Alimetação de rua na cidade de São Paulo (1828-1900) · tantos anos de amor e convivência,...

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João Luiz Maximo da Silva ALIMENTAÇÃO DE RUA NA CIDADE DE SÃO PAULO (1828-1900) Orientador: Prof. Dr. Ulpiano T. Bezerra de Meneses São Paulo 2008

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João Luiz Maximo da Silva

ALIMENTAÇÃO DE RUA NA CIDADE DE SÃO PAULO (1828-1900)

Orientador: Prof. Dr. Ulpiano T. Bezerra de Meneses

São Paulo 2008

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL

ALIMENTAÇÃO DE RUA NA CIDADE DE SÃO PAULO (1828-1900)

João Luiz Maximo da Silva

Tese apresentada ao Curso de Pós-Graduação em

História Social do Departamento de História da

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas

da Universidade de São Paulo, para a obtenção do

título de Doutor em História.

Orientador: Prof. Dr. Ulpiano T. Bezerra de Meneses

São Paulo 2008

2

Resumo

O objetivo deste trabalho é discutir a alimentação de rua na cidade

de São Paulo no período entre 1828 e 1900. Quando falamos de

alimentação de rua, estamos nos referindo de modo geral às variadas

formas de comer fora de casa (restaurantes, cafés, confeitarias,

botequins, etc.). Mas o foco principal é a alimentação consumida na

própria rua, que tem o tabuleiro das quitandeiras (e posteriormente

os vendedores ambulantes) como o principal foco dessa atividade.

Nosso intuito é compreender as relações entre a comida de rua e a

própria cidade em um momento de intensas transformações sócio-

espaciais.

Palavras-chave: São Paulo (1828-1900). Comida de rua.

Abastecimento alimentar. Comércio. Urbanismo.

Abstract

The aim of this paper is to discuss the street food in the city of Sao

Paulo in the period between 1828 and 1900. When we talk about

street food, we are referring generally to many forms of eating

outside the home (restaurants, cafes, confectionery, botequins, etc.).

But the main focus is the food consumed in the street, which has a

board of greengrocer (and later the street vendors) as the main focus

of this activity. Our purpose is to understand the relationship between

street food and city in a time of intense socio-spatial processing.

Keywords: São Paulo (1828-1900). Street food. Food Supply. Trade.

Urbanism.

e-mail: [email protected]

3

Para Tânia e Felipe.

Meus dois amores.

4

Agradecimentos

O trabalho acadêmico, por sua natureza, exige além do esforço

pessoal, a mobilização e companheirismo de muitas pessoas que,

direta ou indiretamente, tornam sua execução possível e menos

penosa. Por isso, acredito que os agradecimentos são essenciais.

Para meus pais João e Therezinha, minhas irmãs Andréa e

Alessandra e os cunhados Roger e Samuel, que entenderam as

ausências e torceram muito para que tudo acabasse bem.

Muitos amigos acompanharam de perto ou de longe,

contribuindo direta ou indiretamente: Beto, Daisy, Nelson, Elena,

Humberto (sempre ajudando com as imagens), Paulo, Sérgio,

Eduardo, Marta e Romy. Ao Jorge mais uma vez minha gratidão pela

ajuda de última hora na revisão do texto.

Outros grandes amigos ouviram e entenderam minhas dúvidas

e angústia, principalmente na fase final. Mirtes, Hélio, Guilherme e

Luíza. Odete, Salvador e Sofia. Gilberto, Mara e Isadora. A longa

amizade e convivência de nossas famílias proporcionaram momentos

de alegria e descontração. Geralmente ao redor da mesa, comendo e

bebendo.

Meus agradecimentos para Vânia e Solange que sempre me

incentivaram a continuar as pesquisas, desde a época de bolsista no

Museu Paulista da USP.

Aos colegas da disciplina cursada na pós-graduação da

professora doutora Esmeralda Blanco Moura, entre eles Joana

Monteleone pela troca de idéias sobre história da alimentação.

5

A participação na banca do exame de qualificação das

professoras doutoras Heloísa Barbuy e Maria Cristina Wissenbach foi

de extrema importância para o desenvolvimento do trabalho.

Para meu orientador Ulpiano T. Bezerra de Meneses, os

agradecimentos vão além da orientação acadêmica. Minha admiração

vem desde meu primeiro dia no curso de História Antiga ministrado

por ele na graduação. Ao longo dos anos essa admiração aumentou e

misturou-se com o orgulho de ter sido aceito como seu orientando no

mestrado. Além de toda a sua reconhecida competência e

brilhantismo como historiador e professor, tive a oportunidade de

conhecer uma pessoa amiga e solidária. No último ano, entre tantos

problemas que enfrentei, ele sempre esteve presente, como

orientador firme e amigo compreensível. Preocupou-se comigo e com

minha família. Compreendeu minhas limitações e dificuldades, e ficou

comigo até o fim. Minha gratidão e dívida com ele são eternas.

Tânia mais uma vez foi mais do que companheira. Depois de

tantos anos de amor e convivência, acostumou-se a ouvir minhas

dúvidas, suportar minhas chatices e evitar que o desânimo tomasse

conta de mim. Como se não bastasse dividir-se entre as atividades de

mãe, esposa e historiadora, ajudou-me o tempo todo. Além de sua

própria pesquisa e atividade profissional, encontrou tempo para ler e

corrigir meus textos. No meio do caminho, para alegrar nossa vida

chegou nosso filho Felipe. Nos vários momentos em que pensei em

desistir de tudo, a simples presença dele era suficiente para que eu

me sentisse feliz e revigorado. O que esse trabalho tiver de bom eu

dedico aos dois.

6

SUMÁRIO

Introdução.........................................................................9

Capítulo 1

ORGANIZAÇÃO DO ABASTECIMENTO ALIMENTAR............ 29

1.1 Produção de alimentos....................................................30

1.2 O comércio de alimentos nas ruas....................................44

1.3 Centralização do abastecimento: mercados e matadouro.....58

Capítulo 2

ALIMENTAÇÃO NAS RUAS..................................................77

2.1 Cardápio da casa e da rua...............................................78

2.2 Tabernas e botequins....................................................111

2.3 Quitandeiras.................................................................121

Capítulo 3

NOVOS HÁBITOS ALIMENTARES......................................139

3.1 Higiene e novos alimentos..............................................140

3.2 Restaurantes, cafés e confeitarias...................................167

3.3 Imigrantes e quiosques..................................................186

3.4 Desmonte do comércio de alimentos nas ruas...................198

7

ANEXOS...........................................................................214

Fontes..............................................................................215

Bibliografia........................................................................226

8

Introdução

9

Objetivos

O objetivo deste trabalho é discutir a alimentação de rua na

cidade de São Paulo no período entre 1828 e 1900. Quando falamos

de alimentação de rua, estamos nos referindo de modo geral às

variadas formas de comer fora de casa (restaurantes, cafés,

confeitarias, botequins, etc.). No entanto, nossa atenção está

concentrada especificamente na alimentação consumida na própria

rua, que tem o tabuleiro das quitandeiras (e posteriormente os

vendedores ambulantes) como o principal foco dessa atividade. Por

certo, para adequadamente situar a alimentação de rua propriamente

dita, as demais modalidades terão que ser referenciadas.

As chamadas “cozinhas de rua” tiveram um papel importante

em várias sociedades e épocas, constituindo uma das principais

formas de comércio de refeições, principalmente nos centros urbanos

pós industriais (Pitte 1998: 751-762). Por outro lado foram encaradas

como uma opção precária (e muitas vezes “perigosa”) voltada para

determinadas faixas sociais em trânsito ou trabalhando pelas ruas.

O período escolhido concentra uma gama variada de

transformações da cidade de São Paulo que podem ajudar a

compreender as modificações na alimentação e em retorno são

passíveis de melhor compreensão. A história da alimentação pode ser

tratada, assim, como mais uma plataforma para a compreensão

desse importante momento histórico, quando São Paulo passou de

uma acanhada cidade com população de 21.933 pessoas em 1836

para 239.820 pessoas em 1900. Nosso intuito é compreender as

relações entre a comida de rua e a própria cidade. A alimentação é

considerada uma faixa de fenômenos mais conservadora, onde as

10

mudanças seriam mais resistentes e lentas. Nosso objetivo é verificar

como essas transformações ocorreram, relacionando alimentação e

mudanças urbanas.

A historiografia recente sobre a história de São Paulo (que

mencionamos adiante) tem explorado esse período a partir das mais

variadas abordagens de estudo: escravidão, imigração, urbanismo,

economia, cultura, etc. Geralmente esses estudos apontam a rapidez

e grande escala das transformações verificadas no ambiente urbano.

Também no ambiente doméstico, mais resistente, seria possível

perceber todo esse processo, principalmente quando enfocamos a

emergência de novas formas de energia e o estabelecimento de redes

de gás e eletricidade interligando casa e espaço urbano.

Em meio a esse campo tão movediço, nosso intuito é tratar

especificamente da alimentação de rua, entendida não apenas do

ponto de vista locacional (na rua), mas, sobretudo, a partir de

elementos que a caracterizariam como uma atividade profundamente

relacionada com o espaço público e respectivas formas de

sociabilidade, condicionando cardápio, ingredientes, formas de

preparo, etc. Para isso será necessário caracterizar não apenas o que

era essa cozinha de rua, mas também discutir os vários elementos

envolvidos nessa atividade como vendedores, consumidores, poder

público e também questões associadas, como gosto, hábitos e suas

transformações.

Ainda que o tema deste trabalho esteja circunscrito à cidade de

São Paulo, em vários momentos foi necessário tratar também da

Província como um todo (Estado a partir de 1889). Questões como o

abastecimento implicam uma abordagem que leve em conta aspectos

da província interligada com a cidade de São Paulo.

Recortes cronológicos

11

A alimentação de rua em São Paulo remonta aos primeiros

séculos de história, com a presença de quitandeiras nesse tipo de

comércio já no século XVIII (Miranda 2002: 54). Apesar disso,

optamos por estabelecer o ano de 1828 como marco inicial de nosso

trabalho, que pretende enfocar especificamente o processo de

transformação da venda de alimentos nas ruas. Apesar de vários

embates anteriores entre autoridades e quitandeiras, foi a partir de

1828 que os conflitos recrudesceram. Nesse ano as Câmaras

Municipais foram transformadas em corporações administrativas,

tendo retiradas suas funções militares, de polícia e de justiça,

subordinando-se à Assembléia Provincial e aos presidentes de

Província (Glezer 2007: 84). Pela Constituição Imperial de 1824, as

Câmaras assumiam definitivamente o papel de gestão das cidades. A

Lei Imperial de 1828 definia a atribuição das Câmaras, inclusive em

relação à alimentação e abastecimento.1 As atribuições da Câmara

ressaltam o papel do poder público na regulamentação e fiscalização

do comércio de alimentos, que aparecerá de forma permanente e

atuante (ainda que com restrições) no decorrer do século XIX.

Também podemos acrescentar outro marco importante desse

período, que foi a fundação da Faculdade de Direito no Largo São

Francisco. Vários autores ressaltaram a importância do curso jurídico

estabelecido em 18272. Para o historiador Richard Morse (1950: 46),

a Academia de Direito e os estrangeiros seriam um dos principais

catalisadores do processo de transformação da cidade no século XIX,

antes do impulso da riqueza do café. A presença destes elementos

teria propiciado uma cosmopolitização com o surgimento de hotéis e

restaurantes. Ernani Bruno (1991: 807) destaca igualmente a

chegada de numerosos estudantes, que teria dado ao pequeno burgo 1 Lei Imperial de 1 de outubro de 1828. Collecção das leis do Império do Brasil, 1878. 2 Sobre a história da Academia de Direito ver Martins & Barbuy (1998).

12

provinciano a característica de centro intelectual e contribuído para

alterar profundamente sua existência, a ponto de o autor nomear o

período entre 1827 e 1872 como “burgo de estudantes”. A Academia

de Direito certamente representou um elemento novo, mas alguns

autores apontam que já na primeira metade do século XIX a cidade

de São Paulo apresentava uma crescente dinamização devido ao

desenvolvimento de uma economia de abastecimento alimentício

voltada para o mercado interno (Moura 2005).

Dessa forma, consideramos que esses dois fatores – papel do

poder público e fundação da Academia de Direito – são fundamentais

para definir o quadro e justificar a escolha de 1828, como marco

inicial, para entendermos o processo de modificações do comércio de

alimentos nas ruas de São Paulo.

Esse marco representa, assim, um ponto de inflexão para as

mudanças que se acentuariam no final do século XIX. A partir de

1872, durante o governo de João Theodoro, várias modificações

urbanísticas e normativas ocorreram na cidade. Nesse processo, a

venda de alimentos em tabuleiros foi sendo crescentemente

cerceada. Esse período foi decisivo para as transformações,

notadamente a atuação do poder público municipal, como aponta

Eudes Campos Jr. (1997: 581):

“Durante muito tempo predominaram a desorganização da

Câmara Municipal paulistana e só no último terço do século

XIX é que a Edilidade teve condições de assumir com mais

seriedade o seu papel de orientadora, disciplinadora e

fiscalizadora da política e economia urbana da Capital.”

Essa situação se acentuaria com a aprovação do Código de

Posturas de 1875 que regulava o comércio e, como contraponto, com

13

as petições feitas pelas quitandeiras para continuar a trabalhar no

centro em 1876. Esse foi um período crucial que apresentou um

maior cerceamento às atividades das quitandeiras, ao mesmo tempo

em que se multiplicavam novas modalidades de comércio:

restaurantes, cafés, confeitarias, assim como hábitos alimentares

ligados aos imigrantes, produtos industrializados e importados, além

dos novos cardápios.

No início do século XX a região central da cidade, principal local

das atividades de venda de alimentos, estaria completamente

transformada, pouco lembrando aquela cidade com quitandeiras

circulando e estacionando pelas ruas e largos acanhados. O antigo

largo do Rosário, um dos principais pontos de concentração de

quitandeiras, tornou-se o símbolo dessas transformações. A partir de

1901 a rua 15 de Novembro (antiga rua da Imperatriz), considerada

a mais elegante da cidade, foi alargada. O largo do Rosário,

rebatizado como praça Antonio Prado, foi ampliado e regularizado. A

Igreja do Rosário dos Homens Pretos foi demolida em 1904 e

transferida para o largo do Paisandu, fora, portanto, do triângulo de

comércio elegante da cidade. Simbolicamente a presença das

quitandeiras vendendo alimentos pelas ruas chegava ao fim. A Praça

Antonio Prado passava a ser o coração da vida social e empresarial

de São Paulo. Assim, parece pertinente colocar o marco final de

nossa temática no limiar do século XX.

Avaliação das fontes

O principal conjunto de fontes3 para esse trabalho constitui-se

de relatos de viajantes, memorialistas e cronistas. De um modo geral

este tipo de fonte tem um forte caráter subjetivo, ainda que forneça

3 As fontes se encontram listada no Anexo, p. 215-226.

14

muitas informações empíricas sobre aspectos cotidianos da cidade,

principalmente no final do século XIX. Em relação à alimentação há

poucas menções neste tipo de relato, que apresenta ainda uma

grande descontinuidade cronológica.

Três grupos de testemunhos podem ser apontados. O primeiro

grupo reúne relatos de viajantes naturalistas (ou participantes de

expedições) que estiveram na província e na cidade de São Paulo na

primeira metade do século XIX (1809 a 1824). Esse é o caso de

Johann Spix e Carl Martius, Auguste Saint-Hilaire, Luiz D’Alincourt e

Hercules Florence. Ainda que anteriores ao nosso recorte cronológico,

foram essenciais para uma caracterização geral de elementos do

cardápio da casa e de locais como os pousos. A única exceção é

Augusto Zaluar, que realizou uma viagem pela província de São Paulo

entre 1860 e 1861, registrando a refeição em um pouso nos

arredores de São Paulo. Como estrangeiros em viagem, as descrições

privilegiavam alimentos que se distinguiam (inclusive em relação a

outros pontos do país), como era o caso do milho e seus derivados.

Um segundo conjunto de relatos diz respeito aos memorialistas

que trataram de vários aspectos das refeições nas casas e nas ruas

em meados do século XIX. O período enfocado é um pouco mais

extenso (1830 a 1891), mas também concentrado em alguns anos.

Nesse caso os autores são, em sua maioria, egressos da Faculdade

de Direito do Largo São Francisco. Além de informações e descrições

das refeições nas pensões de estudantes, é nesse tipo de fonte que

encontramos as principais referências a alimentos vendidos nas ruas.

Nesse conjunto as memórias de Maria Paes de Barros, vinda de uma

família tradicional, constituem uma exceção. Rememorando o tempo

de sua infância na década de 1860, a autora fala sobre as refeições

de sua família, escravos e empregados, além dos tabuleiros de doces

nas ruas. Ao contrário dos viajantes, que escreveram seus relatos

15

logo após suas viagens, os memorialistas tiveram suas memórias

escritas e publicadas posteriormente, geralmente no século XX.

O terceiro grupo é formado por bacharéis em direito e

jornalistas que fizeram crônicas sobre a cidade de São Paulo,

concentrando-se nas últimas décadas do século XIX e começo do

século XX. Além de impressões sobre a vida cotidiana, muitos desses

cronistas trabalharam com a história da cidade, utilizando de relatos

de terceiros. Além das referências sobre as quitandeiras e tabuleiros,

essas obras têm como um dos principais focos o grande crescimento

urbano, com a multiplicação de estabelecimentos como os cafés,

confeitarias e restaurantes. Assim como nas obras de memorialistas,

essas crônicas foram escritas e publicadas no século XX, aparecendo

como lembranças da antiga cidade do final do século XIX e começo

do século XX (Francisco Bueno, José Luiz Almeida Nogueira, Everardo

Valim Pereira de Sousa, Cícero Marques, Jorge Americano, Antonio

Egydio Martins, Sylvio Floreal, Afonso Schmidt e Jacob Penteado).

As bebidas aparecem eventualmente nos relatos, na maioria

das vezes se trata de cachaça vendida em botequins. Ainda que

mencionemos ocasionalmente os variados tipos de bebidas, optamos

por não tratar desse tema de forma mais sistemática pela escassez

das referências que traziam pouca luz para nosso tema.

Ainda que de natureza distinta, tais relatos proporcionam um

importante rol de informações sobre os alimentos de rua no período

enfocado. Por outro lado, têm a mesma limitação: são escassos e não

cobrem cronologicamente de forma consistente nosso recorte. Essas

limitações podem ser atenuadas com o uso de outros tipos de fontes.

Ao contrário dos relatos, as Atas e Registros da Câmara e a

legislação constituem um conjunto seriado contínuo e sistemático que

16

abrange cronologicamente o período escolhido para a pesquisa. Nas

Atas é possível acompanhar os debates sobre os conflitos mediados

pela Câmara Municipal no tocante ao abastecimento e venda de

alimentos na cidade. Esse tipo de documentação é ainda mais

relevante se lembrarmos a relevância do agente público nesse

processo, principalmente a partir de 1828. Complementando as Atas,

toda a legislação produzida nesse período tem uma importância

fundamental para avaliarmos o processo de transformação normativa

das atividades comerciais nas ruas. Nesse conjunto também podemos

destacar toda a documentação produzida pela Câmara Municipal

relativa às atividades de venda e controle da alimentação:

fiscalizações, licenças, impostos, etc.

Entre a legislação, os Códigos de Posturas tiveram um papel

determinante no tocante toda a organização e fiscalização das vendas

de alimentos nas ruas, seja em tabuleiros, seja nos mercados,

botequins, cafés, restaurantes, confeitarias, etc. As primeiras

posturas foram promulgadas em 1828 e ao longo da segunda metade

do século XIX assumiram importância relevante. Por intermédio das

posturas podemos avaliar a evolução desse tipo de legislação que

procurava organizar o comércio de alimentos.

O Código de Posturas de 1875 (e sua revisão em 18864) é um

marco, com vários capítulos tratando da alimentação, seja em sua

organização comercial, seja no controle sanitário. Outra codificação

importante é o Código Sanitário de 1894 que trata especificamente

4 Em 1875 foi aprovado o Código de Posturas do Município de São Paulo. O chamado Código de 1886 seria na verdade uma recodificação, dispensando a necessidade de solicitação de aprovação provisória à presidência da província. Foi aceito pela Câmara em 6 de outubro de 1886 e entrou em vigor, incorporando posturas aprovadas após 1875. A esse respeito ver Eudes Campos Júnior (1997: 605).

17

da alimentação pública, dedicando capítulos específicos para os

mercados, matadouro e os restaurantes.

A produção na imprensa constitui outro grupo importante de

fonte para o estudo da alimentação de rua. Referências sobre os

conflitos do comércio de rua, além de reclamações e anúncios de

estabelecimentos comerciais são constantes nos jornais. Para isso,

selecionamos os principais diários da cidade que começa com a

publicação do Correio Paulistano em 1854. Já em seu primeiro ano

esse jornal apresenta reclamações de leitores dos primeiros

restaurantes da cidade, além de anúncios que seguem até o final do

século XIX. Outros jornais como o Diário de São Paulo (1870-1875),

A Província de São Paulo (1875-1889), depois O Estado de São Paulo

(1889-1900) são importantes para avaliar repercussões dos embates

entre quitandeiras e agente público, além de novos estabelecimentos

como os restaurantes, cafés e confeitarias. O semanário Cabrião

(1866-1867) com um perfil diferente dos diários, também possibilita

informações sobre o tema, principalmente a construção do Mercado

Central em 1867. Por intermédio de ilustrações e observações

humorísticas, o Cabrião tratou da polêmica da construção desse

mercado, presente também (com outro enfoque) nos diários da

cidade.

Complementando, os almanaques literários e comerciais

publicados nesse período também possibilitam importantes

informações, principalmente sobre os estabelecimentos de venda de

alimentos. Os almanaques comerciais faziam levantamentos anuais

sobre a quantidade e localização de restaurantes, botequins,

armazéns, etc.

De forma mais esparsa, utilizaremos também obras literárias

como a de Monteiro Lobato (1946), que tratou de temas ligados à

18

alimentação. Os manuais domésticos de Júlia Lopes de Almeida

(1905, 1906) também são de grande interesse na discussão de

assuntos ligados às conveniências da culinária na educação doméstica

no início do século XX.

As estatísticas de produção de gêneros alimentícios são

essenciais para o estudo do abastecimento. Como não fizemos um

estudo aprofundado desse tema, tratando apenas na medida em que

pudesse esclarecer questões relacionadas ao cardápio, utilizamos os

dados apresentados por Daniel Muller em 1836.5 Os registros

compilados por Muller são bastante utilizados em várias obras que

tratam da produção de gêneros alimentícios na Província de São

Paulo no século XIX. A Reconstituição da Memória Estatística da

Grande São Paulo e Memória Urbana da Grande São Paulo até 1940,

organizadas pela Emplasa, são importantes instrumentos estatísticos

com dados econômicos e demográficos da cidade e estado de São

Paulo no período.

A iconografia tem-se tornado uma importante fonte para os

estudos sobre a cidade de São Paulo. No entanto, em relação à

alimentação sua presença e utilidade são reduzidas, embora seja

possível encontrar algumas imagens, geralmente das casinhas,

mercados, restaurantes, cafés, confeitarias e quiosques. São fotos de

final do século XIX e início do século XX que retratam o cotidiano e as

transformações da cidade, enfocando alguns estabelecimentos de

venda de alimentos. Quanto às quitandeiras, há poucas referências,

como uma gravura das quitandeiras de peixe na escadaria do Carmo

em 1854 publicada em 1905 (Martin 1905). O fotógrafo Vincenzo

Pastore retratou alguns aspectos dessas atividades nas ruas no início

do século XX, principalmente de ambulantes. Contudo, consideramos

5 Daniel Muller. Ensaio d'um quadro estatístico da província de São Paulo: ordenado pelas leis provinciais de 11 de abril de 1836.

19

que, apesar da importância das imagens, não era possível selecionar

um conjunto específico que efetivamente ajudasse a esclarecer os

principais aspectos de nossa temática.

Avaliação historiográfica

Alimentação no Brasil

A historiografia sobre a alimentação no Brasil vem crescendo,

mas ainda é muito restrita6. Os estudos históricos mencionam

eventualmente o problema dessa temática, ainda que apenas como

apêndice. Esses trabalhos estariam, assim, dispersos em obras gerais

sobre outros assuntos, como cotidiano, economia, etc. Apesar de a

alimentação de rua estar praticamente ausente nessas obras,

encontramos vários temas correlatos. Apenas os estudos que

manifestaram tal utilidade serão lembrados.

De um modo geral o grande destaque é a obra do folclorista

Luís da Câmara Cascudo, várias sobre alimentação no Brasil.

“Antologia da alimentação no Brasil” (1977) compila textos dos mais

variados tipos (crônicas, literatura e outros estudos). Mas a grande

obra de Câmara Cascudo é sua “História da alimentação no Brasil”

(1967). Utilizando fontes históricas e etnográficas, o autor

desenvolve um amplo panorama da alimentação no Brasil, abordando

os cardápios indígena, africano e português. Sua caracterização de

elementos constitutivos destas cozinhas é de suma importância para

qualquer estudo sobre o tema, sobretudo nos primeiros séculos da

história brasileira. Na segunda parte, trata da constituição da cozinha

brasileira, explorando temas como superstições, técnicas culinárias e

caracterização dos elementos básicos da alimentação do brasileiro.

6 Para uma análise da historiografia da alimentação, ver Meneses & Carneiro (1997: 9-91)

20

Trata-se de uma obra importantíssima de referência sobre o tema no

Brasil, a despeito de qualquer crítica em relação ao esforço

sociológico empreendido pelo autor para explicar de maneira ampla o

que seria a alimentação do povo brasileiro.

Dentre os autores clássicos da historiografia brasileira, outro

que merece atenção por tratar de temas da alimentação em suas

obras é o sociólogo Gilberto Freyre. Tratando do Nordeste escreveu

Açúcar em 1939, destacando seu papel na sociedade colonial

nordestina. O que o autor chama de “sacarocracia” brasileira definiria

um dos mecanismos de miscigenação do povo brasileiro juntando

paladares diversos (açúcar, doces portugueses, frutas, etc.) de

diversas etnias (portugueses, africanos, indígenas, etc.). Além disso,

em Casa Grande e Senzala aborda a questão dos doces presentes nos

tabuleiros de quitandeiras.

Em uma tentativa de definir um padrão da alimentação

brasileira no período colonial, o livro “Feijão, farinha e carne seca” de

Paula Pinto e Silva (2005), dedica um capítulo às especificidades da

alimentação em São Paulo. Utilizando basicamente os relatos de

viajantes, a autora reafirma a presença do tripé feijão, farinha e

carne seca, definindo o milho como principal produto da região no

lugar da mandioca.

Outros estudos sobre alimentação vem seguindo uma discussão

mais regionalizada, ressaltando problemas relacionados à constituição

da alimentação em determinadas regiões, muitas vezes associadas

com a questão da identidade. Entre elas, os estudos sobre a

alimentação mineira são de grande interesse para nossa pesquisa, na

medida em que há uma proximidade entre determinados aspectos da

alimentação paulista (Eduardo Frieiro, Mônica Abdala e Maria Stella L.

Christo).

21

Em relação à alimentação de rua, as quitandeiras tiveram um

papel central como principais agentes de venda nos tabuleiros. Elas

mereceram uma série de estudos tendo em vista o problema da

escravidão urbana e a atividade de vendas nas principais cidades

brasileiras. Apesar de não tratarem especificamente de questões

diretamente relacionadas aos alimentos vendidos, traçam um

importante painel deste tipo de atividade, com eventuais referências.

A historiografia sobre as quitandeiras abrange as principais cidades

brasileiras, que podem ser bastante úteis na comparação com o caso

de São Paulo que estudamos.

A cidade de Salvador teve uma forte presença de escravas e

libertas no comércio de rua durante o século XIX. O contingente de

escravos vindos da África Ocidental era muito grande. Vários autores

trataram dessa questão enfatizando a importância das negras e

forras na organização do pequeno comércio (Vilhena 1969; Reis

1987) ou ressaltando a questão de gênero (Soares 1996). Mesmo em

obras gerais sobre escravidão, como a de Kátia Mattoso (1988)

encontramos várias referências sobre a organização do trabalho das

quitandeiras em Salvador. A forte influência africana era percebida,

também, no tipo de alimento vendido nas ruas da cidade: carurus,

vatapás, acaçá, acarajé, bobó, etc. O uso do óleo de dendê, coco, e a

associação às religiões de origem africana nas comidas de rua

denotam essa grande influência da origem africana.7

Vários estudos recentes enfocam a importância das

quitandeiras no comércio de rua no Rio de Janeiro no século XIX. A

7 Para Câmara Cascudo (2004: 824, 825) uma concentração negra mais homogênea na cidade de Salvador teria possibilitado o desenvolvimento de uma culinária mais ligada às tradições africanas. Em torno dos candomblés, do culto jejê-nagô, a cozinha teria mantido elementos primários de coesão e sobrevivência dessas comunidades. As comidas associadas aos cultos de origem africana teriam permanecido nas ruas de Salvador.

22

cidade recebeu nesse período grandes contingentes de escravos

vindos da África Oriental (Moçambique), mas em relação ao comércio

de rua, a presença de escravos minas vindo de Salvador teve uma

importância acentuada. Mesmo sendo numericamente pouco

representativas no contingente total de escravos, os minas

praticamente dominavam o comércio de rua. Segundo Carlos Eugênio

Soares (2001: 408, 409) “escravos às centenas foram vendidos por

seus senhores baianos, temerosos da então chamada ‘índole rebelde’

dos minas.” Essa forte presença e a organização do trabalho das

quitandeiras escravas e forras nas ruas, foram objeto de alguns

estudos (Soares 2001 e 2005; Silva 1988). Mesmo em obras que

tratam de outros temas relativos à escravidão, é possível verificar

essa discussão sobre o comércio de rua através do sistema de ganho

(Algranti 1988; Soares 1988; Karasch 2000).

As quitandeiras também tiveram um papel importante na

sociedade mineira durante o período da mineração. Essa região, que

se distinguia por contar com uma organização tipicamente urbana,

também apresentava as mesmas características de cidades como

Salvador e Rio de Janeiro no tocante À escravidão urbana. Esse

quadro foi analisado por vários autores, que também destacaram a

importância das escravas e forras no comércio de tabuleiros. Esse é o

caso da obra de Luciano Figueiredo (1984, 1985 e 1993) e Liana Reis

(1989), que concentram-se na questão do gênero, ou no livro de

Laura de Mello e Souza (1982) que, ao discutir os “desclassificados

do ouro” no quadro da mineração, identifica a relevância do comércio

feito pelas quitandeiras nesse contexto.

Na bibliografia sobre o tema não existem muitas referências

sobre os alimentos vendidos, apenas rápidas menções aos quitutes e

principalmente à aguardente. Tratava-se geralmente de petiscos,

comidas feitas e consumidas rapidamente em um contexto de

23

precariedade. O abastecimento alimentício da zona de mineração

ainda estava muito ligado a determinados aspectos alimentares

advindo dos paulistas desde o século XVIII (Frieiro 1982: 28). A

decadência das minas e a conseqüente ruralização de Minas Gerais no

século XIX mudou o panorama da alimentação mineira.

Selma Pantoja (1998) reforça as similaridades do trabalho das

quitandeiras nos principais centros urbanos durante o século XIX,

colocando em um quadro mais amplo, denominada de “dimensão

atlântica”. Esse enfoque sugere também similaridades dos alimentos

nas cidades brasileiras e africanas, onde o comércio de tabuleiros era

essencial. Esse quadro deve ser útil para comparações com o caso de

São Paulo.

Alimentação em São Paulo

Não existem até o momento trabalhos que tratem

especificamente da alimentação de rua na cidade de São Paulo. Assim

como no caso das fontes, a historiografia sobre o tema em São Paulo

está dispersa em obras que tratam de outros temas relacionados,

deixando essa questão em segundo plano.

Outras obras tratam de alguns assuntos relacionados

diretamente com a alimentação em São Paulo (ainda que não seja o

foco principal), possibilitando pistas e um maior diálogo sobre alguns

elementos da dieta paulista nesse período. Sérgio Buarque de

Holanda (1994) dedicou um capítulo de seu livro “Caminhos e

fronteiras” ao papel do milho em São Paulo no período colonial e

outro sobre as chamadas ‘iguarias de bugre’, também importantes

nos primeiros séculos. Intitulado “Civilização do milho”, o primeiro

trata da adoção do milho e sua farinha na dieta dos paulistas e seu

24

papel em uma sociedade em constante movimento pelo sertão. As

informações do autor são de grande importância na medida em que o

milho permanecerá uma das bases da alimentação paulista, inclusive

nas comidas de rua, vendidas na cidade no século XIX. No segundo, o

autor trata de outro componente importante da dieta paulista, o uso

de alimentos silvestres como içá, bicho de taquara e assemelhados. A

longevidade desses hábitos alimentares chega ao século XIX quando

içás eram vendidas em tabuleiros pelas ruas de São Paulo. A caça e

coleta indígenas exerceram importante papel na sobrevivência e

complemento alimentar que chegou até a virada do século XIX para o

século XX.

A recente historiografia paulista tem trabalhado com vários

temas sociais e culturais que eventualmente enfocam a alimentação e

outros assuntos importantes para nossa pesquisa. Constituídas, em

sua maioria, de teses de doutorado sobre São Paulo no período

imperial e republicano, essas obras são essenciais para desenhar um

quadro da alimentação fora de casa no período. Maria Inês Borges

Pinto (1994) aborda a formação de um mercado de trabalho livre e

informal composto de imigrantes e ex-escravos. Marisa Daecto

(2002) estuda o momento de transformação acelerada de São Paulo,

relacionando comércio e vida urbana a partir de 1889. Maria Luísa

Oliveira (2005) enfoca as transformações das relações urbanas e

sociais a partir de espaços como os armazéns. Fraya Frehse (2005)

centra sua análise na figura do “transeunte”, enfocando as

transformações a partir do espaço da rua. Denise Moura analisa a

história da cidade de São Paulo na primeira metade do século XIX na

perspectiva do movimento, caracterizando as relações econômicas e

sociais de vários grupos urbanos. Heloísa Barbuy (2006) enfoca

especificamente a região do Triângulo, em sua dimensão espacial,

mas também desvendando os processos econômicos e sociais que

marcaram as transformações da cidade.

25

Outros trabalhos acadêmicos têm tratado de temas relativos ao

abastecimento da cidade de São Paulo no século XIX. A dissertação

de mestrado em História de Sílvia Lins (2003) aborda o período de

transição entre as tropas de muares e a instalação da ferrovia nos

arredores de São Paulo, que tiveram um papel importante no

abastecimento durante todo o século XIX. O desenvolvimento de uma

agricultura de subsistência e a movimentação de tropas de comércio,

que tinham a cidade como entroncamento, foram essenciais para a

conformação da região.

A tese de doutorado de Francisco Alves da Silva (2003) também

trabalha com o abastecimento da cidade ao longo do século XIX,

principalmente a agricultura de subsistência, usando basicamente a

documentação das barreiras. Além de um quadro informativo

importante sobre a produção de gêneros alimentícios na província de

São Paulo, no capítulo final o historiador trata de alguns temas

referentes aos hábitos alimentares e dieta dos paulistas no período.

Enfocando período anterior, entre 1750 e 1850, o livro “Evolução da

sociedade e economia escravista de São Paulo” de Francisco Luna e

Herbert Klein (2005), trata de vários aspectos da economia agrícola

da província de São Paulo, especialmente da produção de gêneros

alimentícios para subsistência e para o mercado interno.

Complementando as informações sobre abastecimento, alguns

trabalhos voltados para questões urbanísticas tratam de temas como

mercado, matadouros e ações sanitárias que influenciaram

decisivamente o comércio de alimentos (Aldaísa Sposatti 1985;

Raquel Rolnik 1997; Sênia Bastos 2001; Candido Malta Campos

2002; Carolina Giordano 2006).

26

Assim como indicamos no caso da alimentação brasileira,

também em São Paulo os estudos sobre quitandeiras (em um quadro

mais amplo da escravidão) são essenciais para avaliar a importância

do comércio de tabuleiros nas ruas, do qual elas eram os principais

agentes.

A historiadora Maria Odila Dias (1985) tem um artigo sobre as

escravas que vendiam alimentos nas ruas de São Paulo no século XIX

e, sobretudo, o livro Quotidiano e poder. Nesse trabalho, ela discute o

papel das mulheres pobres (escravas, forras e brancas). A venda de

alimentos nas ruas era quase toda feita por essas mulheres.

Analisando a conjuntura do que chama de “urbanização incipiente”, a

historiadora traça um importante quadro das modificações urbanas

durante o século XIX, e o papel dessas mulheres nos meandros da

cidade em processo de transformação. Claro que a alimentação não é

o foco da obra, mas sua análise das quitandeiras com seus tabuleiros

fornece importantes pistas e reflexões.

Considerando a importância do trabalho das escravas e forras

na venda de alimentos, existe também uma importante historiografia

sobre a escravidão em São Paulo durante o século XIX, que é

essencial para estabelecermos as conexões entre escravidão e

alimentação na cidade. Para o caso de São Paulo, uma obra

importante nessa vertente é Sonhos africanos e vivências ladinas de

Maria Cristina Wissenbach (1998). A historiadora faz uma análise dos

modos de vida e formas de sobrevivência de escravos, forros e

pobres em São Paulo e arredores em meados do século XIX, inclusive

na venda de alimentos. Wissenbach traça um quadro da vida dessas

pessoas, além da movimentação pela área urbana e entorno da

cidade.

27

Além dessas obras, artigos, dissertações e teses relacionados

ao problema da escravidão, contribuem para esclarecer outros

aspectos relacionados ao trabalho de escravos e forros na venda de

alimentos nas ruas (Queiroz 1977; Rolnik 1989; Wissenbach 1997,

1998; Schwarcz 2001; Quintão 2002; Machado 2004; Bertin 2004 e

2007; Mattos 2006). São trabalhos que tratam de alforrias,

irmandades, religiosidade; trabalho, etc. Mas em todos eles é

possível encontrar discussões e referências sobre o trabalho nas ruas.

Nesse quadro onde a alimentação de rua não mereceu até o

momento nenhum tratamento específico, devemos mencionar duas

obras que, de alguma forma, enfocam aspectos importantes do tema

em São Paulo. A primeira é um artigo de Denise Bernuzzi Sant’anna

intitulado Transformações das intolerâncias alimentares em São

Paulo, 1850-1920. A autora trabalha especificamente com a

emergência de novos hábitos alimentares associados às concepções

de limpeza e o desenvolvimento do gosto pela comida industrializada.

O artigo apenas esboça essas questões que fazem parte de um

projeto que pretende acompanhar a historicidade dos hábitos

alimentares tendo em vista o confronto entre antigas intolerâncias e

novos padrões de gosto. Ainda que trate de uma pesquisa em

andamento, o artigo apresenta questões importantes e pistas sobre

essas transformações alimentares.

Outro trabalho que merece atenção é um informativo sobre

alimentação, publicado pela equipe de pesquisadores do Arquivo

Histórico Municipal Washington Luís, organizado por Maurílio José

Ribeiro e Eudes Campos Jr.. Aproveitando a documentação da

instituição, além de bibliografia sobre alimentação, apresenta

importantes informações sobre o tema, principalmente os mercados

públicos.

28

CAPÍTULO 1

ORGANIZAÇÃO DO ABASTECIMENTO

ALIMENTAR

29

1.1 Produção de alimentos

Neste capítulo procuraremos discutir como se articulava a

economia de abastecimento alimentar na província e na cidade de

São Paulo no período em questão. No contexto da produção de

alimentos de subsistência podemos ver como estava estruturada a

produção de gêneros tradicionais da alimentação paulista: milho,

como feijão, arroz, milho e carne. Além disso será esboçado um

quadro relativo aos alimentos de rua. Por fim, serão abordados

pontos questões relacionadas à infra-estrutura do abastecimento.

A produção na Província

Mesmo com o crescimento da lavoura canavieira de exportação

no século XVIII, havia um destaque da produção de gêneros

alimentícios para subsistência e para o mercado externo. No decorrer

do século XIX essa economia continuou a crescer e mantinha uma

estreita ligação com as culturas de exportação, como o café, que

substituiu o açúcar como principal produto da província. De maneira

associada, crescia a produção de milho, feijão e arroz. Cultivados em

várias regiões da província, tinham uma grande importância no

consumo interno, sendo a capital o mercado consumidor mais

importante (Luna & Klein 2005). O levantamento feito por Daniel

Muller (1978) em 1836 mostra uma grande diversificação da

produção de gêneros alimentícios na província (ver tabela 1). Na

segunda metade do século XIX, apesar da hegemonia da produção do

café para exportação, permanecia a importância da produção de

gêneros alimentícios voltados para o mercado interno da província.

Procuraremos inicialmente estabelecer um quadro geral dos principais

produtos alimentares dos paulistas.

30

Tabela 1 - Valor da produção e importância relativa dos produtos agrícolas,

Província de São Paulo, 1836. (Fonte Daniel Muller 1978).

Produtos Quantidade Preço mínimo Valor em

mil réis

Porcentagem

do valor do

produto

Café - toneladas 8.638 1.600 940.858 16,3

Açúcar - toneladas 8.287 1.180 665.647 11,6

Tabaco - toneladas 166 1.280 14.481 0,3

Algodão - toneladas 136 960 8.911 0,2

Chá - libras 788 1.600 1.261

Erva-mate toneladas 7.138 400 194.352 3,4

Aguardente-canadas 46.727 3.400 158.872 2,8

Rapadura- unidades 46.300

Feijão – toneladas 7.580 720 1.765

Milho – toneladas 93.238 640 1.974.277 34,3

Farinha de mandioca-

alqueires

89.765 640 57.450 1,0

Farinha de milho –

alqueires

2.451 720 1.765

Toucinho– toneladas 191 3.200 41.568 0,7

Suínos 69.155 5.000 345.775 6,0

Cavalos 11.399 16.000 182.384 3,2

Mulas 2.268 40.000 90.720 1,6

Bovinos 35.573 10.000 355.730 6,2

Ovinos 5.799 640 3.711 0,1

Peixe seco –

toneladas

60 3.200 12.992 0,2

Óleo de amendoim

em medidas

666 320 213

Arroz – toneladas 7.982 1.600 528.178 9,2

VALOR TOTAL 5.759.717

31

No decorrer do século XIX o mercado interno paulista começaria

a adquirir uma dinâmica própria, impulsionando a produção de

gêneros alimentícios que se expandia acompanhando o crescimento

das lavouras de café. Além de produtores próprios, os gêneros

alimentícios também eram cultivados em grande escala nas fazendas

de café, na medida em que, além da demanda local, eram utilizados

para alimentar os escravos e serviam como ração para os porcos.

Milho e farinha

Entre os principais elementos do cardápio alimentar destacava-

se o milho, vindo de uma longa trajetória de consumo na província e

cidade de São Paulo (além de regiões vizinhas). Como se viu acima,

Sérgio Buarque de Holanda (1994: 181-189) cunhou a expressão

“civilização do milho” para marcar essa importância em relação aos

paulistas no período colonial. O uso do milho pelos portugueses

obedeceria em seus primórdios à lógica de aproveitamento de

técnicas e hábitos indígenas no processo de sobrevivência e

aclimatação ao sertão. Adaptava-se perfeitamente às duras condições

de deslocamento constante pelo sertão, sendo plantado nos caminhos

para servir de posto de abastecimento nas jornadas seguintes.

O milho permaneceu com um dos principais produtos da

província e alimento importante na dieta dos paulistas. Já no século

XIX sua produção era marcada pelo grande consumo interno e

exportação para outros pontos do país. De acordo com o citado censo

de Daniel Muller, em 1836 a produção de milho atingia 93.238

toneladas contra 8.638 toneladas de café, representando cerca de um

terço do valor de toda a produção agrícola, superando os principais

produtos de exportação, o açúcar e o café (ver tabela 1, p. 30). Com

uma demanda local muito grande e cultivo fácil com safras anuais e

32

baixos investimentos, era o principal produto da província, sendo

cultivado em quase todas as regiões (Luna & Klein 2005: 122).

Apesar da ausência de outros censos para avaliarmos a

importância do milho em São Paulo na segunda metade do século

XIX, podemos afirmar que esse produto se mantinha como o principal

gênero alimentício de toda a província. Essa importância pode ser

corroborada pelos dados da movimentação do produto através de

barreiras como a de Cubatão. Francisco Alves da Silva (2003: 168-

170) fez um levantamento desses dados entre os anos de 1840 e

1877, comprovando que a maior parte da produção era destinada ao

mercado interno já que as exportações eram muito baixas em relação

ao volume produzido no período.

Um derivado importante do milho era sua farinha, sendo

fabricada em quase todas as regiões da província e até mesmo nos

arredores da cidade de São Paulo. No censo agrícola de 1836 a

produção de milho e sua farinha eram contabilizadas separadamente.

Havia também a canjica grossa, produzida com milho seco que

era quebrado no pilão para tirar o “olho”, mantendo o restante

intacto. Retirado o milho já socado, todo resíduo, película e embrião,

era separado com o auxílio de uma peneira, ficando o grão limpo. A

partir dos relatos de viajantes no início do século XIX podemos

perceber a grande importância da canjica na alimentação dos

paulistas, especialmente das camadas mais pobres. Era um tipo de

alimento associado ao fim da refeição e que não levava nenhum tipo

de condimento. Em alguns casos poderia ser complementado com

açúcar e leite, confirmando seu papel de sobremesa.8 No capítulo

8 Sobre a farinha de milho e canjica ver Sérgio Buarque de Holanda (1994: 185) e Carlos Borges Schmidt (1959).

33

sobre o cardápio da casa voltaremos a falar sobre a importância da

canjica.

Feijão

O feijão já fazia parte da dieta básica no Brasil como legado da

tradição indígena, ainda que não fosse um dos principais alimentos.9

Acostumados aos caldos grossos de cozidos, os colonizadores

portugueses viram nessa leguminosa o alimento ideal para essa

adaptação (Silva 2005: 115). No século XIX o feijão ocupava um

lugar de destaque na mesa brasileira e também na paulista. Os dados

sobre a produção na província de São Paulo comprovam essa

importância na economia e hábitos alimentares dos paulistas. Essa

cultura espalhava-se por toda a província, sendo cultivada tanto por

pequenos quanto grandes produtores, estando muitas vezes

associada ao plantio de café, açúcar e até mesmo à criação de gado

(Luna & Klein 2005: 126). Em 1836 a produção chegava a 7.580

toneladas e rivalizava com o café cuja colheita foi de 8.630 toneladas.

Entretanto, comparativamente o preço era muito baixo, com menor

participação na exportação. A maior parte era destinada ao mercado

interno (tabela 1).

Analisando os dados de movimentação de gêneros alimentícios

na barreira de Cubatão, Francisco Alves Silva (2003: 169) nota que

houve um grande crescimento da produção de feijão entre 1835 e

1848 e um declínio na segunda metade do século XIX. Esse

decréscimo teria sido provocado pela hegemonia do setor cafeeiro

que teria redirecionado a produção de subsistência para o mercado

interno.

9 Referindo-se aos índios, Gaspar Barléu (1974: 132) fala sobre o cultivo nas aldeias em 1637: “Cada habitação tem ao redor seu mandiocal e seu feijoal.”

34

Arroz

Ausente nos relatos de viajantes na primeira metade do século,

aparece nas descrições de refeições nas pensões e repúblicas

estudantis em meados do século XIX. Nos mesmos moldes do feijão e

do milho, a rizicultura estava associada às fazendas produtoras de

café e açúcar, distribuindo-se por toda a província, ainda que com

uma maior concentração no litoral e Vale do Paraíba. A produção de

arroz em 1836 era equivalente à produção de feijão, mas, ao

contrário, era exportada em grandes quantidades para fora da

província. Após 1850 houve um aumento das exportações de arroz, a

despeito da crescente importância do café que se tornava o principal

produto (Silva, 2003: 112, 147, 167). Entre 1856 e 1871 a produção

de arroz cresceu de 36.813 para 101.952 alqueires, comprovando a

relevância desse gênero para a economia paulista.

Carne

Nas referências de viajantes, a carne e o toucinho aparecem

com freqüência como acompanhamentos ou no preparo do feijão, por

intermédio da gordura (toucinho). Ao lado de milho, feijão e arroz, a

criação de porcos também exercia um papel importante na economia

agrícola de São Paulo no século XIX, principalmente para a obtenção

do toucinho. Os relatos de viajantes ressaltavam a importância do

toucinho na alimentação brasileira, especialmente em São Paulo e

região, sendo bastante usado para cozinhar, untar e preservar os

alimentos. Assim como a carne seca no restante do país, era o

acompanhamento predileto para o feijão e a farinha de milho em São

Paulo. Apesar de sua importância no consumo interno da província,

35

entre 1859 e 1874 o toucinho só ficaria atrás do café no quadro das

exportações paulistas (Silva 2003: 160).

A despeito de uma grande criação de porcos na cidade de

Cunha para exportação de mantas de toucinho, havia uma

disseminação da criação por pequenos produtores inclusive na cidade

de São Paulo e arredores (Luna & Klein 2005: 126;134).

A carne de vaca, verde ou salgada, tinha uma grande

importância na alimentação brasileira no século XIX, mas em São

Paulo tinha um papel secundário, já que o abastecimento era um

problema crítico, afetado pela insuficiência de gado na província e

pelos problemas com o abate devido às dificuldades com os

matadouros e açougues. Em São Paulo criava-se gado para corte,

mas em escala muito menor que em outras regiões, como o sul do

país.

No censo de 1836 a produção de gado bovino chegava a 35.573

toneladas. Comparativamente, no mesmo censo podemos perceber a

grande importância da criação de suínos: 69.155 toneladas, acrescida

da produção de toucinho com 191 toneladas. Esses dados

comprovam a supremacia da carne de porco na dieta e na economia

da província de São Paulo no século XIX.

Em um quadro onde as exportações condicionavam o preço e

disponibilidade da carne bovina e mesmo a suína para o mercado

interno, havia outras formas de complemento alimentar,

principalmente para as camadas mais pobres da população. A dieta

paulistana era complementada pela carne de galinhas e peixes,

abundantes respectivamente nos quintais e rios da cidade, ainda que

não desfrutassem do mesmo status da carne bovina.

36

Os peixes já eram consumidos pelos indígenas que habitavam o

planalto paulista. Em meados do século XIX a atividade de pesca na

cidade e arredores era intensa, o que causava conflitos, como

podemos perceber na reclamação de pescadores das freguesias de

Santa Efigênia, Brás e do Ó contra pessoas que teriam fechado a

barra dos rios impedindo a volta dos peixes ao rio e prejudicando o

abastecimento da cidade.10 A abundância não impedia os abusos que

a Câmara tentava frequentemente evitar, regulamentando inclusive

as formas de pescaria. Havia uma antiga técnica aprendida com os

índios de utilização de plantas tóxicas (timbó ou tingui) para a

pesca.11 As diversas tentativas de regulamentação foram

sistematizadas no Código de Posturas de 1875 (consolidado em

1886) que vetava o uso de qualquer substância ou veneno na

pesca.12

Ainda que estivessem em um patamar inferior em relação à

carne bovina, os peixes de água doce tinham uma relativa

importância na dieta dos paulistanos. Ernani Bruno (1991: 137) cita

as memórias de Ferreira Resende, quando estudante da Faculdade de

Direito em meados do século XIX, que teria passado vergonha ao ser

obrigado a servir a um colega rico que o visitava um almoço sem

carne e só com peixe. Ainda assim eles estavam presentes na mesa

paulistana, principalmente na quaresma, quando seu preço dobrava.

Além do peixe fresco, havia a produção de peixe seco apontada

no censo de 1836 (tabela 1). Apesar de pequena é significativo que

apareça no censo, indicando provavelmente um tipo de produção

destinada à exportação. Ele poderia ser conservado por mais tempo

10 Atas da Câmara Municipal de São Paulo, 24 de setembro de 1848, p. 57. 11 Sérgio Buarque de Holanda (1994: 71) comenta a resolução da Câmara de São Paulo em 1598 contra a utilização de ervas venenosas na pesca em ribeirões e rios da vila. 12 Coleção de leis e posturas municipais promulgadas pela Assembléia Legislativa de São Paulo, 1875.

37

propiciando seu transporte para outros pontos do país, ao contrário

do peixe fresco.

Esses são os principais alimentos mencionados constantemente

nos relatos e com uma produção e preço relativo significativo na

economia da província. No entanto, no censo de 1836 (tabela 1)

podemos notar a menção de outros produtos, ainda que em escala e

importância menores. Entre as bebidas a erva-mate e a cachaça

tinham uma participação maior na composição do preço

percentualmente. Por outro lado a produção do chá parecia ser

insignificante.

Produção de alimentos na cidade de São Paulo e arredores

Segundo Francisco Silva (2003: 124) a necessidade de

abastecimento da população paulista teria originado uma “produção

marginal não contabilizada”, complementar ao mercado de alimentos

para exportação, tendo, no entanto, uma dinâmica própria. Tal

produção marginal não contabilizada nada mais era que a atividade

de pequenos produtores que não apareciam nos censos agrícolas nem

nas informações das barreiras. Esse tipo de produção teria

caracterizado o abastecimento da cidade de São Paulo no século XIX.

Em 1861 a Câmara Municipal de São Paulo informava o Ministério dos

Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas sobre as

atividades agrícolas da cidade:

“1. Que o principal ramo da agricultura no Município é o de

plantação de grãos e raízes alimentícias como arroz, milho,

feijão, mandioca, batata da terra e inglesa, e também algum

chá; 2. Que, além desses, cultiva-se também a cana,

especialmente a crioula de que se faz em maior escala a

38

aguardente, e em menor o açúcar e o melaço; 3. Que

apenas o Chá se destina a exportação, em muito pequena

quantidade, consumindo-se no Município, e em algumas

localidades próximas de outros municípios os demais

produtos; (...) 7. Finalmente – Que a Câmara Municipal

nada pode informar sobre o valor dos produtos, e sobre a

população que se emprega na agricultura ...”13

Claramente podemos perceber que as atividades agrícolas na

cidade eram de pequena monta. Além de não especificar o local e

tamanho da produção, a Câmara não teria dados sequer sobre o

número de pessoas envolvidas. Era um tipo de atividade feita em

pequenas unidades (chácaras), com participação apenas da família ou

com pequeno plantel de escravos (geralmente apenas um). Os

principais gêneros de subsistência produzidos na província também

eram cultivados na cidade: arroz, milho e feijão. Mas nesse caso

estavam voltados para o consumo interno, sendo consumidos

localmente e em municípios vizinhos. O contrário também acontecia,

sendo constante a presença de pequenos produtores vindos das

chácaras localizadas nos arredores e também de municípios vizinhos.

Relatos de memorialistas e discussões nas atas da Câmara

mencionam o grande número de roceiros que circulavam pela cidade

oferecendo seus produtos. O memorialista Francisco Bueno (1976:

25) menciona em seu relato a presença constante de caipiras (ou

matutos) que chegavam à cidade com seus cargueiros vindos de

sítios circunvizinhos, em 1840.

Apesar da importância da capital como principal mercado

consumidor provincial, uma parte considerável dos gêneros

alimentícios produzidos na província era exportada para outras

regiões do país. Dessa forma, os arredores com um grande número

13 Atas da Câmara, 19 de dezembro de 1861, p. 235, 236.

39

de chácaras e pequenas cidades vizinhas, acabavam por destinar

parte de sua produção para atender à demanda local. Ainda que fosse

uma produção pequena em relação ao que era obtido na província,

tinha uma grande importância no setor de abastecimento da cidade,

forjando um mercado composto de pequenos produtores e

vendedores que circulavam na área urbana oferecendo gêneros

básicos no varejo.

Mas apesar disso, a organização do abastecimento na cidade

era crítica. São Paulo tinha se tornado um importante entroncamento

comercial, decisivo no desenvolvimento de toda a região. Se o

crescimento na primeira metade do século XIX ainda era pequeno, o

movimento era relevante, propiciando uma economia de retaguarda

ligada aos negócios do açúcar, café, animais e gêneros alimentícios

(Moura 2005: 46, 47). A cidade era o centro de artérias viárias que

ligavam várias regiões do país. Segundo Caio Prado Jr.(1983: 26,

27), “combinam-se de tal forma rede hidrográfica e relevo, ambos

determinantes da expansão demográfica paulista, para darem a São

Paulo a primazia do povoamento do planalto.” Se a localização do

núcleo inicial da capital demonstrava um isolamento necessário para

sua defesa, seu desenvolvimento esteve ligado à sua localização na

boca do sertão. Em meados do século XIX, com o crescimento

urbano, os caminhos para vários pontos da província e do país

articulavam as entradas da cidade, local onde se concentravam os

pousos para as tropas de abastecimento em trânsito.

No mapa de São Paulo confeccionado por Affonso de Freitas em

1874, podemos perceber esse feixe de caminhos e o cinturão de

chácaras e campos em torno da cidade. Era nesses locais que os

viajantes e tropeiros paravam e pernoitavam com suas tropas antes

de entrar na cidade para o comércio. A ponte do Lorena, perto do

Piques, era uma dessas entradas a oeste. Localizada próxima aos

40

Mapa da cidade de São Paulo- 1874 (Fonte: Freitas 1978: 35).

41

campos do Bexiga, era um importante pouso de tropeiros que

chegavam com suas tropas trazendo mantimentos. Na entrada norte

quem vinha dos campos da Luz entrava pela ponte da Constituição

que cruzava o rio Anhangabaú próximo de sua confluência com o rio

Tamanduateí. No lado leste havia a ponte do Ferrão, que cruzava o

mesmo rio, entrando pelo largo do Carmo. Antes dessa ponte, havia

campos na região do Brás, onde também existia um pouso de

tropeiros. Na parte sul ficava outro pouso localizado no Lavapés, uma

das entradas para quem vinha de Santos pelo caminho do mar. Essas

eram as principais entradas da cidade, onde se concentravam

tropeiros e caipiras que traziam gêneros alimentícios para negociar na

cidade (Lins 2003: 58). Por isso mesmo, eram um ponto de controle

visado pelas autoridades. Definia-se, assim, claramente a fronteira da

cidade através de suas pontes e entradas que tentavam demarcar a

separação entre rural e urbano.

Os antigos caminhos e a movimentação das tropas começaram

a entrar em decadência com as estradas de ferro. Em 1867 foi

inaugurada a São Paulo Railway, que ligava Santos a Jundiaí,

passando por São Paulo. Com a Sorocabana e, principalmente a

Central do Brasil em 1877, que ligava São Paulo ao Rio de Janeiro, a

cidade se transformava no pólo mais importante desse sistema de

transporte (Campos 2002: 44). Os antigos caminhos e entradas

passavam a ser substituídos pelas estradas de ferro.

Os antigos pousos instalados nas chácaras que ficavam nas

entradas foram desaparecendo com a integração ao centro urbano

que começava a ultrapassar os limites do Triângulo. O crescimento da

cidade e sua população levaram ao retalhamento dessas chácaras e

campos para a formação de novas ruas e loteamentos (Bruno 1991:

555, 556). Essa nova espacialidade afetaria diretamente o comércio

42

de alimentos, lentamente deslocado para fora dos limites do

Triângulo.

43

1.2 O comércio de alimentos nas ruas

O Papel da Câmara na organização do comércio

O principal responsável pelo setor de abastecimento da cidade

era a Câmara Municipal. No decorrer do século XVIII a Câmara

adquire uma maior autonomia em um processo onde a própria cidade

passa a definir melhor a idéia de urbano. Alguns marcos urbanos

começam a ser demarcados nesse período, mas será no século XIX

que a idéia de separação entre urbano e rural marcará

definitivamente a ação da Câmara municipal, responsável pela

ordenação urbana da cidade, com obras de alinhamento, distribuição

de terras, posturas, etc. Eram os vereadores que discutiam e

implementavam as propostas de Posturas que visavam definir os

limites e as atividades urbanas (Silva 1984: 113, 114).

As discussões na Câmara sobre a organização dos serviços de

abastecimento e venda de alimentos inserem-se nessa temática.

Entre as atribuições das câmaras municipais estava a fixação do

preço dos alimentos e a regulamentação do comércio. Para esse fim

dispunham de funcionários como os almotacés, responsáveis pela

fiscalização do mercado. Ao longo do século XIX um dos principais

instrumentos para o controle do abastecimento alimentar foram as

posturas municipais, que tinham como objetivo um maior controle

das atividades urbanas, entre elas a do abastecimento.

O comércio de abastecimento alimentício era fortemente

controlado pela Câmara Municipal de São Paulo que destinava o

mercado das Casinhas como local de venda exclusivo para os

carregamentos de arroz, feijão e milho que chegavam à cidade. Ao

contrário de outros gêneros alimentícios considerados como miudezas

44

(verduras, frutas, peixes, etc.) esses produtos eram destinados

exclusivamente aos taberneiros que pagavam à câmara o direito de

comercializarem estes gêneros14.

Outro foco importante era o disciplinamento como forma de

organizar o espaço urbano, definindo não apenas as ruas, mas

também as atividades que teriam espaço nela. A organização de

mercados e a tentativa de delimitação de locais para a atividade

comercial era uma forma de redefinir a ocupação e a divisão da área

urbana da cidade. A proibição da criação de animais domésticos nas

ruas e praças da cidade era um indício dessa mudança. Animais como

porcos e galinhas poderiam ser comercializados na cidade, mas não

criados soltos.

As Atas da Câmara fazem referências constantes a esses

momentos de tensão com os problemas de desabastecimento na

cidade, provocados ora pela ação de atravessadores, ora pela

escassez de produtos alimentícios associada a fenômenos cíclicos

como as secas e epidemias de cólera ou pela diminuição de mão de

obra que acarretava aumento do preço de alguns gêneros.

A Câmara não tinha como enfrentar problemas estruturais de

abastecimento, mas procurava agir no varejo, tentando controlar o

pequeno comércio e também os atravessadores, ao mesmo tempo

em que buscava aumentar sua renda através de impostos e taxas.

Apesar da existência dos mercados, a ação dos atravessadores se

fazia principalmente fora do perímetro urbano, onde poderiam

abordar os agricultores que chegavam à cidade com suas cargas.

14 Registro da Câmara, XII, 12/02/1803, p. 613-616

45

O abastecimento não se resumia ao fornecimento de gêneros

produzidos em grande escala como o milho, feijão e arroz, mas

também à venda de produtos de pesca e coleta como o palmito e os

peixes, obtidos nos arredores da cidade. Claramente esse tipo de

comércio não causava prejuízos para a população, mas para a

municipalidade, que não conseguia controlar o abastecimento e

principalmente a coleta de impostos. Os comerciantes pressionavam

a Câmara para que combatesse essas atividades de varejo pelas ruas

da cidade.

A definição do que poderia ser vendido em cada tipo de

comércio não era clara. As reclamações eram feitas e a Câmara

procurava agir conforme os interesses em jogo, especialmente dos

grandes comerciantes. Uma das formas encontradas pela Câmara era

designar locais para a permanência desses vendedores na cidade.

Com o progressivo aumento da cidade e as transformações em sua

área central (Triângulo), enfrentava-se a necessidade (na visão das

autoridades) de definir locais para esse tipo de comércio fora desse

perímetro, mas localizado em pontos estratégicos nas proximidades,

principalmente nas entradas e praças da cidade. Dessa forma, em

1827 são “marcados os lugares de mercado público de comestíveis

que abastecem esta cidade nas Praças de São Gonçalo, São Bento,

São Francisco e do Carmo.”15 Até esse momento a preocupação

maior da Câmara era de organizar minimamente a venda de

alimentos procurando padronizar e estabelecer os locais para tanto. A

reorganização das Câmaras Municipais em 1828 levou a uma maior

preocupação com o comércio de abastecimento alimentício, definindo

o papel do poder público municipal:

15 Atas da Câmara, XXIV, 20/06/1827, p. 85

46

“Proverão igualmente sobre a comodidade das feiras, e

mercados, abastança, e salubridade de todos os

mantimentos, e outros objetos expostos a venda pública,

tendo balança de ver o peso, e padrões de todos os pesos, e

medidas para se regularem as aferições (...)”16

Nesse momento a preocupação maior era apenas com a

ordenação e padronização das atividades por intermédio de mercados

e feiras, considerados essenciais. A Câmara paulistana via-se

obrigada, assim, a providenciar a construção e um mercado

adequado (Campos Jr. 2007). As feiras eram lugares marcados em

determinados horários e pontos da cidade para venda de alguns

produtos, complementando o mercado das Casinhas. Prosseguindo

nas tentativas de organizar espacialmente as atividades, a Câmara

mandou:

“edificar junto aos terrenos ao lado esquerdo das descidas

das Pontes do Carmo e Acu, casinhas para a venda de peixes

e abrigo das quitandeiras e para açougues e benefício

público, o que julgar mais vantajoso do que a alienação de

tais terrenos (...)”17

Essa definição implicava uma hierarquia do próprio espaço da

cidade tendo em vista o comércio de alimentos. O barracão onde

deveria ser o mercado foi concluído, mas mostrou-se inadequado

para a atividade de venda de alimentos, sendo arrendado para outras

finalidades (Campos Jr. 2007).

16 Lei Imperial de 1 de outubro de 1828. Collecção das leis do Império do Brasil, 1878 17 Atas da Câmara, XXVIII, 25/05/1835, p. 91

47

Posturas de 1836 já determinavam o pagamento de impostos

das casas de negócio, que incluíam os tabuleiros, de acordo com a

localização:

Art. 1. As lojas de fazenda seca, seja qual for o seu gênero,

pagarão anualmente um imposto de oito mil réis na cidade

das pontes para dentro, de seis mil e quatro réis fora das

pontes e de quatro mil réis nas outras freguesias do

município.

Art. 2. As casas de negócio de molhados e outros gêneros de

mar em fora, pagarão seis mil e quatro réis na cidade das

pontes para dentro, cinco mil réis fora das pontes e nas

outras freguesias quatro mil réis.

Art. 3. As tabernas de gêneros do país onde se vendem

aguardente pagarão dentro da cidade quatro mil réis, fora

dos pontos da mesma 3$200 rs. E nas outras freguesias e

entradas dois mil e quatrocentos réis.

Art. 4. Os tabuleiros que vendem fazenda seca pelas ruas, e

as Boticas pagarão em todo o município cinco mil réis.18

A região central era o local mais visado pela fiscalização que

estabelecia as maiores taxas em relação àqueles localizados fora das

pontes e outros municípios. Era justamente nesse entorno que a

Câmara encontrava problemas em relação à ação dos atravessadores.

Chama a atenção a taxa cobrada dos tabuleiros válida para qualquer

local, maior que o que era cobrado das tabernas. A única diferença é

que a ação das quitandeiras era permitida em todo o município,

reservando o direito de se deslocarem pelas três áreas da cidade:

dentro das pontes, fora das pontes e outras freguesias. Mas ainda

que não tivessem gastos com seus tabuleiros, o imposto parecia alto

em comparação com o que era pago pelos outros comerciantes.

18 Atas da Câmara, XXIX, 19/02/1836, p. 31

48

A Postura definia claramente a fronteira entra a região central e

o resto da cidade: as pontes. As entradas da cidade (das pontes para

dentro) eram um dos principais alvos das autoridades não apenas

para controle, mas também para arrecadação de impostos. Ponto de

entrada na cidade, além de proporcionar grande concentração de

tropas em viagem e de pequenos produtores, estavam sob constante

vigilância da Câmara. As entradas pareciam ser pontos privilegiados

para controlar os mantimentos destinados à venda na área urbana,

funcionavam como uma espécie de pedágio ou alfândega onde

poderia ser efetuado algum tipo de controle do abastecimento.

Não apenas o abastecimento estava nas prerrogativas da

Câmara, mas também a fiscalização dos alimentos tendo em vista

questões de higiene e padronização. Essa organização era essencial

para fazer frente às dificuldades e crescimento da cidade. Os

problemas com a falta de dinheiro para grandes investimentos, eram

compensados por normas que procuravam redefinir o espaço urbano

e arrecadação financeira através da fiscalização das atividades

urbanas e concessões para grupos privados. Além da arrecadação

com o pagamento de taxas para serviços, como a venda de alimentos

e bebidas em armazéns, tabernas, botequins e a venda pelas ruas, a

Câmara Municipal procurava aumentar suas rendas com alguns

impostos. Em relação ao abastecimento alimentar, o mais importante

era o Imposto sobre armazéns, tabernas e botequins19. A cobrança

desse imposto gerou uma grande tensão na segunda metade do

século XIX entre a Câmara Municipal e os comerciantes, que

19 Esse imposto havia sido instituído por 10 anos em 1756 pela Câmara Municipal de São Paulo. A origem dessa taxa era uma solicitação do rei de Portugal para que se oferecesse um “donativo gracioso” para a reconstrução de Lisboa destruída pelo terremoto de 1755. Apesar do prazo de 10 anos, continuou a ser renovado e após a Independência serviu de pagamento para oficiais e obras públicas. Em 1837, como novo imposto, passou a ser arrecadado para a receita provincial. Em 1848, atendendo aos apelos da Câmara Municipal de São Paulo de aumento de suas receitas, a Assembléia Provincial transferiu o imposto para o âmbito municipal apenas na capital. Cf. Vivian Tessitore (1995: 257).

49

constantemente se queixavam não apenas da cobrança, mas

principalmente da concorrência de quitandeiras e demais vendedores

que circulavam pelas ruas vendendo produtos alimentícios sem

pagarem impostos, apenas taxas de licença.

Em 1838 foi regulamentada a feira na praça do Carmo, também

localizada nos limites da região central, através de posturas, com

definição de horários e outras regulamentações:

“Art. 1. Fica marcada a Praça do Mercado para nela se

venderem em feira, ou mercado público todos os gêneros do

país.

Art. 2. Esta feira ou mercado público terá lugar em todos os

dias úteis da semana, começando às 7 horas da manhã e

findando-se ao meio dia.

Art. 4. A Câmara fornecerá pesos e medidas gratuitamente

sendo igualmente admitidos os particulares, devidamente

aferidos.

Art. 7. Durante o tempo de feira ninguém poderá comprar

mais de dois cargueiros de cada qualidade de gênero: os

contraventores serão punidos, depois de advertidos, com a

pena de dois a seis mil réis de multa.”20

As metas de controle e especialização nas vendas eram claras:

local, dias, horários, aferições de pesos e medidas e até mesmo a

forma de compra. A Câmara tentava evitar que os comerciantes

assumissem o total controle do abastecimento, que resultava na

manipulação de preços e oferta. Além disso, buscava-se evitar o

trânsito pelas ruas e facilitar a fiscalização e arrecadação de receitas

através do pagamento de licenças.

20 Atas da Câmara, 03/11/1838, p. 148, 149

50

Essa descentralização das vendas em diversas modalidades

pelas ruas da cidade dificultava a fiscalização por parte das

autoridades. Os confrontos entre comerciantes e os problemas com o

fisco eram inevitáveis. O crescente cerceamento às atividades de

quitandeiras e pequenos vendedores se concentrava, como vimos,

nas atividades de abastecimento de gêneros alimentícios como milho,

arroz, feijão.

O pequeno comércio de alimentos enfrentava as posturas e

fiscalização da Câmara Municipal e os produtos continuavam a ser

vendidos em trânsito e também estacionados em lugares

estratégicos, onde o intenso movimento poderia garantir os lucros. E

de forma ancilar a esse comércio de gêneros alimentícios,

desenvolveu-se a venda de alimentos prontos para o consumo nas

ruas. Mais do que o abastecimento, essa modalidade de vendas

dependia do intenso movimento em determinadas áreas da cidade. A

venda de alimentos prontos para consumir na rua estava, dessa

forma, diretamente ligada ao desenvolvimento do abastecimento e às

tentativas das autoridades de disciplinar esse comércio e redefinir as

atividades e o espaço urbano da região central no decorrer do século

XIX.

As quitandeiras continuavam a ser toleradas, mas os fiscais

procuravam evitar que estacionassem nas ruas centrais, reservando

para isso algumas praças e largos da cidade: largos do Carmo,

Misericórdia, São Bento, São Francisco, São Gonçalo e em frente do

oitão do Teatro21.

Apesar da riqueza e diversificação da economia de subsistência

alimentar, os problemas de abastecimento eram de grande vulto. Os

21 Atas da Câmara, XLIII, 12/09/1857, p. 115

51

principais produtos da dieta paulista (milho, feijão, arroz e carne)

estavam sujeitos ao comércio de exportação e fortemente

controlados pela Câmara e destinados à locais específicos como as

Casinhas. Por outro lado, miudezas (frutas, verduras, legumes, etc.)

estavam destinadas às quitandeiras. Entretanto, isso não impedia os

conflitos gerados pelos problemas de desabastecimento, monopólios,

concorrência, etc. Esse quadro da organização do comércio de

abastecimento alimentar em São Paulo expõe as tentativas das

autoridades municipais de disciplinar tais atividades tendo em vista

várias questões: econômicas, espaciais, higiênicas, administrativas,

etc.

Nesse panorama, pudemos perceber a importância das

quitandeiras no pequeno comércio de alimentos. Vivendo nas

margens dos mercados e feiras, elas buscavam a sobrevivência

através da venda de “miudezas” como frutas, verduras, e também de

petiscos para consumo nas ruas. Podemos considerar que a comida

de rua estaria, assim, indissociavelmente ligada ao pequeno comércio

de abastecimento. O processo de centralização das atividades de

alimentação entraria em uma nova fase com a construção de um

mercado central e os deslocamentos do matadouro.

Casinhas e vendedores de alimentos nas ruas

Para controlar o comércio e evitar que vendedores, agricultores

e tropeiros circulassem livremente pelas ruas, as autoridades

discutiam a necessidade de delimitar os locais para as vendas. As

primeiras medidas de centralização remontam a 1773 com a

organização do que seria o primeiro mercado da cidade, as chamadas

casinhas, localizadas na rua do mesmo nome próxima ao Palácio do

Governo (Pátio do Colégio). Foi feito um contrato entre um particular

52

e o Senado da Câmara para a edificação de sete cômodos na rua das

Casinhas. Como o nome indica eram um conjunto de casinhas de

compartimento único que seriam arrematadas para aqueles que

desejassem vender seus gêneros na cidade de São Paulo,

configurando-se como o primeiro mercado da cidade (Sant’anna

1937: 56). Para os quartinhos localizados na rua das Casinhas

deveriam ser enviados mantimentos como milho, arroz, feijão,

farinha, toucinho, etc., evitando que fossem comercializados pelas

ruas e praças da cidade. Os vivandeiros que utilizavam as casinhas

eram obrigados a registrar seus nomes e fornecer a relação de

mantimentos aos juízes almotacéis. Essa área não se mostrou

suficiente e durante boa parte do século XIX vários locais foram

sendo indicados como pontos de venda de gêneros alimentícios para

diminuir o deslocamento constante de vendedores, que evitavam as

fiscalizações, tentando burlar o fisco.

Em 1797 as Casinhas foram reformadas e em 1806 foram

construídos novos cômodos na baixada do Buracão do Carmo onde

eram encontradas mantas de toucinho, banhas, farinha de milho e

mandioca, açúcar, feijão, além de porcos que ficavam em chiqueiros

localizados nos fundos dos quartinhos. Longe de resolver os

problemas, esses mercados acabaram por ser incorporados ao

circuito de abastecimento da cidade, ao lado dos vendedores que

continuavam a circular pelas ruas. Os fornecedores de porcos, por

exemplo, preferiam apresentar-se ao administrador das casinhas com

alguns porcos e pagar as taxas, enquanto a maioria dos animais

ficavam soltos em outros pontos da cidade, sendo vendidos sem o

pagamento de taxas.22

Em visita à cidade de São Paulo em 1819, o naturalista Saint-

Hilaire (1975: 132, 133) descreveu o comércio de abastecimento 22 Papéis avulsos 1832, 1833.

53

alimentício na cidade, percebendo a clara distinção entre a venda de

mantimentos como arroz, farinha e milho e os legumes e pequenos

produtos que estavam nas mãos de quitandeiras na rua das

Quitandas, bem próxima à rua das Casinhas:

“Em São Paulo não se vêem negros percorrendo as ruas,

como no Rio de Janeiro, carregando mercadorias na cabeça.

Os legumes e outros pequenos produtos são vendidos por

mulheres negras, que se agrupam numa rua chamada Rua

da Quitanda, nome que recebeu por causa do comércio que

nela se faz. Quanto aos mantimentos de consumo

indispensável, tais como a farinha, o toucinho, o arroz, o

milho e a carne-seca, são vendidos por comerciantes

estabelecidos na Rua das Casinhas. De ato, cada loja dessa

rua fica instalada numa pequena casa separada das outras.

Não devemos esperar encontrar nessas lojas a limpeza e a

ordem. São todas escuras e enfumaçadas. O toucinho, os

cereais e a carne ficam ali atirados de qualquer jeito,

misturados uns com os outros, e os lojistas ainda estão

muito longe de possuir a arte de nossos comerciantes de

Paris, que sabem dar uma aparência apetitosa até aos

mantimentos mais grosseiros. Não há em São Paulo outra

rua mais freqüentada do que a das Casinhas. Os agricultores

das redondezas vão ali para vender os seus produtos aos

comerciantes, e os consumidores ai vão para comprá-los das

mãos destes últimos.”

Ainda que anterior ao nosso período, esta é, provavelmente, a

descrição mais conhecida da rua das Casinhas e seus arredores.

Certamente Saint-Hilaire teria dificuldade em encontrar negras

percorrendo as ruas, já que era costume que elas ficassem

estacionadas em determinados pontos. Isso não fazia do comércio de

alimentos uma atividade sedentária, porquanto elas se deslocavam

constantemente de ponto, desafiando a fiscalização.

54

Havia, pois, uma clara divisão nas vendas de alimentos:

enquanto as quitandeiras vendiam legumes e pequenos produtos, os

mantimentos (como toucinho e cereais) estariam nas mãos de

comerciantes que, por sua vez, os adquiriam diretamente dos

agricultores. Eram duas formas de intermediação: comerciantes com

os principais produtos e quitandeiras com o que restava. Os produtos

vendidos pelas quitandeiras também estavam sujeitos a uma

deterioração mais rápida, determinando um comércio de menor

porte, onde os produtores vendiam diretamente na cidade ou

forneciam para as quitandeiras. Os cereais e carnes, menos

perecíveis, por sua vez estavam sob controle dos comerciantes que

podiam obter dos produtores e estocar nas casinhas.

Os comerciantes precisavam de capital para comprar cargas

dos principais produtos e alugar as lojas na rua das Casinhas. As

quitandeiras representavam a parte mais pobre desse comércio,

comprando produtos mais baratos ou adquiridos a partir de coleta e

pequenos produtores e vendendo em tabuleiros pelas ruas.

O memorialista Francisco Bueno (1976: 25) também descreveu

esse comércio na década de 1830 dividido entre quitandeiras e

comerciantes:

“Para a venda de gêneros alimentícios, hortaliças, frutas,

etc., não havia mercado. Tudo era vendido pelas ruas, pelas

pretas de tabuleiro, ou pelos caipiras (matutos), que vinham

com seus cargueiros dos sítios circunvizinhos. O mesmo se

dava com as tropilhas carregadas com mantimentos, vindas

de mais longe, como de Cotia, de Juqueri, de Nazaré, etc.,

quando os atravessadores não as cercavam fora da cidade.

Somente as carregações de toucinho e de carne de porco

salgada é que iam para as casinhas, carreira de casebres,

55

que ocupava um dos lados da travessa fronteira ao

Mercadinho, a qual se chamava por isso rua das Casinhas.”

As observações de Francisco Bueno reforçam a divisão no

comércio da cidade entre quitandeiras nas ruas e comerciantes

estabelecidos nas casinhas, acrescentando a figura dos caipiras que

também se aventuravam em vender seus produtos nas ruas ao lado

das pretas de tabuleiro. Mas a figura dos atravessadores se

destacava nessa engrenagem, funcionando como intermediários entre

os agricultores e o comércio local. Tais atravessadores eram

justamente os grandes comerciantes que dispunham de capital para

arrematar cargas antes que elas chegassem ao mercado. Dessa

forma poderiam obter maiores lucros na comercialização.

No início do século XIX o mercado das casinhas já não dava

conta do comércio de abastecimento da cidade, transformando-se em

mais um ponto de vendas. Os pequenos vendedores e quitandeiras

eram a parte mais fraca de um elo envolvendo atravessadores que

monopolizavam o comércio dos principais gêneros alimentícios. Tais

atravessadores e monopolistas interceptavam as cargas de

mantimentos destinadas à cidade, arrematavam e revendiam nas

Casinhas (Moura 2005: 96). A banda oriental da cidade, devido à sua

posição próxima ao rio Tamanduateí, concentrou inicialmente os

principais pontos de venda de gêneros alimentícios. O mercado das

casinhas estava localizado justamente na fronteira do perímetro

central da cidade (a região do Triângulo) bem próxima do rio

Tamanduateí e da entrada localizada na ponte do Ferrão. A venda de

peixes passou a ser feita por quitandeiras, que armavam seus

tabuleiros nas escadarias da Igreja do Carmo. Após 1867 elas foram

transferidas para o mercado da rua 25 de Março (Martins 2003: 120).

Outros pontos tradicionais de venda, como os largos do Carmo e de

56

São Gonçalo23 também estavam próximos do rio Tamanduateí e de

uma das entradas da cidade.

23 O largo de São Gonçalo dava acesso ao sul da cidade onde estava o caminho para Santo Amaro e o Caminho do Mar. Além disso estava próximo à rua da Tabatinguera, que seguia para a ponte do Fonseca, a qual cruzava o rio Tamanduateí em direção à rua da Mooca.

57

1.3 Centralização do abastecimento: mercados e matadouro

Em meados do século XIX a necessidade de um único mercado

para a venda de produtos alimentícios era cada vez mais premente. A

tentativa de delimitar espaços para as quitandeiras em determinadas

praças esbarrava na resistência destas em continuar a se deslocar

pelas ruas da cidade e também nas dificuldades de montar uma

estrutura para que houvesse a fixação dos vendedores. Já em 1838 a

Câmara Municipal resolveu providenciar a construção de um pequeno

mercado nas proximidades das casinhas do Buracão do Carmo, o que

não se realizou, porém.

Posturas de 1857 que designavam os largos do Carmo,

Misericórdia, São Bento, São Francisco, São Gonçalo como local para

as quitandeiras, também permitiam a montagem de barracas e toldos

portáteis que deveriam ser desmontados assim que terminassem as

vendas.24 Mas as dificuldades de estabelecer um local específico com

determinada estrutura eram evidentes e provocavam a resistência

das quitandeiras, que preferiam ficar livres para escolher o local e

horário que melhor conviessem a fim de estabelecer seus tabuleiros.

O fiscal relatava à Câmara as dificuldades para fazer valer a Postura e

expunha os argumentos das vendedoras:

“Que tem procurado fazer com que as quitandeiras armem

as barracas destinadas para seu uso, porém isto não tem

sido possível realizar-se não só porque dizem elas que as

ditas barracas não as livrarão do sol e da chuva, como

porque ainda que disso as livrasse, não as poderiam livrar,

digo armar, porquanto, sendo cativas, não podem vir todos

24 Atas da Câmara Municipal de São Paulo, 12/09/1857, p. 115.

58

os dias com suas quitandas, e nem tem para isso lugar

certo, e que sobretudo não saberem armar, pensando

portanto, pelas circunstância referidas, que não será possível

realizar-se semelhante disposição.”25

Claro que a Câmara não estava preocupada com o bem estar

das quitandeiras, mas procurava fixá-las em determinados locais,

tentando reproduzir o que fora tentado no século passado com a

constituição das casinhas, um local específico para o comércio de

alimentos, fora da rua e das calçadas. Seria a possibilidade de unir

em um mesmo local a venda de gêneros de monta, como arroz,

milho, etc, e miudezas como legumes, verduras e outros que eram

vendidos em tabuleiros.

Mercado Central

Havia muito tempo circulavam em São Paulo propostas de

construção de um mercado fora dos limites da região central da

cidade. Em 1859 iniciaram-se as discussões na Câmara sobre a

necessidade da construção do mercado, criando-se uma comissão

permanente para viabilizar o projeto. Em 1865 foi desenvolvida uma

proposta para a construção na rua 25 de Março, na área da várzea do

Carmo que passara por recente urbanização com a retificação do rio

Tamanduateí. Essa área representava nesse período um dos limites e

divisor da cidade que crescia em direção ao Brás e suas fábricas no

final do século XIX. Era o local perfeito para a construção de

mercado, fora da região do Triângulo e em uma região

tradicionalmente voltada ao comércio, já que ligada ao rio e a uma

das principais entradas da cidade.

25 Atas da Câmara Municipal de São Paulo, 20/03/1858, p. 76, 77.

59

As obras iniciadas em 1859 foram interrompidas por alguns

anos sendo retomadas em 1865 e concluídas em 1867. O desenho do

mercado era alvo de constantes discussões entre empreiteiros,

Câmara Municipal, população e imprensa, sendo a proporção o

principal motivo de discórdia. Julgavam que o prédio era estreito

demais em relação a seu comprimento. O semanário Cabrião brincava

com as dimensões do prédio:

“O ‘Cabrião’ também a dá por concluída, principalmente no

que diz respeito ao comprimento, onde é força reconhecer

que não se deve aumentar nem mais uma só polegada, sob

pena de levá-la ao fim do mundo...”26

Após a conclusão das obras a Comissão Permanente definiu o

seu regulamento provisório inspirado no regulamento do mercado de

Capinas. A experiência da instalação do mercado de Campinas em

1861 inspirou seu congênere paulista. Construído para centralizar as

vendas (e fiscalização), tinha como principal objetivo combater os

atravessadores. O regulamento procurava não apenas disciplinar o

comércio, mas também a intensa circulação, apostando na

racionalização e sociabilidade. No caso de Campinas o projeto não foi

suficiente para satisfazer as ambições das autoridades municipais.

Sua transposição para o mercado de São Paulo (o regulamento foi

copiado do mercado de Campinas) também apresentaria várias

dificuldades.27

Em São Paulo a fiscalização procurava ser rígida, não apenas

por intermédio das normas, mas também da cobrança de taxas. Os

comerciantes que desejassem se instalar no mercado deviam pagar

taxas para se alojarem sob as suas arcadas. Os que não se

26 Cabrião, 31/03/1867, p. 206. 27 A respeito do mercado de Campinas, ver Martins (2001).

60

sujeitaram a estas taxas, sobretudo os pequenos produtores e

quitandeiras, ocupariam o espaço externo ao mercado (Bastos 2001:

89). Em 1872 a Assembléia Legislativa da Província de São Paulo sob

proposta da Câmara Municipal, decretam nova resolução para o

regulamento do mercado, revogando a anterior. Mas a situação das

quitandeiras não era alterada de forma significativa, como podemos

perceber no item que trata desse tipo de trabalho no Regulamento do

mercado:

“Capítulo 4 – Dos gêneros de quitanda

Artigo 27. As quitandeiras e mais pessoas que venderem

frutas, hortaliça ou legumes, não poderão fazê-lo sentadas

ou paradas nas ruas e praças da Capital, devendo para este

fim dirigirem-se à praça do mercado, sob pena de 8 mil réis

de multa ou dois dias de prisão.

Artigo 28. A disposição do artigo antecedente não abrange a

proibição de venda em casas de quitanda ou em tabuleiros à

cabeça das condutoras.

Artigo 30. Da disposição do artigo 28 excetuarão-se os

Largos dos Curros, Liberdade, Memória e a rua do Braz,

onde as quitandeiras e mais vendedores poderão estacionar

até as 11 horas da manhã.

Artigo 31. A expressão – casas de quitanda – de que usa o

artigo 29 só compreende aquelas que pagam o respectivo

imposto, ficando contudo obrigados a ele os que venderem

quitandas em corredores de casas, devendo nessa hipótese

não ter objetos expostos nas calçadas, sob pena de multa de

5.000 réis de multa ou um dia de prisão.”28

As quitandeiras continuavam podendo vender seus gêneros pela

cidade, proibindo-se apenas que estacionassem em qualquer local

para não atravancar a circulação. A intenção era evitar os tabuleiros

28 Regulamento da Praça do Mercado, 1872.

61

nas calçadas e ruas, e garantir a taxação dos pequenos quartinhos

que algumas quitandeiras, principalmente nas imediações da igreja

do Rosário, mantinham para vender seus produtos. Para a

municipalidade as ruas tinham que estar livres para a circulação,

além de evitar a sujeira e os incômodos identificados nas atividades

de venda nas ruas. A venda em praças e largos fora do Triângulo

ainda era permitida, uma espécie de feira com horário limitado na

parte da manhã. Ao contrário do mercado, que funcionava

diariamente das cinco e meia da manhã (seis e meia entre os meses

de abril e outubro) até a hora da ave-maria (dezoito horas).29

Para as quitandeiras a venda de gêneros de abastecimento

poderia ser interessante, em alguns casos, de ser feita na praça do

mercado, mas a venda de alimentos prontos para consumo na rua

ainda tinha como atrativo os principais pontos de aglomeração na

cidade. A inauguração do mercado estava longe de resolver todos os

problemas identificados pelas autoridades. Mesmo os casos de

monopólio na compra de determinados gêneros não havia sido

resolvido com a centralização dos negócios no mercado como

denunciava o Cabrião:

“O abuso já sentou-se na soleira da Praça do Mercado. Ao

passo que os negociantes, pelo regulamento não podem

comprar gêneros dentro da Praça, alguns particulares tem-

se constituído agentes de certas casas de negócio, e

compram as porções de gêneros que aparecem desde que

lhes convém o preço. É um verdadeiro monopólio. O fim da

praça foi centralizar o comércio, mas não centralizar o

monopólio.”30

29 Regulamento da Praça do Mercado, 1872. 30 Cabrião, 18/08/1867.

62

Segundo o regulamento, os negócios não poderiam ser feitos

dentro dos limites da cidade, a não ser no mercado. Fora das pontes

poderiam ser vendidos dentro de um limite estabelecido (um

cargueiro) desde que não fossem revendidos no limite urbano. Mas,

como apontava o Cabrião, muitos negócios de grande monta eram

feitos dentro do próprio mercado, onde deveria ser feito apenas o

comércio de varejo.

Na década de 1870 com o constante crescimento da cidade e a

inauguração da estrada de ferro, voltava a discussão sobre a

necessidade de mais mercados para a cidade. Em anexo ao mercado

da Várzea do Carmo havia o chamado Mercado dos Caipiras, local de

venda de peixes e hortaliças.

Esse processo de separação das atividades comerciais de

alimentação da região central pode ser observado nas variadas

representações da Várzea do Carmo feitas no século XIX,

especialmente no quadro A inundação da Várzea do Carmo

confeccionado por Benedito Calixto em 1892, ora no Museu Paulista

da USP31.

Benedito Calixto (1853-1927) Inundação da Várzea do Carmo, 1892 óleo sobre tela 125 x 400 cm Acervo do Museu Paulista (São Paulo, SP)

31 Sobre as visões e registros de pintores da Várzea do Carmo no século XIX ver Maria Luíza F. Oliveira (1999: 37-59).

63

O quadro retrata em visão panorâmica um momento de

inundação, visto a partir do Triângulo e tendo como destaque o

mercado. A visão que temos da parte posterior do mercado permite

observar um intenso movimento, com a grande quantidade de

vendedores nos toldos que estavam nas arcadas e várias barracas

instaladas no pátio fora do mercado. Aí ficavam as quitandeiras e

pequenos produtores aproveitando-se do dos menores gastos com

taxas e licenças. A visão de Benedito Calixto dessa região mostra um

mundo diferente daquele do Triângulo, que estava sendo remodelado.

Além da grande inundação (sem grandes danos na aparência)

vemos o mercado, algumas chaminés e ao fundo o Brás. Essa região

permanecia como fronteira para os bairros operários. No lado oposto,

o vale do Anhangabaú remodelado marcava o vetor de crescimento

urbano e o surgimento de bairros residenciais de elite como os

Campos Elíseos. Na década de 1870 a The San Paulo Gas Company

tinha escolhido a Várzea do Carmo (na outra margem do rio

Tamanduateí) para instalar sua usina e os gasômetros para

acondicionamento do gás, marcando a paisagem local (Silva 2008:

62). Era essa região que as autoridades tinham escolhido para

receber atividades importantes, como o comércio e indústria, mas

que não poderiam estar associadas à região central, que era

transformada em vitrine dessa mesma sociedade. A Várzea do Carmo

parecia representar uma clara divisão entre a cidade remodelada e

seu comércio elegante, em confronto com as fábricas e bairros

operários nascentes. Não era coincidência que essa região fosse

escolhida para a instalação do mercado central.

Mas as reclamações sobre a sujeira que as quitandeiras e

demais vendedores provocariam no Triângulo não foram resolvidas

com a inauguração do mercado. A idéia é que essa centralização

64

também facilitaria a limpeza e fiscalização dos produtos alimentícios.

Segundo o regulamento do mercado, o administrador teria, entre

suas funções, a obrigação de fiscalizar a salubridade do que era

vendido no mercado. Segundo o artigo 25:

“Todo o gênero ou objeto de quitanda que for encontrado a

venda na praça do mercado, quer pelos importadores, quer

nos quartos, e que se achar corrompido ou falsificado, seja

inutilizado e posto fora pelo fiscal a custa do infrator, depois

de lavrado o competente auto pela autoridade policial.”32

Mais uma vez os gêneros vendidos pelas quitandeiras estavam

na mira das autoridades, que identificavam nessa atividade fonte de

vários problemas. No mesmo ano da inauguração o administrador

reclamava à Câmara que alguns inquilinos faziam algazarra e

promoviam ajuntamento de negros, espalhando caixões, galinheiros e

jacás (Sant’anna 1937: 182). A sujeira provocada, principalmente no

Mercado dos Caipiras também era mencionada constantemente nas

atas e jornais do período. O semanário Cabrião fazia constantes

alusões aos urubus que infestavam a Várzea do Carmo devido ao lixo

acumulado, culpando as autoridades municipais. Em cartão postal da

virada do século XIX para o século XX, podemos ver o pátio do

Mercado dos Caipiras com uma grande quantidade de urubus

disputando os restos que os mercadores deixavam (Gerodetti &

Cornejo 1999: 145). Ainda que fora do Triângulo, o mercado

continuava a incomodar, sendo associado à imagem da sujeira e da

desordem e, além disso, à presença de pessoas à margem da

sociedade.

32 Regulamento da Praça do Mercado, 1872.

65

[Mercado dos Caipiras], ca.1900

Coleção João Emílio Gerodetti.

O fim das casinhas e o surgimento de outros mercados

Historicamente as casinhas, localizadas na rua do mesmo

nome, constituíam um importante mercado da cidade como vimos

anteriormente. Após sucessivas discussões sobre a precariedade do

local e a construção do mercado na Várzea do Carmo, em 1873 foram

demolidos alguns dos cômodos utilizados na rua das Casinhas para

dar lugar ao projeto de um edifício para o Tesouro Municipal e a

Escola Normal. Esse projeto criou uma enorme polêmica na cidade,

colocando o trabalho das quitandeiras em primeiro plano nas

discussões sobre as mudanças urbanas. Apesar da demolição, elas

continuavam a usar a rua para vender seus produtos, estacionando

na testada dos prédios, desafiando as autoridades municipais e

irritando uma parte do público que desejava as ruas livres para seu

66

passeio. Esse anseio era expresso na reclamação de um colunista do

jornal Diário de São Paulo em 1872:

“A rua das Casinhas das 7 as 9 horas da manhã, fica

intransitável. Pelos passeios não se toma nada. Vê-se um

homem num horrível torniquete: Ou morrer debaixo das

patas dos animais das tropas e carros, que ali se

aglomeram, ou dar com as ventas por sobre os tabuleiros

das quitandeiras, depois bem entendido, de esmigalhar-se-

lhes o crânio com o salto de um bom Clark ou de um

legítimo Kauer. Salambo, Cartas –sobre o que vai pela

Paulicéia X”33

A reclamação do cronista revela uma cidade que se via às

voltas com antigas atividades como as tropas que cruzavam a cidade

e os tabuleiros das quitandeiras e atitudes mais modernas como o

passeio pelas ruas com sapatos importados. O jornalista e advogado

Luís da Gama que costumava defender escravos e forros, buscava

resolver o problemas das quitandeiras alegando justamente o

costume da população de comprar as quitandas na rua das Casinhas

e o direito adquirido das quitandeiras de vender nesse local.

Esses problemas continuaram nos anos seguintes, resultando

em várias reclamações pelos jornais e discussões na Câmara, que

tentava a todo custo organizar esse tipo de comércio. A alegação era

que o mercado construído na Várzea do Carmo em 1867 seria o local

adequado para todo o tipo de comércio de rua, livrando, assim, os

moradores dos dissabores apontados por um leitor do Correio

Paulistano:

“(...) a condescendência com que deixa o grande número de

quitandeiras atravancar com tabuleiros que são cercados 33 Diário de São Paulo, 17 de novembro de 1872.

67

pelos compradores diversos lugares, obstando

completamente o trânsito público em ruas já de si muito

estreitas, deixando-se sem serventia a praça do mercado

que é o lugar apropriado para tal comércio. Em quinto, o

nenhum escrúpulo com que consente, em prejuízo da saúde

pública, na venda de frutas verdes e de gêneros

deteriorados uns e falsificados outros, quando é certo que a

Câmara tem a obrigação de fiscalizar tudo isto, fazendo

observar suas posturas e aplicar as respectivas multas.”34

Havia uma crescente intolerância com o trabalho das

quitandeiras por parte das classes mais abastadas, não apenas com o

atravancamento das ruas que deveriam estar livres para o trânsito e

passeio, mas também com as novas normas de higiene e limpeza que

denotavam uma questão moral. As referências às frutas verdes e os

gêneros deteriorados e falsificados indicam os novos limites da

atividade de venda e consumo de alimentos nas ruas.

A antiga rua das Casinhas, renomeada rua do Palácio, seria o

local da nova edificação do prédio do Tesouro Provincial. O projeto do

presidente da província João Theodoro previa um mercado das

verduras nesse local, mas a polêmica sobre a permanência das

quitandeiras nesse local mobilizou a imprensa, como o Correio

Paulistano, que protestou em editorial contra a construção de um

mercado de verduras no largo do Palácio:

“Não nos parece de bom conselho o ato de nossa edilidade

quando existe ali, a beira do centro da cidade, o grande

mercado com acomodações precisas, levantar-se um outro

em uma das praças mais centrais e que merece ser

aformoseada, não é decerto um ato bem pensado. (...) Tirar

as quitandeiras da rua do Palácio, onde eram consentidas

34 Correio Paulistano, 22 de janeiro de 1876, p. 3.

68

irregularmente para assentarem-se no largo do Palácio, não

entendemos ser de utilidade, nem urgente, nem necessário

(...) é mais razoável que a coisa se faça de conformidade

com as necessidades higiênicas e financeiras e de

aformoseamento da cidade.”35

A questão, segundo o jornal, parecia bem clara: a região

central estava sendo transformada conforme novos padrões

econômicos, higiênicos e urbanos. O mercado central, localizado fora

da área do Triângulo, seria o local ideal para acomodar todo o tipo de

venda de alimentos que não estivessem de acordo com a imagem de

limpeza e civilização que alguns segmentos almejavam para a cidade.

Tanto as quitandeiras quanto o pequeno comércio de alimentos, além

dos botequins deveriam estar fora da região que se “aformoseava”. A

estética, a sujeira e o perfil dos freqüentadores não estavam em

consonância com a imagem que se pretendia para esse local, mais

afinada com as lojas, restaurantes, cafés e confeitarias que

proliferavam na região, juntamente com um público considerado mais

refinado. Tratava-se de remodelar o local para transformá-lo em uma

vitrine da nova cidade pretendida.

Mais uma vez a Câmara procurava proibir essa movimentação

de segmentos mais pobres, tentando delimitar o local onde as

quitandeiras deveriam vender seus produtos:

Indicações: Que sendo inconveniente e incômodo ao trânsito

público o uso estabelecido pelas quitandeiras e carroças que

vendem quitandas, de estacionarem na rua do Palácio entre

a da Imperatriz e do Comércio, proponho que se expeção

ordens precisas para que d’ora em diante as quitandeiras

estacionem no pátio do mercado, sendo-lhes facilitada a

permissão de erguerem ali suas barracas ou toldos, 35 Correio Paulistano, 22 de fevereiro de 1877, p. 1,2.

69

obrigadas porém a desarmá-las na hora que lhe for

designada e a diariamente varrer o local que tiverem

ocupado.36

As observações da Câmara não eram novas, mas aconteciam

em um momento decisivo. Apesar de todas as reclamações, posturas,

fiscalizações e indicações do poder público, as quitandeiras

continuavam a resistir e permanecer trabalhando em várias áreas da

região central. Nos jornais as reclamações contra esse tipo de

ocupação da área central prosseguiam, inviabilizando a construção de

um mercado no largo do Palácio:

“Chamamos a atenção da ilustre corporação afim de

providenciar a respeito da grande aglomeração de

quitandeiras na rua das Casinhas em frente ao edifício do

Tesouro Municipal tornando dificultoso o trânsito público em

certas horas da manhã. Ainda para maior mal muitas

carroças com verduras. Com a mudança destas quitandeiras

para algum largo de igreja onde possa menos prejudicar o

trânsito público será um grande benefício prestado.”37

A possibilidade da permanência das quitandeiras em frente ao

novo prédio do Tesouro ou em outro largo na região central foi

definitivamente sepultada quando se construiu o mercado de ferro na

ladeira do Acu (futura avenida São João) em 1890. A venda de

verduras, legumes, frutas, leite, aves e ovos foi transferida para esse

local, às margens do Triângulo (Bruno 1991: 1.114). O chamado

mercadinho da São João era o local para onde iam as quitandeiras

responsáveis pelas venda de determinados produtos, como relembra

o memorialista Jorge Americano (2004: 102, 102) falando sobre a

cidade no início do século XX:

36 Atas da Câmara, 22 de março de 1877, p. 58. 37 A Província de São Paulo, 24 de março de 1882, p. 2.

70

“Existiam no começo do século, o ‘Mercadinho’ e o ‘Mercado

Grande’. (...) O mercadinho era quadrado, 50 metros por

50, uma entrada central em cada face. Havia frutas, cereais,

legumes, verduras, lingüiças, frangos, toda a pequena

produção das chácaras dos arredores da cidade, e um setor

de peixe, vindo de Santos. Nada de artigos que não fossem

comestíveis, a não ser as cestinhas e peneiras tecidas em

taquara e os potes e moringas de barro. Nos comestíveis,

bacalhau seco, mas não produtos enlatados.”

A divisão entre os dois principais mercados parecia clara nesse

momento, o Mercado Central responsável pela venda de gêneros

alimentícios como arroz, feijão e farinha (entre outros) enquanto o

mercadinho centralizava a venda de miudezas, feitas pelas

quitandeiras em vários pontos da cidade, sempre tão combatida pela

Câmara Municipal. Entre as novidades, a venda de peixe vindo de

Santos, já que em meados do século XIX esse comércio limitava-se

aos peixes de água doce pescados nos inúmeros rios da cidade. Além

disso, o bacalhau importado poderia ser encontrado no mercadinho,

mas não os enlatados, vendidos nos diversos armazéns da cidade.

Complementando os principais mercados da cidade, foi

inaugurado em 1892 o mercado do Largo Riachuelo (depois Largo da

Concórdia) no Brás. Antigo ponto de entrada de tropeiros, a região do

Brás crescia associada ao surgimento das indústrias e das instalações

da San Paulo Gás Company a partir de 1872. O comércio de

abastecimento alimentício era deslocado para fora da região central

da cidade em direção ao leste. A exceção era a localização do

mercado das Verduras no lado oposto da cidade, que seria desativado

em 1915 com a remodelação do Vale do Anhangabaú.

71

O mercado do Brás formava como Mercado Central da rua 25

de março e o Mercadinho das Verduras da São João as centrais de

abastecimento da cidade no final do século XIX e começo do século

XX.

Os armazéns também desempenhariam um papel importante

no abastecimento, funcionalmente relacionados com os mercados. Já

no início do século XX vários armazéns foram instalados às margens

do rio Tamanduatéi aproveitando-se da proximidade do mercado e da

estrada de ferro. No entanto, voltamos nossa atenção para os

diversos armazéns de secos e molhados que já existiam na cidade em

meados do século XIX. Trataremos desse assunto quando enfocarmos

o problema das importações e industrialização de alimentos.

Essa estrutura de abastecimento seria complementada com o

Matadouro Municipal. O mesmo processo de afastamento de algumas

atividades da região central aconteceria com o comércio de carnes de

forma ainda mais contundente, sendo constantemente deslocado na

segunda metade do século XIX, aparecendo como principal foco de

atuação das autoridades sanitárias.

Matadouros

Em relação à comercialização da carne os problemas estavam

diretamente relacionados com a higiene e salubridade pública, ao

menos na sua verbalização. A sujeira provocada pela atividade dos

matadouros causava maiores incômodos, sendo imprescindível sua

localização fora dos limites urbanos, de acordo com as prescrições

higiênicas. Com o crescimento da cidade esses limites eram cada vez

mais tênues, sendo constante a discussão sobre a melhor localização

para essa atividade.

72

Segundo o memorialista Francisco Bueno (1976: 26), na

década de 1830 a carne verde era vendida em um único açougue,

que trabalhava só até o meio-dia. O matadouro ficava no curral do

Conselho, à beira da estrada de Santo Amaro. A proximidade com a

região central causava inúmeros problemas e reclamações em relação

ao cheiro e sujeira. Motivada pela legislação de 1828, preocupada

com a insalubridade das cidades e o risco de epidemias, a Câmara

Municipal de São Paulo inicia em 1830 uma discussão sobre a

necessidade da construção de um novo matadouro público. A

preocupação maior era com o despejo de detritos no córrego do

Bexiga e as “exalações pútridas” que, segundo as teorias médicas em

voga, poderiam contaminar a população (Giordano 2006: 68).

Mas as preocupações não se resumiam apenas aos detritos e

miasmas decorrentes do processo de abate que poderiam contaminar

a cidade. Os alimentos também estavam no centro das preocupações

higiênicas. Nas discussões sobre a construção do matadouro a

Comissão de Obras Públicas e da Fazenda trazia em parecer de 1848

algumas preocupações alimentares:

“As Comissões reconhecem a necessidade de se fazer um

matadouro público, o qual no sentido higiênico não só livre a

cidade dos miasmas que atualmente sofrem com o velho

matadouro, mas também onde o gado tratado, morto, e

cortado com as regras próprias ofereça um alimento sadio, e

a carne fique livre da asquerosa vista que tem atualmente

por ser mal sangrada, pisada, e suja, e igualmente convém

que tal estabelecimento mostre, e prove o zelo da

municipalidade, que esta Assembléia olha para os interesses

da capital da Província.”38

38 Orçamento de obras. Lei para a construção do matadouro, 1848.

73

Mais do que em qualquer outro lugar, o matadouro expressava

a crescente preocupação com a alimentação por parte dos médicos

tendo em vista a questão da salubridade pública. No parecer acima o

destaque fica na visão e cheiro da carne, mas o estabelecimento de

regras para a manipulação da carne também aparece associado ao

“alimento sadio”. Em meados do século XIX aumentavam as

discussões sobre os preceitos higiênicos no manejo da carne e outros

alimentos e também da necessidade de afastar o matadouro cada vez

mais da região central.

Em 1849 a Câmara decidiu pela construção do matadouro na

rua Humaitá, junto ao córrego do Anhangabaú. Um novo local foi

construído em 1852 e estava submetido a uma legislação sanitária

mais rigorosa, mas a disposição geográfica permitia que os ventos

canalizados levassem os miasmas para a região central, além de

lançar os dejetos no córrego do Anhangabaú, acarretando os mesmos

tipos de problemas identificados no antigo matadouro (Bastos 2001:

76). De qualquer forma, apesar da proximidade, não estava mais

contíguo à região central, como era o caso do primeiro local para

abatimento das reses.

A preocupação das autoridades com o risco de epidemia de

cólera nas principais cidades brasileiras, a partir de 1854, acelera as

providências do governo provincial de São Paulo em relação ao

matadouro. Em 1858 foi aprovado o regulamento para o Matadouro

Público que definia não apenas os horários de funcionamento, mas

também as obrigações do médico designado pela Câmara Municipal,

que deveria examinar as reses e acompanhar o abate, transporte e

depósito dos resíduos.39

39 Regulamento do Matadouro Público da cidade de São Paulo, 31 de agosto de 1858.

74

Mas assim como o anterior, o matadouro da rua Humaitá

também se tornou obsoleto rapidamente e os debates sobre a

necessidade da construção de outro avolumavam-se. Os mecanismos

de controle da alimentação revelavam-se urgentes, pois, ao mesmo

tempo em que causavam reclamações e preocupações das

autoridades e população, dificultavam o crescimento da cidade. A

região leste (Brás) estava separada da cidade pela área alagadiça da

Várzea do Carmo, local escolhido para abrigar o mercado público. Na

região sul, estava localizado o matadouro da cidade (o primeiro no

Curral do Conselho próximo aos campos do Bexiga e o segundo na

rua Humaitá, no caminho para Santo Amaro). Os vetores de

crescimento da cidade ficavam restritos ao norte e oeste. Dessa

forma, a preocupação não era apenas com os alimentos, mas a

insalubridade de determinadas regiões que deveriam ser liberadas e

limpas para o crescimento da cidade.

As discussões sobre a necessidade de um novo matadouro

foram acompanhadas de preocupações das autoridades com a

manipulação da carne e a forma de abate e transporte no matadouro.

O Código de Posturas de 1875 dedicava vários artigos a esse tema,

buscando regulamentar a atividade de acordo com a higiene pública,

desde o abate até a venda dos talhos de carne.

Sob a égide do novo código e seguindo seu caminho para longe

da região central, em 1887 foi inaugurado o novo matadouro na Vila

Mariana.40. O novo matadouro seguia o caminho para o sul da região

central, assim como os mercados ocupavam a porção leste. No final

do século XIX os principais locais de abastecimento alimentício da

cidade estavam fora da região do Triângulo. De forma crescente a

questão da higiene se impunha em relação aos alimentos e sua

40 Sobre a trajetória dos matadouros na cidade de São Paulo ver Giordano (2006: 119-136).

75

comercialização. Nesse quadro de crescente controle e fiscalização, a

venda de alimentos prontos para o consumo na rua também

enfrentaria restrições.

76

CAPÍTULO 2

ALIMENTAÇÃO NAS RUAS

77

2.1 Cardápio da casa e da rua

Nosso objetivo neste capítulo é discutir o cardápio da rua e

tratar dos principais alimentos que poderiam caracterizá-lo, buscando

nas fontes possíveis padrões, tendências, convergências e

divergências. Para definir sua especificidade, porém, é indispensável

compará-lo com o cardápio da casa e suas variantes.

No capítulo anterior traçamos um quadro da questão do

abastecimento na província e, mais especificamente, na cidade de

São Paulo, definindo a importância histórica de alguns alimentos no

decorrer do século XIX. Agora iremos enfocar como esses alimentos

apareciam nas ruas, confrontando-os inicialmente com aqueles da

casa e em espaços específicos, como as pensões de estudantes e os

pousos e estalagens para tropeiros e viajantes, etc. Estamos falando

de duas situações distintas: a articulação de refeições na casa (com

horários e estruturas determinadas) e a desarticulação das refeições

nas ruas, com alimentos que eram consumidos em vários locais e

horários, sem uma seqüência pré-estabelecida e sempre na forma de

petiscos (pedaços pequenos e autônomos). Procuraremos discutir

separadamente estes dois tipos de cardápio para estabelecermos as

diferenças que marcam o quadro da alimentação de rua na cidade de

São Paulo nesse período.

Cardápio da casa e variantes

No decorrer do século XIX alguns viajantes visitaram a

província de São Paulo e passaram pela cidade, observando alguns

elementos do cardápio oferecido nas casas. Assim, Spix e Martius,

78

que percorreram várias cidades da província em 1817, descrevem

vários hábitos alimentares da população local:

“Em vez da farinha de mandioca, quase exclusivamente se

come a farinha de milho grosseira. Vem à mesa em

cestinhas, como o pão, na Europa e, somente a pedido do

hóspede é substituída pela farinha de pau (mandioca). Raras

vezes se fazem pães ou bolos com ela. No mais é a canjica,

igualmente preparada com milho: e nunca falta na

sobremesa essa comida nacional dos paulistas. Põe-se de

molho, na água, os grãos de milho, socados por um pilão

movido a água (Negro velho), depois são cozidos com água

ou leite, em forma de papa, e então servidos com açúcar ou

melado.”41

Neste relato não aparece a refeição propriamente dita, mas dois

acompanhamentos que se destacam por serem feitos a partir do

milho, em contraste com o uso mais comum da mandioca em várias

regiões brasileiras (inclusive no litoral paulista). A farinha de milho

aparece como acompanhamento das refeições, servida em cuias, mas

o destaque maior do relato é a canjica, chamada pelo viajante de

“comida nacional dos paulistas”. Essa marca ressalta a importância

do milho na região. Era uma forma de diferenciar os hábitos

alimentares dos paulistas em relação ao que era verificado em outras

regiões do país. Feita a partir de milho branco, a canjica podia ser

utilizada como sobremesa, embora eventualmente fosse servida sem

açúcar. Nos relatos de viajantes a presença do milho na região de

São Paulo também em forma de farinha aparecia frequentemente.

41 Os naturalistas alemães Joahann Baptist von Spix e Carl Friedrich Philipp von Martius excursionaram pelo Brasil entre 1817 e 1820 e com o material recolhido editaram em 1823 o livro “Viagem pelo Brasil” (traduzido e publicado no Brasil em 1938). Cf. Spix & Martius, 1981: 163

79

Essa predominância também chamou a atenção de outro

viajante, Luís D'Alincourt, que chegou ao país em 1809 e fez várias

pesquisas topográficas na região centro-oeste do país. Ao passar por

São Paulo em 1818 descreve alguns alimentos preferidos pelos

paulistas e também destaca o uso da farinha de milho, embora dando

relevo maior ao feijão:

"Sustentam-se de legumes, fazendo maior uso do feijão,

comem o milho branco cozinhado em água e sal, a que

chamam de canjica: o seu pão é a farinha de milho etc.

Consumiam a farinha de milho sob a forma de jacuba, e

ainda leite, toucinho e alguma carne salgada ou seca".42

Os alimentos arrolados pelo viajante podem supor uma

combinação muito comum na região de São Paulo. O feijão era

frequentemente misturado à farinha de milho (forma preferida de

consumo do milho pelos paulistas), constituindo o que seria o prato

principal, eventualmente acompanhado de toucinho ou carne seca. A

jacuba era outro tipo de mistura, na verdade uma bebida: farinha de

milho com água. A descrição de D’Alincourt é corroborada por outro

viajante. Hercules Florence, quando se dirigia da cidade de São Paulo

para Jundiaí, parou para fazer uma refeição em Juqueri,

experimentando a canjica “sem sal nem tempero algum”.

Comentando a refeição matinal da expedição da qual fazia parte,

Florence diz que “pela manhã nossa gente almoçava farinha de milho

desmanchada em água fria e açucarada".43

42 Luiz D’Alincourt, nascido em Portugal, era engenheiro militar e veio para o Brasil em 1809. Participou de vários trabalhos estatísticos e topográficos na região centro-oeste do Brasil. Realizou uma jornada por essa região em 1818 e publicou seu relato em 1825. Cf. D’Alincourt (1975: 28). 43 O francês Hercules Florence desembarcou no Brasil em 1824 e trabalhou como desenhista na expedição Langsdorff entre 1825 e 1829. O diário das viagens de Florence foi publicado apenas em 1977. Cf. Florence (1977: 46).

80

A partir desses relatos podemos perceber como a presença do

milho nas refeições chamava a atenção dos forasteiros. Nesse caso,

duas modalidades do uso do milho, farinha e canjica. O feijão, apesar

de aparecer apenas no relato de D’Alincourt, era parte importante da

estrutura das refeições ao lado da farinha de milho. Como veremos

adiante, a presença do binômio feijão e farinha (eventualmente

acompanhado da carne ou toucinho) era constante na refeição dos

pousos para tropeiros.

A farinha de milho e o feijão continuavam a ter um papel

central na alimentação paulistana em meados do século XIX. Os

dados já apresentados sobre a produção e consumo desses produtos

na cidade e em toda a província de São Paulo comprovam a

importância no abastecimento alimentar. Mas através dos relatos de

estudantes da Faculdade de Direito podemos perceber uma maior

variação do cardápio. Essas descrições na maioria das vezes referem-

se às refeições feitas pelos estudantes em pensões. Almeida

Nogueira44 descreve as refeições feitas pelos acadêmicos no final da

década de 1840:

“As refeições eram parcas, modestas e frugais; às horas de

costume, de 8 ás 9, o almoço; de 2 as 3, o jantar, e, a noite,

ordinariamente, chá com pão e biscoitos ou bolachas... Os

pratos principais: sopa, não muito generalizada ainda,

cozido, feijão, arroz, ervas, carne ensopada, ou antes

afogada e assada, de vaca, porco ou carneiro, não raro

galinha; nos dias festivos, peru recheado, leitões, empadas,

etc., tudo a antiga paulista. Academicamente, o tradicional

picadinho, em que todas as cozinheiras paulistanas se

faziam peritas e era prato obrigatório no almoço.”

44 José Luiz de Almeida Nogueira estudou na Faculdade de Direito do Largo São Francisco entre 1869 e 1872. Publicou entre 1907 e 1909 o livro “A Academia de São Paulo” onde trata da história da faculdade e dos estudantes a partir de suas memórias e depoimentos. Almeida Nogueira (1909: 23).

81

Neste caso a descrição trata de uma variante da comida de

casa. A definição de refeições “parcas, modestas e frugais” marca

uma possível diferença em relação aos jantares (ceia) onde a

abundância seria dominante, mas ao mesmo tempo apresenta uma

grande possibilidade de variação dos pratos e formas de preparo,

distinguindo-se da refeição básica das camadas mais pobres,

geralmente identificada pela composição de feijão e farinha de milho.

Nesse caso, a composição parece ser do feijão com o arroz. A carne

(antes reduzida ao toucinho e carne-seca) apresenta uma grande

variedade de tipos (frango, vaca, porco e carneiro) e de formas de

preparo (cozida, assada, ensopada e afogada).

Além dos pratos principais, a descrição aborda também duas

exceções: dias festivos e um prato “acadêmico”, o picadinho. Os

pratos festivos eram compostos de peru (de consumo restrito nas

casas, onde a galinha estava mais presente), leitões (cujo preparo

para as festas era mais demorado, sendo normalmente assado) e

empadas (geralmente preparadas por quituteiras e também vendidas

nas ruas). Tudo preparado “a antiga paulista”, definindo o que seria

uma longa tradição no preparo dessas iguarias, ainda que o texto não

caracterize explicitamente essa marca de antiguidade e tradição.

Finalmente, o picadinho. Segundo Almeida Nogueira (1909:

213), esse prato era famoso nas “repúblicas” paulistanas do período,

seguindo a receita da cozinheira conhecida como tia Silvana:

“Toma-se um quilo de alcatra ou filé, carne de primeira,

lava-se, enxuga-se bem, bate-se, corta-se em pedacinhos

pouco maiores que um dado; refoga-se com cebola picada;

deita-se-lhe depois um copo de água quente, um buquê de

cebolas em rama, salsa e uma folha de louro; ajuntam-se

82

alguns pedacinhos de toicinho fresco, sal e pimenta, e deixa-

se ferver a fogo brando até que a carne fique bem cozida,

tendo-se o cuidado de aumentar a água sempre que venha a

secar. Ajunte-se em tempo batata picada, que não deve ficar

muito cozida. Nada de engrossar o caldo: ao contrário deve

ser abundante e bastante aquoso.”

Aqui podemos perceber outra das diferenças do cardápio das

pensões estudantis em relação à maioria da população. Como já

apontamos, a oferta de carne na cidade era problemática. Os

entraves ao abastecimento de carne bovina e as dificuldades do

matadouro certamente deveriam encarecer esse tipo de alimento,

tornando-o restrito a parcelas seletas da população. Na receita

transcrita pelo cronista, além da “carne de primeira” chamam a

atenção os inúmeros temperos utilizados: cebola, salsa, buquê de

cebolas em rama (cebolinha) e folha de louro. O caldo mais ralo

também era muito importante, na opinião do memorialista,

principalmente na mistura com o arroz. Essa mistura entre seco e

molhado parecia substituir outra muito apreciada na cidade, entre

feijão e farinha. Nas pensões o arroz aparecia com maior destaque ao

lado do feijão e carne no lugar da farinha de milho.

O mesmo Almeida Nogueira (1909: 203) transcreve a

caracterização feita por outro estudante das refeições nas repúblicas

e pensões também na década de 1840:

“As cozinheiras ganhavam de 15 a 20$000 réis e não tinham

que preparar mais do que o trivial, a saber feijão, arroz,

carne de vaca ou porco e algum legume (o mercado não era

farto), café e chá paulistano.”

A grande variedade mostrada no relato anterior aqui se resume

a uma refeição básica (almoço ou jantar) centrada na tríade feijão,

83

arroz e carne. Quanto aos legumes, aparentemente escassos, a

justificativa vem do mercado que não seria farto. Talvez a pouca

variação nesse cardápio possa ser explicada pelas diferenças entre os

tipos de pensões destinadas aos estudantes. Segundo Almeida

Nogueira, nas pensões mais “fidalgas” serviam-se doces. A

semelhança entre os cardápios descritos é a constante presença do

arroz no lugar da farinha de milho.

Também nas casas mais abastadas era possível perceber essa

mesma variação que aparece nas pensões, enquanto que nas

refeições das pessoas mais pobres há uma presença maior do

binômio feijão e farinha.

Maria Paes de Barros, dama de família tradicional, relembrando

sua infância na década de 1860, caracteriza o jantar em sua casa:

“às duas horas era servido um farto e variado jantar, com sopa,

cozido, assados, legumes e doces de diversas qualidades”45

Apesar da variação, o arroz, feijão e farinha de milho não são

citados na descrição. Por outro lado, os escravos e empregados da

família tinham à disposição um cardápio diferente, menos variado e

composto de feijão e milho. A caminho de São Paulo com a família na

década de 1860, ela descreve a refeição de escravos e empregados

da fazenda nos arredores da cidade:

“Para a refeição dos escravos, havia dois grandes caldeirões

com feijão e angu de fubá; noutro, menor, cozia-se a

canjica. (...) A cozinheira trouxe um tabuleiro bem lavado,

45 Maria Paes de Barros nasceu em 1851 e escreveu suas memórias publicadas em 1946 com o título de “No tempo de dantes” onde conta a história de sua família até o final do século XIX (aproximadamente década de 1880). Os trechos que utilizamos referem-se à sua infância por volta da década de 1860. A primeira edição do livro foi publicada em 1946 e utilizamos o texto publicado em Carlos Eugênio Moura (1998: 111).

84

com suas duas repartições – um lado para o feijão, o oposto

para o angu – e ainda outro, menor, onde ia a canjica.

Entregou logo a marmita com o jantar especial para o feitor,

e depois a um rapazinho, com uma carrocinha puxada por

um burrico, a comida para o pessoal da roça.” (In Moura,

1998: 111, 117)

Se compararmos com as descrições dos viajantes da primeira

metade do século XIX, vemos novamente a presença do feijão e

milho, e na alimentação dos escravos o angu feito a partir do fubá.

Nesse caso a comida não era apenas para os escravos, mas para

outros trabalhadores, como o feitor. A alimentação dos escravos,

assim como de outras faixas sociais mais baixas, apresentava

algumas discrepâncias regionais e temporais, com a predominância

do angu como um dos pratos principais, principalmente na região

sudeste. A canjica, a “comida nacional dos paulistas” de Spix e

Martius, aparece no tabuleiro acompanhando o feijão e o angu,

provavelmente como sobremesa.

Analisando o padrão da alimentação dos escravos no século

XIX, os pesquisadores Iracy del Nero da Costa e Renato Leite

Marcondes (2001: 203) afirmam que ela se baseava no feijão, farinha

de mandioca (ou de milho) e no toucinho ou carne salgada. Padrão

similar àquele que encontramos nas descrições de viajantes sobre a

alimentação já no século XIX, mas com uma grande predominância

do angu, considerado como uma comida inferior e barata.

Feijão, farinha de milho e toucinho

Se não encontramos um cardápio padrão singular na casa

paulista, é possível destacarmos a importância da mistura entre

85

feijão, farinha de milho e toucinho. Os relatos mencionados de

viajantes e memorialistas, além dos dados sobre a participação de

alimentos como o milho, feijão e arroz no mercado interno,

comprovam a permanência e importância desses itens na dieta

paulista na segunda metade do século XIX.

A composição desses ingredientes indica um núcleo mínimo da

alimentação na província e também na cidade de São Paulo. Segundo

Paula Pinto e Silva (2005: 98), o contraste entre o alimento seco

(farinha) e os caldos e molhos apreciados pelos portugueses marcaria

decisivamente a culinária brasileira, num processo de ajuste às

exigências do paladar do colonizador e também de adaptação ao

meio tropical que envolvia questões de armazenamento, transporte e

conservação Uma das principais misturas entre alimentos secos e

úmidos foi entre a farinha (mandioca ou milho) e o feijão. Apesar de

produto autóctone, o feijão com caldo era utilizado pelos portugueses

para equilibrar o seco das farinhas, constituindo-se em um dos

pilares da alimentação brasileira. Assim como a farinha teria sido

uma adaptação dos colonizadores portugueses do milho socado dos

indígenas, o feijão, que era consumido seco pela população local, foi

acrescido do caldo apreciado pelos portugueses, servindo para

misturar com a farinha de milho e reduzir sua secura. O toucinho

substituía a carne como complemento dessa mistura, providenciando

a gordura necessária para o preparo e sabor do prato.

A composição entre esses três elementos não apenas

caracterizava as refeições básicas, mas também aparecia

consubstanciada em um único prato, o virado, um tipo de alimento de

preparo rápido, perfeito para a longa viagem dos monçoeiros (Taunay

1953: 61). Constituía-se basicamente da mistura da farinha de milho

com feijão e um pedaço de toucinho e deu origem a diversos tipos de

virados que poderiam usar outras carnes, como a galinha. Além

86

disso, a farinha de milho também foi utilizada para o preparo de bolos

e pastéis de origem portuguesa.

Em meados do século XIX essa alimentação baseada no tripé

feijão, farinha de milho e toucinho (carne) aparece nos relatos de

viajantes e memorialistas, ainda que fortemente associada a

determinadas situações e camadas sociais. Entre os escravos,

tropeiros e pousos de beira de estradas (como veremos a seguir) é

possível perceber a permanência desse tipo de alimentação. Por outro

lado, podemos verificar uma maior variação em casos como as

refeições de classes mais abastadas (caso da família de Maria Paes de

Barros) ou dos estudantes nas pensões. Percebe-se aí uma presença

maior do arroz e também dos variados tipos de carnes. Mas se o

milho não aparecia com tanta freqüência nesses locais, na rua a

situação era diferente.

Cardápio de rua

O ato de comer fora de casa em meados do século XIX

concentrava-se nos tabuleiros e, eventualmente, nas casas de pasto

e tabernas ou nas estalagens e pousos de tropas e tropeiros, ainda

muito comuns nos arredores e entradas capital paulista. Vindos de

vários pontos da província e do país chegavam à cidade (ou estavam

de passagem), trazendo mantimentos. O período entre 1850 e 1870

é considerado como o auge da presença de tropas nos arredores,

envolvendo várias atividades que gravitavam em torno desse tipo de

comércio: roceiros auto-suficientes, vendeiros de pequeno porte (em

função dos tropeiros), caça, pesca, etc. (Lins 2003: 111). Essa

intensa movimentação no entorno da cidade proporcionava a

existência de vários tipos de pousos na beira das estradas e entradas

87

das cidades: ranchos, vendas, estalagens e também fazendas (Franco

1997: 73).

A hospedagem para os tropeiros e viajantes não era

acompanhada de um serviço organizado de alimentação, que muitas

vezes se limitava a um local para o preparo das refeições. A

albergaria e a taberna eram apenas locais de parada dos tropeiros,

com poucas possibilidades de refeição. Nesse caso, o principal era

conseguir um local para dormir e estacionar as cargas e a montaria.

Os imensos espaços vazios ainda existentes nos arredores da cidade

eram utilizados para esse fim. Quanto à alimentação, as tropas

tinham uma estrutura própria para fazer suas refeições durante a

viagem, e estava a cargo de uma pessoa escolhida para essa tarefa,

o cozinheiro, geralmente um menino:

“Pela sua parte o cozinheiro, que era um menino chamado

juiz, fazia fogo ao relento, e sobre ele dependurava o

caldeirão de feijão com toucinho, em três estacas afincadas

no chão e encruzadas em cima.” (Bueno 1976: 29)

O fogão simples era a forma de preparar a refeição com a

mesma base que vimos anteriormente - feijão e toucinho

(provavelmente acompanhado da farinha) - a qual era mencionada

em relatos de viajantes de passagem pela cidade. E mesmo nos

pousos que ofereciam refeições para os viajantes e tropeiros, o tipo

de alimentação era o mesmo. O português Augusto Emílio Zaluar,

realizou entre os anos de 1860 e 1861 uma longa viagem pela

província de São Paulo. Em uma de suas paradas nas proximidades

de Jundiaí, descreveu a tentativa de conseguir pouso por uma noite,

milho para os animais e o jantar, ao que a dona da pousada teria

respondido:

88

“Aqui temos broa e pinga, respondeu a mulher; ali está o

rancho para se arrumarem, e o Juca vai tomar conta das

bestas. (...) Leonardo explicou-me neste comenos a

significação das duas palavras pinga e broa, que me

estavam fazendo dar tratos ao juízo. Pinga quer dizer

cachaça, e broa um pequeno e enresinado pão de milho,

pouco mais ou menos com a consistência de uma pedra.

Fiquei desanimado. A instância porém do Leonardo, a

mulher resolveu cozinhar uma panela de feijões, preparar-

nos uma galinha ensopada, e fornecer-nos um prato de

arroz e uma cuia de farinha.”46

A refeição providenciada de última hora pela dona do

estabelecimento provavelmente era a mesma que as pessoas do local

costumavam comer: feijão, galinha, arroz e farinha. Nesse caso, os

alimentos disponíveis representariam o cardápio da casa e não da

rua. Nesse sentido é uma refeição muito parecida com aquela

preparada pelos tropeiros, uma variação do cardápio da casa

consumido em trânsito: feijão, farinha e alguma carne. A única

novidade nesse caso é a presença do arroz, já bastante difundido em

meados do século XIX na região de São Paulo.

Mas se nas paradas e pousos de tropas e viajantes a

alimentação era muito parecida com o cardápio da casa, nas ruas da

cidade de São Paulo os tabuleiros e estabelecimentos das

quitandeiras proporcionavam um tipo de cardápio diferente.

46 Augusto Emilio Zaluar nasceu em Portugal em 1825 e chegou ao Brasil em 1849. Empreendeu uma viagem pela província de ao Paulo entre 1860 e 1861 registrando as regiões que conheceu e os hábitos da população (Zaluar. 1975: 136).

89

Tabuleiros

Os memorialistas e cronistas referiam-se à comida oferecida

nos tabuleiros com vários termos: quitutes, guloseimas, gulodices,

lambiscaias, petiscos, tentando circunscrever os variados tipos de

alimentos oferecidos pelas quitandeiras. Apesar de serem termos

conhecidos até hoje, pode ser útil uma consulta aos dicionários da

época, como o Dicionário da Língua Portuguesa de Antonio de Moraes

Silva (1877) para definirmos com maior precisão o significado dessas

expressões:

Quitute: guisado guloso, de apetite. Acepipe.

Petiscos: Bons bocados, manjares gulosos, apetitosos.

Lambiscaia: Porção de comida muito pequena.

Guloseima, gulodice: Manjar delicioso e saboroso, mas pouco

nutritivo.

Os significados dos vários termos são muito parecidas, mas

destacam-se duas características desses alimentos de tabuleiros:

pequenas porções de comida e sabor diferenciado. Os alimentos

encontrados nas quitandas distinguiam-se por serem unidades

autônomas que poderiam ser consumidas em qualquer horário. Não

faziam parte de qualquer estrutura de refeição (eram “pouco

nutritivas”), distinguindo-se pelo sabor. As pessoas que

experimentavam os quitutes nas ruas buscavam algo saboroso e não

necessariamente um substituto das refeições.

Nos relatos dos memorialistas podemos perceber a grande

variedade desses alimentos, preparados nas casas e vendidos nos

tabuleiros pelas ruas. Na década de 1830, Francisco Vieira Bueno

(1976: 73) descrevia o comércio de tabuleiros e alguns dos quitutes

vendidos na rua:

90

“A quitanda também era uma espécie de mercado sedentário

de muita originalidade, formado por uma aglomeração de

pretas sentadas a um lado da rua, cada qual com seu

tabuleiro, vendendo variedade de doces, e biscoitos,

amendoim torrado, pinhão cozido, e outras gulodices

apreciadas pela arraia miúda, que naquele tempo com uma

moeda de cinco réis, podia comer de qualquer delas. Na

estação em que as formigas saúvas fazem sair seus

enxames, não faltava o içá torrado. Disto dou eu

testemunho, pois sem ter vergonha, o confesso, cheguei a

provar a coisa.”

Nessa descrição, os quitutes oferecidos por um grande número

de quitandeiras destinavam-se à “arraia miúda”, mas deveriam servir

também para outras pessoas que circulavam pelas ruas, como o

próprio memorialista, que não fazia parte desse público. Uma das

marcas desse tipo de comércio, como ele afirma, era o sedentarismo.

Uma grande quantidade de quitandeiras sentadas ao longo da rua

com seus tabuleiros, evidenciando a concorrência, mas também uma

provável diversidade de tipos de quitutes expostos em um mesmo

lugar por várias quitandeiras ao mesmo tempo. Mais uma vez é

citada a venda de doces e salgados, com destaque no texto para

amendoins, pinhões e içás. Certamente esses tipos de alimentos não

faziam parte de qualquer tipo de cardápio da casa ou mesmo de

estabelecimentos como pensões, tabernas e estalagens, marcando a

“originalidade” citada pelo memorialista. Eram unidades autônomas,

certamente pequenas e, como afirma o memorialista, baratas.

Poderiam ser consumidas de forma unitária (ou várias delas), sem a

necessidade de configurar uma refeição completa, na medida em que

eram petiscos, oferecidos a qualquer hora do dia e da noite. O próprio

Francisco Bueno (1976: 25) relembra em outro trecho de seu relato o

trabalho das quitandeiras durante a noite:

91

“De noite a quitanda era iluminada com rolos de cera preta,

pregadas nas guardas dos tabuleiros, e os pregões de

pinhão quente, amendoim torrado, cará cozido, e muitos

outros, produziam alarido. Às vezes, na escuridão da noite,

encontrava-se um vulto levando fogo em cima da cabeça:

pelo pregão de pinhão quente via-se que era a preta

quitandeira, que conduzia sua panela de pinhão cozido sobre

um fogareiro posto dentro de uma gamela. (...)”

A possibilidade de consumo desses alimentos avançava noite

adentro em um período em que as tabernas tinham seu horário de

fechamento controlado pelas autoridades municipais.

Mais uma vez produtos locais, como pinhões, amendoins e cará,

aparecem com destaque nos tabuleiros, podendo ser preparados ou

mantidos aquecidos na própria rua, como era o caso dos pinhões. As

características dos quitutes providenciavam uma relativa autonomia

das quitandeiras em seu trabalho pelas ruas, facilitando o

deslocamento e a permanência em determinados pontos da cidade.

O memorialista Edmundo Amaral descreve com detalhes o

trabalho das quitandeiras em 1840, enumerando alguns dos petiscos

e o intenso trabalho de preparação. Maria Euphrasia Rufina da

Conceição Vellozo, conhecida como Sinhara, era uma senhora que

possuía escravas de ganho que vendiam doces e salgados pelas ruas.

Moradora de uma casa térrea no Beco da Cachaça comandava os

trabalhos de preparo em uma cozinha larga e negra de fumaça, onde

ficavam vários tachos de cobres e frigideiras. A lista das

especialidades de Sinhara era extensa: suspiros, papos de anjo,

quindins, cocadinha, bolos de bagre, pastéis, cuscuz de bagre, etc.

Durante a noite as escravas de Sinhara partiam para as escadarias da

92

Igreja da Misericórdia onde vendiam os quitutes, cada uma com seu

tabuleiro:

“Aqui a Rita Cachinguelê – preta cassange e lustrosa, que

gemia numa melodia triste, içás torrados e pinhão quente.

Ali a Genoveva – mulata baiana, muito dengue, muito

airosa, embrulhada no seu pano da Costa, e que apregoava

recamada de corais e figas, cuscuz de palmito e acarajés;

acolá Maria Cabinda, cafuza da mesma Nação que vendia

farofa de amendoim e bolos de bacalhau, trombuda e solene

chupando o pito.” (Amaral 1932: 75, 76)

Se os quitutes eram todos preparados na cozinha de Sinhara, a

venda parecia ser especializada, com cada uma das escravas

vendendo determinados alimentos em seus tabuleiros. A descrição

das escravas, com características de suas origens também parecia

marcar o trabalho das quitandeiras, assunto que discutiremos

adiante. Quanto aos quitutes, há uma grande mistura nos variados

petiscos quanto à origem: doces e salgados (bolo de bacalhau) de

origem portuguesa; salgados de origem local (cuscuz, farofa de

amendoim, içá e pinhão). Entre esses alimentos aparece também o

acarajé, muito vendido por quitandeiras de Salvador, mas ausente

em todas as demais descrições de tabuleiros em São Paulo.

Nas informações de Antonio Egydio Martins sobre os quitutes

vendidos na escadaria da Igreja da Misericórdia na década de 1850,

mais uma vez percebemos a mistura de doces e salgados, com

destaque para os bolos e pastéis em composição com peixes e

produtos de coleta:

“(...) as vendedeiras de doces, biscoitos de polvilho, bolos

de milho socado ou de mandioca puva, pastéis de farinha de

milho ou de trigo, saborosos cuscuz de bagre e camarão de

93

água doce, empadas de piquira ou lambari, peixe frito,

pinhão quente, amendoim torrado, pequenos pedaços de

quindungo (amendoim torrado e socado com pimenta comari

e sal) e pé-de-moleque com farinha de mandioca e

amendoim, os quais eram expostos à venda em pequenos

tabuleiros de madeira forrados com folha de Flandres com

uma vela de sebo acesa.”47

Nesse caso há uma variedade maior, envolvendo peixes, bolos,

pastéis e empadas, além de produtos mais simples como amendoins

e pinhões. A composição dos bolos e pastéis ainda traz um outro tipo

de variação, com o uso de vários tipos de farinhas: mandioca, milho e

trigo. A menção de produtos diferentes pode ser explicada pela

dispersão deste tipo de relato, que variava ao sabor das memórias,

mas também pela necessidade da concorrência entre as quitandeiras

que deveria exigir uma certa especialização em determinados

quitutes.

Apesar da variedade dos petiscos vendidos nas ruas, alguns

desses alimentos aparecem com freqüência, necessitando de uma

melhor definição de suas características. O pastel, por exemplo,

possibilitava uma grande variação, não apenas de recheios, mas

também da massa. Em dicionário de 1877 a definição de pastel se

confunde com a da empada:

“Vasosinho feito de pasta de massa, cheio de nata, fruta,

doce ou picado de carne, coberto ou descoberto, posto em

formas de lata e cozido no forno.” (Moraes Silva 1877)

47 Antonio Egydio Martins era uma mistura de historiador e cronista da cidade de São Paulo. A partir de 1905 começou a escrever uma série de colunas no jornal Diário Popular intituladas “São Paulo Antigo”. A partir dessas colunas nasceu o livro “São Paulo Antigo” publicado em 1910. Utilizamos a reedição desse livro de 2003 (Martins 2003: 198).

94

Já em outro dicionário publicado em 1881, o pastel é definido

como uma “massa de farinha cozida no forno estendida no rolo com

carne ou peixe picado, ou doce ou fruta.” (Aulete & Valente, 1881)

Para aumentar a confusão, as empadas são definidas como “espécie

de pastel de massa que contém dentro carne ou peixe. A massa é

sovada e mais grossa que a dos pastéis.” (Moraes Silva 1877). Já o

termo pastelaria englobaria todas essas variações de massa com

recheios doces e salgados que poderiam ser fritos ou assados. Nos

tabuleiros os pastéis também apresentavam uma grande variedade,

ainda que fossem em sua maioria salgados.

Além dos pastéis, outros produtos têm presença constante,

como o cuscuz e produtos de coleta. E nesse caso os peixes tinham

uma grande importância seja no recheio das massas, seja vendido

frito. Esse tipo de preparo certamente trazia algumas dificuldades. As

frituras, feitas previamente como vimos no relato de Edmundo

Amaral, deveriam ser vendidas rapidamente para evitar a

deterioração dessa modalidade de quitute. Ao contrário dos pinhões

que poderiam ser mantidos aquecidos na rua, as frituras não

poderiam ser mantidas por longo tempo antes de serem consumidas,

sob pena de perderem o sabor. Esse não era o caso dos “saborosos

cuscuz de bagre a camarão de água doce” que eram cozidos a partir

da farinha de milho e podiam ser levados às ruas e mantinham suas

características por um tempo maior.

A partir dos relatos dos memorialistas podemos avaliar a

grande variabilidade de quitutes vendidos nas ruas. No cardápio da

casa (com exceções) vemos descrições que definem com precisão

determinados elementos (arroz, feijão e carne), ainda que com

variação de preparos. Nos tabuleiros essa característica estaria

diretamente relacionada às inúmeras possibilidades de consumo na

rua. Como não se caracterizavam como refeições, podiam ser

95

consumidas em diversos horários e em qualquer seqüência. Dessa

forma, os petiscos tinham que definir certas marcas, como a

variedade e o sabor. Era a única forma de vender diariamente em

uma situação onde as quitandeiras estavam sempre nos mesmos

locais, com quitandeiras sentadas lado a lado nas ruas.

Mas não era apenas nos tabuleiros que os quitutes estavam

presentes. Muitas vezes essas quitandeiras conseguiam alugar um

quartinho em determinadas ruas da região central da cidade onde

podiam vender seus produtos. Esse era o caso da quitandeira

conhecida como Nhá Maria Café que, na década de 1860

comercializava “saborosas empadas de farinha de milho com piquira

ou lambari e vendia cada uma a 20 réis, com uma tigelinha de café a

40 réis; à noite fazia o apreciado cuscuz de bagre e camarão de água

doce” em um quartinho alugado na rua das Casinhas (Martins 2003:

198, 271). Próximo dali, na rua do Rosário, outra quitandeira,

conhecida como Maria Punga, vendia vários quitutes como bolos de

fubá, broinhas de polvilho e bolinhos de tapioca, acompanhados de

café. Possivelmente o estabelecimento dessas quitandeiras em um

comércio com local definido poderia levar a uma especialização da

atividade, definindo esses locais como ponto certo para o consumo de

determinados produtos, como as “saborosas empadas de farinha de

milho com piquira ou lambari” de Nhá Maria Café ou os bolos e

bolinhos de Maria Punga (Schmidt 2003: 113). Nesse caso, os

freqüentadores já sabiam de antemão não apenas o local, mas

também os horários em que poderiam encontrar esses produtos.

Esse parecia ser um expediente comum para algumas

quitandeiras que conseguiam alugar algum cômodo ou aproveitavam

o local onde residiam para vender alimentos sem ter que percorrer as

ruas da cidade. Antonio Egydio Martins (2003: 280) descreve esse

96

tipo de venda, como nas proximidades da Igreja do Rosário na

década de 1860, de forros que::

“(...), estabeleciam-se com quitanda, nos mesmos prédios

em que residiam, no qual vendiam doces, geléias, frutas,

legumes, hortaliças, batata-doce, mandioca, pinhão e milho

verde cozidos, pamonha (milho verde ralado e cozido na

própria palha também verde), amendoim, moqueca de

piquira, peixe frito e cuscuz de camarão de água doce...”

As quitandas misturavam gêneros alimentícios de pequena

monta para o abastecimento das casas (legumes, hortaliças, etc.)

com quitutes feitos para o consumo na rua, aproveitando um local de

grande movimento como os arredores da Igreja do Rosário. Os

alimentos vendidos eram, na maioria das vezes, os mesmos citados

por outros memorialistas, com exceção da moqueca de piquira que

diferia dos quitutes vendidos pelas ruas. Como esse tipo de venda era

feito em um local específico e não no tabuleiro colocado na rua,

provavelmente deveria existir alguma forma de comer a moqueca em

algum tipo de vasilha. Entre os produtos já mencionados por outros

memorialistas, conta-se a pamonha, que pouco aparece. Nesse caso

é o único dos quitutes que tem enumerados seus ingredientes, talvez

para facilitar a identificação, ou porque não fosse tão comum nos

tabuleiros.

Esse tipo de comércio permitia uma estabilização que poderia

influenciar na própria organização da atividade de quitandeira, como

veremos mais abaixo. Essa especialização evidenciava a importância

da modalidade de venda e consumo de petiscos nas ruas. Se o caso

das vendas abertas por quitandeiras estava diretamente ligado à

necessidade e oportunidade, eventualmente surgiam

estabelecimentos que reforçam a importância desse tipo de comércio.

97

Na última página do jornal Correio Paulistano de 1854 aparecia uma

pequena coluna anunciando:

“Petisco – na rua do Rosário, n, 24 vende-se pastéis de

carne para almoço todos os domingos das 7 às 10 da

manhã.”48

De acordo com o anúncio os petiscos eram vendidos apenas no

domingo e em um horário restrito, durante o período do almoço.

Nesse caso os pastéis eram oferecidos explicitamente como almoço,

não apenas pelo horário em que eram vendidos, mas também pela

própria informação do anúncio. Podemos imaginar que pudessem ser

utilizados como complemento ou até mesmo substitutos do almoço.

De qualquer forma eram unidades autônomas e o destaque no título

para a palavra “petisco” circunscreve com precisão o alcance dos

pastéis. Mas a definição era importante, a ponto de outro anúncio

dias depois reiterar o alvo da propaganda “para os amantes do bom

petisco”.49 Ao contrário das vendas feitas por quitandeiras em vários

pontos da cidade e vários horários, esses petiscos tinham local de

venda, dia e horário definidos e regulares anunciados em jornal. E

não era um estabelecimento da rua das Casinhas ou de algum beco

onde ficavam várias quitandeiras, mas o principal endereço da

cidade, a rua do Rosário (atual rua 15 de Novembro), ainda que bem

próximo da rua das Casinhas, ponto tradicional dos tabuleiros.

A grande variedade (especialização) e permanência dos

petiscos vendidos pelas quitandeiras aparecem em todos os relatos,

embora consideremos que são esparsos e em pequeno número. Até

agora vimos descrições da venda de quitutes entre os anos de 1830 e

48 Correio Paulistano, 12/08/1854, p. 4 49 Correio Paulistano, 16/08/1854, p. 4

98

1860, mas mesmo nas últimas décadas do século XIX não havia

grandes mudanças no cardápio do que era oferecido nas ruas.

Everardo Valim de Sousa descrevia as “guloseimas” vendidas

na porta do teatro São José em 1886: cuscuz, pastel, croquete,

cubus, isca, pinhão, pamonha, castanha, mandobis e ovos quentes50.

E menciona também o “recreio” que os estudantes faziam na ponte

Grande a beira do rio Tietê (atual ponte das Bandeiras) quando “não

faltava boa freguesia para as castanhas quentes, pinhões cozidos e

guloseimas outras em voga.” (Sousa 1946: 63).

Em um espaço de quase 50 anos, as mudanças no cardápio da

rua são muito pequenas, permanecendo o consumo de cuscuz,

pinhões e pastéis. Eventualmente aparece algum outro produto,

como as castanhas, mandobis ou o cubus. Nas últimas décadas do

século XIX o crescimento da cidade, a despeito das tentativas de

controle e fiscalização, permitia que as quitandeiras continuassem a

vender seus quitutes nas ruas. Ainda que eventualmente surgissem

algumas “guloseimas em voga”, como poderia ser o caso das

castanhas, permaneciam no cardápio dos tabuleiros alimentos

baseados em antigas tradições que misturavam produtos de origem

portuguesa (bolos e pastéis) e ingredientes locais.

Doces e frutas

Os doces também tinham um grande apelo não apenas no

consumo caseiro, mas também nas ruas, aparecendo com freqüência

nas descrições de memorialistas, de forma genérica e também

específica: bolos, geléias, pamonhas e balas. No relato já citado de

Edmundo Amaral, vimos uma grande variedade de doces de origem 50 Cubus era a carne da capivara e mandobi uma espécie de amendoim.

99

portuguesa que eram preparados por quitandeiras: suspiros, papos

de anjo, quindins, cocadinhas, queijadinhas, alfinis, etc. As balas

também ocupavam um espaço importante nos tabuleiros. A já

mencionada Maria Paes de Barros descreve em suas memórias de

infância na década de 1860 seu passeio pelas ruas da cidade de São

Paulo após uma procissão de Corpus Christi:

“Mas não ficava a rua vazia. Muita gente transitava de um

para outro lado; inúmeras quitandeiras passavam com seus

tabuleiros à cabeça, cheios de docinhos variados, envoltos

em papéis de cor. A isso não resistiam as crianças, que

importunavam as mães com seus pedidos. Lá iam as pajens

comprar as balas de rosário, as balas compridas de rosa e

de limão e os de confeito de anis. Satisfeitos com tais

guloseimas eram os pequenos despachados para casa com

suas pajens, enquanto os pais se reuniam para pequena

colação” (In Moura 1998: 105, 106).

Famílias como a de Maria Paes de Barros, tinham acesso aos

quitutes e doces em suas casas feitos pelas cozinheiras escravas,

mas o ambiente das ruas da cidade, em um momento de exceção,

após uma procissão, proporcionava uma nova forma de consumo,

diferente daquela feita em casa. Além dos doces em si, o fato de

comer na rua (ainda pouco freqüentada por mulheres e crianças de

classes mais abastadas) e uma nova apresentação dos doces no

tabuleiro, permaneceram na memória da autora. Esses doces

misturavam diferentes tradições: africana e portuguesa. A doçaria

portuguesa encontrou um campo fértil no Brasil. Além da forte

presença do açúcar, o comando das negras escravas na cozinha

possibilitou o longo preparo de doces e compotas.

“Sem a escravidão não se explica o desenvolvimento, no

Brasil, de uma arte do doce, de uma técnica de confeitaria,

100

de uma estética de mesa, de sobremesa e de tabuleiro tão

cheias de complicações e até de sutilezas e exigindo tanto

vagar, tanto lazer, tanta demora, tanto trabalho no preparo

e no enfeite dos doces, dos bolos, dos pratos, das toalhas e

das mesas.” (Freyre 1996: 55-58).

As quitandeiras que vendiam doces e salgados pelas ruas

aproveitavam-se dessa perícia na confecção de seus quitutes. A

perícia estava não apenas no preparo (rápido ou lento e acordo com

o que era vendido), mas também na forma de apresentação e venda

nos tabuleiros. Assim como os quitutes salgados, os doces podiam

ser consumidos em qualquer ocasião e horário, aumentando o rol dos

petiscos em uma situação de intensa concorrência dos tabuleiros nas

ruas da cidade. Se os doces traduziam uma mistura entre práticas de

escravas de origem africana e doçaria portuguesa, outros quitutes

estavam diretamente ligados ao passado indígena e mameluco da

cidade.

As frutas também aparecem com freqüência nas vendas de

tabuleiro nas ruas, como produto destinado à venda pelas

quitandeiras, da mesma forma que as verduras. Se nos relatos não

encontramos referências sobre o consumo nas ruas ou na casa,

devemos registrar sua importância. Isso fica claro não apenas na

presença de quitandeiras de frutas, mas, sobretudo, nas reclamações

da venda de frutas verdes que mereceram atenção no Código de

Posturas de 1875, o qual dedicava um artigo para proibir a venda de

“frutas verdes, mal sazonadas ou podres”. Essa determinação seria

confirmada na consolidação do código em 1886.51

51 Correio Paulistano, 21 de janeiro de 1870, p. 1; Coleção das leis e posturas municipais promulgadas pela Assembléia Legislativa de São Paulo, 1875; Código de Posturas do Município de São Paulo, 1886, p. 17.

101

Nas duas últimas décadas do século XIX a venda de frutas

ainda deveria ser freqüente nas ruas. A única referência sobre o

consumo de frutas na própria rua vemos em uma reclamação

publicada no jornal A Província de São Paulo de 1885:

“Na ladeira do Acu, onde está estacionado um quiosque, vê-

se geralmente quitandeiras sentadas sobre o passeio com

seus respectivos tabuleiros de frutas, as quais fazem com

que a calçada fique as vezes em estado imundo, como se ali

fosse o despejo de lixo ou como se fosse o pátio do

mercado. A calçada constantemente suja de cascas e

bagaços de frutas, etc. Obriga quase sempre a não poder

passar ali. Diversas pessoas tem se queixado já, e não são

poucas as quais por ali passando descuidadas tem sido

vítimas de escorregadelas e quase vindo a cair. Isto vai com

vista aos srs. Fiscais, que deverão fazer valer as disposições

das posturas.”52

Nesse caso há um dado que confirma que as frutas poderiam

ser consumidas nas próprias ruas, o bagaço e cascas jogados na rua.

Mas a venda de frutas por quitandeiras era importante, a ponto de

serem citadas no Código Sanitário de 1894 como veremos adiante.

“Iguarias de bugre”

Muitos dos quitutes vendidos nas ruas de São Paulo na segunda

metade do século XIX foram notados como “iguarias de bugre”.

Sérgio Buarque de Holanda (1994: 55-59), como já relatado, cunhou

essa expressão para caracterizar determinados alimentos e

ingredientes que tinham uma longa tradição na alimentação paulista.

Eles fariam parte de uma estratégia de subsistência, um longo 52 A Província de São Paulo, 21 de julho de 1885.

102

esforço de adaptação ao novo clima e às condições do sertão nos

primeiros séculos da colonização (Holanda 1994: 55-59). Nas

incursões pelos sertões, quase tudo era visto como comestível: antas,

capivaras, macacos, mel de abelhas, grelos de samambaia, carás do

mato, etc. (Frieiro 1982: 62, 63).

Entre vários produtos de coleta, os pinhões e amendoins

tiveram um grande destaque na alimentação dos paulistas. Os

pinhões são sementes da araucária, uma árvore que era abundante

na região do planalto paulista e faziam parte da dieta daqueles que

entravam no sertão. Ao lado de cobras, bichos de taquara, entre

outras “iguarias” à disposição no sertão, a içá teve um papel de

destaque na alimentação. Já no século XVI o cronista Gabriel Soares

de Souza (1974: 73) comparava o sabor da tanajura “às passas de

Alicante”.

Alguns desses ingredientes apareciam nos quitutes vendidos

nas ruas de São Paulo na segunda metade do século XIX. Ao

contrário de outros alimentos que enumeramos, a içá provocava

curiosidade e estranheza, principalmente dos memorialistas e

viajantes que descreveram (e eventualmente experimentaram) seu

consumo nas ruas. De um alimento considerado comum nos

primeiros séculos de história da cidade, no século XIX a içá passou a

ser vista, principalmente pelos estudantes de direito, como algo

exótico. Uma das menções mais conhecidas sobre o costume dos

paulistas de comer içás foi feita pelo estudante Francisco José Pereira

Guimarães, formado na faculdade do largo São Francisco em 1832,

através de uma quadrinha que satirizava essa preferência:

“Comendo içá, comendo cambuquira, vive a afamada gente

paulistana, e os tais a quem chamam caipira, que parecem

não ser da raça humana”. (Nogueira 1909: 122)

103

Essa quadrinha, que se tornou famosa, sendo citada por outros

autores, exemplifica a importância (e sobrevivência) de antigos

costumes alimentares na comida de rua em São Paulo. Se as

quitandeiras continuavam a oferecer içás nos tabuleiros é porque

ainda havia demanda, principalmente da população mais pobre, já

que deveria ser um prato barato devido à sua facilidade de obtenção

e preparo. Ainda que estivesse ausente nas descrições do cardápio da

casa, permanecia na rua. A referência aos “caipiras” é bastante

interessante. Sem que precisemos analisar a conotação desse termo

no século XIX, podemos considerar que havia um traço pejorativo,

em oposição talvez a hábitos mais urbanos identificados, por

exemplo, com os estudantes da Faculdade de Direito. Nesse caso, os

paulistanos, ainda que “urbanos”, estariam, na visão do estudante,

equiparados aos caipiras em uma condição não humana.

As saúvas tornaram-se no decorrer do século XIX um problema

de vulto para as autoridades. Em 1870 existia no orçamento

municipal uma verba de 500$000 destinada exclusivamente à

“extinção de formigueiros e animais daninhos” (Aprobato 2006: 191).

O Código de Posturas publicado em 1875 estabelecia prazos para que

os moradores extinguissem os formigueiros em suas propriedades. O

mesmo código, ampliado em 1886, dedicava um artigo inteiro para

tratar da obrigação dos proprietários de extinguirem os formigueiros

em suas propriedades até a distância de um quilômetro.53 As normas

referentes ao controle de formigas vigoraram até pelo menos 1890. A

despeito de ou a propósito disso, o consumo de içás continuou na

cidade e também na província por todo o século XIX, pelo menos

entre a gente mais pobre.

53 Coleção das leis e posturas municipais promulgadas pela Assembléia Legislativa de São Paulo, 1875.

104

Muitas dessas iguarias vendidas nos tabuleiros das quitandeiras

tinham um baixo grau de preparo, torrados (içá e amendoim), fritos

(peixes) ou cozidos em água (pinhões). Esse cardápio era constituído

de elementos de origem mameluca e indígena, com algumas

adaptações feitas pelas quitandeiras de origem africana.

Composições

Os alimentos vendidos pelas quitandeiras, como se viu, não se

limitavam às iguarias de bugre, englobando o uso das várias farinhas

para a confecção de bolos, pastéis, bolinhos e empadas, ainda que

utilizassem, frequentemente, os ingredientes citados anteriormente

nos recheios. Em substituição ao trinômio feijão, farinha de milho e

carne (toucinho), nas ruas havia o binômio farinha de milho

(eventualmente a farinha de mandioca e raramente a farinha de

trigo) e iguarias de bugre.

Se a mistura das farinhas com os caldos (feijão e carne)

caracterizaria a dieta mínima brasileira misturando e equilibrando o

seco da farinha com o molhado dos caldos, na alimentação de rua

ocorre um fenômeno parecido (Silva 2005: 25). Os quitutes listados

como “iguarias de bugre” são secos, utilizando alimentos torrados e

misturados com farinhas (exceto o peixe frito), semelhante ao uso

que os indígenas faziam, privilegiando a secura da farinha ou das

carnes moqueadas. O uso das farinhas na confecção de bolos,

bolinhos e empadas acrescidos de alguns ingredientes vindos de uma

longa tradição no planalto paulista, providenciaria o equilíbrio citado

acima. Mas se na casa havia uma certa tendência ao molhado, com

virados e angus mais úmidos, na rua ocorria o contrário. Como

tratamos de petiscos, vendidos em pequenas unidades para serem

105

consumidos rapidamente, há uma consistência maior na composição

dos quitutes.

Esse equilíbrio entre seco e molhado era representado na rua

pelo cuscuz. Assim como o virado, era uma mistura de farinha de

milho com caldo, ainda que fosse mais seco, já que deveria ser

vendido em pedaços ou pequenas unidades, sendo comido com as

mãos. Como elementos dessa mistura eram utilizados basicamente

peixes e camarões de água doce, produtos largamente utilizados em

vários quitutes de rua.54 Nos dicionários da época, a definição de

cuscuz era bastante simples: “massa de farinha reduzida a

grãozinhos que se come cozida ao vapor de água quente.” (Moraes

Silva 1877). O elemento principal era a farinha de milho, acrescida de

ingredientes que estivessem ao alcance: galinha, pitus, peixes, etc.

Além do milho (farinha), o uso de produtos de pesca e coleta

(peixes, içás, pinhões, etc.) proporcionou a esse tipo de alimentação

uma característica de plasticidade e adaptabilidade perfeita para uma

atividade desenvolvida por pessoas pobres para a venda na rua.

Ainda mais que como apontado, os arredores da cidade, com

remanescentes de matagais e inúmeros rios, ainda proporcionavam a

possibilidade de obtenção destes produtos de coleta e pesca

utilizados em vários quitutes preparados por mulheres pobres e

escravas. Ainda que o processo de crescimento e transformação da

cidade dificultasse essas atividades. Por outro lado, o surgimento de

novos produtos e hábitos parecia ser facilmente incorporado ao

repertório da comida de rua, como era o caso da castanha européia

54 O nome “cuscuz” refere-se a um prato originário da África setentrional, feito com milheto que seria substituído pelo milho americano a partir do século XVI. No nordeste o cuscuz geralmente é feito com milho, leite de coco e açúcar, diferenciando-se do cuscuz feito em São Paulo e Minas Gerais. Apesar do nome de origem árabe, alguns pesquisadores consideram que o cuscuz paulista tem origem no virado, sendo um bolo de farinha de milho cozido com peixes, frango ou camarão de água doce. A esse respeito ver: Câmara Cascudo, 2004: 186, Schmidt, 1959 e Carvalho 2005.

106

que passaria a ser vendida nas ruas nas últimas décadas do século

XIX.

Essa mistura diferenciava-se também do cardápio da casa, já

caracterizado anteriormente. A presença de quitutes doces e salgados

como aqueles encontrados nas ruas só ocorria, excepcionalmente,

nas casas mais abastadas durante a refeição da manhã e da noite.

Esse era o caso dos “deliciosos bolos, biscoitos e variadas guloseimas

de confecção doméstica” consumidos pela manhã ou do “genuíno chá

inglês acompanhado de guloseimas ainda quentes feitas por peritas

quituteiras” relatado pelo estudante de direito Everardo Valim de

Sousa (1946: 64) em suas memórias nas últimas décadas do século

XIX. Nas ruas era possível ter acesso a esse cardápio não apenas de

manhã ou a noite, mas durante todo o dia.

A existência de alguns ingredientes listados como “iguarias de

bugre” misturados com uma grande variedade de bolos, bolinhos e

pastéis não é suficiente para caracterizar um cardápio paulistano

singular. Mas aponta algumas especificidades da venda de alimentos

nas ruas da cidade nesse período. Essas especificidades foram

responsáveis pela sobrevivência deste cardápio, perfeitamente

ajustado às necessidades das quitandeiras, em busca de mobilidade e

formas de sobrevivência, ainda que precárias. Para Maria Cristina

Wissenbach (1998: 30), o povoamento pouco denso dos arredores

conservava matagais, brejos e rios onde os habitantes retiravam

elementos essenciais para suas vidas. O uso do milho e produtos de

coleta e pesca no preparo das quitandas era uma perfeita adaptação

para este tipo de atividade. Devemos lembrar que as quitandeiras

dominavam o comércio desse tipo de gênero alimentício. Enquanto o

arroz, feijão e milho eram destinados aos taberneiros e comerciantes

estabelecidos nas casinhas, as quitandeiras tinham permissão para

comerciar verduras, legumes, peixes, etc., considerados como

107

miudezas, de produção pulverizada em quintais e chácaras, ou

obtidos por pescadores. Essa divisão, que já foi discutida, existia

desde a organização das casinhas no final do século XVIII e

prosseguiu durante o século XIX, quando as quitandeiras se

especializaram nesse pequeno comércio de abastecimento e também

de venda de alimentos prontos para o consumo na rua.

São visíveis as diferenças entre estas listas de alimentos,

atestando a grande variedade e a existência de um núcleo mínimo

que caracterizava estes cardápios. Na rua as estalagens e pousos

para viajantes e tropeiros mantinham elementos desse cardápio

básico da casa baseado no feijão, farinha de milho e toucinho

(carne). Mas era nos alimentos preparados e vendidos pelas

quitandeiras que podemos perceber as diferenças. Ainda que também

ancorados em antigos hábitos alimentares, os quitutes e petiscos de

rua se aproveitavam de determinados elementos perfeitamente

adaptados a este tipo de atividade. O mesmo equilíbrio entre seco e

molhado que caracterizava as misturas entre alimentos e técnicas de

preparo, apareciam nos principais elementos da alimentação de rua.

Assim como as pensões introduziam novos elementos no cardápio da

casa, as quitandeiras também traziam quitutes que se diferenciavam

tanto do cardápio da casa quanto de tabernas, estalagens e pousos.

Através dos relatos podemos identificar a permanência dos

principais elementos da alimentação de rua ao longo da segunda

metade do século XIX. As descrições feitas por volta da década de

1830 não são muito diferentes dos relatos de 1886.

Os relatos indicam não um cardápio específico da alimentação

de rua, mas uma grande diversidade e disparidade de elementos. Ao

contrário da casa, onde a despeito da variação (condicionada pela

possibilidade de aquisição) havia um núcleo mínimo com refeições

108

integradas, na rua a marca é a dispersão. A própria característica dos

alimentos reforça essa grande variação. Não tratamos de refeições,

mas petiscos, porções pequenas de doces ou salgados para serem

consumidos em qualquer local e horário. Ainda que pudessem

substituir a refeição, essa não era a natureza dos alimentos de

tabuleiro. Não havia nenhuma seqüência pré-estabelecida. A

variedade era uma forma de atender à demanda por produtos

diferentes daqueles encontrados nas casas e enfrentar a

concorrência. Assim, nas descrições podemos perceber uma grande

mistura de alimentos, ingredientes e formas de preparo. Desde

alimentos com pouca modificação como os pinhões até preparos mais

elaborados como os pastéis, bolos, doces, etc. Alimentos à base de

farinha de milho e também do trigo europeu. Nessa mistura é

possível perceber também a permanência de várias tradições

alimentares: portuguesa, indígena e africana. Todos submetidos à

mesma necessidade: venda em pequenos pedaços para serem

comidos na hora.

As características desse tipo de comércio e dos alimentos

permitiram que eles permanecessem na rua, ainda que em uma

situação de precariedade, vulnerabilidade e expostos às mudanças

em curso. As transformações desse cardápio podem ser melhor

avaliadas quando tratarmos das mudanças urbanas que colocaram

em xeque o trabalho das quitandeiras e a introdução de novos

hábitos alimentares associados ao problema da higiene, o surgimento

de novos estabelecimentos como os restaurantes e a chegada dos

imigrantes.

Mas antes de enfocarmos o processo de transformações nessas

atividades, devemos procurar entender como estavam organizadas as

demais formas importantes de venda de alimentos nas ruas no

109

momento em que começavam a surgir os restaurantes e confeitarias:

tabernas e quitandeiras.

110

2.2 Tabernas e botequins

As tabernas e botequins eram os principais estabelecimentos

para comer e beber até meados do século XIX. Em dicionários da

época as tabernas eram definidas como locais onde se vendia a

miúdo vinho, azeite e alguma coisa para comer. Os botequins eram

locais onde se vendiam licores, limonada, café, etc. (Moraes Silva

1877). Nos dois casos não era a comida o principal atrativo, mas as

bebidas. De qualquer forma não havia uma rígida especialização

desses estabelecimentos. Existem referências dão fato de que

taberneiros também vendiam gêneros alimentícios como o toucinho

desde o século XVIII (Miranda 2002: 64). Este tipo de

estabelecimento foi pouco estudado e documentado, sendo mais

freqüente o relato de viajantes, memorialistas ou ainda a informação

da legislação que tratava do assunto.

As tabernas eram espaços públicos importantes não apenas nos

centros urbanos do século XIX, mas também em áreas rurais, onde

podiam desempenhar funções de abastecimento e local de encontros.

Analisando as relações entre as tabernas e a vida urbana em São

Paulo entre 1820 e 1880, José Carlos Barreiro (1997: 176, 177)

enfatiza seu papel como cenário de conflitos entre a lógica da cidade

oficial e a cultura das classes populares.

Em São Paulo, muitas destas tabernas estavam localizadas

estrategicamente nas entradas da cidade. As imediações das pontes

(entradas e ponto movimentado de passagem) concentravam um

grande número de vendas, local onde os mais variados segmentos

sociais se encontravam pra negócios e conversas. Antonio Egydio

Martins fala do “botequim de café” de D. Maria da Glória Bastos, a

conhecida Sinhara, estabelecido no Campo da Luz em meados do

111

século XIX, uma das saídas da cidade em direção ao Vale do Paraíba

e Minas Gerais (Martins 2003: 232).

Apesar da variação de nomes, geralmente os estabelecimentos

conhecidos como tabernas e botequins não estavam diretamente

ligadas ao pouso de viajantes como as albergarias e vendas e muitas

vezes misturavam as funções. Localizavam-se em vários pontos da

cidade, atraindo tropeiros, trabalhadores livres, forros e também

escravos que circulavam pela cidade. Não havia uma especialização

desse tipo de comércio, que poderia vender variados gêneros

alimentícios para abastecimento, mas também preparar algo para

comer, além da bebida.

O comerciante conhecido como Joaquim Bafejador teria

transformado seu armazém em ponto de encontro para discutir

diversos assuntos, onde se poderia apreciar a caninha do Ó em

pequenos cálices. Recebia seus convidados, geralmente “cavalheiros”,

em uma sala em separado de seu comércio. A mistura de armazém e

botequim de Joaquim Bafejador ficava na esquina da rua São Bento e

ladeira do Acu (futura avenida São João). Nesse mesmo local foi

fundado em 1878 o Café Java que possuía características bem

diferentes do botequim de Joaquim Bafejador, mais adequado à

realidade dos cafés do final do século XIX (2003: 296).

Apesar de estabelecidos em comércio e pagando taxas e

licenças, as tabernas e botequins tinham como concorrentes diretos

as quitandeiras e seus tabuleiros, convivendo e disputando o mesmo

tipo de público. Como vimos anteriormente, nas primeiras décadas do

século XIX havia constantes reclamações de donos de botequins e

tabernas contra as quitandeiras, acusadas de vender gêneros que

seriam próprios dos armazéns, sem pagar impostos por isso.

112

Por outro lado era possível encontrar locais que pareciam juntar

o ambiente das tabernas com as quitandas de rua, esse era o caso do

já citado estabelecimento de Nhá Maria Café, localizado na rua das

Casinhas em meados do século XIX. Era um local simples, onde a

freguesia aguardava em pé o preparo das iguarias como cuscuz e

empadas, que acompanhariam uma “tigelinha de café” pela manhã. A

importância de Nhá Maria Café vai mais além, pois haveria uma

relação familiar entre o ex-presidente da província João Teodoro

Xavier e a quitandeira: ela era bisavó do único herdeiro de João

Teodoro.55

Próximo ao comércio de Nhá Maria Café, na rua do Rosário,

havia outra quitandeira, que vendia seus quitutes no local onde

residia. A parda Maria Emília Vieira (conhecida como Maria Punga)

atendia sua freguesia oferecendo café e alguns petiscos. Afonso

Schmidt (2003: 113) também descreveu o café de Maria Punga,

acentuando a precariedade do local:

“O freguês chegava, empurrava a meia-porta e entrava na

sala pobre, telha-vã, tendo à amostra a ossatura de vigas,

caibros e ripas. Nessa sala havia mesa grande, encardida,

cercada de mochos que faziam às vezes de cadeiras.”

Se na descrição da venda de Nhá Maria Café não temos noção

do espaço, no estabelecimento de Maria Punga podemos perceber

que o local não se preocupava com a forma pela qual os clientes

iriam consumir os produtos. Devemos considerar que Afonso Schmidt

comparava a situação do café de Maria Punga com os cafés da

55 João Teodoro Xavier, que governou a província entre 1872 e 1875, teria legitimado um filho natural que tivera depois de viúvo, tornando-o seu único herdeiro. Quem cuidou do processo seria o avô da criança, Mariano da Purificação Fonseca, oficial de gabinete de João Teodoro, que era casado com a filha de Nhá Maria Café. A esse respeito ver Maria Luíza Oliveira, 2003: 246 e Antonio Egydio Martins (2003: 198).

113

segunda metade do século XIX, quando na verdade ele estaria no

mesmo patamar de tabernas e botequins, destacando-se apenas pela

presença das quitandas. Nesse caso, o termo “café” servia apenas

para designar que esse tipo de bebida era servido em tais

estabelecimentos. Era uma realidade distinta dos estabelecimentos

que começariam a surgir no último quartel do século XIX. Antes

disso, café era definido como um “botequim onde se vende café”

(Moraes Silva 1877).

Os estabelecimentos comerciais da cidade até meados do

século XIX tinham pouca ou nenhuma preocupação com a aparência,

se os compararmos com o ambiente dos cafés e restaurantes. O

interior geralmente era rústico e com pouco mobiliário. A fachada

prescindia de toldos, vitrines e placas que só começaram a ser

utilizadas nas últimas décadas do século XIX (Lotito 2006: 28). As

tabernas e botequins eram de acesso público onde as pessoas se

juntavam para beber (e eventualmente comer) de forma quase

coletiva. As formas de comer e beber isoladamente em mesas são

características dos restaurantes que surgiriam em São Paulo na

segunda metade do século XIX, principalmente nas décadas finais do

século.

O almanaque da província de São Paulo para o ano de 185756

traz uma relação das tabernas existentes na cidade, atestando sua

importância na cidade em meados do século XIX. Em um total de 55

tabernas, a rua da Cadeia e a rua do Piques concentravam um grande

número desses estabelecimentos. Muitos deles estavam localizadas

nas entradas da cidade (Ponte do Carmo, Ponte do Fonseca, Piques)

e no sul da Sé, em locais próximos ao Largo São Gonçalo. Poucas

56 Almanak administrativo, mercantil e industrial da Província de São Paulo, 1857, p. 142, 143.

114

estavam no Triângulo, como os três estabelecimentos listados na rua

São Bento.

Com exceção das tabernas de Maria Punga e Nhá Maria Café,

onde os quitutes se destacavam, na maioria desses estabelecimentos

o mais importante era a possibilidade de contatos de pessoas de

diferentes categorias sociais e profissionais.

Ajuntamentos

Ao contrário do comércio de Joaquim Bafejador, ponto de

encontro de “cavalheiros”, a maioria dos botequins constituíam

verdadeiros pontos de ajuntamento, sim, mas de classes menos

abastadas. Esses locais representariam para a população mais pobre,

inclusive os escravos, a possibilidade de trabalho, ganhos, acertos e

relações, além do próprio lazer (Moura 2005: 62, 63). Por outro lado,

essa mistura também provocava freqüentes distúrbios, que

atemorizavam os moradores e incomodavam as autoridades. Esse

tipo de ajuntamento também atraía o comércio de quitandas feito por

quitandeiras, possibilitando suas vendas e chamando a atenção das

autoridades desde o início do século XIX. Nesse sentido, havia uma

grande semelhança entre tabernas, botequins e tabuleiros no tocante

ao tipo de público que os freqüentava.

Nesse contexto, as bebidas e discussões faziam parte do

convívio que incomodava parcelas da população e autoridades. De

forma implícita podemos perceber conflitos no uso do espaço urbano

que começava a se transformar. Trata-se de formas diferentes de

apropriação e uso desse espaço, permeado por questões econômicas

e sociais. Como vimos, entre os temores das autoridades estava o

início de distúrbios que poderiam sair do controle e também os planos

115

de fugas de escravos, que muitas vezes eram elaborados e postos em

execução a partir de conversas iniciadas em tabernas e tabuleiros.

Em 1854 o jornal Correio Paulistano publicava a reclamação de um

leitor que se intitulava sintomaticamente “o vigia” e chamava a

atenção das patrulhas que “não procuram negros nas vendas de

certos alemães após as sete da noite.”57

Essa é uma das primeiras referências à presença de imigrantes

como proprietários de comércio, no caso alguma taberna ou

botequim. Os alemães se destacariam nas décadas seguintes com

Cervejarias e Confeitarias.

Mas o maior temor, revelado nessa reclamação, era em relação

aos escravos, que, circulando pelas ruas da cidade, comiam, bebiam,

trabalhavam e se divertiam nesses estabelecimentos. O Código de

Posturas de 1875 dedicava alguns artigos justamente a esse

problema:

“Artigo 169 – É proibido, nas casas de negócio,

ajuntamentos de escravos, ou de outras pessoas fazendo

vozerias e incomodando a vizinhança, sob pena de 10$ de

multa.

Artigo 170 – Os donos de tavernas, hospedarias, botequins e

casas de pasto que derem pousada a escravos suspeitos de

fugidos, ou consentirem que pernoitem em companhia de

algum hóspede, sem estarem a seu serviço, incorrerão na

multa de 20$.58

Tais locais serviam também como oportunidade de disseminar a

informação entre a sociedade. A Câmara Municipal de São Paulo tinha

57 Correio Paulistano, 20/07/1854, p. 3. 58 Coleção das leis e posturas municipais promulgadas pela Assembléia Legislativa de São Paulo, 1875

116

o costume de divulgar seus editais e os da Corte nesses locais (Moura

2005: 84). Em uma sociedade onde a maioria da população era

analfabeta, a oralidade tinha que ser muito importante. Os pontos de

venda acabavam por repercutir as informações de editais, jornais e

boatos que circulavam pela cidade. Além dos moradores que

freqüentavam os estabelecimentos, a presença de forasteiros

fortalecia esse caráter de difusão de informações e opiniões.59 Mas

esses encontros eram potencialmente perigosos já que a informação

poderia se desenvolver em forma de boatos e rumores. As

autoridades procuravam vigiar esses pontos para evitar que os

boatos e pequenos distúrbios pudessem evoluir para algo mais grave.

O público das tabernas e botequins era o mesmo que

freqüentava os tabuleiros das quitandeiras, vendedoras de alimentos

prontos em vários locais da cidade. Essa ebulição era provocada pela

presença de variados tipos sociais nesses locais, além de tropeiros e

escravos. Segmentos mais abastados também freqüentavam as

tabernas, muitas vezes devido a seus negócios, e também

consumiam os quitutes das quitandeiras. Denise Moura ( 2003: 271)

cita o caso de pessoas que iam à casa de negócios na ponte do

Lorena e se entretinham em jogatinas, enquanto negociavam os

gêneros trazidos pelos tropeiros. Esse era o caso do café de Maria

Punga, citado anteriormente, onde a freguesia era composta por

negociantes, estudantes, empregados no comércio, artistas e outros

(Martins 2003: 271).

Entre esses segmentos sociais um dos mais importantes eram

os estudantes da Faculdade de Direito do Largo São Francisco. A

Academia de Direito e os estrangeiros contariam entre os principais

59 Richard Sennet (1997: 278) fala sobre esse caráter de formação e difusão da opinião pública em locais como os cafés europeus. Surgidos no século XVIII, em sua origem serviam como local de conversações e troca de informações, ponto de encontro de gente que não se conhecia, palco de mexericos e troca de notícias.

117

catalisadores do processo de transformação da cidade no século XIX,

antes do impulso da riqueza do café. A presença destes elementos

teria propiciado uma cosmopolitização da cidade com o surgimento

de hotéis e restaurantes (Morse 1950: 46). Apesar da inegável

importância dos estudantes na dinamização da cidade, vimos que já

havia um dinamismo mercantil, principalmente a partir do final do

século XVIII.

De qualquer forma, em relação à vida urbana e ao crescimento

do comércio e serviço, principalmente na área de alimentação, a

presença destes estudantes foi fator de dinamização. Além das

camadas menos abastadas da população, os estudantes eram

presença constante em tabernas, tabuleiros e demais atividades

urbanas. Mesmo com os restaurantes, cafés e confeitarias, esses

estudantes e bacharéis ainda circulavam pelas ruas, freqüentando os

mesmos lugares de tropeiros, escravos e caipiras. O acadêmico

Everardo Pereira de Sousa (1946: 63) descreve a venda de

guloseimas em tabuleiros em frente ao teatro São José em 1886,

onde os petiscos eram apregoados aos berros ou em versos por

estudantes de direito em troca de empadinhas. Afonso Schmidt

(2003: 113) falando sobre o citado café de Maria Punga diz que “só

mesmo estudante, meirinho, boiadeiro, ou gente de fora entrava no

café de Maria Punga.”

Controle

Com o grande crescimento desse tipo de estabelecimento, já

em 1826 a Câmara pedia uma relação de todas as tabernas,

botequins e armazéns da cidade para seu conhecimento.60 Com as

constantes brigas e tumultos verificados nesses locais, a Câmara 60 Atas da Câmara Municipal de São Paulo, 05/08/1826, p. 525.

118

aprovou em posturas de 1829 multa contra “contra taberneiros que

consentirem rixas ou tumultos em suas tabernas.”61 A legislação

municipal procurava controlar a proliferação destes estabelecimentos

e principalmente o tipo de freqüência e horários.

Com a aprovação das Posturas Municipais em um código

organizado a partir de 1875, havia uma preocupação com a

centralização das vendas de alimentos nos mercados e com os

estabelecimentos comerciais, principalmente tabernas e botequins,

em relação aos horários e freqüentadores. Os estabelecimentos

comerciais deveriam conservar-se fechados nos dias santificados

após o meio-dia, com exceção de farmácias, cafés, bilhares,

restaurantes e hotéis. O mesmo não se aplicava a outros tipos de

comércio, como tabernas, casas de pasto e “outros estabelecimentos

semelhantes, que se prestam à reunião de ébrios, vagabundos e

desordeiros.”62 Esses lugares deveriam permanecer fechados nos dias

santificados e também nos dias úteis após as 10 horas da noite nos

dias de verão e 9 horas da noite no inverno. O texto do código

estabelecia as diferenças entre cafés e restaurantes em relação a

tabernas e casas de pasto: o tipo de público composto de “ébrios,

vagabundos e desordeiros”, além dos escravos que também poderiam

ser caracterizados pelas autoridades com esses qualificativos.

Assim como não conseguiam impedir o trabalho das

quitandeiras e demais vendedores nas ruas, as autoridades

municipais também não conseguiam evitar botequins e tavernas. A

solução encontrada era controlar os horários desses locais,

principalmente à noite, quando esse ambiente e os tipos sociais que

ali circulavam poderiam ser potencialmente perigosos, na visão do

61 Atas da Câmara Municipal de São Paulo, 12/01/1829, p. 91. 62 Coleção das leis e posturas municipais promulgadas pela Assembléia Legislativa de São Paulo, 1875

119

poder público. Orbitando em torno desses ambientes à procura de

compradores para seus quitutes estavam as quitandeiras.

120

2.3 Quitandeiras

O trabalho das quitandeiras com seus tabuleiros foi essencial

tanto no abastecimento quanto na oferta de alimentos prontos para o

consumo na rua. Procuraremos avaliar de que forma ele estava

estruturado em algumas cidades brasileiras, comparando com a

capital paulista.

Em um panorama de intenso comércio alimentício nos principais

centros urbanos brasileiros, as quitandeiras tinham um papel

preponderante desde meados do século XVIII. A expressão

“quitandeiras” que aparece frequentemente nas descrições de

viajantes e documentos oficiais é de difícil definição. Segundo Maria

Odila Dias (1995: 77), a expressão era imprecisa quanto à conotação

social, aparecendo senhoras, escravas e negras forras. Essas

mulheres tinham um papel de destaque no pequeno comércio de

abastecimento alimentício e também nas atividades de venda de

bebidas e comida pronta, aproveitando-se do crescimento da cidade,

principalmente no século XIX.

Antes de mais nada, é necessário compreender que uma das

principais formas de organização do trabalho dos escravos nomeio

urbano, as quitandeiras entre eles, era o sistema de ganho63. O

chamado escravo de ganho trabalhava de forma autônoma nas ruas,

geralmente vendendo vários produtos, e ao fim de sua jornada levava

uma parte do rendimento para seu proprietário. Outras vezes o

proprietário alugava seu escravo para os mais variados tipos de

trabalho, combinados previamente com o locatário. Em geral era

alugado para tarefas específicas e prazos muito curtos.

63 Para uma discussão mais aprofundada sobre o sistema de ganho no Brasil, ver: Marilene Rosa da Silva, 1988; Leila Algranti, 1988 e Luís Carlos Soares, 1988.

121

O sistema de ganho era parte integrante da dinâmica urbana no

século XIX. Era uma característica da cidade em um momento de

transição dentro da estrutura escravista, sendo imprescindível em um

período onde as cidades cresciam e necessitavam de mão de obra

parta transporte, venda e manufatura (Silva 1988: 91).

A intensificação comercial dos centros urbanos proporcionava

aos proprietários de escravos uma forma de lucro sem grandes ônus.

O escravo de ganho muitas vezes era responsável por sua própria

subsistência e as autoridades municipais faziam as vezes de capitão

do mato, controlando a permanência e circulação dos cativos pelas

ruas. Para os escravos, apesar de todas as dificuldades, era uma

atividade que poderia significar alguma vantagem. Estavam longe das

vistas de seus proprietários e, mesmo com margens muito estreitas e

vigilância das autoridades, tinham a possibilidade de juntar dinheiro

para a alforria e estabelecer contatos urbanos. Segundo Maria Odila

Dias (1985: 90, 91) “a imagem das negras de tabuleiro evoca

independência de movimentos e liberdade de circulação pela cidade,

em oposição à imagem das mucamas domésticas.” A vida urbana

garantia formas de sobrevivência e também possibilitava uma certa

invisibilidade em meio às aglomerações.

Mas a vida nas ruas também trazia uma grande vulnerabilidade.

Esse convívio era marcado por formas de relacionamento entre

diferentes grupos, repressão policial crimes, dificuldades, etc. Muitos

desses escravos de aluguel e ganho moravam longe dos donos. As

quitandeiras eram vistas como capazes de transitar com facilidade

pelas cidades, deslocando-se pelos becos e ruas buscando os locais

estratégicos para as vendas, além de enfrentar os riscos da atividade

e a fiscalização da polícia e autoridades (Soares 2001: 411).

122

O sistema de ganho era comum na maioria das cidades

brasileiras no decorrer do século XIX, mas as formas de organização

desse trabalho de venda de alimentos e os grupos envolvidos se

distinguiam. Apesar da importância das escravas no comércio de

alimentos nas ruas, elas conviviam com forras e mulheres brancas

pobres que também ocupavam o mesmo espaço.

A abolição do trabalho escravo em 1888 não provocaria

mudanças substanciais no trabalho urbano das quitandeiras. Nesse

período, a maioria das quitandeiras era constituída de forras. A

escravidão na cidade de São Paulo ganhou importância tardia e

também desapareceu precocemente. A partir de 1870, com o alto

preço e a concorrência da lavoura cafeeira, houve uma diminuição

desse tipo de mão de obra na cidade (Machado 2004: 97). A

imigração européia, como veremos adiante, teve um impacto maior

na venda de rua.

A imagem das quitandeiras fixada por viajantes e cronistas diz

respeito, na maioria das vezes, ao trabalho de mulheres no espaço

urbano, principalmente escravas e forras.64 A atividade de comércio

de alimentos não era desconhecida de grupos de africanos

desembarcados no Brasil como escravos. Segundo Selma Pantoja

(2001: 46) os mercados seriam designados entre os umbundu (África

Ocidental) como kitanda, termo que teria dado origem a quitanda em

português. Entre os vários tipos de produtos oferecidos nessas feiras,

destacavam-se as vendedoras de comidas prontas. Analisando estas

64 Em Portugal as atividades de comércio de rua também estavam destinadas às mulheres. Durante o governo do rei D. José estava “assegurada a exclusividade feminina no comércio das praças e ruas de ‘doces, bolos, alféloa, frutos, melaço, hortaliças, queijos, leite, marisco, alho, pomada, polvilhos, hóstias, obréias, mexas, agulhas, alfinetes, fatos velhos e usados. (”Edital de 8 de novembro de 1785, Repertório geral ou índice alfabético das leis extravagantes do reino de Portugal ordenado pelo desembargador Manoel F. Thomaz, 1843, e Código Filipino ou Ordenações e leis do reino de Portugal recompiladas por mandado del rei dom Filipe). apud: (Luciano Figueiredo 1993: 37).

123

feiras na cidade de Luanda durante os séculos XVIII e XIX, a autora

traça um painel muito semelhante àquele encontrado nas principais

cidades brasileiras do período. Vários autores destacaram a

habilidade e o conhecimento prévio da venda de alimentos por parte

de mulheres na África, como uma das origens do comércio das

quitandeiras nas cidades brasileiras, já que elas eram responsáveis

pelo aprovisionamento e preparo da alimentação, além da circulação

de gêneros de primeira necessidade (Karasch, 2000: 313; Dias 1985:

103). Para Carlos Eugênio L. Soares (2001: 410), outro fator

importante para essa aptidão era a tradição urbana e comercial da

África Ocidental, o que explicaria a atração de membros da nação

Mina por cidades e atividades de comércio.

Essa característica das mulheres africanas explicaria uma

aptidão para o comércio de alimentos verificado nas principais

cidades brasileiras. Outro fator seria o baixo valor relativo de

escravas mulheres. Enquanto os homens estavam geralmente

associados às atividades de setores mais lucrativos, como a

monocultura exportadora, as mulheres eram destinadas às tarefas

domésticas e a pequenos trabalhos urbanos, principalmente de

abastecimento e venda de gêneros alimentícios.65 Essa aptidão para

o comércio de rua era particularmente associada às mulheres

africanas da Costa da Mina.66

65 Segundo Marilene Rosa da Silva (1988: 108), no Rio de Janeiro foi constatada uma superioridade de pedidos de licença para escravos masculinos para os serviços de ganho nas ruas. Mas no comércio de venda de alimentos predominava a presença feminina. 66 A Costa da Mina ficava na costa da África Ocidental e era um importante local de portos de embarque de escravos no Golfo do Benin, terra dos chamados Minas Nagô. Numerosos na cidade de Salvador, os Minas eram uma nação que englobava vários povos diferentes: Calabar, Gege, Haussa, Bornu, Tapa, Maki, Mandinga, entre outros. Segundo Carlos Eugênio L. Soares (2001: 407), apesar da diversidade lingüística, partilhavam um universo mítico-religioso comum. A esse respeito ver Pierre Verger, 1988.

124

Nas principais cidades brasileiras do século XIX o trabalho das

quitandeiras assumiria algumas peculiaridades. Salvador teve uma

forte presença de escravas e libertas no comércio de rua durante o

século XIX. As quitandeiras chegaram a monopolizar a distribuição de

peixes, carnes, verduras e produtos de contrabando (Vilhena 1969:

93).

A forte presença na cidade fez com que as autoridades

municipais dividissem o espaço urbano em áreas destinadas ao

comércio, com tabuleiros geralmente em áreas de intensa

movimentação. Analisando esse tipo comércio e os relatos de

viajantes, Cecília Soares (1996: 64) afirma que “não era incomum

encontrar, junto às barracas de comidas, negros sentados, fazendo

suas refeições em meio a muita conversa e goles de cachaça.”

Segundo os relatos, havia uma grande presença de alimentos que

serviriam como refeições propriamente ditas: pratos quentes, à base

de farinha de mandioca, feijão, carne seca, etc. (Soares 1996: 64).

Não se tratava apenas de petiscos, mas o preparo de refeições para

aqueles que permaneciam (por vários motivos) nas ruas. A influência

africana era percebida no tipo de alimento vendido nas ruas da

cidade: carurus, vatapás, acaçá, acarajé, bobó, etc. O uso do óleo de

dendê, coco, e a associação às religiões de origem africana nas

comidas de rua denotam essa grande influência.67

As autoridades buscavam constantemente regulamentar esse

tipo de comércio, considerado perigoso devido a presença de

escravos. Dominando o mercado de abastecimento alimentar, os

grupos se organizavam em cantos, procurando estabelecer os locais

67 Para Câmara Cascudo (2004: 824, 825) uma concentração negra mais homogênea na cidade de Salvador teria possibilitado o desenvolvimento de uma culinária mais ligada às tradições africanas. Em torno dos candomblés, do culto jejê-nagô, a cozinha teria mantido elementos primários de coesão e sobrevivência dessas comunidades. As comidas associadas aos cultos de origem africana teriam permanecido nas ruas de Salvador.

125

de trabalho na cidade (Reis 1987: 202). Apesar disso, havia uma

tolerância, explicada pela importância desse tipo de comércio. O

crescimento da cidade de Salvador a partir de meados do século XIX

foi acompanhado de uma grande carência de produtos alimentícios,

agravada em uma economia totalmente voltada para atividades de

exportação de açúcar.

A partir da década de 1830, com uma profunda depressão do

açúcar e o levante dos Malês em 183568, ocorreu uma grande saída

de escravos baianos vendidos para outros centros, como Rio de

Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. Essa migração dos minas para

outros centros urbanos exerceu uma grande influência nas atividades

de venda de alimentos nas ruas de outras cidades, como o Rio de

Janeiro.

O Rio de Janeiro recebia contingentes de escravos vindos da

África Oriental (Moçambique), mas em relação ao comércio de rua, a

presença de escravos minas vindos de Salvador é que teve uma

grande importância. Mesmo não tendo uma grande presença no

contingente total de escravos, as minas praticamente dominavam o

comércio de rua. Após a Revolta dos Malês vários escravos e forros

foram deportados e muitos deixaram a província da Bahia em direção

ao Rio de Janeiro. Segundo Carlos Eugênio Soares (2001: 408, 409)

“escravos às centenas foram vendidos por seus senhores baianos,

temerosos da então chamada ‘índole rebelde’ dos minas.” Os

viajantes perceberam essa presença nas ruas do Rio de Janeiro,

apesar da população generalizar o termo para todos os escravos

chegados da Bahia. De qualquer forma, quase 100 % das mulheres

desta nação no Rio de Janeiro eram quitandeiras.

68 A Revolta dos Malês ocorreu na cidade de Salvador em 1835 promovida por escravos muçulmanos conhecidos como malês. Muitos desses escravos vinham da África Ocidental, principalmente a Costa da Mina. A esse respeito ver João José Reis (1987).

126

Assim como em Salvador, no Rio de Janeiro também era

necessário o pedido de licença e o pagamento de taxas para o

trabalho na rua. Os escravos deveriam portar chapas com número

para circular pela cidade. Apesar de estarem em constante

deslocamento, as quitandeiras, eventualmente, estacionavam em

locais estratégicos e improvisavam barracas (Soares 1988: 112). A

disputa pelos melhores pontos era agressiva, principalmente entre os

escravos de ganho que tinham que pagar uma quantia pré-

determinada pelo seu proprietário. Para regular as vendas e diminuir

os constantes conflitos, seja com os policiais, seja entre os próprios

vendedores, foram instituídos os chamados “cantos”, uma regra

informal de convivência que reunia trabalhadores libertos e escravos

por etnias ou ocupações, fazendo uma divisão dos espaços da cidade

(Silva 1988: 123).

Assim como em Salvador, as comidas vendidas nas ruas tinham

o caráter de refeições, sendo o principal público os escravos e

também outros tipos sociais que permaneciam na rua. Entre esses

pratos, o angu tinha um grande destaque. Jean Batiste Debret (1978:

309, 310) retratou as vendedoras de angu no Rio de Janeiro do

século XIX e descreveu o prato:

“O angu, iguaria de consumo generalizado no Brasil, e cujo nome

se dá também à farinha de mandioca misturada com água,

compõe-se, no seu mais alto grau de requinte, de diversos

pedaços de carne, coração, fígado, bofe, língua, amídalas e outras

partes da cabeça à exceção do miolo, cortados miúdo e aos quais

se ajuntam água, banha de porco, azeite dendê cor de ouro e

com gosto de manteiga fresca, quiabos, legume mucilaginoso e

ligeiramente ácido, folhas de nabo, pimentão verde ou amarelo,

salsa, cebola, louro, salva e tomates; o conjunto é cozido até

adquirir a consistência necessária.”

127

Debret descreve não apenas o prato, mas a forma pela qual

eram preparados na própria rua e servidos aos fregueses, retratando

uma cena muito comum no Rio de Janeiro. Segundo o autor, os

operários (escravos) tinham à disposição para suas refeições, porções

maiores a 3 vinténs, ou a menor porção, a 1 vintém. A venda

começaria pela manhã, entre 6 e 10 horas e do meio-dia até às duas

horas. Os principais consumidores seriam os próprios escravos que

trabalhavam nas ruas.

Derivado da alimentação básica de escravos, o angu servido na

rua como refeição, misturava vários elementos constituindo um prato

com forte influência africana, mas cuja base era totalmente nacional,

a mandioca69. Muito popular entre os escravos urbanos, o angu além

de ser vendido pelas ruas da forma como Debret descreveu, também

estava disponível nas “casas de zungu”, que seriam locais de reunião

de negros no Rio de Janeiro. Essas casas teriam surgido como local

de refeição para escravos e libertos, tornando-se um importante

espaço para contatos e estreitamento de laços desses grupos e

também refúgio para fugitivos. Assim como as tabernas e quitandas,

as casas de zungu também geravam desconfiança nas autoridades.

Em 1833 o Código de Posturas do Rio de Janeiro proibiu as “casas de

zungu e batuque”, sem mencionar os motivos (Moreira et al. 2006:

86, 87).

Pelas imagens retratadas por Debret podemos perceber que as

quitandeiras armavam todo um aparato para preparar e vender suas

comidas nas ruas, com tachos e caldeirões que ocupavam o espaço

urbano (Debret, 1978: 244).

69 O angu consumido em São Paulo e Minas Gerais tinha o fubá de milho como base, caracterizando-se como comida de pobres e escravos, mas ausente nas ruas das cidades (Frieiro 1982: 135).

128

Em Minas Gerais, as quitandeiras também tiveram um papel

importante durante o período da mineração. Numa sociedade

caracterizada por uma organização tipicamente urbana graças

precisamente à atividade de mineração, a venda em tabuleiro esteve

presente em várias cidades,principalmente no Distrito Diamantino.

Nesse sentido, também apresentava as mesmas características de

cidades como Salvador e Rio de Janeiro no tocante a escravidão

urbana. O trabalho nas minas atraiu os mais variados tipos sociais e

canalizou também um grande contingente de escravos vindos da

África, por intermédio do Rio de Janeiro e também de outras regiões

brasileiras, como o Nordeste (Bahia e Pernambuco). As atividades de

mineração provocaram um grande afluxo populacional, de homens

livres pobres que se dedicavam às mais variadas tarefas, que a

historiadora Laura de Mello e Souza (2004) descreveu como

“desclassificados do ouro”.

Em uma sociedade toda voltada para a mineração, o

abastecimento alimentício era uma questão crítica. Assim como em

outras cidades do país, as quitandeiras desempenhavam um papel

fundamental nessas atividades. Mas também despertavam a atenção

das autoridades, que procuravam disciplinar o comércio de tabuleiros.

O abastecimento das minas era uma atividade lucrativa e muitos

senhores colocavam seus escravos nesse tipo de comércio como

observou André Antonil (1982: 85)

“(...) a maior parte deste ouro se gasta em comer e beber, e

insensivelmente dá aos vendedores grande lucro (...) – e por

isso, até os homens de maior cabedal não deixaram de se

aproveitar por este caminho dessa mina à flor da terra,

tendo negras cozinheiras, mulatas doceiras e crioulos

taverneiros ocupados nesta rendosíssima lavra e mandando

129

vir dos portos do mar tudo o que a gula costuma apetecer e

buscar.”

Conforme Luciano Figueiredo (1993: 42) “negras ou mulatas,

forras ou escravas, vendiam variados gêneros comestíveis, tais como

pastéis, bolos, doces, mel, leite, pão, banana, fumo e bebidas.” Essas

mulheres costumavam circular pelas lavras com seus tabuleiros,

causando preocupação nas autoridades, temerosas de contrabando

de ouro e diamantes. Além disso, eram acusadas muitas vezes de

prostituição e ligação com as fugas para os quilombos. As negras

eram responsabilizadas pela maioria dos distúrbios na região das

minas, a ponto de um “bando” ordenar que os donos vendessem os

gêneros por suas próprias mãos ou através de negros, mas nunca

pelas escravas ou forras (Souza 2004: 250).

Outra forma de venda de alimentos e ponto de reunião para os

“desclassificados do ouro” eram as vendas, estabelecimento similar

aos botequins e tabernas. Além da oferta de alimentos, eram locais

de reunião, batuques e festas. Assim como as tabernas, também

eram alvo das autoridades municipais, que buscavam controlar as

atividades e horários de funcionamento. Além disso, havia proibições

de que este tipo de estabelecimento funcionasse próximo às zonas de

mineração (Figueiredo 1993: 48, 49). Essas vendas seriam pontos de

ligação entre o comércio e os quilombos, servindo como esconderijo,

locais de batuques e pontos privilegiados de contrabando (Souza,

204: 252).

A atividade de venda de quitutes estava diretamente

relacionada à precariedade do funcionamento das minas no que diz

respeito ao abastecimento. Na bibliografia sobre o tema não existem

muitas referências quanto aos alimentos vendidos, apenas rápidas

menções a pastéis, bolos e doces, por exemplo, e principalmente à

130

aguardente. Assim como em São Paulo, tratava-se geralmente de

petiscos, comidas feitas e consumidas rapidamente em um contexto

de precariedade. O abastecimento alimentício da zona de mineração

ainda estava muito ligado a um padrão alimentar advindo dos

paulistas desde o século XVIII (Frieiro 1982: 28). A decadência das

minas e a conseqüente ruralização de Minas Gerais no século XIX

mudou o panorama da alimentação mineira. Segundo Mônica Abdala

(1994: 95):

“Tudo indica que não houve substituto para o tabuleiro das

negras do período da mineração. As vendas continuaram

sendo ponto de encontro dos desclassificados sociais, mas as

distâncias impostas por uma vida predominantemente rural

devem ter dificultado um convívio mais amiúde nesses

locais. Além da auto-suficiência das fazendas, restavam

apenas as festas religiosas”.

Ao contrário de outras cidades, como Salvador, São Paulo e Rio

de Janeiro, em Minas Gerais há um caminho invertido. A urbanização

proporcionada pela atividade de mineração é seguida por um

processo de ruralização. Esse seria um dos fatores que explicariam o

desaparecimento dos tabuleiros e outras formas de venda de

alimentos nas ruas e o desenvolvimento e estruturação de uma

culinária ligada às tradições rurais, tendo o passado urbano das

minas apenas como um ponto de origem. Os quitutes passaram a ser

produzidos de forma doméstica, principalmente nas fazendas (Abdala

1994 e Frieiro 1982).

131

Quitandeiras em São Paulo

As referências sobre o trabalho das quitandeiras na cidade de

São Paulo remontam, como já foi dito, ao século XVIII (Miranda

2002: 64). Mas foi no século XIX que sua presença nas ruas

aumentou, crescendo também as reclamações de outros

comerciantes (principalmente os taberneiros) e as posturas e

fiscalizações das autoridades municipais, com o intuito de taxar e

disciplinar a circulação e horários de funcionamento dos tabuleiros.

Escassos nos primeiros séculos de história de São Paulo, o

número de escravos aumentou com o processo de mercantilização da

cidade, principalmente em meados do século XIX. São Paulo era

ponto de passagem de escravos direcionados para as lavouras de

café do Oeste paulista e o destino final daqueles desprezados nesse

mesmo mercado.

Apesar de não contar com os mesmos contingentes presentes

no Rio de Janeiro ou Salvador, a cidade de São Paulo possuía as

mesmas características de escravidão urbana: muitos proprietários

com plantel pequeno (Machado 2004: 59). Essa era uma importante

fonte de renda para pequenos comerciantes, artesãos e até mesmo

alguns estudantes, que complementavam suas rendas com o aluguel

de escravos ou com os escravos de ganho, que exerciam atividades

de venda. Essa característica era acentuada na capital paulista onde

ficavam principalmente mulheres, crianças, velhos, etc. (Machado

2004: 64). Com esse perfil, eram utilizados prioritariamente nas

atividades de ganho pelas ruas, com um grande contingente de

quitandeiras. Assim, a pequena cidade (em comparação com centros

como Salvador e Rio de Janeiro) tinha, em meados do século XIX

uma presença importante de negros e forros em circulação pelas

ruas. Se não eram tão numerosos quanto nos grandes centros, eles

132

destacavam-se pela visibilidade, circulando pelos vários espaços da

cidade.

A disputa por territórios através do estabelecimento dos

“cantos” (como no Rio de Janeiro e Salvador) não foi verificada em

São Paulo, que, com grande presença de crioulos, teria amalgamado

os africanos (Bertin 2006: 108, 109). Segundo Maria Cristina

Wissenbach (1998: 80) no Rio de Janeiro e Salvador havia formas de

organização do trabalho escravo nas ruas em turmas, com agências

de locação, o que não teria acontecido em São Paulo, onde as

disputas por território aconteciam de forma individual, sem a

organização formal. A autora cita uma destas disputas em 1877,

quando duas quitandeiras brigam pelo direito de vender suas

quitandas no Largo da Sé. Embora uma delas se retirarasse para o

Largo da Cadeia, a confusão terminou na justiça (Wissenbach 1998:

88).

Apesar dessa ausência de divisão das quitandeiras por “nações”

e “cantos”, quando tratamos do cardápio da rua, vimos a descrição

do memorialista Edmundo Amaral (1932: 74), a única que fala

explicitamente sobre a origem de quitandeiras escravas em 1840,

quando descreve o trabalho na cozinha:

“Era ali que todos os dias, desde as 6 da manhã, remexiam-

se gordas, suadas e atarefadas, Sinhara e suas quatro

escravas: Flora, cafuza ossuda e guiné de carapinha alta,

Leocádia, mulata gorda, alegre e de bons dentes, e

Merencianna, preta conga, beiçuda e resmungona..”

Em outro passo ele fala também de outras escravas que

trabalhavam na rua com os tabuleiros, de origem diversificada

133

(Cassange e Cabinda) e de uma mulata baiana com pano da Costa da

Mina.

Por outro lado, se os viajantes destacavam a circulação de

quitandeiras pelas ruas do Rio de Janeiro com os tabuleiros na

cabeça, em São Paulo elas atuavam estacionadas. Não se fixavam em

um único ponto (como várias vezes a Câmara tentou impor) mas se

deslocavam por vários locais da cidade, permanecendo naqueles que

pareciam ser mais lucrativos. Além disso, havia a possibilidade de

estabelecer o comércio de quitandas em pequenos quartos, o que

deveria ocorrer com freqüência.

Esse expediente já era utilizado por quitandeiras que

conseguiam alugar um pequeno cômodo para estabelecer suas

quitandas, ou mesmo a partir dos quartos onde moravam, como era

o caso de pequenos cômodos habitados por forros nas proximidades

do cemitério da Igreja do Rosário. Nesse caso não se tratava apenas

de mulheres, mas de casais que habitavam e trabalhavam nesses

locais, como podemos perceber no relato de Antonio Egydio Martins

(2003: 280) sobre as pequenas vendas de quitandas:

“Aqueles pequenos prédios térreos, que confinavam

com o referido cemitério, eram habitados por casais de

pretos africanos, que, depois que conseguiam libertar-

se do cativeiro (...), procurando, logo que podiam,

comprar uma ou duas crioulas ou mulatas para

trabalharem para eles...”

Haveria uma verdadeira articulação do comércio de quitandas,

estabelecido em pequenos cômodos e, eventualmente, interligado

com os tabuleiros de rua. Os casais de pretos africanos descritos

acima se utilizavam também do sistema de ganho, com outras

134

quitandeiras que percorriam as ruas com os tabuleiros,

complementando esse tipo de comércio, formando uma rede.

Algumas quitandeiras trabalhavam isoladamente, preparando e

vendendo seus produtos nas ruas, mas através dos relatos podemos

perceber a importância das redes de vendedores e mesmo de

estabelecimentos como as “casas de quitandas”. Além de senhoras

brancas a comandar o trabalho de escravas que preparavam e

vendiam os quitutes nas ruas - como no caso já citado pelo

memorialista Edmundo Amaral (1932: 73) da quituteira Sinhara em

1840 - havia também forros que se utilizavam do sistema de ganho.

O Regulamento do Mercado Central de 1872, que procurava

organizar todo tipo de comércio de alimentos, dedicava um artigo às

chamadas “casas de quitanda”, que deveriam ser equiparadas, no

tocante aos impostos, aos outros tipos de estabelecimentos.

Artigo 31. A expressão – casas de quitanda – de que usa o

artigo 29 só compreende aquelas que pagam o respectivo

imposto, ficando contudo obrigados a ele os que venderem

quitandas em corredores de casas, devendo nessa hipótese

não ter objetos expostos nas calçadas, sob pena de multa de

5.000 réis de multa ou um dia de prisão.”70

A Câmara ainda buscava delimitar o comércio, fazendo uma

distinção entre as “casas de quitanda” e os tabuleiros. O maior

problema era a ocupação das ruas e calçadas de forma sedentária.

Para enfrentar as fiscalizações e aumentar os lucros, havia uma

variedade de organizações do trabalho de venda de quitandas nas

ruas, seja através de iniciativas isoladas, rede de escravos de ganho

(comandados por brancos e forros).

70 Regulamento da Praça do Mercado, 1872.

135

O trabalho das quitandeiras na cidade de São Paulo tinha

muitas características parecidas com aquelas encontradas nas

principais cidades brasileiras. A grande diferença, além da escala

menor, era o tipo de alimento vendido nas ruas. Em São Paulo as

quitandeiras aproveitaram-se mais acentuadamente de antigos

hábitos alimentares mantendo e adaptando vários elementos desse

cardápio nos quitutes vendidos nos tabuleiros. Ao contrário de

Salvador e Rio de Janeiro, a influência de alimentos e ingredientes de

origem africana não era muito grande.

Outra diferença é a baixa articulação formal da venda em

tabuleiros na cidade de São Paulo, em comparação com Rio de

Janeiro e Salvador. Enquanto nessas cidades havia formas de

organização com divisão da cidade em cantos e locação de regiões,

em São Paulo a atividade estaria mais vulnerável à crescente ação do

poder público e emergência de novos hábitos alimentares ancorados

nas transformações urbanas.

Dimensão Atlântica

Neste painel sobre o trabalho de quitandeiras e vendedores

escravos, forros, mulatos e brancos pobres, podemos perceber

grandes semelhanças entre as principais cidades brasileiras. Apesar

das diferenças de escala, há uma realidade muito próxima entre os

centros urbanos, onde a escravidão assumiu determinadas

especificidades com o sistema de ganho, que articulou o trabalho de

escravos, principalmente em atividades urbanas, notadamente da

venda de alimentos.

Apesar dessa “marginalização” do pequeno comércio de

alimentos, muitos autores têm tratado do tema de uma forma mais

136

ampla, englobando não apenas as cidades brasileiras, mas a outra

margem do Atlântico71. O pequeno comércio de gêneros alimentícios

era comum às cidades das regiões do Atlântico do século XVII ao XIX,

ainda que se mantivesse à sombra do grande tráfico de escravos.

Como vimos anteriormente havia uma tradição do trabalho de

quitandeiras em várias regiões da África, especialmente na região

ocidental, de onde viriam os escravos minas (Pantoja 2001: 46).

Os mesmos problemas enfrentados pelas quitandeiras

brasileiras (fiscalização, tentativas de delimitação e controle da

permanência nas cidades culminado com a proibição) estavam

presentes em Angola no mesmo período. Estudando a organização

desse comércio em Luanda, Selma Pantoja (2001: 63) conclui

dizendo que “o pequeno comércio, seja ele composto por quitandeiras

ou taberneiros, foi o sustentáculo dos grandes centros urbanos

atlânticos, embora pareça de caráter marginal aos interesses que

envolviam os grandes administradores e moviam a política do grande

poder.” Nesse contexto, a ação de quitandeiras, seus tabuleiros e

cardápio teria sofrido influência de todo esse processo.

As comidas preparadas e consumidas pelos escravos nas ruas

do Rio de Janeiro tinham uma forte relação com àquelas preparadas

na Bahia e também em Angola. Segundo Mary Karasch (1998: 313)

“em ambos os lados do Atlântico encontravam-se também a canja,

uma sopa de galinha e arroz feita com presunto, e a farofa, farinha

de mandioca torrada servida fria e misturada com legumes, ovos ou

carnes”. A moqueca, preparada em Salvador e também em Luanda,

estava presente no Rio de Janeiro onde era feita por cozinheiras

africanas. Elas adaptavam pratos de origem indígena e portuguesa

71 O historiador Luís Felipe de Alencastro, em Trato dos viventes (2000) trabalhou de forma exemplar esse complexo econômico que envolvia Brasil e Angola, que se completariam em um só sistema de exploração colonial, em um espaço por ele denominado de Atlântico Sul.

137

utilizando basicamente ingredientes africanos, como óleo de dendê e

as pimentas.

Em São Paulo, a forte marca dos hábitos alimentares de origem

indígena (e mameluca) iria se confrontar com novos hábitos

alimentares no bojo do intenso processo de transformações das

últimas décadas do século XIX.

138

CAPÍTULO 3

NOVOS HÁBITOS ALIMENTARES

139

3.1 Higiene e novos alimentos

Apesar da permanência de uma extensa variedade de petiscos e

quitutes nas ruas da cidade, que remontavam a uma antiga tradição,

no último quartel do século XIX, podemos verificar um intenso

processo de modificações da cidade, que atingiu diretamente esse

tipo de comércio. Nesse quadro, as preocupações higiênicas, o

surgimento de novos estabelecimentos, a imigração, além da

importação e industrialização dos alimentos, tiveram um papel crucial

no desenvolvimento de novos hábitos alimentares.

A partir das últimas décadas do século XIX a preocupação com

a higiene aumentou de forma significativa, atingindo também a

alimentação, principalmente aquela consumida fora de casa. Tais

preocupações cresceram com os surtos epidêmicos, quando a

medicina social passaria a influenciar mais decisivamente a

legislação. Nas discussões realizadas na Câmara e nos debates nos

jornais, eram constantes as menções à necessidade de asseio nas

ruas e à venda de alimentos. É nesse contexto que a alimentação

torna-se um dos principais alvos das autoridades públicas e médicas

e fonte de medidas diversas. A origem, preparo e venda de alguns

alimentos começava a despertar certos temores e intolerâncias de

cunho moral e racial, além de social.

Receios

Uma representação interessante deste aumento dos receios e

das intolerâncias em relação aos alimentos de rua podemos perceber

em um conto publicado em duas partes no jornal Correio Paulistano

140

em 1888.72 A história, intitulada “Tia Josepha”, fala sobre o trabalho

de uma quitandeira de origem africana:

“Uma preta cozinheira, a tia Josepha dos pastéis sabia fazer

e vender a arte. Fabricava pasteizinhos de carne, macios,

aloirados, apetitosos e vendia-os bem. Tinha certa

popularidade na cidade, era parteira e preparava mezinhas.

Dava-as de beber na ausência dos médicos, as parturientes

e fazia-lhes para a convalescência, magníficos pastéis (...)

Morava com seu homem, um preto velho pedreiro, o Manoel

Congo, em uma casa baixa, grande e fria ao lado do

cemitério. Apareceram os dois um belo dia na cidade vindos

da corte. Alugaram aquele casarão que estava há muito

desabitado, porque diziam que era mal-assombrado, por

uma ninharia. Modificaram-no um pouco e começaram a

trabalhar, ela nos seus pasteizinhos e ele no seu ofício de

pedreiro. A princípio o negócio não correu bem, o primeiro

sortimento de pastéis voltou intacto para casa. A cara da

negra, cheia de cortes feios cicatrizados, cabeludos,

formando uma pele lustrosa e esticada, desenhando

arabescos extravagantes e esquisitos, era um obstáculo

repugnante entre as gulodices e os pastéis. Um espantalho

de crianças respeitado e temido: a feiticeira (...) A

população da cidade, um tanto supersticiosa, receava a

velha. Era bem possível, conjecturava, que os pastéis

fossem manipulados pelo diabo. Açougueiro onde ela se

premunisse de carne não era conhecido. (...) Um dia, um

cidadão menos supersticioso, um ateu – como lá o

chamavam, comprou alguns pastéis, achou-os deliciosos e a

carne tenra e de sabor esquisito. Começaram a ter extração

os pastéis da tia Josepha. Um fato concorreu para a

população desfeitiçar a velha. Livrou a Marocas de uma

72 Conto de Arthur Cortines, Correio Paulistano, 28, 29 de julho de 1888. Esse conto foi identificado por Lilia Moritz Schwarcz (2001: 238, 239).

141

febre maligna, conseqüência de mau parto (...) Daí a sua

popularidade.”

Como vimos, a venda de pastéis era bastante comum nas ruas

da cidade na segunda metade do século XIX, principalmente por

quitandeiras de origem africana, como era o caso de tia Josepha. Mas

neste caso, misteriosamente, tais quitutes não faziam sucesso. Os

preconceitos da população contra os pastéis tinham como base,

segundo o conto, a imagem de feiticeira associada à quitandeira, o

que fazia que as pessoas evitassem os quitutes. Parecia uma estreita

associação entre a comida (pastéis) e a atividade de parteira e

curandeira de tia Josepha. Mas se os pastéis eram utilizados na

recuperação das parturientes, para o restante da população ele teria

outros atrativos. A descrição levava em conta atributos de sabor

(apetitosos, deliciosos e “esquisitos”) e apresentação (macios e

aloirados). Mas o receio da população passava por outras questões: a

figura da quitandeira e outra de cunho mais prático, a procedência da

carne.

A higiene também estaria associada a questões morais e até

mesmo raciais. Os pastéis eram preparados por uma quitandeira

forra, curandeira e vinda de fora da cidade e a comida estava

associada negativamente à sua imagem: “a cara da negra, cheia de

cortes feios cicatrizados, cabeludos, formando uma pele lustrosa e

esticada, desenhando arabescos extravagantes e esquisitos, era um

obstáculo repugnante entre as gulodices e os pastéis.” A imagem da

negra vendedora e a procedência desconhecida da carne aguçavam

os preconceitos, situação que se resolveria com a chancela de um

cidadão ateu e uma ação benigna da quitandeira. Todos os receios

associados à figura de tia Josepha (negra e feiticeira) são reduzidos a

mera superstição. A primeira parte do conto termina de forma

satisfatória para a quitandeira, com o sucesso dos pastéis e uma

142

mudança em sua imagem, afastando a fama de feiticeira (a distância

entre uma parteira e suas mezinhas e a feiticeira, deveria ser muito

tênue). Mas na segunda parte do conto a situação se transforma:

“Chamaram-na um dia para ver um doente – a Nini, a filha

de D. Eulália, mulher do tabelião Freitas. A filha tinha uma

constipação, febre e delirava (...) A moléstia marchava

rápido e assustadoramente, as beberagens de Tia Josepha

não produziam o menor efeito (...) Uma noite, a Nini, num

acesso de febre, torcendo os mínimos bracinhos (...) expirou

nos braços de D. Eulália (...) A Josepha que a visitava a

miúdo, obsequiava-lhe sempre com uns pasteizinhos de

coelho, polvilhados de açúcar muito saborosos. Ao

assentamento da pedra a mãe quis ver ultimamente a filha

(...) Ao levantar o tampo do caixão (...) lá dentro só viu

ossos, uns ossos muito polidos, muito claros e uma caveira

de criança a rir-se (...) A superstição criou assaz, avolumou-

se e pairou sinistra e ameaçadora sobre a casa da Tia

Josepha e Manoel Congo. A polícia cercou o casarão e nada

ou quase nada descobrira, fios de cabelos, cachos louros,

fitas, fragmentos de roupa de crianças. O povo invadiu a

casa, cônscio de que ali estava a explicação para aquela

transformação rápida de Nini. Encontraram debaixo de uma

mesa de cozinha, artelhos e falanges, pequenos ossos,

indubitavelmente de crianças. O povo quis esquartejar os

dois negros. A Josepha, sentindo-se perdida, ria-se

abominavelmente, arregaçando os grossos beiços

vermelhos, sarcástica e medonha. A notícia voou pela

cidade. D. Eulália, ao sabê-lo , ergue-se da cama, onde

gemia semi-louca. Passou-lhe uma idéia rápida pela mente,

sentiu um nojo enorme, invencível, doía-lhe o estômago,

apertava-o com ambas as mãos, esforçando-se para não

lançar, os vômitos subiam, subiam... Tinha comido a sua

filha em pastéis.”

143

A quitandeira, que havia sido reabilitada por suas ações e pela

interferência de uma pessoa sem preconceitos, cai em desgraça

quando se descobre que seus pastéis poderiam ter sido feitos com

carne de criança. Voltavam as acusações de feitiçaria, mas o foco

principal não eram as mezinhas ou o trabalho como parteira, mas os

pastéis, devido à terrível agravante da suposta procedência da carne.

Publicado no ano da libertação dos escravos, esse conto espelha

como a comida de rua (e aqueles que a preparavam e vendiam)

começava a despertar cada vez mais um misto de temor,

desconfiança e preconceito. A dúvida em relação à origem da carne

estava em consonância com o trabalho das autoridades médicas que

procuravam fiscalizar e analisar alimentos suspeitos de contaminação

ou falsificação. Ainda que em uma situação limite (antropofagia) o

conto apenas externa os crescentes receios em relação à alimentação

de rua, particularmente aquela oferecida por quitandeiras.

O desfecho do conto confirma os receios de ordem moral e

racial que apareciam no início, misturados com a manipulação do

alimento. Mais uma vez aparece a imagem de uma feiticeira

ressaltada por traços étnicos: “arregaçando os grossos beiços

vermelhos, sarcástica e medonha”, agora associados à carne de

suposta origem humana usada nos pastéis. O conto traduz um

crescente conflito que se manifestava também na comida de rua,

fortemente associada às quitandeiras, retratada nesse conto, com

forte conotação moral, como feiticeira.

Além das questões ligadas à escravidão e preconceito da

população, destaca-se também nesse conto a importância do corpo.

Podemos considerar que toda a ação gira em torno desta questão. As

atividades de Tia Josepha (parteira, curandeira e quitandeira)

concentram-se nas variadas formas de cura e manutenção do corpo

144

humano, e no conto elas acabam por misturar-se, tendo o domínio

sobre o corpo como um risco e a alimentação e mezinhas como vetor.

O círculo se fecha com uma suposta ingestão de pastéis com carne

humana, completando a ação sobre o corpo promovida pela

quitandeira/feiticeira. De modo emblemático são os traços físicos da

tia Josepha, associados à sua origem africana, que são ressaltados

em dois momentos, quando despertava suspeitas na população e no

desfecho quando é acusada de oferecer pastéis com a carne da

criança. Nos dois casos suas feições são decisivas para reforçar a

culpa. Mesmo em um contexto onde as questões higiênicas

ganhavam força, podemos perceber a persistência de antigos receios

no tocante à alimentação. Em uma situação onde o corpo estaria em

evidência, associam-se problemas de higiene e questões morais e

raciais, apontando um aumento das tensões.

Nas últimas décadas do século XIX avolumavam-se na

imprensa reclamações dirigidas à Câmara em relação ao trabalho das

quitandeiras. Misturavam-se questões de concorrência (de outros

vendedores) com a necessidade de “aformoseamento” da cidade

(resolvida com o afastamento das quitandeiras das ruas centrais) e

novas noções de asseio e salubridade que atingiam a venda de

alimentos. Esses novos critérios, principalmente de higiene, foram

lentamente sendo introduzidos com novos hábitos alimentares,

traduzindo também novas relações entre alimentação e saúde.

145

Alimentação e nutrição

Desde o início do século XIX havia uma forte associação entre

os alimentos consumidos pela população e as noções de saúde.73

Essa preocupação com os alimentos e sua influência na população

brasileira, principalmente a mais pobre, gerou uma série de trabalhos

na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro a partir da década de

1840. Esses estudos se utilizariam, em sua grande maioria, da

fisiologia médica do século XVIII, que estabelecia uma relação de

dependência do bem-estar do corpo em relação ao meio ambiente e

às práticas sociais (Couto 2007: 129). A alimentação passava a ser

vista como uma preocupação não apenas privada, mas, sobretudo,

pública e social, principalmente o consumo fora de casa. Analisando a

relação entre epidemias e alimentação das classes mais pobres no Rio

de Janeiro entre 1830 e 1870, o médico José Pereira Rego (1871:

181, 182) procurava identificar as deficiências na alimentação

popular, em particular nos alimentos encontrados nas ruas:

“O abuso freqüente de pinhões que se vendiam em grande

escala, dos amendoins, dos tremoços, das comidas muito

apimentadas, usadas pelos naturais do país, e pelos pretos,

do célebre angu com dendê, pimenta da Índia e da Costa da

África, que era o almoço favorito das classes pobres, e

mesmo de algumas famílias de tratamento, e perfeitamente

preparado por alguns pretos minas, o abuso de ceias de

camarão que se vendiam de noite, ou fritos com arroz, em

quase todos os cantos das ruas, o de peixe fresco ou salgado

em virtude de sua barateza por excederem as vezes as

necessidades do consumo, as existências no mercado e

73 Os naturalistas Spix e Martius (1981: 128, 163), em viagem pela província de São Paulo entre 1817 e 1820, identificavam no abundante consumo da farinha de milho pelos paulistas a grande incidência de doenças como o bócio e de determinados comportamentos histéricos e melancólicos. Além disso, para esses viajantes a farinha de milho e a canjica seriam indigestas.

146

muitos outros alimentos da mesma espécie, contribuíram

para dar desenvolvimento e expansão as moléstias

cutâneas, e entretê-las por tempo indefinido; provocar o

aparecimento de elefantíase dos gregos, e dispor as

moléstias do aparelho digestivo, e as diversas obstruções

tão comuns e graves nas classes inferiores.”

Os alimentos citados pelo médico são exatamente aqueles

oferecidos nas ruas do Rio de Janeiro pelas quitandeiras, como o

angu, feito com fubá. Os peixes e frutos do mar eram abundantes e

baratos em uma cidade marítima. Uma das principais preocupações

dos médicos era com o uso de condimentos, como a pimenta nesses

pratos. A crítica refletia uma mudança de hábitos nas classes mais

abastadas, respaldada pelas autoridades médicas, que consideravam

esses temperos prejudiciais à digestão. Segundo tais concepções,

eles funcionariam melhor com os habitantes das zonas tórridas,

sendo mais danosos aos europeus.74

Esses trabalhos, mais que analisarem as eventuais deficiências

na alimentação das classes mais pobres, evidenciavam preconceitos e

transformações oriundas principalmente as classes mais abastadas e

a visão em relação a antigos hábitos alimentares das classes mais

baixas. Algumas das teses médicas salientavam a modificação da

alimentação nesse período, com a diminuição do consumo de carne

seca e peixes e o aumento do uso de produtos importados (Vitorino

2003: 46).

Os condimentos e o uso da gordura também foram reduzidos,

substituídos por conservas e manteiga. Havia um processo de

substituição ou adaptação de determinados alimentos por parte das

classes mais abastadas através das importações e também dos 74 Conforme F.M. Franco. Elementos de higiene, ou ditames teóricos e práticos para conservar a saúde e prolongar a vida, 1819. apud: Cristina Couto (2007: 74, 75).

147

restaurantes. Claro que um processo assim estava restrito a uma

pequena parcela da população, mas a forma pela qual os alimentos

populares eram encarados por esses segmentos e pelas autoridades

contribuía para modificar lentamente os hábitos alimentares.

Claramente há uma identificação da comida popular (baseada

em ingredientes locais) com os problemas de digestão e outras

doenças, enquanto os alimentos importados e os hábitos introduzidos

pelos imigrantes e restaurantes poderiam significar, na visão das

autoridades médicas, uma melhora, aproximando nossa sociedade da

idéia de civilização. Durante a segunda metade do século XIX essa

perspectiva sobre a alimentação popular se cristalizaria, identificando

determinados ingredientes ao atraso.

Apesar das diferenças em relação ao que era consumido e

oferecido nas ruas em São Paulo, podemos afirmar que existia uma

influência das avaliações dos médicos cariocas.75 Os pinhões e

amendoins mencionados no texto eram muito comuns em São Paulo.

Se o angu não estava presente nas ruas da cidade, os pratos à base

de farinha de milho (cuscuz e virado) eram muito apreciados. Em

relação aos peixes e frutos do mar, em São Paulo eram substituídos

por peixes e camarões de água doce, abundantes nos rios da cidade.

Mas se no Rio de Janeiro da primeira metade do século XIX as

transformações urbanas foram decisivas, corroboradas pelas teses

médicas, em São Paulo, em um primeiro momento as preocupações

em relação à alimentação estavam restritas aos aspectos da higiene,

organização do preparo e venda através de novos (ou renovados)

critérios. Nesse contexto, as sucessivas posturas (que culminaram

com o Código de Posturas de 1875), elaboradas a partir de comissões 75 Devemos lembrar que até o final do século XIX apenas Rio de Janeiro e Bahia possuíam Escolas de Medicina. Apenas em 1895 foi criada a Sociedade de Medicina e Cirurgia de São Paulo (Sposatti 1985: 42).

148

organizadas na Câmara e os órgãos de controle sanitário, estavam na

ordem do dia. Os alimentos vendidos nas ruas e sua condição de

asseio e salubridade eram, pois, as principais preocupações das

autoridades municipais e fontes de reclamações constantes nos

jornais e nos ofícios encaminhados à Câmara Municipal.

Posturas

Em 1850 foi criado no Rio de Janeiro a Junta de Higiene Pública

que visava centralizar os serviços de combate aos surtos epidêmicos,

principalmente de febre amarela. As preocupações com a falsificação

e venda de alimentos estragados também eram constantes,

aparecendo nas reclamações enviadas à Câmara.

Em São Paulo, circular do governo provincial de 1852

participava a descoberta de uma fábrica em Aldeia Gallega em que se

cometia “a mais escandalosa falsificação na manufatura de paios e

chouriços, entrando na sua composição carne de toda espécie de

animais.”76 A manipulação da carne era uma preocupação constante

das autoridades que procuravam regular e restringir essa atividade

aos matadouros.

Não estranha que, nos jornais fosse crescente a preocupação

de parcelas da população com a situação dos alimentos vendidos fora

de casa, como vemos nessa reclamação contra infrações às posturas

de higiene em 1870:

“De longa data é proibido venderem-se frutas verdes, no

entanto por aí andam expostas em venda de tantas

qualidades, principalmente pêssegos que são mais nocivos

76 Atas da Câmara Municipal de São Paulo, 25/09/1852, p. 78.

149

que outra qualquer. As tavernas que por aí existem no mais

completo estado de imundície não merecem alguma

atenção? E os cortiços e pequenos e nauseabundos quartos

de escravos, africanos e libertos também não merecerão a

atenção de quem compete?”77

O problema não era a falta de leis, que já existiam, conforme o

leitor do Correio Paulistano. Nesse caso estão misturados problemas

de higiene (tabernas imundas) e estado dos alimentos (frutas

verdes), também associados com deterioração. Modalidades de venda

de alimentos como os tabuleiros e as tabernas eram identificados

como vetores da falta de higiene, associadas aos cortiços e

“nauseabundos” quartos de escravos e forros. Devemos lembrar que

muitos desses forros vendiam suas quitandas em quartos onde

habitavam, principalmente nos arredores da Igreja do Rosário. A

associação era bastante clara entre determinados alimentos e

marginalidade, identificada com os escravos e forros.

Em 1872 eram publicadas as leis provinciais com referência aos

alimentos no capítulo sobre salubridade e higiene pública, insistindo

no problema da deterioração e falsificação dos gêneros vendidos nas

ruas:

Art. 48 – É proibido ter expostos a venda gêneros

alimentícios comestíveis e líquidos já corruptos e

danificados.

Art. 49 – É proibida a falsificação de qualquer gênero

alimentício ou líquido em que se misture outra substância

qualquer com intuito de aumentar sua quantidade.78

77 Correio Paulistano, 21 de janeiro de 1870, p. 1 78 Collecção das leis promulgadas pela Assembléia da Província de S. Paulo. São Paulo: 1835-1889 .

150

Os novos critérios higiênicos passavam a conviver com novos

hábitos alimentares, que identificavam na alimentação de rua fonte

de problemas de asseio e manipulação. Esses critérios

desenvolveram-se principalmente a partir do último quartel do século

XIX, colocando a alimentação baseada em produtos locais em

contraposição aos ingredientes e alimentos importados, que, cada vez

mais, estavam disponíveis.

As posturas procuravam controlar o comércio de rua e a idéia

de “aformoseamento” se confundia com os preceitos de higiene.

Manter as ruas livres para circulação significava também mantê-las

limpas, sem a presença de quitandeiras e seus tabuleiros em

qualquer local que lhes conviesse. O Código de Posturas de 1875

(revisto em 1886) procurava unificar as diversas posturas discutidas

desde as primeiras décadas do século XIX e dedicava um título

específico para a questão da “higiene e salubridade pública”. As

formas de venda e preparo passavam a estar submetidas às

prescrições do código e sujeitas ao parecer do médico da Câmara. E

as normas em relação aos alimentos também atingiam

estabelecimentos como tabernas, botequins e casas de pasto:

“Artigo 88- É proibido, nas casas de pasto, tavernas,

botequins e em outra qualquer casa onde se vendam

comidas preparadas, o uso de vasilhas de ferro ou cobre,

não estanhadas. Os infratores incorrerão na multa de 5$.”79

É interessante notar que os restaurantes e cafés não são

mencionados nesse artigo, talvez entrando na definição de “qualquer

casa onde se vendam comidas preparadas”. As novas noções de

79 Coleção das leis e posturas municipais promulgadas pela Assembléia Legislativa de São Paulo, 1875

151

higiene envolviam o uso de determinados equipamentos, providências

que geralmente eram adotadas espontaneamente pelos novos

estabelecimentos.

Em relação à pesca, o código também procurava evitar a venda

de alimento estragado, em uma situação mais delicada, que envolvia

até mesmo a pena de prisão:

“Artigo 180- Os pescadores que trouxerem ao mercado peixe

danificado, sofrerão multa de 20$ ou quatro dias de prisão, e

na mesma multa incorrerão aqueles em tavernas, ou em

qualquer outra casa venderem peixe fresco ou salgado e

mariscos naquelas condições. O peixe desde que tiver

princípio de decomposição, será retirado do lugar da venda

para ter o conveniente destino.”80

Essas atividades estavam no foco principal das autoridades.

Mas, apesar da preocupação expressada no código, a fiscalização não

estava sob orientação de médicos, sendo responsabilidade dos

funcionários da Câmara, especialmente os fiscais, que se limitavam a

fazer uma simples observação visual do grau de deterioração dos

alimentos. Em 1878 um comerciante contestava a multa imposta pela

Correição da Câmara a seu estabelecimento devido a um queijo que

foi considerado em mau estado.81 Esse tipo de problema só seria

resolvido com a organização do serviço sanitário, com a presença de

médicos ao lado dos fiscais. Mesmo se considerarmos que a

fiscalização poderia ser ineficiente, o fato de existir um código

tratando desses temas denota uma crescente preocupação com o

tema, que iria se consolidar com a organização do serviço sanitário e

da Inspetoria de higiene. 80 Coleção das leis e posturas municipais promulgadas pela Assembléia Legislativa de São Paulo, 1875 81 Atas da Câmara Municipal de São Paulo, 25 de fevereiro de 1878, p. 28.

152

Fiscalização sanitária

Apesar das preocupações com a higiene e saúde pública

expressa no código de posturas e nas comissões constituídas na

Câmara, foi apenas em 1886, quando houve uma reforma dos

serviços de saúde pública, que a Província de São Paulo foi escolhida

como sede de uma Inspetoria de Higiene subordinada à Inspetoria

geral de Higiene sediada na cidade do Rio de Janeiro. Em relação à

fiscalização dos alimentos, a Inspetoria ainda não tinha condições de

substituir o trabalho superficial da Câmara. Em 1890 a Sociedade de

Medicina e Cirurgia encaminhava um relatório ao governo do Estado

de São Paulo solicitando a criação urgente de um laboratório para

análise química e biológica dos gêneros alimentícios, evidenciando a

falta de uma estrutura para esse tipo de fiscalização.82 Essa

Inspetoria funcionou de forma precária sem sede e com poucos

funcionários, sendo extinta em 1891, quando o governo republicano

descentralizou os serviços de saúde, criando o Serviço Sanitário do

Estado de São Paulo.

O governo republicano alterava o papel dos municípios

ampliando sua jurisdição e área de atuação. Em 1889 o governo

estadual de Prudente de Morais dissolveu as câmaras municipais e

estabeleceu um Conselho de Intendência. Em 1892 as câmaras foram

reestruturadas e passaram a funcionar, tendo as intendências como

braço executivo (Campos 2002: 72). Criada no mesmo ano, a

Intendência de Higiene e Saúde Pública passava a ser responsável

por “tudo que possa interessar à higiene e salubridade do município

ou prejudicar a saúde pública dos habitantes”. A lei 9 de 1892 em seu

parágrafo terceiro estabelecia as atribuições dessa intendência em

relação à alimentação: 82 Correspondência com a Inspetoria de Higiene, 7 de janeiro de 1890.

153

“Fiscalizar a alimentação pública provendo sobre a criação

de feiras e pastagens comuns, sobre o asseio e higiene dos

mercados, matadouros, talhos, açougues, e quanto diga

respeito à gêneros de alimentação ou bebidas, tomando

todas as cautelas necessárias para promover e garantir a

abundância, barateza e boa qualidade dos gêneros.”83

Mais do que zelar pela qualidade e higiene dos alimentos e os

procedimentos dos estabelecimentos como mercados e matadouros,

a intendência também poderia agir diretamente na questão do

abastecimento, assumindo o papel que antes era destinado aos juízes

almotacéis e fiscais da Câmara. Com a Intendência, foram designados

médicos para cada um dos distritos da cidade, que seriam

acompanhados por guardas nas fiscalizações das vendas de

alimentos.84 Com a presença do médico, fiscal e testemunhas, as

ocorrências eram registradas e resolvidas no local com a aplicação da

multa no caso da identificação de alimentos considerados

deteriorados.85

As diversas posturas sobre fiscalização sanitária dos alimentos

seriam contempladas no Código Sanitário Estadual em 1894.86 Cinco

capítulos eram dedicados especificamente à alimentação:

Alimentação pública; Padarias, botequins e restaurantes; Açougues;

Mercados e Matadouros. Os assuntos tratados não diferiam muito do

que aparecia nas posturas, mas pela primeira vez falava-se

explicitamente em alimentação pública:

83 Competências atribuídas à Intendência de Higiene e Saúde Pública. Apud: Aldaíza Sposatti (1985: 46). 84 Relatório dos fiscais. Intendência de Higiene e Saúde Pública, 27 de julho de 1892. 85 Intimações e multas. Intendência de Higiene e Saúde Pública, 22 de maio de 1893. 86 Collecção das leis e decretos do Estado de S.Paulo de 1894: actos do Poder Legislativo e actos do Poder Executivo, p. 23

154

“Capítulo X- Alimentação pública

Artigo 235. Deverão as municipalidades exercer a máxima

fiscalização sobre a alimentação pública.

Artigo 236. Quando os gêneros forem considerados

falsificados, ou suspeitos de serem, deverá ser interdito o

seu consumo, até que sejam examinados e definitivamente

julgados nos laboratórios do Estado.

Artigo 237. Os alimentos contaminados por germes ou

parasitas e os suspeitos de contaminação não deverão ser

consumidos; a interdição da venda será imposta, até que os

exames químicos e bacteriológicos sejam feitos.

Artigo 238. Os alimentos falsificados, quando a falsificação

for julgada prejudicial à natureza e qualidade deles, os que

forem declarados contaminados, assim como os putrefatos,

deverão ser imediatamente inutilizados.

Artigo 239. Os animais doentes ou suspeitos não poderão

ser abatidos nem vendidos nos mercados para consumo

público.

Artigo 240. As frutas mal sazonadas, ou em decomposição,

deverão ser considerados prejudiciais e como tais

condenadas e destruídas.87

Alimentação pública abrangia todo o alimento exposto e

vendido nas ruas. Provavelmente deveria abranger não apenas os

vendedores ambulantes e quitandeiras, mas também restaurantes,

botequins, etc. A fiscalização continuava a cargo da municipalidade,

contando com o corpo médico e os laboratórios de análise do Estado.

Já os assuntos não diferem muito do que costumava aparecer nas

posturas: falsificação, contaminação e deterioração dos alimentos

eram as principais preocupações, nomeando especificamente animais

doentes e frutas.

87 Collecção das leis e decretos do Estado de S.Paulo de 1894: actos do Poder Legislativo e actos do Poder Executivo. p. 25.

155

De qualquer forma, algumas modalidades de venda tinham

capítulos específicos. O capítulo XI tratava especificamente das

padarias, botequins e restaurantes:

Artigo 241. Nas padarias, botequins e restaurantes deverão

os lugares de trabalho e os corredores ser conservados em

extremo asseio.

Artigo 242. Todos esses locais deverão ser

convenientemente ventilados e claros e ficar ao abrigo das

emanações das latrinas e esgotos.

Artigo 243. O soalho e as paredes destes estabelecimentos

deverão ser cuidadosamente mantidos com rigorosa limpeza

e bem assim todos os utensílios e instrumentos de trabalho

e os materiais para a preparação dos alimentos.

Artigo 244. O local de trabalho, os depósitos, armazéns e

adegas não poderão servir de dormitório ou alojamento de

empregados nem se comunicarem diretamente com eles.

Artigo 245. O pessoal empregado deve conservar-se com

asseio irrepreensível e no trabalho só deverá usar de

vestimentas que sejam de fácil lavagem e limpeza.88

Nesse caso não há nenhuma menção aos alimentos em si, que

são tratados no capítulo sobre alimentação pública. A preocupação

seria com as condições do local, priorizando a limpeza do

estabelecimento e empregados e a ventilação. Se no Código de

Posturas apareciam menções ao asseio do estabelecimento e dos

instrumentos de trabalho, no Código Sanitário aparecem pela

primeira vez normas sobre o asseio dos empregados. A manipulação

dos alimentos revestia-se de uma importância inédita, expressa em

todas as formas: local, instrumentos, vestimentas e empregados.

88 Collecção das leis e decretos do Estado de S.Paulo de 1894: actos do Poder Legislativo e actos do Poder Executivo. p. 25.

156

Em relação ao Código de 1875 (e a versão de 1886) a grande

diferença do Código Sanitário é a menção aos restaurantes. O código

de posturas fala apenas de botequins, tavernas e casas de pasto.89

Os capítulos XIII e XIV tratam dos mercados e matadouro,

regulamentando as atividades e a forma de organização destes locais

que já tinham regulamento próprio.

A análise dos alimentos suspeitos de deterioração passava a ser

importante, complementando o trabalho dos fiscais e médicos. No

Código Sanitário era mencionado o trabalho dos laboratórios

credenciados pelo Estado. Em 1906 a Lei 912 autorizava o prefeito a

entrar em acordo com o Instituto Pasteur para a análise de gêneros

alimentícios.90

Importação e industrialização de alimentos

Em meados do século XIX os armazéns de secos e molhados da

cidade de São Paulo trabalhavam quase exclusivamente com

produtos da terra. Não que não houvesse importação de bebidas e

gêneros alimentícios, mas eram ínfimos, restritos a parcelas mínimas

da população. Se o maior volume do comércio de importações tinha a

Grã-Bretanha como principal parceiro, era com a França que se dava

o comércio de importação de bens de luxo, inclusive bebidas e

alimentos (Daecto 2002: 48). A restrição de mercado para os artigos

franceses era tão grande que mereceu comentários do ministro de

Negócios Estrangeiros da França em 1853:

89 Coleção das leis e posturas municipais promulgadas pela Assembléia Legislativa de São Paulo, 1875 90 Índice alfabético das leis, resoluções e atos executivos do município da capital do Estado de São Paulo até 1919.

157

“Nosso comércio apresentando ordinariamente produtos

superiores, de um trabalho fino, elegante, artístico e de

preço elevado, conservou a clientela das classes ricas e é

por essa razão que os números de nossa exportação se

mantiveram (...) Mas, para a massa da população

americana, composta de gente cujos recursos são mais

limitados, o gosto pouco formado e que não é sempre capaz

de apreciar a superioridade de uma obra, é necessário obter

produtos que se possam vender a baixo preço.” (Apud

Daecto 2002: 48, 49).

A importação de produtos franceses atenderia, assim, uma

parcela mínima mais rica da população, à procura de produtos de

luxo e também de status, identificado com a idéia de bom gosto. Essa

situação se transformaria nas últimas décadas do século XIX com o

aumento das casas importadoras e dos próprios armazéns de secos e

molhados, que providenciariam artigos importados. O crescimento da

economia interna com a expansão da cafeicultura alteraria

significativamente esse panorama. No período entre 1870 e 1900

verifica-se um notável aumento das importações, associadas à

exportação do café.

Os armazéns de secos e molhados tinham uma importância

fundamental no cotidiano da cidade desde meados do século XIX.

Maria Luiza Oliveira (2005) realçou serem eles verdadeiros espaços

de sociabilidade para pessoas de diferentes classes sociais,

funcionado também como rede de apoio para a população que se

socorria financeiramente, além de adquirir diversos produtos

alimentícios. Muitos desses estabelecimentos apresentavam uma

grande mistura de produtos sofisticados e simples, alimentos e

bebidas importadas além de gêneros de primeira necessidade,

servindo às vezes como botequins.

158

Um caso exemplar, que apresenta mudanças em um espaço de

20 anos, é de um comerciante português que estava estabelecido em

1856 com um armazém de molhados e gêneros da terra na rua do

Comércio. Em 1876 o mesmo comerciante tinha um negócio de

bebidas com conhaque francês, cerveja hamburguesa, genebra

holandesa, absinto, rum da Jamaica, vinho Bordeaux etc. Além das

bebidas, vendia chá verde, latas de sardinha, anis, cravo da Índia,

tudo ao lado de produtos básicos como vassouras, sabão e carvão

(Oliveira 2005: 76). Se em 1853 o ministro francês relatava a

restrição da exportação de produtos franceses para as classes mais

ricas, em 1876 era possível encontrar conhaque francês e vinho de

Bordeaux em um armazém de secos e molhados. Ainda que estivesse

restrito a parcelas seletas da população, evidencia-se um crescimento

importante.

Apesar do crescimento das importações, não parecia haver uma

grande especialização nesse tipo de comércio. Os armazéns de secos

e molhados continuavam a ser os principais agentes, misturando

gêneros locais e importados. Na tabela que especifica o tipo de

comércio varejista na cidade de São Paulo em 1883 (p. 154),

podemos perceber que a imensa maioria dos estabelecimentos estava

ligada ao ramo de alimentação, sem especificar os gêneros91. Os

armazéns de alimentos representavam quase dois terços do comércio

varejista da cidade. Se acrescentarmos os cafés, botequins,

hospedarias, restaurantes, açougues, frutas e molhados finos, temos

um total de 547 estabelecimentos ligados ao ramo da alimentação. A

diversificação também era um aspecto importante, com distinção

entre os estabelecimentos que vendiam alimentação e bebida para

consumo no local (cafés, botequins e restaurantes) e armazéns de

gêneros nacionais e importados (frutas e molhados finos). A presença 91 Reconstituição da Memória Estatística da grande São Paulo, p. 177.

159

Comércio Varejista na cidade de São Paulo – 1883. (Fonte:

Reconstituição da Memória Estatística da Grande São Paulo, p. 77)

ESPECIFICAÇÃO DAS CASAS DE COMÉRCIO

VAREJISTA

NÚMERO

Gêneros do país e molhados 456

Fazendas, modas e armarinho 49

Cafés, botequins, hospedarias e restaurantes 41

Açougues 44

Casas comissárias 25

Casas de loteria 18

Charutarias 15

Ferragens e armarinhos 13

Joalherias e ourivesarias 9

Móveis e colchoarias 9

Chapelarias 8

Frutas e molhados finos 6

Louças, cristais e porcelanas 5

Armarinhos 5

Aparelhos de ótica 4

Papéis pintados 4

Livrarias 4

Instrumentos de músicas, armarinhos, brinquedos

e artigos de viagem

3

Armas e munições 2

Mobílias de aluguel 2

Artigos de desenho 2

Artigos de engenharia 2

Artigos de vime 2

Livros em branco 1

Sebos usados 1

160

de depósitos e casas de comércio atacadista em 1883 também

ressalta a importância desse tipo de negócio. Em um total de 130

estabelecimentos, aparecem 22 de molhados, 14 de artigos de

importação (sem especificação do tipo de produto), 12 de carnes, 8

de vinhos e 2 de cerveja. Quase metade do comércio atacadista

trabalhava com gêneros alimentícios.

As casas comissárias também atuavam decisivamente nesse

ramo. A prioridade era o comércio do café onde atuavam como

intermediários na venda do produto para as empresas importadoras

estrangeiras. Mas de forma associada também participavam do

comércio de importação, aproveitando-se do crescimento desse setor

na cidade de São Paulo (Daecto 2002: 100, 101). Dessa forma, se na

tabela não podemos definir claramente quais são os estabelecimentos

que trabalhavam com importação de alimentos e bebidas, podemos

inferir sua importância no setor, de uma forma geral.

O crescimento da cidade e de seu comércio alavancava a

importação de gêneros alimentícios, que atendiam a uma demanda

cada vez maior. As casas varejistas anunciavam uma enorme

variedade de produtos, como a Casa de molhados de Guilherme

Rudge localizada na rua da Imperatriz:

“Bebidas importadas, massas para sopa, manteiga,

amêndoas, nozes, doces em vidro e lata, figo, goiabada,

marmelada, aspargos, azeitonas, molho inglês, mostarda,

lombo de porco, lingüiças e peixes em lata, massa de

tomate, mortadela, ostras, lagostas, sardinhas, queijos

suíços, petit pois, salame de Lyon, banha em lata, etc.”92

92 A Província de São Paulo, 5 de setembro de 1877, p. 4.

161

Uma grande variedade de alimentos (doces e salgados) além de

temperos e bebidas estava à disposição nos armazéns, a maioria

deles industrializados. Mesmo alguns tipos de alimentos de tradição

caseira, como os doces, também apareciam com destaque nos

anúncios das casas de secos e molhados, vendidos em lata e vidro.

Em 1884 a casa de Roberto Tavares oferecia “muita bebida

importada (cervejas e vinhos), goiabada cascão, marmelada de

Lisboa, doces franceses, massa de tomate, mortadela, massas

italianas, etc.”93 Se alguns desses itens eram bastante conhecidos da

população em sua versão local e artesanal (caso dos doces) outros

eram considerados iguarias, muitas vezes sem similar nacional, e

utilizadas como ingredientes de pratos sofisticados associados à

culinária francesa, por exemplo.

Os grupos de estrangeiros na cidade nesse período ajudaram a

divulgar determinados tipos de alimentos, não apenas por intermédio

dos restaurantes, como veremos adiante, mas em armazéns e lojas

importadoras que indicariam novos hábitos de uma parcela seleta da

população. Freqüentemente estes anúncios ressaltavam o fato de

bebidas e alimentos serem importados e ainda assinalavam o local de

origem das iguarias. Aproveitando-se do grande crescimento urbano

e econômico da cidade, imigrantes que chegavam com algum capital

aproveitariam para abrir armazéns de venda de gêneros alimentícios

importados. Era o caso de italianos e também de alemães que

aportaram nas últimas décadas do século XIX em uma nova leva de

imigração (Siriani 2003: 147). Crescia a importação (e mesmo

produção) de vários gêneros alimentícios destinados aos imigrantes.

No final do século XIX era possível encontrar em alguns armazéns da

cidade “montanhas de tomate siciliano e massas napolitanas”

(Lombroso-Ferrero 1908: 48). Muitos desses estabelecimentos 93 A Província de São Paulo, 2 de maio de 1884, p. 3.

162

cresceram evoluindo para outros formas de comércio de alimentos,

como os cafés e confeitarias, que veremos adiante.

Mas os gêneros importados tinham uma importância ainda

maior para os restaurantes, que procuravam se abastecer nos

armazéns de secos e molhados da cidade, mas também poderiam

adquirir de outras formas, como a importação direta. Segundo

Vanessa Bivar os franceses donos de hotéis e restaurantes muitas

vezes importavam diretamente da Europa através de viagens ou

contato com compatriotas. Outra forma era através dos importadores

estabelecidos na cidade de São Paulo ou do Rio de Janeiro (Bivar

2008: 231). Era uma maneira de oferecer determinados ingredientes

de difícil aquisição para a elaboração de pratos mais sofisticados ou

mesmo de outros mais simples, que poderiam, assim, aspirar a um

outro patamar perante os olhos e paladar dos consumidores. A

disponibilidade de alguns ingredientes era ressalta nos anúncios de

alguns restaurantes.

A ligação entre as casas importadoras e as primeiras

manufaturas era importante. De acordo com Warren Dean (1991: 35-

37), os importadores se voltavam para a indústria à medida que a

importação se tornava difícil. Comerciantes estrangeiros dominavam

esse tipo de comércio e importavam gêneros que os vários grupos

estrangeiros apreciavam e logo começaram a manufaturá-los

localmente.

Esse era o caso das bebidas alcoólicas. A importação de vinhos,

licores e cervejas, por exemplo, era acompanhada por um incremento

da produção local. Nas últimas décadas do século XIX crescia o

número de pequenas fábricas e oficinas no ramo de bebidas e

163

alimentação na cidade de São Paulo, algumas delas ligadas a

imigrantes.94

Tradicionalmente havia uma verdadeira indústria doméstica

que cuidava do beneficiamento de produtos como o arroz, café,

milho, mandioca e açúcar além de pequenos trabalhos artesanais a

cargo das mulheres. A partir do final do século XIX, muitos

imigrantes introduziram pequenas indústrias voltadas para o

beneficiamento de vários produtos, como o caso da banha, enlatada

por Francisco Matarazzo em 1882, além da produção de alguns

gêneros alimentícios. Em 1878 os imigrantes italianos Ludovico Dal

Porto e Francisco Casini fundaram a primeira fábrica de massas

alimentícias na cidade. No final do século XIX a cidade de São Paulo

tinha seis fábricas de massas, todas elas de propriedade de italianos

(Bandeira Jr. 1901: 81). De um modo geral, essa primeiras fábricas

tinham como objetivo atender à demanda dos imigrantes italianos em

relação aos hábitos alimentares que traziam de seu país, mas

rapidamente esses novos hábitos alimentares influenciaram a

população da cidade. Além das massas, no começo do século XX

aumentava o número de padarias e mercearias nos bairros onde os

imigrantes se concentravam, sendo possível encontrar pães, molhos

de tomate em lata, massas, etc. (Marzola 1979: 25).

94 Graciela Oliver (2007: 241) num balanço historiográfico sobre a produção de vinho na Província/Estado de São Paulo entre 1886 e 1926, aponta os trabalhos de Lia Romero, que identificaram membros da "elite ilustrada paulista" que se dedicaram à viniviticultura, buscando aporte de conhecimentos técnicos de agronomia. Por outro lado, salienta as conclusões da pesquisa de Ricardo Souza, que revela não só o "aumento da importação de vinhos em São Paulo em fins do século XIX e a presença de vinhos finos (madeira ou xerez e franceses) em manuais de boas maneiras. Por fim, considera que aos ricos cabia um vinho de maior teor alcoólico, enquanto aos pobres, os vinhos mais fracos ou 'falsificados', os quais muitas vezes eram vinculados ao alcoolismo" (ib.: 240). Nos seus comentários, não deixa de assinalar a interferência positiva das discussões médico-higienistas e o status que distinguia um alimento das "civilizações avançadas", ao contrário da cachça, que remetia ao passado colonial" (ib.: 244).

164

Mas não eram apenas os imigrantes que consumiam os

alimentos industrializados. Em contraposição aos produtos obtidos a

partir de coleta, pesca e criação nos quintais, e àqueles que eram

oferecidos, principalmente nas ruas, os alimentos importados e

industrializados se revestiam de uma aura de distinção (Santanna

2005: 92). As novas noções de sabor estariam, assim, associadas aos

preceitos de higiene e status. Aos olhos das autoridades e da

população, os alimentos industrializados e importados estariam

menos sujeitos aos problemas de falsificação e higiene encontrados

em alimentos oferecidos em tabuleiros e botequins.

O caso da manteiga é exemplar nessa discussão. Era um dos

principais itens de importação da França para o Brasil na segunda

metade do século XIX e produto obrigatório em vários pratos em

substituição à gordura (Daecto 2002: 54). No final do século XIX já

era possível encontrar a manteiga com mais facilidade na cidade de

São Paulo, vendida inclusive em domicílio pelos carros da Coachman’s

Creamery em 1890 (Raffard 1977: 20). A produção de manteiga

nacional começava a crescer para atender à demanda pelo produto e

merecia anúncios entusiásticos:

Afinal chegou a anunciada MANTEIGA, de que há tempos

aqui falamos, na qual laborava o engenho empreendedor do

dr. sr. Jaguaribe Filho. Temos, pois em definitiva, a

manteiga nacional, paulista da gema, confeccionada de

excelente e puríssimo leite, podendo de ora avante, comer-

se desassombradamente as nossas torradinhas adubadas

com um gênero de inteira confiança. A manteiga da fazenda

do Aterradinho, propriedade do sr. Jaguaribe Filho vai abrir

um novo horizonte a mais na indústria, até hoje descuidada

e que entretanto se constituiu gênero de primeira

necessidade. A manteiga de S. Paulo, como se denomina a

de que tratamos é excelente e das tais de que se pode

165

afoitamente abusar comendo mais manteiga do que pão! A

porção quer recebemos, e de que estamos usando,

desaparece por encanto, estatelada sobre as fatias de pão,

escorregando suave e agradavelmente pela goela abaixo.95

Este anúncio não está diretamente relacionado à utilização da

manteiga feita em São Paulo como item gastronômico, resumindo-se

ao uso mais prosaico com pão, ainda que descrito como uma iguaria

extremamente saborosa e prazerosa. Além disso, como outros

produtos industrializados, ela representava um “gênero de inteira

confiança”, distinguindo-se dos variados produtos suspeitos de

falsificação e deterioração que preocupavam a população e

autoridades. Contrapondo-se aos produtos importados, a fabricação

de um gênero como a manteiga instaura ainda um outro patamar,

com uma marca regional bastante valorizada pelo anúncio: “manteiga

nacional, paulista da gema”. Tratava-se da valorização de um

alimento com marca local, mas não associado a antigas tradições

alimentares, como o milho, por exemplo, mas um bem

industrializado.

95 Diário Popular, 29 de julho de 1885, p. 2. Esse anúncio foi identificado por Denise Bernuzzi Sant’anna (2005: 92) que ressaltou o fascínio pelos produtos industrializados, nesse caso produzido localmente.

166

3.2 Restaurantes, cafés e confeitarias

Restaurantes

A cidade de São Paulo, como vimos, tinha um grande comércio

de alimentação na rua, mas foi apenas a partir de meados do século

XIX que os primeiros restaurantes teriam surgido na cidade a partir

dos hotéis. Segundo Afonso de Freitas (1978: 23), em 1852 a cidade

não tinha hotéis propriamente ditos e apenas dois restaurantes. Nos

almanaques comerciais a denominação mais comum para os locais

onde se vendiam refeições era casa de pasto. O restaurante

(derivado do modelo francês) representaria uma distinção em relação

às casas de pasto. Em dicionário de 1877, os restaurantes eram

definidos como “casa de pasto elegante e servida com boas iguarias.”

(Moraes Silva 1877). A apresentação e a comida serviriam como

parâmetro para essa distinção.

Em 1854 apareciam nos jornais as primeiras menções aos

hotéis que anunciavam também seus restaurantes abertos ao público.

Eram iniciativas pontuais e limitadas a alguns lugares do Triângulo,

mas evidenciavam pequenas mudanças no panorama urbano em

relação às possibilidades de comer fora de casa. Entre esses

restaurantes, estava o do Hotel da Providência, instalado na rua do

Comércio, de propriedade da francesa Felícia Lagarde:

Hotel da Providência - Os proprietários deste

estabelecimento avisam a seus fregueses que tem

continuadamente um sortimento de peixes, camarões e

ostras. Haverá doravante empadas todas as noites. As

pessoas que quiserem para suas casas será prudente

avisarem uma hora antes.96

96 Correio Paulistano, 05 de julho 1854, p. 4.

167

No anúncio não é possível perceber como se estruturavam o

cardápio e as refeições, na medida em que são anunciados apenas

alguns alimentos. São listados frutos do mar, ainda pouco comuns na

cidade, mas, sobretudo, o acréscimo de empadas, um tipo de petisco

comum em tabuleiros. Certamente nos vemos à frente de uma

curiosa mistura de alimentos, que pode ser explicada pela

necessidade de equilibrar um cardápio. Além das novidades (frutos

do mar) deveria estar presente um elemento mais comum, a

empada, durante a noite. Certamente as novidades deveriam estar

acompanhadas da permanência de alimentos mais conhecidos.

A despeito da comodidade e novidade da oferta de

determinados cardápios e ingredientes, os restaurantes também

enfrentavam críticas dos clientes preocupados com outros aspectos.

Dias depois de publicar anúncio comunicando mudanças em seu

cardápio, o restaurante do Hotel Providência recebia uma reclamação

pelo jornal:

Sr. Redator- Existe nesta cidade um hotel com o título

Providência, mas que de Providência só tem o nome. O seu

proprietário parece pouco importar-se com o paladar dos

consumidores pois que a respeito do asseio parece que não

há providência no Providência (...) Outras vezes um peixe

que tem vinte dias de sal, chamam-no fresco.

Assinado. Sentinela97

Nesse caso, a novidade dos frutos do mar e mesmo das

empadas que começavam a ser servidas, ficava em segundo plano. A

reclamação do freguês dizia respeito ao paladar identificado,

97 Correio Paulistano, 11 de julho 1854, p. 3

168

paradoxalmente, com asseio. Em um momento em que cresciam as

preocupações com a higiene dos alimentos, o peixe conservado em

sal provocava dúvidas em relação a uma possível deterioração.

Apesar de ainda incipientes, os anúncios e reclamações nos

jornais demonstram a existência não apenas de novos

estabelecimentos que ofereciam um tipo de alimentação distinta

daquela conhecida nas ruas e nas casas da cidade, mas também

novas possibilidades de experimentar as refeições, inclusive algumas

já conhecidas. Mas ainda havia um descompasso, compreensível num

momento em que os restaurantes começavam a aparecer embora

pouco numerosos. Essa situação fica evidente na troca de

correspondências publicadas no jornal Correio Paulistano em 1854

com outras reclamações sobre um desses restaurantes:

Sr. Redator – Vou por meio desta correspondência chamar a

atenção do Sr. Narciso Coelho, para um fato que se tem

repetido na sua casa no largo do Colégio, denominada –

Hotel. Aí têm comparecido diversas vezes algumas pessoas,

e além de não encontrarem muita coisa que pedem, e por

modo algum devia deixar de haver com abundância, não

têm sido servidos com prontidão. Ultimamente, porém, por

três ou quatro vezes não tem havido manteiga! Manteiga!...

mais um passo, e não haverá carne, pão, etc.

Faltas destas afugentam de sua casa, Sr. Narciso e Vmc. é o

único que perde com isto. Além de que um estabelecimento

que pretende o nome de – Hotel – jamais deve dar

respostas. Reflita pois, Sr. Narciso, nestas coisas, e trate de

superá-las, do contrário desde já iremos entoando o de

profundis ao seu estabelecimento. O Gastrônomo.98

98 Correio Paulistano, 11 de julho 1854.

169

Nesse caso a reclamação diz respeito à falta de vários

alimentos, principalmente alguns considerados pelo reclamante como

essenciais em um restaurante. A reclamação era assinada com o

pseudônimo de “gastrônomo”, alguém que estaria preocupado com a

qualidade do serviço (prontidão) e eventual indisponibilidade de

alguns alimentos. Na resposta ao gastrônomo, um representante do

hotel procurava desqualificar seu interlocutor:

O gastrônomo, de seu número de ontem, é minimamente

injusto para com o hotel de Sr. Narciso Coelho, porque não

só não se tem os fatos alegados na correspondência do tal

comilão, como porque ainda mesmo que fossem exatas as

asserções que aí aparecem, nem por isso deixava de ser o

estabelecimento do Sr. Narciso um grande melhoramento

para esta capital. É inegável que o Sr. Narciso Coelho tem

direito aos louvores dos habitantes pelo grande

melhoramento e vantagem que lhes oferece com o

estabelecimento em questão. Só um gastrônomo poderia

esquecer tudo isso para dar publicidade a esse fato

mesquinho, e que um caso de força maior poderia ter

motivado. O estabelecimento do Sr. Narciso Coelho está, ao

contrário do que diz o tal gastrônomo, muito bem montado,

com o conveniente asseio e delicadeza, como podem

testemunhar todos os que têm dele se utilizado, a menos

que não seja um desses indivíduos que só vivem para comer

brutalmente, e para quem a matéria está acima de

tudo...Muito pequena alma tem esse quidam que não pode

conter uma dentada feita com os rombos dentes do

invejoso, que só merece desprezo.

Sou, Sr. Redator, seu assinante. O Justo.99

99 Correio Paulistano, 12 de julho 1854.

170

A primeira justificativa é o fato de o restaurante dever ser, já

em si, um grande progresso para a cidade. Em um período onde os

botequins, tabernas e casas de pasto dominavam o comércio de

alimentação fora de casa, a simples existência de restaurantes

poderia significar melhoramentos para uma parcela da população. A

eventual falta de um ingrediente como a manteiga poderia, como

afirma a resposta, estar associada a um “caso de força maior”,

evidenciando algum problema de estoque ou mesmo de aquisição do

produto. A visão de que o restaurante por si só era um melhoramento

parte do proprietário, em um momento ainda incipiente de

transformações urbanas e sociais que dariam suporte a essa

experiência. Nesse caso há uma evidente diferença de perspectivas

entre proprietário e um de seus fregueses. A mera existência do

restaurante estava confrontada com a exigência de um determinado

padrão de funcionamento.

Mas a crítica do “gastrônomo” é desqualificada quando o

representante do restaurante, que se assina como “o justo”, o chama

de comilão, alguém que só vive para “comer brutalmente”. É evidente

que essa imagem seria diametralmente oposta àquela cultivada pelo

reclamante. Enquanto o primeiro estaria preocupado apenas com a

quantidade de comida, o segundo se preocuparia com o sabor, a

composição do prato e com o estabelecimento onde seria servido.

Mais do que indicar a importância dos restaurantes e uma nova forma

de comer fora de casa, essa troca de correspondências pelo jornal

expõe um momento em que as mudanças, ainda iniciais, traduzem

um certo desajuste. Esses novos estabelecimentos não eram apenas

lugares para se fazer refeições mas se inseriam em um novo contexto

na cidade de São Paulo, exercendo outras funções. Para Heloísa

Barbuy (2006: 70, 71) estava em curso a implementação de novos

padrões urbanísticos inspirados nos europeus, destinados a tornar a

cidade local para a realização da vida moderna. Os restaurantes,

171

confeitarias e cafés (assim como o comércio de modo geral)

tornariam a região do Triângulo um local para a exibição desses

novos padrões, com novas fachadas, interiores iluminados e vitrines

para exposição.

A maior preocupação desses primeiros restaurantes era

divulgar a novidade, apelando também para a culinária francesa

como chancela. A participação de franceses nesses primeiros

restaurantes e hotéis era intensa, e isso se refletia também na

introdução da culinária francesa ou apenas no uso de nomes

afrancesados. Em 1854 o Hotel Paulistano de Adolpho Dusser

anunciava com destaque a contratação de um cozinheiro francês para

seu restaurante:

“O proprietário deste estabelecimento participa ao público

que renovou o mesmo, e que lhe chegou um hábil

cozinheiro, pasteleiro francês, que se encarrega de fazer

toda a qualidade de comida. Os fregueses acharão todas as

quartas-feiras e sábados – volovann, pastéis, tortas, pudins

&. Na mesma casa haverá chá, mesa redonda de almoço às

9 horas da manhã, jantar às três da tarde.”100

A renovação do restaurante passava pela contratação de um

cozinheiro francês, responsável pela preparação de iguarias (doçaria)

de origem francesa que estavam disponíveis apenas em dois dias da

semana.101 Por outro lado, anunciava-se o almoço e jantar com “toda

a qualidade de comida” nos horários tradicionais, ainda que esses

restaurantes deixassem claro que ficavam abertos durante todo o dia

100 Correio Paulistano, 4 de outubro de 1854, p. 4. 101 Como vimos anteriormente, há uma confusão sobre os pastéis. Feitos com massa e recheios diversos (doces ou salgados), podiam ser assados ou fritos. O caso em questão, trata-se da pastelaria francesa (pâtisserie) associada à confeitaria. Em dicionário da época pastelaria era definida como “pastéis e massas que se cobre uma mesa esplêndida” (Moraes Silva, 1877).

172

e a noite. E mesmo o chá, produzido inclusive na cidade de São

Paulo, aparece no anúncio de outra forma, mais cerimonial. As

novidades precisavam estar associadas a um serviço que

providenciasse pratos do dia a dia.

Mesmo em se tratando de uma experiência restrita, os

restaurantes dos hotéis aumentavam na cidade. Em 1857 era

inaugurado o Hotel des Voyageurs et Restaurant na confluência dos

largos de São Francisco e Ouvidor e seu proprietário, o francês Pedro

Imbert, destacava a influência européia na cozinha:

“Ninguém contestará que uma das primeiras necessidades

em os estabelecimentos desta ordem é uma bem dirigida e

asseada cozinha, e neste sentido, o proprietário de ufana de

haver feito a melhor aquisição a desejar, pois tem incumbido

a direção da mesma um hábil e provecto chefe, que outrora

já ocupou este lugar, em uma das principais casas da

aristocracia européia.”102

O restaurante do Hotel des Voyageurs chamava a atenção para

a higiene, essencial nos novos estabelecimentos, associada à

contratação de um chefe europeu, vindo das “principais casas da

aristocracia européia”, origem dos principais restaurantes

franceses.103 Os hábitos trazidos dos restaurantes franceses não se

resumiam ao nome do estabelecimento ou dos pratos. Em 1862 foi

inaugurado o restaurante Pariz e impressos anúncios em francês e

português. Anunciava-se com destaque a existência de uma lista das

iguarias com o respectivo preço, um menu (Bivar 2008: 250). O

102 Almanak administrativo, mercantil e industrial da província de São Paulo para o ano de 1857. 103 Os restaurantes modernos surgiram em Paris no século XVIII. A Revolução Francesa permitiu que a alta cozinha saísse da corte para o ambiente da cidade, com vários cozinheiros da corte e da nobreza francesa abrindo seus restaurantes. A esse respeito ver Jean-Robert Pitte. In: Flandrin & Montanari (1998: 751-762) e Rebeca Spang (2003).

173

menu representava a possibilidade de escolher o que seria servido e

saber de antemão o preço, distinguindo-se do que acontecia nas

casas de pasto onde não havia nenhuma espécie de individualidade,

seja no serviço, seja na escolha do prato. A francesa Rosália Boudrot

que em 1865 havia adquirido de seu compatriota Evaristo Gautier o

Hotel Paulistano, anunciava que o restaurante do hotel tinha um

distinto cozinheiro francês.104

Mas essa importância da matriz francesa nos restaurantes que

surgiam em São Paulo no decorrer da segunda metade do século XIX

continuava a conviver com a permanência de alguns pratos bastante

conhecidos da maioria da população. O Hotel da América anunciava

seus pratos em 1877, evidenciando essa mistura:

Aberto das 6 da manhã a 12 da noite tendo a testa da

cozinha um dos melhores cozinheiros que tem vindo a esta

cidade. No mesmo hotel há hoje empadas de galinha e

palmito, frango assado a 1$000 rs., leitão assado, peixe

frito, peixe de escabeche, assim como se encontra tudo que

é concernente a este ramo de negócio por preços razoáveis,

asseio, prontidão e bons serviços.105

Ao contrário de outros restaurantes, vemos pratos comuns sem

nomes afrancesados comandados por “um dos melhores cozinheiros”

que não é necessariamente estrangeiro. Em outro anúncio, publicado

dias depois o mesmo hotel procura um bom cozinheiro,

preferencialmente um escravo.106 Mesmo nas cozinhas comandadas

por chefes europeus (segundo a propaganda dos restaurantes)

deveria ser forte a presença de escravos e forros na cozinha. Em

1889 o Hotel Rochedo também anunciava no jornal procurando um

104 Correio Paulistano, 23 de dezembro de 1865. 105 A Província de São Paulo, 2 de setembro de 1877, p. 4. 106 A Província de São Paulo, 6 de setembro de 1877, p. 3.

174

cativo para cozinheiro.107 Se as escravas e forras com seus tabuleiros

começavam a ser retiradas da região central, a experiência na

cozinha parecia ser bastante requisitada pelos restaurantes, mesmo

que nas propagandas ninguém alardeasse sua presença.

Essa necessidade dos restaurantes de vencer eventuais

resistências e fomentar uma nova demanda aparecia também na

oferta de determinados serviços como a entrega de comida em

domicílio. Já em 1854 o Hotel da Providência avisava seus clientes

sobre os pedidos de comida, como se apontou anteriormente. O

serviço de entrega de refeições parece ter sido bem sucedido, na

medida em que nos anos seguintes outros restaurantes anunciavam

com destaque essa disponibilidade. Em 1877 o comerciante Francisco

Mesa publicava um comunicado no jornal A Província de São Paulo

anunciando a compra de um botequim na travessa do Rosário.

Aproveitava para alertar os antigos clientes que continuaria a “dar

comidas para fora, bem como no estabelecimento, garantindo o

melhor tratamento.”108

Essa comodidade foi percebida por Firmo de Albuquerque Diniz,

alcunhado de Junius, que após estudar na Faculdade de Direito do

Largo São Francisco, viveu na cidade entre 1857 e 1860. Retornando

do Rio de Janeiro somente em 1882, ficou admirado com as grandes

transformações urbanas. Entre essas mudanças, notou a

possibilidade de encomenda de refeições aos restaurantes:

“Pois hoje pode se oferecer um esplêndido banquete ao rei

da Espanha, ao Czar da Rússia, ao Imperador Guilherme, ao

rei Humberto, ou a qualquer outro possuidor de coroa, cetro

e trono, se nos obsequiarem com suas visitas; nada faltará:

107 A Província de São Paulo, 22 de novembro de 1877, p. 3 108 A Província de São Paulo, 03/06/1877, p. 4.

175

feita a encomenda ao meio-dia, às 7 horas da noite estará

pronto o banquete, e luxuosamente servido com variedade

de iguarias à Européia, de sobremesa, com profusão de

vinhos de finas qualidades, franceses, portugueses,

espanhóis, alemães, italianos e húngaros: os três hotéis de

primeira ordem, as confeitarias, e várias outras casas

oferecem todos os recursos para a realização de uma tal

festa em condições de agradar as régias pessoas.” (Diniz

1978: 45)

Nesse caso vemos um extremo, a possibilidade de grandes

banquetes com comidas e bebidas importadas e preparadas com luxo

e apuro estético que os restaurantes podiam oferecer. Em 1889 o

Hotel e Restaurante do Universo também publicava anúncio

informando que encarregavam-se de mandar comida em domicílio,

além de oferecer petiscos a toda hora, de dia e de noite.109

Restaurantes mais sofisticados e até mesmo botequins procuravam

atender a uma demanda de refeição feita ou adquirida fora de casa, o

que denotava mudanças importantes em um hábito familiar. Pelos

anúncios não é possível saber quem eram as pessoas e quais as

circunstâncias de consumo de refeições entregues em domicílio, mas

se informa uma importante transformação nos hábitos e costumes

em relação à alimentação. Além disso, alguns petiscos, tão comuns

nos tabuleiros das quitandeiras, também eram oferecidos pelos

restaurantes da cidade.

Na última década do século XIX continuavam a proliferar os

hotéis e restaurantes na região central da cidade, oferecendo,

segundo os anúncios, uma série de serviços, além da comida. As

mesmas transformações que modificavam essa região, com o intuito

de torná-la uma vitrine moderna da cidade que crescia, também

109 A Província de São Paulo, 17 de novembro de 1889, p. 3.

176

eram verificadas nos restaurantes, como vemos no Hotel D’Oeste

localizado no largo São Bento em 1889:

“Este estabelecimento, vantajosamente conhecido, passou

por uma grande transformação no intuito de melhor servir

ao público, e na reconstrução do edifício o proprietário teve

em mira as regras da higiene moderna (...) Rigoroso e

variado serviço alimentar, prontidão e preços cômodos.”110

Além da higiene, outros valores passavam a ser considerados

nos estabelecimento urbanos, como o menu, rapidez, preços e

horários. A experiência de comer fora de casa passava por outros

parâmetros, distintos daqueles descritos por memorialistas e

cronistas nos tabuleiros. E não eram apenas os restaurantes

sofisticados que surgiam na cidade de São Paulo. Pequenos

estabelecimentos, herdeiros das antigas casas de pasto, surgiam

muitas vezes por intermédio de imigrantes europeus. Também

freqüentados por estudantes de Direito, alguns desses lugares eram

descritos por esses mesmos estudantes tendo em vista os

restaurantes luxuosos de alguns hotéis. A esse respeito podemos ver

a descrição de Cícero Marques (1944: 96, 97) em suas memórias

sobre o restaurante Carlino localizado no largo do Paissandu em finais

do século XIX:

“Não pensem que veriam sobre as mesas vasos de cristal

com flores, quadros e espelhos pelas paredes, cortinas às

janelas e grandes luzes a iluminar a sala. Nada disso. O

prosaísmo manifestava-se na presença sobre a mesa de um

sórdido galheteiro e um não menos sovado paliteiro...”

110 A Província de São Paulo, 22 de fevereiro de 1889, p. 4

177

Localizado fora do Triângulo, o Carlino atesta a crescente

diversificação dos restaurantes que lentamente substituíam as

antigas casas de pasto. Por outro lado, a descrição do que o

memorialista não encontrava nesse restaurante era exatamente a

imagem daqueles que surgiam na região elegante do Triângulo. Os

novos estabelecimentos se apresentavam como locais finos e

sofisticados para a reunião das classes mais abastadas que não

precisariam mais conviver com um público mais simples. Em relação

ao cardápio e seu preparo, também podemos perceber diferenças em

relação aos restaurantes dos hotéis que ficavam na mesma região:

“D. Patrocínia, a companheira de ‘seo’ Fernandes, a vista

dos clientes, na cozinha ao lado, preparava os guisados, sem

a encenação dos grandes cozinheiros, que aparecem no

salão, trajados de ‘smocking’, tendo no bolso superior

reservado ao lenço o distintivo da profissão: um garfo todo

de ouro, reluzente, prestigiando o ‘maitre cook’, que se faz

acompanhar de um séqüito de ajudantes, cujo trabalho é

passar-lhes os ingredientes para o molho do dia.” (Marques

1944: 96)

Mais do que o cardápio, que na descrição se resume ao

guisado, a ênfase maior é na comparação com um suposto e ilusório

refinamento culinário presente nos principais restaurantes da cidade.

O que estaria em jogo não era a comida em si, mas a teatralização

do ato de comer em um restaurante. Aquela disposição inicial dos

primeiros restaurantes que, em 1854 buscavam fomentar uma nova

demanda e apresentar novidades nos cardápio, muda nas últimas

décadas do século XIX. Muitos restaurantes apresentavam não

apenas novos cardápios inspirados na culinária francesa, mas

também um interior e serviço luxuosos.

178

Para o memorialista também chamavam a atenção os tipos

humanos que freqüentavam o restaurante, evidenciando uma grande

mistura:

“Freguesia modesta, assaz burguesa, porém, à noite, era

outro cantar. Que clientela! O que havia de sórdido! Não

havia gabinetes. Uma promiscuidade elevada ao suprassumo

da democracia! Advogados, poetas, médicos, jornalistas,

engenheiros, músicos, cocheiros, deputados, anônimos,

funcionários, enfim um amálgama que assombrava.”

(Marques 1944: 97)

Não se tratava de um botequim, mas era um local freqüentado

por pessoas dos mais variados tipos sociais, principalmente à noite.

Os novos estabelecimentos localizados no Triângulo remodelado

dificultariam essa mistura de tipos sociais, na medida em que não

ofereciam apenas alimentos, mas, sobretudo luxo e distinção social a

um preço certamente maior. O aumento desses estabelecimentos nas

últimas décadas do século XIX era significativo. Em 1883 a cidade

registrava 41 estabelecimentos sob a rubrica de cafés, botequins,

hospedarias e restaurantes e em 1890 já contava com cerca de 17

restaurantes registrados e espalhados pela região central.111

Essa importância do ambiente e teatralização nos restaurantes

do Triângulo estavam exemplificadas no Progredior. Inaugurado em

1893 na rua 15 de Novembro, representava esse novo ambiente

associado à idéia de progresso expresso no nome. Em uma longa

crônica intitulada “Regredior” publicada no jornal O Estado de São

Paulo em 1893, o cronista Valério Mendes relata sua decepção com

os serviços do restaurante, considerado então o mais luxuoso da

capital. Em relação à comida o desapontamento era ainda maior, já 111 Reconstituição da Memória Estatística da Grande São Paulo, p. 177 e Almanaque do Estado de São Paulo para 1890, p. 183, 184.

179

que esta havia chegado à mesa mal preparada e fria. O final da

crônica festeja a notícia de que o restaurante seria arrendado a

franceses.112 Mais do que a comida, era através do ambiente luxuoso

e cosmopolita de restaurantes, cafés e confeitarias que a cidade

buscava atingir um outro patamar de civilização sob a chancela dos

franceses.

Confeitarias e Cafés

Na transformação do Triângulo em área de comércio elegante

da cidade, os restaurantes se destacaram na oferta de novos

cardápios e serviços inspirados na matriz francesa. Mas os cafés e

confeitarias, também baseados em congêneres europeus,

representariam a possibilidade de novas formas de lazer e

sociabilidade para as camadas média e alta da sociedade. Eles

representavam a possibilidade de freqüentar a região central da

cidade aproveitando novos estabelecimentos onde era possível beber,

eventualmente comer e, sobretudo, encontrar diversão e requinte.

Isso fica claro nos registros de memorialistas, que descrevem com

freqüência esses estabelecimentos, dando destaque para o ambiente

e as pessoas que os freqüentavam. Eventualmente vemos referências

às bebidas e raramente à comida.

É difícil caracterizar com precisão tais estabelecimentos. Muitas

vezes os nomes não implicavam diferenças significativas. Se os

restaurantes se opunham às antigas casas de pasto (que

continuavam a funcionar), os cafés e confeitarias eram o contraponto

às tabernas e botequins. O termo “confeitaria” se referia a “uma casa

onde se fazem e vendem doces” (Moraes Silva 1877). Não era esse o 112 Crônica “Regredior”, O Estado de São Paulo, 26 de fevereiro de 1893. Heloísa Barbuy (2006: 125), analisou essa crônica ressaltando as tensões entre o sonho cosmopolita e a realidade da cidade no período.

180

caso das confeitarias na cidade, onde era possível encontrar bebidas

e comidas variadas.

Algumas confeitarias mudavam o nome para cervejarias,

principalmente aquelas de propriedade de alemães. Esse era o caso

da Stadt Bern, inaugurada em 1877. A caracterização informada por

Antonio Egydio Martins (2003: 298) enfatiza as instalações e o

ambiente:

“No domingo, 23 de setembro de 1877, à rua de São Bento

n. 73, no antigo prédio térreo de seis portas que foi

demolido e onde hoje se levantam os prédios n. 27 e 29,

realizou-se a inauguração do bonito jardim do

estabelecimento denominado Stadt Bern, com

caramanchões, jogos de bolas, etc. Por ocasião da

inauguração do elegante jardim, a orquestra do antigo

Teatro São José, entre as escolhidas peças de seu

repertório, a nova valsa Lungfrau, sendo a entrada no

mesmo estabelecimento franca e grátis, tanto pela rua de

São Bento como pela de São José, hoje Líbero Badaró,

custando cada copo de cerveja nacional 160 réis.”

O foco principal da descrição é o ambiente: jardim,

caramanchão, orquestra, etc. Apenas uma menção à cerveja

nacional, característica nesses novos estabelecimentos. Outros locais,

de propriedade de alemães ou suíços, enfatizavam a origem dos

donos. Era o caso da Stadt Coblenz (antiga Confeitaria de Gaspar

Leonard) localizada na rua Direita, cuja especialista eram costeletas

de porco à milanesa, com salada de batata e presunto de York, um

cardápio típico da Alemanha de onde vinha o proprietário Jacob

Friedrichs (Diniz 1978: 80). Muitos desses produtos era importados

através das diversas casas importadoras e armazéns da cidade,

181

introduzindo um tipo de comida fria, pouco conhecida até então pela

maioria da população.

As confeitarias do largo do Rosário tornaram-se na virada do

século XIX para o século XX o ponto de encontro preferido pelos

paulistanos. No final do século XIX foi instalada uma filial da carioca

Confeitaria Castelões. No começo do século XX era aberta a Brasserie

Paulista, já com o largo remodelado e batizado em homenagem ao

prefeito Antonio Prado. O público nesses estabelecimentos variava

conforme o local e horário. Segundo Cícero Marques as famílias

preferiam a Confeitaria Castelões onde ficavam até as cinco horas, ou

então a Fasoli, Nagel ou Pinoni. Durante a noite o público de

confeitarias como a Castelões era dominado pelas “cocotes”. O largo

Antonio Prado já não lembrava em nada o antigo largo do Rosário

dominado pelas quitandeiras.

Na década de 1860 era possível encontrar locais onde se servia

café acompanhado de alguma comida. O cronista Afonso Schmidt

(2003: 113) descrevia o Café de Maria Punga (uma espécie de

taberna) que apresentava uma “mesa grande, encardida, cercada de

mochos que faziam às vezes de cadeiras” em 1860. Era o mesmo

caso do café de Nhá Umbelina, quitandeira estabelecida em 1860 no

Largo São Francisco, que recebia os estudantes na varanda de sua

casa e servia café acompanhado de pastéis, amendoim torrado,

doces, etc. (Nogueira 1909: 169, 170). Como dissemos

anteriormente, esses cafés eram espécies de botequins onde era

servido café. Já na década de 1870 era possível encontrar na cidade

estabelecimentos parecidos com as confeitarias onde uma clientela

diferenciada buscava mais do que simplesmente tomar café. O

Almanaque Comercial de 1873 listava dois estabelecimentos desse

tipo: o Café Levy na rua da Imperatriz e o Café de Antonio José

Veríssimo na travessa do Colégio.

182

Em 1876 foi inaugurado o Café Europeu na rua da Imperatriz

(Martins 2003: 330). Ali era possível saber das últimas notícias

conversando ou lendo algum jornal. A profusão de cafés e

confeitarias no Triângulo, particularmente no largo do Rosário e

arredores, expressava a introdução de novos hábitos, de influência

européia no cotidiano da cidade. Afonso Schmidt (2003: 135) em

suas memórias fala sobre a distribuição dos variados tipos humanos

por esses estabelecimentos no final do século XIX:

Muita gente vivia nos cafés. Quando se falava em

determinadas pessoas, geralmente figuras populares da

cidade, dizia-se que eram encontradas em tal café, de tantas

a tantas horas, na quarta mesa à direita... O café era

escritório, endereço, ponto de palestra, ponto de reunião de

amigos e de gente da mesma profissão. Havia quem aí, por

excesso de parcimônia e frugalidade, fizesse algumas de

suas refeições.”

O foco principal dos cafés e confeitarias era, pois, a

possibilidade de encontros entre grupos de iguais, uma forma de

sociabilidade na cidade em processo de urbanização, acelerando a

emulação de hábitos europeus travestidos de civilidade. A refeição,

como apontava Schmidt, era apenas um complemento, estando em

segundo plano. Para o cronista, as refeições não apenas não faziam

parte do ambiente dos cafés, como seriam uma das responsáveis pela

sua descaracterização:

“Com o tempo foram desaparecendo os cafés mais

característicos. (...) Por outro lado, a tendência de fazer as

refeições nos cafés acabou por transformá-los em

restaurantes. (...) Hoje, quem quiser encontrar um

arremedo daqueles velhos cafés, tem de tomar o bonde do

Brás. Talvez encontre por lá alguns estabelecimentos que se

183

lhe pareçam. Mas – dizem os velhos, com uma pontinha de

saudade – já não são a mesma coisa...” (Schmidt 2003:

136)

Essa marca dos cafés, distinta dos restaurantes, está presente

na maioria das descrições feitas pelos cronistas e memorialistas. A

comida era apenas um complemento de um local onde o mais

importante era a possibilidade de encontros e de desfrutar da

permanência em um ambiente onde o principal era estar entre iguais.

O já citado Junius (ex-estudante de Direito) comparava em

suas memórias a cidade que conheceu em 1860, que considerava

silenciosa e sem lugares para comer, com aquela que encontrou em

1882:

Seguindo o nosso caminho, fomos até o fim da rua Direita;

daí descemos a rua do Rosário, e, a convite do jornalista, o

Dr. Z... e eu entramos no Café Americano; onde tomamos

assento a roda de uma das pequenas mesas: nos

demoramos ali quase uma hora, conversando, e ouvindo

algumas peças regularmente executadas por seis músicos

italianos. (Diniz 1978: 81)

Neste relato não há nenhuma menção a bebida ou comida,

apenas às conversas e música que poderia ser apreciada no local.

Mas em seguida, nosso visitante fala sobre o cardápio que encontrou

no mesmo Café Americano:

“(...) o sujeito, que apreciar o bife “saignant” acompanhado

do vinho do Porto, ou quiser cerveja, conhaque, ou qualquer

outro líquido, que dê tom ao espírito, é só entrar no Café

Americano, pedir, e gozar (...)”. (Diniz 1978: 84)

184

Um bom bife mal passado talvez soasse mais delicado se

pronunciado em francês e acompanhado de vinho do Porto ou uma

grande variedade de bebidas alcoólicas nacionais ou importadas.

Assim como nos restaurantes, persiste a adoção de nomes

estrangeiros (preferencialmente franceses) para designar os pratos,

ainda que eles pudessem ser feitos apenas com ingredientes

nacionais. O tom da descrição evidencia que a comida não tem um

papel de destaque, não se trata de um almoço ou jantar, mas de um

prato que estaria acompanhado da bebida, servindo para a fruição de

um ambiente.

Nas décadas finais do século XIX o largo do Rosário

transformou-se no local preferido para a instalação de cafés e

confeitarias. Em 1878 um empresário português abriu o Café Java na

rua São Bento próximo ao largo do Rosário. Tornou-se ponto de

encontro dos estudantes da faculdade de Direito e em 1886

anunciava gabinetes particulares para as famílias com serviço

especial. No mesmo local foi aberto em 1904 o Café Brandão.

Durante o dia era freqüentado por homens do comércio, políticos e

fazendeiros, que conversavam tomando um cafezinho. Durante a

noite o público era outro, artistas, músicos, poetas e gente de

imprensa (Marques 1944: 37).

Mas se a comida não era a principal atração de cafés e

confeitarias, ela ainda estaria presente nas ruas. Além dos quiosques,

inúmeros vendedores ambulantes também passavam a percorrer as

ruas centrais, muitos deles vendendo alimentos.

185

3.3 Imigração e quiosques

Imigração e vendedores ambulantes

O grande crescimento econômico da cidade de São Paulo a

partir de 1870 foi alavancado pela produção do café para exportação.

A rapidez nesse período, estava fortemente associada à expansão

cafeeira no oeste paulista, que transformou a capital no centro

político e econômico desse movimento. Juntamente com o grande

aumento da população, surgiam o crescimento e a diversificação das

atividades econômicas.

Cidade de São Paulo: população total e número de imigrantes113.

Ano 1836 1854 1872 1890 1900

Total 21.933 35.670 45.775 64.934 239.820

Imigrantes 250 14.303 71.568

Nesse contexto a imigração teve um papel decisivo com a

chegada de grandes contingentes de trabalhadores, principalmente

italianos para a lavoura do café no oeste paulista. Na cidade de São

Paulo o número de imigrantes aumentou nas duas últimas décadas do

século XIX. Entre 1886 e 1897 há uma introdução maciça de mão-de-

obra imigrante financiada pela União tendo em vista o crescimento da

lavoura cafeeira (Beiguelman 2005: 53). A cidade de São Paulo

passou a contar com uma imensa população estrangeira que

engrossava a massa de desempregados e subempregados, agravada

pelas crises cíclicas da produção de café. Apesar do crescimento da

cidade, havia uma incapacidade estrutural de absorver essa massa de

imigrantes e trabalhadores pobres que crescia. Tal quadro favorecia o 113 Memória Urbana, A Grande São Paulo até 1940, p. 100-110.

186

crescimento do mercado de trabalho casual e o aparecimento de

diversas atividades autônomas de vendas informais (Pinto 1994:

111). Nesse grande contingente de imigrantes que chegavam à

cidade nas últimas décadas do século XX, os italianos se destacavam

como o principal grupo, chegando a totalizar cerca de 60% do total

de imigrantes. Vários deles passaram a se dedicar às atividades de

vendas ambulantes, principalmente de alimentos.

Nesse período houve um grande crescimento das atividades de

venda ambulante de alimentos por toda a cidade. Ao contrário das

quitandeiras, os ambulantes movimentavam-se constantemente, sem

se fixarem em pontos específicos. Muitos deles ainda percorriam as

principais ruas do Triângulo, buscando os melhores pontos de

concentração, mas a transformação desse local em área estritamente

comercial fazia com que percorressem os bairros populares e também

alguns bairros habitados pela elite paulista.

Dessa forma, longe das ruas centrais, onde o comércio de

alimentos recuava, novas formas de venda e novos hábitos

alimentares surgiam nos bairros operários na virada do século XIX

para o século XX. As vendas de alimentos se concentravam em itens

de abastecimento vendidos de porta em porta pelos principais bairros

residenciais da cidade. O memorialista Jorge Americano (2004: 103-

109) relembra em seu texto os inúmeros vendedores ambulantes que

percorriam as ruas com os mais variados produtos: leite, verduras,

frutas, pães, ovos, frangos, peixes, etc.

Enquanto os tabuleiros iam desaparecendo, proibidos pela

Câmara Municipal, as licenças para vendedores ambulantes se

multiplicavam, abrangendo os mais variados itens alimentares:

doces, frutas secas, massa de tomate, leite em lata, verduras, tripas,

lingüiças, peixe, massas, aves, ovos, cebolas, legumes, sorvetes,

187

empadas, pizza, etc. A maioria era composta de gêneros alimentícios

in natura.114 Mas os alimentos preparados para consumo na rua

também permaneciam nas vendas ambulantes. Conforme os relatos

de memorialistas como Jorge Americano e Jacob Penteado, havia

uma grande variação nesse tipo de comércio: balas, doces,

amendoim, pipoca, sorvete, pastéis, batatas assadas, etc. Dentre

esses alimentos, dois se destacavam por caracterizar transformações

importantes nesse cardápio de rua influenciado pelo principal grupo

imigrante da cidade, os italianos: castanhas e pizzas.

A castanha passava a disputar espaço com os pinhões, sendo

vendidas assadas pelas ruas. Jorge Americano (2004: 108-110)

descreve a presença do “castagnaro” nas ruas:

“O ‘Castagnaro’ vendia ‘castagna assada ao forno’. O forno

era um fogareiro conduzido em carrinho de mão, uma roda e

duas hastes de suporte. As castanhas iam sendo assadas,

ele as tirava e enfiava num cordão, por meio de uma agulha.

Juntando uma dúzia, amarrava na ponta de um pau.”

Esse vendedor, certamente de origem italiana, vendia a

castanha pelas ruas dos bairros, à semelhança de que acontecia com

os pinhões que já eram vendidos cozidos pelas quitandeiras em

meados do século XIX. Alguns desses vendedores ainda permaneciam

nas proximidades da região do Triângulo concorrendo com as

quitandeiras, como era o caso de um italiano que mantinha uma

pequena porta no Beco dos Sapos onde assava castanhas em uma

lata de querosene.115

114 Alvarás e licenças para ambulantes, 1897. 115 Esse beco estava localizado fora da região do Triângulo, nas margens do rio Anhangabaú. Desapareceu com a urbanização do vale do Anhangabaú no século XX.

188

Por intermédio das lembranças dos próprios imigrantes –além

dos memorialistas - podemos perceber a grande importância de um

novo cardápio, sobretudo italiano, com presença na venda de

alimentos prontos pelas ruas dos bairros da cidade, introduzindo

novos hábitos alimentares antes mesmo do crescimento de cantinas e

restaurantes de culinária italiana. Filho de imigrantes italianos e

nascido no Brás, no início do século XX, o senhor Amadeu recorda os

vendedores de comida que passavam constantemente pelas ruas do

bairro anunciando com pregões musicais as iguarias de origem

italiana:

“Na frente de casa passavam os vendedores de castanha,

cantarolando. E o pizzaiolo com latas enormes, que era

muito engraçado e vendia o produto dele cantando.”116

O memorialista Jacob Penteado também relembra dos tipos

populares que andavam pelas ruas do Belenzinho no início do século

XX apregoando os mais diferentes tipos de comidas: tripeiros

bareses, vendedores de amendoim, pipoqueiros, sorveteiros,

vendedores de frutas, batatas assadas, etc. Assim como no Brás, em

outros bairros operários, como o Belenzinho, muitos imigrantes

italianos circulavam pela cidade oferecendo alimentos típicos que

começavam a aparecer nas ruas,com destaque mais uma vez para a

pizza :

“O ‘pizzaiolo’ trazia as ‘pizzas’ numa enorme lata redonda,

do formato das mesmas. Fazia-lhes um corte em cruz,

partindo-as em quatro pedaços, que eram vendidos a 200

réis cada um. Depois, continuava seu itinerário aos berros:

Ó pizzaiolo, é cávora! Alitche e pomarola!” (Penteado 2003:

208)

116 Depoimento a Ecléa Bosi (1994:124).

189

As pizzas começaram a ser vendidas nas ruas, principalmente

dos bairros com maior concentração de imigrantes italianos, como o

Brás e Belenzinho. Antes mesmo de serem encontradas em

restaurantes na década de 1910, eram oferecidas em pedaços por

vendedores que circulavam com pequenos carrinhos.

Apesar da introdução de alimentos como as pizzas, os bairros

distantes como o Belenzinho ainda preservavam velhos hábitos

alimentares da cidade, como a venda de peixes pescados nos seus

inúmeros rios. Pelas ruas do bairro circulavam vendedores que

ofereciam peixes conseguidos no rio Tietê.

Esses imigrantes também absorviam hábitos alimentares da

nova terra. Para Maria Inês Borges Pinto (1994: 115), a pobreza

obrigava-os a se adaptarem a antigos costumes alimentares

aprendidos com a população carente local. Assim, nas descrições de

atividades de ambulantes vemos a presença de pastéis, amendoim e

outros produtos que outrora eram vendidos pelas quitandeiras

negras. Mas se esses velhos hábitos alimentares estavam lentamente

diminuindo em um novo contexto urbano, a culinária baseada nos

grupos imigrantes começava a se destacar, não apenas nas ruas,

mas também nas cantinas e restaurantes que surgiam na cidade.

Enquanto a culinária francesa estava identificada com os restaurantes

e a idéia de civilização européia, os imigrantes italianos introduziam

uma culinária caseira mais simples, representada pelas cantinas e

vendas ambulantes nas ruas dos bairros operários.

190

Quiosques

Como vimos anteriormente, desde 1857 a Câmara Municipal

procurava fixar as quitandeiras em determinados locais da cidade

através de barracas com toldos, uma forma de padronizar as vendas

de rua. Os quiosques vieram atender a essa padronização do

comércio de rua, obedecendo aos requisitos de limpeza e localização

preconizados pelas autoridades.

O cronista Afonso Schmidt (2003: 93) descreve o que seriam os

quiosques do final do século XIX:

“Não passavam de uma construção circular, de madeira,

com balcão para fora, à altura do peito dos fregueses. O

teto, coberto de tábuas alcatroadas, ou telhas de zinco, era

funilado, com uma ventoinha a girar no alto. Alguns tinham

toldo de lona, às riscas, como as demais casas de negócio.

Outros não. Comia-se e bebia ao sol, à chuva.”

Ao contrário dos tabuleiros, não estavam enfileirados, ocupando

as ruas da cidade, mas localizados em pontos específicos, imitando as

demais casas de negócio na apresentação, além de disporem de

balcão onde os fregueses poderiam comer, ainda que expostos às

intempéries. Eram uma espécie de cafés portáteis instalados nas ruas

e praças da cidade de São Paulo, servindo bebidas e vários tipos de

comidas e petiscos para consumo rápido.

Os primeiros quiosques surgiram no Rio de Janeiro na década

de 1850 de propriedade de um empresário gaúcho, o Barão de

Ibirocaí. Espalhados pela cidade, eram destinados, principalmente, às

camadas mais pobres da população que consumiam além do café,

191

fritadas de carne moída, pastéis, iscas de bacalhau etc. (Guerrero

2003: 208, 209).

Em São Paulo as primeiras referências aos quiosques datam de

1872, quando negociantes pediram à Câmara licença para explorar

esse tipo de comércio:

“Requerimento de Veríssimo & Irmão. Negociantes

estabelecidos nesta cidade pedindo licença para por nos

largos da Memória, Misericórdia, Estação da Luz e largo da

Cadeia um café portátil a semelhança dos que se usam na

Corte pagando os suplicantes os respectivos impostos.”117

O modelo dos quiosques era abertamente inspirado no

exemplo do Rio de Janeiro, voltado também para o mesmo público,

certamente aproveitando o crescente cerceamento às atividades das

quitandeiras que exploravam esse mesmo tipo de comércio.

Representavam uma forma de disciplinar e adequar o comércio de

alimentos de rua ao projeto de “aformoseamento” da cidade em curso

no final do século XIX. Ao mesmo tempo os quiosques representavam

a oportunidade de cobrança de impostos por meio das concessões e

de “aformoseamento”.

Nos locais pretendidos inicialmente, apenas o largo da

Misericórdia (tradicional reduto de quitandeiras) estava no Triângulo.

Em 1878 foi encaminhado outro pedido de exploração de quiosques,

mas foi apenas em 1882 que a Câmara aprovou a proposta de

Porfírio Álvares da Cruz para a instalação de “kiosques em frente a

Praça do Mercado conforme planta apresentada.”118 Deferido o

pedido a Câmara tratou de marcar outros lugares destinados aos

quiosques: Largo da Sé, largo do Rosário, largo do Curro, largo 7 de 117 Atas da Câmara, 28 de junho de 1872, p. 100. 118 Atas da Câmara, 20 de março de 1882, p. 69

192

setembro, Estação do Norte, Estação da Luz, Mercado, Riachuelo,

largo Municipal, largo do Jardim, Matadouro e Estação Sorocabana.

Em 1883 aconteceu uma enxurrada de pedidos para instalação em

vários pontos da cidade, ainda que muitos deles permanecessem

fechados por algum tempo, o que teria motivado as autoridades a

pressionar os concessionários:

“Tendo em vista a Câmara na concessão feita para

estabelecimento de kiosques não só o embelezamento como

o aumento da renda da Câmara Municipal e ocorrendo que

muitos desses kiosques conservem-se fechados durante

muito tempo, indico que sejam os proprietários intimados a

ocupá-los no prazo de 15 dias, findo o qual se providenciará

a remoção”119

As quitandeiras e demais vendedores de alimentos nas ruas não

atendiam aos dois requisitos de renda e embelezamento da cidade.

Como a demanda por alimentos mais simples e baratos continuava a

despeito do crescimento da cidade e proliferação de restaurantes e

cafés, haveria a necessidade de um maior controle,seja fiscal, seja

higiênico e urbano.

Os quiosques atendiam, assim, a uma das exigências da

Câmara quanto ao comércio popular de alimentos. Ao contrário das

quitandeiras, que se recusavam a usar barracas com toldos, tinham

seu formato definido previamente em planta aprovada. Além disso,

ficava definida sua instalação na praça do Mercado, local indicado

para o comércio popular de alimentos. Estabelecidos em estruturas

fixas, eram uma alternativa ao trabalho das quitandeiras,

constantemente perseguido.

119 Atas da Câmara, 31 de outubro de 1883, p. 294.

193

Inicialmente as autorizações para instalação dos quiosques se

restringiam a locais fora do Triângulo, especialmente próximos às

estações de trem, mas foram se espalhando por vários pontos da

cidade. No mesmo ano, um abaixo assinado dos moradores do largo

do Rosário pedia a retirada do quiosque ali instalado, pois

atrapalhava a circulação.120

A alimentação oferecida nos quiosques era composta,

geralmente, de petiscos variados. O que dominava esse cardápio

eram as carnes e frituras, diferenciando-se do cardápio de tabuleiros

que misturavam iguarias de bugre e os mais variados tipos de bolos e

bolinhos. Mas a descrição do que era comido geralmente estava

associada à idéia de pobreza e sujeira, assim como era feito com

seus freqüentadores, no testemunho de Afonso Schmidt (2003: 94):

“No seu interior, um homem sem paletó, com as mangas de

camisa sungadas, presas ao alto, por elásticos, frigia bifes,

lascas de fígado ou rodelas de batatas no fogareiro a gás. Lá

estavam também o bule de café, a vasilhas de leite, o

garrafão de vinho, o ancorote de aguardente. (...) Ali se

encontrava de tudo, se frigia de tudo, especialmente as

moscas, que formavam nuvens sobre os pitéus expostos.”

Os quiosques ainda possibilitavam o preparo da comida no

local, já que dispunham de pequenos fogareiros onde alguns

alimentos eram fritos na hora, ainda que expostos à sujeira. As

descrições dos memorialistas passavam a imagem de um local

precário e freqüentado por gente considerada como marginalizada,

tratada de forma pejorativa. É o mesmo tom do relato de Nuto

Sant’anna (1947: 44) no final do século XIX, completando o já citado

Afonso Schmidt:

120 Atas da Câmara, 27 de outubro de 1886, p. 157.

194

“Quiosques se erguiam pela cidade afora com sua freguesia

especial de tropeiros, jornaleiros, soldados (...). Nos

quiosques, uma espécie de botequim, se grupava gente de

baixa condição, paus d’água, vadios, mulheres exalando um

cheiro pronunciado de cachaça, bodum e iodofórmio. Esse

poviléu barato ia bebendo e ia discutindo. Seres desbocados,

chegava a hora dos palavrões. E havia sarilhos. Grupos as

correrias ou vociferando.”

Essa descrição revela a imagem que determinados segmentos

sociais tinham de quem freqüentava esse tipo de comércio. O cheiro

representava uma das formas de definir a falta de higiene identificada

no comércio popular de alimentos em oposição aos estabelecimentos

que se ajustavam às normas de higiene e limpeza em voga. Afonso

Schmidt (2003: 94) acrescentava outros tipos comumente

encontrados nos quiosques:

“À roda de seu balcão, comendo, bebendo, em conversa

fiada, havia sempre homens descalços, em mangas de

camisa, chapéu amarrotado no alto do cocuruto. Eram,

geralmente antigos escravos, vendedores de jornais,

engraxates, carregadores, vendedores ambulantes, guardas-

cívicas, cocheiros, leiteiros, vendedores de passarinhos,

vagabundos, vigaristas, secretas e filósofos...”

Ao contrário das descrições da venda de quitutes pelas

quitandeiras, a referência aos quiosques parece pouco elogiosa e

desprovida de qualquer impressão de curiosidade e exotismo que os

cronistas e memorialistas devotavam às iguarias vendidas nos

tabuleiros. A proximidade destes tipos de comércio com pessoas

como marginalizadas era grande, como vemos em mais uma

reclamação publicada na imprensa, que chamava a atenção das

195

autoridades para sujeira na ladeira do Acu, onde “está estacionado

um quiosque e vê-se geralmente quitandeiras com seus

tabuleiros.”121

O quiosque, cuja instalação visava substituir o comércio de

tabuleiros, convivia com as quitandeiras, mantendo, na visão das

autoridades, o mesmo tipo de problema. Outro cronista, Cássio Mota

(1947: 20) ao falar sobre ele dizia que atraíam os homens e as

moscas varejeiras, deixando claro que este tipo de estabelecimento

e, mais ainda, a comida ali vendida era a responsável por esse

ambiente supostamente sujo, que também gerava reclamações em

relação ao trabalho das quitandeiras. A julgar pelas memórias de

cronistas, as pessoas mais abastadas mantinham distância desses

locais, apenas sentindo o cheiro das frituras pelas ruas onde estavam

instalados. Com referências tão desfavoráveis e constantes críticas na

imprensa, os quiosques tiverem vida curta. Em 1886 diante das

reclamações, inclusive de um quiosque na ladeira do Acu que teria

sido abandonado e transformado em mictório, vários pedidos de

instalação foram indeferidos pela Câmara.122

O mesmo movimento que cerceava e expulsava as quitandeiras

da região central se repetia com os quiosques. Reclamações de

sujeira e da circulação pela cidade eram as alegações costumeiras

para a limpeza da região central. As descrições dos fregueses dos

quiosques evidenciam a crescente intolerância com as camadas

marginalizadas da sociedade, ressaltando questões de higiene e

moral.

Nos últimos anos do século XIX, a cidade se transformava, e o

espaço de antigos hábitos alimentares se reduzia. Os quiosques

121 A Província de São Paulo, 21 de julho de 1885, p. 2. 122 Atas da Câmara, 20 de outubro de 1886, p. 91.

196

tiveram vida curta e foram sendo abandonados e desmontados na

virada do século XIX para o século XX. A tentativa de padronização e

limpeza não teria funcionado e eles seriam esquecidos assim como

outros tipos de venda de alimento, principalmente as quitandeiras e

seus tabuleiros.

197

3.4 Desmonte do comércio de alimentos nas ruas

Recuo das quitandeiras

Enquanto a região central da cidade de São Paulo se

transformava, com remodelações e, sobretudo, com o crescimento de

estabelecimentos como restaurantes, cafés e confeitarias, as antigas

atividades de venda de alimento nas ruas entravam em um momento

crítico. No último quartel do século XIX o trabalho das quitandeiras,

que vinha sendo cerceado desde meados do século, enfrentou um

momento crucial, com inúmeras tentativas do poder público de retirá-

las das ruas do Triângulo em vias de se tornar um espaço destinado

ao comércio elegante da cidade. Configurava-se um processo de

espacialização funcional e social.

Algumas dessas transformações tinham as quitandeiras como

atores principais. Em 1872 a Câmara Municipal decidiu desapropriar

algumas casas e o cemitério contíguo à igreja do Rosário para alargar

a rua São Bento e a do Rosário, criando o largo do mesmo nome. No

ano seguinte, outras casas pertencentes à igreja também foram

desapropriadas para a praça. Era um local que reunia várias

quitandeiras, muitas delas ligadas à irmandade do Rosário dos

Homens Pretos, e um dos principais pontos de venda de alimentos

por parte de escravos e forros que moravam no entorno da igreja e

seu cemitério.

Os forros e libertos continuavam a residir e trabalhar nas

imediações da igreja, mas lentamente o local ia se transformando em

uma área dominada pelos novos estabelecimentos comerciais.

Prosseguindo na transformação da área central, em 1893 foi

demolido o chafariz que estava no largo, importante local de reunião

198

de pessoas mais pobres que se abasteciam de água, além de

aproveitar o local como ponto de encontro, conversas, combinações

de ações e vendas. A retirada do chafariz (assim como outros na

região central) era uma iniciativa da Companhia Cantareira de Água e

Esgotos para obrigar os moradores a se ligarem à rede de água em

suas casas. Essa decisão teria provocado revolta da população no

largo do Rosário, contida com a intervenção da Força Pública (Martins

2003: 412).

No início do século XX essa região da cidade estaria

completamente renovada, pouco lembrando aquela cidade com

quitandeiras circulando e estacionando pelas ruas e largos

acanhados. A partir de 1901 a rua 15 de Novembro (antiga rua da

Imperatriz), considerada a mais elegante da cidade, foi alargada. O

largo do Rosário rebatizado como praça Antonio Prado, foi ampliado e

regularizado geometricamente. A Igreja foi demolida em 1904 e

transferida para o largo do Paisandu, fora, portanto, do Triângulo de

comércio elegante da cidade. Simbolicamente a presença das

quitandeiras vendendo alimentos pelas ruas chegava ao fim. A Praça

Antonio Prado passava a ser o coração da vida social e empresarial

de São Paulo. Para Heloísa Barbuy (2006: 125) a praça mostrou-se

um local propício à instalação de confeitarias e cervejarias, tornando-

se o ponto de encontro mais concorrido da cidade.

Outros locais que eram importantes locais de concentração das

quitandeiras também começavam a passar por um processo de

transformação. Em requerimento enviado à Câmara em 1873, Luís da

Gama chamava a atenção para o fato de que as quitandeiras estavam

proibidas de armar seus tabuleiros na rua das Casinhas e não tinham

como alugar corredores de prédios por falta de recursos. O advogado

pedia a designação de um lugar gratuito e único para todos e a

permissão de continuarem a vender em passeio, alegando que era

199

um costume antigo da população que fazia suas compras naquele

local.123 A Câmara procurou contemporizar o assunto:

“Requerimentos: Outro das pretas livres Antonia Maria das

Dores, Anna Maria da Silva, Paula Jordão e Maria da

Conceição, alegando que tendo sido advertidas por parte

desta Câmara para não continuarem a vender quitandas e

verduras nas testadas dos prédios da rua das Casinhas,

onde costumam, requeriam que se lhes designasse um lugar

gratuito para todos e único em que seja permitido reunirem-

se as quitandeiras, salvo o direito de andarem pelas ruas,

digo, o direito de venderem pelas ruas, ou em suas casas, as

que tiverem. Em quanto se trata de uma postura acerca da

designação do local, fica designado a praça do Mercado,

salvo o direito de venderem pelas ruas em passeio.”124

As quitandeiras continuavam proibidas de vender com seus

tabuleiros estacionados na rua das Casinhas, mas mantinham o

direito de circular pelas ruas, além da possibilidade de usar o espaço

do mercado. Expulsos de determinadas áreas através das

desapropriações e demolições, elas ainda tentavam manter o direito

de permanecer nas ruas com seus tabuleiros, com a agravante da

transformação urbana que encarecia o aluguel de quartos e cômodos

na região central.

Com o advento da República as intervenções urbanísticas na

cidade de São Paulo tomaram fôlego. A Constituição de 1891 ampliou

os poderes e atribuições da esfera estadual, além da criação do

executivo municipal nessa mesma década. As ações urbanísticas e

sanitárias marcaram a atuação dos poderes públicos na virada do

século XIX para o século XX (Campos 2002: 59, 60). Nos anos finais

123 Manuscrito 262, 30 de janeiro de 1873. 124 Atas da Câmara, 30 de janeiro de 1873, p. 45.

200

do século, embora a Câmara expedisse licença para vendas

ambulantes de vários tipos de alimentos, as quitandeiras estavam

impedidas de montar seus tabuleiros na cidade. Frequentemente os

fiscais informavam apreensões de tabuleiros de doces e apreensão de

carrocinhas de mão com frutas.125 As apreensões de tabuleiros eram

feitas par cumprimento ao artigo 49 das Posturas Municipais que

determinavam:

“Nos lugares públicos é proibida a colocação de madeiras e

quaisquer materiais de modo que fique embaraçado ou

arriscado o trânsito, e embora não prejudique o mesmo

trânsito, não se poderá colocar em tais lugares material

algum sem licença da Câmara.”126

Nesse caso o problema maior não era, pois, a alimentação em

si, mas o atravancamento da rua provocado pelos tabuleiros das

quitandeiras que ficavam estacionadas. No caso das frutas estava

terminantemente proibida sua venda fora dos mercados. Edital da

Intendência Municipal de Polícia e Higiene de 1897 era explícito a

respeito:

“Proibida a venda pelas ruas e praças da cidade de

quaisquer frutas que só poderão ser expostas ao comércio

nos mercados ou em casas destinadas a esse gênero de

comércio, de modo a poder se exercer uma fiscalização

preventiva e impedir os abusos de serem expostas a venda

frutas mal sazonadas e mesmo decompostas.”127

125 Por exemplo: Editais de apreensão de 05 de maio de 1897, 13 de abril de 1897 e 25 de fevereiro de 1898. 126 Código de Posturas do município de São Paulo, 1886. 127 Edital. Intendência Municipal de Polícia e Higiene de São Paulo, 7 de janeiro de 1897.

201

Nesse caso havia uma grande preocupação com a deterioração

e sazonalidade das frutas, que estava prevista no capítulo sobre

alimentação pública do Código Sanitário de 1894.128

Essas atividades não desapareceram, mas tiveram que

enfrentar novos desafios, permanecendo nos interstícios da vida

urbana e convivendo com novas formas de alimentação.

O fim das “indígenas iguarias”

A permanência e as lembranças das antigas iguarias ainda

estavam na lembrança do jornalista Sylvio Floreal nas primeiras

décadas do século XX. Sob o título “Ronda das petisqueiras – ‘batata,

pinhão, pipoca, amendoim’”, ele descreve a venda de quitutes nas

ruas:

“São estas as quatro petisqueiras noturnas que fazem o

encanto dos bairros pobres e também de algum rico. São, na

sua mais lata nacionalidade, genuinamente populares. O

povo, cujo estômago resiste a todas as provas possíveis de

vertiginoso escrúpulo, tem por esse quadrado petisqueiral

verdadeiros prodígios de apetite.” (Floreal 2002: 113).

Há uma identificação destes alimentos com uma marca de

nacionalidade e apelo popular que remete aos antigos petiscos

encontrados nas ruas da cidade. Mas nesse caso estariam

marginalizados, restritos a determinados locais (geralmente bairros

pobres) e horários (noite).

Se o público desse comércio evidencia um caráter marginal, os

vendedores e os locais também confirmavam essa característica. 128 Collecção das leis e decretos do Estado de S.Paulo de 1894: actos do Poder Legislativo e actos do Poder Executivo

202

“Todos os bairros, os sujos e até mesmo os presuntivamente

limpos, possuem os seus grupos de garotos, compostos na

maioria de pretinhos e mulatinhos que, de gargantas

rebeldes, ao entrave da mais forte rouquidão, berram

cabritescamente, anunciando as delícias das gulodices, que

trazem nos seus samburás e vasilhames. Embarafustam,

penetram, invadem, na caminhada noturna de pesca ao

níquel, rompendo o silencio da noite, para irem levar, no

recôndito dos becos e no anonimato escuro do mais remoto

dos bairros, um cartucho de pipoca e amendoim.” (Floreal

2002: 114)

A acusação de marginalidade e sujeira (moral) estariam

associadas também ao componente racial. Por outro lado, a distinção

do sabor dos velhos quitutes ainda permaneceria nessa atividade, da

mesma forma que nos antigos tabuleiros das quitandeiras. Mas toda

a organização tinha mudado, com crianças mandadas pela família

para vender pelas ruas.

“Há, em São Paulo, um número considerável de certas

famílias que mandam, à noite, vender, nas portas dos circos

de cavalinho e dos cinemas de bairros, toda espécie de

quitandas fritas, cozidas e torradas, às vezes também

tabuleiros doces e bandejas de balas. (...) Os vendedores

dessas indígenas iguarias, depois da meia-noite, e após

terem calcorreado as ruas, onde contam com fregueses

certos, e não havendo mais função de circo de cavalinho e

cinema, escolhem, para ponto de encontro, um botequim no

largo do Piques.” (Floreal 2002: 114)

Entre uma variedade de quitandas e doces, é interessante notar

a expressão “indígenas iguarias”, caracterizando o parentesco com os

quitutes encontrados na cidade no século XIX. Os quatro petiscos

203

mencionados por Floreal (batata129, pinhão, amendoim e pipoca)

podem ser considerados “iguarias de bugre”, indicando uma antiga

tradição da comida de rua associada com hábitos indígenas e

mamelucos. Os arredores da região central ainda continuavam a ser

o principal local para esse tipo de comércio, significativamente no

largo do Piques, uma das antigas entradas da cidade, ponto de

encontro de tropeiros e de venda de quitandas no século XIX. Os

freqüentadores desse local também eram muito parecidos com os

antigos ajuntamentos de escravos, forros e pobres:

“O elemento freqüentador é composto de partes iguais de

pretos e mulatos, e pretas e mulatas. Mas também

aparecem alguns brancos desgarrados que, ao lado de

sestrosas trigueirinhas, imploram carícias baratas. (...) De

permeio aos homens de caras patibulares e tristes mulheres

do barato meretrício, desfilam, bebendo álcool de toda a

qualidade, ouvindo ditos populares de todos os calibres e

propostas pecaminosas de mulataços e outros valientes

viciados, diversos moleques vagabundos, pelitrapos, todos

de cara envelhecida e expressão fisionômica amargurada.”

(Floreal 2002: 114)

Um tipo de público bem diferente daquele que passava a

freqüentar as ruas centrais e seus restaurantes. O componente racial

e a marginalidade social estariam associados. As antigas iguarias

estariam assim, irremediavelmente ligadas a esse ambiente social

julgado moralmente perigoso e, conforme Sylvio Floreal, em franca

decadência:

“Entre esses encontram-se sempre, a começar da meia-noite

e trinta, uma grande quantidade de vendedores ambulantes,

129 A batata, apesar de não ser uma “iguaria de bugre” é originária da América do Sul. Em São Paulo, era vendida assada na rua, principalmente, por imigrantes italianos.

204

de pipocas e amendoim... A época do pinhão cozido já vai

passando e o das batatas já quase passou. Raramente o

grito lamentoso e prolongado dos vendedores de pinhão e

batata, se ouve por aí, por esses bairros à noite. Era de

prever. A pipoca e o amendoim, fatalmente acabaram

fazendo uma aliança, para derrotar os outros dois. E

venceram! Porque o amendoim é resoluto no seu querer e

quando ele quer, quer mesmo...” (Floreal 2002: 117)

Há uma curiosa mistura nesse relato, um embate entre

amendoim e pipoca contra a batata assada e o pinhão cozido. Tanto o

amendoim quanto a pipoca já eram vendidos nas ruas da cidade

pelas quitandeiras no século XIX. O amendoim (como dissemos

anteriormente) apesar de sua origem na América do Sul, tornou-se

muito popular entre os escravos africanos que os usavam em vários

quitutes (quindungo e pé-de-moleque). A pipoca, feita do milho, já

era citada em documento do século XVIII que falava sobre a

alimentação nas minas de Cuiabá.130 Por outro lado, se os pinhões

faziam parte da comida nos sertões da região paulista e nas

províncias do sul desde os primeiros séculos da colonização, a batata

assada aparece apenas nas descrições de memorialistas sobre a

venda através de imigrantes italianos nas ruas de São Paulo no final

do século XIX. Esses alimentos sofreram transformações ao longo do

tempo, diretamente ligadas às modificações urbanas e às formas de

se alimentar nas ruas.

De qualquer forma, chama a atenção o tom nostálgico de Sylvio

Floreal, misturado com observações sobre a marginalidade em

relação aos antigos alimentos e mais ainda a antigas formas de venda 130 “Relação verdadeira da derrota e viagem que fez da cidade de São Paulo para as minas de Cuiabá o Exmo. Sr. Rodrigo César de Meneses governador e capitão general da Capitania de São Paulo e suas minas descobertas no tempo de seu governo, e nele mesmo estabelecidas.” Coleção do Padre Diogo Juarez, S.J., Códice da Biblioteca de Évora. apud: Afonso de Taunay (1953: 113).

205

nas ruas da cidade, ainda que permanecessem em locais como um

botequim na ladeira do Piques. Não era mais a mesma cidade, e nem

mesmo a mesma comida de rua.

Arte Culinária

Os velhos hábitos alimentares relacionados aos primeiros

séculos da cidade, identificados como símbolo de precariedade e

pobreza, foram lentamente relegados a um segundo plano. O recuo

das quitandeiras das ruas centrais, a multiplicação dos restaurantes e

o surgimento de imigrantes vendendo seus alimentos pelas ruas

transformariam a experiência urbana de comer fora de casa. Um dos

resultados foi a valorização de outros pratos e ingredientes em

detrimento daqueles que eram encontrados nos tabuleiros. Não havia

nenhum esforço para transformar os pratos tradicionais em uma

culinária própria, exceto as adaptações aos padrões europeus

sugeridas em livros culinários. Aqui a noção de progresso e civilização

estabeleceria um novo patamar a partir do qual deveria ser

desenvolvida a alimentação. Esse patamar era baseado na culinária

européia (especialmente a francesa) e tinha como agentes os

restaurantes e, em menor grau, os vários grupos imigrantes e os

produtos importados e industrializados.

Há um embate entre a idéia de arte culinária e a cozinha local,

que perpassa as discussões sobre alimentação na virada do século

XIX para o século XX. Tal confronto não é o tema deste trabalho, mas

traz algumas questões importantes que estariam relacionadas à

problemática da alimentação de rua e seu recuo no final do século

XIX.

206

A partir das últimas décadas do século XIX essa preocupação

com a arte culinária aumentaria. Estava muito presente em vários

autores do período que, de certa forma, buscavam um

reconhecimento para o que consideravam ser uma cozinha local. Em

seus manuais destinados às donas de casa no começo do século XX,

a escritora Júlia Lopes de Almeida (1906: 105, 106) refletia sobre

essa relação:

(...) Desde que o enfarruscador oficio de temperar panelas

se enfeitou com o nome de arte culinária, temos uma certa

obrigação de cortesia para com ele. E concordemos que é

uma arte pródiga e fértil. Cada dia surge um pratinho novo,

com mil composições extravagantes, que espantam as

menagères pobres e deleitam os cozinheiros da raça! Dão-se

nomes literários, designações delicadas, procuradas com

esforço, para condizer com a raridade do acepipe. Os

temperos banais, das velhas cozinhas burguezas, vão-se

perdendo na sombra dos tempos. Falar em alhos, salsa,

vinagre, cebola verde, hortelã ou coentro, arrepia a cabeluda

epiderme dos mestres dos fogões atuais. Agora em todas as

despensas devem brilhar rótulos estrangeiros de conservas

assassinas, e alcaparras, trufas, manteiga dinamarquesa (o

toucinho passou a ser ignominioso), vinho Madeira para

adubo do filet, enfim tudo o que houver de mais apurado,

cheiroso e ... caro!

Júlia Lopes de Almeida ressaltava o abismo existente entre esse

novo discurso que atribuía valor literário e artístico ao ato de cozinhar

e as “velhas cozinhas”. A ironia da escritora explora justamente a

forma de apresentação desses pratos, considerados refinados e os

ingredientes importados e caros. Ainda que não apareça claramente

no texto, está presente também a distinção entre um tipo de cozinha

identificada com os restaurantes (cozinheiros) e outra ainda ligada à

207

casa (menagères pobres). Se compararmos com o cardápio do que

era oferecido nas ruas em tabuleiros, o abismo seria ainda maior.

Comentando sobre os conhecimentos desejados nos novos

cozinheiros, a mesma Júlia Lopes de Almeida (1906: 95, 96)

acrescentava as noções de química que “habilitassem a substituir por

outro o pesadíssimo, o brutal alimento com que se enche e amortece

a população brasileira: o feijão, a carne seca, o cozido dariam lugar a

coisas mais saudáveis...” Essa situação mostra uma certa resistência

de determinados segmentos em relação a alimentos identificados com

a maioria da população e supostamente carentes de apuros estéticos

e leveza.

A tentativa de desenvolver uma arte culinária própria não se

baseava, assim, na valorização da alimentação local, mas a imitação

da européia como símbolo de civilização. Júlia Lopes de Almeida

(1906: 95, 96) ainda explicita essa tentativa de emulação da arte

culinária européia:

“O que eu invejo não são as trutas, nem os champignons,

nem o seu foie-grass, porque tudo isso nós temos aqui e

mais muitas coisas que eles lá desconhecem. O que eu

invejo é aquela facilidade, aquela graça das exposições que

se sucedem e se multiplicam e que não podem deixar de ser

úteis, porque abrem a curiosidade e ensinam muito. A

cozinha francesa tem-se intrometido em toda a parte.”

Haveria claramente uma ambigüidade na relação com a

culinária européia. Esse conflito permaneceria nas primeiras décadas

do século XX. O escritor Monteiro Lobato (1946: 134) observa

criticamente a atitude beatífica em relação a tudo aquilo que

caracterizaria a influência francesa nos restaurantes opondo-a à

desprezada realidade local:

208

“O povo abre a boca. Mas o que importa o povo? Valem as

elites, e para estas é prova de suprema distinção receber

lições de elegância do Vatel que organiza a macaqueira e

dos garçons que a dirigem. (...) Estes garçons tão poderosos

serão acaso plenipotenciários do Instituto da França, ou

coisa que o valha, aqui são destacados em missão

civilizatória?”

Para o autor, ao estabelecer uma clara distinção entre elite e

povo, a alimentação nem seria o mais importante, mas tudo o que

cercava o ato de comer. Destaca-se justamente o papel dos

restaurantes (e seus garçons) nesse processo de difusão da culinária

francesa, vista pelas elites como uma “missão civilizatória”. Mas não

se tratava apenas da recusa de novos hábitos alimentares, mas,

principalmente, de um processo onde a alimentação tradicional era

colocada em segundo plano como símbolo de atraso.

“Os paulistanos, então, não comem o que querem? Oh, não!

Comer o que se quer é regionalismo sórdido. Come-se o que

é de bom tom comer. Manducar leitão assado, picadinho,

feijoada, pamonha de milho verde, muqueca e outros

petiscos da terra, é uma vergonha tão grande como pintar

paisagens locais, romancear tragédias do meio, poetar

sentimentos do povo.” (Monteiro Lobato 1946: 134, 135)

O que estaria em questão era a possibilidade de escolha. Para

Monteiro Lobato, a comida passaria a definir condição de classe e

status, abolindo a possibilidade de escolha. Nesse contexto os

alimentos passariam a ser poderosos instrumentos de distinção e

classificação social. A escolha deixaria de ser individual e passaria a

ser de classe.

209

Uma situação bem diversa daquela que vimos em meados do

século XIX. Não que não houvesse hierarquia e distinção social, mas

os alimentos não desempenhavam com tal agudeza esse papel de

distinção. Principalmente na alimentação de rua, onde os relatos

sobre os petiscos de tabuleiros eram todos feitos não pelas pessoas

mais pobres que preparavam, vendiam e consumiam, mas bacharéis

de direito, viajantes, etc.

Esse conflito também aconteceu em outros centros urbanos do

país no mesmo período. Analisando a influência da gastronomia

francesa no Rio de Janeiro da virada do século XIX para o XX, Raul

Guerrero (2003: 253) considera que o “cultivo e aprimoramento da

cuisine brasileira não encontrou apoio nas elites cariocas”. Essa

conclusão pode ser estendida para o caso de São Paulo, ainda que

não houvesse nenhum projeto de aprimoramento ou definição de

uma culinária tipicamente paulista ou paulistana131. Claro que a forte

presença de escravos e forros no Rio de Janeiro e as influências

indígenas e mamelucas, implicaram diferenças fundamentais na

constituição dos cardápios de rua. Mas também em nosso caso, as

elites não se identificaram com a alimentação de rua, marginalizada

social e espacialmente.

O período enfocado neste trabalho revela um momento

importante, quando intervenções de grande escala foram efetuadas

no tecido urbano, especialmente no espaço da rua. Convém ressaltar,

131 Nas primeiras décadas do século XX a busca de uma cultura nacional também incluiria o desenvolvimento de uma culinária brasileira. Paulo Duarte propôs a criação de um restaurante de comida típica brasileira ligado ao Departamento de Cultura. Este restaurante (nunca concretizado) deveria estilizar a culinária brasileira e seria dirigido por um chefe de cozinha austríaco. Mais uma vez, a mediação européia era considerada indispensável para civilizar a cozinha nacional (Patrícia Rafainni, 2001: 94, 95). Em Minas Gerais (cuja alimentação tinha grande influência dos paulistas) teria havido o desenvolvimento de uma culinária que desembocaria em um projeto político de definição da identidade do mineiro no decorrer do século XX, onde a alimentação teve um papel central. A esse respeito ver Mônica Abdala, 1997 e Eduardo Frieiro, 1982.

210

porém, que tais intervenções e os confrontos, reciclagens e

negociações a que eles deram causa são parte do complexo processo

econômico, político, social e cultural que adaptaria a cidade aos

padrões da modernidade capitalista. Assim, a rua não era apenas

esse local que escravos e pessoas pobres utilizavam para

permanência e, sobretudo, para sobrevivência, organizando suas

vidas e trabalho, mas se transformara num campo de forças em que

atuavam velhos e novos agentes, objetos e interesses multiformes.

O resultado é um processo de especialização funcional e social

dos espaços da cidade, onde antigos hábitos passam a ser

combatidos em prol de novas formas de uso e interação social. Mais

ainda: a rua, além de palco dos conflitos, seria ela própria também

um fator de mediação entre padrões modernos e de uma

racionalidade específica, em oposição a objetos, personagens e

costumes do mundo rural e escravista, levando os conflitos sociais a

um nível de supuração.

Analisando os relatos e memórias de estudantes e pessoas da

elite paulistana na segunda metade do século XIX, Fraya Frehse

(2006: 222; ver também 2005: 30, 31) já havia identificado em

nossas principais fontes olhares distintos sobre o espaço da rua:

“Talvez o mais significativo documento que o material, em

conjunto, constitui, seja a evidência de que a rua que, nas

lembranças relativas ao período anterior da ferrovia, aparece

apenas como cenário espacial de permanências, passagens e

ajuntamentos excepcionais ou periódicos de estudantes,

meninas e mulheres de elite, no segundo intervalo se

destina principalmente a atividades que implicam a

circulação desses tipos humanos por ali: a freqüência a

cafés, a restaurantes, confeitarias, jardins públicos, bondes.

A rua torna-se referência espacial real ou imaginária na

211

rotina de ao menos alguns desses indivíduos. O que indica

uma mudança cultural indissociável do advento da

modernidade na cidade.”

As transformações da rua fundam-se nessa diferença que se

expressa nas lembranças de alguns memorialistas. Nesse intervalo,

as intensas mudanças na alimentação de rua são ao mesmo tempo

produtos e vetores dessas mudanças mais drásticas por que passava

a cidade. A venda de alimentos era um resquício de antigas tradições,

ao mesmo tempo em que integrava a economia de abastecimento em

processo novo de organização. A alimentação da casa parecia mudar

mais lentamente, sem explicitar os latentes conflitos sociais

observados no espaço da rua. A alimentação de rua, assim, seria

uma plataforma estratégica para a observação dessa situação. As

incompatibilidades com a nova ordem pretendida contribuíram para a

marginalização de parte do cardápio da rua, identificado com

marginalizados e ex-escravos, herdeiros de antigas tradições e

hábitos alimentares que deram lugar a novos cardápios, novos

padrões alimentares, novos figurantes, novas formas de atuação.

Retomamos o relato de Sylvio Floreal (2002: 117) que, no

começo do século XX, fala sobre as antigas iguarias encontradas na

região do Piques:

“Quando me afastei do botequim, lembrei-me então de

procurar mais dois vendedores de petisqueiras. O pinhão

cozido e o de batata assada ao forno. Caminhando, porém,

achei prudente abandonar essa idéia, porque esses dois

gêneros de guloseimas já entraram em franca decadência.”

Os antigos quitutes de tabuleiros estavam desaparecendo,

sendo eventualmente encontrados em lugares social e espacialmente

212

marginalizados Os alimentos e as pessoas que os vendiam e

consumiam eram associados com a marginalidade social e estavam

distantes do Triângulo. A prudência desaconselhou Sylvio Floreal a

continuar sua busca por esses petiscos, que ainda permaneciam na

memória de alguns e nos interstícios da cidade, longe do comércio

elegante do Triângulo.

Assim como a alimentação de rua não desapareceria no século

XX, os conflitos também não haviam desaparecido no espaço urbano

transformado. Estariam apenas estabelecidos em outras bases.

213

ANEXOS

214

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Almanak administrativo, mercantil e industrial da província de São

Paulo para o ano de 1858, São Paulo: Imesp, 1986 (Organizado por

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