algumas visões da antiguidade - Martins Fontes Higino, Fábulas Mart. Marcial, Epigramas Nep., Ag....

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algumas visões da antiguidade organizadores Paulo Martins Henrique F. Cairus João Angelo Oliva Neto Coleção Estudos Clássicos Volume 2

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  • algumas vises da antiguidade

    organizadores Paulo Martins

    Henrique F. Cairus Joo Angelo Oliva Neto

    Coleo Estudos ClssicosVolume 2

  • Sumrio

    Siglas de autores e obras 7

    Prolegmenos viso 11Paulo Martins e Henrique Cairus

    Imagines Physiognomonicae: a repercusso de lies de fisiognomonia em epigramas de Marcial 14Alexandre Agnolon

    Eikones de Filstrato, o Velho: um mtodo 31Rosngela Santoro de Souza Amato

    A viso de arte em De signis, de Ccero: uma reflexo tradutolgica 46Anna Carolina Barone

    A imagem de Domiciano em Marcial e em moedas de seu tempo 62Fbio Paifer Cairolli

    De Visu hipocrtico 88Henrique Cairus

    Jlio Csar por ele mesmo 106Gdalva Maria da Conceio

    O retrato de Anbal entre dois gneros historiogrficos: seu thos em Lvio e Nepos 118Cynthia Helena Dibbern

    A fraqueza de Flaco no Livro dos Epodos 133Alexandre Pinheiro Hasegawa

  • Uma leitura metapotica de Amores, 1,5 o retrato da Elegia 145Cecilia Gonalves Lopes

    Reflexes sobre duas dimenses das imagines ou eiknes 151Paulo Martins

    A imagem da criana e uma criana destituda de imagem: consideraes sobre a infncia nas cartas de Plnio o Jovem 160Marly de Bari Matos

    Bibliotextos: o livro e suas imagens na Antiguidade 177Joo Angelo Oliva Neto

    Imagem verbal ocorrncias da cfrase na Eneida 188Melina Rodolpho

    Estratgias polmicas de persuaso nos scriptores artium do sc. i a.C. 211Adriano Scatolin

    Militia Amoris: uma figura do Amor 221Lya Valria Grizzo Serignolli

    Sobre os autores 230

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    Siglas de autores e obras

    obras de referncia

    ap Antologia Palatinadelg P. Chantraine, Dictionnaire tymologique

    de la Langue Grecquedell A. Ernout et A. Meillet, Dictionnaire tymologique

    de la Langue Latinelsj H.G. Liddell, R. Scott and H. S. Jones,

    A Greek-English Lexiconls C. T. Lewis and C. Short, A Latin Dictionaryold P. G. W. Glare, Oxford Latin Dictionary

    obras gregas

    Arist., en Poet.

    Aristteles, tica a Nicmaco Potica

    Hdt. Herdoto, Histrias[Hes.], Sc. [Hesodo], EscudoHom., Il. Homero, Ilada[Hom.], In Ven. [Homero], Hino Homrico AfroditePhil., Im. Filstrato, o Velho, ImagensPlu., Cic. Lic. Luc., Pom.

    Plutarco, Ccero Licurgo Lculo Pompeu

    Plat., Prot. Plato, ProtgorasPlb. Polbio, HistriaSapph. Safo, FragmentosTuc. Tucdides, Histria da Guerra do Peloponeso

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    obras latinas

    Cat., Carm. Catulo, CarminaCaes., Civ. Gal.

    Jlio Csar, Guerra Civil Sobre a Guerra da Glia

    Cic., Ad Att., Brut. Cat. CM. De Amic. De Div. De Fin. De Nat. De Off. De Or. De Part. De Rep. Or. Inv. In Ver. Tusc

    Ccero, Correspondncia a tico Bruto Contra Catilina Sobre a Velhice Sobre a Amizade De Divinatione De Finibus Sobre a Natureza dos Deuses Sobre os Deveres Sobre o Orador Sobre as Parties da Oratria Sobre a Repblica Orador Sobre a Inveno Contra Verres Tusculanas

    Her. [Annimo], Retrica a HernioHor., Ars. Ep. Epod.

    Horcio, Arte Potica Epstolas Epodos

    Hyg., Higino, FbulasMart. Marcial, EpigramasNep., Ag. Han.

    Cornlio Nepos, Agesilau Anbal

    Ov., Am. Ovdio, AmoresPhysiog [Annimo], Livro sobre a FisiognomoniaPetr., Satyr. Petrnio, SatriconPl., Ep. Paneg.

    Plnio, o Jovem, Epstolas Panegrico

    Prop. Proprcio, Elegias

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    Quint., Inst. Quintiliano, Instituies OratriasSal., Jug. Salstio, A Guerra contra JugurtaSen., Ep. Sneca, Cartas a LuclioSuet.,Cal. Dom.

    Suetnio, Calgula Domiciano

    Liv. Tito Lvio, Ab Urbe ConditaTac., Agric. Ann Hist. Dial.

    Tcito, Vida de Agrcola Anais Histrias Dilogo dos Oradores.

    Tib. Tibulo, ElegiasVerg., A. Virglio, Eneida.

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    Prolegmenos visoPaulo Martins e Henrique Cairus

    O que viam e como viam os gregos e os romanos, ou, ainda, como diziam o que viam, o que julgavam ver e o que imaginavam ver ou poder ver, mesmo que no vissem: eis o nosso tema neste livro que apresentamos sua apreciao.

    A viso era o sentido nuclear em nossa Cultura Clssica grega e romana. Por isso, frequentemente os antigos chamavam de visveis todas as coisas que eram apreendidas por quaisquer sentidos.

    Nosso livro, no entanto, cuida de uma via de mo dupla: se vamos dos olhos ao texto, vamos tambm do texto aos olhos. Afinal, privilegiando o tema da cfrase, fiamo-nos nos autores da Segunda Sofstica, que parecem estar de acordo com Aftnio (Progymnsmata, 10,36,22), quando este diz (cfrase o lgos descritivo que coloca sob a vista, de forma evidente, o que explicitado).

    Seguimos, no livro, um roteiro que se inicia com uma apresentao, feita por Henrique Cairus, do breve tratado hipocrtico De uisu (Acerca da viso), que, embora diminuto, tem o valor de ser o mais antigo registro de um texto mdico ocidental sobre a viso. O tratado aqui apresentado e traduzido pela primeira vez para o portu-gus traz tambm uma cfrase do olho doente a partir no s da viso que tem, mas tambm da viso que se lhe tem.

    No captulo seguinte, Paulo Martins apresenta a leitura da viso como ponto de vista do enunciador, que formula verbalmente imagines / , produzindo, de um lado, as effigies, decalcadas em modelos reais e vividos do cotidiano romano ou grego. De outro, os simulacra, afeitos produo ou reproduo daquelas imagens men-tais fantasiosas (os ), distantes de modelos reais de uma construo que, por muito tempo, foi ligada figurao idealizada, rtulo que, no caso especfico da materialidade, procura evitar, posto que tal termo evoca justamente a imaterialidade, ambientada na memria ou na ideia. Tais simulacra operam frequentemente a perso-nificao divina ou a correo da imagem do real-referente pelo ingenium e pela ars, na clave de uma amplificatio retrica e poeticamenta legitimada.

    No caso das effigies, podemos refletir materialmente sobre as mscaras de cera apostas aos rostos dos mortos, em Roma. Polbio as nomina como , e sua funo era a invocao dos ancestrais da gens, modelos de uirtus / , como exempla da domus sociedade, os patres patriae, que possuem, em sua vertente ver-

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    paulo martins e henrique cairus

    bal, figurao registrada nos gneros historiogrfico, filosfico ou pico, nos quais homens ilustres, epiditicamente construdos, evidenciam, perfis nobilssimos, retra-tos verossmeis, que ensinam, comovem e deleitam; logo, doces e teis. dessa ordem a construo das imagines de Anbal, levadas a termo por Lvio e Nepos (con-forme se pode notar a partir da leitura do capitulo que Cynthia Helena Dibbern escreveu para este livro), bem como as que temos de Scrates, a partir dos textos de Plato, Xenofonte ou Aristfanes, ou mesmo as imagens de Domiciano em verso epigramtico e em numismtica (como se l no captulo de autoria de Fbio Paifer Cairolli). O suporte material desses textos, sua diversidade de gnero e seus fins diversos pouco interferem nesse processo de representao.

    Os simulacra, por sua vez, se desdobram como reflexos ou resultados materiais das / uisiones. A figurao divina, que, apesar de antropomrfica para gregos e romanos (assim como para quase todos os povos do ocidente), dista de modelos reais, operando, no raro, a soma de mltiplas realidades a que podera-mos at entender como effigies, que, formada de fragmentos do real pr-existente, no reproduz nenhuma de suas unidades. No de outra forma que observamos, guiados pelo captulo escrito por Lya Grizzo Serignolli, a representao da milcia do Amor, ao modo elegaco.

    O complexo jogo de representao imagtica em que o verbo constri muito mais a imagem do que se supunha h no muito tempo radicalizado pela expe-rincia sofstcia de Filstrato, o Velho, que, neste volume, ganha especial ateno de Rosngela Santoro de Souza Amato.

    Curiosamente, esses tipos de imagens, epidticas por excelncia, operam no s o louvor, como tambm a deformao calculada do vituprio. Se verbalmente o pri-meiro matiz pode estar ligado ao hino, ao epincio, pica e at mesmo elegia, no h como o segundo se distanciar do vcio e, portanto, prximo do improprio epdico/imbico, satrico, epigramtico ou cmico, como deformaes morais e fsicas, figura-das nos epigramas de Marcial, como podemos ler no captulo que Alexandre Agnolon dedicou a esse tema, e nos epodos de Horcio, conforme nos ensina Alexandre Pinheiro Hasegawa, neste volume. Os estudos aqui recolhidos sobre esse tema em particular confirmam que tais construes verbo-imagticas esto respaldadas em tratados de physiognomonia que circulam na Antiguidade, j que atendem no s a vcios fsicos, plasticamente operados, como tambm s tortuosidades da alma.

    No volume que o leitor tem em mos, procurou-se estar atento s artes figurati-vas, sejam elas produtos da cultura material, sejam elas produtos descritos. A leitura e a interpretao das imagines / so o ponto axial deste livro. Por essa razo, a passa a ser o principal mote a glosarmos, como faz Rosngela Amato, em seu j referido captulo sobre Filstrato, e tambm Melina Rodolpho, que ana-lisa esse expediente retrico na Eneida.

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    prolegmenos viso

    Mesmo a representao imagtica plasticamente realizada do texto enquanto objeto puramente fsico mas no menos pleno de significaes recebeu ateno no presente volume, em que Joo Angelo de Oliva Neto escreve um captulo acerca da ico-nografia antiga suprstite dedicada representao do objeto livro e dos demais supor-tes da escrita, e, em contrapartida, promove a confrontao dessa iconografia com os elementos observados nas cfrases, sobretudo poticas, dessa matria temtica.

    Ccero legou-nos um texto de alto valor rerico, o De signis, em que procede a belas cfrases das estatuas que acusa Verres de roubar. Em tudo o texto atrai o lei-tor de hoje: ao leigo, pela engenhosidade e pela prpria beleza do discurso, como ao classicista, que, para alm de todas as impresses de leitor, ainda encontra o espe-cial encanto de ver o gnero epidtico visitar garbosamente o gnero judicirio. Ana Carolina Barone, neste livro, dedica ao De signis um estudo que lhe lana novas luzes a partir do estudo de seu lxico. No h obra, pois, que, ao focar a relao entre texto e imagem na Antiguidade, possa margear displiscente o De signis ciceroneano.

    Para alm das imagines vistas, a ver, a imaginar, a supor e a inspirar primeiro na imaginao e depois na arte , h aquelas que se projetam no campo do significado, nesse vasto campo abstrato do imaginrio social, quando se entende imaginrio pre-cisamente pela galeria de imagines que regem nosso estar no mundo. Duas autoras exploram esse aspecto: Marly de Bari Matos, com o captulo sobre a representao da infncia na epistolografia de Plnio, o Jovem, e Gdalva Maria da Conceio, que, em seu texto, desvela os procedimentos retricos utilizados por Jlio Csar para cons-truir discursivamente a figura de seu prprio thos.

    A construo discursiva de uma imagem e a sua projeo num imaginrio cole-tivo no tarefa de pouca monta. Em seu princpio e em seu fim, paira a gide da auctoritas, que, neste volume, ser estudada, em suas implicaes retricas, por Adriano Scatolin.

    No raro, a imagem do objeto-referencial encontra seu retrato verbal entre-laado a outras representaes, mas o que Ceclia Gonalves Lopes analisa neste volume o entretecimento de duas imagens no texto potico de Ovdio: a de Corina e a prpria elegia.

    Quisemos, pois, dar a este livro que nos coube organizar o destino de contribuir para o mosaico de estudos acerca do ver na Antiguidade, oferecendo, assim, mais um ponto de apoio terico e ilustrativo para o estudo do tema. Olhares variados sobre variados olhares o que temos a oferecer, para que seja este um livro que explora o encontro entre o discurso e a viso, que, como j foi dito, tratada aqui como via de mo dupla, posto que, se decodifica, tambm codifica pelo canal discursivo.

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    Imagines Physiognomonicae: a repercusso de lies de fisiognomonia em epigramas de MarcialAlexandre Agnolon

    Em diversos epigramas invectivos de Marcial, h o concurso de procedimentos discursivos que ultrapassam o simples vilipndio. Ou seja, o ataque pode consubs-tanciar-se mediante o emprego de tcnicas elocutivas cujo efeito seja visualizante, como a kphrasis, que no se constituem simples ornato, mas se associam, justamente pela constituio de imagens, inveno por estabelecer, na descrio do sujeito vicioso, devida adequao entre suas aes vis, responsveis por compromet-lo no plano dos costumes, e sua aparncia fsica (habitus corporis), o que enfim amplifi-cao do vituprio na medida em que o vcio moral ganha evidncia (euidentia) por ser engendrado pelo poeta em termos pictricos. Nesse sentido, a euidentia , a um s tempo, virtude da elocuo e meio gerador de pthos.1 A prtica aconse-lhada amide em tratados de Retrica. O annimo da Retrica a Hernio prescreve que a descrio, quando construda de maneira perspcua e clara, demasiado til causa, uma vez que capaz de suscitar na audincia indignao ou misericrdia (uel indignatio uel misericordia) na representao de aes, afetos e caracteres.2 Ora, nesse sentido, o poeta intenta, na descrio, estabelecer estreita relao entre os caracte-res fsicos e anmicos da personagem vituperada, como se a suposta torpeza fsica

    1 Ver Quint., Inst., 6, 2, 32-33: Segue-se a enargia, denominada por Ccero ilustrao e vivacidade, a qual parece menos dizer-nos algo que nos apresentar algo vista; e nossas paixes [apenas] emanaro com a condio de que sejamos introduzidos em meio aos prprios acontecimentos. Acaso, paixes tais no advm destas pinturas [de Verglio]: de suas mos arrojam-se a lanadeira e o feixe de l j desenredado, e no peito brando uma ferida jaz aberta? E aquele corcel com adornos depostos no funeral de Palantes? Qu? Perfeitamente, o mesmo poeta no captou a imagem do derradeiro destino de tal maneira que disse: e morrendo, repassa-lhe na memria a doce Argos?; Insequetur , quae a Cicerone inlustratio et euidentia nominatur, quae non tam dicere uidetur quam ostendere, et adfectus non aliter quam si rebus ipsis intersimus sequentur. An non ex his uisionibus illa sunt: excussi manibus radii reuolutaque pensa,/ leuique patens in pectore uulnus, equus ille in funere Pallantis positis insignibus? Quid? non idem poeta penitus ultimi fati cepit imaginem, ut diceret: et dulcis moriens reminiscitur Argos? (traduo nossa). Quintiliano, Institutio Oratoria, with an English translation by H. E. Butler, Cambridge, ma: Harvard University Press; London: William Heinemann, books i-iii, 1996; books iv-vi, 1995; books vii-ix, 1996; books x-xii, 1998.2 Ver Her., 4, 51: Com esse gnero de ornamento podem ser suscitadas indignao ou misericrdia quando todas as consequncias reunidas se exprimem brevemente num discurso perspcuo, Hoc genere exortationis uel indignatio uel misericordia potest commoueri, cum res consequentes conprehensae uniuersae perspicua breuiter exprimuntur oratione. [Ccero]. Retrica a Hernio. Traduo e introduo Ana Paula Celestino Faria e Adriana Seabra. So Paulo: Hedra, 2005.

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    imagines physiognomonicae: a repercusso de lies de fisiognomonia em epigramas de marcial

    refundisse imediatamente em torpeza moral. Ainda que articule tpicas j bastante conhecidas tanto por poetas quanto por oradores, como, por exemplo, os lugares do retrato prescritos por Quintiliano nas Instituies Oratrias (5, 10, 23-27), a constru-o de imagens em Marcial pode relacionar-se tambm com tratados de fisiognomo-nia. justamente essa relao que pretendo explorar no presente trabalho. Tomarei como ponto de partida o epigrama 39 do livro 6 de Marcial em cujos versos Marula invectivada por adultrio. Em seguida, a partir da breve descrio dos filhos da mulher, todos eles bastardos, apontarei os efeitos cmicos que o poeta busca evidenciar pela relao dos traos fsicos dos sujeitos descritos a disposies humanas, disposies estas discutidas em tratados de fisiognomonia, especialmente no De physiognomonia liber3, de autoria annima e composto provavelmente no sculo iv d.C.; vez ou outra, farei referncia a outros tratados, como o atribudo a Aristteles e a fisiognomonia composta por Adamncio (iv d.C). Alm de outras obras antigas, como a Retrica a Hernio e as Instituies Oratrias, reportarei tambm a fontes posteriores, como o De humana physiognomonia de Giambattista della Porta4 (1541-1615), dada a lume em Npoles em 1586, bem como a Iconologia de Cesare Ripa (1555-1622), editada pela primeira vez em Roma em 1593, a fim de demonstrar a longa tradio das fisiog-nomonias para a constituio de modelos de representao de afetos e caracteres humanos de que se serviram tanto poetas, quanto pintores e escultores.

    Marcial,5 6, 39

    Pater ex Marulla, Cinna, factus es septem non liberorum: namque nec tuus quisquamnec est amici filiusue uicini, sed in grabatis tegetibusque conceptimaterna produnt capitibus suis furta. 5 Hic qui retorto crine maurus inceditsubolem fatetur esse se coci Santrae. At ille sima nare, turgidis labrisipsa est imago Pannychi palaestritae. Pistoris esse tertium quis ignorat, 10quicumque lippum nouit et uidet Damam? Quartus cinaeda fronte, candido uultuex concubino natus est tibi Lygdo:

    3 Annimo. De physiognomonia liber. Traduo anotada de Leonardo Davine Dantas. Iniciao Cientfica. (Graduando em Letras) Universidade Estadual de Campinas, Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo. Orientador: Paulo Srgio de Vasconcellos, 1999.4 De humana physiognomonia. Iohannis Battistae Portae Neapolitani. Libri iv. Francofurti, 1618.5 Martial. Epigrams, edited and translated by D. R. Shackleton Bailey. The Loeb Classical Library. Cambridge, ma: Harvard University Press, vol. i ii iii, 1993.

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    alexandre agnolon

    percide, si uis, filium: nefas non est.Hunc uero acuto capite et auribus longis, 15 quae sic mouentur ut solent asellorum,quis morionis filium negat Cyrtae? Duae sorores, illa nigra et haec rufa,Croti choraulae uilicique sunt Carpi. Iam Niobidarum grex tibi foret plenus 20si spado Coresus Dindymusque non esset.

    Com Marula, Cina, te tornaste pai de sete, mas no de filhos teus e livres, pois nenhum filho teu, nem de amigo ou vizinho, mas, concebidos em esteiras e pobres camilhas,nas feies revelam os amores furtivos da me. 5 Um, que caminha como mouro de crespa cabeleira, confessa que rebento do cozinheiro Santra. Outro, porm, de nariz chato e trgidos lbios, a imagem mesma do palestrita Pnico. Quem ignora quem quer que conhea e veja Dama remelento 10que o terceiro do padeiro? O quarto de aspecto de bicha e rosto plidonasceu-te de Ligdo, teu amante: se desejares, vara este filho: no sacrilgio.Sem dvida, este de cabea em ponta e orelhas longas 15 que se movem como soem mover-se as dos asnos,quem nega que filho de Cirta, o bufo? As duas irms uma negra, a outra, ruiva so de Croto, o flautista, e do caseiro Carpo. J te estaria completa a grei dos Nibidas, 20no fossem Coreso e Dndimo eunucos.

    Diferentemente de outros poemas de Marcial, no h indicativo algum de que seja a mulher feia, mas o ataque existe e em dimenso sexual, j que o poeta arrola os amantes da mulher, todos eles de baixa extrao: cozinheiros, padeiros, flautistas, caseiros, histries etc. Portanto, a prova irrefutvel do adultrio da mulher so os pr-prios filhos, que carregam em suas feies os traos dos verdadeiros pais, de origem servil, constituindo-se, pois, crimes contra sua gens, supondo, evidentemente, que a personagem seja proveniente de extrato elevado nada inferido a esse respeito, mas de se supor que assim seja, uma vez que, no plano da composio, a descrio dos filhos bastardos de Marula segue de perto a de um busto romano tradicional.6 Ora,

    6 Estratgia similar encontramos em Hor., Ep. 8, vv. 11-14 em que a mulher, j idosa, associada ao patri-ciado pela aluso, em seu cortejo fnebre, a bustos de antepassados: S tu feliz, e que as imagens triunfais/ ao funeral, ao teu, precedam,/ nem haja esposa que caminhe carregada/ de perlas mais arredondadas., esto

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    imagines physiognomonicae: a repercusso de lies de fisiognomonia em epigramas de marcial

    incorporando o retrato romano, restrito pelo menos no perodo republicano aos optimates,7 o que se associaria tambm categoria estirpe do gnero epidtico para a caracterizao de pessoas,8 o poeta amplifica o vcio na medida em que a represen-tao buslesca, pardica mesmo dos bustos tradicionais, s faz torn-la mais viciosa, pois a fala epigramtica pe em cena, de um lado, a origem patrcia de Marula e consequentemente as uirtudes prprias da aristocracia e, de outro, a impudiccia da mulher que, enganando o marido, mancha a honra da gens.

    Acresce ainda que a invectiva pode recair sobre o marido. O poeta inicia o epi-grama mediante apstrofe: Com Marula, Cina, te tornaste pai de sete, Pater ex Marulla, Cinna, factus es septem (v. 1). Marcial estabelece Cina como interlocutor do epigrama e lhe apresenta a traio da mulher no somente com o fim de aler-t-lo acerca do adultrio da esposa e da origem espria de seus filhos caso Cina j no saiba a esse respeito, de sorte que o adultrio teria ocorrido com o seu consen-timento ,9 mas sobretudo exort-lo a restituir a legitimidade de sua descendncia, tomando Latona como exemplo, indiciado pela aluso, na concluso do epigrama

    beata, funus atque imagines/ ducant triumphales tuum/ nec sit marita quae rotundioribus /onusta bacis ambulet. (traduo de Alexandre Pinheiro Hasegawa).7 [...] o direito de cultuar imagens restrito aos patrcios e apenas eles detm o ius imaginum e, como coro-lrio, a possibilidade de realizar os gentilicia funera. O termo ius reflete, pois, a consuetudo como privilgio de poucos, regulando atividade privada, o funeral e a prpria representao, com um direito que essencialmente pblico. Da mesma maneira, a pompa dos funerais atinge apenas uma camada da sociedade, pois que gen-tilicia, isto , algo que s admitido para aqueles que pertencem a uma gens. Martins, P. Imagem e Poder: consideraes sobre a representao de Otvio Augusto (44 a.C. 14 d.C.). Tese de Doutoramento apresentada ao Departamento de Letras Clssicas e Vernculas da fflch da Universidade de So Paulo sob orientao da Profa. Dra. Ingeborg Braren, So Paulo, 2003. p. 138.8 Quint., Inst., 5, 10, 23-24: 23. Assim, em primeiro lugar, os argumentos devem ser amide extrados da pessoa, visto que, como eu j disse, dividimos todos eles em duas partes: a primeira, relativa s matrias e a segunda, s pessoas, de modo que a causa, o tempo, o lugar, a ocasio, o instrumento, o modo, etc. sejam consequncia das aes. Entretanto, no devo tratar tudo que sucede s pessoas, tal como fez a maioria dos autores, mas s aquilo de que se podem retirar argumentos. 24. Ei-los: origem, pois quase sempre os filhos julgam-se semelhantes aos pais e aos antepassados e por vezes disto que emanam as razes de viver honesta ou torpemente, 23. In primis igitur argumenta saepe a persona ducenda sunt, cum sit, ut dixi, diuisio, ut omnia in haec duo partiamur, res atque personas: ut causa, tempus, locus, occasio, instrumentum, modus et cetera rerum sint accidentia. Personis autem non quidquid accidit exequendum mihi est, ut plerique fecerunt, sed unde argumenta sumi possunt. 24. Ea porro sunt: genus (nam similes parentibus ac maioribus suis plerumque filii creduntur, et nonnumquam ad honeste turpiterque uiuendum inde causae fluunt). (traduo nossa).9 Mart., 1, 73: Ningum houve em toda Roma que quisesse trepar/ de graa, Ceciliano, com tua esposa,/ enquanto era permitido. Mas agora, depois de postos os guardas,/ enorme a turba de fodedores: s um homem engenhoso. Nullus in urbe fuit tota, qui tangere uellet/ uxorem gratis, Caeciliane, tuam,/ dum licuit; sed nunc positis custodibus ingens/ turba fututorum est. Ingeniosus homo es. (Traduo nossa). Neste epigrama, evidente que o marido tem cincia do adultrio da esposa e que, principalmente, perfaz papel de seu proxeneta, lucrando com o adultrio. Repare-se que, da mesma maneira que Cina, Ceciliano tambm o interlocutor do poeta.

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    alexandre agnolon

    (vv. 20-21), ao mito de Nobe:10 J te estaria completa a grei dos Nibidas,/ no fos-sem Coreso e Dndimo eunucos., Iam Niobidarum grex tibi foret plenus/ si spado Coresus Dindymusque non esset. O poeta vitupera o marido porque este no fora firme o suficiente para manter a fidelidade da esposa ou mesmo para restituir devidamente a referida legitimidade de sua descendncia, haja vista a dessemelhana dos prprios filhos, que se constituem enfim indicadores de caracteres viciosos, tomados direta-mente dos escravos e libertos da domus com quem Marula manteve relaes sexuais. Assim, o adultrio e a origem bastarda dos filhos so consequncia no s da licen-ciosidade de Marula, mas tambm do carter permissivo de Cina.

    At aqui tratamos brevemente acerca de alguns aspectos do epigrama 6, 39 de Marcial. Vimos que o poeta vitupera a mulher adltera mediante constituio de imagines, mas no dela e, sim, de seus filhos, que so ndices de sua traio, pois fisicamente se assemelham a seus supostos amantes, todos eles de baixa extrao; que o poeta, por possivelmente incorporar caractersticas das representaes imag-ticas de carter aristocrtico, potencializa os vcios de Marula e talvez do prprio marido , uma vez que ela pertenceria a uma gens romana; e que as descries se associam aos lugares-comuns do retrato de pessoas, prescrito pela retrica epidtica. Discorreremos a partir de agora sobre as relaes entre os procedimentos descritivos empregados pelo poeta e os preceitos dos tratados de fisiognomonia, particularmente aqueles a que nos referimos no incio do presente trabalho.

    Dos tratados de fisiognomonia antigos, subsistem somente os atribudos a Aristteles e a Apuleio; as lies de Adamncio (iii d.C.) e o De physiognomonia liber, de autoria annima, como vimos, e composto provavelmente no sculo iv d.C. Os demais de que temos notcia, compostos pelo mdico Loxo, datado do iii a.C., e pelo rtor Polemo, ativo no sculo ii d.C., perderam-se. No se sabe exatamente que autor foi o primeiro a delinear os aspectos principais da doutrina, ainda que por vezes sejam associados tradio pitagrica. Alm disso, as lies dos fisiogno-monistas frequentemente incorporam a doutrina hipocrtica dos humores. O autor annimo do De physiognomonia liber (12), por exemplo, demonstra que a complei-o mdia, ou seja, o perfeito equilbrio a melhor para o bem-estar do sujeito na medida em que a fora e a sade correm a par da sabedoria. Ora, nesse sentido, seus caracteres fsicos, que se refletem na devida proporo entre as partes e o todo do

    10 Eram doze os filhos de Nobe: seis rapazes e seis moas. Nobe julgava-se mais feliz que Latona, me somente de Apolo e rtemis, de modo que a deusa se ofendeu e ordenou a seus filhos que matassem a grande prole da filha de Tntalo. Algumas verses referem que teriam sobrevivido um ou dois filhos. Por causa de to grande dor, Nobe foi transformada em rocha, de onde brotavam incessantemente suas lgrimas. Em outras verses do mito, no somente era maior o nmero de filhos e filhas (quatorze ao todo), mas tambm a ofensa teria se dirigido diretamente a Apolo e rtemis (cf.: Hyg., Fab, 9).

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    imagines physiognomonicae: a repercusso de lies de fisiognomonia em epigramas de marcial

    corpo some-se aqui o devido equilbrio dos humores corporais constituem-se ndices de fora e beleza, mas sobretudo representao da prpria virtude, da jus-ta-medida, porquanto o homem seria incapaz de desempenhar aes justas e nobres sem o intermdio da fora, sem os meios exteriores que lhe possibilitariam levar a cabo aes virtuosas.11 No entanto, no mesmo passo, ainda que julgue a compleio mdia a melhor, o annimo tambm nos apresenta os temperamentos dominantes associados aos quatro humores. O sanguneo, pese a grande fora, o rubor e a fir-meza e densidade dos cabelos, tem constrangidas a inteligncia e a agudeza de senso, ao passo que aquele que possui escassez de sangue da o melanclico e o fleum-tico teria, ao contrrio, aguadas a inteligncia e o esprito, conferindo-lhe viva-cidade aos rgos sensitivos da face,12 ainda que a dita escassez de sangue fosse res-ponsvel por lhe extenuar as partes do corpo, enfraquecendo-o e lhe alterando a cor da tez. Percebe-se, assim, que os tratados de fisiognomonia, ressalvadas as pequenas diferenas entre eles, versavam basicamente acerca dos caracteres morais e anmicos do sujeito que pudessem ser observados e significados a partir de ndices fsicos. Para os fisiognomonistas, portanto, o signo era motivado; eliminavam, em certo sentido, a arbitrariedade dele. o que se pode entrever pela definio da doutrina que nos oferecida no prlogo do De physiognomonia liber (2). Nela, a alma no se constitui entidade absolutamente independente e abstrata, mago da inteligncia e disposi-es humanas. Pelo contrrio, o corpo que d forma alma de acordo com as qua-lidades ou os vcios deste mesmo corpo: maneira do ar que soa diversamente na gaita, na flauta ou na tuba, ainda que exista um s ar.

    Os tratados especializaram-se. Por analogia, os autores relacionaram as caracte-rsticas fsicas de animais a disposies humanas, a zoognomonia: quando a base do nariz slida como que obtusa e redonda, aponta o forte e o magnnimo. So deste modo os focinhos dos lees e dos ces de caa. Narizes longos e finos se aproximam

    11 Arist., en, 1099b: [...] impossvel, ou pelo menos no fcil, realizar atos nobres sem os devidos meios. Em muitas aes utilizamos como instrumento os amigos, a riqueza e o poder poltico; e h coisas cuja ausncia empana a felicidade, como a nobreza de nascimento, uma boa descendncia, a beleza. Com efeito, o homem de muito feia aparncia, ou mal-nascido, ou solitrio e sem filhos, no tem muitas probabilidades de ser feliz, e talvez tivesse menos ainda se seus filhos ou amigos fossem visceralmente maus e se a morte lhe houvesse roubado bons filhos ou bons amigos. tica a Nicmaco. Traduo de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim. Os Pensadores. So Paulo: Abril Cultural, 1973. (Grifo nosso).12 A fisiognomonia, incorporando a teoria dos humores, influencia a pintura. Esses ndices, fisiognomnicos e hipocrticos, transparecem, por exemplo, no autorretrato de Albrecht Drer (1471-1528), datado de 1493, que se encontra atualmente no Museu do Louvre, em Paris. No retrato, o pintor se representa com a tez plida, mas com os olhos vivos e inquiridores; nas mos, carrega um cardo seco. A representao provavelmente segue a imagem do melanclico: a bile negra liga-se terra, da ser escura e seca. O engenho, a inteligncia e agudeza de senso do pintor so representadas, pictoricamente, pela melancolia.

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    ao das aves e produziro costumes desta maneira.13 Os tratadistas tambm propu-nham curiosas relaes entre as caractersticas do clima de determinada regio e as disposies morais de seus habitantes, espcie de fisiognomonia climtica: e o sinal de uma cor quente [a negra], como acima dito, das regies meridionais, e, da fria, atributo das setentrionais.14 Eles tambm discorriam amide acerca das naes e dos supostos caracteres que sua origem tnica poderia transmitir aos homens: os trcios, por exemplo, poderiam ser figurados como preguiosos, brios e inquos. Ambas as categorias de fisiognomonia se associam, retoricamente, como se pode ver, aos tpoi do retrato de pessoas, especialmente s categorias estirpe e nao.15

    No epigrama de Marcial que citamos h pouco, o 6, 39, podemos perceber cla-ramente as relaes que o poeta epigramtico estabelece entre a descrio dos aman-tes de Marula e caractersticas tnicas, climticas e mesmo animalescas dos indiv-duos, o que se coaduna com os preceitos das fisiognomonias antigas. Nos versos 6 e 7 do epigrama, que retomamos aqui Um, que caminha como mouro de crespa cabeleira,/ confessa que rebento do cozinheiro Santra., Hic qui retorto crine maurus incedit/ subolem fatetur esse se coci Santrae. , Marcial apresenta-nos a brevssima des-crio do primognito de Marula cujas feies remetem diretamente ao cozinheiro Santra: o caminhar de mouro e os cabelos crespos, ainda que simplesmente consti-tuam notaes,16 so dados suficientes para no somente apontar, como vimos ante-

    13 Physiog., 51. (traduo de Leonardo Davine Dantas). Baltrusaitis. J. Aberraes ensaio sobre a lenda das formas Fisiognomonia Animal, traduo de Luiz Dantas. In: Revista de Histria da Arte e Arqueologia. n. 2. ifch-unicamp, 1995/ 1996, p. 331-353, brevemente exemplifica outras caractersticas animais amide arroladas pelos tratadistas: Os sinais da magnanimidade so os cabelos duros, o corpo reto, a constituio robusta, o ventre largo e no proeminente; os sinais da timidez os cabelos macios, o corpo entorpecido, a barriga da perna achatada, olhos fracos que piscam (pseudo-Aristteles). Os olhos azuis com pupilas pequenas pertencem aos malvados e aos srdidos. Os olhos completamente azuis so os melhores olhos (Adamncio). Um raciocnio como este, onde se confundem matria e esprito, volta incessantemente naquelas dissertaes, embora tambm exista quem faa a deduo comparando os traos do homem com as formas dos animais, cujas aptides e instintos acredita-se conhecer melhor. (p. 331-2)14 Idem, 88. 15 Cf. Quint., Instit., 5, 10, 23-25. 16 Ainda que breve, a notao prtica prescrita em tratados de retrica antigos e se constitui do apontamento de marca, de trao distintivo do sujeito. Portanto, espcie de perfrase que determina a pessoa como virtuosa ou viciosa e, por isso, associa-se aos lugares-comuns de descrio de pessoas da retrica epidtica. Em Her., 4, 63 assim se define: A notao a descrio da natureza de algum pelos sinais distintivos que, como marcas, so atributos daquela natureza; [...]. Caracterizaes desse tipo, que descrevem o que conforme natureza de cada um, trazem, forosamente, muito deleite, pois do a ver tudo o que caracterstico de algum, seja um vanglorioso [...], um invejoso, um soberbo, um cobioso, um adulador, um amante, um dissoluto, um ladro, um delator, enfim, com a notao, as inclinaes de quem quer que seja podem ser exibidas aos olhos de todos. Notatio est, cum alicuius natura certis describitur signis, quae, sicuti notae quae naturae sunt adtributa [...] Huiusmodi notationes, quae describunt, quod consentaneum sit unius cuiusque naturae, vehementer habent magnam delectationem: totam enim naturam cuiuspiam ponunt ante oculos, aut gloriosi [...] aut invidi aut tumidi aut avari, ambitiosi, amatoris, luxuriosi, furis, quadruplatoris; denique cuiusvis studium protrahi potest in medium

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    riormente, a origem espria e servil dos amantes, mas sobretudo indiciam sua origem estrangeira, muito provavelmente egpcia ou sria a julgar pela cabeleira crespa e a tez morena. O annimo do De physiognomonia liber informa que os cabelos crespos ou encaracolados so prprios de homens enganadores, avarentos, medrosos e sedentos de lucro, e que homens assim so geralmente egpcios notoriamente medrosos ou srios conhecidos por serem gananciosos e cobiosos.17 Ora, o tpos se repete no fim do epigrama (vv. 18-19), a articular os preceitos fisiognomnicos associados origem tnica com o tpos origem / nao do retrato epidtico: As duas irms uma negra, a outra, ruiva / so de Croto, o flautista, e do caseiro Carpo., Duae sorores, illa nigra et haec rufa,/ Croti choraulae uilicique sunt Carpi. Repare-se que, na fala epigram-tica, evidente a origem estrangeira de Croto provavelmente etope e de Carpo que, com os cabelos vermelhos, de certo provm da Glia ou da Europa Setentrional. Igualmente, as particularidades fsicas das personagens, e tnicas por seu turno, so entendidas nas fisiognomonias como caractersticas prprias de homens vis: Croto, pela origem africana, covarde e ardiloso: A cor negra indica o covarde, o que foge do combate, o homem ardiloso. Ela se refere queles que habitam os litorais meri-dionais, como os etopes, os egpcios e os povos prximos a eles18; e Carpo, avarento, mas tambm feroz, indcil e estpido: aqueles, porm, que possuem cabelos ruivos, bem vivos, [...] so geralmente prprios de homens detestveis, gananciosos e fero-zes, difceis de se ensinar.19

    Nos versos 8 e 9 (Outro, porm, de nariz chato e trgidos lbios,/ a imagem mesma do palestrita Pnico, At ille sima nare, turgidis labris/ ipsa est imago Pannychi

    tali notatione. Cic., De Or., 2, 58, 236, vincula o riso a notao de alguma torpeza, explicitada por alguma deformidade caracterstica: J quanto ao lugar e regio, por assim dizer, do ridculo [...], eles residem na torpeza e na deformidade. Ri-se unicamente, ou quase apenas, do que assinala e aponta alguma torpeza de maneira no torpe. Locus autem, et regio quasi ridiculi [...] turpitudine et deformitate quadam continetur: haec enim ridentur uel sola, uel maxime, quae notant et designant turpitudinem aliquam non turpiter. scatolin, A. A inveno do Do orador de Ccero: um estudo luz do Ad Familiares, 1, 9, 23. So Paulo: fflch-usp. Tese de doutoramento defendida para obteno do ttulo de doutor em Letras Clssicas, sob orientao da Profa. Dra. Zlia L. V. de Almeida Cardoso, 2009.17 Physiog., 14.18 Ibidem, 79.19 Ibidem, 73. As tpicas do retrato bem como os preceitos fisiognomnicos de carter tnico articulados no poema de Marcial parecem repercutir na tradio potica posterior relativamente ao vituprio. o caso de Gregrio de Matos, em que amide a invectiva explora certos esteretipos associados a nacionalidades, como prope Hansen, Joo Adolfo. A Stira e o Engenho: Gregrio de Matos e a Bahia do sculo xvii. 2. Ed. So Paulo: Ateli Editorial; Campinas: Editora da Unicamp, 2004. p. 400: articulada no topos nao, a tipificao atribui qualidades naturais da nao muito comum, por exemplo, a referncia do mal glico, efetuada como exclusiva do francs. A referncia s nacionalidades encena, alis, os esteretipos morais e polticos correntes sobre elas. Assim, italianos so sodomitas, franceses tm sfilis ou so peritos nas artes meretrcias, holandeses so selvagens hereges, tudescos (alemes) so burlescos etc.

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    palaestritae.), o nariz chato do atleta Pnico sinnimo de luxria, e seus lbios tr-gidos, ndices de sua baixeza de carter, imundcie, voracidade e estupidez, haja vista que, nas fisiognomonias, estas caractersticas so prprias dos porcos.20 O prprio nome do atleta j indicia tambm a lascvia de seu carter. Pnico remete a pannychs, noite inteira, festividade cuja evidente licenciosidade pode ter integrado o culto de diversas divindades no mundo antigo. Oliva Neto afirma que uma delas poderia ter sido Priapo.21 Alm disso, o fato de ser palestrita, e a prpria atividade da palestra por sua vez, pode aludir a prticas sexuais, como o caso do epigrama 67 do livro vii de Marcial,22 em que no somente a mulher l vituperada, Filnis, descrita como um atleta a fim de se amplificar seu vcio, o lesbianismo, da sua representao masculi-nizada, mas sobretudo o poeta estabelece relao entre os atletas do ginsio e inter-curso sexual,23 o que se intensifica pelo emprego de verbos pertencentes ao campo semntico de bater, dar golpes, no caso uapulo no verso oito. provvel que ver-bos dessa espcie tenham gerado as principais metforas sexuais em latim.24

    O terceiro filho de Marula tem as mesmas feies do padeiro: Quem ignora quem quer que conhea e veja Dama remelento / que o terceiro do padeiro?, Pistoris esse tertium quis ignorat,/ quicumque lippum nouit et uidet Damam? De maneira similar, a breve descrio aponta elementos que rebaixam a origem do filho de Marula, haja vista o carter escatolgico da aluso, especificamente imundcie de Dama que, alm de entrever provvel doena e falta de cuidados com o corpo caracteres transmitidos ao descendente , anloga baixeza social da personagem,

    20 Cf. baltrusaitis, j. op.cit., p. 335; Physiog., 48 e 51.21 Cf. oliva neto, j. a. Falo no Jardim, Priapeia Grega, Priapeia Latina. Cotia: Ateli Editorial / Campinas: Editora da unicamp, 2006, p. 196. 22 Filnis roadeira enraba rapazotes /e, mais furiosa que a libido dum marido,/ fode por dia onze menininhas./ Cingida, joga com a pla tambm/ e, amarela com o p, halteres,/ pesados para atletas, gira com brao ligeiro;/ e toda emporcalhada do p da palestra/ se submete aos golpes do mestre untado./ Nem janta ou se pe mesa antes/ de ter vomitado sete medidas de puro vinho!/ Julga ela, ento, que lhe lcito repeti-los,/ quando comeu dezesseis nacos de carne./ Aps tudo isso, ao se entregar aos prazeres,/ ela no chupa julga ser pouco viril / mas as meninas no meio devora-as por inteiro./ Que os deuses te deem juzo, Filnis,/ tu que julgas viril lamber bocetas., Pedicat pueros tribas Philaenis/ et tentigine saeuior mariti/ undenas dolat in die puellas./ Harpasto quoque subligata ludit/ et flauescit haphe, grauesque draucis/ halteras facili rotat lacerto,/ et putri lutulenta de pala-estra/ uncti uerbere uapulat magistri:/ nec cenat prius aut recumbit ante/ quam septem uomuit meros deunces;/ ad quos fas sibi tunc putat redire,/ cum colyphia sedecim comedit,/ post haec omnia cum libidinatur,/ non fellat putat hoc parum uirile / sed plane medias uorat puellas./ Di mentem tibi dent tuam, Philaeni,/ cunnum lingere quae putas uirile. (traduo nossa). 23 Procedimento anlogo ocorre em Mart., 1, 96, vv. 11-14: Tomamos banho juntos: ele nunca olha para cima,/ porm, aos atletas observa com olhos devoradores e/ no observa suas picas com lbios ociosos./ Desejas saber quem ? Mas seu nome me escapa., Una lauamur: aspicit nihil sursum,/ sed spectat oculis deuorantibus draucos/ nec otiosis mentulas uidet labris./ Quaeris quis hic sit? Excidit mihi nomen. (traduo nossa).24 Cf. adams, j.n., The Latin Sexual Vocabulary. Baltimore: John Hopkins University Press, 1982. p. 145-149.

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    intensificada pela atividade exercida por ela que, como a exercida por Santra, con-siderada vil e prpria de escravos e libertos, o que pode se associar, no retrato epid-tico, ao tpos relativo natureza do nimo (animi natura).25 Na passagem em ques-to, com o referir a secreo que se desprende de Dama, pode ser que Marcial sugira ser a torpeza consequncia do viver desregrado da personagem, causa mesma de sua intemperana. Nesse sentido, a estratgia do poeta coincide com o que aconselha o annimo da Retrica a Hernio,26 quando, ao se elogiar ou vituperar, necessrio comear pelas circunstncias externas pessoa (ab externis rebus), no somente tra-tar de sua ascendncia, mas tambm daquelas qualidades inerentes ao prprio corpo. Assim, a feiura, antes de ser meramente torpeza fsica, entrev vcios morais, percep-tveis nas aes do sujeito vituperado, assim diremos que carece no s de beleza, mas de todas as outras vantagens, por sua prpria culpa e intemperana. Em outras palavras, a provvel doena, causa imediata da torpeza fsica, a secreo, seria conse-quncia da imoderao da personagem, que se entrega a excessos de toda a sorte.

    A feio do quarto filho assim descrita pelo poeta (vv. 12-14): O quarto de aspecto de bicha e rosto plido/ nasceu-te de Ligdo, teu amante:/ se desejares, vara este filho: no sacrilgio., Quartus cinaeda fronte, candido uultu/ex concubino natus est tibi Lygdo:/ percide, si uis, filium: nefas non est. evidente a condio de Ligdo: amante no s da mulher, mas do prprio marido, Cina. E certamente, pela refe-rida condio, tambm escravo. Os caracteres de Ligdo, portanto, a baixa extra-o, sua aparncia efeminada e plida, so transmitidos ao bastardo a ponto de a fala epigramtica aconselhar o marido a submet-lo sexualmente. Alm disso, a palidez do filho, e de Ligdo consequentemente, sinal de lascvia, como sugerido em tra-tados de fisiognomonia:27

    25 Quint., Inst., 5, 10, 27: 27. natureza do nimo: com efeito, a cobia, a clera, a severidade e outros [caracte-res] semelhantes a estes, amide, inspiram credibilidade ou a retiram, assim como quando se questiona se os hbitos de algum so excessivos, moderados ou miserveis. Importam tambm os ofcios, pois o campons, o advogado, o negociante, o soldado, o marujo e o mdico desempenham atividades muito diferentes entre si. 27. animi natura: etenim auaritia, iracundia, misericordia, crudelitas, seueritas aliaque his similia adferunt fidem frequenter aut detrahunt, sicut uictus luxuriosus an frugi an sordidus quaeritur; studia quoque (nam rusticus, forensis, negotiator, miles, nauigator, medicus aliud atque aliud efficiunt). (Traduo nossa).26 Her., 3,1427 Suet., Cal., constri o retrato de Calgula de maneira semelhante. de reparar que, segundo o historiador, o princeps propositalmente compunha sua aparncia a fim de gerar temor em quem o visse: Era de alta estatura, tez palidssima, corpo enorme, o pescoo e as pernas delgadas. Os olhos, assim como as tmporas, fundos. A fronte larga e carrancuda. Cabelos ralos e o alto da testa desguarnecido. O resto do corpo, cabe-ludo. Constitua crime capital olh-lo quando ele passava, por cima, e pronunciar, por qualquer motivo, a palavra cabra. Seu rosto era naturalmente horrvel e repelente. E ele procurava torn-lo ainda mais feroz, compondo-o diante de um espelho para inspirar terror e espanto. Statura fuit eminenti, colore expallido, corpore enormi, gracilitate maxima ceruicis et crurum, oculis et temporibus concauis, fronte lata et torua, capillo raro at circa uerticem nullo, hirsutus cetera. Quare transeunte eo prospicere ex superiore parte aut omnino quacumque