Almanaque Chuva de Versos n. 398

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Poesias, haicais, trovas, folclore, artigos, livros e muito mais

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Índice Mensagem na Garrafa Eliana Ruiz Jimenez Tração Humana ................................ .......................... 3 Chuvisco Biográfico ................................ ................... 4 Chuva de Versos ................................ ................................ 5 Poeta Homenageada: Olga Savary ................................ ............................... 5-12 Chuvisco Biográfico ................................ ....................... 12 Trovadora Homenageada: Jesy Barbosa ................................ ............................... 14 Chuvisco Biográfico ................................ ....................... 17 Jean de La Fontaine O Carvalho e o Caniço ................................ .................. 17 Chuvisco Biográfico ................................ ....................... 18 Folclore Indígena Brasileiro Maire-Monan e os Três Dilúvios ................................ .... 19 Laé de Souza Esmeraldo, o Garçom ................................ .................... 22 Chuvisco Biográfico ................................ ....................... 23

Antonio Brás Constante Zero à Esquerda ou Fora de Série? .............................. 24

Um Dedão de Prosa com o Escritor Antonio Brás Constante ................................ ............................... 25 Deonísio da Silva Expressões e suas Origens - Parte IV ................................ ................................ ......... 31 Chuvisco Biográfico ................................ ....................... 37 Kathryn VanSpanckeren Panorama da Literatura dos Estados Unidos Parte II ................................ ................................ ........... 37 Alba Krishna Topan Feldman A Identidade da Mulher Indígena na Escrita de Zitkala-Ša e Eliane Potiguara ................................ ....... 47 Chuvisco Biográfico ................................ ....................... 56 Estante de Livros José Saramago Memorial do Convento ................................ .............. 56 Chuvisco Biográfico ................................ .................. 64 Errata do número anterior ................................ ............... 64

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Eliana Ruiz Jimenez

Tração Humana

Sábado, 8h de uma manhã de inverno. Dirigia

devagar sem familiaridade com as ruas daquele bairro distante. Numa colina logo à frente reduzi a velocidade ao ver uma carroça de duas rodas amontoada com toda sorte de materiais recicláveis, reaproveitáveis ou nem tanto. Pilhas de papelão, teclados de computador, monitores antigos, embalagens plásticas, vidros e até uma cadeira de três pés.

A carroça vencia a subida metro a metro penosamente e não havia espaço para ultrapassagem. Atrás de mim o motorista de um carro de luxo começou a buzinar incessantemente. Pelo retrovisor observei que fazia gestos obscenos e depois começou a bater ensandecido com as duas mãos no volante num acesso de fúria.

Tentou por duas vezes me ultrapassar de maneira perigosa, mas acabou demovido do intento pelo fluxo de carros em sentido contrário.

Sem pressa e somente quando tive segurança, ultrapassei a carroça. Observei o homem que a arrastava: idoso, com longa barba branca, vestindo uma roupa surrada e descalço. Confesso que se tal

carga fosse conduzida por um cavalo, já me traria comoção pelos maus-tratos ao animal, mas era muito pior. Uma carroça de despojos de toda sorte conduzida por tração humana, na verdade tração desumana.

Assim que terminei a ultrapassagem, o carro de luxo já passou por mim e mais uma vez acionou a buzina registrando o seu protesto por ter sido retido em seu trajeto.

Trocamos olhares durante os segundos em que nossos carros ficaram emparelhados. Tinha o semblante enfurecido e balbuciou um xingamento na minha direção, daqueles fáceis de entender por leitura labial. Seguiu o homem do carro de luxo cantando pneus, indiferente ao padecimento alheio.

Observei mais uma vez o carroceiro. Um pobre coitado que carregava o peso do descaso de uma sociedade desigual. Um homem sem chances, sem dignidade, em estado de miséria, cuja visibilidade passa a existir somente no momento em que atrapalha o fluxo de trânsito.

Acabei por me sentir mal em também passar por aquele homem sem dar-lhe nenhum conforto além de uma solidariedade em pensamento, que de nada lhe adiantaria.

As pessoas estão preocupadas apenas com a própria vida, no máximo com a própria genética, cuidando dos seus familiares sem se imaginarem como componentes de uma família única e universal de seres humanos com as mesmas necessidades e os mesmos anseios.

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A indiferença precisa ser combatida. Olhar o outro como o próximo, espalhar atitudes fraternas, atenuar fronteiras, não separar as pessoas por crenças, opções ou religiões é o caminho que leva ao bem comum.

No meu trajeto naquela manhã fria, sonhei com um mundo de mãos justapostas, iguais e diferentes, calejadas, bem tratadas, coloridas, antigas, recém-

nascidas, mas que fossem mãos enlaçadas, engajadas na busca de um novo tempo de trabalhos dignos, pés calçados e sofrimentos apaziguados.

Crônica selecionada para antologia no Prêmio SESC

de Literatura: Crônicas Rubem Braga –Brasília/DF – 2013.

Eliana Ruiz Jimenez, nasceu em São Paulo, Capital, e reside em Balneário Camboriú desde 2001. Tem formação em Letras e em Direito. Ligada a entidades de proteção ao meio ambiente. Presidente da Comissão de Meio Ambiente e Urbanismo da OAB e secretária do Conselho Municipal de Meio Ambiente de Balneário Camboriú/SC. Escritora de crônicas, contos, poemas livres, trovas, haicais e literatura infantojuvenil. Membro da Academia de Letras de Balneário Camboriú e União Brasileira dos Trovadores.

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Uma Trova de Maringá/PR

Dari Pereira

Mesmo tachado de antigo, ainda espalho esperança

ao mundo sincero e amigo do coração da criança.

Uma Trova de Juiz de Fora/MG

Arlindo Tadeu Hagen

Eu quase posso notar, nos momentos de descanso,

a saudade cochilar na cadeira de balanço!…

Um Poema de Belém/PA

Olga Savary

PELE

Um favo de mel na boca, um torrão de sal na anca

roubam para a pele o calor de animais

simples e vorazes, soltos como numa catedral,

pele de asno, pele de mel, pele de água.

Uma Trova Humorística de Curitiba/PR

Vanda Fagundes Queiroz

Menina linda “essa fada” – diz o moço… e vejam só – surpresa ela diz, zangada: – Mais safada é a sua vó!

Uma Trova de Mogi-Guaçu/SP

Olivaldo Júnior

Vou andando e, sem barulho, vem à tona um triste fato:

a saudade é um pedregulho que não sai do meu sapato!

Um Poema de Belém/PA

Olga Savary

MAPA DE ESPERANÇA

Vinha pisando sobre toda a praia, o sangue quieto — ou quase quieto —, os pensamentos leves como espumas

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e os cabelos soltos como nuvens.

Trágica como princesa de elegia, meu estandarte é o desespero,

minha bandeira, indecisão.

Ainda assim, alegria, te festejo.

Uma Quadra Popular

Autor Anônimo

Sete cravos, sete rosas na ponta de um alfinete.

Meu benzinho está no meio servindo de ramalhete.

Uma Trova Hispânica da Argentina

Margarita Dimartino de Paoli

¡No hay mejor CAMBIO en la vida que el que vos quieras sentir...!

¡Cuando la paz sola anida en tu alma... podrás existir...!

Um Poema de Belém/PA

Olga Savary

LIMITE

Ausente e lassa, queria

estar pisando a areia fina de Arraial do Cabo, a areia grossa de Amaralina, em Goiás Velho urdir a tarde

com Bernardo Elis e Cora Coralina, farejar

cheiro de candeia por toda Ouro Preto... mas estou presa à molduras de todos os meus retratos.

Trovadores que deixaram Saudades

Carlos da Silva Guimarães Júnior

Rio de Janeiro/RJ (1915 – 1997)

Na carta, ao dizer-te quanto a saudade me consome, as reticências do pranto

quase apagaram meu nome.

Uma Trova de São Paulo/SP

Selma Patti Spinelli

Com a bagunça rolando, sem ter mais o que falar,

chilique, de vez em quando, bota tudo no lugar!

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Um Poema de Belém/PA

Olga Savary

UMA CENA

Vês acordada como em sonho o sonho mau tal fosse belo

— o belo horror do real que nem consciência nítida

ou lúcida, clara, exata, não como é visto sol a pino

ou através da água, como quem vê dentro do mar ou através de um vidro fosco,

mais, no fundo de um espelho, não o que mostra a imagem mas aquele que a deforma

inteiro fora de foco.

Uma Trova de São Paulo/SP

Héron Patrício

A alvorada, em grande gala, tece a rica fantasia

que faz do Sol, mestre-sala na passarela do dia.

Um Haicai de Belém/PA

Olga Savary

PAZ

Assim tão exata sem se assemelhar a nada

sendo vária e vaga.

Um Poema de Belém/PA

Olga Savary

OUTRA CENA

Sentada estavas quando ele entrou seguido de uma princesa ou uma serpente.

Só sabes que teu rosto não mudou mas em turvo mudou-se o transparente

riso de antes, pesados os gestos. Viraste uma mulher que acordada

e de frente vê um sonho mau se sonho e distante já nem sente

e que já não amando é como se amasse e, perdido o amor, é como se o tecesse.

Uma Trova de Fortaleza/CE

Nazareth Serra

Quando a saudade é tamanha

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que minh'alma não suporta, a tristeza me acompanha mas a oração me conforta.

Uma Aldravia de Juiz de Fora/MG

Cecy Barbosa Campos

Luar indiscreto banhando

meu corpo

despido

Um Poema de Belém/PA

Olga Savary

NOME

Tu, em tudo presença, vibrar de asa,

eu, que nem nome tenho,

jamais nua de água,

tu, felicidade do corpo embasado em brasa,

eu, sequer lembrança,

mero eco na sala,

tu, veneno curare — e eu é que me chamo naja?

Uma Trova de São Paulo/SP

Darly O. Barros

Nem o remorso amorteço, a dor, em dor se desdobra, teu adeus é o sobrepreço

do preço que um erro cobra...

Uma Setilha de Caicó/RN

Prof. Garcia

Quando a tarde se despede, diz adeus e vai embora,

um poeta canta um hino, que de saudade o devora;

tristonho, finge um sorriso, canta um verso de improviso,

depois de saudade chora! 1º lugar no II Concurso da AEPP, Associação Estadual de Poetas Populares-RN em 2010 com o Tema: IMPROVISO:

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Um Poema de Belém/PA

Olga Savary

MÃOS ESTENDIDAS

Nessa direção da janela aberta vem o Murundu, o bicho-papão

metendo medo em quem anda acordado inda a essas horas.

Em outro lugar

cisma outra criança. Triste é não poder ter um outro voo que não o poético

da imaginação para a consolar.

E assim ficamos entre o querer

estendendo as mãos e deixando-as

cair. ___________

O título “Retrato em Branco e Preto” surgiu com a letra dramática de Chico Buarque, que trata de um amor desesperado. Mais uma vez, Tom Jobim oferece uma lição de economia e inteligência. Os três primeiros compassos,

criados sobre uma melodia de quatro notas vizinhas ré, dó sustenido, mi e dó natural — são idênticos, mas, com harmonizações diferentes. O intervalo inicial da canção, uma segunda menor, vai sendo ampliado e explorado de várias maneiras à medida que a melodia avança, aumentando a tensão, a dramaticidade, o que é muito bem aproveitado no poema do Chico. Ritmicamente dos dezesseis compassos de “Retrato em Branco e Preto”, treze são absolutamente iguais, formados por oito colcheias. Tais observações podem à primeira vista, levar à conclusão de que a canção é repetitiva e até pobre quando na realidade é exatamente o oposto, um tratado sobre o que é possível fazer com um intervalo de duas notas. Tom Jobim sabia como ninguém partir de uma célula simples e enriquece-la ao máximo. Fonte: Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello. A Canção no Tempo. v. 2.

Um Haicai de Bauru/SP

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Um Poema de Belém/PA

Olga Savary

ÁGUA ÁGUA

Menina sublunar, afogada, que voz de prata te embala

toda desfolhada? Tendo como um só adorno

o anel de seus vestidos ela própria é quem se encanta

numa canção de acalanto presa ainda na garganta.

Recordando Velhas Canções

Retrato em branco e preto (1968)

Chico Buarque e Tom Jobim

Já conheço os passos dessa estrada

Sei que não vai dar em nada Seus segredos sei de cor

Já conheço as pedras do caminho E sei também que ali sozinho

Eu vou ficar, tanto pior

O que é que eu posso contra o encanto Desse amor que eu nego tanto

Evito tanto E que no entanto

Volta sempre a enfeitiçar Com seus mesmos tristes velhos fatos

Que num álbum de retrato Eu teimo em colecionar

Lá vou eu de novo como um tolo

Procurar o desconsolo Que cansei de conhecer

Novos dias tristes, noites claras Versos, cartas, minha cara

Ainda volto a lhe escrever

Pra lhe dizer que isso é pecado Eu trago o peito tão marcado De lembranças do passado

E você sabe a razão Vou colecionar mais um soneto Outro retrato em branco e preto

A maltratar meu coração Vou colecionar mais um soneto Outro retrato em branco e preto

A maltratar meu coração

Uma Trova do Rio de Janeiro/RJ

Gilson Faustino Maia

Não sonhei quando dormia, sempre sonhei acordado.

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Quando o seu barco partia, sonhava estar ao seu lado.

Um Poema de Belém/PA

Olga Savary

PÁSSARO

A noite não é tua mas nos dias

—curtos demais para o vôo — amadureces como um fruto.

Tuas asas seguem as estações. É tua a curvatura da terra. Pássaro, metáfora de poeta.

Um Haicai de Curitiba/PR

José Marins

tempo rigoroso – meu maior tesouro estas

velhas ceroulas

Uma Trova de São Paulo/SP

Alba Christina Campos Netto

Se abro as páginas da vida buscando instantes risonhos, sempre, naquela escolhida,

faltam chaves, sobram sonhos

Um Poema de Belém/PA

Olga Savary

SEXTILHA CAMONIANA

Daqui dou o viver já por vivido. Quero estar quieta, sozinha agora, igual a uma cobra de cabeça chata, ficar sentada sobre os meus joelhos

como alguém coagulado em outra margem. Daqui dou o viver já por vivido.

Hinos de Cidades Brasileiras

Cerro Largo/RS

Quando o século vinte amanhecia, Para o incerto amanhã dos tempos novos,

Sob o chão imortal dos Sete Povos, Flor do tempo, flor da audácia

Flor do trabalho, Serro Azul nascia.

Padre Max, que acendeste Nestas plagas a primeira luz Te lembramos, hoje e sempre Operário da enxada e da cruz Te lembramos, hoje e sempre Operário da enxada e da cruz.

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Era o sangue do imigrante, Que chegava, de longe, aqui,

Chorando a saudade do Reno, Nos remansos do Rio Ijui,

Chorando a saudade do Reno, Nos remansos do Rio Ijui.

Cerro Largo, Cerro Largo,

Glória viva plantada no Sul, Seja sempre azul teu destino,

Como teu nome de batismo, Serro Azul, Seja sempre azul teu destino,

Como teu nome de batismo, Serro Azul.

Uma Trova de Curitiba/PR

Adélia Maria Woellner

Claro que existem tormentos,

dores, angústias, saudade… Disso esqueça por momentos,

e pense em felicidade!

Um Poema de Belém/PA

Olga Savary

CERNE

Nada a ver com a fonte mas com a sede

Nada a ver com o repasto

mas com a fome

Nada a ver com o plantio mas com a semente

Olga Savary nasceu em Belém do Pará, em 1933, filha única do engenheiro eletricista russo Bruno Savary e da paraense Célia Nobre de Almeida, Olga estudou em Belém, Fortaleza e no Rio de Janeiro. Na infância, absorveu fortemente os elementos da cultura da terra onde nasceu, transmitidos por sua família materna. Até os três anos de idade, teve a vida dividida entre Belém e Monte Alegre, no interior do Pará, cidade de seus avós maternos. Em 1936 seu pai, por motivo de trabalho, leva a família para o Nordeste, onde fixa moradia em Fortaleza. Em 1942 os pais de Olga se separam, e ela vai para o Rio de Janeiro onde passa a morar com um irmão de sua mãe, começando a desenvolver suas habilidades literárias. Aos onze anos passa a redigir um jornalzinho, incentivada por um vizinho, para quem escrevia, sendo remunerada por isso. Sua mãe, no início, recriminava a vocação da filha, pois queria que ela se dedicasse à música, coisa que Olga detestava. Nesse tempo ela começa a escrever e a guardar seus escritos em um caderninho preto, que sempre era deixado com o bibliotecário da ABI para que sua mãe não o destruísse.

Sua convivência com a mãe tornar-se-á difícil ao ponto de a escritora, aos 16 anos, pensar em ir morar com o pai - desistindo por achar que ainda estaria muito perto da mãe. Contudo, aos 18 anos, Olga volta a Belém, indo morar com parentes e estudando. Posteriormente decide voltar para o Rio, onde começa a alavancar sua carreira de escritora.

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Participou do filme de 1968, 'Edu, Coração de Ouro. Correspondente de diversos periódicos no Brasil e no exterior, organizou várias antologias de poesia. Sua obra também está presente em diversas antologias brasileiras e internacionais, como a Antologia de Poesia da América Latina, editada nos Países Baixos, em 1994, com 18 poetas — inclusive dois prêmios Nobel: Pablo Neruda e Octavio Paz. É poeta, contista, romancista, crítica, tradutora e ensaísta. Traduziu mais de 40 obras de mestres hispano-americanos, como Borges, Cortázar, Carlos Fuentes, Lorca, Neruda, Octavio Paz, Jorge Semprún e Mário Vargas Llosa, e também os mestres japoneses do haicai - Bashô, Buson e Issa. A escritora acumulou vários dos principais prêmios nacionais de literatura, entre eles o Prêmio Jabuti de Autor Revelação1 , pelo livro Espelho Provisório, concedido pela Câmara Brasileira do Livro (1971), o Prêmio de Poesia, pelo livro Sumidouro, concedido pela Associação Paulista de Críticos de Arte (1977), e o Prêmio Artur de Sales de Poesia, concedido pela Academia de Letras da Bahia pelo livro Berço Esplêndido (1987). Membro do PEN Club, associação mundial de escritores, vinculada à Unesco, da Comissão de Defesa da Liberdade de Imprensa e Direitos Humanos da ABI - Associação Brasileira de Imprensa e do Instituto Brasileiro de Cultura Hispânica. Foi presidente do Sindicato de Escritores do Estado do Rio de Janeiro em 1997-1998. Colabora com vários jornais e revistas do Brasil e do exterior. Alguns livros publicados: 1970 - Espelho Provisório (poemas); 1977 - Sumidouro (poemas); 1979 - Altaonda (poemas); 1982 - Natureza Viva (poemas); 1986 - Hai-Kais (poemas); 1987 - Linha d'água (poemas); 1987 - Berço Esplendido (poemas); 1989 - Retratos (poemas); 1997 - O Olhar Dourado do Abismo (contos), etc. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Olga_Savary

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Alvas nuvens enrolando o Poente, em seu mantol, - são os anjos enxugando a face exausta do Sol.

Certas noites surpreendo o meu sonho, tão bizarro, e tão alto que reacendo, nos astros o meu cigarro!

Da uva bem machucada

é que o bom vinho provém; Felicidade esmagada

nos dá saudade também.

Duvidas que numa trova eu encerre o nosso amor? Na hóstia tu tens a prova: Não cabe Nosso Senhor?

És rico... Mas que tristeza!

Tens vazio o coração... Não ter amor é pobreza

mais triste que não ter pão.

É tão triste a minha casa, o meu lar é tão vazio,

que a lareira, acesa em brasa, ela própria sente frio...

Há uma árvore tão feia,

tão sozinha em meu quintal! - Vagalumes, acendei-a,

que hoje é noite de Natal!…

Mergulhei nos teus abraços em linda noite de luz,

sem saber que, nos teus braços, encontrava a minha cruz!...

Meu vestido colorido,

tão profanado e desfeito, era um pássaro ferido,

rolando aos pés de teu leito…

Nas lindas noites de lua que ciúme sofre o mar

vendo a rocha, toda nua sob os beijos do luar.

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Nenhuma angústia suplanta aquela que silencia,

sufocando na garganta o pranto de cada dia!...

Perguntas de que maneira nosso amor alimentamos?

- Das culpas que, a vida inteira, um ao outro perdoamos.

Pôr a saudade num verso, numa trova; que emoção! É concentrar o Universo na palma da minha mão!

Por eu ter te amado tanto, será que Deus me condena? - Em que difere meu pranto

do pranto de Madalena?

Pousa aqui, cigano andejo! Minha tenda é hospitaleira.

E na taça do meu beijo beberás a noite inteira...

Quando a mágoa chora e fala, tarde ou cedo finaliza. Mas aquela que se cala, no silêncio se eterniza.

Quanto mais teu corpo enlaço, mais padeço o meu tormento, por saber que o meu abraço

não prende o teu pensamento.

Surpreendente maravilha a que agora me acontece: - Minha mãe é minha filha à medida que envelhece!

Velho mar, o teu bramido, numa angústia que apavora, faz pensar que teu gemido

é do próprio Deus que chora!

Vou dizer-te, bem no ouvido, minha angústia e desespero:

eu te odeio, meu querido, pelo muito que te quero!

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Jesy de Oliveira Barbosa nasceu em Campos/RJ em 15 de novembro de 1902. Filha de um jornalista e mãe musicista, tocava violão e teve aulas de canto. Iniciou carreira profissional em 1928, na Rádio Sociedade, no Rio de Janeiro a convite de Roquete Pinto. Pioneira da gravadora RCA Victor, em 1928 lançou seu primeiro disco, com as canções Olhos pálidos, de Josué de Barros, e Medroso de amor, de Zizinha Bessa, nas quais colocou os versos. De 1929 a 1933 lançou 26 discos, quase todos na RCA Victor, interpretando composições de Marcelo Tupinambá, Joubert de Carvalho, Cândido das Neves, Gastão Lamounier, Henrique Vogeler, entre outros. Seus maiores sucessos foram as canções Minha viola e Sabiá cantador (ambas de Randoval Montenegro), a canção-toada Volta (1930, de M. Lopes de Castro), o tango Queixas (1932, de Zelita Vilar e Rhea Cibele), e o fox-canção Saudades do arranha-céu (1933, de J. Tomás e Orestes Barbosa).

Foi eleita Rainha da Canção Brasileira em 1930, em concurso promovido pelo Diário Carioca, ficando cerca de 30.000 votos na frente de Zaira de Oliveira. Em 1931, quando da sua visita ao Brasil, o Príncipe de Gales, futuro rei Eduardo VIII da Inglaterra, teceu grandes elogios à cantora Jesy Barbosa e comprou seus discos para curtir na Inglaterra. Em agradecimento Jesy Barbosa gravou o tango “Príncipe de Gales”.(Gastão Lamounier e M. Lopes de Castro). Em 1935, atuou na Rádio Tupi com grande sucesso. Aos poucos foi deixando as interpretações românticas das canções brasileiras passando a atuar, posteriormente, como rádio atriz e escritora de novelas transmitidas pela Rádio Nacional. Uma das suas novelas de sucesso foi “Ressurreição”. Foi redatora da Rádio Globo durante nove anos, atuando, também, como apresentadora. Além da carreira de cantora, desenvolveu intensa e variada atividade intelectual: foi contista, teatróloga, conferencista e poetisa, tendo publicado Cantigas de quem perdoa, Livraria Freitas Bastos, São Paulo, 1963. Segundo Orestes Barbosa no livro "Samba", de 1933, sua especialidade eram "as canções de emoção e pensamento". Faleceu no Rio de Janeiro/RJ em 30/12/1987. Fonte: http://luisnassif.com/profiles/blogs/jesy-barbosa-rainha-da-can-o-brasileira

Jean de La Fontaine

O Carvalho e o Caniço

Dizia ao caniço robusto carvalho: “Sou grande, sou forte;

És débil e deves, com justos motivos,

Queixar-te da sorte!

Inclinas-te ao peso da frágil carriça;

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E a leve bafagem. Que enruga das águas a linha tranqüila

Te averga a folhagem.

Mas minha cimeira tufões assoberba. Com serras entesta;

Do sol aos fulgores barreiras opondo, Domina a floresta.

Qual rija lufada, do zéfiro o sopro,

Te soa aos ouvidos, E a mim se afiguram suaves favônios

Do Norte os bramidos.

Se desta ramagem, que ensombra os contornos, A abrigo nasceras,

Amparo eu te fora de suis* e procelas, E menos sofreras.

Mas tens como berço brejais e alagados,

Que o vento devasta. Confesso que sobram razões de acusares

A sorte madrasta.”

Responde o caniço: “Das almas sensíveis É ter compaixão;

Mas crede que os ventos, não menos que os fracos, Minazes vos são.

Eu vergo e não quebro. Da luta com o vento

Fazeis grande alarde: Julgais que heis de sempre zombar das borrascas?

Até ver não é tarde.”

Mal isto dissera, dispara do fundo Dum céu carregado

O mais formidável dos filhos que o Norte No seio há gerado.

Ereto o carvalho, faz frente à refrega;

E o frágil arbusto Vergando, flexível — do vento aos arrancos

Resiste, sem custo.

Mas logo a nortada, dobrando de força, Por terra lançava

O roble que às nuvens se erguia e as raízes No chão profundava.

_ * Suis – árvores leguminosas-mimóseas, de boa madeira para construção (Camla siberiana).

Jean de La Fontaine foi um poeta e fabulista francês. Filho de um inspetor de águas e florestas, nasceu na pequena localidade de Château-Thierry/França, em 8 de julho de 1621. Estudou teologia e direito em Paris, mas seu maior interesse sempre foi a literatura. Escreveu o romance "Os Amores de Psique e Cupido" e tornou-se próximo dos escritores Molière e Racine. Em 1668 foram publicadas as primeiras fábulas, num volume intitulado "Fábulas Escolhidas". O livro era uma coletânea de 124 fábulas, dividida em seis partes. La Fontaine dedicou este livro ao filho do rei Luís 14.

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As fábulas continham histórias de animais, magistralmente contadas, contendo um fundo moral. Escritas em linguagem simples e atraente, as fábulas de La Fontaine conquistaram imediatamente seus leitores.Várias novas edições das "Fábulas" foram publicadas em vida do autor. A cada nova edição, novas narrativas foram acrescentadas. Em 1692, La Fontaine, já doente, converteu-se ao catolicismo. Antes de vir a ser fabulista, foi poeta, tentou ser teólogo. Além disso, também entrou para um seminário, mas aí perdeu o interesse. A sua grande obra, “Fábulas”, escrita em três partes, no período de 1668 a 1694, seguiu o estilo do autor grego Esopo, o qual falava da vaidade, estupidez e agressividade humanas através de ani mais. Faleceu em Paris, 13 de abril de 1695.

Folclore Indígena Brasileiro

Maire-Monan e os Três Dilúvios

Os tupinambás creem que houve, nos primórdios

do tempo, um ser chamado Monan. Segundo alguns etnógrafos, ele podia não ser exatamente um Deus, mas aquilo que se convencionou chamar de um “herói civilizador”.

Deus ou não, o fato é que Monan criou os céus e a Terra, e também os animais. Ele viveu entre os homens, num clima de cordialidade e harmonia, até o dia em que eles deixaram de ser justos e bons. Então, Monan investiu-se de um furor divino e mandou um dilúvio de fogo sobre a Terra.

Até ali a Terra tinha sido um lugar plano. Depois do fogo, a superfície do planeta tornou-se enrugada como um papel queimado, cheia de saliências e sulcos que os homens, mais adiante, chamariam de montanhas e abismos.

Desse apocalipse indígena sobreviveu um único homem, Irin-magé, que foi morar no céu. Ali, em vez de conformar-se com o papel de favorito dos céus, ele preferiu converter-se em defensor obstinado da humanidade, conseguindo, após muitas súplicas, amolecer o coração de Monan.

Segundo Irin-magé, a terra não poderia ficar do jeito que estava, arrasada e sem habitantes.

– Está bem, repovoarei aquele lugar amaldiçoado! – disse Monan, afinal.

A história, como vemos, é tão velha quanto o mundo: um ser superior cria uma raça e logo depois a extermina, tomando, porém, o cuidado de poupar um ou mais exemplares dela, a fim de recomeçar tudo outra vez.

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E foi exatamente o que aconteceu: Monan mandou um dilúvio à Terra para apagar o fogo (aqui o dilúvio é reparador) e a tornou novamente habitável, autorizando o seu repovoamento.

Irin-magé foi encarregado de repovoar a Terra com o auxílio de uma mulher criada especialmente para isto, e desta união surgiu outro personagem mítico fundamental da mitologia tupinambá: Maire-monan.

Essa Maire-monan tinha poderes semelhantes aos do primeiro Monan, e foi graças a isto que pôde criar uma série de outros seres – os animais –, espalhando-os depois sobre a Terra.

Apesar de ser uma espécie de monge e gostar de viver longe das pessoas, ela estava sempre cercado por uma corte de admiradores e de pedintes. Ela também tinha o dom de se metamorfosear em criança. Quando o tempo estava muito seco e as colheitas tornavam-se escassas, bastava dar umas palmadas na criança-mágica e a chuva voltava a descer copiosamente dos céus. Além disso, Maire-monan fez muitas outras coisas úteis para a humanidade, ensinando-lhe o plantio da mandioca e de outros alimentos, além de autorizar o uso do fogo, que até então estava oculto nas espáduas da preguiça.

Um dia, porém, a humanidade começou a murmurar.

– Esta Maire-monan é um feiticeira! – dizia o cochicho intenso das ocas. – Assim como criou vegetais e animais, essa bruxa há de criar monstros e Tupã sabe o que mais!

Então, certo dia, os homens decidiram aprontar uma armadilha para esse novo semideus. Maire-monan foi convidado para uma festa, na qual lhe foram feitos três desafios.

– Bela maneira de um anfitrião receber um convidado! – disse Mairemonan, desconfiada.

– É simples, na verdade – disse o chefe dos conspiradores. – Você só terá de transpor, sem queimar-se, estas três fogueiras. Para um ser como você, isso deve ser muito fácil!

Instigado pelos desafiantes, e talvez um pouco por sua própria vaidade, Maire-monan acabou aceitando o desafio.

– Muito bem, vamos a isso! – disse ele, querendo pôr logo um fim à comédia.

Maire-monan passou incólume pela primeira fogueira, mas na segunda a coisa foi diferente: tão logo pisou nela, grandes labaredas o envolveram. Diante dos olhos de todos os índios, Maire-monan foi consumido pelas chamas, e sua cabeça explodiu. Os estilhaços do seu cérebro subiram aos céus, dando origem aos raios e aos trovões que são o principal atributo de Tupã, o deus tonante dos tupinambás que os jesuítas, ao chegarem ao Brasil, converteram por conta própria no Deus das sagradas escrituras.

Desses raios e trovões originou-se um segundo dilúvio, desta vez arrasador. No fim de tudo, porém, as nuvens se desfizeram e por detrás delas surgiu, brilhando, uma estrela resplandecente, que era tudo quanto restara do corpo de Maire-monan, ascendido aos céus.

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Depois que o mundo se recompôs de mais um cataclismo, o tempo passou e vieram à Terra dois descendentes de Maire-monan: eles eram filhos de um certo Sommay , e se chamavam Tamendonare e Ariconte.

Como normalmente acontece nas lendas e na vida real, a rivalidade cedo se estabeleceu entre os dois irmãos, e não tardou para que a fogueira da discórdia acirrasse os ânimos na tribo onde viviam.

Tamendonare era bonzinho e pacífico, pai de família exemplar, enquanto Ariconte era amante da guerra e tinha o coração cheio de inveja. Seu sonho era reduzir todos os índios, inclusive seu irmão, à condição de escravos.

Depois de diversos incidentes, aconteceu um dia de Ariconte invadir a choça de seu irmão e lançar sobre o chão um troféu de guerra.

Tamendonare podia ser bom, mas sua bondade não ia ao extremo de suportar uma desfeita dessas. Erguendo-se, o irmão afrontado golpeou o chão com o pé e logo começou a brotar da rachadura um fino veio de água.

Ao ver aquela risquinha inofensiva de água brotar do solo, Ariconte pôs-se a rir debochadamente. Acontece que a risquinha rapidamente converteu-se num jorro d’água, e num instante o chão sob os pés dos dois, bem como os de toda a tribo, rachou-se como a casca de um ovo, deixando subir à tona um verdadeiro mar impetuoso.

Aterrorizado, o irmão perverso correu com sua esposa até um jenipapeiro, e ambos começaram a escalá-lo como dois macacos. Tamendonare fez o mesmo e, depois de tomar a esposa pela mão, subiu com ela numa pindoba (uma espécie de coqueiro).

E assim permaneceram os dois casais, cada qual trepado no topo da sua árvore, enquanto as águas cobriam pela terceira vez o mundo – ou, pelo menos, a aldeia deles.

Quando as águas baixaram, os dois casais desceram à Terra e repovoaram outra vez o mundo. De Tamendonare se originou a tribo dos tupinambás, e de Ariconte brotaram os Temininó

Fonte:Ademilson S. Franchini. As 100 melhores lendas do folclore brasileiro. Porto

Alegre/RS: L&PM, 2011.

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Laé de Souza

Esmeraldo, o Garçom

Esmeraldo servia um bife acebolado, enquanto

outro cliente fazia insistentes sinais chamando-o. Ele, fingindo não perceber para não interferir no seu trabalho, atendeu com presteza e só então deslocou a sua visão à outra mesa. (Aí que descobri que quando chamamos um garçom e parece que ele não vê, às vezes está vendo e finge que não vê). Acostumado com os tipos e pela cara sentiu que era reclamação, e era mesmo. O sujeito, irritado, sentia-se indignado com a refeição. O macarrão estava grudado e o molho salgado.

Esmeraldo, educadamente, perguntou: – Como é o seu nome, senhor? O cliente mais irritado ainda respondeu: – Jonas. – Pois é senhor Jonas, vou lhe explicar como

funcionam as coisas -, disse-lhe Esmeraldo. – A minha função aqui, é a logística. Ou seja, coleto os pedidos do cliente, passo para a copa, que manda para a cozinha. Daí para a frente não interfiro em nada, até que eu ouça dois toques da sineta, o sinal de que o meu pedido está à disposição. Então apanho a mercadoria, vejo se está bem separada, cada qual em sua bandeja e

faço a distribuição para os clientes. Quanto a verificar se os produtos estão perfeitos, se a qualidade é boa, foge ao meu alcance e se o fizesse, estaria me intrometendo no trabalho de outro setor, com o que o senhor há de concordar, seria antiético.

Agora, é responsabilidade minha e o senhor pode me chamar a atenção que eu vou abaixar a cabeça, se ocorreu alguma coisa que me diz respeito como: Seu pedido veio trocado? Sua cerveja chegou quente? O refrigerante diet da sua esposa e as cocas normais dos seus filhos não vieram certinhos, como pedidos? Sua comida veio misturada, decorrente do transporte da copa até a sua mesa? Deixei cair um copo ou derramei molho na mesa ou em algum dos senhores?

O senhor pode não ter percebido, senhor Jonas, mas a sineta tocou e eu já corri para trazer sua refeição. Se houve demora, foi lá para dentro, mas não no serviço de distribuição. Agora, se o senhor quer fazer reclamação do serviço da produção, posso chamar o cozinheiro ou então o senhor Manoel, que é o dono, portanto, é quem tem que ouvir essas reclamações, não eu. Aliás, aqui pra nós, acho que o senhor tem que reclamar com ele sim, porque esse

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cozinheiro é muito folgado e anda fazendo as coisas de qualquer jeito. É a segunda reclamação injusta que recebo hoje. Que culpa tenho eu, senhor Jonas, que estou aqui do lado de fora, nem sabendo do que está acontecendo lá por dentro e alguns clientes sem atentar para isto, me chacoalham? O senhor, sinceramente, não acha que é injusto seu Jonas? Vou chamar o seu Manoel, o senhor reclama do macarrão, do molho e, não diga que falei nada, mas pode reclamar que a carne está dura, porque sei que está, pois, uns dois clientes já reclamaram. Lá está o seu Manoel. Seu Manoel! Seu Manoel , faz o favor!

Enquanto o Sr. Manoel se aproximava, Esmeraldo cochichou para o cliente:

– O senhor pode reclamar do que quiser seu Jonas, mas não da comida fria, porque se esfriou, foi por culpa sua que iniciou a conversa, deixando-a esfriar.

Jonas, mulher e filhos boquiabertos olhavam para o Esmeraldo e o Sr. Manoel, que todo solícito dizia um “pois não”, bem macio.

Fonte: http://www.projetosdeleitura.com.br/cronica01.html

O escritor Antonio Laé de Souza nasceu em Jequié/BA, em 15 de março de 1952. É cronista, poeta, articulista, dramaturgo, palestrante, produtor cultural e autor de vários projetos de incentivo à leitura. Preocupado com o déficit educacional e inconformado com o slogan “Brasileiro não gosta de ler” vem criando projetos de leitura, objetivando gerar alternativas que favoreçam e criem o hábito da leitura.

Bacharel em Direito e Administração de Empresas, Laé de Souza, unifica sua vivência em direito, literatura e teatro (como ato r, diretor e dramaturgo) para desenvolver seus textos utilizando uma narrativa envolvente, bem-humorada e crítica. Jornalista, advogado, administrador de empresas e Agente Fiscal de São Paulo.

Com estilo cômico e mantendo a leveza em temas fortes, escreveu as peças “Noite de Variedades” (1972), “Casa dos Conflitos” ( 1974/75) e “Minha Linda Ró” (1976). Iniciou no teatro aos 17 anos, participou de festivais de teatro amador e filiou-se à Sociedade Brasileira de Autores Teatrais.

Criou o jornal “O Casca” e grupos de teatro no Colégio Tuiuti e na Universidade Camilo Castelo Branco. Nos campos da poesia e crônica iniciou sua carreira em 1971, tendo escrito para “O Labor”(Jequié, BA), “A Cidade” (Olímpia, SP), “O Tatuapé” (São Paulo, SP),

“Nossa Terra” (Itapetininga, SP); como colaborador no “Diário de Sorocaba”, O “Avaré” (Avaré, SP) e o “Periscópio” (Itu, SP). Obras: Acontece, Acredite se Quiser!, Coisas de Homem & Coisas de Mulher, Espiando o Mundo pela Fechadura, Nos Bastidores do Cotidiano (impressão

regular e em braille) e o infantil Quinho e o seu cãozinho – Um cãozinho especial. Projetos: “Encontro com o Escritor”, “Ler É Bom, Experimente!”, “Lendo na Escola”, “Minha Escola Lê”, “Viajando na Leitura”, “Leitura no Parque”, “Dose de

Leitura”, “Caravana da Leitura”, “Livro na Cesta”, “Minha Cidade Lê”, “Dia do Livro” e “Leitura não tem idade”. Palestras: Ao longo de sua carreira de escritor e na aplicação de seus projetos de leitura, Laé de Souza já ministrou palestras em mais de 300 escolas de todo o

Brasil, cujo foco é o incentivo à leitura. “A importância da Leitura no Desenvolvimento do Ser Humano”, dirigida a estudantes e “Como formar leitores”, voltada para professores são alguns dos temas abordados nessas palestras.

Site: http://www.projetosdeleitura.com.br/ Fontes: http://www.projetosdeleitura.com.br/autor.html; http://www.ube.org.br/biografias-detalhe.asp?ID=97

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Antonio Brás Constante

Zero à Esquerda ou Fora de Série?

“Ninguém cometeu maior erro, do que aquele

que errou ao fazer tudo errado”. Antonio Brás Constante

Números. Números. Números. Não passamos de

um conjunto numérico, perdido em uma equação qualquer. Uma equação ainda não totalmente resolvida, conhecida como vida. O ser humano na sua essência é feito de números. Somos compostos orgânicos com bilhões de células disto, sei lá mais quantos bilhões de outras células formando aquilo, etc.

Os números determinam padrões na sociedade. Somos classificados por um número variável chamado: “idade”, e nos dizem que devemos agir conforme esta idade. Ou seja, em alguns casos somos muito velhos, em outros nos acham muito novos e ainda em outros temos a idade certa, mesmo que seja para algo que naquele momento não nos interessa.

Apesar de não nos darmos conta, nós somos geralmente atraídos pelos números que compõe as outras pessoas. Por exemplo, na busca por relacionamentos amorosos, muitos procuram saber sobre a altura, peso, quadril, busto, idade e até conta bancária de seus pretendentes.

Ainda na parte dos relacionamentos, podemos imaginar a seguinte situação: você sai para passear com sua amada. Resolve levá-la a um lugar especial, onde possam namorar, trocando beijos e carícias. Então você, aproveitando aquele momento lindo, totalmente enlouquecido de amor, dá uma, duas, três, até quatro idéias de como o futuro seria maravilhoso se vocês ficassem juntos para sempre. É a matemática do amor, agindo nos pensamentos do enamorados.

Também no trabalho somos um mero número, conhecidos no sistema como o funcionário de matricula tal, que tem o RG tal e o CPF etecetera e tal. Em qualquer novo plano diretor, onde haja necessidade de cortes para maximizar custos, o fator humano é logo substituído por algum índice matemático, e de um instante para outro passamos de nove para seis, ou seja, nossa vida vira de cabeça para baixo.

A própria empresa é um emaranhado de números, que aparentemente parece ser feita de tijolos e movida através de carne e sangue, mas que no fim de cada

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semestre passa a ser um relatório contábil repleto de números e indicações positivas ou negativas, traçando geralmente perfis pouco amistosos sobre ações futuras.

Um assunto como este pode até causar insônia, algo que tentamos amenizar contando carneirinhos lanosos, que para desespero de qualquer fazendeiro, conseguem pular cercas com extrema facilidade. Em outros casos apenas contamos com algum tipo de calmante. Então percebemos que nossa saúde também é vista através de números, que medem pressão, batimentos cardíacos, taxa de glicose, entre outros tantos pontos que flutuam em nossos exames. Se notarmos, a própria política começa com a escolha de números, onde muitos se elegem apenas para fazer número e, principalmente, desviar números.

Sua classe social, sua localização em sua rua ou mesmo no universo (latitude e longitude), ou o máximo de caracteres que devo digitar neste texto, tudo é

formado por números. Podemos dizer que Deus é um número. Talvez o número mais básico que exista e por isso tão complexo. Algo similar ao computador, que é capaz de efetuar maravilhas, feitas a partir da combinação de dois únicos dígitos (0s e 1s) que formam o código binário.

Enfim, na matemática da vida, não devemos ser apenas mais um número. Devemos somar esforços, dividir os problemas na busca de soluções, subtrair pensamentos negativos, e elevar a enésima potência às energias e ações positivas, passando a ser multiplicadores de algo melhor, deixando de ser um zero a esquerda para nos tornamos pessoas fora de série.

Fonte: http://www.recantodasletras.com.br/autores/abrasc

Um Dedão de Prosa com o Escritor Antonio Brás Constante

entrevista realizada por José Feldman ao escritor em 31 de março de 2012 NOTA DO ESCRITOR ENTREVISTADO: Antes de

iniciar, gostaria de frisar aos que forem continuar lendo esta singela entrevista, que sou um escritor meio fora dos padrões convencionais ao termo (por isso

mesmo definido como eterno aprendiz de escritor), por isso lhes peço, não me desejem mal…

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INFANCIA E PRIMEIROS LIVROS

• Conte um pouco de sua trajetória de vida, onde nasceu, onde cresceu, o que estudou.

Parafraseando o Analista de Bagé, posso dizer que minha infância foi normal, o que não aprendi no galpão, aprendi atrás do galpão. Nasci em Porto Alegre e me perdi por Canoas, onde cresci. Me formei em Ciência da Computação, mas daí me apaixonei perdidamente pela escrita, e passei a ser seu escravo, transcrevendo os delirios que esta Diva sussurra em minha mente.

• Como era a formação de um jovem naquele

tempo? E a disciplina, como era? Não existiam computadores, algo que pode parecer

meio pré-histórico para essa gurizada hi-tech, mas não vejo tanta diferença para os dias de hoje (também não sou tão velho assim), no fim tudo se resume a querer aprender, pois no nosso mundo ou você aprende enquanto é novo ou alguém te prende depois.

• Recebeu estímulo na casa da sua infância? Sim, meu maior estímulo foi ser péssimo em

futebol, algo que me deu bastante tempo livre para me dedicar aos livros.

• Qual o seu primeiro livro e do que falava? Meu primeiro e único livro chama-se: “Hoje é seu

aniversário – PREPARE-SE” e trata-se de um livro de crônicas que considero genérico aos livros do L.F.

Verissímo, pois dispõe do mesmo princípio ativo: O Humor.

P.S: se a pergunta foi qual o primeiro livro que eu li, sinceramente não lembro…

• Quais livros foram marcantes antes de

começar a escrever. Foram muitos, mas a série “para gostar de ler” foi

bem importante para mim nessa época. O ESCRITOR • Fale um pouco sobre sua trajetória literária.

Como começou a vida de escritor? Minha vida literária se dividiu em duas partes. Na

primeira etapa (fase adolescente) escrevi alguns textos na época do segundo grau (era assim chamado naqueles tempos), buscando melhorar minhas notas nas aulas de português, acabei gostando muito de escrever, mas tão logo concluí os estudos parei, adormecendo o escritor que dentro de mim existia. Somente ao final da faculdade voltei a escrever (quase quinze anos depois), graças ao empurrão de um grande amigo chamado Zé Gadis, que era chargista. A coisa começou como uma brincadeira, ele desenhava caricaturas dos colegas de empresa e eu fazia as mensagens para os cartões de aniversário. Aos poucos fui me viciando no ato de escrever, e não parei mais.

• Como foi dar esse salto de leitor pra escritor? Foi estranho, tanto que até hoje me defino como

um eterno aprendiz de escritor. Não me intitulo como

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escritor profissional, porque acho que isso acarreta uma responsabilidade muito grande, e não gosto de sentir este tipo de obrigação nas costas, como um fardo. Por isso prefiro ser um aprendiz, poder ousar, errar, viajar, tratando a arte de escrever como uma deliciosa brincadeira.

• Teve a influência de alguém para começar a

escrever? Além do meu amigo Gadis, do qual já citei antes,

também tive as influências literárias de escritores como: L. F. Verissímo, Barão de Itararé e Douglas Adams.

• Tem Home Page própria (não são consideradas

outras que simplesmente tenham trabalhos seus)? Sim, todos os meus textos publicados estão

disponíveis no site: recantodasletras.uol.com.br/autores/abrasc

• Você encontra muitas dificuldades em viver de

literatura em um país que está bem longe de ser um apreciador de livros?

Viver de literatura?? Rsrsrs… isso existe?? Rsrss. Falando sério, na verdade eu tento dar vida a literatura, mas não sobrevivo dela. Algo que me chama a atenção neste País é que muitos leitores tem preconceito com a literatura nacional. São pessoas que consomem tudo que vem de fora, mas torcem o nariz para o que é produzido aqui.

• Como foi que você chegou à poesia? Para mim a poesia é como um arrepio de frio, um

bocejo, um tropeção em uma pedra, chega sem aviso e se vai sem explicação. Para não perder a viagem acabo escrevendo o que senti naquele momento, mas não sou exatamente um poeta.

SEUS LIVROS E PREMIOS • Como começou a tomar gosto pela escrita? Quando comecei a rir do que escrevia, acho que o

primeiro ponto para alguém se tornar escritor é gostar daquilo que escreve.

• Em que você se inspirou em seus livros? No cotidiano, temperando situações do dia-a-dia

com pitadas de humor. • Como definiria seu estilo literário? Posso dizer que meu estilo literário ainda encontra-

se em construção… • Dentre os livros escritos por você, qual te

chamou mais atenção? E por quê? Foi o livro “Hoje é seu aniversário – PREPARE-SE”

que por ter sido o único até o momento, me chamou a atenção por total falta de opções.

• Que acha de sua obra? Fiz um livro que eu gostaria de ler se fosse outra

pessoa, e olhando a obra desta forma posso dizer que considero este livro, como um filho textual.

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• Qual a sua opinião a respeito da Internet? A

seu ver, ela tem contribuído para a difusão do seu trabalho?

Posso dizer sem sombra de dúvidas, que se não fosse a internet, meu trabalho como escritor praticamente não existiria.

• Tem prêmios literários? Sim, fui vencedor do oitavo concurso de poesias,

contos e crônicas, na categoria crônicas. Prêmio oferecido pela fundação cultural de Canoas. Também ganhei uma mochila cheia de chocolates BIS em uma promoção de frases da Nestlé.

CRIAÇÃO LITERÁRIA • Você precisa ter uma situação

psicologicamente muito definida ou já chegou num ponto em que é só fazer um “clic” e a musa pinta de lá de dentro? Para se inspirar literariamente, precisa de algum ambiente especial ?

Na realidade, para me inspirar a situação ideal seria poder relaxar em uma sauna com aproximadamente umas cinco beldades seminuas ao meu redor, mas como minha esposa desencoraja este tipo de “ambiente” para mim, argumentando silenciosamente com seu rolo de macarrão em punho, venho me contentando com um tempinho livre em qualquer lugar mesmo, onde possa rabiscar ideias para depois colocá-las no micro.

• Você projeta os seus textos? Ou seja, você projeta a ação, você projeta o esquema narrativo antes? Como é que você concebe os textos?

As ideias sobre novos textos vem em golfadas dentro da minha cabeça, depois coloco tudo no papel (entenda-se “papel” o editor de texto) e vou aprimorando o texto até ficar de um jeito que acho interessante.

• Você acredita que para ser escritor basta

somente exercitar a escrita ou vocação é essencial? Acho que sem vocação, não haveria prazer em

escrever e consequentemente a pessoa não seguiria por este caminho, ou se seguisse, não seria por muito tempo.

• Como surge o momento de escrever um livro? O momento certo para se escrever um livro é

quando uma editora cai do céu e se propõe a publica-lo. Se isto não acontecer, tente conseguir alguma verba para pagar a editora, e o resultado será o mesmo.

• Quanto tempo você leva escrevendo um livro? Deixe-me ver… Escrevo um novo texto a cada

semana, meus livros tem em média 28 textos, ou seja, levo em torno de sete meses para ter material suficiente para um novo livro.

• Como foi o processo de pesquisa para a escrita

de seus livros? Alguns textos realmente precisam de pesquisa, algo

que poderia ser feito em várias bibliotecas ou

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utilizando o Google. Considero a pesquisa essencial para dar profundidade ao texto e para não escrever minhas “pérolas textuais” de forma equivocada.

• No processo de formação do escritor é preciso

que ele leia porcaria? Tudo depende do que a pessoa vai querer escrever.

Eu, por exemplo, adoro ler gibis (considerados por muitos como porcarias), sou fã de tirinhas de jornal, e sempre que tenho tempo dou uma olhadinha no Big Brother Brasil.

O ESCRITOR E A LITERATURA • Mas existe uma constelação de escritores que

nos é desconhecida. Para nós, a quem chega apenas o que a mídia divulga, que autores são importantes descobrir?

Sou um curioso nato, gosto de sempre que possível experimentar coisas novas, comidas diferentes, autores diferentes, lugares diferentes. Vou aproveitar este espaço para divulgar o trabalho de um mestre-poeta que conheci ao acaso no mundo virtual, o Dário Banas (http://estranhamobilia.blogspot.com) . Suas poesias são fantásticas.

• Na sua opinião, que livro ou livros da literatura

da língua portuguesa deveriam ser leitura obrigatória?

É dificil opinar sobre o que seriam livros “obrigatórios”, já que sou adepto da leitura

espontanea. Acho que se um autor consegue cativar um leitor, sua leitura já deveria ser desejada e incentivada, pois teria o seu mérito.

• Qual o papel do escritor na sociedade? Com certeza seria um papel escrito. Rsrsrs. O

escritor é aquele sujeito que cutuca o outro, chamando sua atenção para uma outra realidade. É função do escritor abrir as janelas da imaginação para que as pessoas possam olhar o mundo e viajar por ele.

• Há lugar para a poesia em nossos tempos? Claro que há, sempre tem alguma gaveta vazia em

algum lugar. Mas o melhor lugar para se guardar a boa poesia é dentro dos compartimentos de nossas mentes. A poesia não é um almoço que se come religiosamente todo santo dia, mas uma fruta suculenta que é sorvida, e escorre seu néctar pela boca, deliciosamente, saciando nossa fome poética.

A PESSOA POR TRÁS DO ESCRITOR • O que o choca hoje em dia? Quando percebo que a insensibilidade anda

tomando conta do mundo, de tal forma que nada mais parece chocar, confesso que fico chocado.

• O que lê hoje? Além das tradicionais bulas de remédio, cuja leitura

é indispensável para uma vida saudável, leio o que me cai nas mãos, terminei há pouco de ler o livro “Ensaio

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sobre a cegueira” do Saramago. Por enquanto, estou apenas na companhia das revistas e suas reportagens criativas.

• Você possui algum projeto que pretende ainda

desenvolver? Atualmente ando respondendo um questionário

sobre literatura da melhor forma possível, e confesso que estou adorando. Fico na torcida para que meu amigo virtual, José Feldman, publique estas minhas respostas espontâneas em seu portal. Não possuo outros projetos.

• De que forma você vê a cultura popular nos

tempos atuais de globalização? Toda raiz cultural começou através de uma veia

popular, a cultura nasce no seio da população, enriquece e muitas vezes acaba elitista. Acho que a globalização é um bom instrumento de fomentar e divulgar a cultura, de termos contato com outras culturas.

CONSELHOS PARA OS ESCRITORES • Que conselho daria a uma pessoa que

começasse agora a escrever ? Querer se consagrar como escritor é o mesmo que

se lançar ao oceano buscando chegar a uma ilha repleta de tesouros, você nada, nada e muitas vezes não acontece nada. Se desistir, ou se afoga, ou a maré te leva de volta para o anonimato de onde saiu. Por

isso quero dizer para quem quiser começar a escrever, que escreva por prazer, sem querer visualizar um horizonte. Escreva pelo mesmo motivo que respira, para viver. A melhor recompensa para quem escreve é gravar para eternidade seus pensamentos, suas ideias, suas loucuras. O resto é pura consequência.

• O que é preciso para ser um bom poeta? Entendo que a poesia é uma forma de dança onde

as frases ocupam o lugar dos movimentos. Não se escreve uma poesia para que ela seja “bonitinha”, a poesia é a essência dos sentimentos, derramados no papel de um jeito ritmado.

Gostaria de acrescentar mais alguma coisa?

Outros trabalhos culturais, opiniões, crítica, etc. Estou distribuindo meu livro em PDF gratuitamente

para quem quiser conhecer a obra, basta me enviar um e-mail para : [email protected] e pedir uma cópia.

E para encerrar a entrevista Quero agradecer a iniciativa do Feldman em ceder

este espaço para que os escritores possam falar um pouco sobre suas obras e divulgá-las. Deixo aqui registrado meu muito obrigado.

• Se Deus parasse na tua frente e lhe concedesse

três desejos, quais seriam? PRIMEIRO pediria que ele aumentasse a dose de

humanidade nos seres que se definem como humanos.

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SEGUNDO Pediria a ele que largasse este bico de gênio realizador de desejos e voltasse a trabalhar em prol do mundo, já que depois do sexto dia (ele parou para descansar no sétimo) as coisas andaram piorando bastante por aqui.

TERCEIRO pediria para ele sair um pouco para o lado (já que ele estaria parado na minha frente) para que eu pudesse terminar de ver na televisão a sua maior obra, o seriado de “Os Simpsons”.

Deonísio da Silva Expressões e suas Origens Parte IV

A bom entendedor, meia palavra basta Esta frase, dando conta de que não são necessárias

muitas palavras para um bom entendimento entre as pessoas, está coberta de sutilezas, pois sugere que os interlocutores compreendem o sentido exato do que se disse por meio das mais leves alusões. Às vezes, é pronunciada também como advertência ou ameaça disfarçada de boas intenções. Os franceses são ainda mais sintéticos: para bom entendedor, meia palavra. E os espanhóis dizem: a bom entendedor, meio falador. A frase consagrou-se no famoso livro Dom Quixote de la Mancha, do celebérrimo Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1616).

A burrice é contagiosa; o talento, não. Esta é uma das muitas frases célebres da autoria

do crítico literário Agripino Grieco (1888-1973), famoso

por tiradas cheias de verve e maledicência, proferidas contra pomposos escritores nacionais, até então convictos de que, dado o ofício que praticavam, muitas vezes confundido com sua posição social ou política, não poderiam ter suas obras criticadas, a não ser em comentários favoráveis. O corajoso paraibano, entretanto, culto e irônico, não poupava ninguém e levou à posteridade uma obra de crítica literária desassombrada, imune às tradicionais igrejinhas e confrarias tão presentes na cultura brasileira. Entre seus livros estão Vivos e mortos, Recordações de um mundo perdido e Gralhas e pavões.

Abre-te sésamo Esta frase reúne as palavras mágicas e cabalísticas

que, proferidas pelo herói do episódio “Ali-Babá e os quarenta ladrões”, das Mil e uma noites, resultam na

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abertura da porta misteriosa da caverna onde eram guardados os tesouros. Aqui está presente também a etimologia para explicar o significado de sésamo, em latim sesamum, que é uma planta em cujas sementes, muito pequenas e amareladas, está contida numa cápsula que se abre sem muita pressão. O sésamo nada mais é do que o nosso popular gergelim, utilizado nas padarias para o fabrico de pães especiais e outras delicadezas de sabor muito raro.

A casa da mãe Joana A expressão ‘casa da mãe Joana’ alude a lugar em

que se pode fazer de tudo, onde ninguém manda, uma espécie de grau zero de poder. A mulher que deu nome a tal casa viveu no século XIV. Chamava-se, obviamente, Joana e era condessa de Provença e rainha de Nápoles. Teve vida cheia de muitas confusões. Em 1347, aos 21 anos, regulamentou os bordéis da cidade de Avignon, onde vivia refugiada. Uma das normas dizia: “o lugar terá uma porta por onde todos possam entrar”. ‘Casa da mãe Joana’ virou sinônimo de prostíbulo, de lugar onde impera a bagunça, mas a alcunha é injusta. Escritores como Jean Paul Sartre, em A prostituta respeitosa, e Josué Guimarães, em Dona Anja, mostraram como o poder, o respeito e outros quesitos de domínio conexo são nítidos nos bordéis.

A crítica não ensina a fazer obras de arte; ensina

a compreendê-las Frase do jornalista e romancista carioca Raul

d’Ávila Pompéia (1863-1895), patrono da cadeira 33 da

Academia Brasileira de Letras. Foi também diretor da Biblioteca Nacional, cargo atualmente ocupado pelo poeta, crítico e ensaísta Affonso Romano de Sant’Anna. Os críticos nem sempre foram bem entendidos, mas freqüentemente hostilizados. O autor do famoso romance O ateneu foi um dos poucos escritores que, com isenção, esforçaram-se por praticas ou entender a crítica. Seu contemporâneo francês, também romancista, Gustave Flaubert (1821-1880), tinha opinião radicalmente contrária. Segundo ele, era crítico quem não podia criar, assim como tornava-se delator quem não podia ser soldado.

Acta Est Fabula O cuidado com dois momentos decisivos das

narrativas, o começo e o desfecho, resultou na criação de formas fixas como “era uma vez” para a abertura das fábulas, e “foram felizes para sempre”, para a conclusão. No teatro romano, o fim dos espetáculos era anunciado aos espectadores com a frase acima, que significa “a peça foi representada”. O imperador romano Caio Júlio César Otaviano Augusto escolheu esta frase como última a ser pronunciada por ele antes de morrer. Tinha feito uma administração tão primorosa que o século em que viveu foi chamado pelos historiadores de o século de Augusto.

Água mole em pedra dura, tanto bate até que

fura Utilizada para designar a pertinácia como virtude

que vence qualquer dificuldade, por maior que seja,

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esta frase perde-se nas brumas do tempo, mas um de seus primeiros registros literário foi feito pelo escritor latino Ovídio (43 a.C.-18 d.C), autor de célebres livros como A arte de amar e Metamorfoses, que foi exilado sem que soubesse o motivo. Escreveu o poeta: “A água mole cava a pedra dura”. É tradição das culturas dos países em que a escrita não é muito difundida formar rimas nesse tipo de frase para que sua memorização seja facilitada. Foi o que fizeram com o provérbio portugueses e brasileiros.

Alea Jacta Est O general e estadista romano Júlio César (101-44

a.C.) pronunciou esta frase, que significa ‘a sorte está lançada’, em 49 a.C., durante a campanha da Gália. Ele decidira atravessar o rio Rubicão, transgredindo a lei do Senado romano que determinava o licenciamento das tropas toda vez que um general de Roma entrasse na Itália pelo norte. A tradição consagrou-a como sinônimo de decisão importante, tomada após reflexão e seguida de risco. É lembrada quando se quer ressaltar ou não há mais possibilidade de voltar atrás, nem que se queira. Célebre em razão de quem a pronunciou em situação tão dramática, tem sido com freqüência para ilustrar decisões irrevogáveis.

A imprensa é o quarto poder Esta frase, que expressa em boa síntese a

importância que tem a imprensa, deve sua criação ao escritor e grande orador britânico Edmund Burke (1729-1797). Ao lado dos três poderes clássicos de

uma sociedade democrática, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, a imprensa seria o quarto poder pela influência exercida sobre as votações do primeiro, as ações do segundo e as decisões do terceiro. Quem mais divulgou a frase em seus escritos, defendendo a mesma concepção, foi o famoso historiador e crítico inglês Thomas Carlyle (1795-1881). A imprensa foi sempre importante também para nossas letras. Os primeiros romances brasileiros foram publicados em jornais e revistas.

A mulher é a porta do diabo Esta famosa frase foi originalmente dita e escrita

em latim – mulier janua Diaboli – por Santo Agostinho (354-430), bispo de Hipona, na África, doutor da Igreja e um dos pilares da teologia cristã e da filosofia ocidental. Antes de proferi-la, entretanto, levou vida amorosa das mais conturbadas, entregando-se a prazeres que depois condenou. Sua conversão é atribuída às orações de sua mãe, sobre quem escreveu um texto famoso, o Panegírico de Santa Mônica. Para um dialético como Agostinho, nada mais sintomático: sua salvação e perdição foram obras femininas. “A mulher é a porta de Deus” também poderia ser uma frase agostiniana.

A política não é uma ciência, mas uma arte Frase pronunciada pelo lendário príncipe, chefe

militar e estadista prussiano, Otto von Bismarck (1815-1898), que fez da Alemanha uma grande potência, garantindo-lhe unidade não apenas

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territorial, pois com ele o povo alemão conquistou sua autonomia. Para tanto, Bismarck enfrentou sérias dificuldades e ousou sustentar uma de suas guerras até mesmo contra o partido católico. Além disso, deu especial atenção às classes trabalhadoras, protegendo-se numa espécie de socialismo de Estado. A frase acima foi dita pela primeira vez num discurso pronunciado em alemão no dia 18 de dezembro de 1863 e desde então insistentemente repetida em muitas outras línguas.

A pressa é inimiga da perfeição Esta frase antológica passou ao acervo de ditos

célebres pela pena do famoso jurisconsulto brasileiro Rui Barbosa de Oliveira ao comentar a rapidez com que se redigia o Código Civil Brasileiro, que trouxe em sua versão final preciosas anotações do mestre. Os detalhes sempre foram importantes, nas redações das leis como nas obras artísticas. Ao longo dos carnavais, várias foram as escolas de samba que perderam pontos importantes pelo desleixo com pormenores. O águia de Haia, como era chamado por sua atenção em famosa conferência que pronunciou na Holanda, acrescentou que a pressa é também “mãe do tumulto e do erro”.

Assim é, se lhe parece Frase de autoria do célebre escritor italiano, Prêmio

Nobel da Literatura em 1934, Luigi Pirandello (1967-1936), autor de contos, romances e peças de teatro. Algumas de suas obras foram transpostas para o cinema. Seus livros mais conhecidos são O falecido

Matias Pascal, Seis personagens à procura de um autor e Assim é, se lhe parece, comédia em três atos que discute a busca da verdade. Dois dos principais personagens, o senhor e a senhora Ponza, por meio de diálogos, apresentam um espelho da vida provinciana, no estilo habitual do autor, marcado por fina ironia, grande dose de sarcasmo, mas também grande compaixão humana. A frase passou a ser usada para encerrar uma discussão.

As mulheres perdidas são as mais procuradas Cantores e cantoras, como Roberto Carlos e Sula

Miranda, muso e musa de caminhoneiros, a quem dedicaram várias de suas canções, souberam inspirar-se num imaginário rico em metáforas, presente em frases como esta, extraída do pára-choques de um caminhão. Tendo abandonado os projetos de ferrovias, o desenvolvimento brasileiro dos anos de pós-guerra deu preferência ao transporte rodoviário. Formou-se, então, um tipo de profissional que está presente desde então na cultura brasileira, não apenas com o trabalho importantíssimo que realiza, inclusive carregando este livro até você, leitor, mas também em frases picantes, aludindo a amores passageiros que podem durara penas por um trecho de suas longas viagens.

À sombra de um grande nome Esta frase tem sua origem na expressão latina

Magni nombris umbra, encontrável em vários escritores antigos que escreviam em latim, entre os quais Lucano (39-65) e seu tio Sêneca (4 ªC.-65 d.C.), o primeiro lamentando a rápida transformação do seu

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caráter do grande general romano Pompeu (106-48 a.C.) que abandonou suas virtudes guerreiras ao tornar-se paisano, ainda que sob os eflúvios solenes da toga. A frase é citada quando um grande homem, por seus atos, faz com que se apaguem antigas lembranças de feitos memoráveis que o credenciaram à admiração, mas que vão para a vala comum dos esquecimentos em virtude de seus desvios. As boas recordações são apagadas e o povo passa a relembrar apenas os malefícios da grande figura. É também utilizada para identificar quem faz o mal à sombra de um bom nome, como ocorre a auxiliares de vários governantes.

A Terra é Azul Esta frase foi a declaração do cosmonauta soviético

Yuri Alekseyevich Gagarin (1934-1968), o primeiro a fazer um vôo espacial, a bordo da nave Vostok 1, em 12 de abril de 1961. Antes dele, a cadelinha Laika, também soviética, se é que se pode dar nacionalidades a cachorros, foi o primeiro ser vivo a ir ao espaço, no Sputnik 2 (um dos dez satélites soviéticos lançados a partir de 1957), mas morreu ao entrar em órbita. Gagarin disse a famosa frase quando contemplou a Terra de um lugar onde homem nenhum estivera. Não foi apenas um pioneiro, mas alguém que, a bordo de sofisticada tecnologia da época, lançou um olhar humano sobre o planeta e soube expressá-lo com simplicidade e poesia.

Até que a morte os separe A história desta frase prende-se às cerimônias de

casamentos, principalmente dos ritos cristãos, que

concebem os laços do matrimônio como indissolúveis. Está presente em numerosas narrativas, sejam contos, novelas, romances ou poesias. Integra também a ensaística que trata das relações entre marido e mulher na estrutura familiar. Um de seus mais antigos registros foi feito pelo apóstolo São Paulo (10-67) em sua Primeira Epístola aos Coríntios, em que se esforça para demonstrar aos leitores e ouvintes daquela famosa carta que os laços que unem homem e mulher no casamento foram instituídos, não pelos homens, mas por Deus, ainda no paraíso.

Até tu, Brutus? A história desta frase famosa, comumente aplicada

a situações de traição, remonta ao episódio que resultou no assassinato do grande imperador, estadista e general romano Caio Júlio César (101-44 a.C.), vítima de conspiração organizada por senadores e aristocratas e liderada, entre outros, por Marco Júnio Bruto (85-42 a.C.), nos idos de março de 44 a.C. A vítima defendeu-se quanto e como pôde de punhais e espadas, até que reconheceu entre os que o atacavam e feriam o próprio filho adotivo. Ao vê-lo, teria pronunciado esta frase que o historiador Suetônio celebrizou em A vida de César. O enteado pagou caro por tramar a morte do pai e, derrotado, suicidou-se dois anos depois.

Ave, Maria! Uma das mais célebres frases de todas as religiões

cristãs, significando salve, Maria! Foi transcrita do

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Evangelho de Lucas 2, 28, constituindo-se na saudação com que o anjo Gabriel anunciou à Virgem Maria que ela estava grávida do Espírito Santo e iria ganhar um menino a quem deveria pôr o nome de Jesus. Tão famosa ficou a expressão que tornou-se tema e título de diversas obras artísticas, como pinturas, esculturas e até músicas. É também o nome de uma das mais notórias orações, que tem uma segunda parte acrescentada às palavras proferidas pelo anjo Gabriel no momento da anunciação. Ave já era forma de saudação na antiga Roma, como o clássico Ave, Caesar.

A vida é breve Esta frase constitui o primeiro dos célebres

aforismos de Hipócrates (460-377 a.C.), que o escreveu originalmente em grego, precedido de outra frase: a arte é longa. Tem sido muito citada ao longo dos séculos, e o cantor e o compositor Tom Jobim foi um dos que a aproveitaram, inserindo-a nos versos de uma de suas famosas músicas, porém em ordem inversa para fazer a rima: “breve é a vida”. O pai da medicina, ainda que praticando uma ciência, reconheceu ser a arte mais duradoura do que a vida, inaugurando assim uma linhagem de médicos escritores, presentes em todas as literaturas do mundo, incluindo a brasileira, em que se destacam autores que exerceram a medicina como ofício principal.

A voz do dono Tornou-se célebre a figura de um cão ouvindo um

fonógrafo, acompanhada desta expressão que foi

utilizada por um fabricante de discos e de um aparelho destinado a reproduzir os sons gravados. A frase teria sido pronunciada pela primeira vez por Thomas More (1478-1535), depois transformado em santo, quando atuava como juiz de uma causa entre sua esposa e um mendigo. Lady More trouxera para casa um cachorrinho extraviado e um dia um mendigo apresentou-se como dono do animal. Querendo ser justo, o famoso humanista inglês pôs sua esposa num dos cantos da sala e o mendigo no outro, ordenando que cada qual chamasse ao mesmo tempo o cachorrinho, que estava no meio dos dois. Sem vacilar, o animal correu para o mendigo, reconhecendo a voz do dono. Para não deixar muito triste sua esposa, o marido pagou uma moeda de ouro pelo cãozinho.

A voz do povo é a voz de Deus A expressão veio do latim vox populi, vox Dei,

traduzida quase literalmente. Há milênios o povo simples considera que o julgamento popular é a voz de Deus. Tal crença tem raízes na cultura das mais diversas procedências. Tudo começou em Acaia, no Peloponeso, onde o deus Hermes se manifestava em seu templo do seguinte modo: o consulente entrava, fazia a pergunta ao oráculo, depois do que tapava as orelhas com as mãos e saía do recinto. As palavras errantes ditas pelos primeiros transeuntes seriam as respostas divinas. Perguntava-se a um deus, mas era o povo quem respondia. No Brasil, um instituto de pesquisa de opinião pública chama-se Vox Populi e foi um dos primeiros a prever a vitória de Fernando Collor

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nas eleições presidenciais de 1989 por larga margem. Curiosamente, não previu seu afastamento. Teria faltado a vox Dei?

Fonte: Deonísio da Silva. De onde vêm as palavras?

Deonísio da Silva nasceu em Siderópolis/SC em 1948. Professor, escritor e etimologista brasileiro, membro da Academia Brasileira de Filologia, vinculado às universidades Unijuí, RS (1972-1981), Ufscar, SP (1981-2003), Estácio, RJ (2003-2015) e Unisul, SC (2014-2015), dando aulas e videoaulas de Língua Portuguesa e respectivas literaturas e desenvolvendo projetos editoriais. Autor de 34 livros, alguns dos quais publicados também em Portugal, Itália, Alemanha, Canadá etc. Suas obras referenciais são o romance "Avante, soldados: para trás" (Prêmio Internacional Casa de las Américas, em júri presidido por José Saramago); "Nos bastidores da censura" (sua tese de doutoramento na USP) e o livro de etimologia "De onde vêm as palavras".

Kathryn VanSpanckeren

Panorama da Literatura dos Estados Unidos Parte II

O Período Romântico, Ficção Walt Whitman, Herman Melville e Emily Dickinson

— assim como seus contemporâneos Nathaniel Hawthorne e Edgar Allan Poe — representam a primeira geração literária importante dos Estados Unidos. No caso de escritores de ficção, a visão romântica tendia a se expressar na forma que Hawthorne chamava de “romance”, uma forma sofisticada, emocional e simbólica da narrativa ficcional. Segundo a definição de Hawthorne, os “romances” não eram histórias de amor, mas literatura de ficção séria que recorria a técnicas especiais para comunicar significados complexos e sutis.

Em vez de definir cuidadosamente os personagens de forma realista por meio da riqueza de detalhes, como fazia a maioria dos romancistas ingleses ou continentais, Hawthorne, Melville e Poe construíram figuras heróicas maiores do que a vida, impregnadas de significados míticos. Os protagonistas típicos do chamado romance americano são pessoas atormentadas e isoladas. Arthur Dimmesdale ou Hester Prynne, de Hawthorne, em A Letra Escarlate, Ahab, de Melville, em Moby Dick, e muitos dos personagens segregados e obcecados dos contos de Poe são protagonistas solitários jogados ao destino sombrio e impenetrável que, de alguma maneira misteriosa, se sobrepõem ao seu “eu” inconsciente mais profundo. As

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tramas simbólicas revelam ações ocultas do espírito angustiado.

Uma razão para essa exploração ficcional dos recôncavos da alma era a ausência na época de uma comunidade estabelecida. Os romancistas ingleses — Jane Austen, Charles Dickens (o grande favorito), Anthony Trollope, George Eliot e William Thackeray — viviam em uma sociedade tradicional, bem articulada e complexa, além de compartilhar com seus leitores atitudes que embasavam sua ficção realista.

Os romancistas americanos enfrentavam uma história de conflito e revolução, uma geografia de vastos ermos não desbravados e uma sociedade democrática fluida e relativamente sem classes. Muitos romances ingleses mostram um personagem principal pobre que galga os degraus da escada social e econômica, talvez devido a um bom casamento ou à descoberta de um passado aristocrata desconhecido. Mas essa trama não desafia a estrutura social aristocrática da Inglaterra. Ao contrário, ela a confirma. A ascensão social do personagem principal satisfaz a realização do desejo dos leitores que na Inglaterra daquela época eram principalmente de classe média.

O romancista americano, ao contrário, tinha de adotar uma estratégia própria. Os Estados Unidos eram, em parte, uma fronteira indefinida, em constante movimento, habitada por imigrantes que falavam diversos idiomas e cujo estilo de vida era estranho e rude. Portanto, o personagem principal de uma narrativa americana poderia se encontrar sozinho

entre tribos canibais, como em Taipi – Paraíso de Canibais, de Melville, ou explorar terras selvagens, como os caçadores de peles de James Fenimore Cooper, ou ter visões de sepulcros isolados, como os personagens solitários de Poe, ou encontrar o demônio durante uma caminhada pela floresta, como o jovem Goodman Brown de Hawthorne. Praticamente todos os grandes protagonistas americanos são “solitários”. O americano democrático teve, por assim dizer, de se “inventar” a si mesmo. O romancista americano sério também precisou criar novas formas: daí o formato disperso e idiossincrático do romance Moby Dick de Melville e a narrativa em clima de sonho e divagação de Poe, O Relato de Arthur Gordon Pym.

Herman Melville (1819-1891) Herman Melville era descendente de uma família

antiga e abastada que caiu repentinamente na pobreza com a morte do pai. Apesar de sua criação, das tradições familiares e do trabalho árduo, Melville não teve educação universitária. Aos 19 anos, foi para o mar. Seu interesse pela vida dos marinheiros foi uma conseqüência natural de suas próprias experiências e seus primeiros romances foram em grande parte inspirados em suas viagens. Seu primeiro livro, Taipi, foi baseado no tempo em que viveu entre o povo taipi, nas Ilhas Marquesas, no Sul do Pacífico.

Moby Dick; ou, A Baleia, obra-prima de Melville, é um épico sobre a história da baleeira Pequod e de seu capitão, Ahab, cuja busca obsessiva pela baleia

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branca, Moby Dick, leva o barco e seus homens à destruição. Essa obra, romance de aventura aparentemente realista, contém uma série de reflexões sobre a condição humana.

A pesca da baleia, que percorre todo o livro, é uma grande metáfora da busca por conhecimento. Embora a busca de Ahab seja filosófica, ela é também trágica. A despeito de seu heroísmo, Ahab é condenado e talvez amaldiçoado no final. A natureza, ainda que bela, é misteriosa e potencialmente fatal. Em Moby Dick, Melville desafia a idéia otimista de Emerson de que os seres humanos podem entender a natureza. Moby Dick, a grande baleia branca, representa a existência cósmica e impenetrável que domina o romance, da mesma maneira que obceca Ahab. Os fatos sobre a baleia e sua pesca não podem explicar Moby Dick; ao contrário, os próprios fatos tendem a se dissolver em símbolos. Por trás do conjunto de fatos relatados por Melville está uma visão mística — mas se essa visão é do mal ou do bem, humana ou desumana, não é explicado.

Ahab insiste em imaginar um mundo de absolutos atemporal e heróico. Insensatamente, ele exige um “texto” acabado, uma resposta. Mas o romance mostra que, assim como não existem formas acabadas, não há respostas definitivas exceto, talvez, a morte. Algumas referências literárias ressoam pelo romance. Ahab, cujo nome vem de um rei do Antigo Testamento, deseja o conhecimento absoluto, faustiano e divino. Como Édipo na peça de Sófocles, que paga de forma trágica

pelo conhecimento equivocado, Ahab é atingido pela cegueira antes de ser morto no final.

O nome do barco de Ahab, Pequod, refere-se a uma tribo indígena extinta da Nova Inglaterra; assim, o nome sugere que o barco está fadado à destruição. A pesca da baleia, na verdade, foi uma indústria importante, em especial na Nova Inglaterra: ela fornecia óleo de baleia como fonte de energia, principalmente para lamparinas. Portanto, a baleia literalmente “lança luz” sobre o universo. O livro tem ressonância histórica. A pesca da baleia era inerentemente expansionista e ligada à idéia histórica de um “destino manifesto” para os americanos, já que exigia que navegassem ao redor do mundo em busca de baleias (de fato, o atual estado do Havaí caiu sob o domínio americano porque era usado como importante base de reabastecimento de combustível para os navios baleeiros). Os membros da tripulação do Pequod representam todas as raças e várias religiões, sugerindo a idéia de um Estados Unidos como um estado de espírito universal, bem como de um caldeirão cultural. Finalmente, Ahab incorpora a versão trágica do individualismo americano democrático. Ele afirma sua dignidade como indivíduo e ousa se opor às inexoráveis forças externas do universo.

A Ascensão do Realismo A Guerra Civil Americana (1861-1865) entre o Norte

industrial e o Sul agrícola e escravagista foi um divisor

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de águas na história dos EUA. Antes da guerra, os idealistas defendiam os direitos humanos, especialmente a abolição da escravidão; depois da guerra, os americanos passaram a idealizar cada vez mais o progresso e o “self-made man”, como chamam as pessoas que conseguem vencer na vida pelo próprio esforço. Essa foi a era dos industriais e dos especuladores milionários, quando a teoria de Darwin sobre a evolução biológica e a “sobrevivência dos mais aptos” entre as espécies foi aplicada à sociedade e parecia sancionar a falta de ética ocasional nos métodos utilizados pelos magnatas empresariais de sucesso.

Os negócios prosperaram rapidamente após a guerra. O novo sistema ferroviário intercontinental, inaugurado em 1869, e o telégrafo transcontinental, que começou a operar em 1861, deram à indústria acesso a materiais, mercados e comunicações. O ingresso constante de imigrantes propiciou o fornecimento aparentemente interminável de mão-de-obra barata. Mais de 23 milhões de estrangeiros — alemães, escandinavos e irlandeses nos primeiros anos e, a partir de então, cada vez mais imigrantes da Europa Central e do Sul — entraram nos Estados Unidos entre 1860 e 1910. Em 1860, a maioria dos americanos vivia em fazendas ou pequenos povoados, mas em 1919 metade da população estava concentrada em cerca de 12 cidades.

Surgiram os problemas da urbanização e da industrialização: habitações pobres e superlotadas, falta de saneamento, baixos salários (chamados de

“escravidão assalariada”), condições de trabalho difíceis e controle inadequado dos negócios. Os sindicatos trabalhistas cresceram, e as greves levaram ao conhecimento da nação a difícil situação da classe trabalhadora. Os agricultores também se viram lutando contra os “interesses monetários” do Leste. De 1860 a 1914, os Estados Unidos passaram de ex-colônia agrícola a uma imensa nação industrial moderna. A nação endividada de 1860 havia se transformado no Estado mais rico do mundo em 1914. Na época da Primeira Guerra Mundial, os Estados Unidos tinham se tornado a maior potência mundial.

A industrialização cresceu e, com ela, cresceu também o distanciamento. Dois grandes romancistas desse período — Mark Twain e Henry James — reagiram cada um à sua maneira. Twain voltou-se para o Sul e o Oeste no coração dos Estados Unidos rurais e fronteiriços para encontrar seu mito definidor; James voltou-se para a Europa a fim de avaliar a natureza dos novos americanos cosmopolitas.

Samuel Clemens (Mark Twain) (1835-1910) Samuel Clemens, mais conhecido por seu

pseudônimo Mark Twain, cresceu à beira do Rio Mississippi, na cidade fronteiriça de Hannibal, no Missouri. Ernest Hemingway disse que toda a literatura americana vem de um grande livro, As Aventuras de Huckleberry Finn, de Mark Twain. No início do século 19, os escritores americanos tendiam a ser demasiadamente rebuscados, sentimentais ou

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pomposos — em parte porque ainda tentavam provar que poderiam escrever de forma tão elegante quanto os ingleses. O estilo de Twain, baseado na fala americana vigorosa, realista e coloquial, deu aos escritores do país uma nova valorização de sua voz nacional. Mark Twain foi o primeiro autor importante do interior do país. Ele captou suas gírias peculiares e humorísticas e o espírito iconoclasta.

Para Twain, assim como para outros escritores americanos do final do século 19, o realismo não era apenas uma técnica literária: era uma maneira de falar a verdade e detonar antigas convenções. Portanto, era profundamente libertador e potencialmente hostil à sociedade. O exemplo mais conhecido é a história de Huck Finn, menino pobre que decide seguir a voz da consciência e ajudar um escravo negro a fugir para a liberdade, apesar de pensar que isso o condenaria ao inferno por infringir a lei.

A obra-prima de Twain, lançada em 1884, tem como cenário a aldeia de St. Petersburg, às margens do rio Mississippi. Filho de um vagabundo alcoólatra, Huck acabara de ser adotado por uma família respeitável quando seu pai, em estupor alcoólico, o ameaça de morte. Temendo por sua vida, Huck foge, fingindo estar morto. Nessa fuga, junta-se a ele outro marginal, o escravo Jim, cuja dona, senhorita Watson, está pensando em vendê-lo rio abaixo para a escravidão mais empedernida do extremo Sul. Huck e Jim descem o majestoso Mississippi em uma canoa, mas ela é abalroada por um barco a vapor e afunda; eles se separam e mais tarde voltam a se encontrar. Os

dois passam por muitas aventuras cômicas e perigosas à margem do rio mostrando a variedade, a generosidade e, às vezes, a irracionalidade cruel da sociedade. No final, descobre-se que a senhorita Watson já havia libertado Jim, e uma família respeitável está cuidando do rebelde Huck. Mas Huck não se adapta à sociedade civilizada e planeja fugir para “os territórios” — terras indígenas.

O final dá ao leitor outra versão do clássico mito da “pureza” americana: a estrada aberta levando a terras ermas intocadas, longe das influências moralmente corruptas da “civilização”. Os romances de James Fenimore Cooper, os hinos de Walt Whitman à estrada livre, O Urso de William Faulkner e On the Road — Pé na Estrada de Jack Kerouac são outros exemplos literários.

Henry James (1843-1916) Henry James certa vez escreveu que a arte,

especialmente a literatura, “faz a vida, faz o interesse, faz a importância”. A ficção de James é a mais consciente, sofisticada e difícil de sua época. James se destaca pelo “tema internacional” — ou seja, as complexas relações entre americanos ingênuos e europeus cosmopolitas.

O que seu biógrafo, Leon Edel, chama de primeira fase ou a fase internacional de James inclui obras como The American [O Americano] (1877), Daisy Miller (1879) e sua obra máxima, Retrato de uma Senhora (1881). Em The American, por exemplo, Christopher

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Newman, industrial milionário que venceu por seu próprio esforço, ingênuo, mas inteligente e idealista, vai para a Europa em busca de uma noiva. Quando a família da moça o rejeita por não ser aristocrata, ele tem a oportunidade de vingança; ao decidir nada fazer, mostra sua superioridade moral.

A segunda fase de James foi experimental. Ele explorou novos temas — feminismo e reforma social em The Bostonians [Os Bostonianos] (1886) e intriga política em The Princess Casamassima [A Princesa Casamassima] (1885). Em sua terceira fase, ou a “principal”, James volta aos temas internacionais, mas os trata com crescente sofisticação e profundeza psicológica. O complexo e quase mítico As Asas da Pomba (1902), Os Embaixadores (1903) — que James considerava seu melhor romance — e A Taça de Ouro (1904) datam desse importante período. Se o tema principal da obra de Mark Twain é a diferença sempre cheia de humor entre a falsa aparência e a realidade, a preocupação constante de James é a percepção. Em James, só a autoconsciência e a clara percepção do outro levam à sabedoria e ao amor altruísta.

Modernismo e Experimentação Muitos historiadores caracterizaram o período entre

as duas guerras mundiais como o “amadurecimento” traumático dos Estados Unidos, apesar do fato de que o envolvimento direto dos americanos foi relativamente curto (1917-1918) e com muito menos mortos do que seus aliados e inimigos europeus. Chocados e para sempre transformados, os soldados americanos

retornaram à sua pátria, mas nunca mais puderam recuperar a inocência. Tampouco os soldados provenientes da zona rural do país conseguiram voltar facilmente às suas raízes. Depois de conhecer o mundo, muitos deles agora ansiavam por uma vida moderna e urbana.

No “grande boom” do pós-guerra, os negócios floresciam e os bem-sucedidos prosperavam além do que podiam imaginar em seus sonhos mais desvairados. Pela primeira vez, muitos americanos entraram no ensino superior — na década de 1920 as matrículas universitárias dobraram. A classe média prosperou; os americanos começaram a desfrutar da renda média nacional mais alta do mundo dessa época.

Os americanos dos chamados “loucos anos 20” se apaixonaram pelos entretenimentos modernos. A maioria das pessoas ia ao cinema uma vez por semana. Embora a Lei Seca — proibição nacional da venda de álcool instituída por meio da 18º Emenda à Constituição do EUA — tenha começado em 1919, bares ilegais, conhecidos como “speakeasies”, e nightclubs proliferaram, oferecendo jazz, bebidas e maneiras ousadas de vestir e dançar. Dançar, ir ao cinema, fazer passeios de carro e ouvir rádio eram manias nacionais. As mulheres americanas, em particular, se sentiram liberadas. Elas cortaram o cabelo curto (“a la garçonne”), usavam vestidos curtos estilo “melindrosa” e vibraram com o direito ao voto garantido pela 19a Emenda à Constituição, aprovada

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em 1920. Falavam o que pensavam com ousadia e ocupavam funções públicas na sociedade.

Apesar dessa prosperidade, os jovens ocidentais na “vanguarda” cultural encontravam-se em um estado de rebelião intelectual, enfurecidos e desiludidos com a guerra selvagem e com a geração mais velha que responsabilizavam. Ironicamente, as condições econômicas difíceis do pós-guerra na Europa permitiam que os americanos endinheirados — como os escritores F. Scott Fitzgerald, Ernest Hemingway, Gertrude Stein e Ezra Pound — vivessem no exterior confortavelmente com pouquíssimo dinheiro e absorvessem a desilusão do pós-guerra e também outras correntes intelectuais européias, em particular a psicologia freudiana e, em menor grau, o marxismo.

Diversos romances, em especial O Sol Também se Levanta (1926), de Hemingway, e Este Lado do Paraíso (1920), de Fitzgerald, evocam a extravagância e a desilusão do que a escritora americana expatriada Gertrude Stein chamou de “a geração perdida”. Em “A Terra Desolada” (1922), longo e influente poema de T.S. Eliot, a civilização ocidental é simbolizada por um deserto desolado necessitando desesperadamente de chuva (renovação espiritual).

Modernismo A grande onda cultural do modernismo, que surgiu

na Europa e depois se espalhou para os Estados Unidos nos primeiros anos do século 20, expressava um sentido de vida moderna pela arte como uma ruptura brusca com o passado. À medida que as

máquinas modernas mudavam o ritmo, a atmosfera e a aparência da vida diária no início do século 20, muitos artistas e escritores, com graus variados de sucesso, reinventavam formas artísticas tradicionais e buscavam radicalmente outras novas — eco estético do que as pessoas haviam passado a chamar de “era da máquina”.

T.S. Eliot (1888-1965) Thomas Stearns Eliot recebeu a melhor educação

em comparação a qualquer outro grande escritor americano de sua geração. Freqüentou a Faculdade de Harvard, a Sorbonne e a Universidade de Oxford. Estudou sânscrito e filosofia oriental, o que influenciou sua poesia. Como seu amigo, o poeta Ezra Pound, foi para a Inglaterra cedo e se tornou figura de destaque no mundo literário inglês. Um dos poetas mais respeitados de sua época, sua poesia iconoclasta modernista, aparentemente ilógica ou abstrata teve impacto revolucionário.

Em “A Canção de Amor de J. Alfred Prufrock” (1915), o impotente e velho Prufrock acha que “mediu sua vida em colherinhas de café” — a imagem das colherinhas de café refletindo uma existência enfadonha e uma vida desperdiçada. A famosa abertura de “Prufrock” convida o leitor para vielas urbanas de mau gosto que, como a vida moderna, não oferecem respostas às questões da vida:

Sigamos então, tu e eu, Enquanto o poente no céu se estende

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Como um paciente anestesiado sobre a mesa… (Tradução de Ivan Junqueira) Imagens semelhantes permeiam “A Terra Desolada”

(1922), que ecoa o “Inferno” de Dante para evocar as ruas apinhadas de Londres na época da Primeira Guerra Mundial:

Sob a fulva neblina de uma aurora de inverno, Fluía a multidão pela Ponte de Londres, eram tantos, Jamais pensei que a morte a tantos destruíra… (I,

60-63) (Tradução de Ivan Junqueira) Robert Frost (1874-1963) Robert Lee Frost nasceu na Califórnia, mas foi

criado em uma fazenda no nordeste dos EUA até os 10 anos. Como Eliot e Pound, foi para a Inglaterra, atraído por novos movimentos poéticos. Escreveu sobre a vida nas fazendas tradicionais da Nova Inglaterra (no nordeste dos Estados Unidos), mostrando nostalgia pelo estilo de vida do passado. Seus temas são universais — colheita de maçã, muros de pedra, cercas, estradas rurais. Embora sua abordagem fosse clara e acessível, seu trabalho muitas vezes só é simples na aparência. Muitos poemas sugerem um sentido mais profundo. Por exemplo, uma noite tranqüila e nevosa pode sugerir, por meio de uma combinação de rimas quase hipnótica, a aproximação não de todo indesejada da morte. De “Stopping by Woods on a Snowy Evening” [“Parado no Bosque Numa Noite de Neve”] (1923):

De quem é esse bosque acho que sei. Sua casa, no entanto, fica na aldeia; Ele não me verá parado aqui Olhando seu bosque se cobrir de neve. Embora a prosa americana no período entre

guerras tenha feito experimentações relativas ao ponto de vista e à forma, de modo geral os americanos escreviam de maneira mais realista do que os europeus. A importância de enfrentar a realidade tornou-se tema dominante nas décadas de 1920 e 1930: escritores como F. Scott Fitzgerald e o dramaturgo Eugene O’Neill retrataram diversas vezes a tragédia que aguardava aqueles que vivem de sonhos frágeis.

F. Scott Fitzgerald (1896-1940) A vida de Francis Scott Key Fitzgerald parece um

conto de fadas. Durante a Primeira Guerra Mundial, Fitzgerald se alistou no Exército americano e se apaixonou por uma moça rica e bonita, Zelda Sayre, que morava em Montgomery, no Alabama, onde ele estava estacionado. Depois de ter sido dispensado no fim da guerra, foi em busca de sua fortuna literária na cidade de Nova York para poder se casar com ela.

Seu primeiro romance, Este Lado do Paraíso (1920), se tornou um best-seller, e aos 24 anos se casou com Zelda. Nem um dos dois estava preparado para lidar com as pressões do sucesso e da fama, e acabaram dissipando o dinheiro que tinham. Em 1924, mudaram-se para a França para economizar e retornaram sete anos depois. Zelda tornou-se

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mentalmente instável e precisou ser internada; Fitzgerald virou alcoólatra e morreu jovem como roteirista de cinema.

Fitzgerald garantiu seu lugar na literatura americana principalmente com seu romance O Grande Gatsby (1925), história escrita com brilhantismo e economicamente estruturada sobre o sonho americano do homem que se fez sozinho (self-made man). O protagonista, o misterioso Jay Gatsby, descobre o preço devastador do sucesso em termos de realização pessoal e do amor. Mais do que qualquer outro escritor, Fitzgerald captou a vida de esplendor e desespero dos anos 1920.

Ernest Hemingway (1899-1961) Poucos escritores tiveram um vida tão intensa

quanto Ernest Hemingway, cuja carreira poderia ter saído de um de seus romances de aventura. Como Fitzgerald, Dreiser e muitos outros romancistas do século 20, Hemingway veio do Meio Oeste dos EUA. Apresentou-se como voluntário para trabalhar como motorista de ambulância na França durante a Primeira Guerra Mundial, mas foi ferido e ficou hospitalizado por seis meses. Depois da guerra, como correspondente de guerra baseado em Paris, encontrou os escritores americanos expatriados Sherwood Anderson, Ezra Pound, F. Scott Fitzgerald e Gertrude Stein. Stein, em particular, influenciou seu estilo conciso.

Depois de ficar famoso com o romance O Sol Também se Levanta, ele continuou a trabalhar como jornalista, cobrindo a Guerra Civil Espanhola, a

Segunda Guerra Mundial e a luta na China na década de 1940. Durante um safári na África, feriu-se em um acidente com seu pequeno avião; apesar disso, continuou gostando de caçadas e da pesca esportiva, atividades que inspiraram alguns de seus melhores trabalhos. O Velho e o Mar (1952), breve romance poético sobre um pobre e velho pescador, cujo peixe imenso pescado em mar aberto é devorado por tubarões, rendeu-lhe o Prêmio Pulitzer em 1953; no ano seguinte, recebeu o Prêmio Nobel. Acossado por um histórico familiar problemático, doenças e por acreditar que estava perdendo o dom de escrever, o escritor se matou com um tiro em 1961. Hemingway é considerado o mais popular romancista americano. Seus interesses são basicamente apolíticos e humanísticos, e nesse sentido ele é universal.

Como Fitzgerald, Hemingway se tornou porta-voz de sua geração. Mas ao invés de retratar seu glamour fatal, como fez Fitzgerald, que nunca lutou na Primeira Guerra Mundial, Hemingway escreveu sobre a guerra, a morte e a “geração perdida” de sobreviventes desiludidos. Seus personagens não são sonhadores, mas toureiros, soldados e atletas durões. Se intelectuais, são profundamente marcados e desiludidos. Sua marca registrada é o estilo claro desprovido de palavras desnecessárias. Usa com freqüência a contenção. Em Adeus às Armas (1929) a heroína morre ao dar à luz dizendo: “Não tenho medo. É só um golpe baixo.” Certa vez comparou sua produção literária a icebergs: “Para cada parte que se revela, há sete oitavos debaixo d’água.”

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William Faulkner (1897-1962) Nascido em uma antiga família sulista, William

Harrison Faulkner foi criado em Oxford, no estado do Mississippi, onde viveu grande parte de sua vida. Faulkner recria a história da terra e das várias raças que nela viveram. Escritor inovador, Faulkner fez experimentações brilhantes com a cronologia narrativa, diferentes pontos de vista e vozes (inclusive a de párias, crianças e analfabetos) e um rico e absorvente estilo barroco, constituído de frases extremamente longas.

Entre os melhores romances de Faulkner estão O Som e a Fúria (1929) e Enquanto Agonizo (1930), duas obras modernistas que fazem experimentações com pontos de vista e vozes para explorar fundo o drama de famílias sulistas sob a tensão de perder um membro da família; Luz em Agosto, sobre as relações complexas e violentas entre um mulher branca e um homem negro; e Absalom, Absalom! (1936), talvez seu melhor livro, sobre a ascensão de fazendeiro que subiu na vida por seu próprio esforço e sua trágica queda.

Dramaturgia americana no século 20 A dramaturgia americana foi uma imitação do

teatro inglês e europeu até o século 20. Foi somente no

século 20 que peças sérias americanas tentaram fazer inovações estéticas.

Eugene O’Neill (1888-1953) Eugene O’Neill é a grande figura da dramaturgia

americana. Suas diversas peças combinam enorme originalidade técnica com visão renovada e profundidade emocional. As primeiras peças de O’Neill tratam da classe trabalhadora e dos pobres; trabalhos posteriores exploram o mundo subjetivo e destacam sua leitura de Freud e a tentativa angustiada de aprender a conviver com as mortes da mãe, do pai e do irmão.

Sua peça Desejo sob os Ulmeiros (1924) recria as paixões escondidas de uma família. Suas peças posteriores incluem as reconhecidas obras-primas The Iceman Cometh (1946), obra cabal sobre o tema da morte, e Longa Jornada Noite Adentro (1956) —poderosa autobiografia em forma dramática, enfocando a própria família e sua deterioração física e psicológica, com a ação transcorrendo no período de uma noite.

continua… Fonte: http://embaixadaamericana.org.br/HTML/literatureinbrief/

Kathryn VanSpanckeren é professora de Inglês na Universidade de Tampa. Ela lecionou literatura americana no exterior. Recebeu seu bacharelado pela Universidade da Califórnia, em Berkeley, e seu Ph.D. da Universidade de Harvard.

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Alba Krishna Topan Feldman

A Identidade da Mulher Indígena na Escrita de

Zitkala-Ša e Eliane Potiguara RESUMO: O estudo de crítica feminina tem se desenvolvido

para abarcar mulheres de diferentes etnias e também de diferentes formações culturais e épocas. Este trabalho tem por objetivo discutir como a identidade de gênero e etnia se apresenta na escrita de duas autoras de origem indígena, uma brasileira contemporânea, Eliane Potiguara, e outra Estadunidense do início do século XX, Zitkala-Ša. As duas autoras estudadas misturam de forma vivaz a ficção, a escrita jornalística de informação com relação à situação indígena, além de poesia e narração com moldes na oralidade, reafirmando o papel da mulher indígena como contadora de histórias e como educadora. Ambas buscaram por caminhos às vezes diferentes, e muitas vezes conflitantes pela diferença de cultura e objetivo final com relação aos leitores, mas muitas vezes similares, mostrar aspectos desconhecidos e calados dos sentimentos e angústias vividas pela mulher indígena diante de uma sociedade opressora retomando fatos históricos e também as condições

contemporâneas de suas tribos e do povo indígena como um todo.

1 – Introdução Eliane Potiguara é descendente de índios

Potiguaras do Recife, escritora brasileira contemporânea, enquanto Zitkala-Ša é Yankton Dakota, e viveu no final do século XIX e início do século XX, nação Sioux, Estados Unidos. O foco de estudo deste artigo recairá nas estratégias utilizadas pelas duas autoras como forma de manter e questionar sua condição como mulher e como indígena em períodos igualmente marcados pela violência e repressão em seus respectivos países. Ashcroft (2002), Hall (2002), e Trinh (1989) fornecerão a base teórica para a análise. Uma breve intervenção biográfica das duas autoras será seguido do estudo de excertos que demonstram seus estilos e suas estratégias para tornarem-se agentes de suas etnias e de seu gênero. A primeira parte da análise se focará na etnia e na

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reafirmação do indígena procedido pelas duas autoras, enquanto a segunda discutirá o corpo indígena e o corpo feminino.

2 – As autoras: vidas e obras Zitkala-Ša, nascida Gertrude Simmons (1876-

1938), em uma das reservas mais pobres dos EUA era filha de mãe indígena e pai provavelmente branco, do qual quase nada se sabe. A autora enfrentou momentos amargos na história indígena americana, como as marchas forçadas, chamadas de trilhas de lágrimas, a aculturação em massa exercida pelas boarding schools, escolas indígenas que trouxeram doenças, trauma e morte, além das chamadas guerras índias, que dizimaram os indígenas no século XIX e início do século XX. Seus contos autobiográficos, poemas e artigos foram publicados em periódicos de renome na época, como o Atlantic Monthly Magazine, em 1900 e mais tarde transformada em dois livros, entre 1920 e 1922. Tornou-se Gertrude Bonnin pelo casamento, mas optou pelo nome indígena Zitkala-Ša como escritora, da língua Dakota, que significa “Pássaro Vermelho”. Ela tornou-se um dos raros Nativos Americanos que conseguiram chegar ao Ensino Superior, musicista, escritora e ativista pela causa indígena, autora da única ópera com tema indígena e composta por um indígena. Porém, mesmo com todas as suas realizações, caiu no esquecimento após sua morte. Seus escritos foram recuperados no final do século XX, quando os estudos da crítica feminina, do

pós-modernismo e do pós-colonialismo questionaram a construção do cânone literário. Sua obra American Indian Stories aborda momentos de sua infância, na reserva Yankton, seus momentos de aluna em uma boarding school dirigida por missionários e também como professora de outra boarding school, a conhecida Carlisle School. Old Indian Legends recupera as estórias que ouvia enquanto criança, ao redor da fogueira (LISA, 1996).

Eliane Potiguara é brasileira, 56 anos, Conselheira do Impbrapi, Instituto Indígena de Propriedade Intelectual e Coordenadora da Rede de Escritores Indígenas na Internet e do Grumin – grupo de mulheres indígenas/ Rede de Comunicação Indígena. Nascida com outro nome, adotou Eliane Potiguara para homenagear a tribo de onde veio, da Paraíba, os Potiguares (Comedores de Camarão). É formada em Letras e participa de diversas ONGs. Foi indicada, por seu trabalho como ativista, como representante do Brasil na campanha “Mil Mulheres Para o Prêmio Nobel da Paz 2005”. Foi nomeada uma das 10 mulheres do ano em 1988, pelo Conselho das Mulheres do Brasil, por ter criado o GRUMIN. Participou durante anos, da elaboração da ”Declaração Universal dos Direitos Indígenas”, na ONU em Genebra. Recebeu em 1996 o título de “Cidadania Internacional”, concedido pela filosofia Iraniana Bahai, que trabalha pela implantação da Paz Mundial. Foi premiada pelo Pen Club da Inglaterra pelo seu livro A Terra é a Mãe do Índio. Sua última obra publicada é Metade Cara, Metade Máscara, que mescla informações

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sobre a situação indígena atual, confissões e histórias autobiográficas, além da narrativa poética ficcional de Cunhataí e Jurupiranga, um casal que se separa na época da colonização, e passa os séculos pelo sofrimento de seu povo, para se reencontrar no presente.

3 - A identidade fragmentada e reafirmada A etnia indígena que vivia nos EUA na época de

Zitkala-Ša passaram por diversos problemas que comprometiam suas identidades, que incluíam:

- a invasão cultural europeizante, que procurava aculturar e “assimilar” o indígena em um projeto bem planejado e que assumia diversas formas, algumas inclusive disfarçadas em “pele de cordeiro”, como a distribuição de terras aos índios através do Dawes Act, de 1887, que possibilitava aos brancos um roubo legalizado das terras das reservas indígenas, ou as boarding schools, internatos religiosos ou militares que traumatizaram as crianças, fazendo com que elas perdessem sua tradição étnica, sua linguagem, mas ao mesmo tempo não conseguissem se adaptar à sociedade euro-americana;

- as teorias secundárias às idéias darwinianas, que estabeleciam as raças não européias como inferiores, e o hibridismo como degeneração. No caso de Zitkala-Ša, há uma forte possibilidade de que seu pai seja um homem branco, o que ela nunca deixou transparecer em sua escrita. Mesmo assim, sua educação e criação acabou por representar nela o dilema existencial que

fazia parte da vida da maioria do povo indígena na época: “Mesmo a natureza parecia não ter lugar para mim. Eu não era uma menina pequena, nem grande. Não era uma índia selvagem, nem domada” (ZITKALA-ŠA, 2003, contracapa).1

1 “Even nature seemed to have no place for me. I was neither a wee girl nor a tall one, neither a wild indian nor a tame one” (ZITKALA-ŠA, 2003, contracapa).

A identidade fragmentada é apontada por Hall (2002) ao afirmar que, a partir de certos movimentos que tiveram início no final do século XIX, como a Psicologia (que cindiu a mente em consciente e inconsciente), o marxismo (que cindiu a sociedade em classes), Foucault e o feminismo, que questionaram o posicionamento de poder e de gênero, a identidade deixa de ser um todo, um “bloco” uno, com um único centro, e passa a ter diversos centros, ou seja, a identidade vista sob o prisma dos estudos pós-modernos vai variar de acordo com os sistemas culturais que a interpelam.

A questão da pluralidade de identidades está presente em Zitkala-Ša de diversas formas: ela assume, publicamente, sua condição de índia, abandonando sua hibridez física, mas utiliza sua hibridez cultural ao fazer uso de sua educação e conhecimento da língua inglesa para escrever, inclusive mostrando sua erudição, contra a cultura branca e seus efeitos devastadores dos processos de assimilação aos indígenas de sua época. Por outro lado, assume os dois papéis destinados às mulheres

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índias na época. O primeiro é a a squaw, palavra para “vagina” em algumas línguas indígenas e “moça” em outras, usada desdenhosamente pelos brancos para designar as mulheres indígenas que, são forçadas a se prostituírem e abandonarem suas aldeias para servirem aos homens brancos. O segundo estereótipo é a princesa, personificada pela filha do chefe Powhatan, a famosa Pocahontas, que, além de servir de mediadora entre brancos e índios, arrisca sua vida pelo homem branco, muitas vezes às custas da destruição de seu próprio povo. Zitkala-Ša deixa em suspenso o fato de que seria ou não neta de Tatanka Yotanka (O famoso chefe indígena Touro Sentado, místico e ativista, que participou da troupe circence do velho oeste de Buffalo Bill e venceu o general Custer na batalha de Little Big Horn), assumindo, portanto, o papel de princesa, neta do chefe. Também é chamada de squaw na forma de um cartaz quando ganha um concurso de oratória na faculdade, sendo a única concorrente indígena. Pode-se, então, observar que a autora subverte os dois papéis, uma vez que é comprovado através da análise dos anos de nascimento, que é impossível para Zitkala-Ša ser neta biológica de Touro Sentado. Por outro lado, ela usou esse expediente para ter acesso aos corredores do poder como ativista em Washington D.C.. Ela também subverte o estereótipo de squaw, porque recebe este nome não pela sua subordinação aos brancos, e nem por favores sexuais, mas por ousadia em competir em um ambiente cultural não-indígena, e sua por competência em ganhar.

Potiguara também deixa entrever o hibridismo e a fragmentação em sua história, quando afirma, narrando a própria história em terceira pessoa: “Foi impactante porque eram todas mulheres, as quatro filhas do índio X, mais a mãe Maria da Luz. Sua avó, a menina Maria de Lourdes, com apenas 12 anos, já era mãe solteira, vítima da violação sexual praticada por colonos que trabalhavam para a família inglesa X”(POTIGUARA, 2004, p. 27). A história reticente e muitas vezes imprecisa quanto a dados históricos, que são apenas entrevistos é utilizada pelas duas autoras, como forma de generalização e representação da identidade indígena como um todo: não são apenas elas ou suas famílias que passaram por situações parecidas, mas toda uma população indígena.

Ambas as autoras hibridizam também suas literaturas: fazem um resgate dos acontecimentos e as tradições de seus respectivos povos utilizando a linguagem do dominante, porém, também de forma híbrida: misturam diversos gêneros literários, como ensaio reflexivo, narrativa e poesia. Enquanto Potiguara se afirma diretamente e denuncia as violências sentidas por seu povo, Zitkala-Ša o faz de maneira velada, mas não menos incisiva, como quando, por exemplo, ao narrar o corte de seu cabelo no internato, considerada desonra para seu povo, ela o faz com as tintas de um estupro:

Eu me lembro de ter sido forçada e puxada, mesmo resistindo com chutes e unhadas selvagens. Totalmente contra minha vontade, fui carregada pela escadaria abaixo e amarrada com força a uma cadeira.

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Eu gritava alto, balançando minha cabeça o tempo todo até sentir as lâminas geladas da tesoura contra meu pescoço e as ouvir destruírem uma de minhas grossas tranças. Então, perdi meu espírito. (ZITKALA-ŠA, 2003, p. 69, tradução nossa).

A doçura da infância na reserva convivendo com o carinho da tribo contrasta com o tratamento desumano recebido na escola. E esta era a realidade de milhares de crianças indígenas na época de Zitkla-Ša, proibidas de usar as roupas e adereços das tribos, sua linguagem e qualquer elemento de suas tradições sob pena de surras e todo tipo de violência.

Potiguara mistura uma escrita informativa, ensaística e poética: “Em 18 de abril de 1997, o líder indígena Marçal Tupã-y, assassinado em 25 de novembro de 1983, esteve nas terras do Sul do Brasil e disse: „Eu não fico quieto não...⁄ Eu reclamo...⁄Eu falo... ⁄ Eu denuncio.” (POTIGUARA, 2004, p. 47).

Uma das formas de resistência, segundo Ashcroft (2002), é o testimonio, ou seja, a narrativa de histórias do cotidiano dos povos dominados, a escrita autobiográfica. Esta é uma forma não apenas de auto-expressão e de arte literária, mas também uma forma de o dominado denunciar o que ocorre em seu mundo. Desta forma, o dominado também se apropria das armas do dominante, seja na forma da linguagem, ou de sua negação, seja através de mímica, de ironia, entre outros recursos, para a formação de seu próprio espaço e, fugindo ao controle do dominador, mescla sua cultura. O testemunho é usado pelas duas autoras

em suas escritas autobiográficas e também na recuperação de tradições e da filosofia indígena.

Uma das provas da insistência na cultura dominada é a utilização, por parte de ambas, da arte de contar histórias. Esta é apontada por elas como o método de educação das crianças indígenas. Ambas as autoras o fazem por meio de suas narrativas autobiográficas e ficcionais, subvertendo a erudição e o uso da linguagem dominante aprendida como forma de chamar a atenção dos não-indígenas para a problemática indígena, e também como forma de recuperação da auto-estima alquebrada de seus povos. Potiguara aponta para caminhos mais esperançosos: ao final de sua saga de seu livro Metade Cara, Metade Máscara, Cunhataí e Jurupiranga se reencontram e juntos criam presenciam o renascimento da cultura; da união de suas lágrimas, produzem a felicidade para si e para seu povo. Enquanto isso, Zitkala-Ša oscila entre uma esperança febril e o desânimo ante os poucos resultados de sua luta. No início de sua obra, em diversos contos, ela entrevê índios dançando felizes, como nunca havia visto:

O presente era uma coisa fantástica, a textura muito mais delicada que a teia brilhante de uma aranha. Era uma visão! Uma figura de uma aldeia indígena, não pintada em tela, nem mesmo escrita. Era feita de sonhos, suspensa no ar, enchendo a área do baú de cedro. Quando ela olhou para dentro, a figura ficou mais e mais real, ultrapassando as dimensões do baú, Enquanto observava a figura, esta crescia mais. Era tão suave que parecia que uma respiração poderia

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tê-la destruído; ainda assim, era real como a vida – um acampamento circular, cheio de tendas brancas em forma de cone, viva com o povo indígena. [...] Ela ouviu distintamente as palavras Dakota que ele proclamava ao povo. “Alegrem-se, fiquem felizes! Olhem e vejam o novo dia nascendo! A ajuda está próxima! Ouçam-me todos.” Ela sentiu as ondas de alegria e ficou emocionada com nova esperança para seu povo” (ZITKALA-ŠA, 2003, p. 142, tradução nossa).

Porém, em algumas obras, como no conto Search of Bear Claws, the lost schoolboy, (em busca de Garras de Urso, o estudante perdido), onde ela conta a história de um menino que foge da repressão do internato, seu final não é feliz. A tribo usa sua tradição para encontrá-lo, na figura do Medicine Man, o curandeiro, mas isso não é suficiente, pois a morte aparece como a libertação para o pequeno fugitivo: “Ali, sob o manto da neve, eles encontraram o corpo do estudante fugitivo: o pequeno Garras de Urso fugira para onde os internatos não poderiam torturá-lo mais.” (IDEM, 2001, p. 96, tradução nossa)

Imagens como a reunião da tribo em volta de uma fogueira para contar histórias ou dançar, em Zitkala-Ša, o uso das ervas para Potiguara, a comunhão com a natureza e a aldeia, seja ela física ou simbólica em ambas, procuram estabelecer aspectos de identidade do índio e lembrar as tradições. Porém, ambas mostram-se conscientes de que é necessário o conhecimento do idoso e a ação do jovem para que a cultura indígena sobreviva, de forma a não ficarem

presas ao passado, mas procurarem a resolução dos problemas no presente.

A relação respeitosa e simbiótica do indígena com a natureza também está presente nas autoras, como pode ser mostrado nesse excerto: “Quando o espírito penetra meu peito, gosto de andar calmamente entre as montanhas verdes; ou, às vezes, sentada às margens do Missouri sussurrante, eu me maravilho com o grande azul acima.” (IDEM, 2003, p. 114)

No poema “Eu não tenho minha aldeia”, Potiguara coloca a aldeia como símbolo da própria identidade indígena para aqueles que a perderam:

Eu não tenho minha aldeia / Minha aldeia é minha casa espiritual / Deixada pelos meus pais e meus avós / A maior herança indígena [...]

Ah, Já tenho minha aldeia / Minha Aldeia é Meu Coração ardente / É a casa dos meus antepassados / E do topo dela eu vejo o mundo

(POTIGUARA, 2004, p. 131-132). Desta forma, as duas autoras, por mais que

estejam forçadamente no limiar de duas culturas, a cultura branca imposta e a cultura indígena perdida, fazem a opção pela cultura indígena, utilizando-se de expedientes da cultura e do conhecimento do dominante para transmitir seu conhecimento e sua indignação com a situação em que vivem suas respectivas etnias, hibridizando seus conhecimentos e o uso que fazem dele.

A identidade fragmentada e a opção pela indianidade (o desaparecimento das origens brancas)

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aparece propositadamente nas duas escritas autobiográficas. A união da modernidade e da tradição são patentes nas duas obras. No conto A dream of her grandfather, de Zitkala-Ša, a neta ativista recebe de presente do avô, um medicine man, uma visão. No mesmo sentido, Potiguara afirma que Jurupiranga “Percebeu a comunhão da nova e avançada tecnologia utilizada por alguns indígenas com as tradições indígenas, onde o diálogo jovens versus velhos era uma realidade” (POTIGUARA, 2004, p. 129).

Outros símbolos, como o cobertor e a fogueira do centro da aldeia (para Zitkala-Ša) e a pintura (para Potiguara) também representam a afirmação do índio e a busca de sua identidade, mas o choque entre a cultura branca e indígena procura ser resolvido pelas autoras de uma forma suave, não violenta, com respeito mútuo. Esta tentativa é mais forte em Zitkala-Ša, enquanto Potiguara é mais incisiva na apresentação e na busca da resolução dos conflitos em a que a solução aparece pela união da mulher indígena e do homem indígena.

4 - O corpo e o gênero O corpo marca as diferenças visíveis entre etnias e

entre gêneros, além de oferecer terrenos seguros para essencialismos, generalizações e ideologias sexistas e racistas. Os temas de outremização e identidade também estão presentes no corpo, pois a diferença gera hierarquias e dominação (TRINH, 1989).

Zitkala-Ša não é direta sobre questões sexuais, talvez pela educação rígida que recebera, pelos veículos nos quais publicou, ou pelas próprias limitações da época em que viveu, mas ela tem uma escrita que contrasta e ressalta sensações corporais, cores, e contrasta o corpo branco e indígena, além de reiterar exaustivamente a agência feminina. Metaforicamente, o conto the snow episode mostra uma outra faceta da relação índio/ branco: as meninas índias brincam de marcar a neve com seus corpos e são duramente repreendidas, pois é inconcebível que deixem as marcas de seu corpo vermelho na pureza da neve branca (mais uma vez, a neve representando o branco – como em outros contos da autora, a frieza e o motivo da dor do índio). Ao marcarem o branco da neve com seus corpos vermelhos, as crianças estariam indo contra a proposta assimilacionista, que era “embranquecer” o índio, e não “avermelhar” o branco.

O homem indígena em Zitkala-Ša é respeitável e amado, mas geralmente está perdido, louco, ou trata-se de um nobre antepassado já morto. A mulher tem a agência, no entanto, o homem indígena serve de inspiração à mulher, que sempre será a guerreira e portadora da tradição, utilizando-se de diferentes armas, como a personagem Tusee, do conto The Warrior’s daughter, que liberta o amado da tribo inimiga com sua inteligência e seu conhecimento da linguagem. Impressions mostra o tio da personagem narradora como um guerreiro honrado enterrado nas montanhas da reserva. A terra é mãe do índio, motivo

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de inspiração e contato com a divindade e a mulher é aquela que liberta o homem.

A escrita é sensorial em Zitkala-Ša – os sentidos são aguçados a todo o momento, e as descrições são vivazes neste sentido – gostos e cheiros da aldeia dentro da reserva são suaves e coloridos e é sempre verão ou primavera, enquanto a escuridão, o frio e a opressão da prisão são vivazes na escola e o inverno impera.

Enquanto isso, a escrita de Potiguara além de profundamente sensorial, como a de Zitkala-Ša, é também sensual: a terra não é apenas a mãe do índio, mas sua esposa prometida: a cunhã. A mulher é consciente de seu poder, mas está no aguardo de um momento para quebrar o silêncio:

Que faço com a minha cara de índia ? E meus espíritos / E minha força / E meu Tupã /

E meus círculos ? Que faço com a minha cara de índia? / E meu

sangue / E minha consciência / E minha luta / E nossos filhos ?

Brasil, o que faço com a minha cara de índia? Não sou violência / Ou estupro / Eu sou história /

Eu sou cunha / Barriga brasileira / Ventre sagrado / Povo brasileiro / Ventre que gerou / O povo brasileiro / Hoje está só ... / A barriga da mãe fecunda / E os cânticos que outrora cantava / Hoje são gritos de guerra / Contra o massacre imundo (POTIGUARA, 2004 p. 34-35).

O índio de Potiguara está fraco (Jurupiranga), mas é também um guerreiro nobre e está em vias de

despertar, se levantar e voltar a usar as tintas de sua tradição, em consonância com a modernidade.

“Então tomaremos o mel da manhã, / Pra que todos os antepassados renasçam / E olharemos pro céu do amanhã / Pra que nossos filhos se elevem / E beberemos a água do carimã / Pra suportar a dor da Nação acabada /

E os POTIGUARAS, comedores de camarão / Que HOJE – carentes / Nos recomendarão a Tupã / E te darão o anel do guerreiro – parceiro. / E a mim? / Me darão a honra do Nome / A ESPERANÇA – meu homem! / De uma pátria sem fim” (IBIDEM, p. 138-139).

As mulheres nas obras das duas autoras podem ser empurradas e sofrerem pelas circunstâncias, mas são fortes e questionam o mundo que as cerca. Ela salva o homem em quase todas as obras, mesmo que seja uma salvação simbólica, pequena, como a avó que opta por ficar para trás num período de guerra, mesmo sabendo que ia morrer, para procurar seu netinho (Zitkala-Ša), ou Cunhataí, que faz Jurupiranga renascer, na obra de Potiguara.

As personagens femininas são fortemente retratadas dentro das obras das duas autoras, sejam elas o eu narrador autobiográfico, as parentes, como a mãe (no caso de Zitkala-Ša) ou a avó, no caso de Potiguara, ou personagens fictícias. Ambas autoras enfatizam o choque das culturas, mas apostam na sua resolução de maneira menos invasiva e violenta. O homem indígena não é superior ou inferior à mulher, mas reforça sua identidade (no caso de Potiguara) ou é

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fonte nobre e inspiradora de ação independente por parte da mulher (no caso de Zitkala-Ša).

5 - Considerações finais As duas autoras misturam de forma vivaz a ficção,

a escrita jornalística de informação com relação à situação indígena, poesia e narração com moldes na oralidade indígena, oferecendo uma hibridez e resistência tendo como uso a linguagem dominante subvertida. Ambas buscaram por caminhos às vezes diferentes, e muitas vezes conflitantes, pela diferença de cultura e por seu objetivo final com relação aos leitores, mas muitas vezes similares, mostrar aspectos desconhecidos e calados dos sentimentos e angústias vividas pela mulher indígena diante de uma sociedade opressora. A principal diferença nas formas está na denúncia direta por parte de Potiguara, com nomes e situações históricas comprovadas e claras contra o modo velado de Zitkala-Ša aludir a situações como as marchas forçadas, o massacre de índios em Wounded Knee e às guerras, com outros assuntos explorados de forma mais dramática, como o tratamento cruel recebido nos internatos.

As duas também fazem uma retomada dos mitos e tradições para esclarecerem às outras etnias e lembrarem os próprios indígenas de seu passado. Potiguara mistura a escrita acadêmica e sócio-histórica, com poesias que discutem a posição da mulher e do índio na sociedade e perante si mesmo, além da escrita autobiográfica, enquanto Zitkala-Ša

recupera as histórias e a oralidade de seu povo, que ouvia quando criança, apostando na captura do leitor através da identificação do mesmo com o sofrimento e a bravura das personagensa, além de narrativa ficcional e também escrita autobiográfica.

Eliane Potiguara e Zitkala-Ša partiram de uma realidade até certo ponto parecida, mas não totalmente igual: os índios americanos nos século XIX não eram considerados cidadãos, não tinham direito a voto e muito menos representatividade política. Eram exterminados por doenças e pela fome, por marchas forçadas, por guerras e ataques do exército, além de estarem circunscritos ao bel prazer do governo em reservas, onde recebiam parcas rações de subsistência. Enquanto isso, os índios brasileiros passam por lutas parecidas com relação ao preconceito, à luta pela demarcação de suas terras, e a ONU, entre outros órgãos mundiais procuram garantir sua liberdade e tratamento humano, mesmo que essa não seja uma realidade. As duas autoras não deixaram que a ânsia e a necessidade de dizerem suas identidades ou a identidade da mulher indígena fosse maior que a forma de talento literário que se apresenta em suas obras, mas procuraram negociações de suas identidades, de forma que pudessem viver em um mundo de culturas e corpos híbridos sem caírem no identitarismo vazio.

Referências Bibliográficas ASHCROFT, Bill. Post-colonial transformation. London and New York: Routledge,

2002. HALL, Stuart. Identidade cultural na pós-modernidade. Tradução: Tomaz Tadeu

da Silva e Guacira Lopes Louro. 7. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.

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LISA, Laurie. The life story of Zitkala-Ša: Gertrude Simmons Bonnin: writing and creating a public image. 227 p. Dissertation of requirement for the Degree Doctor of Philosophy. USA: Arizona State University. may 1996.

POTIGUARA, Eliane. Metade Cara, Metade Máscara. São Paulo: Global, 2004 TRINH, T. Minh-ha. Woman, Native, Other: Writing Postcoloniality and Feminism.

Bloomington and Indianapolis: Indiana University Press, 1989. ZITKALA-ŠA. American Indian Stories, legends and other writing. (with introduction

and notes by DAVIDSON, Cathy and NORRIS, Ada). USA: Penguin Classics, 2003.

______. Dreams and Thunder: Stories, Poems, and The Sun Dance Opera: Introduction by Jane Hafen. Lincoln: University of Nebraska, 2001.

Fonte: II Seminário Nacional em Estudos da Linguagem: 06 a 08 de outubro de 2010

Diversidade, Ensino e Linguagem UNIOESTE - Cascavel / PR

Alba Krishna Topan Feldman, é natural de Ubiratã/PR. Possui graduação em Letras Inglês/Português pela Faculdade Estadual de Ciências e Letras de Campo Mourão (1992) e mestrado em Letras - Estudos Literários pela Universidade Estadual de Maringá (2006). Doutorado de Letras na UNESP, de São José do Rio Preto (2010), e complementação na Louisville University (2009), nos Estados Unidos. Atualmente é docente e coordenadora do curso de Secretariado Executivo Trilingue, da Universidade Estadual de Maringá (PR). Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Teoria Literária, atuando principalmente nos seguintes temas: pós-colonialismo, lendas, escrita de autoria feminina, multiculturalismo. Foi uma das fundadoras da Associação dos Literatos de Ubiratã/PR, escritora, poetisa com poesias premiadas, membro da Ordem Nacional dos Escritores, reside em Maringá, casada com José Feldman.

Estante de Livros

José Saramago

Memorial do Convento Apesar de ter sido trazida da Áustria já há dois

anos, especialmente para gerar o sucessor ao trono de D. João V, rei de Portugal, a rainha D. Maria Ana Josefa parece não conseguir engravidar. Sendo o rei um símbolo de virilidade, ela é quem é considerada infértil e, conseqüentemente, a única culpada pelo fato

de o rei ainda não ter tido herdeiros. Quando, ao cair da noite, o rei se prepara para ir ao quarto da rainha para mais uma tentativa, chega ao palácio D. Nuno da Cunha, bispo inquisidor, acompanhado de um velho frade franciscano, Antônio de S. José, que propõe uma solução para o problema do rei. Diz o frade que a

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rainha engravidaria assim que o rei prometesse construir um convento para os frades da ordem dos franciscanos na vila de Mafra. Feita a promessa, o casal real vai finalmente para o quarto.

Depois de consumado o ato sexual, rei e rainha dormem e sonham cada um com seus próprios desejos, suas diferentes fantasias: ela sonha que tem um encontro amoroso com seu cunhado, o Infante D. Francisco, enquanto o rei sonha que seu pênis está se transformando em árvore e, logo em seguida, em colunas do convento que ele prometera construir para os franciscanos.

Em tom irônico, o narrador revela suspeitas de que, antes mesmo da promessa, talvez a rainha já estivesse grávida e que talvez o padre o já sabia disso. Em todo caso, se a concepção da rainha ocorresse, o fato seria visto como mais um entre os vários milagres tradicionalmente relacionados à ordem de São Francisco. Diz-se, por exemplo, que um tal frei Miguel da Anunciação, mesmo depois de morto, conservara seu corpo intacto durante dias, atraindo, desde então, uma grande quantidade de devotos para sua igreja. Em outra ocasião, a imagem de Santo Antônio, que vigiava uma igreja franciscana, locomovera-se até à janela, onde ladrões tentavam entrar, passando-lhes assim um grande susto. E do convento de S. Francisco de Xabregas conta-se que, certa vez, suas lâmpadas tinham sido roubadas, e logo depois foram encontradas, como se por acaso, num mosteiro de jesuítas. A gravidez da rainha foi atribuída ao poder milagroso de Santo Antônio ou, segundo outros, à

ameaça que um frade velho fizera contra a imagem do santo, acusando o protetor de descuido.

Passado o “entrudo” , como de costume, durante a quaresma as ruas se encheram de gente que fazia cada um suas penitências. Segundo a tradição, a quaresma era a única época em que as mulheres podiam percorrer as igrejas sozinhas e assim gozar de uma rara liberdade que lhes permitia até mesmo de se encontrarem com seus amantes secretos. Porém, D. Maria Ana não podia gozar dessas liberdades, pois, além de ser rainha, agora se encontrava grávida. Assim, tendo ido para a cama cedo, consolou-se em sonhar outra vez com D. Francisco, seu cunhado. Passada a quaresma, todas as mulheres retornaram para a reclusão de suas casas.

Em contraste com os conflitos da família real está a história de Baltasar Mateus, um homem de 26 anos, conhecido como “o Sete-Sóis”. Baltasar dirige-se a Lisboa, caminhando pela estrada real, depois de ter sido soldado e perdido a mão esquerda em uma batalha contra a Espanha, para decidir a quem pertenceria o trono espanhol. Com um que lhe servia de mão e um espigão de ferro que funcionava como uma arma, Baltasar pede esmola em Évora e, a caminho de Lisboa, mata um ladrão que havia tentado assaltá-lo. Não sabendo ainda se ficaria em Lisboa ou se continuaria viagem em direção a Mafra , onde ainda viviam seus pais, Baltasar anda pelas ruas da capital e conhece João Elvas, com quem, junto a outros mendigos, vai passar a noite num “telheiro abandonado”. Antes de dormir, cada um conta

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histórias de crimes que ocorreram na cidade, os quais são comparados às mortes que alguns deles presenciaram na guerra.

Não somente por causa da gravidez de cinco meses, mas também por estar de luto pela morte de seu irmão, a rainha Maria Ana deixa de freqüentar o grande auto-de-fé na praça do Rossio em Lisboa, evento muito popular, que já há dois anos não ocorria. Ali seriam castigados pela Inquisição diversos casos de heresia.

Entre os condenados pelo Santo Ofício, um é focalizado com maior destaque. É Sebastiana Maria de Jesus, acusada de ser feiticeira e cristã-nova. Sebastiana, durante alguns parágrafos, torna-se a narradora da história.

Sebastiana Maria de Jesus tem uma filha de 19 anos: Blimunda, jovem de poderes sobrenaturais, que assiste à procissão ao lado do padre Bartolomeu Lourenço. Perto dela está um homem, Baltasar Mateus, o Sete-Sóis, a quem ela se dirige e cujo nome procura saber. Voltando a sua casa, Blimunda leva consigo o padre e deixa a porta aberta para que o recém-conhecido também possa entrar. Depois de o padre sair, Blimunda convida Baltasar para que fique morando em sua casa, pelo menos até que ele tivesse que voltar a Mafra . No dia seguinte, ao acordar, Blimunda, sem abrir os olhos, come um pedaço de pão e promete a Baltasar que nunca o olharia “por dentro”.

Começa aqui a fiel e duradoura amizade entre os três personagens que se contrapõem aos personagens da família real, heróis da historiografia oficial. Inicia-se

também a relação amorosa entre Baltasar e Blimunda, que ocupará o centro da narrativa.

Ao encontrar-se com o padre Bartolomeu Lourenço, que estava procurando usar sua influência no palácio para conseguir dinheiro. Baltasar fica sabendo que o padre era conhecido como “o Voador”, por ter criado uma máquina a qual todos ridicularizam, chamando de “a passarola”. Baltasar aceita o convite do padre para ser seu ajudante no projeto de construir a tal “máquina de voar”, mas enquanto não chega o dinheiro para o material necessário, fica trabalhando em um açougue.

Enquanto isso, no palácio, para decepção do rei, a rainha dá à luz uma menina, Maria Xavier Francisca Leonor Bárbara, que é batizada por sete bispos. Apesar de o frade Antônio de S. José já ter morrido quando do nascimento da criança, a promessa do rei de construir o convento seria mantida.

Baltasar, que sempre dormia no lado direito da enxerga , procura saber por que Blimunda sempre comia pão ao acordar, antes mesmo de abrir os olhos. Ele já tinha tentado descobrir o mistério através do padre Bartolomeu Lourenço que, apesar de conhecer a verdadeira razão, não a quis revelar, dizendo apenas que voar é um mistério pequeno se comparado ao mistério de Blimunda. Certa manhã, tentando desvendar esse mistério de uma vez por todas, Baltasar esconde o pão de Blimunda que, ao acordar, começa a procurá-lo desesperadamente. Finalmente, depois de receber o pão das mãos de Baltasar, Blimunda revela que tem o poder de “olhar por dentro

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das pessoas”, o que podia fazer somente quando estava em jejum. No dia seguinte, para provar-lhe seu poder (ou infortúnio), Blimunda, ainda em jejum, sai à rua com Baltasar, evitando olhá-lo, já que antes tinha prometido não “olhá-lo por dentro”.

Dentre as coisas que vê, Blimunda descreve a gravidez de uma mulher, o que existe no subsolo, o órgão sexual de um jovem, apodrecido por doença venérea, e até mesmo uma moeda enterrada no chão.

Enquanto no palácio nascia D. Pedro, segundo filho da família real, e o rei viajava a Mafra para escolher o lugar onde seria erguido o convento monumental, Baltasar e Blimunda mudam-se para a abegoaria na quinta do duque de Aveiro, amigo do rei, em S. Sebastião da Pedreira. Além de proporcionar-lhe o lugar de trabalho, o rei, que se interessara pelo projeto do padre como uma criança se interessa por um brinquedo novo, com sua amizade e influência protegia o padre das garras da Inquisição que, caso viesse saber dos projetos do padre, teria motivos suficientes para acusá-lo de heresia.

Na quinta do duque de Aveiro, Padre Bartolomeu, com a ajuda de Baltasar e Blimunda, prossegue na construção da passarola. Decide, então, partir à Holanda, onde dizem que os sábios conhecem os mistérios da alquimia e a natureza do éter , o único elemento que, segundo ele, estava faltando para que sua invenção fosse concluída.

Baltasar e Blimunda, depois que o padre parte, decidem mudar-se para Mafra , terra natal de Baltasar. Antes de partir, o casal decide assistir, ao invés de

mais um auto-de-fé que seria realizado na praça do Rossio, a uma outra festa popular, a tourada. Assim como os autos-de-fé , as touradas sempre terminavam com um forte cheiro de carne queimada, proveniente do churrasco realizado no final da festa _ . Ao chegar à casa da família em Mafra , acompanhado de Blimunda, Baltasar é recebido por sua mãe, Marta Maria, já que João Francisco, seu pai, estava trabalhando no campo. Baltasar fica sabendo que sua única irmã, Inês Antônia, estava casada com Álvaro “Pedreiro” Diogo. Dos dois filhos desse casal, apenas um sobreviveria, sendo que o outro morreria ao atingir a mesma idade em que o infante D. Pedro, filho de D. João V, também morreria, anos mais tarde.

Baltasar fala à família de suas intenções de ficar morando com a mulher em Mafra . A família acolhe bem Blimunda, depois de se certificar de que ela não era judia ou cristã-nova , o que não era completamente verdade. O pai informa ao filho recém-chegado de que abrira mão de suas terras na Vela, pois elas haviam sido desapropriadas para a construção do convento, uma obra monumental que, segundo acreditavam, traria muitos empregos para os moradores da região, especialmente para o cunhado de Baltasar, que era pedreiro. Baltasar vai visitar as obras do convento e, ao retornar, encontra Blimunda conversando com Maria Marta, de quem a jovem se tornaria companheira e ajudante, enquanto Baltasar iria trabalhar com o pai no cultivo de terras que não lhes pertenciam.

Encontrando-se o rei bastante enfermo, seu irmão aproveita as perspectivas que lhe são favoráveis e

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revela à rainha seu interesse em tornar-se seu marido e o novo rei. O infante D. Francisco declara saber que é objeto dos sonhos da rainha, numa conversa que seria a primeira entre tantas que finalmente acabariam por destruir o desejo original que ela experimentara. Mesmo depois de recuperada a saúde do rei, seus antigos sonhos nunca teriam aquele mesmo encanto de antigamente, já que ela tem plena consciência de que sua condição de mulher e rainha mudaria pouco, fosse ela casada com um ou outro irmão.

Voltando da Holanda, onde estivera por três anos, o padre Bartolomeu Lourenço dirige-se à quinta de S. Sebastião da Pedreira, encontrando a albegoaria abandonada. Algumas semanas depois, parte em direção a Coimbra, de onde conta retornar já “doutor em cânones”. Antes, porém, decide visitar o casal amigo em Mafra , onde, ao chegar, encontra um pároco, Francisco Gonçalves, que lhe oferece um quarto para ficar hospedado. Em conversa com Blimunda e Baltasar, o padre Bartolomeu conta-lhes o que descobrira na Holanda, ou seja, que ao contrário do que se pensa, o éter não é uma substância que possa ser encontrada pelas artes da alquimia, mas que, antes de subir ao céu, o éter existe dentro das pessoas, pois nada mais é do que a “vontade” de cada um. Assim, o padre pede a Blimunda que olhe dentro das pessoas e encontre essa “vontade”, que é como uma nuvem fechada. E que, cada vez que percebesse a vontade de alguém escapando, que ela a capturasse usando um frasco contendo âmbar, que é a substância que atrai o éter.

Em Mafra, pela primeira vez Blimunda comunga conforme manda os ensinamentos da igreja católica, ou seja, em jejum. Ao fazê-lo, vê na hóstia uma nuvem fechada, o que muito a impressiona. Já tendo o padre ido para Coimbra há algum tempo, o casal decide partir de volta à quinta, assim que passassem as festividades de inauguração dos alicerces do convento, cujas primeiras pedras seriam colocadas pelas mãos do próprio rei.

Dias antes da inauguração dos alicerces, uma grande tempestade de vento, comparável ao “sopro de Adamastor” derruba a igreja de madeira construída especialmente para a cerimônia. Sabendo do acidente, o rei começa a distribuir moedas de ouro, e distribui ainda mais quando os pedreiros voltam ao trabalho e reconstroem a igreja em dois dias, de modo que o que era catástrofe passou a ser visto como milagre. No primeiro dia de festividades, a inauguração foi feita em cerimônias restritas a poucos convidados e, no dia seguinte, (ou seja, a 17 de novembro de 1717, seis anos depois de o rei ter feito sua promessa), realizou-se uma grande festa pública.

De volta à quinta do Duque de Aveiro, Baltasar desmonta a passarola que, abandonada, encontrava-se com a estrutura enferrujada e os panos cheios de mofo. Pouco tempo depois chega o padre, que logo quer saber quantas vontades Blimunda já recolhera. Ao ouvir que até então havia apenas trinta “vontades” na garrafa, o padre lhe diz que eram necessárias pelo menos duas mil. Baltasar continua trabalhando na “máquina de voar” enquanto padre Bartolomeu vai

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constantemente a Coimbra, a fim de concluir seus estudos. Quando volta definitivamente para Lisboa, o padre fica conhecendo o músico Domenico Scarlatti , napolitano de 35 anos, professor particular de música da infanta D. Maria Bárbara que, a essas alturas, já tem nove anos de idade. O encontro dos dois homens estimula uma discussão sobre o poder extraordinário da música e a essência da verdade, comparando-se finalmente a música do italiano com a oratória do padre.

Em outra ocasião, o padre e o compositor se encontram e juntos vão à S. Sebastião da Pedreira, onde o padre revela seu segredo ao músico e apresenta-lhe a “trindade terrestre”, composta por ele, o amigo e ajudante Baltasar e sua companheira Blimunda.

Depois da partida do italiano que, tendo prometido que voltaria trazendo seu cravo e o tocaria para o casal e para a passarola, o padre Bartolomeu Lourenço começa a trabalhar em um sermão que estava preparando para a festa do Corpo de Deus. Nesse sermão, que a princípio receberia a aprovação e até mesmo a admiração dos padres e censores do Santo Ofício, o padre questiona os fundamentos da doutrina cristã da trindade divina.

Sabendo de uma epidemia de febre amarela que, trazida do Brasil, se alastrava por Lisboa e já matara quatro mil pessoas em três meses, o padre Bartolomeu pede a Blimunda que aproveite a ocasião para recolher as vontades que se desprendem do peito dos moribundos. Blimunda faz o que o padre lhe pedira e,

no final da epidemia, consegue recolher as duas mil vontades necessárias para fazer voar a “passarola”. O casal acaba se tornando conhecido em Lisboa, por sempre andar pela cidade sem medo da epidemia.

Depois de cumprida a tarefa, Blimunda fica doente e, durante toda sua convalescença, o músico Scarlatti vai tocar-lhe cravo, o que contribui para a restauração de sua saúde.

Estando as vontades recolhidas e a máquina de voar já pronta, nada falta para que o invento do padre seja testado. Além disso, o rei já não pode fazer nada para que o Duque de Aveiro lhes empreste a quinta onde trabalham. O padre, que andava receoso do Santo Ofício, vai ao palácio se certificar da proteção e amizade do rei, mas volta aflito, pois descobrira que o Santo Ofício já estava a sua procura. Assim, só lhe resta propor ao casal que os três terminem rapidamente o projeto e juntos fujam na “máquina de voar”. Assim, depois de retirarem o telhado da abegoaria e colocarem tudo o que possuem dentro da máquina, deixando para trás apenas o cravo de Domenico Scarlatti , a “passarola” enfim levanta vôo. Scarlatti , que chegara à quinta a tempo de ver a máquina subir aos ares, senta-se ao cravo e toca uma música, antes de lançar o instrumento ao fundo de um poço.

Depois de passarem despercebidos sobre a cidade de Lisboa, os três sobrevoam a vila de Mafra , onde várias pessoas vêem a máquina voadora, julgando ser uma aparição do Espírito Santo. Encontrando dificuldades para controlar a máquina, finalmente a

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fazem aterrissar, graças à iniciativa de Blimunda de segurar junto a seu peito as duas esferas contendo as “vontades”.

No dia seguinte, o casal impede o padre, que se encontrava aflito de emoção ou de medo, de atar fogo à máquina. Mas não podem impedir que ele parta sozinho mata adentro, para nunca mais voltar. Blimunda e Baltasar escondem a máquina sob a ramagem e partem na mesma direção tomada pelo padre, até chegarem, depois de alguns dias, a Mafra , onde uma procissão celebrava o milagre que o povo acreditava ter presenciado. Ali, Baltasar, a exemplo de tantos outros moradores locais, começa a trabalhar nas obras do convento, cuja dimensão e quantidade de homens que emprega muito o impressionam, apesar de achar o ritmo com que se desenvolve demasiado lento. Chegam notícias do terremoto de Lisboa, que foi seguido de inaudita tempestade _ . Apesar dos estragos causados por ambos os desastres, implementaram-se os negócios de vários setores da sociedade e, em particular, da igreja, que freqüentemente se aproveitava das catástrofes para alimentar a religiosidade popular.

Dois meses depois de terem chegado a Mafra , Baltasar decide voltar ao Monte Junto, onde haviam deixado a máquina de voar. Ele a encontra no mesmo lugar, mas necessitando de alguns reparos. A partir de então, ele faria visitas freqüentes ao local, cuidando da manutenção da máquina, sempre com uma certa esperança de reencontrar o padre. Algum tempo depois, Domenico Scarlatti chega a Mafra , onde fora

visitar as obras do convento, ficando hospedado na casa de um visconde. Ao se cruzarem na rua, Blimunda e Scarlatti , tentando evitar as suspeitas dos moradores, que poderiam achar estranho duas pessoas de níveis sociais tão diferentes se conhecerem, conversam às escondidas. O músico trazia a notícia da morte do padre Bartolomeu de Gusmão em Toledo, Espanha, para onde ele havia fugido no dia 19 de novembro, o dia da tempestade em Lisboa. Em seguida, enquanto no palácio o rei medita sobre suas riquezas, celebra-se em Mafra uma missa para um grande número de trabalhadores.

A construção do convento exige esforços colossais e causa muitas vítimas. Um dos eventos mais penosos foi o transporte, da vila de Pêro Pinheiro até a vila de Mafra , de uma imensa pedra, destinada a ser a laje de uma varanda sobre o pórtico da igreja. Seiscentos homens e um grande número de bois foram utilizados na empreitada, que durou oito dias, durante os quais não faltaram acidentes fatais. Um dos casos mais dramáticos foi o do trabalhador Francisco Marques, que acabou esmagado sob uma roda de um carro de bois.

Depois de quase quatro anos em Mafra , Blimunda pela primeira vez pede a Baltasar para acompanhá-lo em uma de suas visitas periódicas ao Monte Junto. Depois de lá chegarem, resolvem passar a noite para que, ao amanhecer, Blimunda, ainda em jejum, se certificasse de que as vontades ainda estavam guardadas dentro de cada uma das duas esferas.

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Enquanto isso, na residência real, D. João V manifesta seu desejo de construir uma Basílica em Portugal como a de S. Pedro em Roma. Para dar conta do projeto gigantesco, o rei chama o arquiteto alemão João Frederico Ludovice (ou Ludwig), que o dissuade da idéia, com o argumento de que o rei não viveria o suficiente para ver a obra concluída. Convencido, o rei decide então ampliar a dimensão do projeto do convento de Mafra, de modo que, ao invés de 80, coubessem nele 300 frades, o que muito agrada ao provincial dos franciscanos da Arrábida. O projeto é, sem dúvida, ambicioso demais para os recursos do reino, o que se reflete em conversa, imaginada pelo narrador, entre o rei e o almoxarife ou guarda-livros.

Finalmente, o rei decide que a sagração da basílica deveria ser realizada dois anos mais tarde, no dia vinte e dois de outubro de 1730, quando ele completasse 41 anos, estivesse ou não a obra concluída. Com a ampliação do projeto, tornara-se necessário que se recrutasse um grande número de trabalhadores, dentre os quais muitos seriam levados a fazer o trabalho contra a própria vontade, o que causaria grande tristeza a muitas famílias de toda a região. Simultaneamente, as famílias reais de Portugal e de Espanha logo se preparariam, em 1729, para se unirem através de dois casamentos.

De fato, a “troca das princesas” uniria, em 1729, as famílias reais de Portugal e Espanha, segundo um acordo que já havia sido concluído havia quatro anos. Mariana Vitória, da Espanha, de 11 anos, seria trazida a Portugal para que se casasse com o infante D. Pedro,

enquanto Maria Bárbara, de 17 anos, seria levada a Espanha para unir-se a Fernando, dois anos mais novo que a noiva. Assim, uma comitiva leva a família real até a fronteira dos dois países, sobre o rio Caia, em Elvas, passando por Mafra . Na região de Mafra , os trabalhadores, que à força são levados às obras do convento, chamam a atenção da princesa e por um momento lhe despertam compaixão.

Além da coincidência entre o nascimento da princesa e a promessa do rei de construir o convento de Mafra , no nível popular, duas outras histórias convergem. João Elvas, que conhecera Baltasar em Lisboa logo depois da guerra, acompanha, junto a um grupo de pedintes, a comitiva à fronteira onde está situada sua cidade natal. Ao conversar com um certo Julião Mau-Tempo, que menciona a enorme pedra transportada até Mafra, João Elvas lembra-se do ex-soldado, seu amigo Baltasar, com quem o interlocutor havia trabalhado.

Em 1730, pouco mais de um ano depois da “troca das princesas”, a basílica do convento seria enfim consagrada, mesmo estando as obras, tanto as da basílica como as do convento, ainda longe de serem concluídas. Várias estátuas de santos desfilam pelas ruas e são transportadas até o local onde seriam instaladas. Blimunda e Baltasar resolvem ver as imagens dos santos Segundo acreditam, os santos passariam a noite conversando pela última vez, antes de serem isolados em seus nichos, na basílica.

Ao amanhecer, Baltasar decide ir sozinho ao Monte Junto, verificar o estado da “passarola”. Ao tentar fazer

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os já costumeiros reparos na máquina, Baltasar tropeça e rasga os panos que cobriam as esferas, de modo que quando os raios de sol as atingem, a máquina inesperadamente levanta vôo. Blimunda vai procurá-lo no dia seguinte, ao mesmo tempo em que romarias se dirigem à sagração da basílica, mas não encontra seu amado, apenas o espigão de ferro, que ela não hesita em usar quando um frade a tenta violá-la.

Blimunda continua a procurar Baltasar durante nove anos, perambulando por todas as partes do país. Sua jornada termina em Lisboa, em situação

semelhante àquela em que conhecera Baltasar. Em 1739, em um auto-de-fé na praça do Rossio, onze vítimas encontram-se a caminho da fogueira – inclusive o dramaturgo Antônio José da Silva, “O Judeu”. Estava lá também Baltasar, cujo vulto Blimunda vê. Quando Baltasar está para morrer, sua “vontade” se desprende e é finalmente recolhida dentro do peito de sua amada Blimunda.

Fonte 1100 Cursos e Apostilas. CEC0004 – Digerati Com. Tecnologia Ltda. (CD ROM)

José Saramago nasceu na vila de Azinhaga, no concelho da Golegã, em 16 de novembro de 1922, de uma família de pais e avós agricultores. A sua vida é passada em grande parte em Lisboa, para onde a família se muda em 1924. Dificuldades económicas impedem-no de entrar na universidade. Demonstra desde cedo interesse pelos estudos e pela cultura, sendo que esta curiosidade perante o Mundo o acompanhou até à morte. Formou-se numa escola técnica. O seu primeiro emprego foi de serralheiro mecânico. Aos 25 anos, publica o primeiro romance Terra do Pecado (1947), no mesmo ano de nascimento da sua filha, Violante, fruto do primeiro casamento com Ilda Reis – com quem se casou em 1944 e com quem permaneceu até 1970. Nessa época, Saramago era funcionário público. Viveu, entre 1970 e 1986 com a escritora Isabel da Nóbrega. Em 1988, casar-se-ia com a jornalista e tradutora espanhola María del Pilar del Río Sánchez, que conheceu em 1986 e ao lado da qual viveu até à morte.

Dezenove anos depois, funcionário da Editorial Estudos Cor, troca a prosa pela poesia, lançando Os Poemas Possíveis. Num espa ço de cinco anos, publica, mais dois livros de poesia: Provavelmente Alegria (1970) e O Ano de 1993 (1975). É quando troca também de emprego, para trabalhar no Diário de Notícias (DN) e, depois, no Diário de Lisboa. Em 1975, retorna ao DN como Director-Adjunto, onde permanece por dez meses. Três décadas depois de publicado Terra do Pecado, Saramago retornou ao mundo da prosa ficcional com Manual de Pintura e Caligrafia. As marcas características do estilo "saramaguiano" só apareceriam com Levantado do Chão (1980), livro no qual o autor retrata a vida de privações da população pobre do Alentejo. Depois surge o romance Memorial do Convento, livro que conquista definitivamente a atenção de leitores e críticos. De 1980 a 1991, o autor trouxe a lume mais quatro romances que remetem a fatos da realidade material, problematizando a interpretação da "história" oficial: O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984), sobre as andanças do heterónimo de Fernando Pessoa por Lisboa; A Jangada de Pedra (1986), em que se questiona o papel Ibérico na então CEE através da metáfora da Península Ibérica soltando-se da Europa e encontrando o seu lugar entre a velha Europa e a nova América; História do Cerco de Lisboa (1989), onde um revisor é tentado a introduzir um "não" no texto histórico que corrige, mudando-lhe o sentido; e O Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991), onde Saramago reescreve o livro sagrado sob a óptica de um Cristo que não é Deus e se revolta contra o seu destino e onde, a fundo, questiona o lugar de Deus, do cristianismo, do sofrimento e da morte.

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Entre 1995 e 2005, Saramago publicou mais seis romances, dando início a uma nova fase em que os enredos não se desenrolam mais em locais ou épocas determinados e personagens dos anais da história se ausentam: Ensaio Sobre a Cegueira (1995); Todos os Nomes (1997); A Caverna (2001); O Homem Duplicado (2002); Ensaio sobre a Lucidez (2004); e As Intermitências da Morte (2005).

Saramago faleceu no dia 18 de Junho de 2010, aos 87 anos de idade, na sua casa em Lanzarote onde residia com a mulher Pilar d el Rio, vítima de leucemia crónica. As cinzas do escritor foram depositadas aos pés de uma oliveira, em Lisboa em 18 de junho de 2011.

Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Saramago

Errata do número anterior (397): Mensagem na Garrafa: Carlos Drummond de Andrade (Reverência ao Destino).....págs. 3/4 Somente o último parágrafo pertence a Drummond (que está em seu livro Fazendeiro do ar), o restante do texto é de autoria desconhecida. Chuva de Versos: Bastos Tigre (Poema Vita Brevis), último verso .......pág. 8 Como bem observado pela trovadora Elisabete Aguiar, de Portugal, a última palavra deste verso está incorreta (indefinida), quando o correto é “indefinita”, que possui o mesmo significado, pois é originária do latim “indefinitus”. Foi erro na publicação original.

Page 66: Almanaque Chuva de Versos n. 398

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