentença. Os justos

129 A pira era uma fogueira em que se queimavam os cadáveres; também era chamada de Pira Funerária.

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deveriam caminhar para a direita, rumo ao céu, com suas sentenças estampadas no

peito, os injustos encaminhavam-se para a esquerda, ladeira abaixo, sendo que,

também, levavam nas costas o relato de quanto haviam praticado.

Quando Er se aproximou dos juízes, estes lhe disseram que ele havia sido

escolhido como mensageiro para os homens e lhe recomendaram ouvir e observar

tudo que se passasse à sua volta.

Er notou que as almas depois de julgadas, dirigiam-se para uma das

aberturas do céu ou da terra. Das outras duas fendas saiam de contínuo novas

almas. As que subiam da terra apareciam exaustas e empoeiradas, as que desciam

do céu estavam limpas e alegres.

Em levas ininterruptas, todas as almas pareciam chegar de uma longa

viagem. Se reuniam no prado, onde acampavam como num festival; as que se

conheciam, cumprimentavam-se. Tanto os que estavam no céu como os que

estavam na terra perguntavam o que havia se passado nos distintos lugares onde

eles não estavam. Os relatos recíprocos davam conta de que na terra as almas que

lá estavam sofreram muito, lágrimas e gemidos davam o tom dos relatos. Por seu

turno, no céu as almas relatavam suas vivências celestes, de inconcebível beleza.

Pelas faltas cometidas contra alguém, as almas eram castigadas, por ordem e

individualmente. A duração da punição era o décuplo do crime cometido. Deste

modo, quem fosse criminoso de muitas mortes ou houvesse traído cidades ou

exércitos e os reduzisse a escravidão, ou fosse cúmplice de alguma malfeitoria do

mesmo gênero, para cada crime teria de sofrer dez vezes mais. Por outro lado, os

que só espalharam benefícios e viveram de forma justa, eram recompensados na

mesma proporção. Os principais tiranos que passaram pela história antiga, Er narra

que a maioria não se encontrava nem no céu nem no inferno.

Sendo assim, o Mito de Er, disposto no último Livro da República, mostra que

é necessário ser justo, pois, caso não seja, será punido em sua alma.

Esse mito refutará o posicionamento de Glauco quando expõe o Mito de

Giges. Para Platão não será possível comprar os deuses, caso cometa atos injustos

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na vida.130 Além disso, aqueles que não seguirem o caminho certo serão punidos em

vidas futuras.

5.3 O corpo em Giges e a alma em Er

A partir da exposição dos dois mitos supramencionados, podemos verificar

que Platão considera, em sua obra A República, a punição da alma mais importante

que a punição do corpo. Isso porque, em sua teoria da ciência, só é possível

conhecer e definir o que nunca muda. Para ele, a ciência concerne certa unidade

que ultrapassa a multiplicidade de particulares. Para compreendermos melhor essa

assertiva precisamos diferenciar o que Platão entende por corpo e por alma.

Platão diferencia corpo de alma. Como discute com Símias em Fedão (65a –

66a):131

Nisto, por conseguinte, antes de mais nada, é que o filósofo se diferencia dos demais homens: no empenho de retirar quanto possível a alma na companhia do corpo. Evidentemente. (grifo nosso)

Essa é a razão, Símias, de, na opinião da maioria dos homens, não merecer viver o indivíduo a quem nada disso é agradável e que não se importa com tais práticas, por achar-se muito mais perto da condição de morto e por não dar a menor importância aos prazeres alcançados por intermédio do corpo.

Tens razão.

X – E como referência à aquisição do conhecimento? O corpo constitui ou não constitui obstáculo, quando chamado para participar da pesquisa? O que digo é o seguinte: a vista e o ouvido asseguram aos homens alguma verdade? Ou será certo o que os poetas não se cansam de afirmar, que nada vemos nem ouvimos com exatidão? Ora, se esses dois sentidos corpóreos não são nem exatos nem de confiança, que diremos dos demais, em tudo inferiores aos primeiros? Não pensas desse modo?

Perfeitamente, respondeu.

Então, perguntou, quando é que a alma atinge a verdade? É fora de dúvida que, desde o momento em que tenta investigar algo na companhia do corpo, vê se lograda por ele.

Tens razão.

130 Trata-se de uma resposta ao argumento de Glauco apresentado em 366 na República e no Capítulo IV deste trabalho. 131 PLATÃO. Fedão. Trad. Carlos Alberto Nunes. Belém: Ed. UFPA, 2002.

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E não é no pensamento – se tiver de ser de algum modo – que algo da realidade se lhe patenteia?

Perfeitamente.

Ora, a alma pensa melhor quando não tem nada disso a perturbá-la, nem a vista nem o ouvido, nem dor nem prazer de espécie alguma, e concentrada ao máximo em si mesma, dispensa a companhia do corpo, evitando tanto quanto possível qualquer comércio com ele, e esforça-se por apreender a verdade. Certo.

E não é nesse estado que a alma do filósofo despreza o corpo e dele foge, trabalhando por concentrar-se em si própria?

Evidentemente.

E com relação ao seguinte, Símias: afirmaremos ou não que o justo em si mesmo seja alguma coisa? Afirmaremos, sem dúvida, por Zeus.

E também o belo em si e o bem?

Também.

E algum dia já percebeste com os olhos qualquer deles?

Nunca, respondeu.

Ou por intermédio de outro sentido corpóreo? Refiro-me a tudo: grandeza, saúde, força e o mais que for, numa palavra: à essência de tudo o que existe, conforme a natureza de cada coisa. É por intermédio do corpo que percebemos o que neles há de verdadeiro, ou tudo se passará da seguinte maneira: quem de nós ficar em melhores condições de pensar em si mesmo o mais exatamente possível o que se propõe examinar, não é esse que estará mais perto do conhecimento de cada coisa? Ou não?

Perfeitamente.

E não alcançará semelhante objetivo da maneira mais pura quem se aproximar de cada coisa só com o pensamento, sem arrastar para a reflexão a vista ou qualquer outro sentido, nem associá-los a seu raciocínio, porém valendo-se do pensamento puro, esforçar-se por apreender a realidade de cada coisa em sua maior pureza, apartado, quanto possível, da vista e do ouvido, e, por assim dizer, de todo o corpo, por ser o corpo fator de perturbação para a alma e impedi-la de alcançar a verdade e o pensamento, sempre que a ele se associa? Não será, Símias, esse indivíduo, se houver alguém em tais condições, que alcançara o conhecimento do Ser?

Tens toda a razão, Sócrates, respondeu Símias.

Com isso, Platão acredita que o corpo não é objeto do conhecimento, pois é

um obstáculo para conhecermos o real, uma vez que está no campo das sensações

e, no máximo, pode participar, como particular, do conceito, mas nunca será o

conceito. Já a alma é imutável, está no pensamento e é alcançada pelo raciocínio

(dianoiai, logismou), de modo que só é acessível pelo intangível. A rigor, a alma é a

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expressão verdadeira do indivíduo, que pode, assim, ter acesso ao real e o corpo

nada tem a ver com a verdade.

Exemplo disso, na obra Platônica, encontramos em Laques (191e), em que o

personagem que dá o titulo ao diálogo define a coragem como ações individuais

(particulares) de coragem, e não como um conceito geral e amplo. Outro exemplo

está em Hípias Maior (286d a 288a), obra em que Sócrates questiona Hípias sobre

o que é o belo, no que tem como resposta uma moça bela e não a definição de

beleza.

Nos dois exemplos que trouxemos, temos a narrativa de atos ou pessoas que

participam do conceito. Veja-se que em nenhuma das hipóteses temos uma

definição abrangente e imutável de coragem ou de beleza. Para Platão, em sua

teoria da ciência, temos que descobrir aquilo que está presente nos vários

particulares para que possamos definir algo. Assim, Platão considera que é

impossível encontrarmos no corpo as definições de qualquer coisa, é preciso buscar

na alma.

Assim temos duas espécies de seres, os chamados visíveis e os invisíveis,

sendo que aqueles não mantêm identidade, mudando todo momento, como o corpo

que é sensível de múltiplos aspectos, ao passo que estes são idênticos a si mesmos

e invariáveis quanto à forma, como a alma que é divina, inteligível e de aspecto

único.

Por conseguinte, a alma é superior ao corpo, que acaba sendo um obstáculo

para a aquisição do saber. Somente na alma podemos alcançar as definições e os

conceitos do que quer que seja.

É por conta disso que Platão justifica sua cidade ideal em A República por

meio do Mito de Er, que como vimos explica a punição do justo ou do injusto com a

alma de Er no inteligível, e não com o corpo deste no sensível, ao passo que no Mito

de Giges temos uma explicação do justo ou do injusto por meio de uma

representação do corpo do homem.

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5.4 Do Mito de Er para o logos de As Leis

Embora exista explicação para o Mito de Er no que tange à questão da

coercibilidade ou punição da alma, ficam ainda assim alguns questionamentos: e se

a pessoa que pratica um ato injusto não acredita em Deus? Ou ainda, é preciso

esperar que a pessoa morra para que pague por suas injustiças praticadas neste

plano? Afinal, deve-se punir a alma, e seu corpo deve ficar incólume a um ato de

injustiça?

Sabemos que uma das características da coercitividade é retorquir

imediatamente o ato injusto praticado e que, portanto, mesmo com o Mito de Er

mostrando que futuramente a alma será punida, é necessário existir uma

organização tal que puna o corpo daquele que é injusto.

É a partir dessas questões, agregadas à experiência que teve na tentativa de

implementar seu sistema na Sicilia, que Platão propõe uma nova obra em que

observa a necessidade de existirem leis coercitivas sem abandonar sua proposta de

organização social de A República.

Sobre essa questão, Richard R. Oliveira132 considera que entre a tese da

“conversão realista” de Platão como “produto do desespero” face a suas

experiências em Siracusa, e, consequentemente, uma mudança radical de sua

teoria, e a tese oposta de que há em As Leis uma adaptação dos princípios do

paradigma político projetado (a sofocracia), é possível observar que:

(...) em que pesem as diferenças flagrantes entre essas duas leituras, acreditamos que elas partem de um mesmo pressuposto fundamental, que subjaz tacitamente às suas propostas de interpretação, mas não foi devidamente explicitado ou problematizado por nenhuma delas, a saber, a ideia de que ambos os textos – a República e as Leis – tratam de um único e mesmo assunto – a descrição do melhor regime político –, apenas modificando a forma de abordá-lo.

Concordamos com a visão exposta acima. Entendemos que A República e

As Leis não abordam o mesmo objeto, mas temas diferentes da filosofia política. A República busca pensar, especulativamente, no plano inteligível, as relações de

justiça e a natureza da cidade, criando limites, mas não leis para sua existência, já

132 OLIVEIRA, Richard R. Demiurgia política – As relações entre a razão e a cidade nas Leis de Platão. São Paulo: Loyola, 2011, p. 73-75.

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As Leis, em complemento, respondem a isso, dando forma a melhor ordem possível

no plano sensível. Nesse sentido Winton e Garnsey: “O contraste com A república é

óbvio. Enquanto esta obra ignorava detalhes constitucionais, As leis expõe-nos com

exaustiva minúcia (...)”.133

A dúvida que surge é como representar (positivar) leis justas se as formas são

invisíveis e o corpo não pode chegar a elas por intermédio da sensibilidade mas

somente pelo pensamento e pelo racicionio?

É justamente sem abandonar sua teoria de estruturação social da cidade ideal

que Platão encontra nos sábios a saída para poder representar as formas justas por

meio de leis.

Entende, Platão, que tais leis devem ser propostas por aqueles que, em sua

estrutura social, possuem reforçadamente como virtude a sabedoria,134 tendo em

sua alma o logos como parte determinante, e assim os sábios representarão o que o

pensamento e o racicíonio conhecem.135

Com os papéis sociais reafirmados para Platão que surge a obra As Leis,

que será objeto de nossa análise.

Nas Leis, Platão apresenta uma proposta para a organização da segunda

melhor constituição, ou segunda melhor cidade. Disto podemos inferir que para o

pensador em comento A República consiste no conceito da cidade invisível e justa

no plano inteligível , enquanto As Leis é uma obra que se preocupa em oferecer

uma cidade visível e justa para o plano sensível.

133 WINTON, R. I. e GARNSEY, Peter. Op. cit., p. 61. 134 Em Fedro, na alegoria da auriga temos abordada também a questão da alma: tal alegoria conta-nos a história do cocheiro que tinha seu carro puxado por dois cavalos alados. O cocheiro simboliza a alma racional dirigindo um carro alado que é puxado para cima por um dos cavalos, mas puxado para baixo pelo outro. O cavalo que sobe, é o espírito que valoriza a coragem e a virtude, o que puxa o carro para baixo é o espírito concupiscente que, pelo prazer, troca a verdade pelo vício. A parelha se machuca, o cocheiro tem as mãos feridas pelas rédeas que puxam em direções contrárias, carros alados chocam-se com outros e as asas vão perdendo a força, caindo, até que o carro pesado, cai sobre a terra deixando no cocheiro exclusivamente a saudade do voo, a vaga recordação do que vira e o desejo insaciável de retornar aos céus. Por que o cocheiro se recorda do voo, e porque um dos cavalos deseja subir, nem tudo está perdido, é possível, portanto, dessa maneira lembrar aquilo que já é sabido, por meio da anamnese. 135 Note que Platão não abandona a divisão do corpo e da alma, nem abandona a ideia de sanção da alma, mas sim apresenta uma resposta imediata para o corpo que deve ser punido pela prática de atos injustos. E note-se que essa resposta recorre à alma para escolher quem deve criar a lei para puni-lo.

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6. A MATURIDADE DE PLATÃO – A JUSTIÇA NA TERCEIRA FASE EM AS LEIS136

Essa importância ressalta ainda mais se considerarmos que enquanto na República a base do Estado é a educação perfeita, sendo praticamente supérflua a legislação, nas Leis a legislação é a base.137

6.1 Considerações iniciais

Após tantas desilusões diante dos regimes que conheceu, tanto na

democracia da época quanto nas tiranias, Platão permaneceu fiel e leal ao seu

propósito que concebia a missão filosófica, entendendo ser da competência do

filósofo contribuir para a construção da justiça nas cidades.

Diante dos diversos problemas que Platão verifica ao longo de sua trajetória,

não há outra saída, senão a que apresenta em A República, qual seja, a de um

centralismo filosófico (reis filósofos). Embora mantenha o centralismo filosófico ora

citado, a obra A República cede lugar, no que tange ao aperfeiçoamento legislativo,

a um novo projeto com a obra As Leis.

Diz Eric Voegelin:

O Plano de uma segunda melhor pólis parece implicar uma tradição do ‘ideal’ de ditadura de rei-filósofo para o ‘ideal’ de um governo pela lei com o consentimento constitucional do povo. Nesse caso, precisamos desemaranhar toda uma série de equívocos. Em primeiro lugar, as leis a que o povo deve dar seu consentimento não são simplesmente qualquer lei que agrade ao povo, nem são elas feitas pelo povo. Elas continuam a ser as leis do rei-filósofo, as leis que Platão deu à pólis. Quaisquer outras leis, que talvez pudessem ser mais do agrado do povo, não caracterizaram a segunda melhor pólis, ou mesmo a terceira ou quarta: elas não caracterizam nenhuma pólis que pudesse ser considerada uma incorporação da realidade da idéia. O ‘governo constitucional’, sem consideração

136 Todas as citações da obra em comento serão feitas a partir da edição traduzida direto do grego por Edson Bini. As Leis. 2. ed. São Paulo: Edipro, 2010. 137 DALARI, Dalmo de Abreu. Prefácio da obra As Leis. 2. ed. São Paulo: Edipro, 2010.

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para com o espírito das leis, não é realidade para Platão, mas corrupção da realidade.138-139

Obra de indispensável leitura para compreensão do pensamento platônico,

mas pouco estudada e comentada, As Leis consiste em um trabalho reconhecido

postumamente, escrita nos últimos anos de sua vida, podendo ser considerada

como a obra que põe fim ao seu percurso de diálogos. Extensa e composta por XII

livros, pode-se dizer que é o trabalho de maior fôlego do pensador em comento. “A

tese fundamental de As Leis que é a lei condicionada a razão; sendo a lei é a

personificação humana da divina Razão que governa o universo.”140

Sobre a autenticidade de a obra ter sido escrita ou não por Platão damos

como questão superada, nos dizeres de Pereira Filho:

As controvérsias sobre a não autenticidade e o caráter inacabado de As Leis, se estendem desde a primeira edição da obra, ainda na antiguidade, atribuída a Felipe de Opunte, na tradução de Diógenes Laércio, até ao século XIX. Hoje parece superado esse debate, reconhecendo-se a autenticidade de As Leis, ainda que como um diálogo inacabado (seja pela morte do autor ou por sua interrupção por questões não conhecidas), embora ainda permaneça uma linha interpretativa que prefira reconhecer ali, uma obra coletiva dos discípulos da Academia, com a participação do próprio Felipe de Opunte, responsáveis também pela redação do Epinomis.141

Para compreensão mais global desse estudo Platônico é preciso atravessar a

leitura de todos seus diálogos.142 Para nosso objeto de estudo cabe atenção

especial na relação e na mudança de posição da obra A República para a obra As Leis. Pois, em seu projeto político Platão tem na República seu primeiro pensar que

se completa com as Leis, como veremos. Ensina Gilda Naécia que:

o projeto político de A República completa-se com o de As Leis, permitindo a conjugação de ambos uma ideia do que Platão

138 VOEGELIN, Eric. Ordem e história: Platão e Aristóteles. Trad. Cecília Camargo Bartalotti. São Paulo: Loyola, 2009. v. 3, p. 276. 139 Trazer uma participação popular plural, por exemplo, não significa que Platão muda por completo sua teoria. 140 WINTON, R. I. e GARNSEY, Peter. Op. cit., p. 61. 141 PEREIRA FILHO, Gerson. Op. cit., p. 149. 142 CHÂTELET, François. El nacimiento de la história. Trad. César Suarez Bacelar. Madri: Siglo XXI de España Editores, 1985, p. 213.

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entendia por Paidéia superior e o que deveria ser a formação geral do cidadão médio.143

Como vimos, na República, o governante, por suas próprias virtudes, e pela

justificação metafísica de coercibilidade, praticamente não se ocupa da legitimação

de uma legislação própria, o que já se inverte na obra As Leis, quando o

governante, ao legislar deve se colocar entre Deus e o homem, e buscar o

consentimento dos governados a fim de propor uma legislação justa.

Alguns comentadores equivocadamente asseveram que a obra em comento

consiste apenas em um tratado sobre a “jurisprudência”. Falha quem afirma isso,

pois a tradução do termo Nomoi por Leis não pode ser interpretada como a palavra é

vista na teoria jurídica moderna. Isso se dá por conta da difícil tarefa de transferir de

um quadro de signos para outro algo tão rico como o vocábulo grego, em especial o

termo Nomoi.

O nomos de Platão, no entanto, está profundamente inserido no mito da natureza e tem uma amplitude de significado que inclui a ordem cósmica, os ritos dos festivais e as formas musicais. O pressuposto de que as leis são um tratado sobre ‘jurisprudência’ ignora essa variedade de sentidos e, inevitavelmente, destrói essência do pensamento de Platão.144

No mesmo sentido observa Edson Bini:

Platão abarca não apenas o domínio estritamente jurídico, como também as áreas correlatas da política, da ética e mesmo da psicologia, da gnosiologia, da ontologia, além daquelas da matemática, da religião e da mitologia.145

Para nossos estudos, não perderemos de vista a riqueza da obra e o que o

termo nomoi significa, entretanto, nosso esforço se volverá efetivamente para as

questões relacionadas à jurisprudência e à proposta política da segunda melhor

cidade na obra As Leis.

143 BARROS, Gilda Naécia Maciel de. Platão, Rousseau e o estado total, apud, As Leis. Prefácio de Dalmo de Abreu Dalari, 2010. 144 VOEGELIN, Eric. Op. cit., p. 275. 145 Nota do tradutor Edson Bini. As Leis, 2010.

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6.2 Os XII Livros de As Leis

Nas próximas páginas buscaremos destacar alguns pontos importantes na

obra em comento. Como assevera Lygia Watanabe: “Não se deve sequer tentar

resumir uma obra clássica, qualquer que seja, porque estaremos sempre arriscados

a perder sua essência”.146

Deste modo, não faremos um resumo, mas sim uma rememoração de alguns

pontos de discussão do diálogo em comento. A fim de não perdermos o rigor

filosófico, nem a essência do discurso de alguns trechos que julgamos importantes,

citaremos in verbis trechos da obra.

6.2.1 Livro I – A guerra; as virtudes divinas e humanas; a embriaguez; a educação e

as marionetes

No prólogo, em 624a, há indagações entre O ateniense, Clínias e Megilo

sobre a forma como as disposições legais são estabelecidas em seus respectivos

Estados, havendo um consenso no sentido de que suas criações são divinas:147

Nota-se, então, uma preocupação entre aqueles que dialogam a respeito da

guerra como meta da legislação, em 625d-e: “Clínias: (…) E assim todos estes

nossos costumes são adaptados à guerra e, na minha opinião, era este o objetivo

que o legislador tinha em mente quando os determinou a todos”.

Após as reflexões sobre a guerra como cerne da elaboração das leis, em

627a-b, surgem questionamentos com relação à virtude total dever ser a meta de

toda legislação e sobre como um Estado pode não somente ser afetado pelas

guerras externas, como também pelas guerras intestinas.

A discussão acerca das virtudes, que já foi explorada, como vimos, em

diversas obras como Protágoras e A República, volta a baila e se aprofunda e

cada um dos dialogantes expõe seus pensamentos. Percebe-se ao longo do

146 WATANABE, Lygia Araújo. Op. cit., p. 108. 147 O ateniense: A quem atribuis, estrangeiros, a autoria de vossas disposições legais? A um deus ou a algum homem? Clínias: A um deus, estrangeiro, com toda a certeza a um deus. Nós, cretenses, chamamos de Zeus o nosso legislador, enquanto na Lacedemônia, onde nosso amigo aqui tem seu domicílio, afirmam – acredito – ser Apolo o deles. Não é assim, Megilo? Megilo: Sim.

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discurso uma hierarquia como fio condutor de tais virtudes, temos a sabedoria, a

prudência e a justiça. Ainda no discurso sobre as virtudes, verifica-se a distinção

entre os bens humanos e os bens divinos, e nessa seara também se delineia uma

hierarquia entre eles, posicionando-se os bens divinos acima dos bens humanos,

como se verifica em 631b-d:

O ateniense: (…) Ora, os bens são de duas espécies, a saber, humanos e divinos; os bens humanos dependem dos divinos e aquele que recebe o maior bem adquire igualmente o menor, caso contrário é privado de ambos. Entre os bens menores a saúde vem em primeiro lugar, a beleza em segundo, o vigor em terceiro, necessário à corrida e todos os demais exercícios corporais; segue-se o quarto bem, a riqueza, não a riqueza cega, mas aquela de visão aguda, que tem a sabedoria por companheira. A sabedoria, a propósito, ocupa o primeiro lugar entre os bens que são divinos, vindo racional moderação da alma em segundo lugar; da união destas duas com a coragem nasce a justiça, ou seja, o terceiro bem divino, seguido pelo quarto, que é a coragem. Ora, todos estes bens estão posicionados, por natureza, antes dos bens humanos, e, em verdade, assim deverá o legislador posicioná-los, depois do que deverá ser proclamado aos cidadãos que todas as outras instruções que recebem têm em vista esses bens; e que os bens humanos são orientados para os bens divinos, e estes para a razão, que é soberana.

Entende-se que a coragem é uma virtude muito importante para o Estado,

pois ele, enquanto instituição bélica, precisa que seus homens tenham tal virtude. E,

nessa busca, os homens que servirão e lutarão por ele deverão combater o temor, a

dor e muitas formas de desejos, que podem atrapalhar seus objetivos mais nobres,

como vemos em 633c-d.

A temperança também é vista como uma grande virtude e, para ser

preservada, sugere-se que os exercícios físicos e as alimentações regradas sirvam

de incentivo. Em 636a: “Megilo: Certamente um assunto nada fácil! E, no entanto,

provavelmente os repastos comuns e os exercícios físicos constituem boas

concepções para fomentar essas duas virtudes”.

Então, a partir de reflexões sobre os meios de se alcançar a temperança,

surge uma nova pauta, o problema da embriaguez e suas consequências para a

manutenção das virtudes. Entende o ateniense, portanto, que somente “homem

sóbrio e sábio que devemos instalar no comando de indivíduos ébrios, não o

contrário, visto que um chefe de ébrios que fosse ele mesmo ébrio, jovem e tolo, se

revelaria um grande felizardo se conseguisse se furtar a cometer um sério dano”.

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Ainda no assunto acima abordado, “O ateniense” também se preocupa em

analisar se há algum proveito dos banquetes regados a vinho para a educação, em

641b-c:148

Diante dos pensamentos do estrangeiro ateniense, Megilo declara sua

admiração por Atenas (642c), posteriormente Clínias também o faz (642e) “(...)

Então nossos ancestrais passaram a permutar hospitalidade e amizade com os

vossos, e desde então tanto meus pais quanto eu desenvolvemos uma afeição por

Atenas”.

À frente, por meio de muitas comparações e análises, o ateniense enuncia

sua definição do que é a educação:

O ateniense: O que afirmo é que todo homem que pretenda ser bom em qualquer atividade precisa dedicar-se à prática dessa atividade em especial desde a infância utilizando todos os recursos relacionados a sua atividade, seja em seu entretenimento, seja no trabalho. (643b)

(...)

O ateniense: (…) a educação a que nos referimos é o treinamento desde a infância na virtude, o que torna o indivíduo entusiasticamente desejoso de se converter num cidadão perfeito, o qual possui a compreensão tanto de governar como a de ser governado com justiça. (643e).

Em 644d-e e 645a-c o ateniense oferece uma alegoria em que apresenta a

imagem das marionetes.149 Nessa alegoria, dão-se alguns passos importantes sobre

148 O ateniense: Bem, que grande vantagem diríamos que adviria ao Estado a partir do correto controle de uma única criança ou de um grupo de crianças? A uma tal questão assim colocada a nós responderíamos que o Estado extrairia pouco proveito disso; se, entretanto, se formula uma questão geral com referência a qual vantagem efetiva extrai o Estado da educação das crianças, então prover uma resposta será extremamente simples pois responderíamos que crianças bem educadas se revelarão bons indivíduos, que sendo bons vencerão seus inimigos em batalha, além de agirem com nobreza em relação a outras coisas. Assim, se por um lado a educação também produz vitória, esta, por vezes, produz falta de educação visto que os homens amiúde se tornam mais insolentes devido à vitória na guerra, e através de sua insolência se tornam repletos de outros vícios incontáveis; e se ao passo que a educação jamais se mostrou até agora cadmiana, as vitórias que os homens obtêm na guerra com frequência foram e serão cadmianas. 149 “O ateniense: Vamos conceber a matéria da seguinte maneira: suponhamos que cada um de nós, criaturas vivas, é uma engenhosa marionete dos deuses, ou inventado para ser um brinquedo deles, ou para um propósito sério – com referência ao que nada sabemos, exceto que esses nossos sentimentos interiores, como tendões ou cordéis, os arrastam e, sendo postos em oposição recíproca, arrastam-se uns contra os outros para ações contrárias; e aqui jaz a linha divisória entre a virtude e o vício, pois como indica nosso raciocínio, é forçoso que todo homem obedeça a uma dessas forças de tração, não a soltando em nenhuma circunstância, contrabalançando desta forma à tração dos outros tendões: é o fio condutor, dourado e sagrado, da avaliação que se intitula lei pública do Estado; e enquanto os outros cordéis são duros e como aço, e de todas as formas e aspectos possíveis, esse fio é flexível e uniforme, visto que é de ouro. Com esse excelentíssimo fio condutor da

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o poder e o como devem os homens ser conduzidos. Alegoricamente, explica-nos

que, nós, como marionetes, podemos ser conduzidos por duas espécies de fios, um

de ouro e outro de aço. Os fios de ouro conduzem as leis do Estado e as virtudes

que se espera, já os fios de aço contém em si os vícios e as deficiências que tornam

o homem em injusto, dualizando, nessa alegoria, o corpo da alma, o vicio da virtude,

o sensível e o inteligível e o justo do injusto.

6.2.2 Livro II – Os banquetes e vinho, educação com base nas virtudes; a

experiência dos mais velhos e os coros

Retomando a discussão proposta em 641, sobre o banquete com vinho e a

descoberta das disposições naturais humanas, o estrangeiro ateniense, em 652a a

653b, acha devido definir melhor o conceito de educação e desenvolver ideias a

respeito de como os elementos dessa educação devem ser estabelecidos para que

a sociedade se forme com base nas virtudes.

Diante disso, as exposições passam pelos benefícios da música numa

sociedade bem educada, a instituição dos três coros, críticas à educação espartana,

valor técnico e valor moral, o valor das artes, a ginástica e a música juntas na

composição do coral e mais regras relativas ao uso do vinho.

Logo adiante, em 653c-d, o estrangeiro ateniense coloca em pauta a maneira

com que os deuses se compadeceram dos humanos, haja vista que, segundo ele,

essa espécie é fadada à miséria,150 e depois mostra, em 653e-654a, que os deuses

se prontificam a serem nossos parceiros de dança, concedendo a agradável

lei nós temos que cooperar sempre pois considerando-se que a avaliação é sumamente boa, porém mais branda do que dura, seu fio condutor requer colaboradores para assegurar que a raça áurea dentro de nós possa derrotar as outras raças. Deste modo a alegoria que nos compara a marionetes não será sem efeito e o significado das expressões superior a si mesmo e inferior a si mesmo se tornará um tanto mais claro,e também quão necessário será para o indivíduo compreender o verdadeiro valor dessas forças de tração interiores e viver de acordo com isto, e quão necessário ao Estado (quando este recebeu tal valor seja de um deus, seja de um homem esclarecido) fazer disso uma lei para si e ser guiado por meio dela em sua relação tanto consigo mesmo quanto com outros Estados. Assim, tanto o vício quanto a virtude seriam para nós diferenciados com maior clareza (…)”. 150 O ateniense: (...) E prosseguindo notaremos que essas formas de treinamento infantil, que consistem na correta disciplina dos prazeres e das dores, se afrouxam e se debilitam numa grande medida ao longo da vida humana: assim, os deuses, compadecidos pela espécie humana deste modo nascida para a miséria, instituíram os banquetes de ação de graças como períodos de trégua em relação às vicissitudes humanas; e à humanidade conferiram como companheiros de seus banquetes as Musas, Apolo, o mestre da música e Dionísio para que pudessem, ao menos, restabelecer suas formas de disciplina se reunindo em seus banquetes com os deuses.

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percepção do ritmo e da harmonia que nos liga mediante canções e danças. E

conclui em 654b: “O ateniense: E portanto o homem bem educado terá a capacidade

tanto de cantar quanto de dançar bem”.151

O ateniense resume seus pensamentos até aqui em 655b, ao afirmar:

O ateniense: (…) E para nos poupar uma discussão tediosamente longa, resumamos todo o assunto afirmando que as posturas e as melodias que se vinculam à virtude da alma ou do corpo, ou a alguma imagem deste, são universalmente belas, enquanto que aquelas que se vinculam ao vício, são exatamente o contrário.

No pensamento platônico, a figura do homem mais velho, ou seja, aquele que

tem mais de trinta anos,152 é dotada de experiência de vida e, portanto, tem mais

autoridade para opinar e decidir o que é melhor e mais justo. Em 659d diz: “O

ateniense: a educação é o processo de atrair e orientar crianças rumo a esse

princípio que é pronunciado como correto pela lei e corroborado como

verdadeiramente correto pela experiência dos mais velhos e dos mais justos”.

A partir dos novos pensamentos a respeito da educação, em 662c-d, surge

também a preocupação sobre como pode e deve ser a vida ideal, agradável e justa

e como é a definição de uma vida injusta e desagradável. Então, o estrangeiro e

“Clínias” concordam, em 663d que a vida injusta não é apenas mais ignóbil como

também desagradável face a vida justa e piedosa.

Posteriormente, “O ateniense” menciona “os três coros”, clara referência a

Esparta que habitualmente contava com três coros masculinos nos festivais que

incluíam sempre a dança: o dos meninos, o dos moços e o dos homens mais velhos.

Em 664c-d, explica a dinâmica dos coros. As crianças, em primeiro lugar,

consagrariam as Musas para cantar essas máximas com vigor para toda a cidade,

logo depois viria o coro daqueles que têm menos de trinta anos, invocando Apolo

Paeon, em terceiro, viria a coro dos mais de trinta e menos de sessenta anos, que

tem a responsabilidade de encantar os mais novos na arte da educação. Aqueles

com mais de sessenta anos, com voz fraca, deveriam se ocupar dos mesmos temas 151 Nota da p. 107 do tradutor. Platão, As Leis: Do ponto de vista da educação especialmente, Platão tem em altíssima conta a formação dos gostos e das aversões, o que detém um peso francamente estético. (…) Para Platão a criança bem educada deveria se sentir instintivamente atraída para o belo e experimentar uma repulsa imediata diante do feio. Isto conduz a uma espécie de conjunção entre o estético e o ético, pois o belo acaba se identificando com o bom e o feio com o mau. 152 Vimos no contexto histórico que naquela época a faixa etária de 30 anos já poderia considerar-se velho. Nesse sentido: LOPES, José Reinaldo de Lima. Op. cit., p. 33-34.

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morais em narrativas e por meio de discursos de inspiração oracular. Tal explicação,

novamente, reitera a importância da idade como fator de valoração positiva do

homem.

Em 666a-c, o ateniense faz um paralelo entre o canto e o vinho:

O ateniense: Então como os estimularemos a se prepararem para o canto? Não deveremos promulgar uma lei segundo a qual em primeiro lugar nenhuma criança abaixo de dezoito anos pode tocar de modo algum o vinho, ensinando que é errado verter fogo sobre fogo no corpo e na alma antes que principiem a se ocupar de seus efetivos labores, e assim nos guardando da disposição excitável dos jovens? E em seguida regulamentaremos para que o jovem de menos de trinta anos possa tomar vinho com moderação, abstendo-se inteiramente da intoxicação e da embriaguez. Mas quando um indivíduo atingir quarenta anos, poderá participar das reuniões festivas e invocar os deuses, particularmente Dionísio, convidando este deus para o que é simultaneamente cerimônia religiosa e a recreação dos mais velhos, a qual ele concedeu à humanidade como um potente medicamento contra a rabugice da velhice, para que através deste possamos reavivar nossa juventude e que olvidando seu zelo, a têmpera de nossas almas possa perder sua dureza e se tornar mais macia e mais dúctil, tal como o ferro que foi forjado no fogo e passou a ser mais maleável. Não tornará esta disposição mais branda, em primeira instância, cada um daqueles idosos mais disposto e menos constrangido a entoar cantos e encantamentos (como amiúde os chamamos) na presença não de um grande grupo de estrangeiros, mas de um pequeno número de amigos íntimos?

Durante a elaboração das ideias sobre o coro, a música, esse método como

meio de educar, desenvolve-se a teoria de que o prazer não é o critério da música,

diz em 668a-b, que se esse for o critério devemos considerar essa música com a

menos séria de todas.

Depois a discussão retorna à figura dos anciãos como aqueles que devem ser

responsáveis por presidir e regular os banquetes e, assim, manter a ordem e a

disciplina entre os mais jovens, em 671d-e.

Quanto ao vinho, em 672d, espera-se que as críticas se abrandem, uma vez

que, mostrado tamanho benefício à sociedade, desde que bem administrado pelos

mais velhos, pode ter peso medicinal para a aquisição de força ao corpo e pudor à

alma.

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Há ainda um ponto sobre o coro que deve ser esclarecido. Em 673c-d, o

ateniense afirma que a música terá que estar em harmonia com o corpo, isto é, com

a dança, para que tal ensinamento se revele completo.

Por fim, em 674a-b, “O ateniense” encerra a discussão discorrendo sobre

algumas regras gerais em relação ao uso do vinho:

O ateniense: (…) eu daria minha adesão à lei de Cartago, a qual ordena que nenhum soldado em campanha jamais prove a poção embriagante, limitando-se durante todo esse tempo a beber unicamente água. E eu acrescentaria que na cidade, também os escravos e escravas jamais a provassem; e que os magistrados no desenrolar do ano de seu mandato, os pilotos e os juízes enquanto no cumprimento de seus deveres não bebessem vinho algum, bem como qualquer conselheiro que fosse convocado a dar seu parecer colimando uma deliberação de considerável monta; nem qualquer pessoa durante o dia salvo por motivo de treinamento físico ou saúde; nem tampouco um homem ou uma mulher à noite, quando se propõem a procriar (...).

6.2.3 Livro III – A origem das constituições; hierarquia do Estado; legisladores e o povo; a questão da coercibilidade

O Livro III se inicia com a discussão proposta pelo estrangeiro ateniense

sobre a origem das constituições, partindo do “ponto de vista” da observação “de um

período de tempo infinitamente longo e das transformações que nele ocorrem”.

Assim seria possível perceber as várias transformações dos Estados, como dito em

676c: “O ateniense: Tentemos descobrir a causa desse processo de transformação,

se o pudermos, pois quem sabe isso poderia nos revelar a origem primeira das

constituições, bem como a transformação destas”.

Tal proposta de discussão é aceita por “Clínias”, o estrangeiro toma, então,

como exemplo o dilúvio, que deveria ter extinguido quase toda espécie humana e

suas produções, restando apenas, provavelmente, o grupo dos “pastores dos

montes, pequenas centelhas da espécie humana preservadas nos cimos das

montanhas”. Por conta disso, afirma em 677c que as grandes descobertas de todas

as artes que se encontravam na planície se perderam.

Em seguida, após uma rápida menção à revelação, há mil ou dois mil anos

atrás, desses implementos e descobertas para alguns personagens da mitologia, “O

ateniense” retoma a divagação sobre o contexto no qual viveram os sobreviventes

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ao dilúvio e seu desenvolvimento gradual. Para ele, essas comunidades eram

compostas por homens cândidos, não contaminados pelos vícios próprios das

cidades. A partir de então, tenta entender a necessidade de leis por parte dos seres

humanos daquela época e a identificação de seu legislador. Percebe-se em 680a:

Em 680a, “O ateniense” observa que os que antecederam o dilúvio viveram

em uma época da história em que não havia leis escritas, pois tal arte não existia,

com isso, limitam-se a viver à luz dos costumes que era chamada de “lei dos

ancestrais”.

Nesse momento, Homero é citado como fonte de entendimento dessas

sociedades agropastoris, e “O ateniense” conclui com a contribuição do poeta que a

origem da legislação e dos legisladores se deu através da reunião dos vários clãs

governados por seus membros mais velhos. Em 681c-d apresenta o próximo passo,

que seria:

essas pessoas das comunidades se reunirem e escolherem alguns membros de cada clã que, depois de um exame dos costumes legais de todos os clãs, notificariam publicamente os líderes e chefes tribais (que poderiam ser chamados de seus reis) quais daqueles costumes os haviam agradado mais, recomendando sua adoção. Esses membros seriam chamados eles mesmos legisladores, e quando tivessem estabelecido os chefes como magistrados e estruturado uma aristocracia, ou possivelmente até mesmo uma monarquia a partir da pluralidade de patriarcados, todos passariam a viver sob a nova forma de governo.

Com isso, “O ateniense” passa a discorrer sobre como teria surgido “uma

terceira forma de governo na qual estão combinados todos os tipos e variedades de

forma de governo tanto quanto Estados”, em 681d. Para tal empreitada, o

estrangeiro recorre mais uma vez a Homero, a fatos históricos e à mitologia da

fundação de algumas cidades, tempos após o dilúvio. Nota-se em 683b:

O ateniense: (...) O curso tortuoso de nossa discussão e nossa excursão por várias formas de governo e fundações resultaram num grande ganho: discernimos um primeiro, um segundo e um terceiro Estado, todos, como supomos, sucedendo um ao outro nas fundações que ocorreram no desenrolar de muitas e longuíssimas eras. E agora surgiu este quarto Estado, ou nação, se o preferis, que esteve, outrora a caminho de sua fundação e está agora fundado. Se pudermos concluir de tudo isso quais dessas fundações estavam corretas e quais, errôneas, quais leis garantem a segurança do que está seguro, quais arruínam aquilo que está arruinado e quais transformações (em quais particularidades) produziriam a felicidade

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do Estado – teríamos, então, Megilo e Clínias, que descrever essas coisas novamente, recomeçando do início – a menos que não tenhamos nenhuma, objeção às nossas prévias afirmações.

“O ateniense” começa a argumentar em cima do exemplo do quarto Estado (a

confederação formada por Argos, Messênia e Lacedemônia) para explicar como

deveriam ser resolvidos problemas de hierarquia entre esses Estados.153

E encerra a questão da hierarquia com o pressuposto de que “dois Estados

deveriam sempre se unir contra o terceiro sempre que este desobedecesse as leis”,

em 684b.

Passa, então, a discorrer sobre a relação entre os legisladores e o povo,

sobre a criação e mudanças nas leis e sua repercussão. De acordo com “O

ateniense”, após a invasão do Peloponeso pelos dórios, e as constituições e leis de

Argos e Messênias terem sido destruídas, somente teria restado estável a

Lacedemônia, apesar de todos acreditarem que seus sistemas eram estáveis e

resistentes.

A partir de então o estrangeiro, em 686d-e, passa a analisar como uma união

política tão promissora teria se arruinado e suspeita que não teria sido feito um bom

uso dela.

Em seguida, leva “Megilo” a concluir que a culpa da ruína do quarto Estado

teria sido de seus legisladores ao agirem em função dos próprios desejos. “Megilo”

ressalta em 687e:

Megilo: Compreendo o que queres dizer. O que pretendes dizer, a meu ver, é que aquilo que um homem deve suplicar e anelar pelos seus votos não é que tudo caminhe segundo seu próprio desejo – visto que seu desejo de maneira alguma acata sua própria razão. É sim pela vitória da racionalidade que todos nós – tanto Estados quanto indivíduos – devemos suplicar e lutar.

153 Temos em 684 b: O ateniense: (...) Ora, o que aconteceu realmente foi o seguinte: cada uma das três casas reais e as cidades a elas submetidas juraram entre si segundo as leis que haviam estabelecido obrigando tanto governantes quanto súditos, que os primeiros com o passar do tempo e o progresso da raça se conteriam no sentido de não tornar sua autoridade mais severa, e que os segundos – enquanto os governantes se mantivessem fiéis a sua promessa – jamais transtornariam a monarquia eles mesmos, como também não permitiriam que outros o fizessem; e ambos, governantes e povos submetidos, juraram que os reis deveriam auxiliar tanto reis quanto povos em caso de injustiça, e os povos tanto povos quanto reis em caso idêntico. Não era isso? Megilo: Era.

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“O ateniense” o corrige, abordando que o problema foi a ignorância dos

interesses da humanidade, em 688b, faz um elogio a virtude cardinal da sabedoria,

ao dizer que está é a mais importante quando da confecção de uma lei:

O ateniense: (...) A injunção que apresentastes é que o bom legislador tinha que moldar todas suas leis com vistas na guerra; eu, por outro lado, sustentei que enquanto conforme vossa injunção as leis fossem moldadas tendo como referencial apenas uma das quatro virtudes, era realmente essencial considerar a virtude total e acima de tudo dar conta da principal virtude entre as quatro, a qual é a sabedoria (…).

Por isso, de acordo com ele, o governo deve ser confiado aos sábios,

reiterando a posição adotada em A República, como vimos.

Em seguida, ele expõe os tipos de títulos ou direitos de autoridade e de

obediência, acusa os reis de Argon e Messiênia de transgredirem tais direitos e os

culpa pela ruína do mundo grego, dizendo que apenas a Lacedemônia conseguiu

sobreviver e não cair na tirania.

Em 693b-c “O ateniense” explana sobre como deve ser um Estado e o que

deve observar o legislador:

O ateniense: Defendemos a ideia de que um Estado deve ser livre, racional e amigo de si mesmo, o legislador devendo desempenhar seu trabalho visando isso. (...) É preciso refletir que a sabedoria e a amizade quando colocadas como a meta a ser atingida não são realmente metas distintas, mas sim a mesma, não devendo nos perturbar a multiplicidade de expressões que possamos encontrar.

“Clínias” o questiona quanto às metas atribuídas ao legislador no que diz

respeito à amizade, à sabedoria e à liberdade, ao que “O ateniense” passa a

responder afirmando que há duas formas possíveis de constituição (a monarquia e a

democracia): “Ora, é essencial que uma constituição encerre elementos dessas

duas formas de governo se quisermos que disponha de liberdade e amizade

combinadas com a sabedoria”, em 693d.

A partir daí, o estrangeiro faz diversas considerações, e começa a expor

sobre como teriam ocorrido os ápices e decadências do império persa, passando

pela educação. Em 695e a 696a, afirma que de Dario até o momento onde escreve,

os persas nunca mais tiveram um único grande rei.

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Após reconhecer a preocupação dos lacedemônios com a educação de ricos

e pobres, passa a discorrer sobre a virtude da temperança e seu reconhecimento no

Estado, em 697b-c.154

Disso, o estrangeiro conclui sua exposição sobre o Estado persa, em 697d:

(...) destruíram no Estado os laços de amizade e camaradagem. E quando estes são destruídos, o conselho dos governantes não delibera mais no interesse dos governados e do povo, mas somente no interesse da manutenção de seu próprio poder.

Na sequência, o ateniense propõe, em 698b, que se analise a constituição da

Ática. O intuito dessa análise é mostrar como se faz mister a existência de leis

coercíveis para provar que a liberdade plena sem os grilhões de qualquer autoridade

é sumariamente inferior a uma força de governo moderado sob o comando de

magistrados eleitos.

Essa ilação do ateniense corrobora com o nosso capitulo anterior e dá força

ao argumento apresentado por Glauco com a Exposição do Mito de Giges, disposto

no livro II de A República. A lição que se tira é a necessidade de criarmos leis

coercíveis no plano sensível.

Então, em 699b-c, o estrangeiro explica o motivo pelo qual, na guerra contra

os persas, os atenienses, sozinhos, conseguiram não ser aniquilados, pois em

matéria de refúgio contavam com eles próprios e com os deuses, “e foi assim que

tudo isso neles gerou uma amizade recíproca – tanto o medo que então os possuía

quanto aquele temor engendrado do passado e adquirido devido a sua sujeição às

leis mais antigas”.

Faz uma aproximação entre Atenas e o império persa no que diz respeito às

respectivas falhas na legislação: os atenienses dão liberdade demais à massa do

povo e os persas levam seu povo à escravidão extrema. Nesse sentido, “O

ateniense” afirma, em 700a, que “sob as antigas leis, meus amigos, nosso povo não

154 O ateniense: Declaramos, portanto, que um Estado que pretende durar e ser o mais feliz que for humanamente possível terá necessariamente que dispensar corretamente honras e desonras, sendo o modo correto o seguinte: deverá ser estabelecido que os bens da alma recebam as mais elevadas honras e venham em primeiro lugar desde que a alma seja detentora de temperança; em segundo lugar viriam as coisas boas e belas do corpo; e em terceiro lugar os chamados bens substanciais e propriedades. E se qualquer legislador ou Estado transgredir essas regras, seja atribuindo ao dinheiro o posto da honra, seja designando uma posição superior a uma das classes de bens inferiores, será responsável por infringir tanto o sagrado quanto o político.

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detinha controle sobre coisa alguma, mas era, por assim dizer, voluntariamente

escravo das leis”, inclusive das leis que proibiam “fixar um tipo de letra a um

diferente gênero de melodia”, em 700b, além de outras proibições. No entanto, com

o tempo surgiram compositores que começaram a transgredir essas leis e levar

todos a fazerem o mesmo. Portanto, não podemos ter leis tão livres como as de

Atenas, nem tão duras como a dos Persas.

Em 700e, 701a:155

O ateniense: (…) Como consequência, as plateias se tornaram loquazes em lugar de silenciosas, como se conhecessem a d i f e r e n ç a entre a música bela e a feia, e em lugar de uma aristocracia da música nasceu uma vil teatrocracia, pois se na música, e na música a p e n a s houvesse surgido uma democracia de homens livres, um tal resultado não teria sido tão seriamente alarmante; porém, da maneira que tudo aconteceu, na esteira da presunção universal da sabedoria total e do desprezo pela lei originados no âmbito da música veio a liberdade, como se crendo-se competentes os indivíduos perdessem o medo, o audácia gerando o atrevimento (…).

Assim, “O ateniense” fecha sua explanação afirmando “que o legislador tem

que visar em sua legislação três objetivos: a liberdade, a unidade e a racionalidade

do Estado para o qual legisla”, em 701d, e que a melhor forma de governo acontece

quando há uma devida medida de governo despótico e de governo da liberdade.

6.2.4 Livro IV – Os homens de virtude; O acaso e a ocasião; Formas de governo; “A

divindade é a medida de todas as coisas”; Deveres perante os pais; O legislador e o

médico e o prelúdio ou preâmbulo

“O ateniense” inicia o quarto livro indagando-se sobre o que virá a ser o novo

Estado, especificamente, uma vez que seu nome é menos importante, se esse

Estado deverá localizar-se no interior do continente ou na costa marítima.

Depois expõe que o Estado descrito por “Clínias”, ainda que possua portos

em um de seus lados, por localizar-se longe da costa, com autossuficiência para a

produção interna e sem outros Estados em suas proximidades, não seria

inadequado para a aquisição da virtude, como se verifica em 704d.

155 Aqui, novamente vemos uma clara referência à nocividade que os artistas, que não detém o conhecimento verdadeiro, podem causar em uma pólis com suas apresentações.

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O ateniense: (…) Então tal Estado não seria irremediavelmente inadequado para a aquisição da virtude, pois se tivesse que se localizar na costa marítima, dispor de bons portos, mas ser deficiente em muitos produtos em lugar de produzir tudo, necessitaria um poderoso preservador e legisladores divinos para, dotado de tais características, evitar uma multiplicidade de costumes tanto suntuosos quanto vis.

O estrangeiro ainda explica que num Estado onde se pretende adquirir

costumes nobres e justos a superfície acidentada é um fator benigno uma vez que

impede, embora produza tudo, a produção em abundância, o que impossibilita do

Estado se inundar de moedas de ouro e prata advindas da exportação. Outra

característica natural da região que será nociva ao Estado é a falta de material que

sirva para a construção de embarcações.

Depois de postular que uma lei é incorretamente promulgada quando não visa

à virtude ou quando tende apenas para uma parte dela, “O ateniense”, ilustra seu

argumento com o exemplo de quando Minos, que possuía uma frota naval muito

poderosa, submeteu todo o povo da Ática a pagar-lhe pesados tributos. Como os

áticos não possuíam arsenal de belonaves nem era rica de madeiras para a

construção destas, e consequentemente não conseguiam imitá-los, tornando-se um

povo de marinheiros, destituído de valores honrosos se curvando aos inimigos.

Com a citação de um trecho da Odisseia, em 706 e, em que Odisseu

repreende Agamenon por querer zarpar do litoral troiano, que indicaria um sinal de

covardia e redenção, argumenta que já em Homero se encontra a crítica à existência

de uma infantaria naval ao lado de soldados combatendo em terra. Em 707a:

O ateniense: Assim, também Homero estava ciente do fato de que trirremes alinhadas no mar nas proximidades da infantaria combatendo em terra não são boa coisa, pois até leões, se tivessem esses hábitos, acabariam se acostumam a fugir das corças! (...).

“Clínias”, no entanto, relembra-o de que foi a batalha naval em Salamina

(travada contra os bárbaros) que salvou a Grécia. Ao que “O ateniense” contra-

argumenta que foram as batalhas terrestres de início e término dessa mesma guerra

que lhes garantiram a vitória.

O estrangeiro retoma a discussão dizendo que o que se está analisando é

i) a excelência política;

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ii) o caráter natural de um país; e

iii) suas instituições legais.

Essa advertência serve para despertá-los que não se considera a mera

segurança e a manutenção da existência como o mais precioso a ser possuído pela

humanidade, mas sim a conquista de todo bem. Em 707c-d: “Mas visto que o nosso

presente objeto de discussão é a excelência política, o que estamos examinando é o

caráter natural de um país e suas instituições legais (…).”

Ele, então, questiona “Clínias” sobre qual povo deverá instalar-se no Estado:

O ateniense: Na sequência diz-me: qual é o povo a ser instalado? Será este constituído por todos aqueles que desejam deixar qualquer parte de Creta supondo que em cada uma das cidades a população tenha superado o número de cidadãos que o solo da região pode alimentar?

Em 708c-d, nota-se claramente que “O ateniense” pondera duas situações:

a) a primeira em que um povo homogêneo, que partilha da mesma raça,

língua e cultos religiosos, mais facilmente cria amizade dadas as suas semelhanças,

mas dificilmente aceita um conjunto de leis que difira das antigas que conhecem e

cultuam; e

b) a segunda, em que um grupo heterogêneo mais facilmente adapta-se a um

conjunto novo de leis, mas que é difícil fazê-los coparticipar num mesmo espírito.

A propósito da discussão sobre os legisladores, diz “O ateniense”: “Mas, em

verdade, a legislação e a fundação de Estados são empreendimentos que exigem

que homens aprimorem, acima de tudo, outros homens na virtude”, em 708d, diz

que estava na iminência de argumentar que nenhum ser humano mortal, no entanto,

produz qualquer lei, os assuntos humanos são quase todos produtos do puro acaso,

em 709a.156

“Ao acaso e à ocasião”, “o ateniense”, no entanto, ajunta-se a supremacia

divina em controlar ‘tudo o que é’ e a arte inerente a todos os ofícios, em 709b:

156 O ateniense: Eu estava na iminência de dizer que indivíduo humano algum jamais produz leis, mas que são os acasos e acidentes de todos os tipos, os quais ocorrem de todas as maneiras, que as produzem para nós – seja uma guerra que violentamente derruba governos e altera as leis, seja a penúria causada pela pobreza aviltante.

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O ateniense: Que há um deus que controla tudo que é, e que o acaso e a ocasião cooperam com esse deus no controle de todos os assuntos humanos. Será menos duro, entretanto, se admitirmos que esses dois elementos são acompanhados por um terceiro; a arte, pois em tempo de tormenta que a arte do timoneiro coopere com a ocasião (…).

Nesse momento “O ateniense” simula uma pergunta a ser feita ao legislador,

apto no desempenho da sua arte, sobre em que condições deve estar o Estado para

que ele possa legislar mais facilmente. Ao que ele próprio responde, em 709e:

O ateniense: Eis o que ele responderá: ‘dá-me o Estado com um soberano despótico e que este seja por natureza detentor de boa memória, jovem, dotado de facilidade de compreensão, coragem e maneiras nobres, e que aquela qualidade que anteriormente mencionamos acompanhe necessariamente todas as partes da virtude (...).

A partir de um engano de “Clínias” quanto à melhor forma de governo e a sua

sucessão, “O ateniense” se põe a discutir a hierarquia das formas de governo. E

assim a apresenta em 710e, considerando que a melhor forma de governo é a

monarquia despótica, seguida da monarquia constitucional, sucedida pela

democracia e em quarto lugar, a pior forma de governo é a oligarquia, pois considera

que é melhor a forma de governo, na qual existirem o menor número de

condutores.157

As mudanças necessárias ao melhor Estado são realizadas, portanto, quando

há um verdadeiro legislador e quando a sua opinião política é partilhada pelos

indivíduos mais poderosos.

Em 711c, afirma-se que: “Que ninguém, meus amigos, tente nos persuadir

que um Estado possa jamais alterar suas leis mais rápida ou facilmente por outro

meio além do norteamento pessoal dos governantes (…).”

“O ateniense” postula, então, o princípio da melhor legislação, em 712a:

“(…) sempre que o poder supremo reúne num indivíduo humano sabedoria e temperança, está plantada a semente da melhor

157 O ateniense: (…) O passo mais fácil é a partir de uma monarquia despótica, o próximo mais fácil de uma monarquia constitucional e o terceiro a partir de alguma forma de democracia. Uma oligarquia, que vem em quarto lugar na ordem, somente mediante a maior das dificuldades permitiria o desenvolvimento do melhor Estado já que é a forma de governo na qual existe maior número de condutores.

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constituição e da melhor legislação, e de nenhuma outra maneira chegar-se-á a isto.” (grifo nosso.)

Dá-se então a narrativa do mito da idade de ouro (uma era venturosa na qual

a vida humana era suprida em abundância e sem que se precisasse trabalhar por

isso), mas em que a responsabilidade pelo governo da sociedade (dado que Cronos

entendia que o poder nas mãos do homem é corruptível) fora entregue a uma

divindade (os dáimons). Uma raça superior, assim, governava sobre uma inferior,

preservando-lhe a felicidade. “O ateniense” conclui, em 713e, 714a:

O ateniense: (…) tal como a tradição a retrata, ordenando tanto nossos lares quanto nossos Estados segundo o acatamento ao elemento imortal no nosso interior, dando a essa ordenação da razão o nome de lei. Mas se um indivíduo humano, uma oligarquia ou uma democracia encerram uma alma que se empenha pelos prazeres e apetites, buscando empanturrar-se deles, incapaz de continência e presa de um mal interminável e insaciável, se uma autoridade de tal espécie, chegar a governar um Estado ou indivíduo pisando sobre as leis, então não haverá (como eu disse há pouco) nenhum meio de salvação.

De acordo com o estrangeiro, um governo não produz leis que não garantam

a sua permanência no poder. Sendo assim, em 714d, explica: “(...) o legislador

classificará como justas as leis assim promulgadas, punindo todos aqueles que as

violem como culpados de injustiça”.

Para impedir que haja luta pelo poder, “O ateniense” argumenta em 715c

sobre como devem ser organizados os cargos aos homens:

O ateniense: Os cargos deverão caber aos homens que se destacam na obediência às leis e estendem esta vitória ao Estado, o mais elevado cargo (o serviço aos deuses) ao primeiro destes, o segundo cargo ao segundo destes, e os demais cargos sendo necessariamente distribuídos de maneira análoga e sucessivamente a todos esses homens.

“Clínias” e “O ateniense”, então, simulam que os imigrantes desse grandioso

Estado a se formar chegam, e começam a dizer-lhes como devem se portar perante

a divindade. Afirma que “(...) a divindade será ‘a medida de todas as coisas’ no mais

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alto grau – um grau muito mais alto do que aquele em que está qualquer ‘ser

humano’ (...)”,158 em 716c-d:

O ateniense: Aquele, portanto, que pretende se tornar caro a um tal ser precisa se empenhar com todas as suas forças para se tornar na medida do possível, de um caráter semelhante, e de acordo com o presente raciocínio aquele que entre nós é temperante será caro ao deus, já que é semelhante a ele, enquanto aquele que não é temperante será dessemelhante e hostil a ele – como também aquele que é injusto, e assim e modo análogo com o restante, por paridade de raciocínio.

Assim sendo, “O ateniense” lista os deveres para com o culto dos deuses, o

resgate a idade de ouro, o culto aos dáimons e aos heróis. Aqui está o cerne da

teoria jusnaturalista em Platão, isso porque este acredita que somente em deus, e

nesse contato com o divino, é possível acessar a lei justa.

Segue-se a relação de deveres perante os pais, a necessidade de respeitá-

los acima de todas as coisas e de prestar-lhes honras enquanto vivos, bem como de

oferecer-lhes a melhor possível das cerimônias fúnebres, quando falecidos. Dever-

se-á sempre venerá-los, mantendo viva a memória deles quando se vão. Segue-se a

isso as obrigações com os filhos, parentes, amigos, concidadãos que devem ser

obedecidas de acordo com as regras da hospitalidade e punidas através da

aplicação da lei.

O estrangeiro, então, apresenta outras matérias sobre as quais o legislador

terá que regulamentar, ainda que não necessariamente se prestem bem a uma

formulação sob a forma de lei, em 718c: “Não é nada fácil abarcá-las todas num, por

assim dizer, modelo único de formulação; mas tentemos pensá-las de uma tal

maneira, já que contamos com a possibilidade de conseguirmos afirmar algo

definitivo a respeito delas”.

Depois, adverte que a obra dos poetas não deve ser admitida sem controle

pelo legislador uma vez que, através da imitação (mimesis), o poeta evidencia tanto

os bons quanto os maus costumes. O legislador, por sua vez, não pode realizar mais

de uma postulação de conduta, devendo a mais ponderada delas tornar-se lei.

158 Clara referência aos sofistas, em especial a Protágoras que afirmava que o “homem é a medida de todas as coisas”.

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À maneira do ofício dos médicos, “O ateniense” versa sobre como há dois

tipos de métodos na aplicação da legislação, o simples e o duplo, o primeiro sendo

aquele que apenas postula a lei e a sua punição caso descumprida; e o segundo,

aquele que, além de apresentar a coibição a um comportamento ilegal, antes,

persuade sobre os motivos por que não realizá-lo.159

O estrangeiro nota mais um terceiro requisito que deve estar presente nas

leis, o prelúdio ou preâmbulo às legislações. Tudo o que disseram até o momento

não passou de prelúdio às leis, sem que tenham de fato começado a postulá-las. No

entanto, segundo ele, em 722d: “(…) todo discurso e toda expressão vocal contam

com prelúdios e preliminares que produzem uma espécie de preparação em apoio

ao desenvolvimento posterior do assunto”.

E continua em 723a-b: “Assegurar que a pessoa a quem o legislador

endereça a lei aceite a prescrição com tranquilidade, e devido a esta tranquilidade a

aceite com docilidade era, eu supunha, o conspícuo objetivo do orador ao proferir

seu persuasivo discurso”.

Assim sendo, o prelúdio às leis é constituinte das verdadeiras leis políticas, e

ele deve ser deixado, em cada caso, a critério do legislador.

No epílogo, o estrangeiro ressalta ser necessário agora discutir o grau de zelo

ou negligência que as pessoas devem utilizar em relação as suas almas, seus

corpos e seus bens. E é a discussão que seguirá no próximo livro, em 724a-b.160

159 720e: O ateniense: Qual dessas duas formas da medicina revela o melhor médico, e em matéria de treinamento, o melhor treinador? Deverá o médico executar uma única função idêntica de duas maneiras ou de uma maneira apenas, e neste caso a pior maneira das duas e a menos humana? Clínias: Acredito, estrangeiro, que o método duplo é sem dúvida o melhor. O ateniense: Desejarias que examinássemos o método duplo e o simples também em sua aplicação nas legislações? Clínias: Com toda a certeza eu o desejaria. 160 O ateniense: Bem, com certeza é conveniente e do maior interesse comum que, juntamente com os assuntos mencionados, o orador e seus ouvintes tratassem da questão do grau de zelo ou negligência que as pessoas devem utilizar com respeito às suas almas, seus corpos e seus bens, e sobre isto ponderar e assim ampliar sua educação na medida do possível. E precisamente esta a formulação que precisamos realmente fazer e escutar a seguir.

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6.2.5 Livro V – A alma e o julgamento, os bens, o corpo, a vida digna; sanções de

origem humana, organização do Estado, distribuição da renda; santuário e deuses;

graus de excelência das constituições

O quinto livro apresenta-se como um longo monólogo do estrangeiro

ateniense (à parte o último comentário de “Clínias” ao final do livro).161 Ele começa

apontando a ordem em que devem ser honrados os bens dos seres humanos. E

exemplifica, em 727b-c:

O ateniense: (…) quando um ser humano imputa sempre a outros e não a si mesmo a responsabilidade por suas faltas e a dos males mais numerosos e mais graves, isentando-se a si mesmo sempre da culpa, imaginando que, mediante isso está honrando sua própria alma, não o estará fazendo de, modo algum, e sim a ofendendo. E quando alguém cede aos prazeres contrários ao conselho e recomendação do legislador, também não está honrando sua alma, mas sim a desonrando ao carregá-la de infortúnios e remorsos; e ainda no caso oposto, quando se recomendam esforços, temores, dificuldades e dores e o ser humano se esquiva a estes em lugar de suportá-los com firmeza, tal esquivamento não confere honra nenhuma a sua alma pois mediante todas essas ações ele a deprecia.

Para “O ateniense”, é a própria alma que nos dota da capacidade de

julgamento, verifica-se em 728d: “(...) nada mais apropriado do que a alma para

evitar o mal, localizar e aprender tudo que há de melhor, e depois de apreendê-lo

viver com isso pelo resto de sua vida, pelo que a alma está classificada em segundo

lugar na ordem das honras”.

Sendo o primeiro dos bens os deuses, o segundo, a alma, o estrangeiro

passa então a discorrer sobre o terceiro: o corpo. E, para ele, a função do legislador

é investigar quais as formas genuínas e falsas das honras do corpo, em 728d, 729a:

O ateniense: Ora, ele – suponho – declara que as honras são as seguintes e dos seguintes tipos; o corpo digno de apreço não é o corpo belo, o forte, o célere, nem o grande e nem mesmo o corpo saudável, embora muitos creiam nisto; não é tampouco o corpo que reúne as qualidades opostas a estas. Os corpos que ocupam a posição mediana entre todos esses extremos opostos são, com larga vantagem, os de maior temperança e estabilidade pois se um extremo torna as almas soberbas e orgulhosas, o outro as torna vis e mesquinhas. O mesmo se aplica à posse de bens e riquezas, devendo estes ser valorados numa escala similar; quando

161 747e: “Clínias: Disseste-o bem, estrangeiro, e devo fazer como aconselhaste”.

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excessivos, geram animosidades e conflitos tanto no Estado como no âmbito particular e quando deficientes geram, via de regra, servidão.162

Após essa analogia entre a posse de bens e riqueza com as qualidades do

corpo, “O ateniense” passa a discorrer sobre a educação dos jovens. Lembra então,

em 729b-c:

O ateniense: O legislador prudente deverá, antes, advertir as pessoas mais velhas para que respeitem os jovens e, acima de, tudo, se acautelem para não serem jamais surpreendidas por um jovem fazendo ou dizendo algo vergonhoso, pois ali onde os velhos são impudentes, os jovens fatalmente o serão ainda mais: o modo mais eficiente de educar os jovens – bem como as próprias pessoas mais velhas – não é repreender mas sim simplesmente, praticar por toda nossa vida aquilo pelo que repreendemos os outros.

Em seguida, “O ateniense” passa a discorrer sobre como os cidadãos devem

se relacionar entre si e com os estrangeiros, ou os deuses podem intervir. E então

explicita o caráter de uma vida digna:

− Dizer a verdade e, mais digno ainda, vigiar para que os outros também

o façam (730c-d);

− Ambicionar a conquista da virtude sem, para isso, maledizer os outros

(731);

− Conter e abrandar a cólera contra os cometedores de erros e dar livre

curso à ira contra o perverso e irrecuperável (731b-d);

− Amar-se a si mesmo moderadamente para evitar os maus julgamentos

(731e, 732 b);

− Todo homem tentar dissimular toda exibição dos extremos de alegria e

tristeza e cobrar dos outros homens a mesma postura (732c-d).

Após ter tratado das regras de sanção divina, “O ateniense” passa a formular

aquelas de origem humana: prazeres, dores e desejos. Percebe-se em 732e, 733a:

O ateniense: (…) deve-se recomendar a vida mais nobre não só porque exteriormente seja superior em termos de boa reputação, mas também porque se alguém consente em gozá-la e não evitá-la

162 Essa posição muito se assemelha ao meio termo proposto por Aristóteles em sua obra Ética a Nicômaco. Brasília: UnB, 1997 (1106a-b). Além de Aristóteles, Pitágoras, como vimos, oferece sua teoria baseada na matemática e na busca do termo do meio.

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na juventude, será igualmente superior naquilo que todos os indivíduos humanos cobiçam: o máximo de prazer e o mínimo de dor ao longo de toda a existência.

E, para entender como é essa vida mais nobre, ele indica os tipos de vidas

possíveis de serem vividas: a da temperança, do sábio, do corajoso e a saudável; e

seus tipos opostos, a do tolo, do covarde, do licencioso e do enfermo. De onde ele

conclui que a vida da temperança proporciona prazeres brandos bem como dores

brandas, onde os prazeres têm maior peso que as dores. Em 734b:

(...) ficando claro agora (se acertado for o nosso argumento) que para ninguém é possível ser licencioso voluntariamente, ou seja, é devido à ignorância ou à incontinência, ou devido a ambas que a maioria esmagadora da humanidade vive vidas nas quais a temperança está ausente.

Assim, rapidamente, conclui, em 734c-d:

(...) Afirmaremos, então, que já que a vida de temperança abriga sentimentos mais modestos, mais escassos e mais leves que a vida licenciosa, o mesmo acontecendo com a vida do sábio em relação à vida do tolo, e com a do corajoso em relação à vida do covarde, e já que uma vida é superior à outra em prazer, mas inferior em dor, a vida do corajoso triunfa sobre a do covarde e a do sábio sobre a do tolo.

Com tal postulado, encerra o que chamou de “o prelúdio de nossas leis” e vai

passar agora a elaborar seus argumentos para a organização do Estado.

Considera as diferentes formas de depuração (isto é, a correção aos

indivíduos malfeitores), mesmo que afirme que, para o novo Estado, não há ainda a

necessidade de impô-las aos cidadãos. Em 735d, 736a:

O ateniense: A melhor depuração é dolorosa, como todos os medicamentos efetivamente eficazes (são amargos): é aquela que arrasta as punições por meio da justiça associada à vingança, esta coroando com o exílio ou a morte; esta depuração, via de regra, afasta os maiores criminosos que são irrecuperáveis e causadores de sérios danos ao Estado. Uma forma mais suave de depuração é a seguinte: quando devido à escassez de alimento os carentes se predispõem a seguir líderes que os conduzem ao saque das propriedades dos ricos, o legislador pode considerá-los como um mal inerente à cidade e despachá-los para o exterior o mais delicadamente possível, usando um eufemismo emigração para designar sua evacuação.

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Também é motivo de boa sorte que o novo Estado não enfrente o conflito

brutal e perigoso concernente à distribuição da terra e do dinheiro. Em 736c-d.163

O meio para se escapar dessa situação, caso ela se coloque, “consiste em

renunciar à avareza com a ajuda da justiça”, em 737. E, continua, que esse princípio

se torne pré-fixado, a saber, que a distribuição dos bens dos cidadãos deverá se dar

de forma que não suscite nunca conflitos internos.

O que seria, portanto, o planejamento para uma correta distribuição é, em

primeiro lugar, a fixação do número total de cidadãos. Em seguida é necessário que

se chegue a um consenso quanto à sua distribuição em classes e qual a sua

dimensão. Depois, dever-se-á distribuir da maneira mais justa terras e habitações,

traçando inícios para uma visão comunista.

Agora, dispõe acerca do número moderado e ideal de habitantes, 5040, e o

motivo matemático que o justifica, em 737d, 738b.164

Passa então a discorrer sobre como o legislador deve dividir os santuários e

os deuses e dáimons a serem adorados de forma equânime, e de acordo com as

orientações dos oráculos, ao longo do território do Estado, em 738d.

O próximo passo no estabelecimento das leis é a análise e a proposição da

hierarquia das constituições. Apresenta um plano em que podemos indicar as

constituições divididas em três graus de excelência,165 em 739b. A primeira delas

sendo a em que mais claramente se possa observar o dito “amigos têm todas as

163 O ateniense: Pois quando um Estado se vê constrangido a legislar o assunto dessa disputa não é capaz nem de deixar inalterados os interesses assentados nem alterá-los de alguma forma, não lhe restando meio algum a não ser o que poderíamos chamar de piedosa aspiração e mudança cautelosa, pouco a pouco estendidas sobre um longo período (…). 164 O ateniense: Suponhamos que haja – como um número adequado – 5040 habitantes a serem detentores de terras e defensores de seus lotes, a terra e as habitações sendo divididas igualmente no mesmo número de partes, um homem e seu lote formando um par. Comecemos por dividir o número total por dois, depois o dividamos por três, e em seguida na ordem natural por quatro, cinco e assim por diante até dez. No que concerne, a números, todo homem que está produzindo leis tem que entender ao menos qual número e qual tipo de número será o mais útil a todos os Estados. Escolhamos aquele que contém as mais numerosas e mais consecutivas subdivisões. A série numérica completa compreende todas as divisões para todos os propósitos, enquanto o número 5040, seja visando à guerra, seja visando a todos os propósitos da paz ligados a contribuições e distribuições, admite como divisores não mais que 59 divisores, sendo estes consecutivos de um a dez. 165 “Essa constituição de que agora nos ocupamos, se viesse a ser, seria muito próxima da imortalidade e viria em segundo lugar do ponto de vista do mérito. O que viria em terceiro nós o investigaremos na seqüência, se a divindade assim o quiser; mas por ora, nos perguntamos, qual é a segunda melhor constituição e como poderia assumir um tal caráter?” Embora faça menção a uma terceira constituição não a detalha nesta obra.

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coisas realmente em comum”, em 739a-d. Essa constituição refere-se a uma

organização perfeita, tão verdadeira e excelente que ninguém jamais formularia

outra definição. Nesta perspectiva, viveriam apenas os “deuses ou filhos de deuses

– os habitantes viveriam agradavelmente segundo esses princípios (...) devendo nós

sim nos aferrarmos a esse e com todas as nossas forças procurarmos a constituição

que a ele se assemelhe o máximo possível.

Essa primeira constituição trata da proposta de uma constituição inteligível, ou

seja, algo que reside no campo inatingível para o corpo e, consequentemente, para

a organização da pólis. Entretanto, a fala do ateniense deixa uma indicação de

buscarmos uma constituição que muito se assemelhe com essa, ou seja, devemos

nos inspirar na organização dos deuses para que possamos fazer uma mimeses

dessa perfeição.

Quanto ao segundo tipo de constituição Platão mostra que a ideia de

propriedade particular é algo avesso a sua teoria. Em 739e-740a, diz o que segue:

O ateniense: (…) Que nossos colonos dividam a terra e as habitações mas não cultivem a terra em comum, visto que uma tal prática estaria além da capacidade de pessoas do nascimento, formação e treinamento que supomos. E que a distribuição seja feita com esta intenção, ou seja, que o homem que recebe seu lote ainda assim o considere como propriedade comum de todo o Estado e que cuide da terra, que é sua terra natal, com maior diligência do que uma mãe cuida de seus filhos (...).

Ainda em relação à segunda melhor constituição, o princípio de manutenção

do número de habitantes deve sempre ser preservado, recorrendo-se à métodos de

controle populacional tanto para o excesso, quanto para a escassez. Passa-se a

discorrer sobre as propriedades ruins do lucro excessivo e sobre que leis deverão

ser redigidas para que se regule a prática do comércio, em 742a:

O ateniense: (…) segue-se ainda uma lei que proíbe a todo cidadão a posse particular de ouro e prata, à exceção de moedas para as permutas diárias, o que é praticamente indispensável aos artesãos e a todos aqueles que precisam dessas coisas para pagar os mercenários, escravos ou imigrantes. Por essas razões afirmamos que nosso povo deveria possuir moeda cunhada com valor circulante legal entre seus integrantes, mas sem valor alhures.

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Ele continua discorrendo sobre o tópico e conclui, em 743c: “Tudo isto

comprova a veracidade do que afirmamos, ou seja, que os muito ricos não são bons

e não sendo bons tampouco são felizes”.166

A forma de governo, portanto, terá suas leis corretamente formuladas se

prescrever as honras seguindo a ordem de importância que ele descreve; de todos

os três objetos que interessam a todo indivíduo, o interesse pelo dinheiro deve ser o

terceiro, depois, em segundo, o interesse pelo corpo, e em primeiro o interesse pela

alma.

Posteriormente o estrangeiro passa a discorrer sobre a organização interna

do Estado, e sobre como, para garantir chances iguais na vida pública, deve-se

dividir os cidadãos em quatro classes.

É necessário ao Estado não permitir que nenhum dos seus cidadãos desfrute

de uma condição de penúria ou de riqueza, cabendo ao legislador declarar o limite

para ambas as condições. O limite da pobreza e da riqueza é traçado em relação ao

valor do lote (o máximo de riqueza permitida sendo até quatro vezes maior do que o

valor do lote e o da pobreza não podendo ser inferior a um lote). Caso algum

cidadão, por qualquer motivo, venha a receber uma fortuna, deve doar o excedente

ao Estado sob a pena de multa. Em 745a: “(...) se doar o excedente ao Estado e aos

deuses que zelam pelo Estado, será alvo de boa estima e estará isento de punição

(…)”.

A seguir, discorre sobre a situação da cidade e a divisão do conjunto do

território e da disposição dos cidadãos nesses territórios, nos termos especificados

em 745b-e.

Na sequência ele prevê as críticas que tal organização tão rígida poderia

acarretar, em 745e, 746b:

O ateniense: Mas temos de todo modo que observar isto, ou seja, que todas as disposições que foram agora descritas provavelmente jamais encontrarão tais condições favoráveis de maneira a todo o

166 Tal afirmação nos remete a assertiva aristotélica em 1094a de Ética a Nicômaco: “o bem é aquilo que todas as coisas visam” e que o maior bem de todas as coisas é a eudaimonia, ou seja, na riqueza financeira não reside a felicidade plena. Como é cediço, Aristóteles crê que a ética consiste no caminho, como postura de vida, para a busca da felicidade, por conseguinte uma das virtudes da alma que residem na ética é a excelência moral que tem como um de seus pressupostos o termo do meio. No exemplo em epigrafe, ser rico não está no termo do meio e, portanto, se torna uma deficiência moral.

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programa poder ser implantado de acordo com o plano, o que requereria que todos os cidadãos não apresentassem objeções a um tal modo de vida conjunta e tolerassem estar restritos a vida inteira a quantidades fixas e limitadas de bens e ao tipo de estrutura familiar que mencionamos, e estar privados de ouro e das outras coisas em relação às quais o legislador está claramente obrigado por nossas regras a proibir, tendo também (os cidadãos) que se submeterem aos arranjos que o legislador determinou para o território todo inclusive a cidade, com as moradias instaladas no centro e em círculo- quase como se ele estivesse contando meramente sonhos ou modelando, por assim dizer, uma cidade e cidadãos de cera.

Ao que ele contra-argumenta que a prerrogativa do legislador deve ser

sempre tentar, ao máximo possível, a aproximação desses ideais, uma vez que em

qualquer tarefa, como a do artesão, por exemplo, tem-se que produzir a obra em

todos os pontos coerente consigo mesmo.

Então, explica a utilidade geral da matemática e afirma que o legislador

deverá ter isso em mente e prescrever esse conhecimento aos cidadãos: “nenhum

ramo isolado da educação detém uma influência tão grande quanto o estudo dos

números”, em 747b.

Ao discorrer sobre os benefícios do conhecimento das artes divinas (de que a

matemática participa), “O ateniense” fecha o livro argumentando sobre as diferenças

dos povos de região para região, aconselhando a “Clínias” que dê atenção a esse

aspecto, em 747d-e:

O ateniense: (…) Pois isto igualmente, Megilo e Clínias, constitui um ponto que não podemos deixar de notar, ou seja, que alguns locais são naturalmente superiores a outros para gerarem indivíduos humanos de uma índole boa ou má, diferença natural contra a qual nossa legislação não pode se chocar. Alguns locais são desfavoráveis ou favoráveis em função de ventos de diversos tipos ou ondas de calor produzidas pelos raios solares, outros devido às suas águas, outros por causa simplesmente dos produtos do solo, o que significa boa ou má nutrição para os corpos, sendo igualmente capazes de provocar resultados similares também nas almas.

Assim, o longo monólogo do quinto livro apresenta a questão dos bens, a

saúde do corpo, a vida digna e propõe uma organização social com uma distribuição

de rendas a fim de diminuir as desigualdades em uma clara possibilidade de se

denotar um pensamento embrionário do comunismo.

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6.2.6 Livro VI – A escolha, os tipos e a importância do magistrado; votações para os

cargos da nova constituição, Estado e Religião, casamento; escravo, equiparação da

mulher face ao homem; a procriação

O Livro VI propõe a discussão de como deverá o Estado ser organizado e,

nessa tentativa, deixa claro que se faz necessário que os magistrados devem ser

definidos juntamente com suas funções especificas e também que se estruture as

leis diante desses magistrados. Percebe-se a preocupação tomando forma em 751c-

d:

O ateniense: Percebes que é necessário, em primeiro lugar, que para ter legítimo acesso aos cargos oficiais os candidatos deverão em todos os casos ser completamente testados – tanto eles como suas famílias – desde sua infância até a data de sua eleição; em segundo lugar, que seus eleitores tenham sido educados segundo o acato à lei (…).

Logo depois, o estrangeiro ateniense e Clínias se expressam quanto à

aceitação da sociedade diante das novas leis propostas e seus magistrados.

Pensam que essa aceitação não será imediata, mas que se a partir do momento que

forem criadas as novas crianças incorporarem essa nova organização e passarem à

frente, o Estado será algo criado com bases sólidas e se manterá assim, em 752b-

c.167

“Clínias”, então, discorre sobre a importância de que os primeiros oficiais a

ocuparem os magistrados, ou seja, “os guardiões das leis”, sejam escolhidos com a

máxima atenção e excelência. Nota-se em 752d-e:

Clínias: (…) como deveis também tomar o máximo cuidado para que os primeiros a ocuparem os cargos oficiais sejam nomeados do modo melhor e mais seguro possível. A seleção dos demais será uma tarefa menos séria, mas é imperioso que escolheis vossos guardiões da lei em primeiro lugar mediante extremado cuidado.

167 O ateniense: O fato de estarmos legislando para homens inexperientes sem recear se aceitarão as leis agora promulgadas. Uma coisa é, ao menos, evidente, Clínias, para todos – mesmo para a mente menos brilhante – ou seja, que não acolherão prontamente nenhuma dessas leis no início; porém, se essas leis puderem ser preservadas incólumes até que aqueles que as assimilaram na infância e que foram educados segundo elas e se tornaram plenamente habituados a elas participem das eleições às magistraturas em todas as partes do Estado – então, quando isso tiver ocorrido (na hipótese de se encontrar algum meio ou método para fazer com que ocorra acertadamente), teremos, a meu ver, uma sólida certeza de que após esse período de transição de disciplinada adolescência, o Estado se manterá firme.

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Mais tarde, “O ateniense” dispõe sobre as formalidades que serão seguidas

na nova Constituição. Pode-se observar em 753b-e:

O ateniense: Posteriormente, no caso da permanência da constituição, a seleção dos magistrados ocorrerá da seguinte forma: da seleção irão participar todos aqueles que portam armas como integrantes da cavalaria ou infantaria ou aqueles que serviram na guerra se sua idade e capacidade o permitirem; eles realizarão a eleição no santuário que o Estado considerará o mais sagrado e cada um levará ao altar do deus168, escrito numa tabuinha, o nome de seu candidato, incluindo o nome do pai deste, o de sua tribo e do demo a que pertence e, além disso, incluirá seu próprio nome da mesma maneira.

(…) Em seguida os cidadãos votarão novamente de maneira idêntica nos trezentos indicados de acordo com suas preferências. Os magistrados, mais uma vez, exibirão publicamente os nomes dos primeiros indicados, desta vez até o número de cem.

(…) além disso homens de modo algum medíocres, mas do maior mérito possível; pois, como diz o provérbio, “um bom começo já é a metade ela operação”, e todos os bons começo atraem a unanimidade dos elogios; em verdade, pelo que me parece, aí reside mais do que a metade e um bom começo nunca recebeu suficientes elogios (…).

Ainda, na configuração das funções dos guardiões das leis, o estrangeiro

observa como o novo Cnossos, Estado de Clínias, deverá se comportar, em 754d.169

Quanto aos estrategos, isto é, os comandantes dos exércitos, em 755c, “O

ateniense” fala sobre como serão selecionados.170

Há ainda a necessidade de se estabelecer, além de como será a eleição dos

prítanes, ou seja, magistrados supremos, e do Conselho, como ficarão delineados

os papéis dos hoplitas (soldado da infantaria pesada), dos cavaleiros e dos hiparcas

(general da cavalaria). Nota-se em 755e, 756a:

O ateniense: Antes da eleição dos prítanes e do conselho, uma assembleia será provisoriamente convocada pelos guardiões das

168 Aqui fica clara a ideia de buscar a inspiração divina para organizar a cidade. 169 O ateniense: Isto feito, deverão os cnossianos voltar a viver em Cnossos, o jovem Estado devendo empreender seus próprios esforços para assegurar-se segurança e sucesso. Quanto aos que integram os trinta e sete, tanto agora quanto no porvir que nós os elejamos pura as seguintes atribuições: em primeiro lugar deverão atuar como guardiões das leis e em segundo lugar como guardiões dos documentos onde cada um deverá fazer constar para os magistrados o montante de seus bens (…). 170 O ateniense: Os estrategos devem ser selecionados na sequência e como seus subordinados para fins militares os hiparcas, os filarcas e os oficiais-ordenadores das fileiras de infantaria recrutadas nas tribos, para os quais a designação de taxiarcas, que é aliás o próprio nome que muitos lhes dão, seria particularmente apropriada.

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leis no sítio mais sagrado e mais espaçoso possível para aí acomodar, de um lado, os hoplitas; do outro, os cavaleiros e, numa terceira posição, próxima a estes últimos, todos aqueles que pertencem às tropas militares. (…) Só nos resta a indicação dos hiparcas, que serão indicados pelas mesmas pessoas que indicaram os estrategos, o sistema de eleição e a contra indicação, sendo idênticos aos dos estrategos (…).

Depois, há um longo discurso sobre a forma que será adotada a respeito das

votações para os cargos da nova Constituição e, então, “O ateniense” conclui, em

756e, 757a que tal sistema:

“(...) de seleção dos magistrados consistirá num meio termo entre as constituições monárquica e democrática e a meio caminho entre estas deve estar sempre nossa constituição, pois entre escravos e senhores jamais haverá amizade e nem entre patifes e homens honestos, mesmo optando ocuparem posições com direito de igualdade visto que quando se concede a igualdade às coisas desiguais, o resultado será desigual a não ser que se aplique a devida medida, e é por causa dessas duas condições que as cisões estão maciçamente presentes nos regimes políticos.”171

Em 759a, encontra-se a maneira como a manutenção dos templos deverá ser

alcançada e de como a prevenção dos delitos dos seres humanos, a preservação

das vias e edifícios, e da ordem nos limites das cidades se estabelecerão. Então,

aparecem mais funções para os específicos ofícios, os astínomos e os agorânomos:

O ateniense: Digamos agora que, em relação aos templos, teremos que contar com guardiões, sacerdotes e sacerdotisas; para a manutenção da ordem das vias e edifícios, a prevenção de atos danosos de seres humanos e animais selvagens e a preservação da devida ordem a ser observada nos limites da cidade e nos subúrbios teremos que selecionar três tipos de magistrados; chamaremos de astínomos aqueles que se ocuparão das tarefas que acabamos de mencionar e de agorânomos aqueles que cuidarão da manutenção da ordem na ágora os sacerdotes ou sacerdotisas dos templos que detêm sacerdócios hereditários não serão afetados por nossas disposições, mas se – como muito provavelmente é o caso no que se refere a isso com um povo que está sendo organizado pela primeira vez – inexistir um corpo sacerdotal ou houver apenas alguns sacerdotes, teremos que, estabelecer um corpo sacerdotal composto de sacerdotes e sacerdotisas que serão guardiões dos templos para os deuses. No estabelecimento de todas essas magistraturas. (...) Quanto aos sacerdotes, confiaremos ao próprio deus (assegurando o próprio prazer deste) a escolha, efetuando a seleção por sorteio e assim

171 Daqui podemos inferir a máxima “tratar igualmente os iguais, desigualmente os desiguais na medida de suas desigualdades”. Tal questão foi tratada posteriormente por Aristóteles com relação a equidade e a metáfora da régua de Lesbos (Ética a Nicômaco, 1137b).

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deixando a sua indicação a critério da sorte divina; mas, de qualquer modo submeteremos o eleito do deus ao devido teste (exame) (...).172

Os pensadores continuam na mesma seara, discutindo sobre as formalidades

aplicadas à nova Constituição e sobre os cargos dos magistrados. Posteriormente,

“O ateniense” retoma a discussão sobre os agorânomos e os astínomos. Percebe-se

em 763c-d:

O ateniense: A próxima etapa na nossa seleção de magistrados se refere aos agorânomos e astínomos. Aos sessenta agorânomos (guardiões do campo) corresponderão três astínomos, que dividirão as doze porções da cidade em três partes e imitarão os agrônomos no cuidado das ruas da cidade e das várias estradas que penetram na cidade vindo do campo, e dos edifícios, de maneira que tudo isso se conforme às exigências da lei (…).

Mais à frente, o estrangeiro salienta a importância da boa escolha dos

magistrados da área da educação da música e para aqueles que serão

responsáveis pelo ensino da ginástica, ou seja, dos exercícios físicos, tão prezados

em um Estado bélico, em 764c.173

Segue-se a conversa no sentido de dar corpo à Constituição. Então, surge

uma nova questão. Depois de tantas configurações em relação aos cargos dos

magistrados, ainda resta o que estabelecer, o cargo de diretor geral da educação.

Vê-se em 765d:

O ateniense: No setor de que estamos nos ocupando resta ainda um magistrado a ser definido, ou seja, o diretor geral de toda a educação de membros dos dois sexos. Neste caso haverá um magistrado legalmente selecionado, que não deverá ter menos de cinquenta anos e que terá que ser pai de filhos legítimos de um sexo ou outro, ou de preferência de ambos.

“O ateniense” atenta para um importante conceito em relação a um juiz

virtuoso ou não, que suas qualidades devem ser primorosas, principalmente sua

oratória. Em 766d:

172 Essa proposta visa criar três tipos de guardas, os das mercadorias (os agorânomos), os da cidade (os astínomos) e dos templos dos deuses (sacerdotes). 173 O ateniense: Será conveniente indicar a seguir os magistrados que se incumbirão da música e da ginástica, que serão de dois tipos para cada setor – o magistrado educador e o magistrado controlador das competições. A lei entende por magistrados educadores os supervisores dos ginásios e escolas, que estão encarregados tanto da disciplina e do ensino quanto do controle dos comparecimentos e da acomodação de meninos e meninas.

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O ateniense: Um Estado, de fato, não seria um Estado se não possuísse tribunais adequadamente organizados, mas um juiz que fosse mudo ou que dissesse tão pouco quanto partes em litígio numa instrução preliminar, como fazem os responsáveis pela arbitragem, nunca estará qualificado para distribuir justiça; por conseguinte, não será fácil para uma grande ou pequena equipe de homens julgar bem se forem pouco capacitados.

No que diz respeito à atenção religiosa, o estrangeiro acha de suma

importância preservar a religiosidade na feitura das bases constitucionais. Recorda

mais uma vez o número ideal de habitantes para designar conceitos. Nota-se em

771a-b.174

Preocupado com o espírito de confraternização na sociedade, “O ateniense”

enfatiza o sentido da atmosfera religiosa. Tem-se em 771d-e:

O ateniense: O objetivo em pauta será, primeiramente, oferecer ação de graças aos deuses e servi-los, e em segundo lugar, fomentar entre nós a camaradagem, a mútua familiarização e todas as formas de relacionamento pois, visando à camaradagem e às uniões matrimoniais, será necessário eliminar a ignorância tanto da parte do marido em referência à mulher que desposa e a família da qual ele provém como da parte do pai com referência ao homem ao qual está dando sua filha em casamento.

Em relação à legislação do casamento, o estrangeiro ateniense assevera, em

772d-e:

O ateniense: Quando um homem de vinte e cinco anos de idade, após observação dos outros e depois de ter sido objeto da observação dos outros, acredita ter encontrado em algum lugar uma companheira do seu gosto e adequada para a procriação de filhos, ele se casará, sempre antes de completar trinta e cinco anos (…).

Analisando a pauta do matrimônio, surge mais um tema para análise, a

proibição do dote. A discussão de desenrola em 774c:

O ateniense: No que concerne ao dote, foi afirmado anteriormente, e será afirmado novamente, que um intercâmbio igualitário consiste em nem dar nem receber qualquer presente, nem é provável que dentre os cidadãos os pobres permaneçam nessa condição solteiros

174 O ateniense: Como ponto de partida das leis que se seguem devemos nos ocupar das coisas sagradas. Tomemos novamente o número 5040 e o número de subdivisões convenientes que descobrimos que ele contém tanto como inteiro quanto quando dividido em tribos. (…) todo Estado é guiado pelo seu instinto a preservar a sacralidade dessas divisões, embora algumas pessoas tenham possivelmente feito suas divisões mais corretamente que outras, ou as tenham consagrado com maior felicidade.

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até a velhice por falta de recursos, pois cm nosso Estado todos terão o necessário para a vida, e o resultado dessa regra será menos insolência por parte das esposas e menos humilhação e servilismo da parte do marido por causa de dinheiro.

Posteriormente, mais um desafio vem à tona, a questão de os filhos, após a

decisão do matrimônio, terem que se separar dos pais. Encontra-se em 775e,

776a.175

A discussão tem continuidade e os dialogantes vislumbram um novo assunto

a ser tratado, a escravidão; como a posse de servos deve ser tratada. Então, em

776d, o estrangeiro propõe:

O ateniense: (…) o que deveremos fazer quanto a essa questão de possuir servos?

(…) Estamos cientes, é claro, de nossa unanimidade quanto a achar que se deve possuir escravos os mais dóceis e excelentes possíveis, pois no passado muitos escravos se revelaram a si mesmos superiores em todos os aspectos a irmãos e filhos, e salvaram seus senhores e os bens destes, tanto quanto suas habitações inteiras.

E ainda conclui, em 777b-d:

O ateniense: O escravo não é uma propriedade nada fácil de se lidar. A realidade demonstra quantos males resultam da escravidão (…).

(…) todos esses fatos o e como lidar com todas essas matérias se torna um quebra-cabeças. Só nos restam dois recursos a ser experimentados: o primeiro consiste em não permitir que todos os escravos, se quisermos que tolerem a escravidão sem rebeldia, pertençam ao mesmo país, mas sim, na medida do possível, tê-los de diferentes raças; o segundo consiste em dar-lhes tratamento adequado, não tanto em benefício deles, mas em benefício de nós mesmos.

Como já disposto na República, sobre a condição da mulher diante da nova

Constituição, “O ateniense” aplica uma análise rígida sobre como esse assunto foi

negligenciado até então. E assevera que o papel da mulher deve ser revisto na nova

Constituição. Em 780e, 781a-b:

175 O ateniense: O homem que se casa tem que se separar de seu pai e sua mãe, e tomar uma das duas habitações de seu lote para ser, por assim dizer, o ninho e lar de seus filhotes, realizar aí seu casamento e constituir a morada de si mesmo e de seus filhos.

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O ateniense: Em vosso caso, Clínias e Megilo, os repastos públicos para homens foram, como eu afirmei, estabelecidos correta e admiravelmente por uma necessidade divina, mas para as mulheres essa instituição foi mantida, de modo inteiramente incorreto, não prescrita pela lei, não se efetivando para elas; em lugar disso, o sexo feminino, esta própria porção da humanidade que, devido à sua fraqueza é, em outros aspectos, muito dissimulada e intrigante (…).

(…) É melhor, portanto, para o bem-estar do Estado que tal instituição seja revista e reformada, regulamentando-se todas as instituições indistintamente para homens e mulheres.

Ainda há uma questão a ser discutida, a procriação. Dessa vez, o estrangeiro

propõe normas para estabelecer como tal assunto será tratado pela Constituição.

Em 783d-e, 784b:

O ateniense: Voltemos então aos recém-casados para os ensinarmos como e de que maneira devem gerar filhos e, se não conseguirmos persuadi-los, intimidá-los mediante certas leis.

(…) Esposa e esposo devem ter em vista gerar para o Estado crianças da maior excelência e beleza possíveis. Todas as pessoas que são parceiras em qualquer ação produzem resultados belos e bons quando estão atentas a si mesmas e à ação; contudo, o resultado corresponde ao contrário quando lhes falta a atenção ou não sabem aplicá-la.

(…) O período de procriação e supervisão deverá ser de dez anos e não superior quando houver um alto índice de procriação; mas se no término desse período nem sequer um filho tiver sido gerado, esposa e esposo procurarão aconselhamento em comum para decidir quanto aos termos mais vantajosos para ambos junto aos seus parentes próximos e aos magistrados femininos, e se divorciarão.

Posteriormente, discutem sobre a possibilidade de adultério e as penalidades

que serão aplicadas, caso ocorra. Depois, “O ateniense” acha conveniente que seja

fixada uma idade apropriada para a procriação, e então observa em 785b: “Para as

moças a faixa etária para o casamento será entre dezesseis e vinte anos, limite

máximo; para os rapazes de trinta a trinta e cinco anos”.

6.2.7 Livro VII – A educação física e mental dos jovens

O livro se concentra em como deveria ser a educação dos jovens e começa

com uma exposição sobre as dificuldades de se impor leis e fiscalizar sobre a vida

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privada. Porém, salienta a importância de que não haja infrações, como se vê em

788b-c:

O ateniense: Se por um lado não é conveniente nem decente submeter tais práticas a penalidades determinadas pela lei em função de sua trivialidade e assiduidade, por outro a autoridade da lei escrita é solapada na medida em que os seres humanos, mediante essas trivialidades reiteradas, se habituam a ser infratores. Consequentemente, se por um lado é impossível silenciarmos diante de tais práticas, por outro é difícil legislar no que concerne a elas.

O ateniense em seguida discorre sobre a importância de exercitar os corpos e

as mentes das crianças desde cedo. De fato, propõe prescrever exercícios às

gestantes; no entanto, reconhece que legislar com tanta minúcia seria ridículo, em

789d-e, 790a:176

Mas conclui em 790b que as leis devem ser formuladas tendo em mente que

o cidadão, o homem livre, entenderá que elas são feitas para o bem geral, e aplicá-

las em seus assuntos privados, entendendo que as esferas pública e particular

dependem uma da outra para o bem-estar social e consequentemente atingir a

felicidade.

O ateniense: (...) a menos que os assuntos privados num Estado sejam acertadamente administrados será vão supor que qualquer código legal que assuma vigência exista para os assuntos públicos; e quando o perceberem, o cidadão particular poderá por si adotar como leis as regras que formularemos agora, e o fazendo e assim ordenando corretamente tanto sua casa quanto seu Estado lhe será possível atingir a felicidade.

Discorre então sobre os tratamentos que se pode dar a uma criança e o

resultado de tais no indivíduo adulto, e afirma que a educação ideal evitaria tanto “a

indolência” quanto “o rigor extremo, rude”; e propõe em 792c-d que ela deveria

buscar “estado intermediário” ou, em chaves aristotélicas, o meio termo:

O ateniense: O que sustento é isto: que a vida acertada não deve nem visar [exclusivamente] os prazeres nem se esquivar inteiramente às dores, devendo sim encerrar aquele estado

176 O ateniense: Iremos nos arriscar a ser ridicularizados promulgando uma lei segundo a qual a mulher grávida será obrigada a caminhar e a criança, ainda tenra, deverá ser modelada como cera e mantida nas fraldas até os dois anos de idade? (...) Um tal procedimento está fora de questão pois levaria a uma grau desmedido (...) do enorme ridículo ao qual nos exporíamos, além de defrontarmos com a franca recusa em obedecer por parte das amas de leite (...).

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intermediário de leveza, (...) o qual (...) é a própria condição da divindade mesma.

Platão considera que o costume, para a educação, é uma fonte do Direito,

afirma-se isso, pois o estrangeiro ateniense prossegue descrevendo em minúcias o

procedimento pelo qual se devem educar as crianças, insistindo que o que detalha

são “leis não escritas”, que equivalem a “costumes ancestrais”. Estes devem ser

preservados, pois, em 793c-d:

O ateniense: É preciso que conectemos este vosso Estado, que é novo, através de todo meio possível, sem omitir nada grande ou pequeno do ponto de vista das leis, costumes e instituições, pois é graças a todos esses meios que um Estado adquire coesão, e nenhuma espécie de lei é permanente sem os outros.

Há, então, matérias que devem ser ensinadas às crianças, e a forma de

ensino deve ser rigorosamente uniforme para garantir a continuidade da sociedade

como é. Os magistrados, segundo 795d, seriam responsáveis por isso, devendo,

com muito zelo, as mulheres supervisionarem os jogos e a alimentação das crianças

e os homens a sua instrução visando que todos os meninos e todas as meninas

possam “não ter, de modo algum, suas naturezas distorcidas por seus hábitos”.

Valoriza o papel do educador, em 796b, dizendo que temos que impor a

discípulos e mestres, ao chegarmos no modelo esperado, que os mestres

transmitam suas lições de modo gentil, e que os discípulos as recebam com muita

gratidão.

Apresenta uma visão conservadora, que corrobora com a tese exposta por

Sócrates no Livro IV, A República.177 Sócrates afirma que os jogos e brincadeiras

de crianças podem ser censuradas. O estrangeiro de As Leis considera que,

mesmo os jogos infantis têm de ser prescritos de determinada forma, de modo a

perpetuar a sociedade como é, e, portanto, não seriam admitidas inovações. Em

797c-d expõe que:

O ateniense: E eu reitero que um Estado não pode ser vítima de dano pior do que o causado por uma tal sentença e doutrina. Simplesmente escutai enquanto vos falo de que magnitude é esse mal.

177 A República, em 425a: “Então, como dissemos antes, desde o principio os próprios jogos das crianças ficarão regulados por lei, por não ser concebível que de crianças rebeldes e jogos ilegais saiam cidadãos obedientes e de conduta exemplar”.

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Clínias: Estás te referindo ao modo como as pessoas reprovam o que é antigo nos Estados?

O ateniense: Exatamente.

O ateniense pressupõe que eles já estejam vivendo sob as leis divinas, como

visto em 798a-b.178 Além disso, considera o ateniense que a alteração dos jogos

desviá-los-ia levando-os a “adultos diferentes de seus pais, e o sendo buscam um

sistema diferente de vida, que sendo buscado os leva a desejar outras instituições e

leis (...)”, o que seria nocivo para a proposta que vem se construindo, em 798c.

E o ateniense vai mais longe, corroborando com a tese de censura

apresentada em A República, em 377c. Diz que cumpriria ao cidadão, então,

impedir que as crianças desejem imitar modelos diferentes de dança e canto, e aos

sacerdotes expulsarem qualquer um que proponha novos hinos e danças além dos

previamente estipulados, e que esses se tornem “leis que não se possam violar nem

por um som vocal nem por um passo de dança”, em 800a.

E continua criticando a produção da poesia em 801c-d:

O ateniense: A lei segundo a segundo a qual o poeta não comporá nada que ultrapasse os limites daquilo que o Estado tem como legal e correto, belo e bom; nem mostrara ele suas composições a nenhuma pessoa privada enquanto não tiverem sido primeiramente mostradas aos juízes designados para lidar com esses assuntos e aos guardiões das leis, e tendo estes as aprovado.

Para que seja assegurado que não haja inovação, a seleção das músicas,

danças e hinos será feita por “homens de idade não inferior a cinquenta anos”, em

802b. Ele detalha também o tipo de música que deve ser feito, sobre o qual os

legisladores deverão determinar ao menos um esboço.

Essa conformidade tem objetivo claro, em 804a-b:

O ateniense: Nossos lactentes deverão compartilhar de mentalidade idêntica e acreditar que o que lhe dissermos basta e que seus dáimons e a Divindade lhes sugerirão tudo o mais no que tange aos sacrifícios e às danças.

178 O ateniense: (…) se existem leis sob as quais a humanidade foi formada e que pela providência divina permaneceram inalteradas por muitos séculos a ponto de não existir qualquer memória ou registro de jamais terem sido diferentes do que são agora, então a alma na sua totalidade está proibida pela reverência e o temor a alterar qualquer uma das coisas instauradas outrora. É necessário, portanto, que o legislador conceba a todo preço um meio pelo qual possa assegurar ao Estado esse benefício.

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Nas instituições de ensino serão ensinadas “todas as matérias que se

relacionem com a guerra e a música”. E sugere que o estudo seja obrigatório,

mesmo a contragosto dos pais, pois os rapazes “mais do que filhos de seus pais

eles são filhos do Estado”, em 804d.

A idade avançada dos magistrados não constitui empecilho para o bom

funcionamento das instituições educacionais, ao ver do ateniense, que em 813c-d,

diz:

O ateniense: (…) pois a lei lhe concede e continuará a conceder o direito de se associar a todos os homens e mulheres que desejar que o apóiem nessa direção e supervisão. Ele saberá quais as pessoas certas a serem escolhidas, e se manterá ansioso para não cometer deslizes nesses assuntos, reconhecendo a grandeza de seu cargo e sabiamente o tendo em elevado respeito, e conservando também a convicção de que enquanto os jovens forem bem educados, o Estado navegará [em águas tranquilas] como é preciso; caso contrário, as consequências serão tais que seria proibitivo a nós a elas nos referirmos, como não o faremos ao nos ocuparmos com um novo Estado (...).

Ainda que tenha o dito a respeito de rapazes, “O ateniense” acredita que o

mesmo tenha que ser imposto às meninas, para que não “cedam à indolência, ao

luxo e aos modos desregrados de vida”, em 806c, incluindo ao ensino relativo à

guerra para o caso que expõe em 814a que se em algum dia for necessário que os

homens deixem o Estado em nome de uma guerra, será preciso que as mulheres

sejam capazes de tomar os seus lugares.

O ateniense: (…) se algum dia for necessário que os guardiões das crianças e o resto do Estado deixem a cidade e marchem na totalidade das tropas, essas mulheres sejam, pelo menos, capazes de tomar seus lugares.

O estrangeiro ateniense continua com detalhes a respeito do ensino das

letras, da lira e da aritmética, “de modo a suprir os objetivos da guerra, da

administração doméstica e da administração da cidade.”, em 809c.

Também acerca da censura, em 811b, teme o ensino demasiado da poesia,

pois “(...) todo poeta proferiu muito de bom e muito também que é mau, de forma

que sou levado a afirmar que uma ampla dama de aprendizado envolve perigo para

as crianças”.

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Após todo o exposto, entende o ateniense que ao atingir o que se espera

como ideal, deverá permanecer imutável para preservar a uniformidade da

sociedade, como se percebe em 816c-d.179

Após discorrer sobre o ensino do cálculo, das medidas e da astronomia, “O

ateniense” passa à caça, e sobre seus regulamentos. Ao concluir suas observações

quanto à caça, “O ateniense” termina também sua exposição sobre as leis relativas

à educação.

Com relação ao legislador, faz algumas considerações, em 822d-e diz:

A obrigação que compete ao legislador, provavelmente vai além da simples tarefa de promulgar leis; além das leis, há algo mais que cai naturalmente entre o conselho e a lei – algo em que esbarramos várias vezes ao longo de nosso discurso, como por exemplo em conexão com a alimentação dos bebês – tais matérias, dizemos, não podem ficar sem regulamentação, mas seria contudo, demasiado tolo considerar esses regras como leis promulgadas. Quando então, as leis e toda a constituição estiverem assim escritas, nosso louvor do cidadão que é pré-eminente pela virtude não será completo quando dizemos que o homem virtuoso é aquele que passa através da vida obedecendo coerentemente às regras escritas do legislador tal como dadas em sua legislação, aprovação e reprovação.

Essa fala do “ateniense”, e todo o exposto no livro VII, deixa claro que a

virtude perfeita não requer apenas o acatamento das leis positivadas, mas também

requer observância as regras e costumes que são apontados pelo legislador que

podem vir de forma mais brandas, como uma admoestação.

6.2.8 Livro VIII – Legislação das festividades e sacrifícios às divindades, os jogos

militares, amor e riquezas, perversões amorosas, o amor, as questões da

agricultura, relações entre vizinhos, comércio e economia coletiva

Condizendo com a visão platônica de que o Estado deve servir aos deuses, o

livro começa tratando da legislação das festividades e sacrifícios às divindades, e os

relaciona diretamente ao bem-estar público em 828d-e, 829a: 179 O ateniense: E quando tiver consagrado assim todas essas coisas na devida ordem, deverá doravante não fazer qualquer alteração em tudo que se refira à dança e ao canto, de sorte que a cidade e seu corpo de cidadãos prossiga de uma e mesma maneira, desfrutando os mesmos prazeres e vivendo semelhantemente de todos os modos possíveis, e assim passar suas vidas felizes e bem.

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O ateniense: Ademais, se pretendem estabelecer essas matérias adequadamente, essas pessoas terão que acreditar que não há nenhum outro Estado que possa se comparar ao nosso relativamente ao grau de lazer e controle quanto às necessidades da vida, e acreditar que ele, como indivíduo, deve levar uma boa vida.

E acrescenta com uma visão dualista “Um Estado poderá obter uma vida

pacífica se se tornar bom, mas se for mau, tudo que obterá será uma vida de guerra

tanto no estrangeiro quanto domesticamente”.

Apesar de valorizar a paz, salienta, como no livro anterior, a importância de se

treinar para a guerra, o que será feito por meio de competições em tais festivais,

mesmo que isso pareça ridículo aos olhos de outros Estados, em 829a-b e 830a.180

Entretanto, observa que tais medidas não são tomadas atualmente, e aponta

como uma das causas o desvio das pessoas da virtude para acumular riqueza, nas

suas palavras: “Um amor pela riqueza que não permite que a pessoa disponha de

tempo para se dedicar a outra coisa exceto aos seus próprios bens pessoais”, em

831c, e disposição de certos indivíduos a se submeter a trabalho árduos, “contanto

que ele seja capaz de saciar-se ao extremo, como um animal selvagem, de todo o

tipo de alimento, bebida e sexo”, em 831d-e. A outra causa seria a má vontade dos

governantes das formas de governo da época em relação ao bem de seus súditos.

A seguir, o estrangeiro discorre sobre os pormenores das competições,

sempre deixando claro que elas servem como treino para a guerra.

Um dos obstáculos observados pelo ateniense para o bom funcionamento do

Estado é o desejo sexual entre os jovens, que causam males tanto para o indivíduo

quanto para o Estado. “O ateniense” define então os conceitos de amizade, amor e

desejo para que seja mais claro o modo de reprimir esse obstáculo.

Se por um lado ele acredita na importância de promulgar leis que coíbam as

práticas sexuais indevidas, ou seja, não destinadas à reprodução, por outro

reconhece que sua realização será difícil. Ele antecipa certa manifestação dos

jovens, em 839b “mas é possível que algum jovem dotado de extrema virilidade, ao

180 O ateniense: Assim sendo, todos deverão treinar para a guerra e não em tempo de guerra, mas em tempo de paz. (…) Se fôssemos pugilistas, por um grande número de dias que antecedessem a competição, deveríamos estar aprendendo como lutar, e trabalhando duro (...).

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nos ouvir promulgar tal lei, nos denuncie por produzir regras tolas e impossíveis

cobrindo-nos de injúrias e vociferando por todo o lugar (…)”.

Mas assegura que os bons cidadãos acatarão as regras por entenderem seus

benefícios. Aos que não a acatassem, haveria de se promulgar uma segunda lei

com o intuito de, em 841a, “privar o máximo possível esses prazeres da força que

adquirem por sua atividade natural desviando seu curso e desenvolvimento

mediante trabalhos duros para outra parte do corpo”.

E sustenta que os que sentirem tal ímpeto serão coagidos por três ideias: “O

temor aos deuses, o amor à honra e a aquisição do hábito de desejar em lugar das

belas formas do corpo, as belas formas da alma”, em 841c.

O ateniense passa então a falar sobre a alimentação. Como visto no Livro VII,

a caça deveria limitar-se aos animais terrestres, o que facilitaria a legislação, pois,

segundo 842d:

O ateniense: (…) o legislador de nosso Estado está majoritariamente livre de negócios marítimos, operações mercantis, problemas de alojamentos e estalejarias, questões de tributos alfandegários, questões financeiras envolvendo juros, empréstimos, usura e mil outras matérias de feitio semelhante; poderá dizer adeus a tudo isso e legislar para fazendeiros e agricultores, pastores e apicultores e a respeito dos instrumentos utilizados nessas ocupações.

Ele expõe em seguida as leis que julga serem necessários no “código

agrícola”, a respeito da demarcação de terras, que considera sagrada, e

propriedades nelas contidas; da época certa das colheitas; da utilização da água; e

do transporte das colheitas. Em todas elas regulamentam-se punições para atos de

má-fé. Leis semelhantes são propostas para artífices.

Logo após o estrangeiro ateniense sugere as leis que concernem a

importação e exportação, enfatizando que se deve importar apenas o estritamente

necessário, e exportar apenas o que não se faz necessário no próprio Estado.

A distribuição de alimentos prevê o comércio, mas não o estimula, antevendo

em 848a a divisão em três parcelas:

O ateniense: (…) das quais a primeira será para os cidadãos nascidos livres e a segunda para seus servos. A terceira parte caberá aos artífices e estrangeiros em geral (...) E esta terceira parcela de todas as mercadorias necessárias ao consumo será a

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única passível de ser levada obrigatoriamente ao mercado para venda, sendo proibido vender qualquer parte das outras duas parcelas.

Em que se pressupõe também a divisão entre os doze distritos, cada um

consagrado a um deus.

Após estabelecer as regras sobre o comércio e à estada de estrangeiros no

país (onde não poderiam ficar mais do que vinte anos), conclui o livro.

6.2.9 Livro IX – O direito criminal

O livro trata das questões judiciais acarretadas pelas leis sugeridas até então,

e “O ateniense” logo indica, em 853a-b, que:

O ateniense: (…) nosso próximo passo consistirá em enunciar [as matérias que envolvem os procedimentos judiciais] na totalidade, indicando minuciosamente que penalidade corresponderá a cada ofensa, e perante que tribunal deverá ser julgada.

Para ele, “é, num certo sentido, vergonhoso” que se faça necessário

promulgar leis para prevenir o crime num Estado como o que ele propõe, onde se

presumiria que os cidadãos buscam a virtude; porém, reconhece a fraqueza

humana, e também que há certos homens que “não recebem a influência das leis,

por mais enérgicas que sejam”. Ele admite também a possibilidade da advertência

antes do crime ser cometido, apelando para a razão de quem sente ímpeto

criminoso.181

“O ateniense” acredita no poder de regeneração da punição, ao mesmo

tempo igualando reincidência a incorrigibilidade, que incorrerá em pena de morte,

como vemos em 854d-e:

O ateniense: Entendemos que toda punição legalmente aplicada não visa ao mal, mas via de regra produz um destes dois efeitos: ou torna a pessoa que sofreu a punição melhor ou a torna menos má. Mas qualquer cidadão é reiteradamente condenado por esse ato, ou seja, a perpetração de alguma falta gravíssima e infame contra os deuses, os pais ou o Estado, o juiz o considerará como já incurável, reconhecendo que, apesar de todo o treinamento que recebeu

181 Essa observação muito se relaciona com o capítulo anterior em que mostramos a necessidade de leis justas coercíveis.

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desde a infância, não se conteve, a ponto de cometer a pior das iniquidades. Para ele a pena será a morte (...).

E acrescenta que os crimes do pai não se estenderão aos filhos e à família,

que “serão honrados e citados honrosamente”, caso seu comportamento seja

virtuoso; razão pela qual também os bens de tal pessoa não serão confiscados. E no

caso de crimes afiançáveis, a multa não deve ultrapassar o excedente de produção

do criminoso, para que a falta de recursos não faça com que seu lote de terra se

torne improdutivo. Caso não possa pagar, ele prevê outras punições como prisão,

açoitamento e humilhações. “Mas ninguém ficará absolutamente à margem da lei”,

salienta.

Ele também prevê, no caso da pena de morte,182 votação entre os guardiões

da lei. “Um discurso será feito primeiramente pelo reclamante, seguindo-se pelo

discurso do acusado”. Após exame cuidadoso e interrogatório, os guardiões farão

votação e darão fim ao julgamento.

Procedimento semelhante é imposto aos que cometem crimes contra a

constituição do Estado, prevendo também o crime de omissão.

No caso de roubo de patrimônio do Estado ou de outrem, o ateniense propõe

que como pena o ladrão seja aprisionado até que pague o dobro do que roubou ou

seja perdoado por quem foi roubado.

“O ateniense” prossegue numa discussão sobre a natureza do bem, do belo e

do justo, e sobre a divergência de opiniões quando paixões estão envolvidas, que

culmina em 860e, 861a, na seguinte pergunta:

O ateniense: Fareis uma distinção, então, entre más ações voluntárias e más ações involuntárias, e iremos promulgar penas mais pesadas para os crimes e más ações que são voluntários, e penas mais leves para os outros? Ou promulgaremos penas iguais para todos achando que não há o ato voluntário de injustiça?

Entende “O ateniense” que há diferença entre crime voluntário e involuntário,

mas que nem sempre se pode dizer a diferença. Portanto, a resposta seria a

compensação no caso de danos, voluntários ou não, além de instrução caso seja

voluntário; e também a pena de morte aos incorrigíveis, uma vez que se alguém 182 A pena de morte é aplicada no caso de roubo ou profanação de templos, ou de desonra aos pais. Ou seja, apena de morte é aplicada a todos aqueles que cometem crimes que sejam um desrespeito aos deuses. Essa pena é diversa da pena do assassinato, como veremos mais à frente.

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reincide, certamente não o faz involuntariamente, portanto é incorrigível e pode-se

aplicar a pena de morte.

Após discutir a respeito dos motivos das injustiças, ele propõe, em 864 c, a

criação de dois tipos de leis distintas para atos públicos e privados:

O ateniense: Um concerne aos atos cometidos ocasionalmente através de meios violentos e abertamente, o outro diz respeito aos atos cometidos privadamente, encobertos pelas sombras e pela fraude, ou às vezes aos atos cometidos dessas duas maneiras – e para atos desse último tipo as leis serão mais severas se quisermos que se revelem adequadas.

A insanidade também é prevista, e o dano deverá ser reparado na medida

exata. Caso o insano mate alguém, será exilado por um ano.

O estrangeiro passa a sugerir leis para o assassinato.183 No caso de alguém

matar um amigo durante os jogos, nas guerras ou nos treinos para ela, não ocorrerá

processo, assim como quando o paciente morre contra a vontade do médico, este

será isento. Os assassinatos involuntários têm punição diferente se cometidos

contra um escravo, tendo-se que reparar o dono do escravo; ou contra um homem

livre, caso em que o assassino deve desterrar-se por um ano para não sofrer

processo. Em todos os casos deve-se haver purificação. Também fazem parte desse

caso os crimes passionais sem intenção. Os intencionados terão exílio maior como

punição. Reincidentes sofrerão exílio perpétuo.

“O ateniense” então declara as punições para diversos casos mais

específicos, e passa a discorrer sobre assassinatos voluntários, “movidos pelo

prazer, os apetites ou a inveja” e também a covardia, diferenciando os casos. As

penas para tal também incluem a pena de morte ou o exílio, e o assassino aguarda

o julgamento em ostracismo. Os pormenores de cada tipo de assassinato são

propostos como no caso dos involuntários, em 870a-e até 873d.

Como as leis e a religião não se separam para o estrangeiro, muitas das

punições propostas vão além da vida e se baseiam em castigos dos deuses e das

reencarnações; e às vezes até se pune o cadáver. É o caso também dos suicidas.

Nota-se em 873d:

183 864d-e até 869e.

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O ateniense: (…) os túmulos serão, em primeiro lugar, numa posição isolada, nem sequer um outro túmulo adjacente, e em segundo lugar, deverão ser enterrados naqueles limites dos doze distritos que são desérticos e inominados, sem qualquer menção, sem qualquer lápide nem nome que indiquem seus túmulos.

Os animais assassinos também são mortos. A respeito dos homicídios de

autor desconhecido, o homicida será morto e seu corpo exilado caso seja

descoberto.

O estrangeiro ateniense conclui então as leis sobre o homicídio e passa a

discorrer sobre os casos em que o assassino será absolvido. Os casos incluem

legítima defesa contra ladrões e estupradores, e neste último caso os parentes

também podem exercer a vingança.

“O ateniense”, em 874e, 875a, e reitera a importância de se promulgar leis, o

que nos diferencia dos animais:

O ateniense: (…) é realmente necessário aos seres humanos fazerem eles mesmos leis e viver de acordo com as leis, sem o que a humanidade não diferirá em absoluto das bestas mais selvagens.

E que “a verdadeira arte política necessariamente zela pelo interesse público”.

Ele torna então à punição de ferimentos, afirmando que, pela infinidade de

casos em que ela pode ocorrer, somente alguns serão legislados, enquanto os

outros terão a punição decidida em tribunal.184 Após o preâmbulo, novamente

discorre acerca dos pormenores de cada caso, que servirão de exemplos para

“impedi-los de ultrapassar os limites da justiça”. As punições incluem reparações,

exílio e açoites.

O propósito de tais leis e sua relação com a educação são explicitados em

880d-e:

O ateniense: As leis (...) são feitas em parte para a segurança dos homens de bem, para propiciar-lhes instrução quanto ao relacionamento que será mais seguro na sua amistosa associação entre is, e em parte também por causa daqueles que se furtaram à educação e que, sendo donos de um temperamento obstinado, não contaram com um tratamento atenuador que impedisse que cedessem a todo tipo de perversidade.

184 Hodiernamente, isso pode ser visto como a discricionariedade do juiz, ou como a possibilidade da criação de uma jurisprudência.

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O estrangeiro ateniense dá atenção especial ao crime de lesão aos pais ou

avós, e, além das suas penas, lista as recompensas para as testemunhas que

prestarem socorro, assim como as punições para aquelas que se omitirem.

Após listar mais algumas punições em caso de agressão, “O ateniense”

conclui o livro, em 876e até 882c.

6.2.10 Livro X – A impiedade, suas formas e hierarquias, a alma

O Livro X traz um grande diálogo a respeito da religiosidade como algo

primordial a ser adotado no governo. Nas palavras de Alysson Mascaro: “Em As Leis, uma espécie de caráter religioso do direito toma um maior relevo”.185 Os

debatedores levantam importantes questionamentos em relação aos deuses, ao

homem na ordenação do Universo, à perfeição e à supremacia dos seres divinos, à

alma, ao corpo, à superioridade da alma ao corpo, à natureza e à arte, aos diversos

movimentos que regem as relações divinas e humanas, às inúmeras espécies de

ímpios, novamente às virtudes e vícios, e outras coisas que circundam a principal

temática. Além disso, dá conta de postular as penas contra os ultrajes aos deuses.

Esclarecedora a nota de Vasconcelos Diniz:

No Livro X das Leis, a discussão de que se ocupa Platão gira em torno de refutar o materialismo como princípio que se encontra na origem da Natureza. Ao contrário dos que afirmam que o acaso e o movimento desordenado constituem a Causa Primeira do Ser, Platão mostra que nada existe sem que tenha, por princípio; uma causa inteligente e imaterial. A presença de Deus (parousia) em todas as coisas torna-as belas, ordenadas e mensuradas e, portanto, tudo que existe participa da Divindade. Além disso, mostra que a alma é anterior ao corpo e, portanto, é o espiritual e não o físico que comanda a origem e a evolução da Natureza.186

A Professora Rachel Gazolla de Andrade assim se manifesta:

No livro X das Leis, talvez a última obra de Platão, um comentário sobre a alma é apresentado tendo como pano de fundo a visão dos ‘físicos’, onde a alma é compreendida a partir das noções de geração e corrupção de todas as coisas da physis, visão que,

185 MASCARO, Alysson Leandro. Op. cit., p. 61. 186 VASCONCELOS DINIZ, Márcio Augusto de. A teologia de Platão. Disponível em: <http://www.buscalegis.ufsc.br/revistas/index.php/buscalegis/article/viewDownloadInterstitial/25297/24860>. Acesso em 14 abril 2011.

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utilizada também no Fédon com o sentido de mostrar a mortalidade da quando da fala de Cebes, fora rejeitada por Sócrates por ter sido pensada como forma elementar, corpórea, semelhante ao fogo ou à água. No Livro X, Platão, utilizando-se da figura interminada de um ateniense como fez no Sofista com o estrangeiro, estabelece uma visão da alma na perspectiva do movimento de todas as coisas.187

Em 885 d, “O ateniense” vislumbra como será o enfrentamento àqueles que

não acreditam nos deuses e demonstra a “Clínias” o sentimento dos ateus:

O ateniense: Em tom cínico e de chacota diriam provavelmente o seguinte “(...) deveríeis primeiramente tentar nos convencer e nos ensinar pela apresentação de provas adequadas que os deuses existem e que são bons demais para se deixarem seduzir por presentes e se voltarem contra a justiça.188

Ao que “Clínias” indaga, em 885 e, 886a: “Certamente não parece fácil,

estrangeiro, afirmar com base na verdade que os deuses existem?”.

Dessa forma, os dialogantes começam a arquitetar o que deverá ser feito

para que consigam atingir a meta de levar aqueles que não acreditam nas

divindades ao caminho da crença, ou seja, do bem e do belo. Já de princípio, o

estrangeiro ateniense observa que as doutrinas modernas podem ser causa da

descrença das pessoas, em 886b-e:

O ateniense: Nós atenienses dispomos de narrativas preservadas por escrito. (…) Tais narrativas antigas, entretanto, podemos passar de lado e descartá-las – que sejam narradas da maneira que mais agradar aos deuses. São mais as novas doutrinas de nossos sábios modernos que nos é imperioso apontar como responsáveis como causa dos males. (…) as pessoas que foram convertidas por esses sábios sustentarão que essas coisas são simplesmente terra e pedra, incapazes de prestar a menor atenção aos assuntos humanos e que essas nossas crenças são sutilmente forjadas com argumentos para se tornarem plausíveis.

“O ateniense” continua a expor seus pensamentos e conclui que um grande

poder de persuasão se fará necessário para que os homens que desejam ser ímpios

se convertam ao temor aos deuses. “Clínias” ainda argumenta em 887b-c:

187 ANDRADE Rachel Gazolla de. Platão: o cosmo, o homem e a cidade – Um estudo sobre a alma. Petrópolis: Ed. Vozes, 1993, p. 30. 188 Clara referência ao posicionamento de Glauco, em A República, com a narrativa do Mito de Er. Ao afirmar que é possível comprar os deuses com presentes e com isso não ser penalizado por atos injustos.

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Clínias: E é da maior importância que nossos argumentos, demonstrando que os deuses existem e que são bons e que honram a justiça mais do que o fazem os seres humanos, deveriam contar absolutamente com certo grau de persuasão, pois um tal prelúdio é o melhor que poderíamos ter em defesa, como se poderia dizer, de todas as nossas leis.

Decidem, então, qual será a forma de abordagem para com os descrentes. “O

ateniense” diz em 888a-b:

O ateniense: Desta feita, que seja nosso prelúdio de abordagem a tais indivíduos de mente corrompida em tom desapaixonado e atenuando o fogo de nossa paixão, lhes falemos suavemente como se iniciássemos a conversação com uma pessoa em particular desse tipo, nos seguintes termos; "Meu filho, és ainda jovem e o tempo, à medida que avançar, te fará alterar muitas das opiniões que agora sustentas: assim aguarda até então antes de emitires juízos sobre matérias de suma gravidade e importância, e destas a mais grave de todas – embora presentemente a consideres como nada – é a questão de sustentar uma opinião correta sobre os deuses e assim viver bem, ou o oposto (…).

Mais tarde aparece um importante assunto, ao qual Platão, na voz do

estrangeiro ateniense, reserva boa parte de seu discurso; é a origem do ser

superior, aquele que possui em si plenitude e totalidade, o ser sem limitação ou

restrição.

“O ateniense” dá forma à sua explicação mostrando o ponto de vista dos

ateus. Nota-se em 889e, 890a:

O ateniense: A primeira afirmação, meu caro senhor, que esses senhores fazem sobre os deuses é que eles existem pela arte e não pela natureza através de certas convenções legais que diferem de um lugar para outro, de acordo com o consenso de cada tribo ao formarem suas leis. Asseveram, ademais, que há uma classe de coisas que são belas por natureza, e uma outra classe que é bela por convenção; quanto às coisas justas, estas não existem em absoluto por natureza, os seres humanos estando em constante polêmica a respeito delas e também continuamente as alterando, e seja qual for a alteração que façam em qualquer oportunidade, é de caráter puramente autoritário, embora deva sua existência [e vigência] à arte e às leis, e de modo algum à natureza. (…) E disso resulta que os jovens estão tomados por uma epidemia de impiedade, convencidos de que os deuses não são em absoluto deuses como os que as leis nos orientam a concebê-los; e, em consequência disso, surgem também facções quando esses mestres os atraem rumo à vida que é correta de acordo com a natureza, o que consiste em ser senhor sobre os outros em termos reais, em lugar de ser seus servos de acordo com a convenção legal.

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“Clínias”, então, enfatiza que um legislador digno de sua função jamais deverá

desistir de reforçar a importância da existência dos deuses, “devendo também

encarar a lei e a arte como coisas que existem por natureza ou por uma causa não

inferior à natureza, visto que segundo a razão são produtos do espírito (…)”, em

890d.

Chegam, assim, a uma busca pela explicação da origem da alma, de sua

relação intimamente ligada ao corpo e de sua superioridade. Vê-se em 892a-c:

O ateniense: Relativamente à alma, meu amigo, quase todas as pessoas parecem ignorar qual seja sua real natureza e potência, ignorância que não se restringe a outros fatos a seu respeito, mas que se refere, especialmente à sua origem – de como é uma das primeiras existências e anterior a todos os corpos, e que é ela mais do que qualquer outra coisa o que governa todas as alterações e modificações do corpo. E se é esta realmente a situação, não deverão ser as coisas que têm afinidade com a alma necessariamente anteriores (do ponto de vista da origem) às coisas que se referem ao corpo, percebendo-se que a alma é mais velha do que o corpo?

(…) Pela palavra natureza pretendem designar aquilo que gerou as primeiras existências, mas se ficar demonstrado que a alma foi produzida em primeiro lugar (e não o fogo ou o ar) ela poderia muito verdadeiramente ser descrita como uma existência superlativamente natural.

Então, a partir de 893b até 895b há uma grande exposição sobre os

movimentos que existem no Universo, qual a relação que eles possuem com as

coisas da alma e as coisas do corpo, qual ainda a relação dos movimentos com os

Astros e com os elementos fundamentais e destes últimos com a superioridade

divina. Em 894d, percebe-se uma descoberta que existem dez movimentos e que o

superior desses seria o movimento que é capaz de mover a sim mesmo, sendo os

demais secundários.189

Tal descoberta instiga os dialogantes a definirem, portanto, qual seria o

movimento primordial, o primeiro a existir, aquele que dá a origem a todos os outros.

E, em 895a-b, percebe-se a conclusão:

189 O ateniense: Do nosso total de dez movimentos, qual estimaríamos com maior rigor como sendo o mais poderoso de todos e o superior a todos em eficiência? Clínias: Somos forçados a afirmar que o movimento que é capaz de mover a si mesmo é infinitamente superior aos demais, e que todos lhe são secundários.

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O ateniense: (…) supondo-se que a totalidade das coisas se combinaram e se imobilizaram – como ousam pretender a maioria desses pensadores – qual dos movimentos mencionados surgiria necessariamente no todo primeiramente? O movimento, é claro, que é automotor pois não será jamais mudado antecipadamente por uma outra coisa, visto que não existe nenhuma força de mutação nas coisas antecipadamente. Portanto, afirmaremos que visto que o movimento automotivo é o ponto de partida de todos os movimentos e o primeiro a surgir nas coisas em repouso e a existir nas coisas em movimento, ele é necessariamente a mais antiga e a mais poderosa das mutações, enquanto que o movimento que é alterado por uma outra coisa e ele mesmo move outras vem em segundo lugar.190

Voltam, mais uma vez à discussão sobre a alma, na tentativa de definirem

com clareza tudo o que ela comporta. Em 896a:

O ateniense: Qual é a definição daquele objeto que tem por nome alma? Será que podemos dar-lhe outra definição além dessa indicada há pouco: o movimento capaz de mover a si mesmo.

Clínias: O que desejas afirmar é que o automovimento é a definição daquela mesmíssima substância que possui alma como o nome que universalmente lhe aplicamos?

E, mais à frente, em 896e, 897a-c:

O ateniense: A alma impulsiona todas as coisas no céu, na Terra e no mar por meio de seus próprios movimentos, cujos nomes são desejo, reflexão, previdência, deliberação, opinião verdadeira ou falsa, júbilo, pesar, confiança, medo, ódio, amor e todos os movimentos que são afins a esses ou são movimentos primários; estes, quando assumem os movimentos secundários dos corpos, os impelem a todos ao crescimento e ao decrescimento, à separação e à combinação, e ao que se segue a estes, ao calor e o frio, o peso e a leveza, a dureza e a maciez, a brancura e o negrume, o amargor e a doçura, e todas essas qualidades que a alma emprega, tanto quando associada à razão ela guia com retidão e sempre governa a tudo para sua justeza e felicidade (…).

Na mesma atmosfera, os pensadores querem desvendar, então, qual é a

natureza do movimento da razão. E em tal busca, concluem, em 898b-c:

O ateniense: Se descrevermos ambos (movimento das coisas em um único lugar e o movimento das coisas em vários lugares) como movendo regular e uniformemente num lugar idêntico, em torno das mesmas coisas e relacionados às mesmas coisas, de acordo com uma única regra e sistema – a razão, nomeadamente, e o

190 Na mesma linha de pensamento Aristóteles proporá a ideia de motor imóvel como ponto inicial do movimento do universo.

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movimento revolvente em um lugar (assemelhado ao revolver de um globo giratório) – jamais nos arriscaremos a nos condenarmos à inabilidade para construir belas figuras de linguagem.

Clínias: Dizes algo inteiramente verdadeiro.

O ateniense: Por outro lado não será o movimento que nunca é uniforme, ou no mesmo lugar, ou em torno ou em relação às mesmas coisas, não se movendo num único ponto nem em qualquer ordem ou sistema ou regra – não será este movimento aparentado à absoluta desrazão?

Clínias: Será verdadeiramente.

Novamente “O ateniense” atenta para a relação dos Astros com as almas. Em

899b:

O ateniense: No que diz respeito a todos os astros e a Lua, e no que tange aos anos, meses e todas as estações o que nos caberia fazer senão essa mesma afirmativa, a saber, que já que ficou demonstrado que são todos movidos por uma ou mais almas, que são dotadas de todas as virtudes, declararemos que essas almas são deuses, seja porque alojadas nos corpos, como seres vivos que são, organizam todo o céu, seja porque atuam de qualquer outra forma que se o queira. Será possível encontrar alguém que admita essa causalidade e, todavia, negue que "tudo está repleto de deuses"?

Agora os dialogantes observam uma nova preocupação. Como abordar

aqueles que acreditam e temem os deuses, porém ignoram certos assuntos

humanos? E acham uma maneira de falar a essas pessoas. Em 899d-e:

O ateniense: Entretanto, quanto ao homem que sustenta a existência dos deuses mas que não cuida dos assuntos humanos, este nós temos que advertir. "Meu bom senhor," nós lhe diremos, "o fato de acreditares em deuses é devido provavelmente a uma divina afinidade que te atrai para o que é de natureza semelhante, levando-te a honrá-los e reconhecer sua existência; mas as fortunas dos seres humanos maus e injustos, tanto privadas quanto públicas – fortunas que embora na verdade não sejam realmente venturosas, são excessiva e impropriamente louvadas como tais pela opinião pública te conduzem à impiedade pela maneira errada em que são celebradas, não só na poesia como também em narrativas de toda espécie (…).

Sobre as virtudes e vícios da alma, eles chegam à conclusão que prudência,

inteligência e coragem compõem a virtude e são características muito nobres;

enquanto que a covardia, a negligência, a ociosidade e a indolência são vícios, e

que os deuses não podem possuir tais características tão vis. O estrangeiro e

“Clínias” entendem, então, em 901a:

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O ateniense: E então? Aquele que é indolente, negligente e ocioso será aos nossos olhos o que o poeta descrevia como "um homem muito semelhante a zangões destituídos de aguilhões"?

Clínias: Uma descrição deveras justa.

O ateniense: Que os deuses possuam tal caráter temos certamente que negar, constatando que eles o abominam, e tampouco é cabível que permitamos que alguém tente afirmá-lo.

Clínias: Seguramente não poderíamos tolerá-lo.

Dando continuidade ao assunto, o ateniense discorre adiante sobre os

abismos do homem e a providência divina. Tem-se em 906a-c:

O ateniense: (…) o céu está repleto de coisas que são boas, e também do tipo oposto, e que, aquelas que não são boas são as mais numerosas, tal batalha, nós o afirmamos, é imortal e requer uma vigilância excepcional – os deuses e os dáimons sendo nossos aliados e nós a propriedade deles; o que nos destrói é a iniquidade e a insolência combinadas com a loucura, e o que nos salva, a justiça e temperança combinadas com a sabedoria, as quais habitam nos poderes animados dos deuses, e das quais alguma partícula pode ser claramente vista aqui também residindo dentro de nós.

(…) Mas asseveramos que a falta aqui mencionada, a extorsão ou ganho excessivo é o que é chamado no caso dos corpos de carne de doença, no caso das estações e dos anos de pestilência e no caso dos Estados e formas de governo, recebe o nome de injustiça.

Ainda argumenta que, por possuírem muitas virtudes, os deuses jamais

seriam vítimas das seduções humanas. Em 907b: “(...) que os deuses existem, que

se importam [com os assuntos humanos] e que são inteiramente incapazes de

serem vítimas da sedução que visa a transgredir a justiça (...)”.

Como última pauta do Livro, o estrangeiro acha devido postular as leis e as

penalidades contra os vários tipos de impiedade, e assim o faz em 907d-e:

O ateniense: Para aqueles que desobedecem esta será a lei relativa à impiedade: se alguém cometer impiedade quer por palavras quer por ações, aquele que o encontrar em seu caminho defenderá a lei comunicando o fato aos magistrados, e os primeiros magistrados a serem informados conduzirão a pessoa ao tribunal designado para decidir esses casos em conformidade com a lei.

Ainda, em 908b informa que os infratores da lei precisarão ser distinguidos

em categorias e que, de acordo com cada infração, uma pena específica será

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aplicada: “(...) já que requerem penas que são tanto diferentes quanto

dessemelhantes”.

Dessa forma, do parágrafo 908c ao 909d, “O ateniense” discorre

precisamente sobre cada caso e sua penalidade.

Por fim, termina seu discurso salientando a proibição do culto privado, em

909d-e:

O ateniense: De maneira a abarcar todos esses casos sem exceção, será promulgada a seguinte lei: ninguém possuirá um santuário em sua própria casa; quando alguém estiver motivado em espírito a realizar um sacrifício, deverá dirigir-se aos locais públicos para sacrificar e apresentará suas oblações aos sacerdotes e sacerdotisas aos quais diz respeito a sua consagração; aí ele mesmo, em companhia daqueles que escolher, unir-se-á nas orações.

Assim, o Livro X traz um grande diálogo a respeito da religiosidade como algo

primordial a ser adotado no governo.

6.2.11 Livro XI – O direito civil e o direito comercial

O Livro XI trata de vários assuntos pertinentes à vida em sociedade.

Situações que devem ser regulamentadas por leis para que o novo governo tenha

eficácia. Especificamente, “O ateniense” vai falar sobre: a atividade do comércio, a

posse de bens, a propriedade de escravos, a contestação da propriedade de um

objeto legitimamente adquirido de terceiro, a probidade nas relações comerciais, as

falsificações e declarações mentirosas, o trabalho dos artífices, o direito ao

testamento, a tutela dos órfãos, desavenças familiares entre pais e filhos e entre

mulher e marido, a condição do filho no caso de os pais se divorciarem ou

falecerem, as obrigações legais em relação aos pais, o envenenamento e malefícios,

as injúrias e o sarcasmo, a mendicância, as testemunhas e, finalmente, sobre a

atividade da advocacia.

O estrangeiro dá início ao diálogo, na tentativa de regulamentar a questão da

posse de bens em 913a:

O ateniense: Devemos nos ocupar agora da regulamentação de nossas transações mútuas. O seguinte servirá de regra geral: na

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medida do possível ninguém locará meus bens nem os moverá no menor grau, se não tiver, de modo algum, obtido meu consentimento, tendo eu que agir de maneira idêntica com relação aos bens das outras pessoas, mantendo-me prudente.

E lembra de um importante valor, em 913b-c: “e preferindo ganhar em justiça

em minha alma do que em dinheiro em minha bolsa, trocando um maior bem por um

menor, e isto, inclusive, numa parte melhor de mim.” Logo após, do parágrafo 913c

ao 915c, faz um longo esclarecimento de como a lei para tal matéria deverá ser

delineada.

Surge, então, a preocupação a respeito da contestação da propriedade de um

objeto legitimamente adquirido de terceiro. Assim, “O ateniense” explica a “Clínias”,

em 915c-d:

O ateniense: Se alguém reivindicar como de sua propriedade o animal de qualquer outra pessoa, ou qualquer de seus bens, aquele que faz a reivindicação deverá comunicar a matéria à pessoa que, sendo seu proprietário substancial e legal, deverá indicar para quem o vendeu ou o deu, ou o transferiu sob qualquer outra forma válida (…).

Logo mais, o estrangeiro dá importância à forma como deverão ser feitas as

relações de compra e venda e desaprova totalmente tal relação realizada sob

crédito. Percebe-se em 915d-e:

O ateniense: E quando alguém realizar uma transação comercial com outra pessoa mediante um ato de compra ou venda, a transação será feita por uma transferência da mercadoria para o lugar apontado no mercado, e em nenhum outro lugar mais, e por pagamento do preço na praça e nenhuma compra ou venda será feita sob crédito.

Quanto à posse de escravos e a compra e venda deles, “O ateniense”

assevera em 916a-b que se um homem vende um escravo que está sofrendo de

tuberculose pulmonar, cálculo renal, estrangúria ou da doença sagrada como é

chamada, ou de qualquer outro mal mental ou corporal, que as pessoas em geral

não conseguem perceber, no caso de o comprador ser um médico, ou um treinador,

não será possível para ele conseguir restituição do valor, entretanto, se qualquer

profissional vender um escravo a uma pessoa leiga, o comprador reclamará

restituição.

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O estrangeiro passa agora a discorrer sobre a probidade na atividade

comercial e acha necessário se expressar a respeito da falsificação, adulteração ou

declarações mentirosas nas relações comerciais. Explica, em 916d-e, 917a, (e

depois em 917a-e, 918a, regulamenta a lei que será aplicada às mencionadas

infrações):

O ateniense: (…) no tocante a toda falsificação dessa ordem (que aqui possa ocorrer], como também no caso de outras leis, escutemos um prelúdio. A adulteração deve ser classificada por todos na mesma categoria da mentira e do embuste – uma classe de ações em relação à qual o vulgo costuma dizer que é, geralmente, correta, se executada oportunamente; porém a devida oportunidade, o quando c o onde não são nem prescritos nem definidos, de modo que baseado nessa fórmula acarreta perdas para si e para os outros. Mas não convém ao legislador deixar esse assunto indefinido. Este deverá sempre declarar claramente as limitações, máximas ou mínimas, e isto será feito agora; ninguém, convocando aos deuses como testemunhas, cometerá por palavras ou ações qualquer falsidade, fraude ou adulteração, a não ser que queira tornar-se sumamente odioso aos deuses (…).

Lembra, então, de duas matérias que estão relacionadas ao comércio, a

saber, a prática do varejo e os serviços de estalagem. Assim, informa em 918d-e.191

E conclui que se tais atividades fossem regulamentadas com norma que impedisse a

corrupção, seriam bem vistas, em 918e, 919a: “(…) se todas essas atividades

pudessem ser praticadas em conformidade com uma regra que impedisse a

corrupção, seriam honradas com a honra que se dedica a uma mãe ou uma ama de

leite”. Do parágrafo 919c-e, 920d, tem-se a regulamentação da lei que visa à prática

do varejo.

Em 921a-b, o estrangeiro fala a respeito do trabalho dos artífices, postulando

suas funções e deveres:

O ateniense: Se um artífice deixar de executar seu trabalho dentro do prazo estabelecido por vileza (faltando ao respeito pelo deus a quem deve sua existência, preferindo, no seu em bota monto de espírito, julgar o deus indulgente devido à afinidade que, os une) começará por ser punido pelo deus e, em segundo lugar, haverá uma lei promulgada de modo a enquadrar esse caso (…). Numa cidade de homens livres, é errado que um artífice tente, por meio de

191 O ateniense: A disposição da massa da humanidade é exatamente o contrário disso; quando desejam, desejam ilimitadamente, e quando podem obter ganhos moderados, preferem se empenhar ilimitadamente em obter ganhos enormes; e é devido a isso que todas as classes envolvidas no comércio varejista, transações comerciais em geral e estalagens são alvo de depreciação e submetidas até ao opróbrio.

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sua arte (que, é essencialmente verdadeira e sincera), agir artificiosamente com as pessoas leigas, caso em que a pessoa prejudicada gozará do recurso de processar aquele que o prejudicou (…).

E continua sua exposição da lei que dará conta de tal assunto, do parágrafo

921c-e, 922a.

O próximo assunto a ser abordado será a questão do direito ao testamento.

“O ateniense” entende prudente normatizar tal assunto, pois vê que, muitas vezes, à

beira da morte, o homem se desespera, perde as habilidades cognitivas e tende a

agir, diante da morte e da transmissão de seus bens, de uma maneira irracional.

Nota-se em 922b-c:

O ateniense: E é de fato impossível deixá-los sem regulamentação pois aos indivíduos é possível indicar os mais diversos desejos tanto contraditórios entre si quanto contrários às leis e às disposições dos vivo se, mesmo, até contrários às suas próprias disposições antigas na época antes de se proporem a fazer um testamento (se é que qualquer testamento que alguém faça mereça receber validade absoluta e incondicional) independentemente de sua condição mental ao fim da vida, pois a maioria de nós nos encontramos numa condição mental mais ou menos embotada e debilitada quando imaginamos que nossa morte está próxima.

Assim, segue-se um longo discurso, do parágrafo 923a-e até o 925c, no qual

o estrangeiro estabelece como a lei se comportará em todos os aspectos do

testamento. Em 925c aponta uma nova questão: “No caso de morte sem testamento

e sem nenhum descendente, filho ou filha, todos os outros assuntos estarão

submetidos à prévia lei (…)”. E continua a postular as especificidades concernentes

à matéria.

Posteriormente, faz-se necessário prestar atenção às crianças órfãs. Dessa

forma, “O ateniense” organiza a forma como o novo governo tratará o assunto. Vê-

se em 926d-e, 927a:

O ateniense: (…) crianças órfãs serão submetidas a uma espécie de segundo nascimento. (…) sua condição de órfãos possa ser a mais livre possível de uma impiedosa e vil miséria, condição a que podem ficar expostos os órfãos. Em primeiro lugar, apontaremos legalmente os guardiões das leis para desempenharem o papel de seus pais, a propósito nada inferiores [aos seus pais naturais]; encarregaremos três dos guardiões das leis para anualmente cuidar dos órfãos como se fossem seus próprios filhos, já tendo nós

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fornecido tanto a estes quanto aos tutores um adequado prelúdio de instruções referentes à formação dos órfãos.

E, mais uma vez, segue-se uma grande narrativa que dá vida à normatização

dos deveres para com os órfãos, que vai do parágrafo 927a-e ao 928d.

Os variados tipos de desentendimentos entre pais e filhos também é motivo

de exame minucioso e pede cuidado da lei na nova Constituição. Em 928d-e:

O ateniense: Entre pais e seus filhos, e filhos e seus pais, irrompem desentendimentos mais graves do que o que se poderia esperar, em meio aos quais os pais, por um lado, são passíveis de supor que o legislador lhes facultasse permissão legal para proclamar publicamente mediante arauto, se o desejarem, que seus filhos cessaram legalmente de ser seus filhos, enquanto os filhos, por outro lado, reivindicam a permissão de indiciar seus pais por insanidade quando se encontram numa condição vergonhosa em função da doença e da senilidade. Tais fatos ocorrem ordinariamente entre homens que têm um caráter inteiramente mau, visto que quando apenas a metade deles é má – o filho sendo mau e o pai não, ou vice-versa – uma tal inimizade não produz consequências calamitosas.

A lei que vinculará esta pauta será descrita no parágrafo 929a-e.

Logo após a explanação sobre as desavenças entre pais e filhos, os

pensadores decidem regulamentar a lei para os casos de brigas entre marido e

mulher. Observa-se em 929e, 930a:

O ateniense: Se um marido e a esposa, por discórdia gerada por diferença de temperamentos, não conseguem de modo algum entrar em acordo, será conveniente que fiquem sob o constante controle de dez membros do corpo dos guardiões das leis, de idade média, associados a dez das mulheres encarregadas do casamento.

E tal norma será explicada no parágrafo 929b-e.

Depois, vê-se que o estrangeiro toca num tema que julga muito importante

para a base de uma sociedade sadia, o respeito que os filhos devem ter para com

seus pais e com os ascendentes mais velhos. Esse respeito agrada aos deuses e

deverá ser premissa no desenvolvimento dos valores mais nobres do homem. Nota-

se em 929e, 931a:

O ateniense: A negligência com os pais é algo que nenhum deus e nenhum ser humano sensato jamais recomendariam a alguém (…).

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Assim, se qualquer indivíduo tem um pai ou uma mãe, ou um avô ou uma avó em sua casa reduzidos à incapacidade num leito em função da velhice, que nunca suponha que enquanto tiver uma tal figura junto ao seu fogo doméstico terá qualquer está tua de maior poder, desde que dela cuide e lhe renda verdadeiramente o devido culto.

Desse modo, a lei que cuidará de tamanha importância estará retratada em

931e, 932a-d.

Mais tarde, o envenenamento e seus malefícios serão colocados em pauta

pelos dialogantes, que deixarão registrada a lei responsável por tal fato no parágrafo

933a-e. Em 932e, 933a, o estrangeiro diz:

O ateniense: Faz-se necessária uma subdivisão em nosso tratamento dos casos de envenenamento porquanto, em função da natureza da raça humana, pertencem a dois tipos distintos. O tipo que mencionamos agora explicitamente é aquele no qual o dano provocado é realizado contra os corpos por corpos conforme as leis naturais. Distinto é o tipo que utilizando sortilégios, encantamentos e enfeitiçamentos (como são chamados) não apenas convence aqueles que tentam causar dano que eles têm o poder de fazê-lo, como também convence suas vítimas que estão de fato sendo atingidas por aqueles que possuiriam o poder mágico.

Atos de violência ou roubo serão tratados do parágrafo 933e ao 934d. Para

clarear seus pensamentos, “O ateniense” explica em 933e, 934a:

O ateniense: Em todos os casos em que alguém causa danos a outrem mediante atos de violência ou roubo, se o dano for grande, o agressor pagará uma larga soma a título de compensação à parte lesada e uma pequena soma se o dano for pequeno: corno regra geral, toda pessoa devera em todos os casos pagar uma soma correspondente ao dano provocado até que a perda seja ressarcida; e além disso, toda pessoa arcará com a penalidade vinculada ao seu crime mediante um corretivo.

Já os tratamentos abusivos e as injúrias serão refutados a partir do que regula

o estrangeiro nos parágrafos 934e, 935a-d. Nessa passagem, entende-se sua

declaração:

O ateniense: No que tange ao tratamento abusivo, teremos esta única lei para cobrir todos os casos: ninguém agredirá abusivamente ninguém. Se duas pessoas estão discutindo, uma delas falará e a outra escutará, alternando-se, sem agressões verbais mútuas [e descontrole emocional] e mesmo em relação às eventuais pessoas presentes, pois a partir dessas coisas leves, isto é, palavras, brotam, realmente, situações quase insustentáveis e

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mesmo ódios e rixas quando as pessoas principiam a proferir imprecações, se xingando entre si mediante termos vergonhosos e difamatórios como mulheres desbocadas (…). Ninguém, portanto, jamais proferirá, sob qualquer molde, tais palavras em qualquer lugar sagrado, em qualquer sacrifício público ou jogos públicos, ou na ágora ou num tribunal ou qualquer assembleia pública.

Mais adiante, é hora de discutir o sarcasmo, quais serão suas punições, quem

poderá se valer dele e em quais determinadas situações. Encontra-se tal matéria

discutida e regulamentada em 935d-e, 936a-e. Para ilustrar: “Mas e quanto ao

humor dos cômicos, sempre pronto a expor as pessoas ao ridículo, nós o

toleraremos na sua linguagem por ser destituído de cólera?”.

Sobre a mendicância, os pensadores atentarão para como os homens

deverão se comportar diante de outrem que se encontra em tal situação. Para “O

ateniense” não há que se ter compaixão com os “que padecem de fome ou outra

privação semelhante”, mas, ao contrário, será diferente com aquele que, apesar de

praticar virtudes, seja importunado por tal atividade. Vê-se em 936b:

O ateniense: Diante disto seria espantoso realmente que no seio de um Estado e de acordo com sua constituição, supondo que esse Estado fosse moderadamente bem organizado, uma tal pessoa (escravo ou homem livre) fosse tão cabalmente abandonada a ponto de ser reduzida à completa indigência.

E, dando continuidade à matéria em 936b-d, fica definida a lei pertinente.

Quase ao fim do Livro XI, o estrangeiro aborda a questão da testemunha.

Determina quais as penas serão aplicadas àquele que se negar a testemunhar em

momentos que seu testemunho for necessário, ao falso testemunho, também diz

que a mulher poderá testemunhar. Regulamenta como crianças e escravos poderão

servir como testemunhas e mais coisas que permeiam essa matéria. Pode-se notar

em 936e, 937a-d.

Finalmente, o último assunto que vem à luz é a atividade da advocacia. “O

ateniense” desaprova o ofício, uma vez que acha que as habilidades da oratória e

performance de um advogado podem levá-lo a cometer erros nocivos, desvirtuosos.

Em 937e:

O ateniense: E se a justiça é bela, como negar que a profissão de advogá-la também não o é? Mas estas belas coisas estão perdendo

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a boa reputação devido a uma espécie de arte nociva, que se disfarçando sob um belo nome sustenta (…).

E acrescenta em 938a:

O ateniense: Essa arte – quer seja realmente uma arte ou um ardil artificioso aprendido pela experiência e prática regular – não deverá, jamais, se possível, surgir no nosso Estado; e quando o legislador exigir o acatamento e o não afrontar da justiça, ou o afastamento de tais artistas para um outro Estado, se eles atenderem a isso, a lei, de sua parte, se manterá em silêncio, mas se eles não atenderem, a lei se pronunciará (…).

Termina, então, o Livro XI, dizendo como o Estado deverá agir com os

advogados, em 938a-c.

6.2.12 Livro XII – A proposta sobre o justo e outras questões

O Livro XII dá continuidade à regulamentação das leis pertinentes aos

assuntos mais importantes do novo governo. Propriamente fala sobre a probidade

no exercício dos cargos públicos, legislação militar, reparadores dos magistrados,

administração da justiça, proibição dos juramentos, relações com estrangeiros e sua

recepção no Estado, viagens ao estrangeiro, sequestro de bens e busca, violência

ao direito, receptação, o papel do Estado quando se faz paz em tempo de guerra,

corrupção dos servidores, impostos, oferenda aos deuses, o bom juiz, cerimônias

fúnebres, o conselho noturno e sua importante função e a unidade da virtude.

Em relação aos bens, “O ateniense” retoma o assunto já tratado em outros

Livros, dessa vez para discorrer sobre o furto. Em 941b-c:

O ateniense: O furto de bens não é civilizado, o roubo escancarado é vergonhoso; nem um nem outro dos filhos de Zeus os praticaram extraindo prazer na fraude ou na violência. (…) e quem quer que assim agir ilegalmente não é, em absoluto, um deus nem um filho de deus (...).

E dá contorno à lei que assegurará a punição de quem praticar tal ato, nos

parágrafos 941d-e, 942a.

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Posteriormente, passa a organizar as ideias sobre como se dará a

organização militar na nova sociedade (do parágrafo 942a-e ao 945b). Para isso,

indica um ponto fundamental para que essa organização dê certo. Em 942c-d:

O ateniense: Este hábito de comandar e ser comandado por outros tem que ser praticado pacificamente desde a mais tenra infância; porém, a anarquia precisará ser inteiramente eliminada das vidas de toda a humanidade, e inclusive das vidas dos animais que estão submetidos ao ser humano.

A questão dos reparadores dos magistrados deverá ser analisada com

cuidado, visto que cabe a eles a honrosa tarefa de reparar o funcionamento dos

magistrados de acordo com a virtude. Assim, os dialogantes reservam bastante

atenção ao tema. Em 945b-e:

O ateniense: Falemos agora dos reparadores que examinarão a gestão dos diversos magistrados, uns eleitos pelo acaso do sorteio para um ano de mandato, outros para vários anos e escolhidos a partir de um elenco de pessoas já seletas. (…) de qualquer modo é preciso tentar descobrir alguns reparadores ele uma qualidade divina. (…) Ora, no que se refere à preservação ou a dissolução e o desaparecimento de uma constituição política, o cargo de reparador representa um tal fator crítico, e dos mais sérios, pois se aqueles que atuam como reparadores dos magistrados são melhores homens do que eles, e se agem irrepreensivelmente mediante justiça irrepreensível, então todo o Estado e território floresce e é feliz. (…) Diante disto, é absolutamente imperioso que os reparadores sejam homens da mais rematada virtude.

Assim, ao longo dos parágrafos 945e ao 948b, estabelecem-se as normas

que abarcarão toda a matéria citada acima.

Adiante, “O ateniense” fala sobre como o homem deverá agir quando mover

uma ação contra outrem e como a resposta a tal ação prosseguirá. Fica proibido o

juramento. Tudo o que tiver relação com a lide terá que ser escrito e entregado ao

magistrado competente para análise. Vê-se em 948c-d:

O ateniense: Considerando-se, por conseguinte, que as opiniões dos seres humanos acerca dos deuses mudaram, assim também deverão suas leis ações legais, leis elaboradas inteligentemente devem impedir que as partes em litígio façam juramentos. Aquele que está movendo uma ação contra alguém deve registrar suas acusações por escrito, mas não prestar qualquer juramento, e o acusado de maneira análoga deverá registrar por escrito sua negativa e entregá-la aos magistrados sem um juramento.

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Para regularizar a questão das visitas de estrangeiros ao território, a viagem

ao estrangeiro e quem tem competência tanto para entrar no território quanto para

sair dele, os dialogantes traçam um longo discurso a fim de que a lei proposta seja

muito clara e não negligencie em nenhum aspecto. Dessa forma, do parágrafo 950a-

e ao 953e, pode-se notar os postulados.

Algumas passagens sobre o assunto: respectivamente em 950a, 950a-b,

950d-e, 952d-e, 953a, 953b e 953c:

O ateniense: O intercâmbio entre Estados naturalmente resulta numa mistura de caráteres de todo tipo, na medida em que estrangeiros importam entre estrangeiros costumes novos, e tal resultado provocaria um imenso dano aos povos que desfrutam de uma boa forma de governo e uma boa legislação.

O ateniense: Ora, constitui uma política inconcebível proibir terminantemente aos estrangeiros que visitem o Estado ou aos cidadãos que visitem outros Estados, parecendo ademais, aos olhos do resto do mundo, uma postura insociável e rude (…).

O ateniense: Portanto, quanto à questão de ir para o estrangeiro, para outras terras e lugares e a admissão de estrangeiros no Estado temos que agir da seguinte maneira: em primeiro lugar, nenhum homem com menos de quarenta anos terá a permissão de ir para o estrangeiro, para nenhum sítio; em segundo lugar, não será permitido que um homem se dirija ao estrangeiro na qualidade de indivíduo particular, mas a permissão na qualidade de representante público será concedida a arautos, embaixadores e certas comissões de inspeção.

O ateniense: Há quatro tipos de estrangeiros visitantes que requerem menção. O primeiro e inevitável visitante é aquele que escolhe o verão, de ordinário, para suas visitas anuais, semelhante a aves migratórias (…).

O ateniense: O segundo tipo de estrangeiro é o inspetor no sentido literal da palavra, que com seus olhos e seus ouvidos inspecionará tudo que diz respeito às exibições musicais (…).

O ateniense: O terceiro tipo de visitante estrangeiro que exige uma recepção pública é aquele que provém de um outro país para o trato de algum negócio público (…).

O ateniense: O quarto tipo de estrangeiro nos visita esporadicamente, se é que algum dia o faz (…).

Agora o estrangeiro ateniense acha prudente voltar à questão dos bens e,

dessa vez, discorrer sobre o sequestro deles e o direito à sua busca. Desse modo

propõe em 954a:

O ateniense: O corretor do bem em garantia numa venda atuará como fiador do vendedor caso este último não detenha efetivo

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direito sobre os bens vendidos ou seja completamente incapaz de garantir sua posse; tanto o corretor como o vendedor assumirão responsabilidade legal. Se alguém quiser fazer uma busca na residência de uma outra pessoa, deverá colocar-se nu da cintura para cima e não usar cinto, e depois de ter feito um juramento pelos deuses designados [pela lei] de que verdadeiramente espera encontrar seu bem nessa residência, ele fará a busca; aquele cuja residência for objeto da busca lhe concederá o direito de vasculhar sua casa, incluindo tanto coisas seladas quanto não seladas. Mas se alguém pretender executar a busca e a outra parte lhe recusar a permissão de fazê-lo, quem se defrontou com a recusa tomará medidas legais, declarando o valor estimado do bem que é objeto de busca.

E desenvolve sua lei no parágrafo 954b-e.

Logo após, diz sobre a possibilidade de alguém ser impedido de comparecer

à corte sob a força da violência. Deixa claro de 954e a 955a como seguirá a sanção

à infração a qual se refere. Em 954a:

O ateniense: Se alguém impedir pela força que alguma pessoa compareça a uma corte, quer seja o demandista ou suas testemunhas, sendo a pessoa seu escravo ou escravo de outro senhor, a ação será anulada e invalidada (…).

Mais tarde, vê-se na obrigação de discorrer sobre o tema “recepção”. E

assevera, em 955b: “Aquele que, conscientemente, receber qualquer objeto furtado

estará sujeito à mesma penalidade do ladrão, e dar abrigo a um exilado constituirá

um crime a ser punido com a morte”.

Ainda haverá mais uma infração que será punida com a privação da própria

vida, aquele que decidir por si só celebrar a paz ou fazer a guerra sofrerá a maior

sanção que há. Em 955c: “Se qualquer porção do Estado celebrar a paz ou fazer a

guerra por sua própria decisão contra este ou aquele partido, os estrategos

convocarão os autores de tal ação perante a corte e a pena para aquele que for

condenado será a morte”.

Quanto aos impostos que deverão ser pagos ao Estado, “O ateniense” deixa

registrada a forma como se dará tal contribuição. Em 955d-e:

O ateniense: Quanto às contribuições em dinheiro feitas ao tesouro público, será necessário, por muitos motivos, que cada propriedade particular seja avaliada e também que o cômputo da renda anual seja entregue por escrito aos agorânomos pelos comissários das tribos, de modo que o tesouro possa optar pelo método de contribuição existente que preferir, e possa determinar ano a ano se

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exigirá uma proporção rio valor estimado na totalidade, ou uma proporção da renda anual atual, sem incluir os tributos pagos relativos aos repastos comuns.

Logo em seguida, argumenta sobre as oferendas aos deuses. Conclui, em

955e, que: “Quanto às oferendas votivas aos deuses, é conveniente a um homem

moderado apresentar oferendas de valor moderado”.

No que diz respeito à questão da organização do Estado, ou seja, do novo

governo, os pensadores se veem na obrigação de dar mais profundidade ao

assunto; e do parágrafo 956c-e ao 957b desenvolvem leis que darão respaldo a

determinações suplementares sobre a administração da justiça.

Passada tal fase, o estrangeiro, então, se concentra na figura do 'bom juiz', de

como as virtudes dessa figura deverão prevalecer para que esse título tenha valor

diante dos homens e dos deuses. Percebe-se em 957b-c:

O ateniense: Todas as regras relativas no silêncio e discurso discreto e o oposto destes da parte dos juízes e tudo o mais que diferir das regras vigentes em outros Estados concernentes à justiça, à bondade e à beleza – todas essas regras foram formuladas em parte, e em parte serão formuladas antes que encerremos nossos discursos. Todo aquele que se propõe a ser um juiz correto e imparcial terá que atender a todas essas matérias, tendo, também que estudar a exposição escrita delas que tiver em mãos, pois entre todos os estudos, o das regulamentações legais, contanto que seja corretamente estruturado, é o que será mais eficiente em fazer daquele que a ele se devota um ser humano melhor visto que, se assim não fosse, seria em vão que nossa lei divina e admirável ostentasse um nome aparentado à razão.

A morte é um assunto já abordado em outros Livros e aqui, no Livro XII, a

matéria volta à pauta para que sua real significação e seus acessórios sejam mais

explorados. Assim, com minúcia, os dialogantes estabelecerão o modo como ela

deve ser celebrada e, diante dessa celebração, quais ações os parentes e próximos

deverão ter. Em 959a-b:

O ateniense: Como em outras matérias, é mister confiar no legislador, o que nos induz também a nele acreditar quando nos sustenta que a alma é plenamente superior ao corpo e que nesta própria vida o que faz com que cada um de nós seja o que é nada mais é do que a alma, enquanto o corpo é para nós a imagem concomitante, estando certo quem diz que o corpo sem vida não é senão a imagem do morto e que o eu real de cada um de nós, que chamamos de alma imortal parte para prestar contas perante outros deuses (…).

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Então, de 959d-e a 960c encontra-se toda a lei pertinente ao caso.

Depois, há um breve momento de filosofia sobre a virtude, novamente. Mais

que necessária, ela é primordial na atmosfera do novo Estado. Platão, na voz dos

dialogantes, enfatiza numerosas vezes tamanha importância na vida do homem.

Assim, pode-se notar em 963a:

Clínias: E não seria, estrangeiro, o parecer que expressamos já há muito tempo atrás o acertado? Dissemos que todas nossas leis devem sempre visar um único objetivo, o qual, segundo nosso consenso, é denominado virtude com absoluta propriedade.

E, mais adiante, em 963c-d:

O ateniense: E, no entanto, as chamamos todas por um único nome: afirmamos que a coragem é virtude, que a sabedoria é virtude e as duas outras o mesmo, como se realmente não constituíssem uma pluralidade, mas tão-só esta coisa única, virtude.

Ainda, em 965d:

O ateniense: Naturalmente nos será forçoso obrigar os guardiões de nossa constituição divina a observarem meticulosamente, em primeiro lugar, qual é o elemento idêntico que permeia todas as quatro virtudes, e que – considerando-se que existe como uma unidade na coragem, temperança, justiça e sabedoria – possa com justeza ser denominado, como o afirmamos, pelo único nome de virtude.

Já se referindo ao conselho noturno, ou seja, aquele de suma relevância na

ordem do Estado, uma vez que compete a eles a fiscalização e a boa manutenção

dos magistrados e da sociedade, tem-se em 966b:

O ateniense: (…) verdadeiros guardiões das leis devem conhecer efetivamente a verdadeira natureza delas, além de serem capazes tanto de expô-la pelo discurso quanto agir em conformidade com ela em suas ações, julgando boas e más ações de acordo com sua verdadeira natureza?

Clínias: Certamente.

À frente, em 968a-b: “(…) o conselho noturno dos magistrados será

legalmente instaurado e participará de toda a educação que descrevemos, de sorte

a manter a guarda do Estado e assegurar sua preservação”.

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Para que o conselho noturno seja formado adequadamente, “O ateniense”

expressa em 968c:

O ateniense: Não é possível neste estágio, Megilo e Clínias, promulgar leis para esse conselho. É preciso que seja antes devidamente organizado. Isto feito, seus membros deverão eles mesmos determinar de que autoridade se revestirão. Mas já se mostra evidente que o que é necessário para formar um tal conselho, se o pretendermos corretamente formado, é o ensino por meio de contínuas conferências.

Para finalizar o Livro, mais uma vez o estrangeiro discorre sobre a

supremacia do conselho noturno e deixa claro que o Estado, uma vez estabelecido

tal conselho, estará em suas mãos. Em 969b-c:192

192 O ateniense: Se chegarmos de fato a formar esse divino conselho, meus caros colegas, nos será necessário confiar a ele o Estado, com o que praticamente todos os legisladores amais concordam sem contestá-lo. Assim teremos na conta de fato consumado e realidade de vigília o que há pouco abordamos em nosso discurso como um mero sonho, quando construímos uma espécie de imagem da união da razão com a cabeça, se tivermos os membros cuidadosamente selecionados e apropriadamente treinados e, após seu treinamento, colocados na acrópole do país, e desta feita finalmente constituídos como guardiões semelhantes aos quais em nossas vidas jamais vimos outros no que diz respeito à excelência na tarefa de preservar.

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7. DIREITO NATURAL E DIREITO POSITIVO NA ANTIGUIDADE

Todos os povos iniciam sua trajetória com a idéia da sacralidade da moral e do direito, sendo este de natureza imutável, enquanto a mutabilidade nasce da contingência histórica. A observação de tal mutabilidade introduz a concepção de um direito natural (por comparação), uma noção de lei superior a ser procurada.193

7.1 Considerações iniciais

A fim de apontarmos o direito natural de Platão em A República e sua

positivação em As Leis, faremos neste capítulo um breve estudo a respeito do

Direito Natural, o Direito Positivo e o Jusnaturalismo na Antiguidade.

Entende-se por Jusnaturalismo a doutrina segundo a qual existe – e pode

ser conhecido – um “Direito Natural” (ius naturale), ou seja, um sistema de normas

de conduta intersubjetivas diverso do sistema constituído pelas normas fixadas pelo

Estado (Direito Positivo). Tem validade em si, é anterior e superior ao Direito Positivo

e, em caso de conflito, deve prevalecer. É antitética à doutrina do Positivismo

Jurídico, segundo a qual há apenas um Direito, o estabelecido pelo Estado, cuja

validade independe de qualquer referência a valores éticos.194

O Direito Natural, portanto, é o sistema jurídico de caráter intersubjetivo; o

Jusnaturalismo, a escola que estuda o Direito Natural e defende a lei natural como

superior a qualquer lei. O Jusnaturalismo concebe, então, o direito dualisticamente,

considerando o Direito Natural e o Direito Positivo, devendo ser este último um

reflexo do anterior.

Espera-se que não exista conflito entre o Direito Positivo e o Direito

Natural, contudo, caso isso ocorra, os jusnaturalistas entendem que o Direito Natural

deve prevalecer. Como afirma Norberto Bobbio:

193 Sobre a ideia de direito natural na Grécia: DE CICCO, Cláudio. Op. cit., p. 48. 194 BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2001, p. 656.

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O estado civil nasce não para anular o direito natural, mas para possibilitar seu exercício através da coação. O direito estatal e o direito natural não estão numa relação de antítese, mas de integração. O que muda na passagem não é a substância, mas a forma; não é, portanto, o conteúdo da regra, mas o modo de fazê-la valer.195

A título de exemplo de um direito natural positivado, cite-se o caput do

artigo 5º da Constituição Federal brasileira, que prevê a vida como uma garantia

fundamental do ser humano: os jusnaturalistas, em qualquer tempo, reconheceriam

tal dispositivo como justo, mesmo que exista um dispositivo futuro contrário a este

ditame natural.

A doutrina teórica do Jusnaturalismo se opõe à doutrina da escola

conhecida como Positivismo Jurídico,196 cuja concepção monista admite apenas

uma forma de Direito, o Direito Positivo. Sendo assim, não há que se falar em

conflito entre Direito Natural e Direito Positivo.

Na história da filosofia jurídico-política, o Jusnaturalismo aparece em, pelo

menos, quatro versões fundamentais, também com suas variantes:

1. uma lei “natural”, em sentido estrito, fisicamente co-natural a todos os

seres animados à luz de instintos;

2. uma lei estabelecida por vontade da divindade e por esta revelada aos

homens;

3. a lei ditada pela razão, específica, portanto, do homem que a encontra

autonomamente dentro de si;

4. uma lei com escopo de garantir a dignidade da pessoa humana.

Todas as variantes, porém, comportam a ideia comum de que o Direito

Natural é um sistema de normas logicamente anteriores e eticamente superiores às

do Estado, a cujo poder fixam um limite intransponível. Deste modo, é possível

afirmar que os conceitos de Direito Natural e de Jusnaturalismo são análogos,

parcialmente iguais e parcialmente diferentes, ao longo da História.

195 BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant. São Paulo: Mandarim, 2000, p. 192. 196 Positivismo Jurídico é o nome da escola que estuda apenas o direito posto. Não acredita que possa existir um jusnaturalismo que justifique o Direito. Note-se que Positivismo Jurídico é o nome da escola, e que Direito posto ou Direito positivo significa o Direito escrito.

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A seguir, faremos breves considerações sobre o jusnaturalismo na

história do pensamento antigo.

7.2 O jusnaturalismo na Antiguidade

O Jusnaturalismo tem suas primeiras manifestações na Grécia Antiga.

Presente em Platão e, incidentalmente, em Aristóteles, foi elaborado principalmente

pelos estoicos, que consideravam a natureza governada por uma lei universal

racional e imanente.

Em época anterior ao século VI a.C., já se admitia na Grécia uma justiça

natural, emanada da ordem cósmica, sendo inseparáveis Natureza, Justiça e Direito.

Entre os pensadores desse período que formularam noções de justiça estão Homero

(discutindo a necessidade humana), Hesíodo (o trabalho humano), Sólon (a

igualdade), Sófocles (a lei natural), Heródoto (a eficácia da norma) e Eurípedes (a

legalidade).

Em Antígona, Sófocles (V a.C.) contrapõe o ‘justo por natureza’ ao ‘justo

por lei’. Antígona deseja cremar Polinice, seu irmão, que atentou contra a cidade de

Tebas, mas havia uma lei promulgada por Creonte, o tirano, que a impedia: a lei

proibia o funeral dos mortos que transgrediram as normas da cidade, o que

constituía uma grande ofensa para o morto e sua família, pois a alma não faria a

transição adequada ao mundo dos mortos. Antígona, enfurecida e entendendo que

as ordens de uma autoridade política não podem sobrepor as leis eternas, dos

deuses, faz o funeral do irmão, é capturada e sentenciada por Creonte à morte.

Antígona reflete sobre a lei de Creonte:

Nem Zeus, nem a justiça, irmã dos Deuses, o promulgou. Não creio que teu édito derrogue as leis não escritas e imutáveis dos Deuses, pois não passa de simples mortal. Não é de hoje, nem de ontem, que elas existem; são de todos os tempos e ninguém, em verdade, dirá quando começaram. Deveria eu, assim, por temor de tuas ordens, expor-me a merecer o castigo dos deuses?197

Foi com os sofistas que o Jusnaturalismo começou a ser esboçado. Ao

sustentar que o ser humano não estava apto a alcançar a verdade, fizeram inferir 197 SÓFOCLES. Édipo Rei. Antígona. Trad. Jean Melville da versão inglesa de Sir Richard Jebbs. São Paulo: Martin Claret, 2005, p. 186.

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que consequentemente as instituições político-jurídicas da pólis grega também não o

poderiam fazer, o que reflete a impossibilidade de se praticar plenamente a justiça.

Essa relativização da justiça ocasionaria certo desprezo às leis.

Sócrates considera temerária a visão sofista quanto à vulnerabilidade das

leis no tempo e no espaço, pois não possibilitava o entendimento correto sobre o

sentido da ética e do bem. Portanto, em sentido contrário, Sócrates preleciona que a

virtude deveria ser o vínculo entre o indivíduo e a sociedade. Diante da virtude,

portanto, estaria a justiça, independentemente do julgamento humano.

Platão, como já foi visto, enquanto discípulo de Sócrates, responde pela

Teoria das Ideias. De acordo com o idealismo platônico, o mundo sensível constitui

a sombra da verdade perfeita e imutável do mundo das ideias. A justiça ideal

expressa a harmonia das três partes da alma – epitimia, thimós e logos, bem como

está presente nas virtudes particulares – a temperança, a coragem e a sabedoria.

Apenas rememorando, a justiça política apresenta-se semelhante à justiça do

indivíduo.

Em A República, Platão expressa uma sociedade na seguinte dinâmica:

os artesãos, de quem a justiça exige a temperança; os guardas, dos quais a justiça

reclama a coragem; os sábios, dos quais a justiça demanda sabedoria, e só é justa a

cidade em que todos exerçam seus papéis. Em A Política e em As Leis, Platão

inclui na estrutura de seu pensamento a necessidade de normas coercíveis para que

a justiça consubstancie a lei suprema da sociedade ou do Estado.

No que diz respeito ao entendimento sobre o que é ‘positivo’ e o que é

natural, Norberto Bobbio, ao comentar uma passagem de Aulo Gellio, aduz:

Como se vê, nesta passagem a contraposição entre ‘positivo’ e ‘natural’ é feita relativamente à natureza não do direito, mas da linguagem: esta traz para si o problema (que já encontramos nas disputas entre Sócrates e os sofistas) da distinção entre aquilo que é por natureza (physis) e aquilo que é por convenção ou posto pelos homens (thésis). O problema que se põe pela linguagem, isto é, se algo é ‘natural’ ou ‘convencional’, põe-se analogamente também para o direito.198

198 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico. Noções de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 2006, p. 15.

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Aristóteles também subordina o conceito de justiça à ordem universal.

Mesmo sendo discípulo de Platão, discorda do idealismo platônico ao entender que

a matéria não poderia se dissociar da forma, a menos por abstração. No seu

entendimento, a justiça não se dissocia da pólis ou da sociedade: o homem como

animal político necessita de convivência e da promoção do bem comum. Conforme o

pensamento aristotélico, essas premissas fundamentam a importância da lei para

regular a vida social, consoante os parâmetros da justiça. A justiça é vista como uma

virtude, adquirida pelo hábito, com a reiteração de ações num determinado sentido.

A justiça política subdivide-se em: natural e legal. O justo natural expressa

uma justiça objetiva imutável e que não sofre a interferência humana. Por sua vez, o

justo legal é a lei positiva, emanada do legislador e que sofre a variação espaço-

temporal. Admite que a lei positiva pode carecer de correção, o que se realiza pela

observância do justo natural e pela aplicação da equidade. Conforme sua obra

Retórica no Livro II, cap. 1: “se a lei escrita dispõe contra nós, devemos apelar para

a lei universal e insistir em sua maior equidade e justiça”.

A distinção conceitual entre Direito Natural e Direito Positivo pode ser

vista em Ética a Nicômaco, Livro V, Capítulo VII:

Da justiça civil uma parte é de origem natural, outra se funda na lei. Natural é aquela justiça que mantém em toda parte o mesmo efeito e não depende do fato de que pareça boa a alguém ou não; fundada na lei é aquela, ao contrário, de que não importa se suas origens são estas ou aquelas, mas sim como é, uma vez sancionada.199

Os critérios usados por Aristóteles que possibilitam a distinção entre

Direito Natural e Direito Positivo são: i) quanto à eficácia, o direito natural mantém-se

o mesmo em toda parte, ao passo que o direito positivo tem eficácia somente para a

comunidade abrangida por aquele determinado direito posto; ii) quanto ao juízo de

valor, o direito natural independe deste (existe anteriormente à conduta) enquanto o

direito positivo requer que a lei seja cumprida, não importando a multiplicidade das

condutas possíveis (apenas uma é regulada e, portanto, esta deve ser seguida).

No período pós-socrático, o foco da filosofia grega passa a ser o

problema ético-moral, discutido no Epicurismo e no Estoicismo.

199 ARISTÓTELES. Op. cit., p. 16.

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No Epicurismo, escola para a qual a realidade é plenamente penetrável e

compreensível pela inteligência do homem, em diversas situações o homem pode

construir sua felicidade. Para atingir a paz e a felicidade, o homem precisa apenas

de si mesmo; a felicidade não depende da nobreza, da riqueza, dos deuses, ou das

conquistas exteriores, posto que o homem só é feliz quando é autônomo e

independente de condicionantes exteriores.

No campo da ética, o Epicurismo propõe que o homem experimente o

mundo a partir das sensações, formatando um conhecimento a partir de suas

experiências. Tais experiências propõem um arcabouço para que o homem consiga

distinguir o que é bom e o que é ruim, o prazer da dor, o natural e o não natural.

Consoante Epicuro:

Exatamente porque é um bem primitivo e natural, não escolhemos todo e qualquer prazer; podemos mesmo deixar de lado muitos prazeres quando é maior o incômodo que os segue; e consideramos que muitas dores são melhores do que os prazeres quando conseguimos, após suportá-las, um prazer ainda maior.200

Posto isso, o Epicurismo enfoca a busca da felicidade com prudência para

discernir e conquistar a ataraxia, que consiste na estabilidade de ânimo diante das

coisas, dos prazeres, das paixões e da própria dor. Neste enfoque, a justiça

estabelece-se como mecanismo para a busca do bem-estar pessoal, do prazer, não

há que se falar em um Direito Natural pré-determinante do que é justo ou injusto. As

leis consistem em um mero acordo entre os cidadãos, diferindo do racionalismo

estoico.

Para o Estoicismo, escola fundada por Zenon de Citio (350-250 a.C), o

conceito de Natureza era o centro do sistema filosófico. O Direito Natural

correspondia à lei da razão, sendo o homem uma criação basicamente racional. A

razão, como força universal, era considerada pelos estoicos a base do Direito e da

Justiça. De acordo com essa escola, existe um Direito Natural comum, baseado na

razão, universalmente válido, seus postulados são indistintamente obrigatórios.

Muitas das formulações encontradas entre os estoicos são semelhantes às

estabelecidas por Platão e Aristóteles.

200 EPICURO. Carta a Menequeu. In: MORAES, João Quartim de. Epicuro: as luzes da ética. São Paulo: Ed. Moderna, 1998, p. 92.

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A concepção jusnaturalista dos estoicos reassume o conceito de logos. A

razão universal está em cada indivíduo, pressupondo um direito natural

universalmente válido e baseado na razão, que diverge do Direito posto.

O Estoicismo foi revisitado por Cícero, em Roma, sob o postulado básico

de que a natureza e a razão compõem um todo, imutável e eterno, e que o homem

deve viver conforme sua natureza racional, manifestação da lei universal, sem violá-

la. Conforme sua obra De Officis:

(...) há de fato uma verdadeira lei denominada reta razão, que é conforme a natureza, aplica-se a todos os homens, é imutável e eterna. Ela não prescreve uma norma em Roma, outra em Atenas, nem uma regra hoje e outra diferente amanhã. Essa lei eterna e imutável abrange todos os povos e todos os tempos.201

Para o jusfilósofo, os homens nasceram para a Justiça, fundando-se o

Direito na natureza e não no arbítrio. Cícero prenuncia um direito natural

racionalista, oposto à fundamentação metafísica da antiga tradição pré-socrática,

inovando, portanto, a partir do conceito da naturalis ratio, a conexão intrínseca entre

a natureza e a razão.

Entre as categorias previstas nas Instituições de Justiniano, o jus gentium

equivale ao Direito Natural e o jus civile ao Direito Positivo. O primeiro não tem

limites e é posto pela naturalis ratio, o segundo limita-se a um determinado povo e é

posto pelas entidades sociais que o representam. Ainda, o Direito Natural é

universal, imutável e estabelece aquilo que é bom (bonum et aequum); o Direito

Positivo é particular no tempo e no espaço, bem como estabelece aquilo que é útil

(segundo o critério econômico ou utilitário).202

Entre as categorias previstas nas Instituições, o jus gentium equivale ao

Direito Natural e o jus civile, ao Direito Positivo.

Sobre o Direito Natural na antiguidade, Norberto Bobbio nos adverte que

mesmo este existindo, era o Direito Positivo que prevalecia:

O exame das diversas concepções sobre a diversidade de planos em que se colocam o direito natural e o positivo nos levaria muito longe. Limitando-nos a algumas indicações a respeito diremos que na época clássica o direito natural não era considerado superior ao

201 CÍCERO. Os pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1978, p. 224. 202 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico... cit., p. 19.

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positivo: do fato o direito natural era concebido como "direito comum"203 (koinós nómos conforme o designa Aristóteles) e o positivo como direito especial ou particular de uma dada civitas; assim, baseando-se no princípio pelo qual o direito particular prevalece sobre o geral ("lex specialis derogat generali"), o direito positivo prevalecia sobre o natural sempre que entre ambos ocorresse um conflito (basta lembrar o caso da Antígona, em que o direito positivo o decreto de Creonte prevalece sobre o direito natural – o "direito não escrito" posto pelos próprios deuses, a quem a protagonista da tragédia apela).204

Concordamos com a posição supramencionada. Acrescemos ao exemplo de

Antígona o aceite de Sócrates às Leis positivas do Estado com sua pena de morte.

Ao nosso objeto de estudo, cumpre observar que Platão constrói boa parte de sua

doutrina política como proposta de negar o modelo, que, a seu juízo, assassinou seu

grande mestre. É nesse diapasão que Platão busca propor uma teoria do Direito

Natural superior ao Direito Positivo. Essa proposta é o que veremos no próximo

capítulo.

203 O Direito natural era considerado comum, pois este se contrapunha ao direito Sacro, tradicional das famílias gregas do culto dos antepassados. Nesse sentido DE CICCO, Cláudio. Op. cit., p. 70 e ss. e FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 92-93. Cap. 8 do livro II – Autoridade na família: “A família não recebeu da cidade as suas leis. (...) O direito privado existiu antes dela (a cidade). Quando a cidade começou a escrever suas leis, achou esse direito já estabelecido, vivendo enraizado nos costumes, fortalecido pela unânime adesão. (...) O direito antigo não é obra de um legislador: pelo contrário, impôs-se ao legislador. Seu berço está na família Nasceu ali espontaneamente, formado pelos antigos princípios que a constituíram. Decorreu das crenças religiosas universalmente aceitas na idade primitiva desses povos e reinando sobre as inteligências e as vontades”. A medida que a pólis grega aumenta populacionalmente, evoluindo economicamente, há uma desconcentração do poder que vai perdendo cada vez mais o seu caráter primitivo sacral, ligado ao culto dos antepassado se vai se tornando cada vez mais um problema de força. Entende-se ai a diferença estabelecida por Hanna Arendt no Entre o passado e o futuro, entre poder potestas, e autoridade auctoritas. Ou seja, poder é força, autoridade é consentimento baseado no respeito. 204 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico... cit., p. 25.

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8. O DIREITO NATURAL DE PLATÃO NA REPÚBLICA E SUA POSITIVAÇÃO NAS LEIS

8.1 Considerações iniciais

A partir das considerações feitas anteriormente, objetivamos nesse capítulo

criar o elo necessário para a compreensão dos elementos do direito natural na

República e sua positivação nas Leis.

É na obra A República que Platão expõe sua teoria da justiça com

fundamentação no Direito Natural.205 Vimos que nessa obra a justiça é apresentada

como sendo uma ordenação da alma identificada com a essência inteligível, tal

justiça tem o papel de ser um modelo, se não um paradigma para todos na pólis.

Platão entendia como cidade justa aquela em que cada um exercesse seu

papel. Ou seja, o bom jardineiro não poderia querer ser governante e um governante

não pode querer ser guerreiro, por exemplo. Antes de chegar à síntese deste

conceito temos alguns debates no Livro I e uma longa exposição sobre a teoria da

justiça nos demais livros.

8.2 Trasímaco e o positivismo jurídico

Logo no Livro I de A República, Sócrates apresenta, por meio de rejeições,

algumas bases sobre o que não é justo. A assertiva de Céfalo ao dizer que “por ser

justo, respondeu, dar a cada um o que lhe é devido, máxima que se me afigura bem

enunciada” é rebatida por Sócrates que assevera que é muito difícil definir justiça

por essa afirmação, uma vez que não define seu lugar tampouco seu objeto. A

segunda máxima, proposta por Polemarco de que a especificidade da Justiça é fazer

o bem, favorecendo os amigos e prejudicando os inimigos não é aceita por Sócrates,

205 Não obstante, a questão da justiça é discutida em Górgias, Protágoras e na própria As Leis.

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pois se assim fosse, implicaria na possibilidade de que uma pessoa justa utilizasse

tanto a justiça quanto a injustiça para realizar seus fins, o que é contraditório.

Após esses debates, Trasímaco surge e centra algumas definições de justiça

que são rebatidas por Sócrates. A primeira definição que oferece para a justiça, em

338-c é “justo não é mais nem menos do que a vantagem do mais forte”,206 sendo

que o mais forte é aquele que promulga as leis. Essa primeira visão de Trasímaco

nos leva a crer que as leis são justas à medida que os governos se impõem.

Exemplo: são justas as leis tirânicas em um governo tirânico.207 Para isso

relembramos novamente a fala de Trasímaco em 338-e a 339-a.

Cada governo promulga leis com vistas à vantagem próprias: a democracia, leis democráticas; a tirania, leis tirânicas, e assim com as demais formas de governo. Uma vez promulgadas as leis, declaram ser de justiça fazerem os governados o que é vantajoso para os outros e punem os que as violam, como transgressores da lei e praticantes de ato injusto. Eis a razão, meu caro, de eu afirmar que em todas as cidades o principio da justiça é sempre o mesmo: o que é vantajoso para o governo constituído. Este, porem, detém o poder, de forma que, bem considerado, será certo concluir que o justo é sempre e em toda parte a vantagem do mais forte.

A posição de Trasímaco, rebatida por Sócrates, é muito semelhante a dos

pensadores que baseiam a aplicação da justiça no uso do poder, como já dito.

Podemos dizer que Trasímaco, ao fazer esta afirmação revela-se um dos

precursores do positivismo jurídico, que consideram justo tudo o que está de acordo

com a vontade do legislador que tem poder para legislar e para julgar. Desse modo,

a justiça nada mais é do que a aplicação da lei, independente do governo que a

estabeleça, e, em última análise, não há nada que seja naturalmente justo existindo

apenas o legal.

Nessa perspectiva, a oposição oferecida por Sócrates é interessante, pois

mostra que este se opõe a uma visão positivista, o que não o transforma,

necessariamente, em um jusnaturalista, mas que certamente o exclui de uma visão

estritamente legalista.

206 483-c-e e 484-a-c em Górgias, Cálicles defende a ideia de que a natureza criou fortes e fracos e que estes devem governar e os fracos devem sucumbir. 207 Sócrates refuta tal ideia ao afirmar que tal visão pode levar a pleonexia e que o justo não deve buscar seu próprio interesse.

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Após a refutação de Sócrates, Trasímaco não se verga aos seus argumentos

e aponta que o justo sempre sai em desvantagem do injusto. Então é a partir dessas

afirmações que Sócrates, em 349b – 350c, diz que não é interesse do homem justo

galgar, tirar vantagens de seu semelhante, somente o ignorante e injusto faria isso e

contanto não definiríamos a justiça, mas sim a injustiça.

Desse primeiro livro da obra A República, podemos observar que, para

Platão, para fins da definição de justiça, é essencial delimitar o lugar e o objeto da

mesma. Ressalta ainda o filósofo que o mais forte necessariamente não é o mais

justo e que não se pode conceituar justiça como a vantagem do que se impõe.208

8.3 O divino e o direito natural para Platão

A síntese da teoria do direito natural em Platão está em Filebo quando

Sócrates afirma em 28c “o intelecto é o rei de nosso céu e de nossa terra”. A ideia

que se busca passar com essa assertiva é que o intelecto consiste em um atributo

do ser humano, e que este que compartilha com a divindade a capacidade de

convertê-lo de alguma maneira também em um ser divino. Por consequência, o

único ser capaz, entre todos os seres vivos, de possuir a inteligência como potência

é o homem. Tal potência pode se desenvolver de maneira adequada, por meio de

uma rigorosa educação à luz das virtudes e com isso o homem se torna semelhante

ou próximo ao ser divino.

Essa semelhança do homem com o divino consiste em uma imitação sendo a

busca pela plenitude (télos), para a qual devem mirar todos os esforços humanos.

Entretanto, é impossível imitar o desconhecido, assim, com isso, para imitar o divino

é preciso que o homem saiba o que o ser supremo faz, para que dessa maneira

possa conhecer minimamente essa ação divina e, com isso, fazer mimeses da

perfeição. Assim brota a indagação, o que a entidade divina faz?

Para essa questão Platão busca a resposta na observação da natureza, ou

seja, observa as realidades do mundo. Entende que os seres humanos convivem em

uma natureza que não criaram, sendo, portanto, partes integrantes da natureza e

não criadores desta. Aliás, os seres humanos, não foram sequer criadores de sua 208 A justiça tem como lugar a cidade e como objeto a alma, devendo ser justo os atos guiados pela razão.

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própria espécie ou do curso dos astros e da vida. Assim, o homem convive e existe

com outros homens em um mundo que não criou, embora possa criar a partir dos

elementos que são dados nesse mundo.209

Como dissemos, embora todas as coisas do mundo não tenham sido feitas

pela ação humana, estão marcadas por uma certa ordenação, tal como os seres

vivos, que nascem, crescem e morrem, ou então os astros que sempre seguem a

mesma órbita nas várias estações do ano. Como já dissemos no capítulo II, em

especial sobre Heráclito de Éfeso, o dinamismo universal é constantemente

marcado por um principio de ordem. Com isso, todo Universo é uma bela

ordenação210, lembrando que em grego cosmos é harmonia.

Toda essa ordenação que existe no Universo não pode ser fruto do acaso,

mas certamente de uma inteligência que criou e ordenou todas as coisas. Sobre as

crenças nos deuses destacamos o seguinte trecho, 966e, de As Leis:

O ateniense: Está patente para nós, então, que há duas provas, dentre aquelas que discutimos anteriormente, que conduzem à crença nos deuses?

Clínias: Quais duas?

O ateniense: Uma é que asseveramos acerca da alma, ou seja, que ela é a mais antiga e mais divina de todas as coisas cujo movimento, quando desenvolvido em mudança produz uma fonte incessante de ser, e a outra é o que asseveramos no que concerne à ordenação dos movimentos dos astros e todos os demais corpos sob o controle do intelecto, organizador do universo, pois por pouco que se observe diferentemente de uma maneira descuidada e amadorística, jamais foi o ser humano tão natamente desprovido do senso do divino a ponto de não experimentar o oposto daquilo que é a expectativa da maioria dos indivíduos humanos, que imaginam que aqueles que estudam esses objetos na astronomia e demais artes correlatas necessárias se tornam ateus pela observação, supõem eles, de que todas as coisas vêm a ser devido a forças necessárias, e que não devido à energia mental da vontade que colima o cumprimento do bem.

209 Embora Aristóteles parta das reflexões de Platão, estes divergem. Isto se dá porque Aristóteles acredita que o direito natural é parte do direito político e que é possível verificar tal direito natural como consequência das interpretações da sociedade. Platão, como vimos, tanto a política, como a legislação como a justiça se fundamentam no principio eterno, anterior à própria sociedade. No mesmo diapasão de Platão, Santo Agostinho, considera que existem as leis humanas e a lei divina, ou eterna, que é a razão suprema de tudo, sendo que a lei eterna determina a ordenação, e por conta disso o direito positivo (no caso a lei temporal) deve-se basear no direito natural (manifestação da lei eterna), pois caso isso não ocorra tal lei não será justa. 210 Cosmo (Universo), como vimos em Pitágoras, significa em sua gênese “belo”.

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Por conta do argumento da beleza do Universo, recordando que a beleza não

decorre de um ato criador humano, temos a prova da existência de um Ser

Supremo, no caso, a divindade. Daí se extrai que organização e ordenação,

percebidas pela própria inteligência humana são derivadas de outra inteligência, a

divina. À guisa de exemplificar, citemos uma cidade organizada; isso não nasceu de

um mero acaso, mas sim da ação ordenadora guiada pela inteligência de alguém.

Isso não ocorre com uma ordem muito maior, com o cosmo e seu todo? A resposta

para essa pergunta, à luz do pensamento platônico, é sim, desde que seja pela ação

divina que é uma inteligência superior que produz a ordem do universo.

Com esse exemplo, e a compreensão do Universo como sendo uma obra da

inteligência divina, chegamos à imitação que o homem deve buscar fazer. Se a

inteligência divina produz ordem, deve a inteligência humana, que em algum grau

compartilha da inteligência divina, produzir belas obras que tem também como

marca a ordem.

A dúvida que surge poderia ser: quais são as obras humanas? Em um

primeiro momento são os atos que visam inserir ordem nas matérias da natureza

como a construção de uma cadeira por exemplo.211 Ocorre, entretanto, segundo

Platão, que a inteligência humana não está restrita apenas à ordenação de objetos

materiais: o homem, em sua imitação de Deus, pode e deve buscar ordenar a si

mesmo e também as relações que trava com os seus pares. Por conta disso, na

política, o homem deve ordenar imitando o divino, e nesse caso, a estrutura social

disposta em A República e reiterada em As Leis, é a mais possível acertada.212

Se o divino ordenou o universo, harmonizando elementos dos mais diversos

com sua inteligência, cabe ao homem imitar a divindade auto-ordenando sua alma e

a cidade. Importante destacar que o ser humano que conhece a divindade e sua

ação ordenadora não poderia permanecer com a alma desagregada sendo

suscetível a um conflito da alma, pois isto o distanciaria do divino e

consequentemente da inteligência.

211 Para construir uma cadeira é preciso do projeto, do material, do carpinteiro, da ordem da construção, enfim, é preciso uma ordenação. 212 Como já vimos, em A República, Platão oferece uma teoria da Justiça que se apresenta na tripartição da organização social e na tripartição da alma. Temos nas classes sociais os homens de ouro, prata e bronze, sábios, guardas e produtores respectivamente, e temos nas partes da alma, a epitimia, o thimós e o logos.

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Ocorre, porém, que alguns homens não conseguiriam aflorar a parte da alma

mais ligada ao logos ou a inteligência. Com isso, temos dois tipos de homens, quais

sejam: os homens justos, de alma organizada, cujos desejos obedecem à razão e,

por conseguinte se governam pelo conhecimento verdadeiro; e o segundo tipo de

homens, aqueles que podem ser injustos, dotados de almas vulneráveis,

desorganizadas e suscetíveis a conflitos. Tais falhas levariam esses homens a

possíveis atos desprovidos de justiça e guiados por opiniões verdadeiras ou falsas.

É por conta dessa problemática, qual seja, da existência, na cidade, de

homens justos e possíveis homens injustos, que Platão oferece sua organização

social pautada nos Sábios que governam (primeiro tipo de homem), e nos guardas e

produtores que são governados (o segundo tipo de homem). Os sábios jamais serão

suscetíveis a conflitos da inteligência ordenadora com qualquer parte da alma, e

com isso, ao governarem, proporão uma organização justa baseada na natureza dos

Deuses, sendo que todos os demais213 os devem seguir. Surge uma pergunta:

E caso estes não sigam as determinações justas, inteligentes e ordenadas

dos sábios o que fazer? Devemos aplicar qual lei? É nessa perspectiva, da

necessidade de coercibilidade para aqueles que não participam agindo de maneira

justa na pólis que se apresenta a obra As Leis.

8.4 O direito natural em A República e sua positivação em As Leis

Dessa exposição podem surgir algumas perguntas como: A obra As Leis, não

seria algo imperfeito por tratar-se de uma cópia da natureza, ou ainda, uma cópia da

inteligência divina?

Essa pergunta precisa ser compreendida com a conjugação do capítulo V

deste trabalho no sentido de que a punição da alma está ligada aos Deuses que

aplicarão penas àqueles que praticarem atos injustos, como vimos no Mito de Er.

Ocorre que a punição da alma não alcança o corpo, nesse diapasão que

Platão entende que o corpo deve ser punido, mas como fazê-lo se qualquer cópia

será imperfeita?

213 Estes possuem opiniões que podem ser verdadeiras ou falsas, ao contrário do conhecimento dos governantes que é sempre verdadeiro.

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Tal punição do corpo acontece da melhor maneira no plano sensível, pois os

sábios organizarão As Leis à luz da perfeita organização dos deuses e do

engendramento natural do cosmos. É de se esperar, que os sábios, por possuírem

uma alma destacadamente racional, organizarão as melhores leis a serem aplicadas

na pólis que poderão até não serem perfeitas, mas que certamente visam a essa

perfeição ou participam do conceito de lei ideal.

Outra questão que poderia surgir seria: As Leis não revela um Platão

Positivista que abandona o fenômeno moral da justiça e desliga sua visão de

encontrar na organização da natureza a resposta para pólis ideal, como afirmou

Michel Villey?214

Para essa questão a resposta é completamente negativa, pois Platão não

abandona sua estrutura de cidade justa disposta em A República. Platão continua

se valendo da justificativa jusnaturalista para fundamentar suas Leis. Em outras

palavras, Platão é um jusnaturalista que positiva suas leis naturais. Tal posição

muito se assemelha com a perspectiva trabalhada no capítulo anterior com relação

ao jusnaturalismo que se considera uma doutrina imutável e superior e anterior ao

direito positivo. Além do que, As Leis Platônicas não nascem para anular o direito

natural Platônico exposto em A República,215 mas sim surgem para possibilitar seu

exercício através da coação. O direito estatal e o direito natural não estão numa

relação de antítese, mas de integração.

Como observa Richard R. Oliveira:

Todavia, na República Platão opta por seguir um caminho claramente oposto a esse, e, em polêmica deliberada contra os sofistas, tenta demonstrar que a justiça não pode ser reduzida à mera legalidade ou ao simples conjunto exterior e convencional das normas jurídicas, mas deve, antes, ser compreendida como um valor em si, independente da lei, cujos fundamentos naturais se

214 VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 37: “É digno de nota que Platão, tendo partido de tão alto, acabe terminando, no fim das contas, numa espécie de positivismo jurídico bastante grosseiro. É este, com efeito, o defeito dessa doutrina ambiciosa demais, ideal demais. Por ter mirado alto demais, acaba caindo muito abaixo. O direito deveria emanar apenas do filósofo; como não há filósofo, ou, se o filósofo existe, ele não está no governo, entrega-se o direito à ditadura do príncipe”. 215 LUCCIONI, Jean. La pensée politique de Platon. Paris: Presses Universitaires de France, 1958.

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encontram assentados na nas profundezas da psyché humana.216-217

Disso podemos perceber que a obra As Leis não consiste em um

“desencantamento com o ideal”, como afirmou Luccioni, por uma conversão realista

que Platão teve no fim da sua vida. O que podemos compreender é que Platão, na

busca de não oferecer um modelo irrealizável, propõe a imitação de um modelo

celeste, nas palavras de Alysson Mascaro: “Nessa obra Platão rebaixa as exigências

ideais propostas em A República”,218 note que rebaixar exigências não significa

abandoná-las. A cidade justa em A República é uma utopia: consiste em uma ideia

inteligível do que seria uma cidade ideal. Não obstante, tal cidade pode ser o modelo

ao qual as cidades devem buscar se aproximar. E em As Leis, é traçado um diálogo

em que Platão tenta traçar a “segunda melhor cidade” (739-e), isto é, a cidade em

que as leis se baseiam no conhecimento verdadeiro do direito natural. Em 713-e

Platão mostra não abandonar sua ideia de cidade ideal em As Leis.

Com isso, concluímos, por todo o exposto nesse capítulo, que essa busca da

inteligência divina que se manifesta na natureza, e que deve ser copiada por

aqueles que detêm a razão como parte mais forte da alma a fim de se organizar uma

cidade justa, certamente está ligada à ideia do direito Natural que pode ser

positivado por sábios.

216 OLIVEIRA, Richard R. Op. cit., p. 79. 217 No mesmo sentido, ROMILLY, J. De. La loi dans La penseé Grecque. Des origines à Aristote. Paris: Les Belles Lettres, 1971. 218 MASCARO, Alysson Leandro. Op. cit., p. 61.

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CONCLUSÃO

Visando encaminhar nossas últimas considerações, da forma mais elucidativa

possível, analisamos de acordo com a sequência expositiva ao longo do trabalho os

aspectos mais relevantes para que possamos chegar à comprovação de nossa tese.

O estudo do contexto de Platão no Estado Grego faz-se necessário para a

compreensão de qual momento se posiciona sua proposta filosófica, assim, com

esse estudo compreendemos melhor a democracia ateniense e seus centros de

poder e corrupção que eram financiadas também pelos valores financeiros advindo

das cidades ligadas a Confederação de Delos.

Com essas considerações fica mais compreensível o tempo e o espaço dos

diálogos platônicos, em especial suas obras A República e As Leis. Com isso, o

estudo histórico nos leva a uma compreensão do homem enquanto ser político e seu

papel na pólis; além da compreensão dos conflitos entre as cidades-estados gregas

e as causas e consequências das guerras que geraram grandes desigualdades.

Sobre os precursores do pensamento Platônico, já no segundo capítulo, ficou

demonstrado que o melhor estudo de Platão se faz compreendendo aqueles que o

antecedem ou viveram contemporaneamente à sua época. Com os pré-socráticos,

como vimos, tem-se o nascedouro da filosofia ocidental, e muitos dos temas

abordados por eles são recuperados, apresentados ou refutados pela doutrina

platônica.

Com relação aos sofistas, é impossível estudarmos o pensamento platônico

apartado deles. Muitos diálogos têm na figura do sofista a possibilidade de

exposição e organização do método dialético socrático ou a possibilidade de

exposição da própria doutrina platônica, pois são estes que, refutando-a ou não, dão

forma ao modelo dialógico das obras.

As notas sobre Sócrates reforçam o que é cediço nos estudos filosóficos, quer

seja, que este pensador exerce grande importância na formação e organização do

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pensamento platônico. O grande mestre de Platão, apresentado em sua doutrina

nas obras de primeira fase, mostrou não apenas as questões relacionadas às

virtudes cardinais ou ao seu método dialético e maiêutico de ensinar e aprender,

mas criou em Platão uma verdadeira repulsa ao modelo democrático com se

apresentou em Atenas, e isso certamente, dentre outros motivos, gerou a vontade

em Platão a vontade de elaborar uma proposta política para uma cidade ideal.

O desfecho de nosso referencial teórico se deu com atenção para a teoria e a

ação de Platão. Com a exposição dos elementos históricos e os pensadores

precedentes e contemporâneos pudemos compreender melhor as tramas históricas

e filosóficas que envolveram a vida e a divisão doutrinária de sua obra.

Já no desenvolvimento, estudamos, no quarto capítulo, o diálogo jovem de

Platão conhecido por Protágoras. Nesta exposição observamos quais são as quatro

Virtudes Cardinais apresentadas por Sócrates: Temperança, Coragem, Sabedoria e

Justiça. Vimos ainda que a teoria socrática das virtudes considera que estas só

podem ser verificadas conjuntamente, jamais se podendo encontrar alguém que

possua separadamente as virtudes. A fim de provar essa tese, Sócrates apresentou

quatro argumentos, sendo que apenas um foi rebatido e deflagrado como falso por

Protágoras.

Sobre a interpretação da concepção da inseparabilidade das virtudes

verificamos que existem duas posições, a da bicondicionalidade ou da reciprocidade

e a da unidade ou da identidade. Aquela considera que quem tem uma virtude tem

todas, já esta considera que as quatro virtudes cardinais são nomes diferentes para

uma mesma coisa, qual seja a Virtude.

Ainda nesse capítulo, verificamos que já nos diálogos médios (que

representam a doutrina efetivamente platônica), Platão muda sua postura, o que é

perceptível quando a forma elêntica ou refutativa de Sócrates dá lugar a um

Sócrates porta-voz de Platão no que tange a Teoria da Justiça.

Na obra A República ou Da Justiça, vimos que Platão não se vale mais do

fenômeno moral das virtudes, percebendo o fracasso desta ideia e começando a

pensar o fenômeno moral através da tripartição da alma.

Partindo da proposta de uma cidade ideal e justa, Platão chega a uma

proposta de homem justo. Como verificamos, a Cidade ideal é dividida em três

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grupos: os produtores, os guardiões e os sábios. Os produtores ligam-se à virtude

cardinal conhecida como Temperança, os guardiões ligam-se principalmente à

Coragem e os sábios que se ligam principalmente à Sabedoria. Assim, os

produtores são temperantes, os guardiões são temperantes e corajosos e os

governantes são temperantes, corajosos e sábios. Conclui que a virtude “Justiça” na

cidade reside em cada um cuidar do que lhe diz respeito, ou em outras palavras,

cada um exercer o seu papel social. Tal tese demonstrou como Platão abandonou a

Teoria da Unidade das Virtudes supracitada.

Com relação ao indivíduo e às virtudes cardinais, verificamos que Platão

ligou-as a um tipo de motivação, ou parte da alma. Os temperantes (produtores)

foram ligados com a parte da alma conhecida como a epitimia ou apetite; os

corajosos (guardiões) foram ligados com o thimós, ou parte iraciva da alma; e os

sábios foram ligados ao logos, ou a parte racional da alma.

A partir dessas observações chegamos a uma conclusão, qual seja: Os

governos devem ser exercidos por pessoas sábias, isso porque, ao terem uma alma

governada pelo logos jamais deixar-se-ão guiar pela epitimia ou pelo thimós, e com

isso encontramos o equilíbrio das virtudes e das partes da alma a fim de não

verificarmos contradições.

O capítulo subsequente ao desenvolvimento desta tese demonstrou um

problema na teoria platônica da República. Trata-se da questão da coercibilidade.

Ao expormos o Mito de Giges e o Mito de Er, verificamos que as leis coercitivas

pensadas por Platão, não sã verificadas no plano sensível, existindo apenas no

plano inteligível da alma. Isso denota muita fragilidade na possibilidade de aplicar

sua teoria de justiça em qualquer tempo ou lugar. Além disso, a frustração de

aplicação desta teoria se mostra com a questão biográfica de que Platão tentou

aplicar seu sistema de justiça ideal na Sicilia e não obteve êxito.

Com a necessidade da coercibilidade no plano sensível, Platão, como vimos

no extenso capítulo VI, apresentou seu segundo melhor modelo de cidade em As Leis. Nesta obra, Platão busca apresentar preceitos para que possam ser

positivados a fim de construir-se uma cidade justa.

Organizado em doze livros, a proposta política jurídica de Platão discorre

dentre outras coisas, sobre a guerra e seus problemas, as virtudes, a embriaguez, a

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educação e os efeitos do vinho, no Livro I; o papel da música do canto e da dança

na educação, a arte, elogios aos anciões, no Livro II; as vicissitudes das sociedades

políticas, origem das legislações e primeiros grupos sociais, no livro III; o novo

Estado, o comércio junto ao mar e a corrupção, a hierarquia das formas de governo,

o Deus legislador, a natureza da justiça, os deveres em geral e com os pais, o

preâmbulo das leis e seu papel se comparado com os prelúdios na música, no Livro

IV; a hierarquia dos deveres perante nossa alma, os modelos de Estado e modelo

de segundo Estado, no Livro V; a educação política e a escolha dos magistrados, os

eleitores e as medidas transitórias necessárias, o papel dos guardiões da lei e da

cidade, a educação do magistrado, o casamento e suas questões relativas, no Livro

VI, o retorno à questão da educação para diversas áreas tanto para os homens

quanto para as mulheres, no Livro VII, as festas e os sacrifícios, os jogos militares,

amor e riquezas, perversões amorosas, o amor, as questões da agricultura, relações

entre vizinhos, comércio e economia coletiva, no Livro VIII; as diversas questões

ligadas ao direito criminal no Livro IX; a impiedade, suas formas e hierarquias, a

alma, no Livro X; o direito civil e comercial, no Livro XI; e propostas sobre o justo e

demais questões no Livro XII.

Nesses doze livros ficou demonstrada não só a manutenção da proposta de

organização social da República, como também se verificou a preocupação de

propor uma organização legislativa positiva a fim de coagir aquele que viva na égide

do signo da injustiça.

No capítulo sétimo, a definição de direito natural é dada com clareza, ou seja,

o Direito Natural é um sistema de normas logicamente anteriores e eticamente

superiores às do Estado, a cujo poder fixam um limite intransponível. Com tal

definição, bem como com o referencial histórico do Direito natural na Antiguidade

chegamos ao próximo capítulo que, não por coincidência, possui o mesmo titulo da

tese.

No capítulo oitavo, O direito natural de Platão na República e sua positivação

nas Leis, estudamos a visão jusnaturalista de Platão que está muito ligada a

manifestação divina com o engendramento da natureza. Vimos que o divino ordenou

o universo, harmonizando elementos dos mais diversos com sua inteligência. Ao

homem, de alma ordenada guiada pelo logos, cumpriu imitar a divindade auto-

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ordenando sua alma e a cidade com leis que governem os homens que podem

cometer atos injustos por terem almas que podem ser alvo de akrasia.

Portanto, como queríamos demonstrar nesta tese, buscamos criar o elo entre

a história grega, a biografia e a bibliografia platônica a fim de compreender seu

amadurecimento doutrinário em sua teoria jurídico-política, em especial na

positivação de sua visão jusnaturalista da República em As Leis.

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