Almanaque Chuva de Versos n. 385

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Mensagem na Garrafa

Luiz Otávio

Oração do Poeta

Senhor! Eu vos agradeço, humildemente, por terdes,

entre muitos, dado a mim o dom da poesia! Fazei que jamais eu esqueça de que nada sou, e

que de Vós, tudo me veio! Não permitais que eu use os meus versos para

bajular os poderosos e humilhar os pequeninos! Nas vitórias de meus irmãos que eu sinta a

mesma alegria que sentiria se elas fossem minhas!

Se generosamente, a mim trouxerem coroas de louro, que eu as receba com a mesma humildade com que Vós aceitastes a coroa de espinhos!

Que na realidade eu não seja outro diferente

daquele mostrado na minha poesia! Que eu ouça com serenidade as críticas dos

amigos, as invejas dos invejosos, e os elogios dos bajuladores!

Que eu cante singelamente, como um pássaro

liberto, o canto que Vós me destes sem me preocupar com os aplausos deste mundo!

Que meus versos sirvam de estimulo aos jovens, de consolo aos velhos, de esperança aos aflitos, e de paz aos angustiados. Que minha vida e minha poesia, nos minutos de

alegria e nos momentos de dor, sejam sempre condensadas numa só palavra: A M O R!…

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Uma Trova de Paranavaí/PR

Renato Benvindo Frata

Beber desse seu sorriso é algo mais que sublime:

vale dessa vida o riso que a felicidade exprime.

Uma Trova de Catanduva/SP

Ógui Lourenço Mauri

Dá-me, amigo, tua destra e sigamos sempre em frente; com o amor que a Fé adestra,

a ajudar o irmão carente.

Um Poema de Fortaleza/CE

Vicência Jaguaribe

Hino à Vida

Ao galo não comovem os estertores da noite. E o galicanto revoa avisando que é hora.

Um instantâneo alado cruza a sacada. Flashes irisados rasgam a escuridão. Ensonado, o orvalho dilui em gotas

as trevas que se dispersam.

Um movimento aqui, um grito ali,

um latido acolá...

O aroma do café desce as ladeiras, vaga pelas ruas e toma conta da cidade.

Vozes vendem leite, pão e sono. O cuscuz paulista avisa que está passando.

As calçadas se animam

e espiam o movimento que acena: mochilas pesadas arrastam crianças à escola; os ônibus vomitam os operários do dia a dia.

O sol, finalmente, aquece toda a cidade:

entra nas casas, penetra nos corpos, infiltra-se no solo e fecunda a terra.

É a vida que,

abraçada à claridade, ousadamente se renova.

Uma Trova Humorística de São Paulo/SP

Maria Helena Calazans Duarte

"Mas que preguiça'' e, no escuro,

o pau-d'água, chave à mão,

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espera, encostado ao muro, que ali passe o seu portão!

Teia de Trovas para 14 de março: Dia Nacional

da Poesia, de Mogi-Guaçu

Olivaldo Júnior

Poesia, Poesia, onde é mesmo que se esconde

quando toda a fantasia quer brincar de esconde-esconde?!

Castro Alves, bom poeta, salva os pobres imortais

de morrerem, não de seta, mas de adeus e tristes ais!...

Cada verso que dedico

para os tristes, na ilusão, mais alegre, sim, eu fico, pois sou eles, coração...

Meu amigo mais querido,

toma logo as minhas trovas: eu a fiz de um estampido,

como nascem as supernovas.

Ao ficar sem poesia, quis comprá-la no mercado;

entretanto, quem diria, se esgotou já no "atacado"!...

Um Poema de Fortaleza/CE

Vicência Jaguaribe

Amores não têm passado

Não se fale de amores passados. Amores não têm passado.

Um amor que se diz pretérito Já não é mais amor.

O amor necessita do tempo presente E de estar presente.

Porque o amor é exigente. O amor é egoísta.

O amor é impaciente.

O amor não espera. Nem tudo perdoa

Nem tudo suporta. O amor fere e espalha a dor.

Cupido por ter asas não é um anjo.

É antes um arqueiro Com a flecha em riste

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Pronto para desfechar o golpe. Pronto para semear a dor.

Privem-no da flecha E ele não mais será amor.

Uma Quadra Popular do Norte de Minas Gerais

Autor Anônimo

Toda vez que considero que tenho de te deixar,

me foge o sangue da veia, e o coração do lugar.

Uma Trova Hispânica do Estados Unidos

Cristina Olivera Chávez

Los pétalos de las flores son guitarras que la brisa,

con melódicos colores le dan tono a la sonrisa!

Um Poema de Fortaleza/CE

Vicência Jaguaribe

O espetáculo não pode parar

Estarrecida, compreendi, só agora,

Que a vida continua mesmo sem ti. É necessário que ela continue.

Afinal, cada um de nós é só e unicamente Um número a mais nesta nave alucinada.

No meio da vida, entretanto,

Desaparece minha veia lógica, Paro e me pergunto:

— Como posso continuar a sorrir, A comer, a beber, a viver, enfim,

Se te foste sem tempo para uma despedida

Sem um abraço e sem olhos marejados? Sem cartas, recados ou e-mails?

Se me deixaste sozinha na vida, que, Um agente 007, tem licença para matar?

No meio da vida, paro e olho a mim mesma E, sem fé, incrédula, um outro São Tomé,

Belisco-me para ter certeza de que Esta realidade em que vivo sem ti não é uma

Ilusão de ótica ou a inverdade de uma alucinação.

É, porque nunca pensei que sobreviveria À dor de te perder, de te sentir em outra dimensão.

À dor de constatar que estás em outra órbita. Agora sei que não poderia ser diferente

Afinal, a vida é uma nave onde se encena um espetáculo.

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E, como sabemos, o espetáculo deve continuar.

Trovadores que deixaram Saudades

Octávio Babo Filho Rio de Janeiro/RJ (1915 – 2003)

Rezando pelos demais,

eu de mim sempre me esqueço. Eles que rezem por mim,

quando acharem que eu mereço…

Uma Trova de Cantagalo/RJ

Ruth Farah Nacif Lutterback

Um céu de rara beleza, a invejar o mundo inteiro,

nos dá a plena certeza de que Deus é brasileiro.

Um Poema de Fortaleza/CE

Vicência Jaguaribe

Na palma da minha mão

Na palma da minha mão, Cabe, irmão, a felicidade e a alegria

Que, com ousadia, não pedem para entrar.

Na palma da minha mão, Cabe, irmão, a esperança verde e lustrosa

Que, nervosa, pede licença para falar.

Na palma da minha mão, Também cabe, irmão, aquele amor

Que, ditador, um dia me deixou aflito.

Na palma da minha mão, Cabem, irmão, as estrelas do céu e as do mar

Que vão se multiplicar pelo tempo infinito.

Na palma da minha mão só não cabem, Irmão, a dor da perda e a angústia da solidão.

Como esconder essa dor e essa angústia,

Que com furor por entre os dedos escapam? No solo se infiltram?

Por baixo da porta vasam? As paredes escalam? O ar contaminam?

Os rios e os oceanos emporcalham?

- Sinto muito, Mas não há como escondê-las.

Só resta incinerá-las E as cinzas, ao vento lançá-las.

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Uma Trova de São Paulo/SP

Renata Paccola

Ao tocar uma canção que chora o fim de um amor,

também chora o violão nos braços do cantador!

Um Haicai de Pedro Leopoldo/MG

Um Poema de Fortaleza/CE

Vicência Jaguaribe

As lágrimas de Pierrô

Um pierrô apaixonado, Que vivia só cantando,

Por causa de uma Colombina Acabou chorando, Acabou chorando.

Luzes luzem no salão

Serpentinas dançam no ar Confetes, soltos no chão, Convidam para brincar. Jatos de lança-perfume Suspiros e queixumes.

Num canto, um Pierrô, Com olhos em desatino, Chora seu grande amor. Vira a bela Colombina, Com ares de bailarina,

De costas para o destino, Sorrindo para Arlequim

Ao som de um bandolim.

Não chores, Pierrô.

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Nesta existência de dor, Não se pode ter amor

Sem dores de desamor. Esses que passam por ti,

Ar de despreocupados guris, Riem e dançam para negar Os mesmos males, amigo,

- Como o próprio amor antigos - Que te fazem naufragar.

Melhor chorar de amor

Que murchar em apatia. Na vida, jogo de opostos, Só se permite à alegria

Fazer par com a tristeza. E o amor está sempre ao lado

Do desamor e da aspereza.

Vê, Pierrô, vê teu coração. Com certeza já está sarado, Pronto para outra paixão.

Um pierrô apaixonado, Que vivia só cantando,

Por causa de uma Colombina Acabou chorando, Acabou chorando.

Uma Trova de Angra dos Reis/RJ

Maria Helena Ururahy Campos da Fonseca

Quando ponteio a saudade dedilhando uma canção,

canto a vida,sem maldade, nas cordas do violão.

Um Haicai de Duque de Caxias/RJ

Camilla Andrade

Areia quente Corrida para o mar

Pés descalços

Um Poema de Fortaleza/CE

Vicência Jaguaribe

Carnavais da minha infância

Carnavais da minha infância, Brincadeiras sem extravagância.

Com enredos de desamor E desenredos de amor.

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Papangus assustadores nas calçadas, Compenetrados ou em palhaçadas, Arrepiam e apavoram as crianças,

que, medo passado, caem na lambança.

Carnavais da minha infância, Brincadeiras sem extravagância.

Com enredos de desamor E desenredos de amor.

Confetes embalam a alegria

Serpentinas instalam a euforia. - Pai, um pouco só de lança-perfume!

- Pouco, meninos, não fiquem no costume! A saia da bailarina está mais rodada. O olhar do bailarino, mais quebrado.

Carnavais da minha infância,

Brincadeiras sem extravagância. Com enredos de desamor E desenredos de amor.

O frevo explode no salão enfeitado.

As crianças marcam o passo ensaiado. A sombrinha sobe ao impulso do passo E desce às mãos no mesmo compasso.

Carnavais da minha infância,

Brincadeiras sem extravagância.

Com enredos de desamor E desenredos de amor.

Depois, o sonho das meninas, Cheio de heróis e de piratas.

E o sonho dos meninos, com donzelas e bravatas.

Carnavais da minha infância,

Brincadeiras sem extravagância. Com enredos de desamor E desenredos de amor.

Uma Trova de Barra do Piraí/RJ

Maria Ester Figueiredo Alves

Sob um velho abacateiro revivo amargos amores... E o violão, companheiro,

é que canta as minhas dores.

Uma Glosa de Porto Alegre/RS

Gislaine Canales

Glosando Sarah Rodrigues Estrela do Mar

Mote:

Perguntei para uma estrela

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que encontrei à beira-mar: - O que faço para tê-la

se você pertence ao mar?

Glosa: Perguntei para uma estrela

num passeio matinal, pela praia, logo ao vê-la:

Você é mesmo real?

Era a estrela da alegria, que encontrei à beira-mar, que ao enfeitar o meu dia,

enfeitiçou meu olhar!

Como posso não querê-la se é tão linda e me fascina?

– O que faço para tê-la, bela estrela pequenina?

Mas fico só no desejo...

Sei que é esse o seu lugar, só posso lhe dar meu beijo, se você pertence ao mar!

Um Poema de Fortaleza/CE

Vicência Jaguaribe

A menina da janela e o menino passante

Passava o menino Que viu a menina.

A cabeça virou, Encantado ficou.

Mas, coitado! No poste esbarrou.

A testa sangrou E ele, apressado, Foi à farmácia.

Mas não lamentou. A menina o arrebatara E a audácia o tomara.

No dia seguinte,

Sem nenhum acinte, Retornou encantado. Ela voltara à janela. Seu nome é Anabela. Ele está apaixonado.

É um domingo de festa.

Ela vai à igreja e não protesta.

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Espera encontrar o menino, Que num gesto repentino Sorrindo, pega-lhe a mão

E aperta-a contra o coração.

O menino e a menina Que não se conheciam

E vidas diferentes viviam. Encontraram-se numa esquina

E começaram uma história De bela e feliz trajetória.

Um Haicai de Santa Cruz da Serra/RJ

Raphael Meirelles Francisco

viver é super difícil o mais fundo

está sempre na superfície

Uma Trova de Campos dos Goytacazes/RJ

Neiva Fernandes

Meu violão é meu amigo em qualquer situação:

Chora ou gorjeia comigo o que vem do coração.

Um Poema de Fortaleza/CE

Vicência Jaguaribe

Correndo com a liberdade

Correndo na calçada Como quem não quer nada

Lá vem o Zezé Na ponta do pé.

Atrás do Zezé

Com cara de índio Corre o Mané.

Pra onde estão indo?

Vendo correrem os dois Corre também a Verinha Que tem cara de arroz Mas é muito boazinha.

Levantando do meio-fio Pedro segue os vadios.

E o João, sem o pé de feijão, Quase entra na contramão.

A Lúcia, a Ana e a Teresa,

Quando tornam da surpresa, Entram no rolo sem saber

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Por que estão a correr.

Os curiosos perguntam O motivo ou a razão

De tamanha confusão De tanta criança junta.

Será que aqueles meninos

Correm de boi desenfreado? Fogem de dentes caninos

Por eles desafiados?

Invadiram o pomar Do afobado seu Oscar? Ou mexeram no jardim

Do coitado seu Joaquim?

Os meninos diligentes Só desejam, simplesmente,

Desfrutar a liberdade Que lhes permite a idade.

Recordando Velhas Canções

Coração de papel (canção, 1967)

Sérgio Reis

Se você pensa

que meu coração é de papel

não vá pensando pois não é ele é igualzinho ao seu

e sofre como eu porque fazer sofrer

assim a quem lhe ama

Se você pensa em fazer chorar a quem lhe quer

a quem só pensa em você um dia sentirá

que amar é bom demais não jogue amor ao léu

Meu coração que não é de papel

porque fazer chorar porque fazer sofrer

um coração que só lhe quer

O amor é lindo eu sei e todo eu lhe dei

você não quis jogou ao léu

Meu coração que não é de papel

não é ah ah

meu coração que não é de papel

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Uma Trova de Araçoiaba/CE

Abelardo Nogueira

Violão quando ponteia numa tessitura amena,

encanta o ser que vagueia, deixando a alma serena.

Um Poema de Fortaleza/CE

Vicência Jaguaribe

Soneto Azul

A Terra é azul! – Informou o astronauta. Azul também é o pássaro da felicidade. Azuis são os sonhos da primeira idade

E azuis as mensagens do divino arauto.

Azuis eram os olhos de minha mãe falecida Que não acreditava no pássaro da felicidade.

Azul também é a cor da imaterialidade Azul devia ser também a aventura da vida.

No azul me diluo para despistar o inimigo.

De azul me visto e fujo do perigo. São azuis as notas do Danúbio Azul.

Azul, a fada a quem Pinóquio enterneceu.

Para o azul queremos ir após o último adeus. Está tudo bem? Dizemos está tudo azul.

Um Haicai de Duque de Caxias/RJ

Regina Célia de Moura

águas profundas quem desenhou seu curso

onde andarás

Uma Trova de Fortaleza/CE

Haroldo Lyra

Nos acordes, uma festa, namoro no coração;

são enlevos da seresta nas cordas de um violão.

Um Poema de Fortaleza/CE

Vicência Jaguaribe

Não

Não. Que o meu silêncio ao teu silêncio

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Não fale de conformação. Não te passe a impressão da aquiescência Nem te sopre da complacência a ilusão.

Não te iludas. Nada mudou na essência,

Ainda que na aparência paire a quietude. O lago, que na tranquilidade azul

Promete calma, e passividade acalenta, É um abismo que funde nas entranhas

A estranha alquimia da dor e da saudade. E a qualquer momento lançará,

Em jatos escaldantes, O que foi fundido

No furioso calor do estraçalhamento.

Hinos de Cidades Brasileiras

Capinzal/SC

A fronte erguida, olhar brilhante! Alma serena, risonha, em flor!

Canta tua vida, tua fé constante Meu Capinzal cheio de ardor!

És primavera, jardim de encanto

Porvir promessa do teu país Teu sentimento é um lindo canto

Profunda e firme é tua raiz!

Eia percorra ágil e altivo Teu nome é novo pelo Brasil

Se estenda ao vento o canto vivo Do teu trabalho, voz varonil!

Eia percorra ágil e altivo

Teu nome é novo pelo Brasil Se estenda ao vento o canto vivo

Do teu trabalho, voz varonil!

Ordem e progresso, honrados lares! A fé aviva, trabalho e luz!

São tuas conquistas, são os altares Sacros da Pátria da Santa Cruz!

És primavera, jardim de encanto

Porvir promessa do teu país Teu sentimento é um lindo canto

Profunda e firme é tua raiz!

Campos dourados, fartos, de espigas Miram teus olhos, raios de sol

Fulgem as pupilas da terra amiga Fulge o futuro, brilha o teu farol!

A fronte erguida, olhar brilhante!

Alma serena, risonha, em flor! Canta tua vida, tua fé constante

Meu Capinzal cheio de ardor!

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Uma Trova de São Paulo/SP

Domitilla Borges Beltrame

Nas noites de solidão, o luar chora comigo... Só em ti, meu violão,

encontro o consolo amigo!...

Um Poema de Fortaleza/CE

Vicência Jaguaribe

Brin(c/g)ando com a dor

Ouça um bom conselho Que eu lhe dou de graça

Inútil dormir que a dor não passa (Chico Buarque)

Deixa doer que a dor passa. O tempo é o melhor remédio.

Dorme que a dor passa.

Já dormi. Já deixei o tempo ir.

Doeu muito, e a dor nada de passar. Já esgotei as supersticiosas crenças

e já olho com indiferença a sabedoria popular.

Que faço eu agora?

Já apelei à razão

e fiz um curso de Lógica. Mas descobri a natureza virológica

da aristotélica invenção.

Já fui, como um místico magricela, a Santiago de Compostela

e nada senti de misticismo no ar. — Sou mesmo um cético a chocalhar.

Já rezei a Santa Rita de Cássia,

a Santa dos impossíveis. — A Santinha que, para a superiora suspicácia, regou um galho de sinais indiscutíveis mortais.

Ao fim de um ano, o que parecia asneira fez o galho transformar-se em frondosa videira.

E implorei a Santo Expedito, o Santo das causas urgentes.

— Este Santinho que parece nunca haver existido mas a quem dediquei preces ingentes.

Já recorri a São Judas Tadeu, o apóstolo-irmão do Galileu.

— Coitado! Confundido sem pudor com o Iscariotes traidor.

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E nada.

Por fim, supliquei ao Santo Guerreiro, aquele que — dizem — mora na Lua.

Mas o nobre cavaleiro, não sei por que, recua.

— Que me perdoem os deuses! Tentei, então,

agir como um moderno Fausto. Mas ele, o coisa-ruim, o infausto,

o último lembrado — vejam só — disse não.

No termo de minha busca, desencanto: deixar descer o pranto e os soluços

e impropérios gritar talvez às ondas sofridas do mar.

Por sorte, em meu pranto, para cada desencanto,

trago escondido um contracanto.

Querem saber do que mais? Vão os amores egoístas e iludentes,

com suas dores infernais, vão, sem demora, pra caixa-prego.

— Pra caixa-prego? — Sim, pra caixa-prego.

isso porque não quero ser inconveniente.

Nenhum amor merece tanto desespero. O mundo está cheio de amores. Sim, sem exageros.

É só procurar. Quem procurar achará.

É, mas ouço, vindo do fundo do peito,

uma voz que espreita e que gosta de soltar veneno

nos ouvidos de esperanças plenos: — Talvez não haja outro amor igual àquele

e você pode muito bem não esquecer o primeiro. — Vá se catar!!!

Não custa nada tentar. Que suas palavras, leve-as o ar.

____________ Sobre a canção “Coração de Papel” Magoado por haver brigado com a namorada Ruth, Sérgio Reis dedilhava o violão, enquanto aguardava o almoço, preparado por dona Clara, sua mãe. Como estava demorando, resolveu escrever uma letra, mas logo desistiu da tarefa e, ao jogar fora o papel, comentou para dona Clara: “meu coração está amassado como aquela bola de papel.” De repente, percebendo que a imagem poderia funcionar como motivo para uma canção, retomou o violão e compôs em poucos minutos “Coração de Papel”, terminando-a antes mesmo do almoço ficar pronto. Dias depois, indo à sua casa o produtor Tony Campello, em busca de repertório para a dupla Deny e Dino, gostou tanto da composição que acabou

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sugerindo uma fita demo com o próprio Sérgio, o mais indicado para cantar sua pungente melodia. “Coração de Papel” foi gravada por Sérgio num compacto duplo, acompanhado pela orquestra de Peruzzi, com o reforço vocal dos Fevers, Golden Boys e Trio Esperança. Apesar de bem executada nas rádios, a composição recebeu um impulso definitivo do Chacrinha, que durante oito semanas ofereceu um

prêmio de mil cruzeiros novos ao calouro que melhor a interpretasse. Com isso deslanchou o sucesso de “Coração de Papel” no Rio de Janeiro, suplantando nas paradas suas maiores rivais, “O Bom Rapaz”, com Wanderley Cardoso, e “Meu Grito”, com Agnaldo Timóteo. Em tempo: teve um happy end o romance de Sérgio e Ruth, com o casamento dos dois. Fonte: Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello. A Canção no Tempo. v. 2.

__________________ Chuvisco Biográfico da Poetisa

Vicência Maria Freitas Jaguaribe é cearense, do Vale do Rio Jaguaribe. Nasceu em 1948, em uma cidadezinha chamada Jaguaruana, nome de origem indígena, que significa onça preta. Filha de Francisco Jaguaribe e de Miriam Freitas Jaguaribe, pertence a uma família de tradição política na região. Seus estudos ela os fez em sua cidade natal, na vizinha cidade de Russas e em Fortaleza. Foi também na capital do estado que cursou Letras e o Mestrado em Literatura. Dedicou-se ao magistério, sua única atividade profissional, primeiro no Curso Médio e depois no ensino superior. Hoje está aposentada da Universidade Estadual do Ceará.

Foi vencedora do Prêmio Rachel de Queiroz de Literatura Infantil, concurso promovido pela Secretaria da Educação do Estado de Ceará, com o livro Na terra do faz-de-conta. Publicou os livros Ancoragem em porto aberto, contos para adultos; Contato, contos minimalistas; Carolina Trovão, seu colar de corais e o raiozinho de sol; A dança dos pirilampos, contos infantis; Brincando no ritmo da poesia, poemas infantis; Na terra do faz-de-conta, contos infantis.

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A diferença que vejo entre a virtude e o pecado: – virtuoso - peca a varejo,

pecador - por atacado.

A facilidade imensa com que os homens são julgados

simboliza bem a crença de sermos todos culpados.

A força do inevitável, já pela força que tem, faz o destino imutável,

sem indagar quem é quem.

Ante a vinda inesperada da indesejável cegonha,

de susto morre a empregada, morre o patrão... de vergonha!

Ao partires, mãe querida, deixaste a imagem comigo: nem durante toda a vida eu te segui como sigo!

A paz verdadeira e pura, que a consciência enobrece,

é a que sente a criatura que, para subir, não desce.

As desventuras da vida,

eu não as conto a ninguém, pois mágoa, que é transmitida,

se multiplica por cem.

Bem que procuro ser santo, mas não consigo, porque

eu encontro em cada canto alguém que lembra você...

Buscando falsa razão

para razão que não tem, ninguém ilude o irmão sem iludir-se também.

Construíste mil castelos...

E a tua imaginação, depois de sonhos tão belos, quis morar num barracão...

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Convém às vezes fugir, porque a presença freqüente

não deixa a gente sentir se sentem falta da gente.

Creio que ninguém duvida desta inconteste verdade: há mundo, mas não há vida, quando falta a liberdade!

Dentro da imensa tristeza

que a minha alma sempre invade, o que me mata é a certeza de não sentires saudade.

Dois destinos são iguais,

na proporção em que dois, sofrendo menos ou mais, sofrerão juntos, depois.

Enquanto os povos discutem

a teoria da paz, os mais fracos se desnutrem

e os mais fortes comem mais…

Esta Fé que hoje me invade, traz tanto alento à minha alma

que, dentro da tempestade sinto a natureza calma!

Eu perdi muita amizade, defendendo injustiçados.

- É que o vento da maldade sopra de todos os lados.

Eu rezo em casa, na igreja, na rua, em qualquer lugar...

Duvido Deus não esteja onde costumo rezar!

Façamos logo um acordo,

sem queixa, mágoa ou rancor: – dividamos o ciúme,

multipliquemos o amor.

Gosto de moça formosa, sabendo embora o perigo

- Eu não desprezo uma rosa, temendo o espinho inimigo…

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Mãe - é palavra sem rima, buscá-la é inútil, não tente, pois mãe está muito acima de tudo, coisas e gente.

Minha mulher não perdoa a quem me faça maldade. Não porque ela seja boa:

– pretende é exclusividade!

Na mentira a se perder, não sabe aquele infeliz

que ele nunca se faz crer nem nas verdades que diz.

Não dou ouvido ao lamento

e não escondo o porquê: tudo, na vida, é um momento - e o meu momento é você...

Não há calvários iguais, toda cruz é diferente,

e as cruzes que pesam mais são sempre as cruzes da gente.

Não lhe adivinhando o nome, batizei-a de Maria.

E o remorso me consome: – nunca vi tanta heresia!

Não nos feneçam os sonhos,

deles precisamos tanto! Mudam pensares tristonhos e secam fontes de pranto.

Nascemos sentenciados: “Os que vierem se vão”.

E nem somos informados do dia da execução...

Os santos de antigamente só foram santos, porque, conhecendo tanta gente, não conheceram você...

Penetrei fundo demais no poço das ambições.

Vejo, agora, o mal que faz um sonho sem proporções.

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Poeta mau não conheço, mau poeta ah, isto sim!

Conheço e digo onde mora: bem aqui… dentro de mim.

Por que será que você,

tendo os defeitos que tem, os seus defeitos não vê,

vendo os dos outros tão bem?

Quando penso em falsidade, teu nome logo me vem: Teu nome: Felicidade!

- Felicidade? De quem?...

Quanta alegria semeia quem vive sempre contente:

- A felicidade alheia também faz feliz a gente.

Quem da riqueza faz praça,

muito cedo se esqueceu de que Deus tira de graça o que, de graça, nos deu.

Quem constrói seu barracão no do vizinho apoiado, pelo sim e pelo não,

confia... desconfiado!

Saber não ocupa espaço, mas é preciso que a gente, ao caminhar, passo a passo, modere o passo da frente...

Saudade, o mundo embalando,

dói, de modo tão diverso, que o poeta, mesmo chorando, pode cantá-la em seu verso.

Se a morte nos avisasse a respeito do seu dia,

não creio que nos matasse: a gente é que morreria...

Se é por simples gentileza que a mim você se anuncia,

não me leve a mal, Tristeza! Prefiro a casa vazia!

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Se o trabalho me enfastia, eu dele logo me vingo, fazendo, de cada dia,

a sucursal de domingo…

Se querer fazer mistério de coisas tão triviais:

- É na paz do cemitério que vivem todos em paz…

Se toda gente soubesse como custa querer bem, quanta gente gostaria

de não gostar de ninguém!

Tenham medo é dos medrosos - fugidios, reticentes -, mil vezes mais perigosos

que os atrevidos valentes...

Teus encantos, criatura, mexeram tanto comigo

que eu vivo da desventura de sonhar sempre contigo…

Toda mulher tem seu quê, tem um encanto qualquer.

Não tendo, é o que a gente vê naquela que a gente quer.

Trabalho, sem me cansar.

E é tão bom que seja assim! - Chego, às vezes, a pensar que Deus trabalha por mim.

Ventura... Felicidade... Duas palavras vazias

que, depois de certa idade, não enchem mais nossos dias.

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Octávio Babo Filho nasceu a 20 de julho de 1915 no Rio de Janeiro, filho de Octávio Babo e Maria da Glória Pedreira Babo.

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Compositor, poeta. Advogado, especializado em defesa do consumidor. Primo do compositor Lamartine Babo. Publicou dois livros de trovas: "Cantigas das Horas Vagas" e "Ao Correr das Horas". Sua atuação na música popular brasileira ficou marcada pela canção de natal "O velhinho", defendida em concurso natalino pelo cantor João Dias e classificada em terceiro lugar. A composição no entanto alcançou grande aceitação popular e se tornou um clássico do repertório natalino. Faleceu no Rio de Janeiro em 1 de outubro de 2003, aos 88 anos.

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Lino Mendes São saias, meu bem, sâo saias…

As “saias”, cantadas e bailadas ou só cantadas, cantigas de festa ou de trabalho (quando o mesmo não era de empreitada), é uma das mais belas modas do folclore português, mais centralizada no Alto Alentejo em especial no distrito de Portalegre onde, segundo Tomaz Ribas já existia no século XII.

Cantadas por homem e mulher, por duas mulheres, ou ainda por dois homens e uma mulher quando a mesma era disputada por ambos , de uma maneira geral eram de criação espontânea, era ali, na altura que os versos saiam. E como se compreenderá, eram de despique, por vezes de escárnio e mal dizer. E, se como dissemos se trata de quadras marcadas pela espontaneidade, muitas perduraram no tempo. O exemplo de uma que se tornou de expressão nacional:

Estas é que são as “saias”, estas saias é que são;

São cantadas e bailadas na noite de S.João.

Outras houve, que terão sido adaptadas como esta:

MONTARGIL terra tão linda, não és vila nem cidade.

mas és um rico cantinho onde brilha a mocidade.

E a finalizar. Deixamos umas “cantigas” a despique:

RAPAZ Estas raparigas de hoje

iguaizinhas são às dontem, albardá-las e mandá-las com um cântaro à fonte

RAPARIGA

Estes rapazes de agora estes que de agora são, albardá-los e mandá-los à serra buscar carvão

RAPAZ

Menina que tanto sabe diga lá o seu saber,

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uma camisa bem feita quantos pontos vem a ter

RAPARIGA

Quantos pontos vem a ter vou-lhe já explicar,

não são mais e não são menos dos que lhe querem plantar

RAPAZ

Menina que tanto sabe

faça-me esta conta bem. um molho de trigo limpo

quantas meias quartas tem

RAPARIGA Falaste no trigo limpo

mas não me falas no joio, quatrocentas e oitenta

meias quartas tem o joio Fonte: O Autor

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Folclore Brasileiro

A Lenda do João de Barro

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Jorge Fregadolli João-de-barro, engenheiro da floresta

Feliz é o joão-de-barro,

constrói em qualquer lugar. Ninguém, pois, lhe tira o sarro,

não lhe vai incomodar!

João-de-barro é engenheiro, doutor pela natureza.

Porém, trabalha o ano inteiro… sua casa, que beleza!

Um passarinho de nada faz as casas em paineira.

Não tem diploma, que nada, neste palco ele gorjeia!

João-de-barro, inteligente, nem estudou – quem diria!

É arquiteto, docente, um mestre em engenharia!

Não tem medo, se o tivesse,

não faria belo ninho. Deus, ouvindo sua prece… joão-de-barro, passarinho!

_____________ J. Coelho

João-de-barro

Quem ouve, do João-de-barro, o trinado,

nem imagina o porquê da celebração. Trata-se dum casal de índios encantado,

para realizar o amor em eterna união.

Jaebé, guarani jovem e forte e, de sua tribo, a índia mais bela entregam ao amor a sua sorte.

Mas, a tradição exige dele grande prova e, ao cumpri-la é levado à morte.

Além do desespero da índia, a dor lhe devora.

Jaci e Tupã, deuses da infinita união, comovidos por tão grande dor,

encantam o casal e desfazem a separação, para, como pássaros, viverem seu amor.

Agora entende-se: do João-de-barro, a fidelidade;

de ser símbolo da harmonia no lar; e o seu canto de alegria e felicidade,

por terem a dádiva da eternidade para amar, por terem a dádiva da eternidade para amar, por terem a dádiva da eternidade para amar.

A Lenda Os índios contam que foi assim que

nasceu o pássaro João-de-Barro: Há muito tempo, numa tribo do sul

do Brasil, um jovem se apaixonou por uma moça de grande beleza. Jaebé, o moço, foi pedi-la em casamento.

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Jorge Fregadolli João-de-barro, engenheiro da floresta

Feliz é o joão-de-barro,

constrói em qualquer lugar. Ninguém, pois, lhe tira o sarro,

não lhe vai incomodar!

João-de-barro é engenheiro, doutor pela natureza.

Porém, trabalha o ano inteiro… sua casa, que beleza!

Um passarinho de nada faz as casas em paineira.

Não tem diploma, que nada, neste palco ele gorjeia!

João-de-barro, inteligente, nem estudou – quem diria!

É arquiteto, docente, um mestre em engenharia!

Não tem medo, se o tivesse,

não faria belo ninho. Deus, ouvindo sua prece… joão-de-barro, passarinho!

_____________ J. Coelho

João-de-barro

Quem ouve, do João-de-barro, o trinado,

nem imagina o porquê da celebração. Trata-se dum casal de índios encantado,

para realizar o amor em eterna união.

Jaebé, guarani jovem e forte e, de sua tribo, a índia mais bela entregam ao amor a sua sorte.

Mas, a tradição exige dele grande prova e, ao cumpri-la é levado à morte.

Além do desespero da índia, a dor lhe devora.

Jaci e Tupã, deuses da infinita união, comovidos por tão grande dor,

encantam o casal e desfazem a separação, para, como pássaros, viverem seu amor.

Agora entende-se: do João-de-barro, a fidelidade;

de ser símbolo da harmonia no lar; e o seu canto de alegria e felicidade,

por terem a dádiva da eternidade para amar, por terem a dádiva da eternidade para amar, por terem a dádiva da eternidade para amar.

A Lenda Os índios contam que foi assim que

nasceu o pássaro João-de-Barro: Há muito tempo, numa tribo do sul

do Brasil, um jovem se apaixonou por uma moça de grande beleza. Jaebé, o moço, foi pedi-la em casamento.

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Jorge Fregadolli João-de-barro, engenheiro da floresta

Feliz é o joão-de-barro,

constrói em qualquer lugar. Ninguém, pois, lhe tira o sarro,

não lhe vai incomodar!

João-de-barro é engenheiro, doutor pela natureza.

Porém, trabalha o ano inteiro… sua casa, que beleza!

Um passarinho de nada faz as casas em paineira.

Não tem diploma, que nada, neste palco ele gorjeia!

João-de-barro, inteligente, nem estudou – quem diria!

É arquiteto, docente, um mestre em engenharia!

Não tem medo, se o tivesse,

não faria belo ninho. Deus, ouvindo sua prece… joão-de-barro, passarinho!

_____________ J. Coelho

João-de-barro

Quem ouve, do João-de-barro, o trinado,

nem imagina o porquê da celebração. Trata-se dum casal de índios encantado,

para realizar o amor em eterna união.

Jaebé, guarani jovem e forte e, de sua tribo, a índia mais bela entregam ao amor a sua sorte.

Mas, a tradição exige dele grande prova e, ao cumpri-la é levado à morte.

Além do desespero da índia, a dor lhe devora.

Jaci e Tupã, deuses da infinita união, comovidos por tão grande dor,

encantam o casal e desfazem a separação, para, como pássaros, viverem seu amor.

Agora entende-se: do João-de-barro, a fidelidade;

de ser símbolo da harmonia no lar; e o seu canto de alegria e felicidade,

por terem a dádiva da eternidade para amar, por terem a dádiva da eternidade para amar, por terem a dádiva da eternidade para amar.

A Lenda Os índios contam que foi assim que

nasceu o pássaro João-de-Barro: Há muito tempo, numa tribo do sul

do Brasil, um jovem se apaixonou por uma moça de grande beleza. Jaebé, o moço, foi pedi-la em casamento.

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O pai dela então perguntou: - Que provas podes dar de sua força para pretender

a mão da moça mais formosa da tribo? - As provas do meu amor! - respondeu o jovem

Jaebé. O velho gostou da resposta, mas achou o jovem

atrevido, então disse: - O último pretendente de minha filha falou que

ficaria cinco dias em jejum e morreu no quarto dia. - Pois eu digo que ficarei nove dias em jejum e não

morrerei. Todos na tribo ficaram admirados com a coragem

do jovem apaixonado. O velho ordenou que se desse início à prova. Então, enrolaram o rapaz num pesado couro de anta e ficaram dia e noite vigiando para que ele não saísse nem fosse alimentado.

A jovem apaixonada chorava e implorava à deusa Lua que o mantivesse vivo. O tempo foi passando e certa manhã, a filha pediu ao pai:

- Já se passaram cinco dias. Não o deixe morrer. E o velho respondeu: - Ele é arrogante, falou nas forças do amor. Vamos

ver o que acontece. Esperou então até a última hora do novo dia, então

ordenou: - Vamos ver o que resta do arrogante Jaebé.

Quando abriram o couro da anta, Jaebé saltou

ligeiro. Seus olhos brilharam, seu sorriso tinha uma luz mágica. Sua pele estava limpa e tinha cheiro de perfume de amêndoas.

Mas, o mais espantoso do encantamento estava por vir. Acredita-se que Tupã, sensibilizado pelo grande amor do jovem, o encantou como o João-de-barro.

Ficaram todos mais espantados, quando o jovem

iniciou seu alegre e festivo canto, enquanto seu corpo, aos poucos ia se transformando no elegante e garboso corpo do pássaro.

Enquanto cantava, caminhava como desfilando sua alegria em direção a amada. Nesse momento, o encantamento chega a sua apoteose: a Lua, deusa Jaci, com seus raios, banha de prata a mais bela índia da tribo e a transforma na companheira do João-de-barro.

Os dois, agora encantados no casal de pássaros, saíram cantando em dueto e voando, até desaparecerem na floresta.

Essa narrativa transmitida pelos guaranis, registrada e conservada até nossos dias, refere-se a uma relação de amor tão grande, mas tão grande, que conseguiu vencer até a morte.

Jaebé e a amada conseguiram viver seu amor, mesmo após a morte como um casal de pássaros, o João-de-barro.

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Podemos constatar a prova do grande amor que uniu esses dois jovens no cuidado com que o joão-de-barro constrói sua casa e protege os filhotes.

Os homens admiram o pássaro joão-de-barro porque se lembram da força de Jaebé, uma força que nasceu do amor e foi maior que a morte.

E foi assim que nasceu a Lenda do João de Barro... Especulações sobre entendimentos que a lenda

traz A lenda pode explicar algumas tradições da vida

campeira do sul. Afirmam que o João-de-barro não trabalha nem aos

domingos e nem em dias santos; em casa com ninho do pássaro não cai raio; ninho destruído e certo o raio atraído e a desagregação da família; e é símbolo da felicidade nos lares.

Podemos ainda entender o porquê de o João-de-barro pertencer ao grupo de pássaros que vivem com uma única companheira; ter seu canto tão alegre e festivo, demonstrando que estão mais do que de bem com a vida; e ter tanto carinho e dedicação na construção de seus ninhos.

A Lenda de João-de-Barro, o construtor (por Neuza Razza) João vivia feliz cantando ao nascer do Sol que toda

manhã aparecia brilhante desejando a todos um belo dia, e iluminando esse imenso horizonte dando um ar de beleza ao lugar.

Todos os amigos queriam que João escolhesse logo uma companheira. Mas ele respondia sorrindo, que quando encontrasse alguém e seria só por amor, e assim ia vivendo com muita alegria.

Então, certo dia uma bela fêmea apareceu por ali, parou para descansar, pois estava vindo de muito longe, queria conhecer o mundo.

Quando seus amigos perceberam o interesse dele pela nova visitante, procuraram alertá-lo, que ela era uma desconhecida e ninguém sabia de onde vinha, e quem ela era realmente.

Ele não deu ouvido aos conselhos e imediatamente se apaixonou perdidamente pela linda ave, e passaram a viver juntos, sua felicidade era tanto, que ele queria oferecer a sua amada o melhor.

Então passou a pensar em uma maneira de dar um conforto maior para ela. Ele havia construído o seu ninho de maneira normal como todos os pássaros, mas ele desejava algo diferente.

Em um dia de chuva, observando que o barro e a grama e pequenas filhas e gravetos secos que se misturavam ao barro dava uma massa. Começou a fazer experiências notando que ao secar amassa ficava firme e consistente.

Ficou pensativo, como ele poderia fazer para usar essa massa; então em uma árvore ali perto escolheu um dos galhos fez a base e deixou secar, depois foi colocando amassa e levantou as paredes e formou um tipo de forno. Ele não parava parecia que brotava idéias queria ver como ficaria a sua construção.

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Seus amigos ficavam admirados coma capacidade dele e estavam curiosos para ver o resultado de sua criação.

Ele construiu a casinha para ver como ficaria, e estava orgulhoso de sua criação achando uma beleza, percebeu que o vento atrapalhava, pois dava direto para dentro da casa. Procurou ver qual a direção do vento e fez uma curva na porta que desviava o vento e corrigiu todos os defeitos, agora sim iria construir a casa dos seus sonhos para oferecer a sua amada.

Escolheu cuidadosamente uma linda árvore que na primavera ficava toda florida.

E em um dos seus galhos forte e com toda a alegria que lhe era característica começou a construir a futura moradia, verificando bem a direção dos ventos e reformulou a entrada e com muito carinho e amor ia construindo a casinha que iria oferecer a sua amada.

O dia da entrega, todos estavam presentes e fizeram a maior festa. A capacidade desta pequena ave era o orgulho de todos, passando a chamá-lo de João do barro o construtor.

Todos os seus amigos tinham pena do João do barro, não tinham coragem para contar a ele que sua mulher o enganava comum forasteiro, provavelmente seu conhecido de outro lugar, pois ele havia chegado há algum tempo na região e a procurava.

O Bem te vi, criou coragem e foi falar com o amigo, explicou que deveria ficar de olho em sua mulher, pois estava acontecendo alguma coisa estranha.

O João do Barro bufou e ficou com muita raiva do amigo Bem ti vi, mas a desconfiança instalou em sua mente e quis mostrar a todos que não havia nada.

Então comunicou a sua mulher que iria ficar alguns dias fora e a convidou para ir junto, ela recusou, e que ele fosse sozinho.

Ele se despediu, mas ficou ao longe observando todos seus passos, notou que ela saia e se encontrava com outro pássaro.

Com muita raiva e também envergonhado pelos seus amigos que tentaram lhe avisar e ele bancou o bobo.

Chegou de surpresa e pegou sua mulher com outro, e na mesma hora, botou-o para correr. Falou muito pouco e levou-a para casa e disse em voz firme e não queria ser contrariado e a colocou dentro de casa, então em silêncio selou aporta de sua casa com o mesmo barro que havia construído a casa de seus sonhos.

Todos na comunidade ficaram entristecidos como caso, mas não interferiram. Sua companheira morreu trancafiada na casa que lhe foi oferecida com tanto amor.

Ele tentou cantar com aquela voz melodiosa, mas as lágrimas escorriam pelo seu rosto e o mais estranho só se ouvia agora som de sua voz como se fosse uma estranha gargalhada.

João de Barro saiu dali e foi para longe onde passou a ensinar aos a construir casas para suas famílias. Ele nunca mais quis ter outro relacionamento, para não sofrer mais, pois ainda sentia a dor da traição.

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É por isso que em lugar de seu belo canto cheio de alegria, ele agora dá uma estranha gargalhada.

A Ave O joão-de-barro ou forneiro (Furnarius rufus) é uma

ave Passeriforme da família Furnariidae. É conhecido por seu característico ninho de barro em forma de forno (característica compartilhada com muitas espécies dessa família). É a ave símbolo da Argentina, onde é chamado de hornero ("Ave de la Patria" - desde 1928).

Possui o dorso inteiramente marrom avermelhado (por isso o epiteto específico rufus). Apresenta uma suave sobrancelha, formada por penas mais claras, em leve contraste com o restante da plumagem da cabeça.

Rêmiges primárias (penas de voo, nas asas) anegradas, visíveis em vôo, com as asas abertas. Ventralmente é de coloração mais clara. Tem cerca de 20 cm de comprimento. Sua plumagem pode mostrar variações regionais; no sul da Argentina tende a ter um tom mais pálido e acinzentado; no Piauí e Bahia as cores são mais fortes, mais avermelhado no dorso e mais escuro e ocre no ventre. Também seu tamanho pode variar, sendo em geral as populações do sul ligeiramente maiores que as do norte.

Fontes da lenda: http://lendasdobrasil.blogspot.com.br/2011/05/lenda-do-joao-de-barro.html http://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o-de-barro

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J.B. Xavier

Cunhaporã - Uma história de amor I

O Canto Guerreiro

(O poema está dividido em 8 partes)

PALAVRAS DO AUTOR

Escrito há 30 anos, considero “CUNHAPORÃ – UMA HISTÓRIA DE AMOR minha obra maior, na poesia.

“CUNHAPORÃ – UMA HISTÓRIA DE AMOR" é um poema-romance épico, composto de 271 estrofes e 1495 versos.

Escrevi-o como homenagem a Gonçalves Dias, em agradecimento por seu monumental poema "I-JUCA PIRAMA", que considero um divisor de águas na poesia brasileira.

Sua composição demandou um ano inteiro de trabalho e pesquisa. Obviamente, devo muito a algumas pacientes pessoas, que dedicaram boa parte do seu tempo para orientar este ignorante escriba nos meandros da vida indígena. Sem elas, este trabalho não teria sido possível.

Assim, agradeço às tribos Caigangues do Noroeste do Rio Grande Sul, com quem convivi vivenciando seu

modo de vida. Sua paciência e dedicação ao meu trabalho chegavam a ser comoventes.

Agradeço de maneira especial ao Cacique Ita-Ussú (Pedra-Grande) – já falecido - há época residindo em Porto Alegre, pela paciência que teve com este teimoso homem branco, que, de gravador em punho, tomou muitas horas de seu tempo, até poder entabular com ele algumas conversas em seu idioma, o guarani. Com ele aprendi sobre a vida na selva, os costumes e as tradições ancestrais da Nação Tupi.

Agradeço também ao Professor Leopoldo Zaninni - já falecido - pelas aulas sobre costumes indígenas do Sul do Brasil. Com ele aprendi sobre os costumes e modo de vida da Nação Charrua, os índios exímios cavaleiros que habitavam a amplidão dos pampas.

Agradeço ainda ao grande número de pessoas, leitores e críticos que me ajudaram a polir o texto até sua versão final. Seriam muitos para nominá-los pessoalmente.

A uma delas, entretanto, a Dra. Laura Albuquerque de Mendonça, indianista, agradeço pelo entusiasmo com o projeto e pelo fato de não ter me permitido desistir dele

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quando, por vezes, o cansaço me abatia e me ocorria a idéia de que eu estava tentando algo além de minha capacidade. Suas informações sobre questões indígenas, seu apoio e sua confiança foram fundamentais para a conclusão da obra.

Finalmente, agradeço aos leitores que de boa vontade adentrarem a este mundo mágico para viverem a história de um grande amor.

É por eles, e para eles, que escrevo. Se Mestre Gonçalves Dias, de onde estiver, puder

considerar este trabalho como retribuição a tudo de belo que nos ofertou, fico feliz, porque o simples fato de falar seu idioma e poder ler sua magnífica obra nos originais, já me torna um felizardo.

J.B. Xavier ________________________ Carta da Revista Círculos do Saber Quando o poema Cunhaporã, de J.B. Xavier me caiu

às mãos, pensei tratar-se de mais um dos tantos que chegam à nossa redação. Mas, quando encerrei a leitura, percebi que tinha em mãos uma das mais portentosas obras poéticas já publicadas no idioma português.

No decorrer da leitura desfilaram diante de mim uma monumental história de amor, vivida por dois amantes pertencentes a nações indígenas tão diferentes entre si, quanto é possível a dois povos se diferenciarem pela cultura, tradições, modo de viver,etc.

De um lado, Cunha Porã, a bela índia tupi, prometida em casamento a Ygarussú, o maior dos guerreiros da floresta. De outro, Nhuamã, o magnífico cacique charrua, tribo que vivia nos pampas e amava os grandes espaços.

A força e energia do guerreiro tupi e a agilidade e gentileza do guerreiro charrua encontram-se no amor a Cunha Porã, e por ela eles moverão céus e terra e irão até às últimas conseqüências.

J.B. Xavier nos descreve a beleza sublime de Cunha Porã de maneira magistral, mesmo por ser apenas sugerida. Num estilo cristalino, porém diferente e único, ele nos concede a oportunidade de desenvolver mentalmente nossos próprios protótipos de beleza, aliada à fragilidade, ansiedade, inocência e sonhos de uma esperança de ser feliz. Ele nos projeta num universo de sonhos, e nos reinstala a confiança no amor, tornando-o algo atemporal, que não pode ser destruído.

O autor poderia ter ambientado a história em qualquer outro país, como a América do Norte, por exemplo, cujos principais representantes índios são sobejamente conhecidos no mundo todo. Mas ele preferiu falar dos índios brasileiros, como fizeram José de Alencar ou Gonçalves Dias, poeta a quem, aliás, o poema é dedicado.

Assim, há referências a Condá e Viri, caciques que viveram em nossa região, nomes quase esquecidos por nós, mas que em seu tempo foram líderes incontestes de suas respectivas nações.

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Descrições surpreendentes e encantadoras passam longe da pompa rebuscada daqueles que tentaram alçar vôos literários dessa magnitude.

Seus versos nos encantam e nos conduzem por cenários absolutamente maravilhosos onde nos deslumbramos com o desenrolar dessa grandiosa história de amor.

Versejando nos mais diversos tipos de métrica, alterando seu ritmo, criando seu próprio estilo, ou em versos brancos de grande beleza, J.B.Xavier demonstra total domínio da arte de poetar, e ouso dizer que ele já pertence aos grandes nomes da poesia nacional brasileira contemporânea.

Amigos leitores, tenho orgulho de lhes apresentar o poema Cunhaporã, uma obra que resgata alguns aspectos de nossa cultura, e pelo melhor dos modos: em nome do amor.

Revista Círculos do Saber Dr. Juarez Munhoz – editor

PARTE 01

O CANTO GUERREIRO

Selva sombria! grandes carvalhos Se afastam de lado a ceder aos atalhos A vez de percorrer a floresta densa...

Caminhos escuros que os índios aprontam

Se cruzam, se afastam, de novo se encontram, Formando clareiras na selva imensa...

A onça se esgueira, ligeira, felina,

A lua que nasce por trás da colina, E o sabiá, que no galho dormita,

Dão cores à mata, e o ruído que fazem Embalam o sono de outros que jazem No chão e nos ninhos. A vida palpita!

A brisa então surge, numa calma dança.

Estrelas se juntam àquela bonança, Brilhando medrosas à luz do luar. A prata dos céus vai matando o dia

Que cede lugar em lenta agonia À noite que agora já vai começar.

Vermelho, o céu anuncia a luta

Do Dia com a Noite. Que linda disputa! E as serras distantes já vão se afastando... As aves, em bandos, em grande algazarra,

Voam felizes, qual louca fanfarra, Nos ninhos queridos vão se acomodando.

No chão o regato suave desliza.

Desagua num lago, que a braços com a brisa Vibrando sua face em vitral se transtorna.

Enfada-o a luta dos grandes titãs. Conforta-o o lindo coaxar de suas rãs, Divino coral que seus charcos adorna.

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Aqui e distante, na água espelhada Um peixe assoma com cauda dourada,

Brincando com as folhas que caem bailando. Pousando tranqüilas vão logo dançar

Divino bailado à luz do luar Que o lago, aos poucos, vai iluminando.

E as nuvens branquinhas, já avermelhadas, Trazem o sangue em que foram manchadas

Na imensa batalha, e vão se afastando. E a noite então surge em mil esplendores,

trazendo paixões, inspirando amores, E com as plantas, as águas e o céu contrastando.

A brisa aos poucos vai enfraquecendo

E as sombras da noite então vão descendo Trazendo o silêncio à grande extensão.

Os vales cobrindo, clareiras, montanhas, Descendo ao mais fundo de suas entranhas.

Na selva palpita audaz coração!

E pia a coruja na noite singela Voando na mata: gentil sentinela Que a noite vigia acesa e atenta...

O rio que desce dos montes distantes Desfia seu canto, e nas águas dançantes Depõe suas mágoas, e chora, e lamenta.

Na face do lago a imagem tão clara:

Jassy refletida no reino de Yara! Profundo silêncio! as matas caladas!

Estóicos, à noite os deuses levantam E vagam na selva, e riem, e cantam

Os cantos do Olimpo, de eras passadas.

É então que nas tabas as tribos guerreiras Contam seus casos á luz das fogueiras. São cantos de heróis, de lutas, de morte, Que aos jovens valentes só fazem sonhar

Os sonhos de guerra, o acompanhar Os homens da tribo, rijos e fortes...

Nenhum se acovarda, no entanto, e ainda

Esperam a idade - de todos benvinda - Em que o braço forte o tacape erguerá. São quase crianças, leais e valentes,

Que a vida entregam, alegres, contentes, À luta esperada, que um dia virá .

Num círculo ao longe as moças escutam Os cantos de guerra que eles disputam.

Cantos de guerra que fazem sonhar. As cândidas, doces, suaves morenas

Trançando as sedosas e lindas melenas Esperam com um deles poderem casar.

Que sonhos não vão em seus olhos escuros? Que ardentes desejos nos corpos tão puros Não causa o canto dos heróis-guerreiros? Donzelas que sonham os sonhos amenos Que fazem vibrar seus corpos morenos

Que em curvas se alongam, lascivos, fagueiros.

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No centro da taba, brilhando no lume

Derramam-se os homens. Da noite o negrume Qual manto profundo, a tudo encobre. Em volta do chefe derramam-se eles. Os jovens, os velhos, e todos aqueles

Guerreiros valentes, da estirpe mais nobre.

É Ygarussú, o tupi imbatível, Da flecha certeira, do golpe terrível !

E o som de sua voz, que em guerras ecoa Atinge o inimigo, já enfraquecido, Imbele, cansado, doente ou ferido. Por isso distante seu nome já soa...

Quem visse sua flecha acertar o mutú

Ou em plena carreira prostar o inambu... Na aldeia não havia sequer um guerreiro

Com força bastante para retesar Em toda a extensão o seu ybirapar,

Por certo o mais duro dos duros madeiros.

Quem visse o tacape ferir a akã De seus inimigos, quem visse Tupã

Clareando suas trilhas nas noites sombrias, Por certo haveria de reconhecer: Tão cedo de novo não ia nascer

Guerreiro assim destro pelas cercanias

E amores desperta; e loucas paixões Caminham com ele! e mil corações

Por ele deliram em idolatria! É rude, valente, amigo da Sorte.

O grande oyakã, cantando a morte As lindas morenas assim seduzia.

E o fragor desses cantos na noite subiu,

Até que o cacique o silêncio pediu. Somente o lume ardia faceiro

E o pesado silêncio às vezes quebrava. O grande cacique de pé se postava

Cantando à aldeia seu canto guerreiro:

“Irmãos meus de sangue! Às vezes, exangue, Amargas torturas Da guerra bebi.

Nas provas mais duras Nas quais fui testado E em grandes agruras

Não esmoreci.”

“Meu tino me serve De guia no escuro,

E que assim se conserve Em dias por vir.

Que eu vença o futuro temores, cansaços,

Que eu esteja seguro De nunca fugir.”

“A quantos matei?

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Jamais vou saber! Jamais me lembrei

De contar inimigos... Só resta entender: Não há diferença

Em matar ou morrer. Em mim só me abrigo.”

“Já fui pelas serras

Vencendo a má sorte. Andei longas terras Que nunca esqueci.

A braços com a Morte Andei tão distante.

Com povos mui fortes Lutei e venci.”

“Olhai o meu peito E o claro matiz

De um talho perfeito Que fez-me o embate.

Mas morro feliz Se a lança atirada

Fizer cicatriz Que enfeite o combate."

E isto dizendo, olhou os guerreiros

Que sérios, nervosos, se agitam ligeiros Prevendo o que então viria a seguir. E apenas num gesto, rápido, tenso,

Tirou de seus ombros o manto imenso Que suave ao seu lado, no chão foi cair.

Seu corpo saltou para a noite escura Marcado nas lutas de tanta bravura.

O espanto deixou os guerreiros prostrados. Que lanças suas mãos não haviam partido?

Que vezes, na dor, sem um só gemido Não tinha o tacape do ímpio quebrado?

Seu rosto severo, seus braços possantes E o altivo que havia em todo o semblante

Tornava-o muito acima dos seus. E a pira queimava incensos amenos, E o fumo a subir era como acenos

Ao bravo que agora queria ser deus.

"Eu sou o seu deus!" - bradou Ygarussú. "Mais rápido ainda que o veloz suassú !

Mais forte que o raio, o vento ou a lança!"

Pasma a aldeia!

Jamais a floresta Ouviu coisa assim!

Que os deuses em festa, Se o tenham ouvido, não queiram vingança...

Rolou no horizonte um trovão taciturno:

Tétrico aviso ao audaz importuno. Quem desafia o poder de Tupã ?

Quem é que, em deus, por si se entronara? Quem é que a si próprio assim se elevara?

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Quem ousaria prever o amanhã ?

Os homens em roda ouviam enlevados. Futuros guerreiros olhavam, sentados,

O grande cacique que os céus lhes mandara. As moças sonhavam os sonhos das virgens,

Enquanto o valente cantava as origens Do clã que o - um dia, há tempos - gerara:

"Em guerras distantes

As tribos errantes vagavam constantes

Por ermos hostis. E a tribo que agora O penhor revigora

E a mesma de outrora: Os bravos tupis. O vento na mata, O som da cascata,

A lua de prata Deixava antever

Que em tempos vindouros, Tal qual um agouro, Das lutas os louros

Iriam colher. O céu incendido

Que cobre o bramido Do índio ferido

Em remoto iporã , É o mesmo por certo Que ao índio desperto

Vai deixar aberto O poder de Tupã . Poder que encerra O verde da serra O grito de guerra, O som do maracá.

É o mesmo que assim, Nas eras sem fim

Forjou num festim O cacique Condá.

Condá, que às vezes Aos vis portugueses

Impôs os revezes De lutas sem par. Um corpo pintado,

Um rosto irado, E no crânio, alado,

Branco canitar. Penacho frondoso,

Porte garboso, Arco lustroso Condá exibia.

Nas guerras insanas Santas, profanas, Em voz soberana

Seu brado se ouvia. Guerreiros! eu canto

O riso, o pranto De quem sofreu tanto

P’rá nos ter aqui: Condá e os demais.

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Por certo lembrais Do chefe Virí.

Virí, o seu braço

Deixou forte traço No chão, no regaço

Dos tempos de outrora. As mãos calejadas De vidas tomadas. Sua lança ousada Tivesse eu agora! A força da Terra

Que em si toda encerra As mortes na guerra

Clama por ti! A ti só eu chamo,

Tupã! eu conclamo: Desfaça o engano,

Renasça Virí. São esses os bravos! Beberam dos favos Das lutas. Escravos Do lutar e vencer. A mim delegaram, A mim confiaram,

Em mim transplantaram Sua força e poder! Ouçam-me agora Que chega a hora De ir-me embora.

Seu deus, pois, eu sou!

Meu canto já finda. Na guerra benvinda

Meu braço ainda Ninguém derrotou."

E fez-se silêncio. Calou o gigante.

E tudo ao redor silenciou nesse instante Sagrado, a render-lhe uma muda homenagem.

E enquanto alguém lhe entregava o manto, Os sons tão heróicos de seu nobre canto

Ainda ecoava na densa folhagem.

Assim o tupi, com seu porte altaneiro, Reinava na aldeia, e seu canto guerreiro

Deixou toda a taba feliz, enlevada. Seus olhos, no entanto - discreta procura - Buscavam a beleza, a meiguice, a candura

Do rosto sereno da doce amada.

As moças ao longe, em nervosos sorrisos, Deixavam antever, em indícios precisos,

O amor dedicado ao grande oyakã. Mas fogo no peito ilustre havia

Queimando por dentro, em lenta agonia Por seu grande amor, sua Cunhaporã.

E quem duvidava que tão nobre canto

Visava o amor esperado há tanto E que em breve, sabiam, iria esposar?

Seus olhos furaram a noite escura Buscando a beleza, a meiguice, a ternura

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Que o canto guerreiro queria agradar.

Nas faces das moças, lindas, tingidas, Em vão procurou as feições tão queridas

Sem no entanto encontrar o doce olhar vago. Olhou ansioso além da amurada. Sabia onde ela seria encontrada.

Afastou-se correndo a caminho do lago.

Subiam no espaço as fagulhas do lume Levando aos céus o espesso negrume. Silêncio na mata! findara-se a festa!

Tornou-se mais fraco o estalar da fogueira. Mil olhos seguiam a marcha ligeira

Do chefe e herói, a sumir na floresta. _________________________

Glossário da parte 1 Akã - Cabeça Inambú - Ave canora de canto melodioso Iporã - Agua bonita; água tranquila, remanso do rio. Jassy - Deusa representada pela lua. Maracá - Chocalho com cabo, usado em cerimoniais. Mutú - Cana-de-açúcar,Pequeno galináceo. Oyakã - Cacique Suassú - Veado, gamo Tacape - Porrete pesado,borduna Tupã - A maior divindade do panteão tupi. Yara - Deusa das águas. Ybirapar - Arco Ygaraussú - Canoa grande; grande embarcação; navio

* * * continua… O Lago Encantado

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Solange Fiuza Cardoso Yokozawa Presença simbolista em Mario Quintana (Parte II)

Álvaro Moreyra é um simbolista gaúcho que,

seguindo o curso corrente dos artistas nacionais, deixa Porto Alegre para residir no Rio, onde integra o grupo carioca da Fon-Fon!, última revista propriamente simbolista editada. Travando contato estreito com vários escritores que vão estar à frente da vanguarda de 22, o poeta acaba por “aderir” ao Modernismo. Adesão talvez não seja a palavra mais apropriada, vez que, como observa Donaldo Shüler (1987), algumas das linhas de força do Modernismo, como a liberdade métrica, rítmica, estrófica e rimática, já vinham sendo praticadas pelo poeta gaúcho desde Casa Desmoronada (1909), de modo que a sua adesão ao Modernismo parece se definir melhor em termos de confluência do que de influência.

Mas o que interessa destacar em Álvaro Moreyra é uma mudança que se opera, ao longo de sua poesia, no enfrentamento poético da vida. Comparando, por exemplo, Casa Desmoronada, publicação que, juntamente com Degenerada, assinala, em 1909, a estréia em livro do poeta, com Circo, obra que, dedicada a Tarsila e Oswald de Andrade, marcaria, em 1929, a sua “adesão” ao Modernismo, verifica-se a substituição, já anunciada pelos títulos dos livros, de uma visão simbolista da realidade, marcada pelo penumbrismo e pelo pessimismo, por um olhar de poeta-clown, lírico e travesso, fingidamente ingênuo,

mas sutilmente irônico diante dos descompassos vida. Compare-se, por exemplo, a “Inscrição” que encabeça Casa Desmoronada,

“Sempre, em Meu Verso, vague a dorida Tristeza boa e tênue, que ao mal da Vida me conforma… E ele surja à feição de uma lágrima acesa, violácea,

a esmorecer no halo d’oiro da Forma..”, com a epígrafe de Marcel Achard que abre Circo:

“Mais je suis presque clown et j’ai été toujours poète” (Mas eu sou quase palhaço e eu fui sempre poeta).

Se esse olhar do artista que é quase palhaço e foi sempre poeta se irmana em muitos aspectos com o poema-piada modernista, notadamente com a poesia de um Oswald, há que se lembrar que essa mudança moreyriana no enfrentamento poético da vida antecede a “adesão” do poeta ao Modernismo. Como notou Regina Zilberman (1992, p.29), Legenda da Luz e da Vida, de 1911, já “retrata o novo mood do poeta, que, de bom humor, despreocupado e alegre, qualidades doravante típicas de sua produção, enfrenta as dificuldades da existência”.

Quintana, em uma das crônicas do Caderno H, registrou esse “espírito clown” do poeta Álvaro Moreyra, parente próximo do seu Mister Wong: “Um dia Álvaro Moreyra, já avó, contou-me que seu pai ainda lhe dizia: ‘Mas Alvinho, por que tu não escreves coisas de mais

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fôlego?’ E ele, espalmando as mãos num gesto de desculpa: ‘Mas eu não tenho fôlego, Papai...’” (1994, p.75-76). Quintana, como Álvaro Moreyra, cujo espírito clown o autor de Caderno H sintetizou tão bem nessa crônica, foi quase um clown e foi sempre poeta. O palhaço e o poeta, o humor e o lirismo, o Mister Wong que irmanam a obra de Álvaro Moreyra e Mario Quintana situam a produção do primeiro, a partir de Legenda da Luz e da Vida, em uma esfera outra que o penumbrismo de Marcelo Gama e Eduardo Guimaraens, e, no caso do segundo, limitam, nas produções subseqüentes a A Rua dos Cataventos, o espírito crepuscular que dita a atmosfera desse livro.

Assim como o espírito crepuscular dominante em A Rua dos Cataventos é sintomático do desajuste entre o poeta e a sociedade, a postura sócio-poética declarada e tornada a práxis desse livro é conseqüência desse desajuste.

Tal postura aparece explicitada metalinguisticamente no soneto V (Quintana, 1989, p.7-8). Nesse soneto, o “sujeito da enunciação” confessa nada entender da questão social e diz saber apenas do seu próprio mal. Incompreendido pelo mundo, entendido apenas pelo seu Anjo da Guarda (personagem recorrente nos quintanares e, segundo o próprio poeta, símbolo de suas frustrações) e identificando-se com outros que, como ele, encontram-se excluídos da engrenagem social (Loucos, Mortos, Crianças), o “sujeito da enunciação” se refugia em seu vago País de Trebizonda.

Uma leitura isolada desse soneto poderia levar a uma associação entre o País de Trebizonda de Quintana e o castelo de Axel, personagem do longo poema dramático em prosa de Villiers de L’Isle-Adam. Edmund Wilson vê nesse personagem a figuração de uma tendência comum entre os simbolistas e seus herdeiros, como se pode comprovar pelos heróis que construíram e pela própria vida de artistas como Proust, Valéry, Yeats e outros tais que. O simbolista, numa sociedade que não oferece um lugar para o poeta e não lhe dá a distinção merecida, também não se interessa por ela. Desliga-se da sociedade e se adestra na indiferença a ela, terminando por “deslocar inteiramente o campo da literatura, a exemplo do que seu porta-voz Axel já o fizera em relação à arena da vida, do mundo objetivo para o subjetivo, da experiência partilhada com a sociedade à experiência desfrutada na solidão” (Wilson, 2004, p.260). Quintana, como Axel, fecharia as janelas de sua poesia para o mundo, encerrar-se-ia em seu país privado, Trebizonda, “cultivando fantasias privadas, encorajando manias privadas, preferindo, em última instância, suas quimeras mais absurdas às mais espantosas realidades contemporâneas, e confundindo tais quimeras com realidades” (Wilson, 2004, p.277-278).

Mas uma leitura do soneto “Eu nada entendo da questão social” que leve em consideração outros poemas de A Rua dos Cataventos, em especial o soneto IV, evidencia um distanciamento na atitude de Quintana em relação ao herói de Villiers de L’isle-adam e à tendência por ele personificada:

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IV Minha rua está cheia de pregões Parece que estou vendo com os ouvidos: “Couves! Abacaxis! Cáquis! Melões!” Eu vou sair pro Carnaval de ruídos, Mas vem, Anjo da Guarda... Por que pões Horrorizado as mãos em teus ouvidos? Anda: escutemos esses palavrões Que trocam dois gavroches atrevidos! Pra que viver assim num outro plano? Entremos no bulício do quotidiano... O ritmo da rua nos convida. Vem! Vamos cair na multidão! Não é poesia socialista... Não, Meu pobre Anjo... É... simplesmente... a Vida!… (Quintana, 1989, p.5) Quintana não apresenta aquela “falta de

curiosidade diante da vida” que André Gide censurava nos simbolistas. Ele não mantém a poesia em um “outro plano”. Mas também não faz “poesia socialista”; não são os grandes males que assolam a humanidade ou o Brasil que lhe servem de matéria poética. Não são as “formas vagas, fluídas, cristalinas”, as “harmonias da cor e do perfume”, os “infinitos espíritos dispersos” que lhe fecundam os versos. Tampouco a Guerra ou a

seca do Nordeste. É o “bulício da rua”, “o ritmo do cotidiano”, representado no soneto acima pelos gritos dos pregoeiros e pelos palavrões trocados por dois gavroches atrevidos, que já marca presença em A Rua dos Cataventos, afastando esse livro da produção dos simbolistas e aproximando-o da preferência modernista em poetizar as pequeninas coisas que compõem a vida de todo dia.

Portanto, verifica-se que o poeta prossegue a tradição simbolista da inadequação entre o artista e o seu contexto e não quer ser o poeta “épico” dessa sociedade, no sentido de cantar os grandes acontecimentos sociais. Mas, diferentemente daqueles que escrevem sob o signo de Axel e à maneira dos modernistas, abre as janelas de sua poesia (“Escrevo diante da janela aberta”, diz o eu-lírico no poema que abre o livro) para a rua, mais precisamente, para as coisas pedestres e para os acontecimentos corriqueiros que nela se desenrolam.

Se Quintana se afasta dos simbolistas ao “contaminar” a sua poesia com o ritmo da rua, novamente ele se aproxima dessa estética pelo caráter marcadamente intimista de seu lirismo e pela conseqüente valorização de espaços em que o interior pode aflorar plenamente, como é o caso do devaneio, do sonhar acordado. Os simbolistas, em uma sociedade que lhes é hostil, negam-se a mimetizar essa sociedade e se põem a perscrutar a realidade mais autêntica do “eu profundo”.

O resultado é o predomínio de uma poesia de orientação intimista. Quintana, a exemplo dos

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simbolistas, em um mundo que se mostra indiferente ao mal do poeta, diz, em contrapartida, nada entender da questão social, saber apenas do seu próprio mal e, enquanto o mundo todo se esbarronda, prefere reger estranhas contradanças em seu vago país interior. Em um mundo que se mostra hostil ao poeta, seja por nele predominar os valores burgueses, seja por ele não ser mais o mundo da infância, o poeta não quer ser o porta-voz dos grandes males que assolam a coletividade, mas ser a voz solitária da intimidade.

É com essa voz íntima, subjetiva, que Quintana canta ternamente a cidadezinha interiorana, a ruazinha sossegada e noturna, a infância, se compadece do menino doente e lhe compõe um soneto, recorda os amigos mortos, conversa com e sobre a morte.

Dessa preferência pelas notações íntimas em poesia resulta uma valorização do sonho, do devaneio e de outros “espaços” propícios para aflorar a “realidade interior”, em detrimento à realidade exterior, material.

No soneto XXXII (Quintana, 1989, p.25), o eu-lírico se dirige a uma segunda pessoa (provavelmente um desdobramento de si próprio) e lhe recorda o dia em que ela, numa reunião caracterizada como vulgar, caiu “em estado de poesia/Quando o Sr. Prefeito ia falar...” Em um transe poético, livre da “vulgaridade” da situação, a segunda pessoa do poema sai a perambular pelas ruas e se detém junto a um “salgueiro doente”, com o qual parece se identificar pela solidão, pelo abandono, e com quem espera a primeira estrelinha,

que poderia conotar a própria poesia. Mas a estrelinha se abre, em sonho, “no céu azul da tua infância”.

No soneto XXVII (Quintana, 1989, p.22), um moribundo, ao escutar “Valsas antigas, velhos ritornelos”, põe-se a devanear. Enfadado com as vozes que lhe lamentam o suplício, sua alma, através da janela, abstrai-se da tristeza da situação e se evade, feliz, para o céu:

“Minh’alma louca há de sair cantando Naquela nuvem que lá está parada E mais parece um lindo barco a vela!...” O intimismo que assinala A Rua dos Cataventos e

que persiste como traço caracterizador dos quintanares filia a poesia de Quintana a uma tradição lírica nacional que remonta a Casimiro de Abreu. Trata-se de uma linhagem de poetas que rechaça a poesia puramente intelectualista, “feita a frio, de fora para dentro” (Quintana, 1983, p.55) e concebe a poesia como emoção, como sentimento (não sentimentalismo), como uma “interjeição ampliada” (Quintana, 1994, p.136). O fato de o poeta intimista privilegiar a poesia que emana do coração em detrimento à poesia que é fabricada pelo intelecto não significa que o poema para ele se limite a uma descarga emotiva em que não entra em ação a consciência criadora. Assim como para o bom poeta intelectualista ou apolíneo a lógica da criação não bane o mistério do sentimento poético, o espírito de Dioniso, sem o qual o poema se reduz a tecniquerias, a puro artefato lingüístico, o bom poeta

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intimista não prescinde do trabalho consciente do criador, da lucidez de Apolo, sem o que não há arte.

Interessa resgatar essa filiação Casimiriana da poesia de Quintana não apenas para reconstruir uma tradição, mas, primeiro, para rever uma tendência crítica que lê nessa filiação um limite de criação, segundo, para observar como o poeta constrói uma poesia intimista, um lirismo “autêntico”, sem resvalar no derramamento sentimentalóide de muitos românticos.

Emblemática das restrições feitas à filiação casimiriana de Quintana é aquela assinada por Luís Augusto Fischer, que diz ser o poeta um romântico de “feição casimiriana”, atento “ao registro lírico dos temas muito mais que à atitude épica diante deles (e muito menos questionadora)” (Fischer, 1998, p.85). Ressalva Fischer que, dentro dos limites casimirianos em que Quintana se move, ele “produz obra significativa” (Fischer, 1998, p.73).

Essa leitura põe em evidência dois preconceitos de que padece a lírica de feição casimiriana, como o é a poesia intimista de Quintana, o preconceito de que o “registro lírico” seja menos questionador do que a “atitude épica” e o de que a filiação casimiriana seja um “limite” de criação.

Não se pode menoscabar o caráter social e crítico do lirismo mais subjetivo depois das leituras de poesia feitas por Adorno, Benjamin, Bosi, Cândido, entre tantos outros defensores de que a substância social de um poema não se evidencia necessariamente no conteúdo, na epiderme do texto. Adorno (2003), na sua

clássica “Palestra sobre lírica e sociedade”, sustenta inclusive que a consubstanciação da relação entre lírica e sociedade se faria de forma mais perfeita naqueles poetas em que a formação lírica, em vez de tematizar a relação entre o eu e a sociedade, cristaliza-a involuntariamente, a partir de si mesma, no poema. Exatamente o caráter não-social dessa formação lírica seria a sua constituição social. A construção de uma poesia distanciada da existência concreta, visceralmente individual, apontaria para o que há de errado nessa existência, implicaria o protesto contra um estado social tido como hostil, alheio, frio, opressivo.

Seguindo essa perspectiva teórica, verifica-se que o alijamento das questões sociais proposto metalingüisticamente em A Rua dos Cataventos e tornado a práxis poética desse livro, bem como dos subseqüentes, parece dar a medida da sua responsabilidade social. A Alemanha de Hitler espalha a Guerra pela Europa; as cidades, sob a égide do progresso, modernizam-se; o Ocidente sofre as conseqüências de ter feito da morte a grande inimiga a ser combatida -- eis questões contextuais que se podem rememorar quando da estréia em livro de Mario Quintana. Eis o que faz o ser lírico desse livro: exila-se no País de Trebizonda, percorre ruazinhas sossegadas, elege a morte a sua companheira de todos os instantes, recorda a infância e diz querer os seus brinquedos de menino novamente.

A poesia não é apenas uma soma feliz do texto mais o contexto. A poesia autêntica se quer libertadora

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e por isso é o avesso do seu contexto quando este tende a denegrir ou extinguir o humano do homem. Assim, dar de ombros para as questões sociais e seguir para um vago país, deixar falar a morte, um dos maiores interditos da sociedade ocidental moderna, preferir o silêncio de uma cidadezinha cheia de graça ao barulho das grandes cidades, refugiar-se na infância, tudo isso, em lugar de simples evasão, pode ser lido como resistência indireta a um contexto que se queria diferente.

Quanto ao fato de a filiação casimiriana de Quintana ser interpretada como um “limite”, é mister observar que essa filiação deve antes ser vista como uma possibilidade tão legítima quanto qualquer outra. A lírica emotiva de Quintana e a poesia intelectualista de Cabral, a poesia íntima de Casimiro de Abreu e a poesia pública de Castro Alves são formas diferentes de interpretar poeticamente o mundo. Nenhuma dessas formas é a priori mais ou menos válida. São possibilidades que o artista (e o leitor) tem o direito de escolher de acordo com a sua visão de mundo. Não são limites.

Se Quintana é casimiriano pelo fato de a intimidade, a função emotiva da linguagem, ser o tom dominante de sua poesia, ele, a exemplo dos simbolistas, poda a emoção romântica dos seus excessos, de modo a manter o sentimento em poesia e a suprimir o sentimentalismo. O principal aliado de Quintana para evitar o sentimentalismo é, como ele mesmo confessa, o humor: “Como todos os indivíduos profundamente sentimentais, tenho verdadeiro horror ao

sentimentalismo verbal. Daí, certos toques de ‘humor’ nos meus poemas” (Quintana, 1994, p.63).

Os toques de humor livram os quintanares do derramamento emotivo e lhes confere uma feição irreverente, desprendida, que brinca com todos os valores assentados, inclusive os estabelecidos pelo próprio poeta, revelando a fragilidade desses valores. É assim que Quintana, que confessa a sua filiação ao romântico de “Meus oito anos”, zomba dos excessos sentimentais de seu predecessor da mesma forma que ri do tom discursivo do antecessor da poesia de orientação épica (lê-se social):

POESIA BRASILEIRA Casimiro de Abreu chorava tanto que não cabia em si de descontente. Suas lágrimas escorrem até agora pelas vidraças pelas calçadas pelas sarjetas e só vão deter-se ante o coreto da praça pública, onde, sob os mais inconfessáveis disfarces, Castro Alves ainda discursa! (Quintana, 1994, p.163) O individualismo, a aderência às emoções, a

afetividade que, ao lado do humor, dão o tom dominante da poesia de Quintana, estão ligados a um outro traço simbolista flagrante em A Rua dos

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Cataventos e que permanece como tendência simbolista nos quintanares: a sugestão.

Os simbolistas, ao se voltarem para o “eu profundo”, não podiam representar o caráter vago, impreciso, fragmentário dessa realidade interior com a linguagem descritivista, lógica, discursiva, tão cara aos realistas e parnasianos na sua opção por mimetizar a realidade exterior. Uma realidade nebulosa, imprecisa, exigia uma linguagem adequada para representá-la; uma linguagem que antes sugerisse que descrevesse objetivamente essa realidade que não podia ser

captada de maneira exata, precisa. É o predomínio da sugestão em poesia; sugestão de que Mallarmé sai em defesa: “‘Nomear’ um objeto é suprimir três quartos do prazer do poema, que consiste em ir adivinhando pouco a pouco: ‘sugerir’, eis o sonho (...) evocar pouco a pouco um objeto para mostrar um estado d’alma, ou inversamente, escolher um objeto e extrair dele um estado d’alma, através de uma série de decifrações”

continua…

Solange Fiuza Cardoso Yokozawa, doutorou-se em Letras, área de concentração Literatura Brasileira, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2000), realizou mestrado em Letras e Linguística, área de concentração Literatura Brasileira, na Universidade Federal de Goiás (1995) e graduou-se em Letras na Faculdade de Filosofia Cora Coralina (1991). É profesora da Universidade Federal de Goiás desde 2002, onde atua em nível de graduação e pós-graduação, mestrado e doutorado. Desenvolve estudos sobre poesia brasileira moderna e contemporânea. Coordena o projeto "Poesia brasileira contemporânea e tradição", financiado pela FAPEG. Desenvolve estágio pós-doutoral na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Portugal, com projeto intitulado "Reconfigurações da poesa lírica em Cesário Verde e João Cabral". Entre várias outras publicações, é autora do livro "A memória lírica de Mario Quintana" e coorganizadora do livro "O legado moderno e a (dis)solução contemporânea".

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Concurso Virtual 1ª Antologia 100 Trovas Sobre Cachaça

Prazo: até 15 de agosto de 2015 Art. 1º - DO CONCURSO O concurso, 1ª Antologia 100 Trovas Sobre Cachaça, idealizado, promovido e organizado pelo escritor Antonio Cabral Filho, tem a cachaça apenas como tema central, podendo versar sobre quaisquer assuntos correlatos. Art. 2º - DAS INSCRIÇÕES Poderão se inscrever somente autores brasileiros, maiores de 18 anos, residentes no Brasil, com apenas (1) trova por participante. § 1º - A inscrição é gratuita. Será aceita no período de 15 de março a 15 de agosto de 2015, com o envio da trova em Time New Romain tamanho 14, espaço simples e resumo biográfico em cinco linhas, através do e-mail [email protected], dirigido à 1ª Antologia 100 Trovas Sobre Cachaça, Org. Antonio Cabral Filho. § 2º - A trova, escrita em língua portuguesa, deve ter: a ) obrigatoriamente, métrica setessilábica; b ) rima, que poderá ser, abab, abba ou aabb; c ) os necessários sinais de pontuação;

d ) letras maiúscula, somente, no início das frases que compõem os versos. Art. 3º - DA COMISSÃO JULGADORA A Comissão Julgadora é soberana em suas decisões e conferirá notas de 0,1 a 10 cujo resultado será irreversível. As trovas classificadas, até o limite de cem (100), participarão da 1ª Antologia 100 Trovas Sobre Cachaça, cabendo, aos autores a responsabilidade quanto à autoria e inscrição do texto. Art. 4º - DA 1ª ANTOLOGIA 100 TROVAS SOBRE CACHAÇA A 1ª Antologia 100 Trovas Sobre Cachaça terá 100 páginas destinadas às trovas classificadas, o equivalente a uma (1) página por autor, antecedidas de dez (10) páginas a cargo da Comissão Julgadora, resultando em um livro de 110 páginas, em formato e-book (livro digital) que será entregue, via e-mail, aos participantes. A todos, que se interessarem, estará disponível gratuitamente via internet.

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Será publicado no blog: ANTOLOGIA BRASIL LITERÁRIO http://antologiabrasilliterario.blogspot.com.br/ Ficará a cargo dos autores a livre divulgação em outros espaços. Art. 5º - DAS RESPONSABILIDADES O promotor do concurso informa que o ato de inscrição significa aceitação das normas, acima expostas, e a consequente liberação da obra para integrar este certame. A divulgação dos resultados será publicada

no blog ANTOLOGIA BRASIL LITERARIO, de propriedade do promotor do evento, até 15 de setembro de 2015, seguida da publicação e envio do livro aos autores, conforme Art. 4º . Parágrafo único - Todos os inscritos terão os trabalhos publicados, um em cada postagem, no blog do concurso. COMISSÃO ORGANIZADORA Rio de Janeiro, 15 de março de 2015 Antonio Cabral Filho

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Nota sobre o Almanaque

Este Almanaque é distribuído por e-mail e colocado nos blogs http://www.singrandohorizontes.blogspot.com.br e http://universosdeversos.blogspot.com.br Os textos foram obtidos na internet, em jornais, revistas e livros, ou mesmo colaboração do poeta. As imagens são montagens, cujas imagens principais foram obtidas na internet e geralmente sem autoria, caso contrário, constará no pé da figura o autor. Este Almanaque tem a intencionalidade de divulgar os valores literários de ontem e de hoje, sejam de renome ou não, respeitando os direitos autorais. Seus textos por normas não são preconceituosos, racistas, que ataquem diretamente os meios religiosos, nações ou mesmo pessoas ou órgãos específicos. Este almanaque não pode ser comercializado em hipótese alguma, sem a

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