Alberto de Amaral Junior - Direito Internacional e Desenvolvimento - Pesquisável - Ano 2005

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Alberto do Amaral Júnior (org.)

DIREITO INTERNACIONAL E DESENVOLVIMENTO

AManole

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DireitoInternacional e Desenvolvimento

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Direito Internacional e Desenvolvimento

O R G A N I Z A D O R

A L B E R T O DO AMARAL J ÚNI OR

Professor Associado do Departamento de Direito Internacional da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo

A .Manole

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Copyright © 2005 Editora Manole Ltda., conforme contrato com o autor.

Projeto Gráfico e Capa:Nelson Mielnik e Sylvia Mielnik

Editoração Eletrônica:Acqua Estúdio Gráfico

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Direito internacional e desenvolvimento /organizador Alberto do Amaral Jú n io r- Barueri, SP : Manole, 2005.

Vários autores.Bibliografia.ISBN 85-204-2282-9

1. Desenvolvimento econômico 2. Desenvolvimento sustentável 3. Direito internacional I. Amaral Júnior, Alberto do.

05-0395________________________________________ CDU-341:330.34

índices para catálogo sistemático:

1. Direito Internacional e desenvolvimento econômico 341:330.34

Todos os direitos reservados.Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida, por qualquer processo, sem a permissão expressa dos editores.É proibida a reprodução por xerox.

Direitos adquiridos pela:Editora Manole Ltda.Avenida Ceei, 672 - Tamboré 06460-120 - Barueri - SP - Brasil Fone: (11) 4196-6000 - Fax: (11) 4196-6021 wwvv.manole.com.br [email protected]

Impresso no Brasil Printed in Brazil

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Sumário

Apresentação .................................................................................... VIISobre os au tores .............................................................................. IX

1. Ética e Economia - fundamentos para uma reaproximaçãoDaniel Darnásio Borges......................................................... 1

2. Uma Breve Introdução à Questão do Desenvolvimento como Tema de Direito InternacionalFernando Cardia .................................................................... 53

3. Estado, Desenvolvimento e Políticas PúblicasFernando Cardia .................................................................... 71

4. A Busca pelo Direito ao Desenvolvimento e à Proteção aos Direitos Humanos nas Relações Internacionais do Brasil: Histórico e DesafiosRui da Silva Santos ................................................................. 99

5. Migrações e DesenvolvimentoLiliana Lyra Ju b ilu t................................................................ 123

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D I R E I T O I N T E R N A C I O N A L E D E S E N V O L V I M E N T O

6. A Transmutação da Organização da Unidade Africana em União Africana: Entraves e Potencialidades InstitucionaisAdalberto Nader ........................................................................... 155

7. Diversidade Cultural e DesenvolvimentoFernando Fernandes da Silva ..................................................... 181

8. Desenvolvimento, Costume Internacional e Soft LawSalem H ikm at N asser .................................................................. 201

9. Financiamento Internacional do Desenvolvimento: seuPapel na Implementação do Direito ao Desenvolvimento Silvia Menicucci de O liveira ....................................................... 219

10. A Abordagem do Direito ao Desenvolvimento nos Tratados sobre InvestimentosBernadete de Figueiredo D ia s ..................................................... 253

11. A Revisão do Mecanismo de Solução de Controvérsias daOMC - Sobretudo Sob a Ótica dos Países em Desenvolvimento e de Menor Desenvolvimento Relativo Cynthia K ram er ............................................................................ 271

12. As Convenções P1C e POP: Rumo ao Desenvolvimento Químico Sustentável?Inez Lopes Matos C. de F arias .................................................... 291

13. Desenvolvimento Sustentável e Direito InternacionalRoberto de Campos A n d ra d e ...................................................... 325

VI

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Apresentação

O desenvolvimento assumiu, nos últimos anos, im portân­cia crucial no plano das relações internacionais. Na realidade, a preocupação internacional com o desenvolvimento é mais antiga, tendo ocorrido na década de 1960, com a criação da Organização das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento. O surgi­mento da Unctad pretendia introduzir a perspectiva dos países em desenvolvimento no âmbito internacional. Cabe registrar, a esse propósito, que o Acordo Geral de Comércio e Tarifas, firma­do nos anos 40, consagrava os interesses do m undo desenvolvido.

O movimento de descolonização, responsável pelo apa­recimento de numerosos Estados independentes, e a consciência das profundas desiguíildades existentes entre os países trouxeram à baila o tema do desenvolvimento, que deixava de ser visto exclu­sivamente sob o ângulo doméstico para ser encarado em estreita relação com o funcionamento do sistema econômico interna­cional. Na década de 1970, o desenvolvimento foi objeto de inten­so debate na Assembléia Geral das Nações Unidas, que culminou, em 1974, com a proposta de estabelecimento de uma nova ordem econômica internacional. Esta iniciativa, não obstante à sua im ­portância, produziu poucos resultados práticos. Nos anos 80, a crise do Estado do Bem-Estar e o esgotamento dos modelos de substituição de importações na América Latina atribuíram ao desenvolvimento posição secundária na agenda global.

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D I R E I T O I N T E R N A C I O N A L E D E S E N V O L V I M E N T O

Os estudos sobre afmitude dos recursos naturais, realizado sob os auspícios da ONU, originaram o conceito de desenvolvimento sustentável, que serviu de princípio inspirador para os trabalhos da Conferência do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento de 1992. O desenvolvimento sustentável, ao enfatizar o compromisso entre as gerações presentes e as gerações futuras no uso dos recursos naturais, possui três dimensões: o crescimento econômico, a justiça social e o equilíbrio ambiental. A expansão econômica, como obje­tivo em si, cede lugar diante da necessidade de se distribuir a renda e preservar o meio ambiente.

A globalização, ademais, m udou o modelo de organização industrial vigente. O fordismo foi substituído pelo modelo de es­pecialização flexível da produção, baseado no conhecimento e na capacidade de inovar. Aumentou, em conseqüência, a distância que separa os países ricos das nações pobres. Vivemos em um m undo caracterizado pelo excesso de poder e pelo excesso de impotência.

Nesse cenário, o presente livro trata da relação entre direito internacional e desenvolvimento. Não se buscou uma análise exaus­tiva dessa temática, mas apenas refletir sobre algumas das mais rele­vantes questões contemporâneas que o desenvolvimento propõe para o campo das relações internacionais. Não se quis, igualmente, dar respostas definitivas a problemas de extraordinária complexi­dade. A meta visada, ao contrário, foi estimular a reflexão na espe­rança de que a razão auxilie a desvendar os labirintos do nosso tempo.

Alberto do Amaral Júnior.

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Sobre os autores

C o o r d e n a d o r :

Alberto do Amaral Júnior. Professor Livre-docente do Departamen­to de Direito Internacional da Faculdade de Direito da Universida­de de São Paulo. Diretor do i d c i d .

C o l a b o r a d o r e s :

Adalberto Nader. Consultor legislativo do Senado Federal. Professor Universitário. Advogado. Doutorando em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Detentor do Título de DEA em Droit Économique et de la Communication pela Université des Sciences Sociales Toulouse 1 - França.

Bernadete de Figueiredo Dias. Mestranda em Direito Internacional na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Bolsista do Fundo Ryoichi Sasakawa. Advogada em São Paulo.

Cynthia Kramer. Advogada. Integrante do escritório L. O. Baptista Advogados Associados. Participante da Ia Turma do Programa de Capacitação de Jovens Advogados em Temas Relacionados à Política de Comércio Exterior da Organização Mundial do Comércio junto à Missão Permanente do Brasil em Genebra.

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D I R E I T O I N T E R N A C I O N A L E D E S E N V O L V I M E N T O

Daniel Damásio Borges. Mestrando em Direito Internacional na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

Fernando Antonio Amaral Cardia. Graduando em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Analista Judiciá­rio no Juizado Especial Federal Previdenciário de São Paulo. Mem­bro do Grupo de Estudos sobre Desenvolvimento do i d c i d .

Fernando Fernandes da Silva. Professor de Direito Internacional do Curso de Graduação da Faculdade de Direito de Sorocaba. Professor de Direito Internacional do Meio Ambiente do Curso de Pós-Gra- duação em Direito Ambiental da Faculdade de Saúde Pública da usp-Nisam. Doutor em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da u sp .

Inez Lopes Matos C. de Farias. Doutoranda e Mestre em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Advogada. Professora Universitária. M embro da In terna­tional Law Association ( i l a ) . Membro da Sociedade Brasileira de Direito Internacional do Meio Ambiente ( s b d im a ) . Membro do G ru ­po de Estudos sobre Desenvolvimento do i d c i d .

Liliana Lyra Jubilut. Doutoranda e Mestre em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Professora Universitária (Faditu e Uninove). Advogada do Centro de Acolhida para Refugiados em São Paulo, da Cáritas Arquidiocesana de São Paulo, pelos convênios com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados e com a Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República. Ex-Coordenadora do Grupo de Estu­dos sobre Desenvolvimento do i d c i d (2002/2003).

Roberto de Campos Andrade. Promotor de Justiça. Doutorando e Mestre em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da Uni­versidade de São Paulo.

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SOBRE OS AUTORES

Rui da Silva Santos. Bacharel em Relações Internacionais pela p u c /s p . Graduando em Direito pela Faculdade de Direito da Univer­sidade de São Paulo. Exerce a profissão de jornalista em São Paulo. Membro do Grupo de Estudos sobre Desenvolvimento do i d c i d .

Salem Hikmat Nasser. Doutor em Direito Internacional pela Facul­dade de Direito da Universidade de São Paulo. Detentor do título de d e a em Direito Internacional pela Universidade Paris II (Panthéon- Assas). Professor da Escola de Direito da f g v . Vice-presidente da Sociedade Brasileira de Direito Internacional do Meio-Ambiente( s b d i m a ).

Silvia Menicucci de Oliveira. Doutoranda e Mestre em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Pesquisadora do Arquivo H annah Arendt. Em 2001, realizou estágio na Comissão de Desenvolvimento Sustentável (órgão do Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais do Conselho Eco­nômico e Social das Nações Unidas). Em 2002, pesquisou acerca do direito ao desenvolvimento na Universidade das Nações Unidas e outras instituições de pesquisa no Japão com financiamento do Fundo Ryochi Sasakawa da Fundação Tóquio. Membro do Grupo de Estudos sobre Desenvolvimento do i d c i d .

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Etica e Economia - fundamentos para uma reaproximação1

D a n i e l D a m á s i o B o r g e s

Introdução: ética, economia e desenvolvimento - 1. Apresentação do tema - duas abordagens da economia - 2. A ética dos agentes econômicos: o egoísmo ético e os seus limites no capitalismo - 2.1. As origens do egoísmo ético - 2.2. Adam Smith e o egoísmo ético - 2.3. A escola de Chicago e o ideário contemporâneo - 2.4. Os limites do egoísmo ético no sistema capitalista - 3. A ética e os parâmetros de medida das realizações sociais: as finalidades últimas a serem perseguidas pela organização econômica - 3.1.O fim da indagação ética das questões econômicas - 3.2. O enfo­que puramente econômico dos problemas sociais - 3.3. A noção qualitativa de desenvolvimento - a superação da riqueza material como critério para a avaliação da realização social e da análise pu­ramente econômica das questões sociais - Considerações finais - Referências

1 Este artigo consiste na versão revista e ampliada do trabalho apresentado na disciplina Ética e Direito, ministrada pelo professor Fábio Konder Comparato no curso de Pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, no primeiro semestre do ano de 2002.0 autor gostaria de agradecer os valiosos co­mentários críticos e observações dos Srs. João Paulo Bachur e Gilberto Paiva de Car­valho Toscano de Britto, que gentilmente leram a versão preliminar deste artigo.

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D I R E I T O I N T E R N A C I O N A L E D E S E N V O L V I M E N T O

INTRODUÇÃO: ETICA, ECONOMIA E DESENVOLVIMENTO

Nos debates no Brasil e no m undo acerca do desenvolvimento é notório que o foco das atenções ainda seja a sua face econômica.

Com efeito, uma miríade de dados sobre inflação, produção in­dustrial, confiança dos investidores externos nos assim chamados países emergentes, desempenho do mercado acionário e cotações de moeda estrangeira é amplamente divulgada pela imprensa, bem assim as suas constantes oscilações são acompanhadas com muita apreensão.

Essa proeminência de índices e análises econômicos não consti­tui, entretanto, um fenômeno cuja abrangência se restrinja às dis­cussões sobre o desenvolvimento.

Ao revés, trata-se de uma das várias manifestações do radical divórcio, que se acentuou no último quartel do século passado, entre ética e economia.

A compreensão e superação de tal preponderância requerem, pois, uma análise do hiato que se criou entre essas duas importantes esferas do saber hum ano e uma defesa de sua reaproximação, o que se procurará fazer nas linhas que se seguem.

Para um debate mais profícuo acerca do desenvolvimento, essa reaproximação reveste-se de grande importância, que deve, desde logo, ser realçada.

De um lado, ela permite evidenciar a imprescindibilidade da éti­ca dos agentes econômicos a fim de se atingir uma das possíveis di­mensões do desenvolvimento: o acréscimo da riqueza material.

De outra parte, ela possibilita abordar o desenvolvimento sob um prisma crítico e reflexivo, uma vez que problematiza os objeti­vos que devem ser perseguidos pelo conjunto da sociedade, notada- mente no que diz respeito ao seu sistema produtivo.

Não se pode deixar de reconhecer que a inserção, aqui defendi­da, da economia no horizonte mais abrangente da reflexão ética traz mais interrogações do que propriamente respostas. Em palavras mais precisas, o enfoque do debate das questões econômicas ora propos­

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to é mais no sentido de suscitar indagações sobre a conduta dos agen­tes econômicos no sistema produtivo e os rumos a serem seguidos por esse último, do que de oferecer soluções prontas a esses mesmos questionamentos.

Assim, a palavra fundamentos, a que se fez alusão no título do texto, assume mais a acepção de razões e justificativas para um a rea- proximação entre ética e economia, do que de axiomas nos quais ela deve se fundar.

No entanto , é igualmente forçoso convir que o século XX foi especialmente pródigo em fatos que dem onstraram a sabedoria e atualidade da observação do filósofo britânico Bertrand Russell, con­soante a qual, no frenético ritm o dos tempos m odernos “Ostenta- se Hamlet como uma terrível advertência contra o pensamento sem ação, mas não se ostenta Othelo como advertência contra a ação sem pensamento”2.

1. APRESENTAÇÃO DO TEMA - DUAS ABORDAGENS DA ECONOMIA

Amartya Sen, em seu livro Sobre ética e economia3, distingue com clareza duas origens ou vertentes da ciência econômica: uma que se reporta à ética e outra mais ligada à engenharia.

De acordo com essa diferenciação, a vertente relacionada à ética originou-se, pelo menos, no pensamento de Aristóteles. Em Ética a Nicômacos há um a estreita relação entre a economia e os fins h u ­manos. Sob essa ótica, observa Sen que “o estudo da economia, embora relacionado imediatamente à busca da riqueza, em um n í­vel mais profundo está ligado a outros estudos, abrangendo a ava­liação e intensidade dos objetivos mais básicos”'1.

2 RUSSELL, B. O elogio ao ócio. Rio de Janeiro, Sextante, 2002. p. 43.3 SEN, A. Sobre ética e economia. São Paulo, Companhia das Letras, 1999. p. 19. A SEN, A. Op. cit., p. 19.

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Nessa ordem de considerações, a economia não é vista como um fim em si mesma ou como ciência autônoma das demais preo­cupações humanas. Ela, em última instância, está profundamente inserida no estudo da ética e da política, visto que é concebida como um mero instrumento para se atingirem os fins supremos de uma determinada sociedade.

Esta estreita associação entre ética e economia tem grandes implicações no estudo das motivações humanas, do com portam en­to real do hom em econômico e das repercussões de tal com porta­mento para a sociedade em seu conjunto.

Consoante essa abordagem, cabe averiguar em que proporção a ética influencia ou deveria influenciar o com portam ento dos seres humanos. Deve-se indagar até que ponto o próprio interesse em nome de valores éticos mais nobres deve ser sacrificado. Em um enfoque mais amplo, é também objeto de estudo quais são as impli­cações, para a sociedade em seu conjunto, de um com portam ento pautado mais por valores elevados, como o altruísmo e a responsabi­lidade social, do que pela mera vantagem pessoal.

De outra parte, esse vínculo tem também profundas repercus­sões sobre a apreciação das realizações sociais e, por conseguinte, do que a sociedade em seu conjunto deve almejar ser, e de quais objetivos ela deverá perseguir. Em um a perspectiva ética da econo­mia, não há espaço para fins que sejam prévia e arbitrariamente definidos, tais como eficiência, lucratividade, estabilidade m onetá­ria, equilíbrio das contas públicas, industrialização ou crescimento econômico.

Embora os teóricos dessa vertente reconheçam a importância desses aspectos da organização econômica, eles partilham de uma visão mais crítica e ampla, já que sempre questionam se a eficiência, a estabilidade ou o crescimento estão ou não a serviço de objetivos eticamente valiosos.

A segunda abordagem do pensamento econômico não se preo­cupa com tais temas, a exemplo da organização social ideal, dos fins

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supremos a serem atingidos, das motivações complexas do agir h u ­mano. Pelo contrário:

considera que os fins são dados muito diretamente, e o objetivo do exercício é encontrar os meios apropriados de atingi-los. O com­portamento humano nesta abordagem baseia-se tipicamente em motivos simples e facilmente caracterizáveis.3

Trata-se da concepção puramente técnica da economia, centra­da exclusivamente na relação de adequação entre meio e fim.

O com portam ento hum ano é, assim, descrito invariavelmente como sendo puramente egoísta, caracterizado por sempre tentar atin­gir o próprio interesse de m odo racional. Esse egoísmo, aliás, longe de ser condenável, é concebido como a grande força motriz da ri­queza das sociedades humanas.

Na terminologia adotada por Amartya Sen, trata-se da aborda­gem engenharia da economia6, vale dizer, a ciência econômica é per­cebida como uma ciência exata, expressa em fórmulas matemáticas, desvinculada totalmente de indagações nebulosas como os fins su­premos que devem nortear a organização social.

Ainda que haja atualmente uma incontestável prevalência da segunda vertente, ela nem sempre foi hegemônica no pensamento econômico. Por muito tempo, conforme ressaltou Sen, a economia foi considerada como uma ramificação da ética. O grande precursor do pensamento econômico moderno, Adam Smith, foi, inclusive, professor de filosofia moral na Universidade de Glasgow. De acordo com Sen, quando Lionel Robbins, em 1930, afirmou que “não pare­ce logicamente possível associar os dois estudos (economia e ética) de forma nenhum a além da justaposição”, o economista britânico

5 SEN, A. Op. cit., p. 18.6 Este segundo enfoque da economia, de acordo com Sen, foi desenvolvido inclu­

sive por engenheiros, como Leon Walras, o qual se destacou por dirim ir problemas técnicos nas relações econômicas, sobretudo aqueles relacionados ao funcionamento dos mercados. SEN, A. Op. cit., p. 18.

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estava defendendo uma opinião que destoava das concepções em voga àquela época.7

O presente texto pretende analisar o liame entre ética e econo­mia, procurando retomar a primeira abordagem mencionada. Bus- car-se-á estudar esse relacionamento sob dois prismas distintos.

O primeiro concerne ao próprio com portam ento ético de cada indivíduo, nas relações econômicas, e as suas implicações para o conjunto da comunidade em que ele está inserido. O fulcro do estu­do será a doutrina do egoísmo ético, segundo a qual o egoísmo não somente caracteriza o com portam ento de cada ser humano, como também constitui o elemento suficiente para fazer prosperar mate­rialmente as diferentes sociedades regidas pelo sistema de mercado.

Essa breve dissertação procurará demonstrar as limitações a que esta doutrina está exposta, na lógica do próprio funcionamento do sistema capitalista, vale dizer, sem que se apreciem as suas eloqüen­tes falhas.

Não que não se deva questionar as debilidades deste sistema, visto que a segunda parte do artigo procurará, em certa medida, fazê-lo. O que se quer demonstrar, em um primeiro momento, são as grandes lacunas do egoísmo ético, lacunas estas que são de tal enver­gadura, que, mesmo no capitalismo, essa doutrina é insatisfatória.

O segundo prisma se reporta aos fins eticamente valiosos em torno dos quais a sociedade deve se organizar, particularmente no que tange ao sistema produtivo. No segundo tópico, criticar-se-ão so­bremaneira os parâmetros pelos quais as realizações das diferentes sociedades humanas são julgadas nos dias de hoje, ao se adotarem padrões puramente econômicos da análise da realidade social.

7 SEN, A. Op. cit., p. 18. A esse respeito, é digno de nota o fato de Lionel Robbins, em seu livro The nature and significance o f Economic Science, ter proferido a definição da ciência econômica a qual seja, talvez, a mais amplamente referendada pelos econo­mistas atualmente: “Economics is the Science which studies human behavior as a rela- tionship between ends and scarce means which have alternative uses”. Apud. GILPIN, R. Global Political Economy - understanding the International Economic Order. Princeton, Princeton University Press, 2001. p. 26.

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A reflexão aqui proposta terá como referências fundamentais o pensamento de dois economistas: Smith e Sen.

A escolha do primeiro se justifica plenamente, quer por ele ter sido o grande precursor da ciência econômica moderna, quer em razão de seu pensamento ser freqüentemente utilizado para se sepa­rar a ética da economia. A eleição do economista indiano, por sua vez, dá-se em virtude de suas idéias terem recolocado as preocupa­ções de natureza ética no centro do debate econômico.

2. A ÉTICA DOS AGENTES ECONÔMICOS:O EGOÍSMO ÉTICO E OS SEUS LIMITES NO CAPITALISMO

2.1. AS ORIGENS DO EGOÍSMO ÉTICO

A study of the history o f opinion is a necessary preliminary to the emancipation of the mind. I do not know which makes a man more conservative - to know nothing but the present, or nothing but the past.s

A doutrina do egoísmo ético consiste na crença de que, no sis­tema da economia de mercado, o egoísmo de cada indivíduo seria suficiente para se atingir o bem para o conjunto da sociedade, uma vez que ele produziria resultados ainda melhores daqueles que se­riam engendrados se a ação de cada pessoa fosse pautada por valo­res mais nobres.9

De acordo com Eduardo Gianneti da Fonseca, a idéia do egoís­mo ético originou-se de um poema satírico anônimo, publicado em 1705, cujo título era A colméia ruinosa, ou canalhas feitos honestos.

8 KEYNES, J. M. The End o f Laissez-Faire, Essays on Persuasion - Collected Writings, v. 9. Londres, MacmiUan, St. M artins Press, Royal Economic Society, 1975. p. 277.

9 FONSECA, E. G. da. Vícios privados, benefícios públicos: A ética na riqueza das nações. São Paulo, Companhia das Letras, 1993. p. 134.

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De início, a mencionada obra literária não produziu grande impacto na sociedade de seu tempo. Todavia, após nove anos de sua publicação, o poema original apareceu novamente acompanhado de um ensaio sobre a origem da virtude moral e de cerca de vinte co­mentários em prosa.

O novo livro intitulava-se A fábula das abelhas, ou vícios priva­dos, benefícios públicos e seu autor, Bernard de Mandeville, era um médico holandês habitante da Inglaterra.

A obra de Mandeville escandalizou a sociedade da época e in­fluenciou, de modo decisivo, a alma humana no m undo contempo­râneo. A fórmula “vícios privados, benefícios públicos” foi também atribuída ao pensamento de Smith, e os membros atuais da Escola de Chicago a professam de modo explícito. No entanto, antes da análise das repercussões do pensamento de Mandeville, deve-se pri­meiramente discorrer sobre o argumento por ele desenvolvido.

A colméia, na fábula de Mandeville, seria o microcosmo da so­ciedade inglesa daquele tempo, cuja principal característica era o aparente paradoxo entre a sua extraordinária prosperidade material e o grande mal-estar entre as abelhas acerca do com portam ento ex­clusivamente auto-interessado e egoísta dos seus m em bros.10

Para o médico holandês, na sua ingenuidade, as abelhas não percebiam que havia um estrito nexo de causalidade entre ambas as coisas, visto pois que “tal como na harm onia musical sons disso­nantes produzem unidos num acorde” 11. A pujança econômica, o poderio militar e as realizações científicas daquela sociedade davam- se precisamente em razão do egoísmo e dos vícios que caracteriza­vam os seus membros, dos “milhões se esforçando arduamente com o intuito de suprir a vaidade e os apetites lascivos uns dos outros”12. Por conseguinte, “uma bela superestrutura pode ser construída so­bre uma fundação podre e desprezível”13.

10 Apud FONSECA, E. G. da. Op. cit., p. 135.11 Apud FONSECA, E. G. da. Op. cit., p. 135-612 Apud FONSECA, E. G. da. Op. cit., p. 136.13 Apud FONSECA, E. G. da. Op. cit., p. 137.

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Dessa forma, a busca pela riqueza material individual faria sur­gir a prosperidcide no seio da sociedade; o desejo de ostentar desen­volveria o ramo de atividade dos bens de luxo; a guerra engendraria uma florescente indústria de armamentos; a vaidade e a inconstân­cia resultariam no surgimento das atividades econômicas relaciona­das à moda, e assim por diante.

Mandeville retrata, assim, o paradoxo de que os resultados das ações, por muitas vezes, podem ultrapassar e até mesmo contrariar o que se havia originariamente intencionado quando de sua exe­cução.

De acordo com o pensador holandês, de tal relevância é a rela­ção entre a corrupção moral dos membros de uma sociedade e as suas realizações materiais, que se Júpiter atendesse aos apelos das abelhas e eliminasse qualquer resquício de egoísmo, oportunism o e corrupção, a colméia outrora pujante e rica reduzir-se-ia a uma “exis­tência estagnada, reta e sem brilho, abençoada pelo contentamento e honestidade, cientro de uma árvore oca”14.

Dito de outro modo, suprimir o egoísmo e os vícios de uma dada comunidade seria o equivalente a extinguir o verdadeiro com ­bustível de seu esplendor econômico e progresso material.

2.2. ADAM SMITH E O EGOÍSMO ÉTICO

Não é infreqüente atribuir-se a Smith, o grande paladino do li­beralismo econômico, a defesa da doutrina do egoísmo ético acima exposta.15

A fim de fundamentar esta posição, costuma-se mencionar a se­guinte passagem de A Riqueza das nações, a qual talvez seja o mais exaus­tivamente citado excerto da história do pensamento econômico:

It is not from the benevolence of the butcher, the brewer, or the baker, that we expect our dinner, butfrom their regará to their own

Apud FONSECA, E. G. da. Op. cit., p. 137.15 SEN, A. Op. cit., p. 39.

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interest. We address ourselves, not to their humanity but to their self-love.'6

Para que se tenha uma compreensão mais rigorosa desse famo­so trecho de A Riqueza das nações, faz-se imperioso contextualizá-lo.

Neste capítulo em particular, em que está inserido o fragmento acima transcrito, Smith se propõe a discorrer sobre o princípio que dá origem à divisão do trabalho.17 De acordo com o professor de filosofia moral da Universidade de Glasgow, essa divisão não advém da sabedoria humana, mas da sua natural propensão para cambiar, perm utar e trocar um a coisa por outra. No entanto, para que este comércio se concretize, os indivíduos, segundo Smith, não apelam para o altruísmo dos demais. Os homens procuram demonstrar as vantagens para a outra parte, decorrentes desta transação comercial.

É dentro desse contexto que a passagem em apreço deve ser lida. Smith não estava, em absoluto, exortando as pessoas a serem egoís­tas, a procurarem única e exclusivamente o que ele denom inou de self-love. Smith estava apenas apontando o mecanismo pelo qual as transações comerciais ocorriam, isto é, por meio do apelo ao egoís­mo de cada parte.

Em síntese, Smith tão-somente observou que o comércio se dá por meio de transações mutuam ente vantajosas, e não pela benevo­lência daqueles que o praticam.

Não só a adequada contextualização do trecho sob análise de­monstra que Smith não era um adepto do egoísmo ético18, como

16 SMITH, A. The wealth ofnations. Nova Iorque, The Modern Library, 2000. p. 15.17 A questão atinente à divisão do trabalho tem uma importância capital na obra

de Smith. Ele atribui a esta divisão boa parte do aum ento dos poderes produtivos do trabalho. Logo no primeiro capítulo de sua obra /\ riqueza das naçõesy Smith ressalta a relevância deste tema, dando o clássico exemplo da fabricação de alfinetes. Sobre o assunto, v. SMITH, A. Op. cit., especialmente o primeiro capítulo do Livro I.

18 De acordo com Sen, esta contextualização é até mesmo desnecessária para demonstrar este fato: “Embora muitos admiradores de Smith não pareçam ter avan­çado além do trecho sobre o açougueiro e cervejeiro, até mesmo uma leitura desta pas­sagem indicaria que o que Smith está fazendo aqui é especificar por que e como se

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também ele critica incisivamente os pensadores que buscam expli­car todos os fenômenos a partir de um núm ero reduzido de p rin ­cípios, à semelhança daqueles que propugnam que o mero apego individual ao próprio benefício enriquecerá, de per si, a sociedade.

Smith condenou Epicuro, por reduzir todas as virtudes à p ru ­dência, e também os filósofos adeptos de reducionismos análogos.19 O pensador escocês, neste aspecto, parece ser muito mais um a rapo­sa do que um ouriço, para usar o critério proposto por Isaiah Berlin a fim de classificar pensadores e escritores.20

O economista liberal dem onstrou a sua oposição àqueles que têm um a perspectiva unilateral da realidade, àqueles que p ro cu ­ram com preendê-la sob o ângulo de um único princípio organ i­zador.

A bem dizer, o que Smith procurou demonstrar, sobretudo em A Riqueza das Nações, foi a harmonia existente entre interesses p ú ­blicos e privados em determinadas circunstâncias. Nesse ponto, con­vém fazer uma análise com maior vagar da sua argumentação.

De início, cum pre observar que Smith dem onstrou um p ro ­fundo ceticismo com relação à postura moral hum ana, especial­mente a dos ricos.21 No seu entender, os ricos buscam satisfazer, “no

efetuam as transações norm ais no mercado e por que e como funciona a divisão do trabalho, que é o tema no qual se encontra o trecho citado. Mas o fato de Smith ter observado que transações mutuam ente vantajosas são muito comuns não indica em absoluto que ele julgava que o am or-próprio unicamente, ou na verdade a prudência em sua interpretação abrangente, podia ser suficiente para a existência de um a boa sociedade. De fato, ele afirmava exatamente o oposto. Smith não alicerçava a salvação da economia em alguma motivação única”. SEN, A. Op. cit., p. 39.

19 SEN, A. Op. cit., p. 40.20 Esta classificação de Berlin baseou-se no verso do poeta grego Arquíloco, “Mui­

tas coisas sabe a raposa; mas o ouriço uma grande”. Apud LAFER, C. A reconstrução dos Direitos Humanos - uni diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. 2-reim pr. São Paulo, Companhia das Letras, 1998. p. 13.

21 É curioso observar que, segundo a interpretação de Armatya Sen, “there is no author (not even Karl M arx) who made such strong criticism o f the motives o f the eco- nomically well placed vis-à-vis the interests o f the poor*\ SEN, A. Development as free- dom. Nova York, Anchor Books, 1999. p. 255. Há tradução em língua portuguesa recente (2000) desse livro de Sen, editada pela Companhia das Letras.

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seu natural egoísmo e rapacidade” “seus próprios desejos vãos e insaciáveis”22.

A despeito desta natural rapacidade e egoísmo dos economica­mente privilegiados, eles poderiam ser levados, pela mão invisível do mercado, a promover o interesse da sociedade, sem que tivessem ori- ginariamente a intenção de fazê-lo, ou sequer a ciência deste fato.

A transformação do egoísmo dos agentes econômicos para a pro­moção do bem da sociedade dar-se-ia por meio da camisa-de-força da concorrência perfeita no mercado. Nesses termos, na eventualidade de haver lucros abusivos do empresário na produção de determinados bens; outros produtores, também agindo egoisticamente, passariam também a se dedicar à produção destes mesmos bens, diminuindo os lucros empresariais e beneficiando o consumidor.

De forma semelhante, se o empresário, na busca de seu interes­se particular, quisesse aum entar os seus preços, ele logo perderia a sua clientela, haja vista a existência de muitos outros produtores dis­postos a cobrar um preço menor.

Desse modo, a concorrência seria uma barreira intransponível à busca do próprio interesse dos mais ricos, fazendo com que os preços dos produtos vendidos pelos empresários tendessem ao que Smith chamou de preço natural, isto é, o preço sob a concorrência perfeita.23

Todavia, é necessário observar, em letras salientes, que Smith jamais afirmou que haveria uma harmonia irrestrita entre interesses privados e públicos. Ele assinalou expressamente que eles poderiam ser diferentes e até mesmo opostos:

The interest of the dealers, however, in any particular branch of trade or manufactures, is always in some respects different from, and even opposite to that of the public. To widen the market and to nar- row the competition, is always the interest of the dealers. To widen the

22 SMITH, A. Teoria dos sentimentos morais. Trad. de Lya Luft. São Paulo, Martins Fontes, 1999. p. 226.

23 Sobre a argumentação do economista clássico, v. SMITH, A. The wealth o f nations. New York, Op. cit., especialmente o capítulo sétimo do Livro I.

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market may frequently be agreeable enough to the interest of the puhlic, hut to narrow the competition must always be against it, and can serve only to enable the dealers, by raising their profits above what they naturally would be, to levy for their on benefit, an absurd tax upon the rest of their own fellow-citizens.24

De todo modo, este reconhecimento de que, sob determinados arranjos institucionais, o egoísmo pode prover o bem com um não implica dizer, de forma nenhuma, que outros fatores não possam promover o bem público e que o auto-interesse não deva ser sacrifi­cado em prol do bem da humanidade.

O professor de filosofia moral apontou a humanidade, a justiça, a generosidade e o espírito público como as qualidades mais benéfi­cas aos outros, ao passo que o auto-interesse seria de todas os atri­butos hum anos o que mais ajuda o próprio indivíduo.25

Além disso, Smith afirmou que o homem sábio e virtuoso deve estar sempre disposto a sacrificar o seu próprio interesse ou o interes­se do seu Estado, em prol do “interesse maior do universo, do inte­resse da grande sociedade de todos os seres sensatos e inteligentes”26.

Tampouco Smith, quando menciona o egoísmo como um po­tencial gerador de benefícios públicos sob determinadas circunstân­cias, está se referindo a um egoísmo sem peias, que passa por cima de tudo e de todos para atingir o auto-interesse. Nas palavras extrema­mente enfáticas do pensador escocês,

não há homem habitualmente honesto que não sinta internamente a verdade daquela máxima estóica, segundo a qual para um homem pri­var injustamente outro de qualquer coisa, ou promover injustamente sua própria vantagem pela perda ou desvantagem de outro, é mais con­trário à natureza do que a morte, a pobreza, a dor, todos os infortúnios que o possam afetar, seja no corpo, seja nas circunstâncias externas.27

2,1 SMITH, A. The wealth o f nations, Op. cit., p. 309 (grifo nosso)25 SEN, A. Sobre ética e economia. Op. cit., p. 39.26 SMITH, A. Teoria dos sentimentos morais. Op. cit., p. 94.27 SMITH, A. Teoria dos sentimentos morais. Op. cit., p.167-8.

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Assim, em uma análise do conjunto do pensamento de Smith, particularmente à luz de sua obra Teoria dos sentimentos morais18, não se pode defender a idéia de que ele era um defensor do egoísmo ético, tal como acima definido.

Um outro aspecto do pensamento do economista escocês que deve ser assinalado diz respeito ao contexto social no qual ele está inserido.29 A realidade a que ele estava se reportando, em seus escri­tos, não é a de hoje, mas, evidentemente, a do seu tempo. O próprio pensador escocês parecia estar consciente deste fato ao ressaltar, de forma inequívoca, o caráter contemporâneo de suas considerações.30

Por essas razões, contextualizar historicamente o pensamento de Smith não apenas é compreendê-lo melhor, bem como é mostrar as limitações às quais ele está sujeito.

Ora, a mente do economista clássico foi, sem dúvida, moldada pela conjuntura econômica da época, qual seja, a existência de um

2S Muitos autores afirmam que o livro Teoria dos sentimentos morais representa­ria apenas os pensamentos iniciais de Smith, tendo ele abandonado ao menos parte deles, no final de sua vida. Ocorre que, embora a primeira edição deste livro tenha sido anterior à publicação de /\ Riqueza das nações, ele foi publicado mais de cinco vezes durante a vida de Smith, e a última edição coincidiu com o ano de sua morte. Ade­mais, muitas das idéias presentes no livro A Riqueza das nações já aparecem esboçadas, de forma rudimentar, na Teoria dos sentimentos moraisy a exemplo da célebre figura da“mão invisível”. OSER, J. & BLANCHFIELD, W. C. História do pensamento econômico. São Paulo, Atlas, 1987. p. 66.

29 Á semelhança do que ocorre nas demais ciências humanas, é indispensável estu­dar-se a conjuntura histórica em que surgiram as idéias econômicas. De acordo com Wesley C. Mithcell: “Os economistas estão propensos a pensar que seu trabalho é o resultado de um pensamento livre sobre problemas logicamente formulados. Deveriam reconhecer que suas idéias foram influenciadas por leituras e pela aprendizagem que obtiveram, mas raramente reconhecem que sua inteligência ou seu livre pensar foi mol­dado por circunstâncias em que cresceram e se desenvolveram, que suas mentes são produtos sociais, que não podem, seriamente, transcender a conjuntura”. Não se pode perder de vista o contexto histórico das doutrinas econômicas em que surgiram os pro­blemas e as questões que são contemporâneos aos economistas. Assim, Smith form u­lou a sua doutrina econômica à luz das deletérias conseqüências dos monopólios e privilégios comerciais do Estado mercantilista. Com efeito, para parafrasear a famosa frase do filósofo espanhol Ortega Y Gasset, os economistas (e suas doutrinas) são eles mesmos e suas circunstâncias. Apud OSER, J. & BLANCHFIELD, W. C. Op. cit., p. 15.

30 SEN, A. Sobre ética e economia. Op. cit., p. 41.

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mercado no qual se poderia conceber, em grande medida, a existên­cia dos pressupostos da concorrência perfeita.

Atualmente, contudo, a realidade econômica é fundamental­mente distinta da daquela época. A crescente exigência de altos in­vestimentos tecnológicos para o desenvolvimento de novos produtos, bem assim a diminuição de seu tempo de maturação no mercado, tornam necessária a formação de economias de escala na produção de bens e serviços.

Dentro desse quadro econômico, somente um pequeno núm e­ro de macro-empresas consegue formar estas economias de escala, por meio de sua vultosa produção. A título ilustrativo, pode-se m en­cionar o mercado de aviões de grande porte, cuja necessidade de escala de produção é de tal ordem, que há apenas duas empresas nes­te mercado em todo o m undo, a norte-americana Boeing e a euro­péia Airbus.

Destarte, a realidade econômica, no que se refere à concorrência no mercado, é substancialmente diferente daquela vivida por Smith. Este aspecto é de extrema relevância para o entendimento do real significado do seu pensamento à luz das circunstâncias atuais.

Smith não acreditava que os empresários pudessem enriquecer as nações pela sua benevolência. Muito pelo contrário, Smith, como salientado acima, nutria um profundo ceticismo quanto à moral empresarial, a qual, segundo ele, caracterizava-se pelo seu caráter egoísta.

Ora, a partir do m om ento em que inexiste concorrência perfei­ta como fator transformador do egoísmo empresarial em um bene­fício público, as empresas fazem uso de seu poder econômico para auferirem lucros cada vez maiores.

Não constrangido pela mão invisível da concorrência perfeita, o empresário monopolista, pelo seu natural egoísmo a que se refe­ria o economista clássico, exercerá o seu poder econômico não em benefício da sociedade, mas em proveito próprio.

Daí o caráter imperioso de se coibir o abuso do poder econô­mico dos agentes privados, por meio da intervenção do Estado na economia.

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2.3. A ESCOLA DE CHICAGO E O IDEÁRIO CONTEMPORÂNEO

No posfácio que escreveu, em 1979, à sua trilogia sobre o sistema capitalista, Fernand Braudel identificou uma certa linguagem defen­siva daqueles que procuravam legitimar esse modo de produção.

O historiador francês afirmou que a euforia e a boa consciência capitalistas haviam cedido lugar a um certo constrangimento com relação ao seu ideário e aos seus valores, notadamente em face das extraordinárias desigualdades e da estrutura social injusta por ele engendrada.31

Braudel constatou, desse modo, um certo mal-estar com relação aos valores e às concepções de vida subjacentes ao m odo capitalista de produção, acerca dos quais mesmo os seus adeptos não hesitaram em demonstrar a sua profunda inquietação.32

Houvesse escrito esse mesmo posfácio anos depois, Braudel tal­vez tivesse concluído de outro modo a sua célebre trilogia.

31 BRAUDEL, F. Civilisation matérielle, économie et capitalisme - XV'- x v u f Siècley Le temps du monde. Paris, Libraire Arnaud Colin, 1979. p. 789-90.

32 Essa má consciência, a que Fernand Braudel faz referência, pode ser ilustrada pelo indisfarçável desconforto manifestado por Keynes com relação à ideologia mate­rialista e individualista do sistema capitalista. Conquanto o economista britânico reco­nhecesse a eficiência produtiva desse modo de produção, ele demonstrou uma certa repulsa ao seu m odo de vida e aos seus valores. Em um belo ensaio intitulado “Eco­nomic Possibilities for our Grandchildren”, Keynes acalentava o m om ento na história da hum anidade em que haveria riqueza material na sociedade suficiente para a satis­fação das necessidades humanas fundamentais. Nesse momento, afirmou Keynes, o apelo ao lucro individualista dos agentes econômicos tornar-se-ia, em grande medida, desnecessário, porquanto a acumulação de capital não seria mais tão importante para a sociedade. Nesse futuro, que Keynes considerava não estar muito distante: “The love o f tnoney as a possession - as distinguished from the love o f money as a means o f enjoyments and realities oflife - will be recognised for what it is, a somewhat morbidity, one o f semi- criminal, semi-pathological propensities which one hands over with a shudder to the spe- cialists in mental disease. Ali kinds o f social customs and economic practices, affecting the distribution o f wealth and o f economic rewards and penalties, which are maintained at ali co$t$y however distasteful and unjust they may be in themselve$y because they are tre- mendously useful in promoting the accumulation o f capital, we shall be free, at last, to dis- card. [...] We shall once more value ends above means andprefer the good to the useful” KEYNES, J. M. Economic possibilities for our grandchildren, Op. cit., p. 329-31.

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Do começo da década de 1980, aos dias atuais, a exaltação da riqueza, da ganância e da ambição voltaram com toda a força. A competição agressiva, a sobrevivência do mais apto, a riqueza pes­soal, o cálculo frio das vantagens pessoais e os vencedores eleitos pe­lo mercado passaram a ser exaltados e celebrizados. A ode ao hotno oeconomicus, o hom em burguês desprovido de qualquer sentimen­to hum anitário e cujas ações se voltam exclusivamente para o enri­quecimento pessoal, é novamente declamada de m odo ostensivo.

Nesse sistema de convicções, à semelhança do que dizem os téc­nicos de futebol norte-americano, “vencer não é a coisa mais im por­tante; vencer é tudo”.

Na outra extremidade, os excluídos da organização econômica passaram a ser vistos como os próprios responsáveis pela sua p ró ­pria condição. Além de serem descartados pelo processo produtivo, eles têm sido estigmatizados como fracassados, perdedores, como um ônus a ser arcado pela sociedade.

Assim, por exemplo, se o desemprego atinge altíssimos níveis em grande parte dos países do planeta, atribui-se aos próprios de­sempregados o mal que lhes aflige, porquanto eles não seriam sufi­cientemente qualificados para serem empregáveis. Não bastassem os sofrimentos advindos da exclusão do processo produtivo, os desem­pregados têm a sua sensibilidade ainda mais aviltada pelo desprezo com que são vistos pela sociedade.

Desse modo, ao lado da exaltação da ambição e da ganância, as pessoas se tornam cada vez mais insensíveis ao destino do próximo. As preocupações sociais, características dos anos de 1960, foram subs­tituídas pela preocupação de cada um com o seu próprio futuro.

O próprio conceito de sociedade tornou-se questionável. Em um pronunciamento que se torna bastante conhecido, a ex-primeira- ministra britânica Margareth Thatcher disse enfaticamente: “Não há e nem nunca houve esta coisa chamada sociedade, o que há e sem­pre haverá são indivíduos”33.

33 Apud SEVCENKO, N. A corrida para o século XXI - no loop da montanha russa. São Paulo, Companhia das Letras, 2001. p. 36.

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O filme Wall Street, de 1987, parece ter captado o espírito de nos­sa época (o Zeitgeist, dos alemães)31, ao mostrar a forma pela qual se estava enaltecendo a ganância e a ambição desmedidas, sobretudo entre as pessoas que trabalham no mercado financeiro.

A película versa sobre a emergência dos chamados yuppies: jo ­vens que trabalham no mercado de capitais nova-iorquino e que se enriquecem de forma extraordinária num lapso temporal extrema­mente curto.

Uma das práticas retratadas pelo filme talvez seja a mais perfei­ta tradução do ideário contemporâneo: bancos de investimento com ­pravam empresas em dificuldades financeiras, demitiam indiscrimi­nadamente muitos de seus funcionários e, depois, revendiam-nas a melhores preços, propiciando vultosos lucros a estes banqueiros.

Desnecessário dizer que essas instituições financeiras desconsi­deravam solenemente questões relativas à responsabilidade social das empresas. Afinal, como bem disse o personagem Gordon Gekko no mesmo filme: “greed, for a lack o f a better xvord, is good. Greed is right. Greed works \

Esse conjunto de crenças e idéias, as quais reinam sobranceiras em nosso tempo, foi fruto, em grande medida, da influência intelec­tual decisiva exercida pelos novos paladinos do egoísmo ético: a Escola de Chicago.

Consoante Fonseca, os professores da prestigiosa Faculdade de Economia da Universidade de Chicago são os verdadeiros seguido­res contemporâneos do egoísmo ético de Mandeville.35

Um dos mais ilustres membros dessa corrente do pensamento econômico, Milton Friedman, assim discorreu sobre as suas posi­ções acerca da ética dos atores econômicos:

34 A própria revista liberal The Economist chegou a afirmar que os valores retra­tados pelo filme estavam ainda mais presentes na década de 1990 do que na de 1980. Nas palavras do próprio hebdomadário britânico, “compared with the last ten years, the greed of the 1980$ vvas as nothing”. The economist, 16.5.2002. p. 36.

35 FONSECA, E. G. da. Op. cit., p. 152.

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Poucas tendências podem minar tão completamente os pró­prios fundamentos da nossa sociedade livre quanto a aceitação, por parte dos dirigentes das empresas, de uma responsabilidade social outra que não a de fazer tanto dinheiro quanto for possível para os seus acionistas.36

Os teóricos de Chicago defendem que a ganância e a ambição, no regime de mercado, seriam elementos suficientes para o enri­quecimento material da sociedade. A explicação dada por estes eco­nomistas, com relação ao mecanismo pelo qual vícios privados se transformam em benefícios públicos, consiste precisamente na mão invisível do mercado concorrencial de Smith, a que se fez referên­cia no item anterior.37

Neste enfoque de análise, desviar-se do egoísmo significaria m e­nos eficiência e opulência material.

Por conseguinte, assim como, no século xix, asseverava-se que não se fazia boa literatura com bons sentimentos; propugna-se atualmente que a construção de sistemas econômicos sólidos se dá por meio de agentes econômicos egoístas e gananciosos, nos quais qualquer conces­são a valores éticos mais nobres implicaria a ruína financeira.

Desta feita, os economistas de Chicago retiraram todas as nuan- ças e matizes que caracterizavam o pensamento do fundador da Es­cola Clássica do pensamento econômico.

Os agentes econômicos deveriam tão simplesmente se com por­tar de forma gananciosa, procurando exclusivamente a sua própria vantagem pessoal e desconsiderando por completo qualquer preo­cupação com a sociedade em seu conjunto.

Toda a rica reflexão filosófica em torno dos conflitos entre o in­teresse próprio de cada indivíduo e o interesse geral da sociedade se­ria, pois, peremptoriamente resolvida: o nosso próprio egoísmo nos indicaria o norte para se atingir o bem comum! Haveria, portanto, a natural harm onia entre os dois tipos de interesses.

36 Apud FONSECA, E. G. da. Op. cit., p. 152.37 FONSECA, E. G. da. Op. cit., p. 152.

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Nessa ordem de ponderações, observava John Keynes antes mesmo da emergência da Escola de Chicago: “the political philoso- pher could retire in favour o f the business man - for the latter could attain the philosopher’s sum m um bonum by ju st pursuing his own private profif™.

2.4. OS LIMITES DO EGOÍSMO ÉTICO NO SISTEMA CAPITALISTA

Em que pesem os argumentos da Escola de Chicago, mesmo a economia de mercado, para que haja o seu funcionamento adequa­do e construtivo, não prescinde de normas éticas que, de alguma forma, mitiguem a busca desenfreada pelo interesse pessoal.

Conquanto o capitalismo possa se basear fundamentalmente na ambição de cada indivíduo para imprimir movimento à atividade econômica, ele precisa de um poderoso código de ética que vai m ui­to além da vã cobiça dos agentes econômicos.

Nas diversas transações comerciais efetuadas por eles, é indis­pensável um ambiente de confiança m útua, o qual permita que elas se desenvolvam de acordo com as expectativas das partes.39

38 KEYNES, J. M. Op. cit., p. 275.39 O ambiente de confiança entre os agentes econômicos como um fator que propi­

cia o crescimento da economia de um determinado país, tam bém não escapou da aná­lise dos próprios economistas clássicos. De acordo com John Stuart Mill: “A vantagem para a humanidade de se poder confiar um no outro penetra em cada fresta e inters­tício da vida humana: a econômica é talvez a m enor parte dela, mas mesmo ela é incal­culável”. É curioso observar que Mill destaca, dentre as conseqüências importantes de uma maior honestidade nos relacionamentos humanos, a diminuição dos gastos com os “exorbitantemente remunerados advogados”. “Para considerar apenas a parte mais óbvia do desperdício de riqueza para a sociedade provocado pela improbidade hum a­na [...] a profissão exorbitantemente remunerada dos advogados [...] é requerida e mantida principalmente pela desonestidade humana. A proporção que os padrões de integridade num a comunidade sobem, todas essas despesas diminuem. Mas essa redu­ção positiva de gastos seria de longe superada pelo imenso aum ento na produção de todos os tipos [...] e pelo aumento de ânimo, a sensação de poder e confiança, com o qual todos os tipos de trabalho seriam planejados e executados por indivíduos que sentissem que todos aqueles cuja colaboração é requerida fariam sua parte de boa-fé e

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Se todos os negociantes adotassem a defesa, sem os freios de um conjunto m ínim o de valores éticos, de seu próprio lucro, por meio de comportamentos oportunistas e desleais, haveria um a tamanha desconfiança entre eles, que o núm ero de negociações reduzir-se-ia significativamente e os procedimentos para sua realização tornar-se- iam muito burocratizados.

O fator intangível da confiança m útua se torna ainda mais rele­vante à vista da crescente inform alidade que caracteriza as t r a n ­sações comerciais contemporâneas, a exemplo dos negócios feitos via internet ou telefone.

Ademais, os modernos contratos empresariais, tais como a fran­quia, a transferência de tecnologia e as chamadas jo in t ventures, são de execução diferida, isto é, prolongam-se no tempo, o que os dis­tingue sobremodo do caráter instantâneo da mera compra e venda mercantil de artigos simples de outrora.

Este prolongamento 1 10 tempo aviva ainda mais a indispensabi- lidade da confiança mútua, dado o maior período de tempo de rela­cionamento entre as partes. Existe, ainda, um grande componente de colaboração m útua nestes contratos, o que torna extremamente importante um com portam ento leal de cada parte, para que haja o fiel atendimento do seu objeto contratual.

O caráter imprescindível da ética nas relações econômicas é de tal ordem, que ela encontrou a sua expressão jurídica em preceitos e institutos dos diferentes ramos do direito privado.

Em diversos ordenamentos jurídicos nacionais, o princípio da boa-fé objetiva deve reger a contratação entre as partes.

Naquela que talvez seja a mais ambiciosa e bem -sucedida tentativa de harm onizar o direito contratual, os Princípios da Uni- droit relativos aos C ontratos Internacionais, os ditames da boa- fé objetiva e da negociação eqüitativa (fa ir dealing) são explicita-

de acordo com seus contratos. A ação conjunta é possível apenas na medida em que os seres hum anos podem contar uns com os outros”. Apud FONSECA, E. G. da. Op. cit., p. 170-1.

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m en te enunciados40 e considerados um a de suas principais dis­posições.'11

A posição cimeira que essas normas jurídicas ocupam nos Prin­cípios da Unidroit não é significativa apenas em razão de eles objeti­varem expressar conceitos jurídicos presentes em grande parte dos ordenamentos jurídicos nacionais, mas também em virtude de seu escopo principal ser o de formular um corpo de regras jurídicas mais consentâneo com as especificidades e as necessidades do comércio sobre fronteiras.42

O ordenamento jurídico brasileiro também não ficou indiferente ao preceito da boa-fé objetiva nos liames contratuais. O novo Código Civil consagrou-o definitivamente, ao estipular, em seu art. 422, que “os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do con­trato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”.

Uma outra área do direito privado, em que a necessidade da observância dos deveres de probidade e honestidade se faz sentir de maneira muito pronunciada, é a do direito societário. Desde há m ui­to 13, tem-se apontado a separação entre a propriedade do capital da

10 “ARTICLE 1.7 (Goodfaith and fa ir dealing) (1) Each part m ustact in accordance with goodfaith and fa ir dealing in international trade. (2) The parties tnay not exclude or limit this du ty” Disponível em: <URL: http://vvww.unidroit.com>.

41 Nos próprios comentários ao artigo 1.7 dos Princípios da Unidroit, torna-se evi­dente essa relevância dos ditames da boa-fé e da negociação eqüitativa: “ There are a num - her o f provisions throughout the different chapters o f the Principies which constitute a direct or indirect application o f the principie o f goodfaith and fair dealing. See, for instance, Arti- cles2.4(2)(b)y 2.15,2.16,2.18,2.20,3.5,3.8,3.10,4.1(2), 4.2(2), 4.6,4.8,5.2,5.3,6.1.3,6.1.5, 6.1.16(2), 6.1.17(1), 6.2.3(3)(4), 7.1.2, 7.1.6, 7.1.7, 7.2.2(h)(c), 7.4.8 and 7.4.13. This means that good faith and fair dealing tnay be considered to be one o f the fundamental ideas under- lying the Principies l Disponível em: <URL: http:// www.unidroit.com>.

42 É o que dispõe o preâmbulo dos Princípios da Unidroit “For the most part the Unidroit Principies reflect concepts to be found in many, i f not ali, legal systems. Since however the Principies are intended to provide a system o f rules especially tailored to the needs o f international commercial transactions, they also embody what are perceived to be the best solutions, even ifstill notyetgenerally adoptecf. Disponível em: <URL: h ttp :// www. un idroi t. co m >.

43 A obra considerada seminal sobre este assunto é o livro The m odem Corpora­tion and private property de autoria de Adolf A. Berle e Gardner C. Means (Nova York, Macmülan, 1932).

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empresa e a sua gestão. Na grande sociedade anônim a contem po­rânea, não são os acionistas pulverizados, mas os executivos assa­lariados, ao menos em grande parte dos casos, que acabam por ter o poder de direcionar as atividades das macroempresas.

Daí a fundamental relevância da mútua confiança e lealdade en ­tre os administradores e acionistas.

Essa importância foi recentemente realçada pela ocorrência da maior concordata da história dos Estados Unidos, a da empresa Enron. Uma das mais admiradas empresas do m undo antes da eclosão desse escândalo, a Enron utilizou-se de artifícios contábeis para inflar arti­ficialmente os seus lucros. Detentores das chamadas opções de compra de ações, os administradores dessa empresa exerceram-na no perío­do em que os seus lucros e sua avaliação estavam superestimados, em virtude do uso destes artifícios contábeis.

No afã de garantir expressivos rendimentos com o exercício des­sas opções de compra, os aludidos administradores ignoraram fatores como a credibilidade da companhia e o seu interesse de longo prazo. Num determinado momento, puseram-se a descoberto as fragilidades dessa empresa e, conseqüentemente, sua concordata foi decretada, causando imensos prejuízos aos seus acionistas e empregados.

De tal magnitude foi a crise provocada pelo escândalo Enron no mercado de capitais norte-americano, que o liberal hebdomadário The Economist defendeu reformas no maior mercado de valores mobiliá­rios do mundo. Numa reportagem com o título significativo de The Value o fT ru s t ', a revista britânica salientou os efeitos perniciosos que a crise de confiança em Wall Street pode produzir para o capitalismo norte-americano, no qual as empresas dependem essencialmente do mercado de capitais para financiar os seus investimentos.

Ressalte-se que o semanário conservador não clamou por um com portam ento mais ambicioso ou ganancioso das empresas e pes­soas que atuam no mercado de capitais, mas antes por um com por­tamento probo e leal, que recupere a confiança dos investidores.

44 The Economist, 6.6.2002. p. 27.

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Ainda à época da descoberta das fraudes contábeis, o presiden­te do Federal Reserve estadunidense (a instituição equivalente ao Banco Central brasileiro nos Estados Unidos), o republicano Alan Greenspan, condenou enfaticamente a ganância infecciosa (an infec- tious greed) que havia contaminado o m undo dos negócios.45

Neste célebre depoim ento ao Senado dos Estados Unidos, Greenspan, um fervoroso adepto do livre mercado, assinalou o pa­pel primordial da confiança e da transparência no mercado de capi­tais. Na avaliação de Greenspan, o mercado requer, para o seu ade­quado funcionamento, informações claras e precisas, transmitidas de forma fiel e leal pelos balanços das companhias. De acordo com ele: “market participants m ust have confidence that our predominately voluntary system o f exchange is transparent and fair”46.

Também no âmbito do regime da concorrência no mercado, a busca sem qualquer limite ético do próprio lucro produz efeitos pre­judiciais para o seu funcionamento.

Empresários que se utilizam das marcas ou outros sinais distin­tivos de outros, a fim de enganar o consum idor e tirar vantagem indevida da reputação destes últimos, acabam por desestabilizar o mercado. Em um ambiente em que este tipo de comportamento prevalece, não há incentivos para que os agentes econômicos desen­volvam as suas atividades, uma vez que seus esforços podem ser facilmente apropriados pelos seus concorrentes (free-riding, na ter­minologia anglo-saxônica). Daí a indispensabilidade de toda uma disciplina da concorrência desleal, positivada inclusive no direito brasileiro e em tratados internacionais.

A esse respeito, é importante frisar que, segundo os próprios economistas neoliberais, é de suma relevância garantir que os capi­

15 “An infectious greed seemed to grip much of our business community.” GREENSPAN, A. “Testimony of Chairman Alan Greenspan”. Federal Reserve Board’s semiannual monetary policy report to the Congress - Before the Committee on Bank­ing, Housing, and Urban Affairs, U.S. Senate July 16, 2002, disponível em: <URL: http://www.federalreserve.gov/boarddocs/hh/2002/july/testimony>.

46 GREENSPAN, A. Op. cit.

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talistas usufruam dos resultados de seus empreendimentos, no regi­me de mercado. Somente a garantia da plena fruição destes frutos ativaria a força motriz do sistema capitalista, a iniciativa e o espírito empreendedor do empresariado. Este é o raciocínio por trás da defe­sa de impostos baixos, da sua não-progressividade, da plena defesa da propriedade privada.

De acordo com essa argumentação, a tributação excessiva sobre lucros tolheria valiosos empreendimentos, já que o empresariado não seria instigado a investir e a inovar no campo econômico, haja vista a impossibilidade de usufruir de boa parte de seus lucros.

O que os defensores do egoísmo ético parecem negligenciar é justamente o fato de que a plena fruição dos resultados da atividade econômica depende sobremodo do respeito à lealdade na concor­rência. De muito pouco adiantarão investimentos de monta de um determinado comerciante, para angariar um a substancial clientela e desenvolver uma marca de renome do mercado, se um concorrente, de m odo desleal, utilizar-se desta marca, desviando a freguesia ori- ginariamente criada pelo primeiro empresário. Nesse caso, haveria substanciais desestímulos para os investimentos privados.

A fundamental importância de instituições e códigos de condu­ta para o desenvolvimento da economia de mercado é, na maioria das vezes, subestimada quando ela está presente. Conforme aponta Sen: “a basic code ofgood business behavior is a bit like an oxygen, we take an interest in its presence when it is absent”'7.

Desse modo, a extraordinária importância de um código m íni­mo de ética entre os agentes econômicos e de um arranjo institucio­nal que propicie a sua atuação adequada dentro do mercado foi recentemente evidenciada pelas transformações por que passaram os sistemas econômicos dos ex-Estados comunistas.

A maior parte dos mencionados Estados adotou o chamado tra­tamento de choque, sugerido pelos organismos internacionais. Assim, em um período muito curto, economias que há décadas funciona­

47 SEN, A. Development as freedom. Op. cit., p. 264.

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vam sob o regime centralizado passaram a ser regidas pelo merca­do.'18 Todavia, em razão de essas economias terem funcionado sob o planejamento durante vários decênios, havia a total ausência dos re­feridos códigos de conduta e instituições. Com efeito, a burocracia estatal não foi substituída por empreendedores dinâmicos, mas por negociantes mafiosos, cujo único interesse era a busca sem escrúpu­los do próprio lucro.

A monumental queda do Produto Interno Bruto (p ib) que estes Estados sofreram19 foi uma demonstração cabal de que mesmo o ca­pitalismo, para prosperar, não prescinde de limites éticos à busca

48 O historiador Eric J. Hobsbawn, em seu livro Era dos extremos - o breve século xx , assim descreve o processo de reformas econômicas do principal Estado ex-comu­nista, a Rússia: “Em termos econômicos, o sistema devia ser completamente pulveriza­do pela total privatização e pela introdução de um mercado 100% livre, imediatamente e a qualquer custo. Propuseram-se planos dramáticos para fazer isso em questão de semanas ou meses (havia um ‘programa de quinhentos dias). Essas políticas não se baseavam em algum conhecimento de livres mercados ou economias capitalistas, embora fossem vigorosamente recomendadas por economistas e especialistas financei­ros americanos e britânicos visitantes, cujas opiniões, por sua vez, não se baseavam em algum conhecimento do que de fato se passava na economia soviética. Ambos estavam corretos ao supor que o sistema existente, ou melhor, enquanto existia, a economia de comando, era muito inferior a economias baseadas primariamente na propriedade e empresa privadas, e que o velho sistema, mesmo numa forma modificada, estava con­denado. Contudo, deixavam de enfrentar o verdadeiro problema de como uma econo­mia centralmente planejada seria, na prática, transformada num a ou noutra versão de economia dinamizada pelo mercado. Em vez disso, repetiam demonstrações de primei­ro ano de curso de economia sobre as virtudes do mercado 110 abstrato. Diziam que ele iria encher automaticamente as prateleiras das lojas com produtos retidos por produ­tores, a preços acessíveis, assim que se deixasse em liberdade a oferta e a procura. A maioria dos resignados cidadãos da URSS sabia que isso não ia acontecer, e depois que ela deixou de existir, quando se aplicou por um breve momento o tratamento de cho­que da libertação, de fato não aconteceu. Além disso, nenhum observador sério do país acreditava que 110 ano 2000 o Estado e o setor público da economia soviética não seriam ainda substanciais. Os discípulos de Friedrich Hayek e Milton Friedman conde­navam a própria idéia de uma tal economia mista. Não tinham conselho a oferecer sobre como ela devia ser operada, ou transformada”. HOBSBAWN, E. J. Era dos extre­mos - 0 breve século xx - 1914-1991. São Paulo, Companhia das Letras, p. 476-7.

49 “Following the collapse o f communism, every formerly communist country in East Europe, including Rússia, suffered severe recession, deindustrialization, and economic chaos; by one estimate, recession reduced by one quartcr the national product o f Eastern Europe.” GILPIN, R. Op. cit., p. 334.

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individual do próprio interesse. Os economistas engenheiros dessas organizações internacionais desprezam o fato de que os seus modelos econômicos perfeitos não poderiam funcionar, se não se sedimentas­sem nesses Estados uma certa cultura empresarial e instituições, as quais garantissem a observância de um mínimo de regras.

Ignorou-se, por completo, a sábia advertência de Celso Furtado, de acordo com a qual ele nunca havia compreendido a existência de um problema estritamente econômico.50

Durante o período de implementação das reformas, os seus for- muladores não desceram ao plano do concreto. Não foram, assim, objeto de adequado estudo a história própria daqueles Estados, a mentalidade de grande parte da população ainda arraigada ao para­digma do planejamento estatal, o conjunto de instituições que ainda regravam a organização econômica daquelas sociedades e as inevi­táveis resistências e problemas advindos da transição de um m ode­lo econômico para outro.

Incorreu-se no erro, associado aos economistas de tradição neo- clássica, de conceber as atividades econômicas em um sistema pura­mente abstrato, destituído de história e geografia.51

Em palavras mais precisas, os funcionários desses organismos internacionais não atentaram para a completa ausência de cultura empresarial desses Estados, do seu correspondente código de ética m ínim o e de instituições que garantissem o respeito a essas regras, sem os quais o mecanismo de mercado pode produzir conseqüên­cias catastróficas. Caiu-se na tentação de, precipitadamente, simpli­ficar-se e generalizar-se, a que havia advertido um outro economista da Escola Clássica, Thomas Malthus.52

50 FURTADO, C. O capitalismo global. 3. ed. São Paulo, Paz e Terra, orelha do livro.51 GILPIN, R. Op. cit., p. 103.32 A este respeito, afirma o economista britânico: “Diz-se, e talvez com razão, que as

conclusões da economia política têm mais da certeza das ciências mais exatas do que aquelas da maioria dos outros ramos do conhecimento humano. Não obstante, nós cai­ríamos em sério erro se supuséssemos que quaisquer proposições cujos resultados prá­ticos dependem da ação de um ser tão variável quanto o homem, e das qualidades de um comportamento tão variável quanto o solo, poderão algum dia admitir o mesmo tipo de

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Sobretudo o caso da Rússia, que de grande potência industrial em decadência se tornou um Estado mendicante de ajuda exterior, comprovou a pertinência da observação de Joan Robinson: “uma sociedade constituída de egoístas irrefreados se espatifaria em peda­ços”33. Em suma, mesmo no sistema puro de mercado, vícios priva­dos podem significar vícios públicos, se determinados parâmetros morais não forem seguidos.

Outro aspecto desse debate freqüentemente posto de lado é a exis­tência de vários modelos econômicos dentro dos assim chamados Estados capitalistas.

Há vários Estados que adotaram o capitalismo com sucesso e os quais fogem, em larga medida, do capitalismo anglo-saxônico, em que os agentes privados visam a tão simplesmente elevar ao máximo os seus lucros, dentro de determinados padrões éticos mínimos.

Talvez os mais notáveis contrapontos ao capitalismo à americana sejam o Japão e os Estados do Sudeste Asiático.34 Muito embora gran­de parte desses Estados tenha enfrentado graves problemas econômi­cos nos últimos anos, é inegável o seu extraordinário progresso mate­rial alcançado em um período relativamente curto.

Diversos analistas têm posto em relevo o papel do ethos asiáti­co, da chamada ética confuciana55, no desenvolvimento das econo­

prova, ou levar a conclusões tão seguras quanto aquelas que se relacionam a figuras geo­métricas e números. [...] Seja quando nos voltamos para as qualidades do homem, ou da terra que ele está destinado a cultivar, somos compelidos a reconhecer que a ciência da eco­nomia política reveste-se de uma semelhança mais próxima da ciência moral e política do que a matemática”. (grifo nosso). Apud FONSECA, E. G. da. Op. cit., p. 165-6.

53 Apud FONSECA, E. G. da. Op. cit., p. 144.54 Um outro contraponto não menos relevante é a chamada economia social de

mercado adotada pela Alemanha, considerada um arquétipo do Estado de Bem-Estar Social implementado em vários Estados da Europa. Uns dos aspectos mais significati­vos deste modelo são os amplos benefícios e direitos garantidos pelo Estado Previdên­cia aos indivíduos economicamente vulneráveis, a ênfase na responsabilidade social das grandes corporações e a gestão de empresas compartilhada entre capital e traba­lho. GILPIN, R. Op. cit., p. 168-74.

55 Machio Marishima, em seu estudo acerca do papel da ética confuciana no de­senvolvimento econômico japonês, destacou os seguintes elementos que a compõem:

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mias desses Estados. Tal ethos, muito longe de pregar o egoísmo ético, enfatiza a m útua colaboração e o desenvolvimento de ativida­des econômicas não movidas pelo lucro. Nessas sociedades, o inte­resse próprio como a motivação única do agir hum ano é percebido como algo rasteiro.56

Outra característica digna de nota do modelo japonês consiste na freqüente subordinação da busca da eficiência econômica à eqüidade social e à harmonia das relações sociais. Uma manifestação im portan­te dessa subordinação são os regulamentos do governo japonês que protegem a rede de pequenos comerciantes do setor varejista.

Conquanto essa proteção seja contraproducente do ponto de vis­ta estreito da pura eficiência econômica, os japoneses a adotam sob o fundamento da manutenção dos laços sociais entre esses pequenos empresários e as comunidades em que atuam.

O modelo japonês de capitalismo não se amolda de tal m anei­ra ao paradigma norte-americano, que o conservador jornal norte- americano The Wall Street Journal chegou a afirmar, ironicamente, que “o japão era a única nação comunista que funcionava”57.

À vista de todo exposto, ainda que se adote o posicionamento de que a economia de mercado é o melhor sistema econômico para a sociedade, a assertiva “vícios privados, benefícios públicos” padece­ria de enormes limitações.

Em primeiro lugar, em razão da imprescindibilidade de normas éticas que mitiguem o egoísmo capitalista, para que as próprias tran­sações comerciais ocorram de forma fluida.

(a) valor social da educação; (b) lealdade aos governantes; (c) submissão dos filhos aos pais; (d) boa-fé em relação aos amigos; (e) respeito aos mais velhos; (f) frugalidade. Dentre os efeitos desses valores esta riam: (a) sistema de promoção por idade nas empre­sas; (b) emprego por toda a vida (ao menos nas grandes corporações); (c) nacionalismo e anti-individualismo. À vista desta enumeração, não se pode deixar de notar um certo viés autoritário nesses valores. Todavia, o que importa aqui enfatizar é o caráter anti- individualista desta ética, o qual não se coaduna de modo algum com o paradigma do egoísmo ético. Ainda assim, o capitalismo e o progresso econômico floresceram de forma extraordinária nestes países. Apud FONSECA, E. G. da. Op. cit., p. 223-4.

56 Apud FONSECA, E. G. da. Op. cit., p. 223-4.57 Apud SEN, A. Development asfreedom . Op. cit., p. 266.

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A segunda razão desta flagrante insuficiência do egoísmo ético advém da existência de diversos modelos de economias de mercado pujantes economicamente, as quais enaltecem valores contrários ao egoísmo.

Caso se fosse além deste raciocínio e se apontasse as grandes fa­lhas do capitalismo mundial, especialmente a sua absoluta incapa­cidade de traduzir a sua exuberante riqueza material em benefícios para todos os membros do gênero hum ano58, as limitações do egoís­mo ético tornar-se-iam ainda mais evidentes.

Todavia, essa questão se reporta aos critérios de avaliação da rea­lização social de um a sociedade, os quais serão abordados na segun­da parte deste artigo.

3. A ÉTICA E OS PARÂMETROS DE MEDIDA DAS REALIZAÇÕES SOCIAIS: AS FINALIDADES ÚLTIMAS A SEREM PERSEGUIDAS PELAORGANIZAÇÃO ECONÔMICA

3.1. O FIM DA INDAGAÇÃO ÉTICA DAS QUESTÕES ECONÔMICAS

É conhecida a afirmação consoante a qual o comunismo é m e­lhor do que o capitalismo, nas intenções; enquanto esse é considera­do melhor do que aquele, nos resultados.

Embora o fracasso do cham ado socialismo real tenha referen­dado, em grande medida, essa assertiva, é indispensável haver um

ss Em editorial datado de 24 de novembro de 1993, o jornal britânico Financial Times afirmou que o capitalismo mundial era “o sistema de criação de riqueza [...] hoje encarado em toda parte como o mais efetivo que a humanidade jâ criou”. Contu­do, o próprio diário europeu reconheceu que: “Continua sendo, no entanto, uma força imperfeita [...] Cerca de dois terços da população mundial ganharam pouca ou nenhum a vantagem com o rápido crescimento econômico. No m undo desenvolvido, o mais baixo quartil de assalariados testemunhou mais um respingar para cima que um respingar para baixo”. Apud HOBSBAWN, E .). Op. cit., p. 552.

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escrutínio crítico com relação aos resultados a que essa frase faz alusão.

O principal argumento dos defensores do capitalismo seria a opulência econômica engendrada por este sistema, isto é, o nível de riqueza material por ele produzido, comumente traduzido naquele que talvez seja o principal indicador macroeconômico, o PIB.59

A premissa subjacente a este argumento, a qual passa desaperce­bida na maior parte das vezes, consiste na afirmação de que o único parâmetro para julgar as realizações de um a determinada sociedade é a quantidade de riqueza material por ela gerada.

Do mesmo m odo que, no plano individual, o acúmulo de rique­zas pessoal tornou-se sinônimo de um a vida virtuosa; sob o ponto de vista do conjunto da sociedade, uma sociedade que produza uma substancial soma de riquezas materiais tem sido identificada como sendo uma sociedade sadia.

Na linha desta argumentação, a finalidade última da organiza­ção social seria a produção de riqueza, e caberia à sociedade imple­mentar o modo de produção mais idôneo para se atingir este fim.

Não menos comum é a prática de se fazer a análise do progres­so de um determinado Estado, por meio do cálculo do crescimento anual do pib.

Na esteira deste pensamento, avaliam-se o grau e o ritmo de desenvolvimento de um Estado por parâmetros puramente macro­econômicos.

59 O próprio Karl Marx, argumentam os liberais, teria reconhecido a capacidade do capitalismo de produzir riquezas: “Em seu domínio de classe que mal chega a um século, a burguesia criou forças produtivas em massa, mais colossais do que todas as gerações passadas em conjunto. Subjugação das forças da natureza, maquinaria, apli­cação da química na indústria e na agricultura, navegação a vapor, estradas de ferro, telégrafos elétricos, arroteamento de continentes inteiros, canalização dos rios para a navegação, populações inteiras como que brotando do chão - que século passado poderia supor que tamanhas forças produtivas estavam adormecidas no seio do traba­lho social!”. MARX, K.; ENGELS, F. “O Manifesto Comunista”, Revista do Instituto de Estudos Avançados da USP - Dossiê 150 anos do Manifesto Comunista, v. 12, n. 34, set.- dez./1998. p. 12-3.

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Esses índices e estatísticas macroeconômicos são divulgados e aceitos, sem que haja uma verdadeira discussão acerca do que eles, de fato, retratam e significam. Dessa maneira, não se instaura um diálogo público sobre se este crescimento ou se estas riquezas estão efetivamente repercutindo favoravelmente nas condições de vida da população.

Sob esse enfoque de análise, avaliam-se as realizações sociais por meio de grandezas econométricas, desprezando-se a natureza essen­cialmente ética da avaliação das realizações sociais, porquanto ela analisa até que ponto uma determinada sociedade alcançou a finali­dade última que deve nortear toda a sua organização.

Ao se incorrer nesse equívoco, toda a complexidade e riqueza do juízo ético reduzem-se ao reles cálculo de grandezas e quantidades.60

Ademais, um dos assuntos mais recorrentes na mídia e no meio político do Brasil e de outros Estados é a necessidade de se fazerem reformas e, por diversas vezes, sacrifícios, em nome da estabilidade da moeda, do equilíbrio das contas públicas. Durante o regime mili­tar, o discurso vigente era de que todos os sacrifícios deveriam ser feitos, inclusive a submissão ao autoritarismo, em prol do cresci­mento econômico, ou como afirmavam os defensores desse regime, a fim de se atingir o desenvolvimento econômico.

60 Platão já salientava a natureza específica e complexa do juízo ético, o qual não po­de ser feito, de forma nenhuma, por meio do mero cálculo de grandezas e quantidades: “Sócrates - Mas quais são as divergências que causam esses ódios e essas cóleras, estima­do amigo? Raciocinemos. Se nós, por exemplo, tivéssemos alguma diferença a respeito de qual de duas quantidades é maior, seriamos por essa razão obrigados a nos transfor­mar em inimigos e encolerizar-nos um com o outro? Ou não conviria que efetuássemos o cálculo para eliminar a diferença? Eutífron - Que efetuássemos o cálculo. Sócrates - A mesma coisa aconteceria se discutíssemos a respeito de duas grandezas, para saber qual a maior e qual a menor? A divergência seria eliminada por meio da medição delas? Eutrífron - Evidente. Sócrates - Então, qual seria o assunto que, por não ser passível de decisão, causaria entre nós inimizade e nos tornaria reciprocamente irritados? Pode ser que não esteja a teu alcance, mas considera, pelo que eu estou dizendo, se se trata do justo e do injusto, do belo e do feio, ou do bom e do mau. Com efeito, não é por causa disso que, justamente devido às nossas diferenças e por não conseguir uma decisão unânime, nos convertermos em inimigos uns dos outros, quanto chegamos a sê-lo tanto tu como eu e todos os outros homens”. PLATÃO. Eutífron. São Paulo, Nova Cultural, 1999. p. 42-3.

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Talvez a mais marcante característica de todos estes discursos seja o apriorismo do delineamento dos objetivos que a sociedade deve buscar. Desse modo, impõem-se tais fins, já de antemão fixa­dos, incumbindo aos economistas, cujo enfoque é o da economia como engenharia, escolher os meios mais adequados para a sua per- secução e, à sociedade, aceitar essa eleição.

Dessa feita, os economistas, falando em nome da ciência econô­mica e de suas supostas leis inexoráveis, clamam freqüentemente pela implementação de ajustes fiscais, de políticas recessivas, com vistas ao atendimento a esses objetivos já definidos.

Ocorre que, como essas finalidades já estão plenamente delinea­das previamente, o que esses técnicos estão im pondo à sociedade não são leis no seu sentido científico, vale dizer, regularidades de- monstráveis dos fenômenos econômicos e relações de causa e efeito, mas, sim, leis no sentido ético ou normativo, já que se estabelecem implicitamente bens ou objetivos a serem alcançados.

Assim, não se questiona que tipo de opulência material, de esta­bilidade, de eficiência ou de crescimento, deve-se alcançar; não se pergunta quais são os benefícios que a população, particularmente a menos favorecida, terá, uma vez atingidos esses objetivos; quase não é objeto de indagação a forma pela qual as reformas são implemen­tadas, se elas mesmas não estão prejudicando outros fins e objetivos igualmente ou até mesmo mais valiosos.

Com efeito, num passado não tão longínquo, regimes autoritá­rios e opressores foram justificados em nome de um crescimento econômico extraordinariamente excludente; ou, para usar um epi­sódio mais recente, reduções substanciais dos gastos governamen­tais com saúde e educação são feitas sob o pretexto de se m anter a inflação baixa ou o equilíbrio fiscal, sem que alternativas como uma maior tributação sobre a propriedade e a renda sejam colocadas.

O tipo de debate que se instaurou no Brasil pode ser atribuído, de certa maneira, ao esvaziamento do debate ético sobre os escopos que a política econômica deve perseguir, acerca do sentido maior de todo o conjunto do sistema produtivo.

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Os fins da política econômica, como estabilidade, crescimento ou riqueza material, tornaram-se objetivos em si mesmos. Assim sendo, a sociedade se submeteu a valores puramente econômicos. Ignora-se, por completo, que o objetivo último da política econômi­ca é o de propiciar à população condições de vida mais dignas.

Nesta vertente do pensamento econômico, perde-se de vista a estreita relação que deve existir entre a riqueza material e as possibi­lidades que ela deve abrir para os indivíduos e para o conjunto da sociedade humana, entre “our economic wealth and our ability to live as we would like”61.

À luz da realidade brasileira, essa crítica a uma demasiada valo­rização das grandezas macroeconômicas adquire particular im por­tância. Apesar de o Brasil ostentar indicadores macroeconômicos bastante significativos, o desempenho brasileiro no que tange aos indicadores sociais é notoriamente pífio e até mesmo pior do que o de Estados cuja renda per capita é bastante inferior à brasileira.

Apenas para citar uma manifestação desse vexatório contraste, a despeito de o Produto Nacional Bruto ( p n b ) brasileiro per capita ter sido seis vezes superior ao do Sri Lanka ao final da década de 1980, o recém-nascido médio da ilha asiática vivia vários anos a mais do que o brasileiro médio. No que toca ao analfabetismo, a taxa brasi­leira era quase o dobro do índice do Estado asiático. Não admira, pois, que o historiador britânico Eric H. Hobsbawn tenha qualifica­do o Brasil como “um m onum ento à negligência social”62.

Uma outra ilustração elucidativa de como a riqueza material constitui um parâmetro extremamente restrito para se avaliar o grau de realização social de uma sociedade é justamente a maior potên­cia econômica do planeta, os Estados Unidos.

Não obstante todo o esplendor material da sociedade estaduni­dense, determinados indicadores sociais desse Estado são inferiores aos de Estados do Terceiro Mundo. A expectativa de vida de um adul­

61 SEN, A. Developtnent as freedom. Op. cit., p. 13.62 HOBSBAWN, E. J. Op. cit., p. 555.

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to afro-americano, por exemplo, chega a ser menor do que a de um chinês, ainda que a renda daquele seja substancialmente superior à renda deste.63 A razão dessa profunda incongruência reside não só nos índices de violência estadunidenses, mas também na ausência de um sistema de saúde que garanta a todos os norte-americanos o direito à assistência médica.6'1 Ora, diante dessas flagrantes iniqüida- des, um a pergunta óbvia interpela imediatamente nossas consciên­cias: de que adianta tanta riqueza material, se o mais elementar dos direitos humanos, o pressuposto do exercício de todos os demais direitos e da própria fruição desta mesma riqueza, é, em um certo sentido, negado?

3.2. O ENFOQUE PURAMENTE ECONÔMICO DOS PROBLEMAS SOCIAIS

De modo análogo ao fenômeno acima descrito, qual seja, o fato de os padrões para se medir a realização social de uma dada socie­dade terem se tornado exclusivamente monetários e financeiros, os problemas sociais enfrentados pelas sociedades passaram a ser vistos sob um ângulo puramente econômico, restringindo-se a sua análise a questões como renda e produtividade.

Um dos mais eloqüentes sintomas dos sérios limites a que está sujeito este tipo de análise estritamente econômica refere-se às altas taxas de desemprego presentes tanto em países desenvolvidos quan­to em países em desenvolvimento.

63 SEN, A. Development asfreedom. Op. cit., p. 21. Há de se assinalar também os crescentes índices de concentração de renda da sociedade estadunidense. O notável cres­cimento econômico dos Estados Unidos na última década ocorreu de forma extrema­mente iníqua: “Whereas medium family iticome increased lOpercentbetween 1973and 1999, income in the highest bracket (95th percentile) grew more than n third while income in the lowestpercentile incomegrouping (20percentile) remained virtually unchanged, especially for women. The real earnings o f many low-wage and middle-class workers stagnated or experienced only modestgains, while the wealthier 20 percent o f American families gained greatly. In brief after the 1970$, the standard o f living o f many American workers grew very slowly, while income inequality increased considerably". GILPIN, R. Op. cit., p. 203.

64 SEN, A. Development as freedom. Op. cit., p. 98.

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Quando dos debates públicos sobre este problema, a ênfase recai exclusivamente sobre a perda da renda pessoal que o desemprego acarreta, vale dizer, a perda do salário.

A se adotar o enfoque puramente financeiro no estudo das limita­ções e dos sofrimentos a que o desempregado está submetido, o mero pagamento de um seguro-desemprego digno solucionaria o problema.

Na linha desse raciocínio, muitos dos Estados europeus já teriam dirimido esta questão, por meio da simples concessão de benefícios pecuniários razoáveis do Estado Providência ao desempregado.

Sucede, porém, que esta perspectiva de análise é de um reducio- nismo deveras perigoso. Além de ser privado do recebimento de um salário, o desempregado pode perder a motivação para o trabalho, a própria auto-estima, a autoconfiança e o respeito próprio.

A pessoa desempregada se vê excluída do seu sonho de se reali­zar profissionalmente, de se sentir útil para a sociedade, de possuir uma vida social no ambiente de trabalho, de ter aquilo que Sen cha­m ou de fulfilling occupation.65

Por esses motivos, encarar o problema do desemprego sob o seu aspecto puramente monetário é desprezar algumas das mais fortes dimensões da condição humana: os sentimentos, as emoções, os so­nhos e as aspirações de cada pessoa.

Uma outra ilustração não menos relevante das falhas do enfo­que puramente econômico no diagnóstico dos problemas sociais reporta-se à questão educacional.

Nas últimas décadas, o acento tônico da análise econômica deslo- cou-se do capital físico para o que se denominou de capital humano. Desse modo, o processo de aprendizado, a formação e o desenvolvi­mento das habilidades do trabalhador passaram a ser vistos como fatores fundamentais para a expansão da produtividade e, por conse­guinte, para o crescimento econômico da sociedade.

De fato, a história econômica dos Estados, especialmente a expe­riência dos países emergentes do Sudeste Asiático e o Japão, tem mos­

63 SEN, A. Development as freedom. Op. cit., p. 94.

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trado o fator educacional como sendo uma extraordinária força m o­triz do crescimento econômico.

Não se quer aqui questionar a íntima relação existente entre essas duas coisas. O que se deve criticar incisivamente é o foco de análise adotado pelos teóricos do chamado capital humano. Sob o prisma desses teóricos, o ser humano, tal como o capital físico, é encarado apenas sob o ponto de vista de seu potencial produtivo, vale dizer, como mero fator de produção.66

Desta feita, o ser hum ano e a sua formação deixam de ser fins em si mesmos, e tornam-se meros instrumentos para o acréscimo da produção material.

Caso se fosse adotar, ao pé da letra, este enfoque, a educação tor- nar-se-ia algo comparável ou equivalente ao aperfeiçoamento de um aparelho mecânico. Desta feita, da mesma forma que o aperfeiçoa­mento de um a maquinaria tem a função de melhorar o uso eficien­te do capital físico, a educação deveria se adstringir a propiciar uma maior produtividade da utilização do capital humano. Essa visão sobre o processo educacional amoldar-se-ia perfeitamente à descri­ção de Karl Marx da formação cultural burguesa, segundo a qual ela era direcionada para a máquina.67

Nessa restrita percepção das funções a serem desempenhadas pelo processo educacional, desconsideram-se os incomensuráveis be­nefícios que ele traz, no sentido de propiciar ao indivíduo uma partici­pação mais ativa e crítica no debate sobre a condução da coisa pública.

66 Brigitte Stern identifica este enfoque puramente econômico de análise do ser hum ano como um dos grandes problemas a serem enfrentados no novo milênio que se inicia: “One tnay resent humans being analyzed solely with regard to their economic capability which might be one o f the main problerns o f the twenty-ftrst-century civiliza- tion. I cannot help bu t be troubled, for exampley when I read the following analysis: ‘Indeed the message that open markets lead to gains in ciggregate welfare... does n o tfit well with analysis suggesting that the earnings o f workers in new jobs do not quickly regai n their prévious levei, especially when a change ofindustry is required and existing stocks of human capital become obsolete’”. (grifo da autora). STERN, B. “Hovv to Regulate Globalization”, In: BYERS, M. (ed.) The Role o f Lavv in International Politics. Oxford, Oxford University Press, 2000. p. 249-50.

67 MARX, K.; ENGELS, F. Op. cit., p. 24.

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Do mesmo modo, ignoram-se os seus efeitos sobre o despertar e o desenvolver das diferentes habilidades e aptidões que são próprias de cada ser humano.

Habilidades e aptidões essas, faz-se imperioso frisar, que podem ser bem diferentes daquelas ligadas diretamente à produção material de riqueza. Por meio do processo educacional, a pessoa estará mais apta a apreciar todas as grandes obras de arte do engenho humano: a literatura, as artes plásticas, o folclore de sua região, a cultura de outros povos etc.

O ser humano, por meio de uma educação integral, torna-se ca­paz de adquirir o que os pensadores humanistas chamavam de huma- nitas, isto é, tornar-se um homem na acepção plena e completa da palavra, combinando de maneira estreita um ideal de conhecimento e de ação.68 Nessa ordem de idéias, a educação seria essencialmente um poderoso instrumento para a formação da pessoa humana em sua totalidade (a Bildung, na língua germânica), para “o desabrochar do potencial hum ano através da autônom a construção e amadureci­mento da personalidade de cada indivíduo”69.

De resto, cumpre salientar que este contraste entre os objetivos que a educação deve almejar, num a e noutra concepção, está longe de ser algo puramente teórico ou destituído de conseqüências práti­cas, além de se revestir de um a marcante atualidade.70

68 “L'humaniste sera le ‘maestro di hum an itàce lu i qui enseigne, qui aime ou qui pratique les ‘studia humanitatis’ ou ‘les litterae humaniores' (encore appelées ‘bonae litterae’): ces ‘humanités’ représentaient uu ensemble de disciplines dotit la base était constitué par la grammaire, la rhétorique, le com m entaire des auteurs (poètes e prosateurs), et dont la finalité propre était de permetre aux jeunes gens d'acquérir leur humanitas, c'est-à-dire de devenir des hommes au sens plein du terme, en combinat étroitement un idéal de connaissance et un idéal d ’action. Les lettres qui vous rendent ‘plus humains’ ou les ‘bonnes lettres’ (synonyme caratéristique de ‘belles-lettres’) sont celles qui, dans une assimilation pratique du beau, du vrai et du bien, réalisent le programme érasmien d ’éducation libérale, tout en confírmant la règle d ’or de l’humanisme hollandais: ‘L 'homme ne nait pas homme, il le dévient'." MARGOLIN, J-C. Uhumanisme en Europe au temps de la Renaissance. Paris, Presse Universitaire de France, 1981. p. 9-10.

69 LAFER, C. Desafios: ética e política. São Paulo, Siciliano, 1995. p. 101.70 A desvalorização do ensino das humanidades, em prol de uma abordagem mais

instrumental e técnica da educação, avulta às vistas de qualquer observador atento da

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Na concepção estritamente econômica, as matérias de ensino estarão voltadas para as necessidades do mercado, a fim de que o indivíduo, para utilizar um modismo corrente, agregue valor na em ­presa na qual trabalha. Ao passo que, na visão humanista, o ensino estará voltado para a formação do espírito crítico do ser humano,

realidade educacional contemporânea. Em um artigo publicado 110 jornal Folha de S. Paulo (caderno Mais, p. 9-10) em 6.6.2002, a ensaísta e professora emérita da Univer­sidade de São Paulo Leyla Perrone-Moisés diagnostica brilhantemente a crise do ensi­no das humanidades, das disciplinas que têm como objeto central de estudo o ser humano. Nos últimos tempos, as universidades não escaparam da crença contemporâ­nea segundo a qual toda e qualquer instituição humana deve ser gerida com métodos e expectativas do m undo dos negócios. L)e acordo com esse modelo empresarial de administração das universidades, disciplinas que não possam a curto prazo produzir substanciais lucros, a exemplo de grande parte das matérias humanísticas, devem ser solenemente descartadas. A crítica literária, na melhor tradição humanista, coloca-se diametralmente contra a adoção deste modelo, o qual põe em perigo a articulação e integração dos diferentes saberes, algo imanente ao próprio conceito de universida­de. A professora de Literatura Francesa salienta ainda que há uma incorreta identifi­cação entre as dem andas sociais e as demandas do mercado. Em que pese o d im in u ­to apelo mercantil, o estudo das humanidades presta um extraordinário serviço ao conjunto da sociedade. Ao questionam ento da utilidade das matérias humanísticas (“Para que servem as Humanidades”), a ensaísta dá esta contundente e irrepreensível resposta, a qual merece ser transcrita em sua inteireza: “Servem para que a universida­de continue a ser, além de um local de pesquisas científicas e tecnológicas, um lugar onde se exerce também o pensamento crítico, sem o qual esses avanços procederiam às cegas. Sem a compreensão da história dos homens, de seu hábitat natural e social, de suas línguas, culturas e religiões, as conquistas científicas e tecnológicas são utilizadas ou inviabilizadas num m undo guerreiro e repartido de forma injusta. As humanidades servem para pensar a finalidade e a qualidade da existência humana, para além do sim­ples alongamento de sua duração ou do bem-estar baseado no consumo e nas metas do fmi. Servem para estudar os problemas de nosso país e do mundo, para hum anizar a globalização. Tendo por objeto e objetivo o homem, a capacidade que este tem de entender, de imaginar e de criar, esses estudos servem à vida tanto quanto a pesquisa sobre o genoma. Num mundo informatizado, eles servem para preservar, de forma arti­culada, o saber acumulado por nossa cultura e por outras, estilhaçado no imediatismo da mídia e das redes. Por outras palavras: em tempos de informação excessiva e super­ficial, servem para produzir conhecimento. Eles servem para agregar valor, como se diz no jargão mercadológico. No ensino superior, os cursos de humanidades são um espa­ço de pensamento livre, de busca desinteressada do saber, de cultivo de valores, sem os quais a própria idéia de universidade perde sentido. Por isso eles merecem o apoio fir­me das autoridades universitárias e da sociedade, que eles estudam e à qual servem”.

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para o despertar de suas diferentes destrezas e habilidades, as quais, não obstante a sua eventual pouca demanda no mercado, são igual­mente valiosas e enriquecem a humanidade com suas características singulares.

Em síntese, a educação, no seu sentido humanista, busca tornar o ser hum ano apto a se dedicar aos mais diferentes fins da vida h u ­mana, em suas múltiplas dimensões, descortinando-lhe novos e vas­tos horizontes, na mesma perspectiva da famosa frase de Fernando Pessoa, “Sê plural como o Universo!”.71

Acerca desta celeuma, o prócer do liberalismo, Smith, ao menos em uma oportunidade, criticou os pressupostos da concepção redu- cionista da educação em apreço. Em uma discussão com David Hume, conforme nos relata Sen, Smith afirmou que encarar o ser hum ano apenas sob o ponto de vista de seu uso produtivo importa em um a verdadeira mutilação da natureza humana:

(...) it seems impossible that the approbation of virtue should be of some kind with that by which we approve of a convenient or a well- contrived building, or that we should have no other reason for prais- ing a man than that for which we commend a chest of drawers.72

Observa-se, por último, que esta visão do homem como um mero chest o f drawer, isto é, sob o ponto de vista da utilidade que ele pro­duz, infringe violentamente o princípio da dignidade do ser humano, o princípio de que a pessoa humana é um fim em si mesma.

Se o enfoque puramente econômico se mostra demasiadamen­te estreito na análise de questões que, de alguma forma, estão dire­tamente relacionadas ao sistema produtivo, como o problema do desemprego e da educação, ele o é ainda mais no estudo de temas que apenas remotamente se reportam aos conceitos e indicadores econômicos tradicionais.

71 PESSOA, F. Obras em prosa. Rio de Janeiro, Nova Aguilar. p. 81.72 Apud SEN, A. Development asfreedom. Op. cit., p. 296.

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Assim, por exemplo, muito embora o nível de expectativa de vida de um determinado Estado tenha somente uma correlação indireta com o seu nível de renda, ele tem profundas conseqüências no meio social. Afinal, ele está relacionado à premissa do exercício de todos os direitos humanos, a própria existência do indivíduo. Da mesma forma, o sistema de saúde de um Estado, a taxa de mortalidade infantil, não obstante esta mesma dificuldade de serem representados fielmente em índices econômicos, condicionam profundamente a vida humana, impondo-lhe severas limitações ou abrindo-lhe novas possibilidades.73

Por essas razões, não se pode perder de vista os múltiplos aspec­tos da vida humana, os quais não se reduzem à produção material da riqueza, conforme se procurará enfatizar no próximo tópico.

3.3. A NOÇÃO QUALITATIVA DEDESENVOLVIMENTO - A SUPERAÇÃO DA RIQUEZA MATERIAL COMO CRITÉRIO PARA A AVALIAÇÃO DA REALIZAÇÃO SOCIAL E DA ANÁLISE PURAMENTE ECONÔMICA DAS QUESTÕES SOCIAIS

Por que não se preocupar prioritariamente com o significado das coisas, com os constrangimentos que modulam as opções essenciais dos indivíduos, com a lógica dos fins? Se a política de desenvolvi­mento objetiva a enriquecer a vida dos homens, seu ponto de parti­da terá que ser a percepção dos fins, dos objetivos que se propõem os indivíduos e a comunidade. Portanto, a dimensão cultural dessa política deverá prevalecer sobre todas as demais.74

n “Since the preference for market-price-based evaluation is quite strong among rnany economists, it is also important to point out that ali variables other than commod- ity holdings (important matters such as mortality, morbidity, education, liberties and recognized rights) get - implicitly - a zero direct weight in evaluations based exclusively on the real-income approach. They can get some indirect weight only - and only to extent that - they enlarge real incomes and commodity holdings. The confounding o f welfare comparison with real income comparison exacts a heavy price" (grifo nosso). SEN, A. Development as freedom. Op. cit., p. 80.

7-' FURTADO, C. Op. cit., p. 70.

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Se, de um lado, a perspectiva puramente econômica da análise dos problemas da sociedade e dos critérios para se avaliar a realiza­ção social está muito longe de ser satisfatória, como se procurou de­m onstrar acima; de outro, o problema de se determinar tais critérios permanece.

Um dos parâmetros propostos é o do economista indiano, Sen. De acordo com Sen, o desenvolvimento que as mais diferentes socie­dades humanas devem almejar é aquele concebido como um p ro ­cesso mediante o qual as liberdades reais que as pessoas podem usufruir são expandidas.75

Sen não identifica o desenvolvimento com o processo de indus­trialização, com o crescimento da riqueza material ou com o avanço tecnológico. Para ele, em que pese a relevância destas questões, há um grande reducionismo nesta identificação, justamente pelas ra­zões acima apontadas.

Consoante Sen76, a liberdade plena pode ser, grosso modo, con­cretizada por intermédio da existência de cinco liberdades: (a) a li­berdade política; (b) meios econômicos; (c) oportunidades sociais; (d) garantias de transparência; e (e) seguridade de caráter protetivo.

A liberdade política consistiria na oportunidade da população de determinar o rum o de seus governos, incluindo neste conceito direitos como liberdade de expressão e de imprensa. Os meios eco­nômicos reportam-se às oportunidades dos indivíduos para se utili­zarem dos recursos econômicos para o consumo, produção ou troca. As oportunidades sociais referem-se a arranjos institucionais na so­ciedade que garantam o acesso à educação e à saúde. As garantias de transparência tratam da exigência da ampla divulgação dos assuntos humanos, permitindo-se que se estabeleça um ambiente de m útua confiança entre as pessoas. Por último, Sen destaca a seguridade de caráter protetivo, isto é, uma rede de proteção social que resguarde o ser hum ano contra a fome, a miséria, contra uma condição abjeta de vida, a que todos nós um dia podemos estar sujeitos.

75 SEN, A. Development asfreedom. Op. cit., p. 3.76 SEN, A. Development as freedom. Op. cit., p. 38-9.

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De acordo com esta visão, o desenvolvimento deve ser objeto de estudo não só de economistas, mas também de cientistas políticos, juristas, sociólogos, enfim, de todos aqueles que se dedicam ao estu­do das ciências humanas.

Dadas as múltiplas faces da liberdade e, portanto , do desen­volvimento, como a efetiva participação política da população e a educação para a cidadania, ele demanda o conhecimento das mais diversas áreas das humanidades. Mais do que isso, este conceito de desenvolvimento exige um diálogo contínuo entre elas, na medida em que a liberdade só será realizada na sua inteireza quando os seus diferentes componentes, econômicos, sociais e políticos, estiverem presentes.

Neste ponto, convém ressaltar a importância que o conceito de Aristóteles de ciência política pode assumir. Para o filósofo grego, a ciência política constitui a ciência mais imperiosa e predominante sobre tudo, porquanto seu objeto de estudo consiste no bem último a que nós se deve visar. Assim:

a ciência política usa as ciências restantes e, mais ainda, legisla sobre o que devemos fazer e sobre aquilo de que devemos abster- nos, a finalidade desta ciência inclui necessariamente a finalidade das outras, e então esta finalidade deve ser o bem do homem.77

Esta concepção aristotélica de ciência política, vale dizer, como algo que abrange todas as demais ciências, para se atingir o bem supremo, é de particular relevância para o conceito de desenvolvi­mento de Sen. Visto que este desenvolvimento não se reduz à orga­nização econômica da sociedade, incluindo questões como arranjos institucionais que propiciem a participação do povo na condução da coisa pública, a educação, a saúde, enfim, as mais variadas facetas do edifício social, a tarefa de se pensar o desenvolvimento não é exclu­siva dos economistas.

77 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. 3. ed. Brasília, Universidade de Brasília,2001. p. 17-8.

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Ademais, o desenvolvimento, analisado sob este prisma, encer­ra, de uma vez por todas, o debate sobre a aptidão de a liberdade po ­lítica favorecer ou não o desenvolvimento dos Estados.

Ora, se esta liberdade política é, ela própria, um dos elementos do desenvolvimento, não há como se defender, por óbvio, o despre­zo pelos direitos políticos sob o pretexto de atingi-lo. Os indivíduos não podem mais ser reduzidos à condição de espectadores passivos do progresso material decorrente das decisões de tecnocratas ilumi­nados. O conjunto da população deve ser, antes, alçado à posição daqueles que determinam as feições deste mesmo progresso material.

Não é aqui o propósito, dados os limites deste artigo, discutir pormenorizadamente o conceito de liberdade de Sen e as suas pos­síveis incompletudes. Cabe ressaltar apenas que a concepção de Sen encara o ser hum ano em sua totalidade, sob o prisma das mais variadas atividades a que ele se dedica.

Mais relevante ainda do que isto, Sen recoloca no centro do debate do desenvolvimento a questão ética, porque propõe explici­tamente a finalidade última a que toda a sociedade, inclusive e p rin ­cipalmente a sua organização econômica, deve visar.

Sen propugna, pois, uma verdadeira revolução copernicana na teoria e na medida do desenvolvimento de uma determinada socie­dade, ao colocar os seres hum anos acima das coisas.78

A formulação de Sen guarda nítidas semelhanças com a eco­nomia do gênero hum ano, defendida por François Perroux, que es­taria a serviço de todo o hom em e de todos os homens {“de tout Vhomme et de tous les hommes”)79.

Por meio desta inversão da relação existente entre “o domínio das coisas e o universo dos hom ens”, o crescimento econômico e o grau de riqueza material de uma determinada sociedade tornar-se- iam “um apêndice da teoria do desenvolvimento”80.

78 SACHS, I. Das coisas e dos homens. O Estado de S. Paulo, 21.7.2001. Caderno de Economia, p. 2.

79 PERROUX, F. Économie du xxe Siècle. Grenoble, Presses Universitaires deGrenobles, 1991. p. 378.

80 SACHS, I. Op. cit., p. 2.

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Em suma, os parâmetros para se avaliar o desenvolvimento de um Estado não devem ser mais o faturamento de suas empresas, a cotação das ações na bolsa de valores, as quantidades de suas expor­tações ou até mesmo a renda per capita de seus habitantes. Como disse Aristóteles, logo nas primeiras linhas da sua obra Ética a Nicô- macos: “a vida dedicada a ganhar dinheiro é vivida sob compulsão, e obviamente ela não é o bem que estamos procurando, trata-se de uma vida apenas proveitosa e com vistas a algo mais”81.

Como o próprio liberal Friedrich Hayek afirmou:

economic considerations are merely those by which we reconcile and adjust our different purposes, none of which, in the last resort, are economic (except those of the miser or the num for whom making money has become an end in itself).S2

Não que tais questões relacionadas à riqueza material não sejam relevantes. De fato, elas o são, mas apenas e tão-somente na exata proporção em que elas sejam instrumentos efetivos para propiciar a todo membro do gênero hum ano uma vida digna, que lhe dêem a oportunidade concreta de conduzir a sua própria vida e de ser feliz à sua própria maneira.

Destarte, os verdadeiros critérios para se m ensurar o desenvol­vimento de um Estado hão de ser a quantidade de analfabetos, de sem-teto, de desempregados, dos desprovidos de acesso à educação e à saúde pública de qualidade, dos que são destituídos do direito de votar, de participar da vida pública, de se alimentar e até mes­mo de viver.

O ser humano, e não a riqueza material, há de ser a medida de todas as coisas e, por conseguinte, da avaliação do desenvolvimento e da realização social de uma determinada comunidade.

Todavia, as concepções de Sen sobre o desenvolvimento têm so­frido fortes resistências. Determinados economistas, como T. N.

81 ARISTÓTELES. Op. cit., p. 20.82 Apud SEN, A. Development asfreedom. Op. cit., p. 79.

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Srinivasan83, desdenham qualquer outro critério que não a renda ou o poder de compra do conjunto da população de um Estado, para se aferir o seu grau de desenvolvimento.

De acordo com a argumentação deles, estes dados econométri- cos não são subjetivos, porquanto seriam a tradução da capacidade da população de adquirir bens e serviços. Qualquer outro parâme­tro, segundo eles, seria algo arbitrário ou não técnico.

Ocorre que esses economistas, a exemplo do burguês fidalgo de Molière, falam em prosa sem o saber, um a vez que acabam por indi­retamente eleger a riqueza material como o bem último a ser perse­guido pela sociedade humana e como o parâmetro fundamental para se julgar o seu grau de desenvolvimento.

Ora, a eleição desta finalidade nada tem de técnica ou científica, já que consiste em um juízo axiolóxico, o qual estabelece valores que devem dar o norte do agir hum ano e os parâmetros pelos quais este agir deve ser apreciado.

A teoria de Sen sobre o desenvolvimento apenas professa, de m o­do explícito, a finalidade última da organização social, despertando um profícuo debate sobre este assunto; ao passo que seus críticos ele­gem esta finalidade de modo implícito, sob o disfarce da objetivida­de e, em certa medida, acabam por impô-la sorrateiramente no meio social.

Por conseguinte, faz-se indispensável afirmar, em letras salien­tes, que a ciência econômica sob uma perspectiva de engenharia nada nos tem a dizer acerca das finalidades em torno das quais a ati­vidade econômica deve se organizar.

A sua contribuição para o debate sobre o desenvolvimento deve se dar por meio do seu rico instrumental analítico e teórico para a es­colha dos métodos mais adequados para se atingirem esses fins. Esses escopos últimos da atividade econômica devem ser decididos pelo conjunto da sociedade em função dos valores que ela acredita que devam ser concretizados.

83 SEN, A. Development asfreedom. Op. cit., p. 79.

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A concepção de desenvolvimento formulada por Sen assume particular relevo no m undo hodierno. O capitalismo mundial atual tem como característica marcante a sua notável opulência material. De uma forma geral, o problema central da ciência econômica, a es­cassez de recursos para a satisfação das necessidades humanas mais elementares, nunca esteve tão perto de ser resolvido, haja vista a ex­traordinária produtividade do sistema econômico mundial.

Contudo, há um imenso contingente de seres hum anos que não usufruem dos benefícios de toda esta riqueza material. A desigual­dade entre os Estados e entre suas diversas camadas da população chegou a níveis jamais vistos na história da hum anidade.84

Problemas primários, como a fome e a miséria, estão presentes em todos os quadrantes do planeta. Constitui uma das insustentá­veis contradições da civilização contemporânea o fato de que acon­tecimentos tão complexos e extraordinários, como a revolução na microeletrônica e na genética, ocorrerem; enquanto questões tão elementares, notadamente a fome, não estarem sequer perto de se­rem solucionadas.

A conclusão inafastável diante de todos estes contrastes e con­tradições não consiste em enfatizar o enfoque econômico do proble­ma do desenvolvimento, visto que há riqueza material suficiente no m undo para se satisfazerem as necessidades humanas mais básicas.

O grande desafio é preponderantemente de natureza ética, qual seja: o profundo repensar acerca das finalidades e interesses, aos quais a produção material de riqueza está sujeita no m undo con­temporâneo.

81 “Segundo o mesmo Relatório de Desenvolvimento Humano da O N U , os duzen­tos maiores multimilionários do planeta acumulavam juntos um a fortuna de 1,113 bilhões de dólares em 2000, o que significa cerca de 100 bilhões de dólares a mais do que possuíam no ano anterior. Considerando, por outro lado, toda a população somada dos países do Terceiro M undo, seu total de renda chega a 146 bilhões, o que represen­ta menos de dez por cento do m ontante controlado pelos duzentos maiores bilioná- rios.” SEVCENKO, N. Op. cit., p. 43.

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CONSIDERAÇOES FINAIS

A voracidade envenenou a alma dos homens, envolveu o mun­do num círculo de ódio e nos obrigou a entrar a passo de ganso na miséria e no sangue. Melhorou-se a velocidade, mas somos escra­vos dela. A mecanização, que traz abundância, legou-nos o desejo. A nossa ciência nos tornou cínicos. A nossa inteligência nos tor­nou duros e brutais.85

Na primeira parte deste artigo, buscou-se dem onstrar as gran­des limitações da separação entre ética e economia no âmbito do com portam ento do homem econômico, sob o ponto de vista da ri­queza material gerada no seio da sociedade.

A voracidade da máxima do verso horaciano, “de maneira ho ­nesta se você conseguir, mas de qualquer maneira faça dinheiro”, que tanto tem influenciado os espíritos hum anos nos últimos tempos, não faz florescer a riqueza material na sociedade. A bem dizer, essa máxima corrói o ambiente de confiança m útua entre os atores da atividade produtiva, aniquila o respeito aos freios éticos à ambição, sem os quais as mais rudimentares transações econômicas não po­dem ser realizadas ou, na melhor das hipóteses, podem sê-las a um custo muito elevado, recorrendo-se sempre a custosos procedimen­tos burocratizados e a processos judiciais.86

Desta feita, mesmo sob a ótica da riqueza material produzida pela sociedade, um código ético que limite a cobiça dos agentes eco­nômicos constitui uma exigência indeclinável.

85 Declaração final de “O Grande Ditador”, filme de Charles Chaplin de 1940.8" No já referido depoimento ao Senado norte-americano, Alan Greenspan afir­

mou: “Although business transactions are governed by laws and contracts, i f even a modest fraction o f those transactions had to be adjudicated, our courts xvould be swamp- ed into immobility: Thus, our market systern depends critically on trust-trust in the word o f our colleagues and trust in the word o f those with whom we do business. Falsification and fraud are highly destructive to free-market capitalism and, more broadly, to the underpinnings o f our societyy>. Testimony o f Chairman Alan Greenspan Federal Reserve

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E T I C A E E C O N O M I A F U N D A M E N T O S P A R A UMA R E A P RO X I M A Ç Ã O

De outra parte, acerca desta mesma questão, tentou-se dem ons­trar que determinados vícios privados, como ambição e ganância, ainda que mitigados por considerações de natureza ética, apenas p o ­dem ser transformados em benefícios públicos sob o ambiente da con­corrência perfeita. Caso contrário, o resultado final só poderá ser a apropriação de lucros monopolistas pelo grande empresariado, da­do o seu natural egoísmo a que se referia Smith, em detrimento dos consumidores. Donde a necessidade da imposição da concorrência pelo Estado na atividade econômica privada.

Na segunda parte deste artigo, almejou-se refletir sobre as fina­lidades últimas a que a atividade econômica deve estar subordinada. Objetivou-se enfatizar que o foco da análise das realizações sociais da humanidade e dos projetos das incessantes mudanças a serem fei­tas no seu seio não deve ser tão simplesmente a riqueza material, mas antes a garantia a cada indivíduo de meios e instrumentos, para que ele possa se realizar como pessoa humana.

Todas as maravilhas tecnológicas, a exuberante e abundante pro­dução de bens e serviços de nosso tempo, a mecanização, todos os avanços da ciência, só terão mesmo um verdadeiro sentido se todos eles se destinarem a uma finalidade de ordem superior: servir ao de­senvolvimento de cada vida humana em suas variadas dimensões.

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2Uma Breve Introdução à Questão do Desenvolvimento como Tema de Direito Internacional

F e r n a n d o C a r d i a

Introdução: um conceito preliminar de desenvolvimento - 1. A periferia e o desenvolvimento - 1.1. Período precedente à desco­lonização - 1.2. O contexto inicial da ONU - 1.3. Descolonização - 1.4.0 direito do desenvolvimento - 1.5. A Nova Ordem Econô­mica Internacional (Noei) - 1.6. Da inclusão do desenvolvimen­to no discurso dos direitos humanos - 2. Uma justificativa para o estudo da questão do desenvolvimento como tema de Direito Internacional - Referências

INTRODUÇÃO: UM CONCEITO PRELIMINAR DE DESENVOLVIMENTO

f...] desenvolvimento é um amplo processo econômico, social, cultural e político, que objetiva a melhoria constante do bem-estar de toda uma população e de todos os indivíduos na base de sua participação ativa, livre e consciente no de­

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D I R E I T O I N T E R N A C I O N A L E D E S E N V O L V I M E N T O

senvolvimento e na justa distribuição dos benefícios dele resul­tantes.1

Segundo Fábio Konder Comparato2, há um relativo consenso de que o desenvolvimento se consubstancia em um processo de longo prazo, movimentado por políticas públicas em três campos: econô­mico, social e político.

Sob o ponto de vista econômico, o desenvolvimento constitui um crescimento da produção de bens e recursos endógeno (baseado em fatores internos) e sustentado (com vistas à preservação dos recursos).

Sob o social, o desenvolvimento é a aquisição progressiva e em igualdade de condições básicas de vida, com a realização para todos da plenitude dos direitos sociais, econômicos e culturais.

Sob o político, desenvolvimento significa o efetivo exercício pelo povo de seu papel de sujeito político, fonte legitimadora de todo o poder e destinatário de seu exercício.

1. A PERIFERIA E O DESENVOLVIMENTO

O direito ao desenvolvimento surge e ganha corpo como prin­cípio do Direito Internacional a partir da ação conjunta e das reivin­dicações dos países em desenvolvimento.

Em um primeiro momento, como pressuposto para a indepen­dência e autodeterminação dos territórios recém-descolonizados. Em m om ento posterior, como base para a construção de uma Nova Ordem Econômica Internacional formada por relações mais justas e harmoniosas entre subdesenvolvidos e desenvolvidos.

E mais recentemente, agregando-se ao desenvolvimento a ques­tão de um meio ambiente sadio e da preservação como parte inte­

1 Cf. Resolução n. 41/128 de 04.12.1986 da Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas.

2 COMPARATO, F. K. A afirmação histórica dos Direitos Humanos. 2.ed. São Paulo, Saraiva, 2001. p. 396 e s.

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grante da estrutura do chamado direito a um desenvolvimento sus­tentável.

1.1. PERÍODO PRECEDENTE À DESCOLONIZAÇÃO

Inicialmente, ainda no período colonial, a idéia de desenvolvi­mento estava ligada à noção de assistência, parte da política das grandes potências para os territórios coloniais.

O desenvolvimento como pressuposto de um dever de cooperação dos Estados começa a ganhar contornos com o surgimento das orga­nizações internacionais. Nesse sentido, deve-se ressaltar a atuação da Sociedade das Nações ( s d n ) e dos organismos e tratados levados a efeito em seu contexto. Obviamente, se comparada à Organização das Nações Unidas ( o n u ) , sua ação foi embrionária, uma vez que lhe era implícita a idéia de manutenção da paz somente pelo fortalecimento da segurança, e não também pelo fomento ao desenvolvimento.3

Esse fato, entretanto, não impediu o delineamento de um novo papel: o de promotora do avanço e bem-estar econômico para os povos do mundo. Para tanto, além de organismos criados sob seus auspícios (como a International Relief Union, Bank for International Settlement, International Economic and Financial Organization e a Health Organization), era dotada de um Comitê Econômico, um Co­mitê Financeiro e muitas comissões, que tratavam de assuntos como escravidão, refugiados e mandatos.4 Sobre estes, cabe ressaltar que mesmo antes da s d n , o Pacto relativo aos Mandatos previa a criação de bureaux internacionais que assegurassem uma certa cooperação

3 Para além de uma paz baseada na segurança coletiva, a Carta da Organização das Nações Unidas de 1945 evidencia a necessidade de se criar condições de estabilidade e bem-estar para se garantir relações pacíficas e amistosas entre os Estados.

1 O sistema de mandato (art. 22 do Pacto da Sociedade das Nações) se aplicou às colônias das potências derrotadas na Primeira Guerra Mundial. Consistia em entregar a administração das colônias a denominadas potências mandatárias, até que estives­sem aptas à independência. Cabia à SDN a fiscalização dessa administração por meio de lima comissão permanente. Com o fim da s d n e a criação da o n u , o instituto foi subs­tituído pelo da tutela, de configuração semelhante. A finalidade do instituto era possi­bilitar o processo de independência política do povo sob mandato ou tutela.

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D I R E I T O I N T E R N A C I O N A L E D E S E N V O L V I M E N T O

nos planos econômico, financeiro, comercial e técnico, lançando a idéia de coordenação que teria mais tarde papel fundamental para o desenvolvimento.

1.2. O CONTEXTO INICIAL DA ONU

Com a criação da ONU, a cooperação internacional no campo eco­nômico e social ganha tônus. Isso se depreende de seu próprio trata­do constitutivo, a Carta da ONU (1945), celebrada na cidade de São Francisco:

Capítulo íx - Cooperação Internacional Econômica e SocialArt. 55. Com o fim de criar condições de estabilidade e bem-

estar, necessárias às relações pacíficas e amistosas entre as Nações, baseadas no respeito ao princípio da igualdade de direitos e da autodeterminação dos povos, as Nações Unidas favorecerão: a) níveis mais altos de vida, trabalho efetivo e condições de progres­so e desenvolvimento econômico e social; b) a solução de proble­mas internacionais econômicos, sociais, sanitários e conexos; a cooperação internacional, de caráter cultural e educacional; e, c) o respeito universal e efetivo dos direitos humanos e das liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião.

Art. 56. Para a realização dos propósitos enumerados no art. 55, todos os Membros da Organização se comprometem a agir em cooperação com esta, em conjunto ou separadamente.

Para tanto, foi instituído o Conselho Econômico e Social como responsável por esta cooperação e como intermediário das diversas agências especializadas5, criadas por acordos entre Estados.

Em um primeiro momento, ainda sem a participação em seus quadros da maioria dos Estados afro-asiáticos “em especial os da

3 São organizações internacionais, criadas por acordos internacionais e vincula­das à ONU. Possuem amplas responsabilidades internacionais, definidas em seus ins­trumentos básicos, nos campos econômico, social, cultural, educacional e conexos(art. 57 da Carta das Nações Unidas). São exemplos de organizações ou agências inter­nacionais especializadas: f a o , o i t , o m s , Unesco, Bird, entre outras.

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UMA B R E V E I N T R O D U Ç Ã O À Q U E S T Ã O DO D E S E N V O L V I M E N T O

África negra, da maior parte da África branca e o sudeste asiático que ainda estavam sob regimes coloniais”, a atuação da ONU no campo do desenvolvimento é caracterizada por uma certa desordem e improvisação. No período entre 1948-49, em face das reclama­ções de países subdesenvolvidos, como Líbano, Iraque, Chile, Peru e Haiti, são criados programas de assistência técnica e financeira. Pau­latinamente, paralelamente a esta função operacional, foi sendo deli­neada uma função normativa para a o n u .

1.3. DESCOLONIZAÇÃO

Com a descolonização, a maioria da Assembléia Geral passa a ser composta por Estados do grupo do Terceiro M undo e a questão do desenvolvimento entra definitivamente como um dos pilares da atuação da ONU. Isto vem afirmado notadamente na Resolução n. 1.514, de 1960, a qual preceituava que o:

colonialismo impede o desenvolvimento da cooperação econômi­ca internacional, entrava o desenvolvimento social, cultural e eco­nômico dos povos dependentes e vai de encontro ao ideal de Paz Universal.

Na mesma linha, a Resolução n. 1.710 formula, para a década de 1960, um programa global e coordenado a ser adotado em escala mundial para o desenvolvimento do Terceiro Mundo.

Assim, a década de 1960 viu nascer o Direito do Desenvolvimen­to, como um programa normativo de cooperação em diversas áreas das relações econômicas, com vistas a superar as profundas diferen­ças de desenvolvimento existentes entre os povos do mundo.

Como antecedente político dessa nova metodologia jurídica de se tratar as relações econômicas, além da descolonização, vislumbra- se a existência de uma solidariedade entre os Estados do Terceiro Mundo. Nesse tema, três são os eventos mais importantes: a Confe­rência de Bandoeng, o Movimento dos Não-Alinhados e a constitui­ção do Grupo dos 77.

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D I R E I T O I N T E R N A C I O N A L E D E S E N V O L V I M E N T O

A Conferência de Bandoeng6 significou a tomada de consciência pelo Terceiro M undo (nesse evento ainda reduzido à África e à Ásia) de sua existência e dos problemas que lhe são próprios, notadamen- te nos planos financeiro, comercial e técnico. Com base no princípio da ação coletiva, foi afirmada a necessidade de se promover o desen­volvimento da região afro-asiática a partir de uma cooperação entre os novos Estados em todos os domínios.

Com o Movimento dos Não-Alinhados, as idéias de solidarie­dade entre os países em desenvolvimento, bem como de ação coleti­va, foram revigoradas, podendo-se dizer que, após a Conferência de Alger (1973), os Estados que o integravam tornaram-se um importan­te grupo de pressão para a reorganização do sistema econômico inter­nacional (a construção da Nova Ordem Econômica Internacional).

Na Conferência de Lusaka (1970), foram abordados temas que formam a substância do Direito Internacional do Desenvolvimento: cooperação financeira e monetária internacional, comércio, indus­trialização, tecnologia, recuperação das riquezas naturais, papel das empresas transnacionais, defesa dos interesses dos Estados p rodu to­res de matéria-prima e nova ordem mundial de informação.

Durante a Conferência do Cairo em 1962, Estados da África, Ásia e América Latina aprofundaram os temas do desenvolvimento colocados em pauta desde a Conferência de Bandoeng, insistindo na institucionalização do estudo e da ação sobre os problemas do de­senvolvimento. Mas foi na Conferência de Genebra (I Conferência da ONU sobre Comércio e Desenvolvimento - Cnuced7), em 1964, que o Grupo dos 77 se constituiu oficialmente, abarcando Estados dos três continentes.

A partir de então, o grupo se m ostrou como im portante ins­tância de reflexão e reivindicação em matéria de desenvolvimento,

6 Realizada em abril de 1955.7 A sigla Cnuced, às vezes, é substituída pela sigla em inglês Unctad. Ela foi cria­

da por Resolução da Assembléia Geral e, por isso, é órgão subsidiário da Assembléia Geral, e não organização especializada. Visa fomentar o comércio internacional, tendo em vista o desenvolvimento econômico, bem como formular princípios de política comercial no plano internacional.

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UMA B R E V E I N T R O D U Ç Ã O À Q U E S T Ã O DO D E S E N V O L V I M E N T O

reunindo-se antes de cada encontro da Cnuced e publicando um program a detalhado de proposições, pedidos e exigências no cam ­po das relações econômicas internacionais.

1.4. O DIREITO DO DESENVOLVIMENTO

No dizer de Antônio Augusto Cançado Trindade:

[...] o direito do desenvolvimento, com seus vários componentes (direito à autodeterminação econômica, soberania permanente sobre a riqueza e os recursos naturais, princípios do tratamento não-recíproco e preferencial para os países em desenvolvimento e da igualdade participatória dos países em desenvolvimento nas relações econômicas internacionais e nos benefícios da ciência e tecnologia), emerge como um sistema normativo internacional objetivo a regular as relações entre Estados juridicamente iguais mas economicamente desiguais e visando à transformação destas relações, com base na cooperação internacional (Carta das Na­ções Unidas, arts. 55 e 56) e em considerações de eqüidade, de modo a remediar os desequilíbrios econômicos entre os Estados e a proporcionar a todos os Estados - particularmente os países em desenvolvimento - oportunidades iguais para alcançar o desen­volvimento.8

A doutrina divergiu quanto à natureza do chamado direito do desenvolvimento: se estava incluído no Direito Internacional Econô­mico, se abarcava outras áreas, se seria só uma nova metodologia de aplicação de regras já instituídas etc.

O que importa para este estudo é saber que o direito do desen­volvimento é finalista, constituindo-se num programa em busca da superação das disparidades de desenvolvimento dos Estados. En­contra na Cnuced seu quadro institucional e tem por principal obje­tivo a constituição de uma Nova Ordem Econômica Internacional.

8 CANÇADO TRINDADE, A. A. Direitos humanos e meio ambiente. Paralelo dos sis­temas de proteção internacional. Porto Alegre, Sérgio Antonio Fabris Editores, 1993. p. 176.

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1.5. A NOVA ORDEM ECONOMICA INTERNACIONAL (NOEI)

PRECEDENTES: AS CRISES MONETÁRIA, ALIMENTAR E ENERGÉTICA

A crise monetária começou em 1967 com a desvalorização da libra esterlina. Mas a situação se tornou mais grave com as medidas de ordem monetária levadas a cabo por Nixon, em agosto de 1971. A partir de então, a situação monetária mundial escapou totalmen­te às regras imaginadas em Bretton Woods9, implicando uma dete­rioração dos termos de câmbio e um endividamento cada vez mais pesado para os países em desenvolvimento.10

Paralelamente, um a crise alimentar ocorreu em razão da con­junção de fatores climáticos e de políticas de desenvolvimento mal conduzidas. Em face de tal situação, o arcabouço institucional e as ações da comunidade internacional se mostraram ineficientes, reve­lando a natureza estrutural da crise e requerendo uma política glo­bal de apoio ao desenvolvimento, para além da ajuda humanitária.

A crise energética, decorrente de um incrível aumento no preço do petróleo, revelou a complementaridade e interdependência das eco­nomias nacionais, quaisquer que sejam os níveis de desenvolvimento. Também comprovou o grau de influência do Terceiro Mundo sobre a Ordem Econômica internacional. O fato é que a partir da crise de 1973 começa a se formar a idéia da instauração de uma Noei.

AS CARACTERÍSTICAS DA NOEIAs reivindicações do Terceiro M undo visam à construção de uma

nova ordem racional e igualitária, notadamente global, sistemática e voluntarista. Global, pois a ação coletiva para o desenvolvimento de­

y A Conferência de Bretton Woods (1944) criou o f m i e lançou as bases de uma ordem monetária internacional sob os princípios da proibição das desvalorizações competitivas e do respeito a taxas de câmbio estáveis e únicas.

10 A respeito, v. CARNEIRO, R. Desenvolvimento em crise. A economia brasileira no último quarto do século xx. Sào Paulo, Unesp/Campinas, Unicamp, 2002. p. 48 e s.

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verá cobrir a totalidade dos problemas econômicos, monetários e fi­nanceiros, levando em conta a dimensão social, cultural e humana do desenvolvimento. Sistemática, pois leva em consideração a interde­pendência dos problemas dos vários setores econômicos. Voluntaris- ta, pois deve ser baseada sobre relações econômicas organizadas, com vistas a uma planificação mundial da economia.

PRINCIPAIS DOCUMENTOSO primeiro documento a ser mencionado é a Declaração e Pro­

grama de Ação referente à Instauração de uma Nova Ordem Econô­mica Internacional (Resoluções n. 3.201 e 3.202 da Assembléia Geral, de 01.05.1974), tendo por princípios soberania, cooperação interna­cional fundada na eqüidade, direito dos povos à autodeterminação, participação igualitária de todos os países na busca de soluções para os problemas do planeta e a prioridade de se reconhecer, em favor dos países em desenvolvimento ou geograficamente desfavorecidos, um regramento jurídico de desigualdade compensatória.

Por meio de tal documento, há a reivindicação por transferência em melhores termos de tecnologia e assistência dos países desenvol­vidos àqueles em desenvolvimento, bem como a povos ou territórios ainda sob domínio ou ocupação; por relações justas e equilibradas entre os preços dos produtos exportados e importados pelos países em desenvolvimento; e por uma regulamentação e supervisão das ati­vidades das empresas transnacionais.

Posteriormente, em dezembro de 1974, a partir de projeto elabo­rado por grupo de trabalho formado no seio da Cnuced, foi aprova­da pela Assembléia Geral a Carta de Direitos e Deveres Econômicos dos Estados.

Em setembro de 1975, foi aprovada a Resolução n. 3.362 sobre Desenvolvimento e Cooperação Econômica Internacional, trazen­do medidas concretas hábeis a servir de base para os trabalhos dos órgãos da o n u nos principais dom ínios do direito do desenvol­vimento: 1) comércio internacional; 2) transferência de recursos, ciência e tecnologia; 3) industrialização, alimentação e agricultura;

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D I R E I T O I N T E R N A C I O N A L E D E S E N V O L V I M E N T O

4) cooperação entre países em desenvolvimento; e 5) reestruturação de setores econômicos e sociais do sistema da o n u .

1.6. DA INCLUSÃO DO DESENVOLVIMENTO NO DISCURSO DOS DIREITOS HUMANOS

Excetuando a Convenção de Lomé", as dificuldades de um con­creto diálogo Norte-Sul tornaram inefetivo o rico arcabouço no r­mativo do direito do desenvolvimento e da Noei, sendo que a noção de uma ação coletiva para o desenvolvimento encontra seu declínio na década de 1980.

Nesse período, as relações econômicas entre países desenvolvi­dos e países em desenvolvimento tomaram outra direção.

Abandonando o grande projeto anterior, os Estados começam a buscar soluções pontuais, baseadas preferencialmente em coopera­ções bilaterais, mais técnicas e mais adequadas aos objetivos do de­senvolvimento.

A estas também se agregam acordos celebrados entre países em desenvolvimento e empresas privadas, dotados de cláusulas que per­mitem considerá-los como verdadeiros acordos de desenvolvimento.

Paralelamente a essa mudança nas características do direito do desenvolvimento, ocorre outro fenômeno importantíssimo para a consagração da temática do desenvolvimento na ordem internacio­nal: a inclusão do desenvolvimento no discurso dos direitos humanos, com a estruturação jurídico-normativa de um direito ao desenvolvi­mento. Como bem ensina Cláudia Perrone Moisés:

Um enfoque jurídico da construção do direito ao desenvolvi­mento nos leva a indagar como se processou a passagem da ques­tão do desenvolvimento (discutida entre os anos 60 e 80, no âmbito das relações econômicas internacionais entre Estados, como foi o caso da Conferência das Nações Unidas para o Comér­

11 Realizada em 1975 pelos Estados da Comunidade Econômica Européia e 46 Estados da África, do Caribe e do Pacífico.

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cio e Desenvolvimento - Cnuced, criada em 1964, como quadro institucional para as reivindicações ligadas ao desenvolvimento, e do que ocorreu no âmbito das discussões e resoluções sobre a ins­tauração de uma Nova Ordem Econômica Internacional) para o campo jurídico dos direitos humanos. Enquanto a questão do de­senvolvimento vai perdendo força nos anos 80, com o esvaecimen- to das discussões interestatais, em torno dos conflitos Norte-Sul, o trabalho em torno de sua concretização se desenvolve no foro dos direitos humanos, onde a questão do desenvolvimento já havia sido inserida como herança da Nova Ordem Econômica Interna­cional. Somos conduzidos, assim, à hipótese de que a questão do de­senvolvimento sofre as conseqüências das transformações do pró­prio direito internacional.12

O direito ao desenvolvimento como direito hum ano se insere na chamada 3a Geração de direitos, caracterizada pela titularidade cole­tiva, como o direito à paz e a um meio ambiente sadio. Ao ser colo­cado na temática dos direitos humanos, o desenvolvimento sai do campo exclusivo das relações econômicas para adentrar outras: so­ciais, culturais e políticas.

O direito ao desenvolvimento possui titularidade complexa, abar­cando no pólo ativo seres humanos, coletiva ou individualmente con­siderados, grupos humanos e Estados, e no pólo passivo, notadamente os Estados, coletiva ou individualmente considerados, mas sem deixar de lado a responsabilidade de cada indivíduo pelo desenvolvimento. Em suma, a principal figura em torno da qual gravita o desenvolvi­mento é o ser humano.

Portanto, o desenvolvimento deve ser abordado de uma forma integrada, levando-se em conta todos os aspectos da vida humana, não só o econômico.

O direito ao desenvolvimento implica a existência de um dever de cooperar para a concretização de um desenvolvimento humano,

12 MOISÉS, C. P. “Direitos humanos e desenvolvimento: A contribuição das Na­ções Unidas”. In: AMARAL Jr., A. do. & MOISÉS, C. P. (orgs.) O cinqüentenário da De­claração Universal dos Direitos do Homem. São Paulo, Edusp/Fapesp, 1999. p. 185-6.

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levando-se em conta o exercício efetivo das liberdades fundamentais, direitos civis e políticos, direitos sociais, econômicos e culturais. Sem preferências, sem exclusão, com base na complementaridade e indi­visibilidade dos direitos humanos.

A humanização13 do desenvolvimento, transferindo sua aborda­gem do campo interestatal econômico para o campo dos direitos humanos, de forma alguma retira-lhe força.

Pelo contrário, confere-lhe legitimidade política, arcabouço jus- filosófico e aceitação de tendência universal, dos quais o direito do de­senvolvimento era desprovido. No ensinamento de Cláudia Perrone Moisés:

[...] Na “era dos direitos” (Norberto Bobbio), o desenvolvi­mento ganha força no contexto jurídico dos direitos humanos, enquanto os direitos humanos ampliam sua presença, por sua vez, no contexto global. A questão do desenvolvimento parece bene- ficiar-se com essa mudança, pois trata-se, para ela, de um “aden­samento da juridicidade” (Celso Lafer). A inserção do tema no contexto internacional está definitivamente consagrada. Outra vantagem é o fato de não necessitar de sistematização nova, como foi o caso das tentativas de elaboração do direito internacional do desenvolvimento como novo ramo do direito internacional públi­co. Mas, ao ser incorporada aos direitos humanos (o indivíduo torna-se também titular do direito ao desenvolvimento), a questão do desenvolvimento encontra uma estrutura teórica e instrumen­tal nova, o que requer sua adaptação.H

Destarte, o direito do desenvolvimento ainda se mostra necessá­rio para se dar densidade, concretude ao ideal de desenvolvimento humano.

13 Cf. SALCEDO, J. A. C. El Derecho Internacional en un inundo en cambio. Madri, Tecnos, 1985, p. 197.

" Op. cit., p. 186.

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Os temas tradicionais que integraram as reivindicações dos paí­ses em desenvolvimento nas décadas de 1960,1970 e 1980 devem ser adequados à ótica do desenvolvimento humano. Temas como trans­ferência de tecnologia, direito financeiro, comércio internacional, em ­presas transnacionais, recursos naturais se mostram imprescindíveis para a efetivação do desenvolvimento dos povos e, conseqüentemen­te, de todos os outros direitos humanos, para as presentes e futuras gerações.

Nesse aspecto, a Agenda 21 (1992) formula programa de ação em todos esses temas com vistas a garantir o desenvolvimento sustentá­vel. Tal documento reconhece a necessidade da superação de con­frontos e da promoção de um clima de cooperação e solidariedade genuínos, para que uma nova parceria em torno das questões do meio ambiente e do desenvolvimento tenha êxito. Extraiu-se um excerto bastante elucidativo do texto da Agenda sobre desenvolvi­mento sustentável, cooperação internacional e políticas nacionais:

Tanto as políticas econômicas dos países individuais como as relações econômicas internacionais têm grande relevância para o desenvolvimento sustentável. A reativação e a aceleração do desen­volvimento exigem um ambiente econômico internacional ao mesmo tempo dinâmico e propício, juntamente com políticas fir­mes no plano nacional. A ausência de qualquer dessas exigências determinará o fracasso do desenvolvimento sustentável. A existên­cia de um ambiente econômico externo propício é fundamental. O processo de desenvolvimento não adquirirá impulso caso a econo­mia mundial careça de dinamismo e estabilidade e esteja cercado de incertezas. Tampouco haverá impulso com os países em desen­volvimento sobrecarregados pelo endividamento externo, com financiamento insuficiente para o desenvolvimento, com obstácu­los a restringir o acesso aos mercados e com a permanência dos preços dos produtos básicos e dos prazos comerciais dos países em desenvolvimento em depressão. A década de 80 registrou números essencialmente negativos para todos esses tópicos, fato que é pre­ciso inverter. As políticas e medidas necessárias para criar um ambiente internacional marcadamente propício aos esforços de

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desenvolvimento nacional são, conseqüentemente, vitais. A coope­ração internacional nessa área deve ser concebida para comple­mentar e apoiar - e não para diminuir ou subordinar - políticas econômicas internas saudáveis, tanto nos países desenvolvidos como nos países em desenvolvimento, para que possa haver um avanço mundial no sentido do desenvolvimento sustentável.15

Ainda com relação à Agenda 21, cabe ressaltar que são elencados, como condições do progresso econômico: 1) a boa governança; 2) democracia; 3) participação; 4) judiciário independente; 5) estado de direito; e 6) paz civil. Isso demonstra a interdependência existen­te: o respeito às liberdades fundamentais cria um ambiente propício para um verdadeiro desenvolvimento, aquele baseado na efetivação dos direitos sociais, econômicos e culturais. Por seu turno, um am ­biente econômica e socialmente sadio cria condições para a efetiva­ção das liberdades e garantias fundamentais.

Direitos humanos e desenvolvimento mantêm uma relação de interdependência e complementaridade. Esta é a conclusão do Progra­ma das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) em seu Relató­rio de Desenvolvimento Humano para o ano de 2000.

2. UMA JUSTIFICATIVA PARA O ESTUDO DA QUESTÃO DO DESENVOLVIMENTO COMO TEMA DE DIREITO INTERNACIONAL

Lê-se na Constituição da República Federativa do Brasil (1988), o quanto segue:

Preâmbulo:Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assem­

bléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático,

15 Unced. Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvi­mento: A Agenda 21. Brasília, Senado Federal/Subsecretaria de Edições Técnicas, 1996. p. 13 e s.

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UMA B R E V E I N T R O D U Ç Ã O À Q U E S T Ã O DO D E S E N V O L V I M E N T O

destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e indivi­duais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos [...]

Art. Io A República Federativa do Brasil [...] tem como funda­mentos:

[...]III - a dignidade da pessoa humana;[...]Art. 3o Constituem objetivos fundamentais da República Fede­

rativa do Brasil:[...]II - garantir o desenvolvimento nacional;III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desi­

gualdades sociais e regionais;[...]Art. 4o A República Federativa do Brasil rege-se nas suas rela­

ções internacionais pelos seguintes princípios:[...]IX - cooperação entre os povos para o progresso da humani­

dade.

A temática do desenvolvimento deve ser vista de um a maneira integrada às questões e exigências dos direitos humanos, comércio internacional e meio ambiente.

O Relatório do Desenvolvimento Humano do Pnud de 2000 reve­la a complementaridade entre desenvolvimento e direitos humanos e os pontos de ligação entre estes dois temas e o comércio internacional.

Os direitos humanos podem acrescentar valor à agenda do desen­volvimento, agregando instrumentos legais e instituições, legitimida­de moral e princípio de justiça aos objetivos do desenvolvimento.

Em outras palavras, a tradição dos direitos humanos pode trazer proteção social contra potenciais ameaças aos ganhos progressivos do desenvolvimento (tais como instabilidades do mercado financeiro).

Por seu turno, o discurso do desenvolvimento, com seus concei­tos e instrumentos de análise, possibilita uma perspectiva dinâmica

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de longo prazo para o cumprimento dos direitos, canalizando a aten­ção para o contexto socioeconômico, em que os direitos podem ser realizados (ou violados).

Nem toda sociedade está apta a assegurar de forma plena, ao mes­mo tempo e em todas as suas dimensões, a totalidade dos direitos humanos. A abordagem do desenvolvimento permite criar um pro­grama de ação apto ã implementação progressiva a partir de um pa­drão m ínim o de respeito.

Em uma análise a longo prazo, esta estratégia acaba por fortale­cer a indivisibilidade e complementaridade dos direitos humanos.

Para além de se construir um a hierarquia entre os direitos, tal abordagem possibilita análise, compreensão e escolha de recursos e políticas públicas com vistas à superação de constrangimentos eco­nômicos e institucionais à progressiva realização dos direitos.

Promover os direitos hum anos sob a ótica do desenvolvimento significa a criação de estratégias de ação política para a criação de um ambiente social e econômico propício à paulatina implementação de cada direito humano.

Além disso, a interação direitos humanos-desenvolvimento con­fere legitimidade democrática ao processo de desenvolvimento, oti­miza as políticas públicas e fortalece as instituições democráticas.

Para o Brasil, além destes resultados serem de per se cruciais pa­ra o bem-estar de seu povo, são também geradores de credibilidade para sua inclusão na cooperação internacional e para o financia­mento internacional de seu desenvolvimento. Tal credibilidade não se alcança somente com o respeito à dimensão humana do desenvol­vimento, mas também com sua dimensão ambiental.

Nas linhas precedentes, ficou demonstrada a indissolubilidade entre desenvolvimento e meio ambiente no surgimento do conceito de desenvolvimento sustentável.

O relatório do Pnud chama a atenção, em matéria de desenvol­vimento e direitos humanos, para uma responsabilidade que sai da órbita estritamente estatal e das fronteiras nacionais. Aqui, adentra- se na temática do comércio internacional.

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UMA B R E V E I N T R O D U Ç Ã O À Q U E S T Ã O DO D E S E N V O L V I M E N T O

Verifica-se um declínio da autonomia estatal à medida que n o ­vas regras mundiais de comércio sujeitam as políticas nacionais e novos atores exercem maior influência.

O ideal é que compromissos e obrigações relativos a desenvolvi­mento, direitos hum anos e meio ambiente tenham reflexos sobre as regras de comércio internacional, atualmente as únicas que verda­deiramente sujeitam as políticas nacionais.

Entretanto, afigura-se problemático vincular os novos agentes do comércio internacional (notadamente os grupos empresariais) através de um sistema normativo que, não obstante profundas transformações quantitativas e qualitativas no século xx, não perdeu sua natureza interestatal: feito por Estados e para vincular Estados.

Resta o desafio: como levar o ideal de desenvolvimento, direitos hum anos e meio ambiente para um setor da vida social que o Esta­do como conhecido não tem condições de regular?

Assim, para a realidade brasileira o desenvolvimento em combi­nação com os três grandes temas (direitos humanos, meio ambien­te e comércio internacional) afigura-se bastante relevante. A via da cooperação internacional para a promoção do desenvolvimento sus­tentável, com toda a sua estrutura institucional e normativa, pode ser usada pelo Brasil para a melhoria do padrão de vida de seus ha­bitantes, superação das desigualdades sociais e regionais, fortaleci­mento das suas instituições democráticas e, em um raciocínio mais utilitarista, para incrementar a competitividade de seu setor p rodu­tivo e galgar inserção no mercado global.

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3Estado, Desenvolvimento e Políticas Públicas

F e r n a n d o C a r d i a

Introdução: desigualdades Norte-Sul e desenvolvimento - 1. Estado e desenvolvimento - 1.1. Estado, reforma e desenvolvi­mento - 1.2. O desenvolvimento na Constituição - 1.3. Estado, desenvolvimento e políticas públicas - Considerações finais - Referências

INTRODUÇÃO: DESIGUALDADES NORTE-SUL E DESENVOLVIMENTO

Partir-se-á de um ponto que não será discutido: o direito ao desenvolvimento é um direito humano. Outra não é a idéia da De­claração sobre o Direito ao Desenvolvimento da Assembléia Geral das Nações Unidas, de 04.12.1986 (Resolução n. 41/128 da Assem­bléia Geral da ONU), senão incorporar o desenvolvimento no dis­curso dos direitos humanos; transformar um objeto de coopera­ção internacional entre Estados em um direito subjetivo de todos os povos e indivíduos; transformar uma questão econômica e de mercado na base legitimadora do Estado, da sociedade e da co­munidade internacional.

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O direito subjetivo ao desenvolvimento é de vocação internacio­nal, uma vez que todos os assuntos pertinentes ao desenvolvimento há muito deixaram de ser da competência exclusiva dos Estados. Configuram-se, ao contrário, como problemas globais.

Direito que tem por objeto não apenas o desenvolvimento eco­nômico. Às vezes, a busca pelo mero crescimento econômico choca- se com outros elementos do discurso do direito ao desenvolvimento como direito humano. Busca-se através dele o desenvolvimento so­cial, cultural e político, com o fortalecimento das instituições dem o­cráticas. Desenvolvimento esse possível para as presentes e futuras gerações. Em suma, um desenvolvimento humana e ambientalmen- te sadio.

Quanto à sua origem, tal discurso nada tem de hegemônico, mas sim de democrático, plural.1 Foi criado e tem sido paulatinamente renovado notadamente pela atuação da Assembléia Geral da Orga­nização das Nações Unidas ( o n u ) e de Organizações Não-Governa- mentais ( o n g s ) . Enquanto na Assembléia Geral da ONU o forte é a representatividade dos Estados periféricos e semiperiféricos do sis­tema mundial, nas o n g s prevalece o princípio comunitário, assente na obrigação política horizontal cidadão a cidadão.2

Esse é o sentido do discurso do direito ao desenvolvimento en­quanto direito humano.

1 Ou cosmopolita, usando termo de Boaventura de Sousa Santos ( Uma concepção multicultural de Direitos Humanos. Lua Nova, n. 39,1997. p. 105 e s.). O sociólogo por­tuguês ensina que o discurso dos direitos humanos tem ocupado o espaço deixado pelo socialismo enquanto política progressista e emancipatória. Entretanto, para o êxi­to de tal função, uma concepção multicultural, com abrangência global e legitimida­de local, deve ser adotada. Um projeto cosmopolita de direitos humanos, que já vem sendo colocado em prática por algumas Organizações Não-Governamentais, para fa­zer face a um discurso universalizante de direitos humanos, hegemônico e de discutí­vel legitimidade (globalização de-cima-para-baixo na modalidade globalização de um localismo). O conteúdo do direito ao desenvolvimento evidencia a proximidade com esse projeto cosmopolita ou globalização de-baixo-para-cima.

2 Vide SANTOS, B. de S. “Para uma reinvenção solidária e participativa do Esta­do: Sociedade e Estado em Transformação”. In: BRESSER PEREIRA, L. C.; WILHEIM, J. & SOLA, L. (orgs.). São Paulo, Unesp/Brasília, Enap, 1999. p. 243 e s.

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A realidade do poder mundial vai em sentido oposto, no da as­simetria e das profundas desigualdades.3 Em artigo publicado na Folha de S. Paulo4y Gilberto Dupas traz dados que bem vão servir pa­ra ilustrar o que se está querendo dizer. Os Estados Unidos sozinhos detêm 32% do Produto Interno Bruto (p ib ) mundial, sendo que só o que é destinado aos gastos militares é igual a todo o pib russo. Caso se ju n te m aos Estados Unidos somente mais cinco Estados (Japão, Reino Unido, Alemanha, França e Itália), haverá 64% do pib

mundial. Seguindo este bloco está outro, composto por onze Estados (dentre eles Canadá, Espanha, Austrália, Holanda e Áustria) de ten­tores de 10% do PIB mundial e de 3% da população. Os grandes

3 Os números aqui apresentados bem ilustram a chamada desigualdade Norte- Sul. Tal análise é bastante útil para a compreensão das assimetrias do poder mundial e para a compreensão do discurso do direito do desenvolvimento na Nova Ordem Econômica Internacional. Cumpre reconhecer que para a compreensão do discurso do direito ao desenvolvimento enquanto direito hum ano tal enfoque não basta. É necessário não restringir o objeto de estudo às desigualdades entre Estados, principal­mente se levarmos em conta um cenário no qual o Estado deixou de ser o único ator da regulação social. Assim, cresce em importância a análise das desigualdades Norte- Norte ou Sul-Sul. Melhor dizendo: as abissais desigualdades existentes dentro de cada sociedade, sejam elas correspondentes aos Estados centrais ou periféricos. Amartya Sen pode nos trazer alguma luz nessa compreensão. Em seu Desenvolvimento como liberdade (São Paulo, Companhia das Letras, 2002. p. 27-50.) traz elementos para o estudo do desenvolvimento em profunda relação com a efetivação das capacidades humanas, que vão muito além da rançosa limitação da idéia de pobreza à renda. Entretanto trazer toda a luminosa abordagem de Amartya Sen a este estudo seria tare­fa por demais pretensiosa e inglória. Assim, a título de exemplo, tome-se a feliz com ­paração que faz entre a população negra dos Estados Unidos da América e populações de outros Estados periféricos. Avaliando gráfico sobre expectativa de vida de popula­ções dos Estados Unidos (branca e negra), da China e do estado indiano de Kerala, chegou à conclusão de que grupos específicos nos Estados ricos sofrem privações semelhantes às sofridas por populações nos Estados do chamado Terceiro M undo ou periféricos. Não obstante o abismo de renda existente entre os afro-americanos (com maior renda) e os habitantes do estado de Kerala (com m enor renda). Além de sola­par a tradicional dependência apregoada entre renda e pobreza, incluindo na discus­são outros elementos como acesso a serviços públicos, direitos civis e liberdades políticas, Amartya Sen demonstra a existência de grupos populacionais privados da efetivação de suas capacidades humanas em meio à opulência dos Estados centrais.

4 DUPAS, G. Folha de S. Paulo, 29.9.2002. Caderno A, Tendência e Debates, p. 3.

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Estados da periferia - ou da semiperiferia, como melhor classificam outros autores China, Brasil, México, Coréia do Sul, índia, Argen­tina, Rússia, Turquia, Polônia, Indonésia, África do Sul e Tailândia, correspondem a 53% da população mundial e detêm somente 14% do PIB. O resto, nada menos que 176 Estados e 33% da população, detém 10% do pib. Copiando Dupas, estes últimos:

são relativamente irrelevantes para a lógica do poder mundial e con­centram enorme miséria. Para a grande maioria deles, o mundo global não tem nenhuma palavra de consolo. Eles entram em sua agenda só quando são produtores de drogas, sede de grupos terro­ristas ou estão submetidos a uma situação grave de genocídio.5

A essas desigualdades apontadas por Dupas outras se somam.6Os Estados periféricos (o Sul) estão às portas de uma explosão

demográfica. Ao contrário da primeira explosão ocorrida no Norte (século xvm), cujos efeitos catastróficos foram impedidos pelo avan­ço tecnológico na produção agrícola e industrial, aos Estados do Sul, privados de suficiente tecnologia (concentrada no Norte), só resta a saída da emigração. Saída bastante difícil, uma vez que os atuais alvos das legiões de emigrados (o Norte) dispõem de condições suficientes para barrar o fluxo. Mais uma vez os números chocam: quinze m i­lhões de pessoas aguardam em campos de internamento.

Tecnologia, aliás, é outro setor no qual as desigualdades se avo­lumam. Os Estados do Sul não perdem em tecnologia só para os Es­tados do Norte, mas também para multinacionais, cada vez mais de­tentoras de maiores fatias do mercado mundial (na década de 1990, as quinze maiores indústrias farmacêuticas chegaram a deter quase 30% do mercado). Força potencializada face à erosão da eficácia do Estado na gestão macroeconômica.

O mercado global cresce, ao contrário da participação dos Estados periféricos na produção e consumo de riqueza, que só tem diminuído.

5 DUPAS, G. Op. cit.6 SANTOS, B. de S. Pela mão de Alice. São Paulo, Cortez, 1995. p. 284 e s.

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Os juros da dívida externa, por outro lado, só aumentam. Cal- cula-se que na década de 1990, em razão dos juros, a transferência líquida do Sul para o Norte foi de USS 40 bilhões/ano.

Aparentemente, o único setor em que Norte e Sul se equalizam é o dos efeitos nocivos da degradação ambiental. Será?

Entre as notícias de lohannesburgo durante a Rio+10, houve um artigo escrito por Geoffrey Lean, de The Independent, intitulado “Aquecimento global beneficia americanos” Na verdade, o artigo faz alusão a um relatório da ONU apresentado durante a Conferência de Johannesburgo (2002). Segundo tal documento, os Estados pobres sofreram perdas maciças de produção de alimentos e de terra culti- vável com o aquecimento global. Entre as regiões atingidas estão principalmente a África, Sudeste Asiático, América Central, Caribe, Austrália, Oriente Médio e partes da Europa. Entretanto, algumas regiões ganharam terras cultiváveis: Escandinávia, Rússia e América do Norte. Tais dados precisam ser melhor avaliados para não se cor­rer o risco de ser leviano. Mas a sua análise rápida gera preocupa­ções. Principalmente se for levado em conta que, diante de uma abordagem de vantagens comparativas, talvez a única válvula de es­cape para as economias dos Estados pobres seja a agroindústria. Co­mo se não bastassem as barreiras comerciais...

Vislumbra-se, portanto, um abismo na chamada aldeia global. De um lado tem-se 17 Estados, 14% da população mundial, 74% do pib, maior parte da tecnologia, os credores da dívida externa dos Estados pobres (e seus US$ 40 bilhões livres ao ano) e futuramente grandes produtores de alimentos. De outro, tem-se 188 países, 86% da população (boa parte vivendo a quilômetros de distância da tão aclamada dignidade humana), 14% da riqueza.

A situação piora diante da incapacidade dos Estados periféricos, maioria em núm ero e em contingente populacional, em articular posicionamentos conjuntos na comunidade internacional. É um grupo ex trem am en te heterogêneo e com interesses econôm icos p o r vezes d iam etralm ente opostos. Vide o fiasco da Conferência de Johannesburgo.

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Tendo por subsídio esta somatória de fatos, fica um pouco m e­nos difícil compreender a hegemonia (no sentido Norte-Sul) do m o­delo liberal globalizante com suas idéias-base: liberalização de mer­cados e redução do tam anho do Estado (e o inerente saneamento das contas públicas). Fica mais fácil também entender como tal he­gemonia foi capaz de emperrar o programa da Nova Ordem Econô­mica Internacional (Noei), a partir da subida ao poder nos Estados centrais do final da década de 1970 e início da de 1980 de governos conservadores, imbuídos do desejo de corte de gastos públicos, prin­cipalmente aqueles direcionados à ajuda externa.

Discute-se hoje a própria vigência desse discurso hegemônico, tanto no centro como na periferia.

Depois de duas décadas, percebe-se, nos Estados do Sul, que não foram obtidos os ganhos prometidos pela economia globalizada: a participação nesta só diminuiu e o núm ero de miseráveis só aum en­tou. E uma coisa é verdade: por mais assimétrica que seja a distribui­ção de poder, nenhum discurso torna-se ou se mantém hegemônico se seu destinatário, a parte mais fraca, não vislumbra algum tipo de ganho. Nem sequer nos Estados centrais sua vigência é ardentemen­te defendida. Vide os protecionismos.

O fato é que as grandes assimetrias do poder mundial, e a hege­monia que delas decorre, geram obstáculos à cooperação interna­cional institucionalizada em prol do desenvolvimento, seja ele m e­ramente econômico (Noei) ou hum ano e sustentável.

Este é o grande desafio do discurso do direito ao desenvolvi­mento como direito hum ano consagrado pela ordem internacional. É o mesmo ao qual sucumbiu a Noei.

Seu grande trunfo, diferentemente desta, é a herança do dis­curso dos direitos humanos, sua base normativa e sua legitimidade política.

A arena está montada, e está ocorrendo o embate da economia de mercado globalizada, enquanto discurso hegemônico, contra o desenvolvimento sustentável, como discurso contra-hegemônico.

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1. ESTADO E DESENVOLVIMENTO

1.1. ESTADO, REFORMA E DESENVOLVIMENTO

Estes são os dilemas da cooperação internacional pelo desenvol­vimento. Grandes o suficiente para gerar a descrença em muita gen­te fora do meio jusinternacionalista.

Entende-se que o desenvolvimento seja um processo de longo prazo de natureza endógena, baseado em fatores internos. O u seja, é responsabilidade de cada povo e, principalmente, de cada Estado, que o movimentará através de políticas públicas.7

Em verdade, a cooperação internacional não exclui nem contra­diz a busca interna pelo desenvolvimento. Ao contrário, elas se com ­plementam.

O utra não é a intenção da Declaração sobre o Direito ao Desen­volvimento ao colocar o Estado, individual ou coletivamente consi­derado, como o principal prom otor do desenvolvimento.

Além do mais, é garantida a cada Estado a adoção do modelo de desenvolvimento que mais se adequar à realidade de seu povo.

E a cooperação internacional nisto não poderá intervir, em razão de um princípio fundante da ordem internacional: a autode­terminação dos povos.

Obviamente, o modelo adotado deverá buscar obrigatoriamen­te a plena e progressiva efetivação dos direitos hum anos (civis, polí­ticos, econômicos, sociais e culturais), bem como a sustentabilida- de ambiental. Isso não se configura como desrespeito ao princípio supracitado, pois, como foi visto no artigo anterior, tal efetivação dos direitos hum anos foi incorporada ao próprio conceito ju r íd i­co de desenvolvimento. Se assim não fosse, constituem o núcleo do jus cogens internacional.8

7 COMPARATO, F. K. A afirmação histórica dos Direitos Humanos. 2. ed. São Paulo, Saraiva, 2001. p. 396 e s.

8 “Segundo Fausto de Quadros (“La Convention Européenne des Droits de 1’Homme: un casde ius cogens Régionel?” In: Richt Zwischen Umbruch ud Bewahrung

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Em suma, a cooperação internacional dos Estados, baseada na interdependência e transnacionalização das questões ligadas ao de­senvolvimento, e a ação interna do Estado não se excluem, mas se complementam na busca de um desenvolvimento que tenha por ob ­jeto a eqüidade, a efetivação dos direitos hum anos e a sustentabili- dade ambiental.

Mas tanto em um caso como em outro, o agente principal é o Estado, com suas políticas públicas formuladas internacionalmente e nacionalmente (respectivamente art. 4o, n. 1 e art. 2o, n. 3 da De­claração sobre o Direito ao Desenvolvimento).

O objeto do presente estudo é dar um panorama normativo das políticas públicas em nível nacional. Mostrar como o discurso inter­nacional do desenvolvimento e como o discurso do desenvolvimen­to já incorporado pelo Texto Constitucional serve de norte para o Poder Público na formulação de políticas públicas. Mas como pre­tende-se aqui estudar a conduta do Estado, tratar-se-á brevemente de um problema que é subjacente a qualquer discussão de direito públi­co: a crise do Estado. Na verdade, tentar-se-á demonstrar, no encalço do pensamento de Boaventura de Souza Santos9, qual Estado está em crise. Ou melhor, qual parte ou função do Estado está em crise.

Não se vai, contudo, aqui, reproduzir todo o complexo entendi­mento do autor português.

Festschrift fu r Rudolf Bernhardt, Heidelberg, Springer-Verlag, 1995. p. 555-6), ius cogens é direito imperativo e corresponde ao ius strictuni do direito romano, que se opõe ao ius dispositivuniy vale dizer, o direito que é criado pela vontade das partes. A admissão de regras de um direito internacional imperativo significa a aceitação do princípio se­gundo o qual a comunidade internacional se funda sobre Valores fundamentais’ ou so­bre ‘regras essenciais’ que compõem a ordem pública (ordre public) internacional’, e que, por conseqüência, vincula todos os sujeitos de direito internacional. Foi, sobretu­do a partir da renovação do direito natural e da revolta de consciências diante dos hor­rores da Segunda Guerra Mundial, que o sentimento, segundo o qual a ordem jurídica deve se fundar sobre alguns valores fundamentais exteriores à esfera de disposição dos sujeitos de direito internacional e impositivas em relação à sua vontade, se generalizou na doutrina. Na jurisprudência, o caso paradigmático quanto ao ius cogens é o Barcelona Traction da Corte Internacional de Justiça. O reconhecimento legal veio com os arts. 53 e 64 da convenção de Viena sobre Direito dos Trabalhos (1969)”.

9 Vide SANTOS, B. de S. Op. cit., p. 243 e s.

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Assim, segundo o autor, dois são os modelos de transformação social na modernidade: a revolução e o reformismo. Não se está nem perto de um período revolucionário. Por isso, mais relevante é o re­formismo.

Reformismo é a mudança social pelo Estado. Distribui-se em três estratégias fundamentais: acumulação, confiança e legitimação. O processo do reformismo se dá pela dialética entre melhoria e re­petição, geralmente encampados por dois grupos, cuja oposição é o próprio m otor da reforma. Segundo o autor:

Através das estratégias da acumulação, o Estado garantiu a esta­bilidade da produção capitalista. Através das estratégias da confian­ça, o Estado garantiu a estabilidade das expectativas dos cidadãos ameaçados pelos riscos decorrentes das externalidades da acumu­lação capitalista e da distanciação das ações técnicas em relação às suas conseqüências e, portanto, ao contexto imediato das intera­ções humanas. Através das estratégias de hegemonia, o Estado ga­rantiu a lealdade das diferentes classes sociais à gestão estatal das oportunidades e dos riscos e, nessa medida, garantiu sua própria estabilidade, tanto enquanto entidade política enquanto entidade administrativa.10

Cada uma das estratégias determina campos específicos de inter­venção social. O da acumulação é a mercantilização do trabalho, de bens e serviços (repetição: sustentabilidade da acumulação; melhoria: crescimento econômico). Na hegemonia, são três campos: participa­ção e representação política (repetição: democracia liberal; melhoria: expansão dos direitos de cidadania); consumo social (repetição: paz social; melhoria: eqüidade social); e consumo cultural (repetição: identidade cultural; melhoria: distribuição do conhecimento e infor­mação). Na confiança, também são três os campos: riscos nas relações internacionais (repetição: soberania nacional; melhoria: luta por me­lhor posição no sistema); riscos das relações sociais (repetição: ordem

10 Op. cit., p. 245.

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jurídica em vigor; melhoria: prevenção dos riscos e aumento da capa­cidade repressiva); e riscos da tecnologia e acidentes ambientais (re­petição: sistema de peritos; melhoria: avanço tecnológico).

Este é o funcionamento em largas linhas do Estado reformista.O paradigma que se tem de modelo de transformação social é

o Welfare State (nos países centrais) e o Estado Desenvolvimentista (nos países periféricos).

Três são os pressupostos para a sua manutenção: pouca interfe­rência externa, capacidade reguladora do Estado assentada na sua capacidade financeira e vice-versa e a não ocorrência em larga esca­la dos riscos que o Estado gere através das estratégias da confiança.

O fato é que o Estado reformista está em crise desde a década de 1980. A dialética entre repetição e melhoria perdeu-se. A capacida­de financeira e reguladora do Estado foi minada enquanto os riscos atingiram escalas não suportáveis pela gestão nacional. O d iscur­so do capitalismo globalizado e o seu braço político (o Consenso de Washington) desestruturaram o equilíbrio entre as estratégias do Es­tado reformista (acumulação, hegemonia e confiança) em prol de uma nova articulação com prevalência da estratégia da acumulação.

Diz-se que o capitalismo global enfraqueceu o Estado. É meia verdade. De fato, o que ocorreu foi a mudança da força do Estado de uma estratégia para outra. Nas palavras de Boaventura:

[...] A força do Estado, que no período do reformismo consis­tiu na capacidade do Estado em promover interdependências não mercantis, passou a consistir na capacidade do Estado em subme­ter todas as interdependências à lógica mercantil. O mercado por si só está longe de o fazer sem correr o risco da ingovernabilidade.11

Esta mudança na articulação das estratégias do reformismo nas­ceu do consenso, a partir das exigências do capitalismo global, de que o Estado reformador era irreformável. Logo, deveria se tornar mínimo.

11 Op. cit., p. 247.

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O problema é que este movimento gerou exclusão social e degradação da qualidade de vida da maioria. Quadro que, agora, legitima e deter­mina a reforma do Estado que antes era considerado irreformável.

Neste novo processo reformador (e aqui chega-se ao ponto que interessa ao presente estudo), a capacidade de realizar interdepen­dências não mercantis não está e não pode estar exclusivamente a cargo do Estado.

Como o princípio do Estado e o princípio do mercado mostraram- se falhos na capacidade de regulação social, cresce em importância um terceiro princípio outrora esquecido: o princípio comunitário. Novamente, nas palavras clarividentes de Boaventura:

[...] Do meu ponto de vista, estas transformações são tão pro­fundas que, sob a mesma designação de Estado, está a emergir uma nova forma de organização política mais vasta que o Estado, de que o Estado é o articulador e que integra um conjunto híbrido de fluxos, redes e organizações em que se combinam e interpene- tram elementos estatais e não-estatais, nacionais, locais e globais.

[...] Se é certo que o Estado perde o controle da regulação social, ganha o controle da meta-regulação, ou seja, da seleção, coordena­ção, hierarquização e regulação dos agentes não-estatais que, por subcontrataçâo política, adquirem concessões de poder estatal.12

Chega-se ao ponto: a regulação social do novo Estado, reforma­do e reformador, deverá passar necessariamente por este novo ator: sociedade civil organizada, terceiro setor, ongs o u o que mais aprouver ao leitor. Atuação conjunta e coordenada sob as mais variadas m oda­lidades: concessão, convênio, parceria, fomento, contrato de gestão etc.

Para o direito ao desenvolvimento, a percepção dessa realidade assoma em importância.

A compreensão da relação entre estes dois vetores da regulação social, Estado e Terceiro Setor, é vital para a atual compreensão das políticas públicas, m otor do processo de desenvolvimento. A forma,

12 Op. cit., p. 264-5.

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conteúdo e aplicação que lhe serão dados pelos poderes do Estado, no tadam ente a Administração e o Judiciário, em sua in terpreta­ção concretizante e politizada, deverão ser norteados por esta nova configuração da regulação social.

1.2. O DESENVOLVIMENTO NA CONSTITUIÇÃO

Até agora foram avaliados os dilemas da temática do desenvolvi­mento na cooperação internacional e no plano nacional. Agora, será traçado um panorama normativo do desenvolvimento na Constitui­ção Federal Brasileira de 1988. Um breve inventário das disposições constitucionais.

Primeiramente, cabe elucidar qual o conceito de desenvolvimen­to adotado pela Constituição Federal. É possível responder de plano: desenvolvimento humano, entendido como a prom oção progressi­va dos direitos humanos (individuais, socioeconômicos e culturais), ambientalmente saudável, para as presentes e futuras gerações.

Tal resposta não está explícita no Texto Constitucional. Não há um capítulo intitulado Do desenvolvimento humano ou Do desen­volvimento sustentável. Nem muito menos há um a norm a consti­tucional conceituando o desenvolvimento. Aliás, sabe-se que não é próprio da norm a jurídica a conceituação, mas sim a imposição de com portam entos.

Tal resposta decorre, na verdade, da interpretação de um a série de dispositivos pulverizados pela Constituição.

Interpretação que comprova que, em matéria de desenvolvimen­to, direitos humanos e meio ambiente, a normativa constitucional bra­sileira está afinada com o direito ao desenvolvimento reconhecido pela ordem internacional como um direito humano.

Interpretação que nos permite seguir Antônio Augusto Cançado Trindade13 no sentido de que, em matéria de direitos humanos (e aí

13 CANÇADO TRINDADE» A. A. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos, v.l. Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris Editor, 1997. p. 22, 23, 403 e s.

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está incluído o direito ao desenvolvimento), o Direito Internacional e o direito interno formam um todo harmônico, com a prevalência da norma mais favorável. Outro não é o alcance e o sentido do art. 5o, § 2o, da Constituição Federal.

Comecemos pelo preâmbulo. Revela-se que a República Federa­tiva do Brasil foi instituída como um Estado democrático destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais (essa inver­são é particularmente interessante), a liberdade, a segurança, o bem- estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supre­mos. A opinião corrente entre os constitucionalistas pátrios é de que o preâmbulo não tem força normativa. Tal posicionamento pode ser discutido, mas esse não é o intuito deste trabalho. Aceita-se a posição dominante. Mas, mesmo assim, deve-se reconhecer um sentido ao preâmbulo: o de repositório dos valores máximos da sociedade bra­sileira e, portanto, guia do intérprete e aplicador do direito na densi- ficação e concretização das normas, constitucionais ou não.14

Passe-se para o Texto Constitucional propriamente dito. O art. 3o elenca os objetivos da República. Entre eles estão: 1) a garantia do desenvolvimento nacional; 2) a erradicação da pobreza e marginali- zação; 3) a redução das desigualdades sociais e regionais; e 4) a p ro ­moção do bem de todos com isonomia. Se não bastasse, é funda­mento da República a dignidade da pessoa humana (art. 2o, Iil), cuja promoção e respeito, como se sabe, é o próprio conteúdo do desen­volvimento. Aí está a ligação da temática do desenvolvimento com todo o Título II (Dos Direitos e Garantias Fundamentais).

O desenvolvimento como objetivo da República tem seus ele­mentos mais profundamente descritos nos Títulos vn (Ordem Econô­mica e Financeira) e vm (Ordem Social). O art. 170 traz os princípios da Ordem Econômica. Entre eles: defesa do meio ambiente, redução das desigualdades regionais e sociais e busca do pleno emprego. O art. 174 delineia o papel do Estado como agente normativo e regulador da atividade econômica, tendo por função a fiscalização, o incentivo e o

14 BONAVIDES, P. Curso de direito constitucional. 7. ed. São Paulo, Malheiros, 1997.

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planejamento, determinante para o setor público e indicativo para o setor privado. O art. 179 prevê tratamento diferenciado para as pe­quenas e médias empresas. O art. 182 determina a formulação de uma política de desenvolvimento urbano que tenha por base a fun­ção social da propriedade urbana e o bem-estar de seus habitantes. O art. 187 prevê as diretrizes da política agrícola e a participação dos setores sociais interessados em sua formulação. O art. 192 prescreve que o sistema financeiro nacional deve ser estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do Brasil. O art. 194 pres­creve que as iniciativas dos Poderes Públicos e da sociedade consti­tuem um conjunto de ações para a promoção dos direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social.

Na verdade, é difícil achar uma só disposição da Ordem Social (seguridade, educação, cultura, ciência e tecnologia, meio ambien­te), com seus programas e diretrizes, que não esteja diretamente re­lacionada às questões do desenvolvimento.

Aos dispositivos da Ordem Econômica e Social outros tantos se somam. Os arts. 21 e 23, que delimitam as competências materiais das esferas da Federação. O art. 43, que prevê a competência da União para articular ações em um mesmo contexto geoeconômico e social com vistas ao desenvolvimento e redução das desigualdades regio­nais. O art. 48, IV, que coloca os planos e programas nacionais, re­gionais e setoriais de desenvolvimento entre as matérias que podem ser apreciadas pelo Congresso Nacional.

Uma série de dispositivos da Ordem Tributária, que criam imu- nidades e incentivos para atividades essenciais ao desenvolvimento.

Outros tantos do Ato das Disposições Constitucionais Transitó­rias, como os arts. 71 e 72, que prevêem o Fundo Social de Emergên­cia, ou os arts. 77 e seguintes, que prevêem o Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza.

Ou seja, existe, na Constituição Federal de 1988, uma gama de dispositivos direta ou indiretamente ligados às questões do desenvol­vimento. Dispositivos que adquirem a forma ora de princípios, ora de programas a serem realizados pela ação governamental. Como deverão ser interpretados e aplicados é o que se verá agora.

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HERMENEUTICA DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS SOBRE O DESENVOLVIMENTO

Normas-princípio

A Constituição, materialmente falando, geralmente possui natu­reza principiai. As normas do sistema jurídico assumem a categoria ou de princípios ou de regras. Algumas são tanto princípios como regras. A distinção entre as duas categorias pode se dar sob a forma gradativa ou qualitativa. Paulo Bonavides, explicando o entendimen­to de Robert Alexy, assim colaciona a respeito de tais critérios:

Ponto determinante desse critério - entendidos os princípios como “mandamentos de otimização” (Optimierungsgebot) - é o reconhecimento de que eles são normas.

Mas normas de otimização, cuja principal característica consis­te em poderem ser cumpridas em distinto grau e onde a medida imposta de execução não depende apenas de possibilidades faticas, senão também jurídicas.

Daqui resulta, segundo ele, que a esfera das possibilidades jurí­dicas se determina por princípios e regras de direção contrária. Por outro lado, as regras, prossegue Alexy, são normas que podem sempre ser cumpridas ou não, e quando uma regra vale, então se há de fazer exatamente o que ela exige ou determina. Nem mais, nem menos.15

A distinção se torna evidente quando se analisa o conflito no cam ­po das regras e o conflito no plano dos princípios. Um conflito entre regras só se resolve pela exclusão de uma delas a partir de um juízo de validade/nulidade. Agora, se um princípio preceituar num senti­do e outro noutro sentido, um deles irá recuar, na aplicação em con­creto, em um determinado tempo e lugar. Isso não significa que um princípio será nulo. O juízo nesse campo é outro: é um juízo de peso ou de valor.

15 BONAVIDES, P. Op. cit., p. 250.

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José Joaquim Gomes Canotilho delineia bem o campo dos prin­cípios e o campo das regras, com o reconhecimento da normativi- dade dos primeiros:

Regras - insista-se neste ponto - são normas que, verifica­dos determinados pressupostos, exigem, proíbem ou permitem algo em termos definitivos, sem qualquer excepção (direito de­finitivo).

[...]Princípios são normas que exigem a realização de algo, da me­

lhor forma possível, de acordo com as possibilidades fácticas e ju­rídicas. Os princípios não proíbem, permitem ou exigem algo em termos de “tudo ou nada”; impõem a optimização de um direito ou de um bem jurídico, tendo em conta a “reserva do possível”, fác- tica ou jurídica.16

Cabem, agora, algumas elucidações sobre o método da concre­tização e sua pertinência à natureza da norma-princípio.

A estrutura textual das normas-princípio é caracterizada por fórmulas amplas, vagas e maleáveis, cuja aplicação requer do intér­prete um a certa diligência criativa, complementar e aditiva para lo­grar a completude e fazer a integração da norm a na esfera de eficácia e juridicidade do próprio ordenamento.

Não é possível separar a norm a de seu âmbito normativo. Na verdade, é o âmbito da norm a (ou seja, a realidade afetada pelo pro­grama da norma) o elemento material constitutivo da própria no r­ma. O texto do qual se retira o programa da norm a apenas dirige e limita, dentro de sua moldura, as possibilidades de uma determina­da concretização material do Direito. Não tem o texto uma im por­tância inerente, mas somente quando incluído numa operação ativa de concretização. O ser e o dever-ser não são, assim, esferas incom u­nicáveis, como entendiam os positivistas.

16 CANOTILHO, J. J. G. Direito constitucional e teoria da Constituição. Coimbra, Livraria Almedina, 1998. p. 1123.

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O método da concretização, claramente influenciado pela tópica, é de mais fácil visualização na interpretação das normas-princípio, e de menor na das normas-regras. Naquelas, o juízo de ponderação que se faz, muitas vezes, diante de dois princípios com igual força norm a­tiva abstrata, demonstra bem a relevância do âmbito da norma (do espectro fáctico incidido por um valor) na determinação em concre­to da norma.

Poder-se-ia argumentar que a aplicação do Direito sob estes mol­des implicaria um aumento abusivo de poder nas mãos do juiz. Entretanto, a concretização dos princípios não é a livre criação do Direito. O texto normativo, carregado de fórmulas abstratas, não obstante não ser a norm a em si, continua sendo o parâmetro obje­tivo para a concretização ao qual o juiz não se pode furtar.

Normas-programa

Não se vai aqui entrar na velha e superada discussão sobre a natu­reza jurídica ou política das normas programáticas. Partir-se-á de um ponto: não são meros planos políticos; são normas jurídicas e, portanto, vinculam.

Apesar de necessitarem de norma futura regulamentadora, pode- se dizer que, por serem normas jurídicas, elas possuem um mínimo de eficácia, que se torna imediata, direta e vinculante em alguns casos como quando17:

estabelecem um dever para o legislador; condicionam as legislações futuras no sentido de elas não pode­rem dispor diferentemente da norm a programática sob pena de inconstitucionalidade;informam as concepções e fins do Estado e da sociedade e ins­piram o ordenamento jurídico;

17 SILVA, J. A. da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 3. ed. São Paulo, RT

1998.

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constituem sentido teleológico para a interpretação, integração e aplicação das normas jurídicas;condicionam a atividade discricionária da Administração e do Judiciário.

1.3. ESTADO, DESENVOLVIMENTO E POLÍTICAS PÚBLICAS

Depois desse longo percurso pelas dificuldades da cooperação internacional pelo desenvolvimento, pelas transformações sofridas pelo Estado em seu papel e pelo alcance das normas jurídicas que têm por conteúdo o desenvolvimento, chega-se ao ponto conclusivo desse trabalho: como o Estado cumpre seu papel de principal pro­m otor do desenvolvimento no plano interno? Resposta simplista: políticas públicas.

Se a resposta parasse por aí, tudo estaria tranqüilo e superficial. Por isso, deve-se complicar. O que são políticas públicas? Como o conceito de políticas públicas se relaciona com o conceito de desen­volvimento? Como surgiu? Em que época? Como evoluiu? Quem no Estado as formula? E quem as aplica? Quais são os instrumentos de sua aplicação? Como configurá-las de forma a adequá-las a um novo Estado metarregulador social, relembrando Boaventura?

Pela densidade e quantidade de perguntas, percebe-se que, neste espaço, apenas se dará um início de resposta. Um panorama que poderá e deverá ser, posteriormente, completado.

CONCEITO E EVOLUÇÃO

[...] A política se define como o processo de escolha dos meios para a realização dos objetivos do Governo com a participação dos agentes públicos e privados. Políticas públicas são os programas de ação do governo para a realização de objetivos determinados num espaço de tempo certo.18

IS BUCCI, M. P. D. “Políticas Públicas e Direito Administrativo”. In: Revisto de Informação Legislativa. Brasília, v. 34, n. 133, jan.-mar./1997. p. 95.

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Primeiro ponto: as políticas públicas devem ser localizadas no campo da Administração Pública propriamente dita. Talvez essa seja a razão do relativo desinteresse dos juristas pelas políticas públicas. Entretanto, inúmeras são as ligações entre a temática das políticas públicas e o Direito Constitucional e o Direito Administrativo. Isso é o que agora se tentará demonstrar.

Primeiramente, deve-se situar o advento das políticas públicas como instrumento de governo em um determinado tipo de Estado: o intervencionista ou, sob a roupagem que assumiu no Brasil, Estado desenvolvimentista.

A nota característica deste modelo de Estado é a promoção de direitos hum anos econômicos e sociais. Ou seja, a inclusão de direi­tos de 21 geração no Bloco de Constitucionalidade determinou uma conduta positiva do Estado: mais do que respeito (abstenção), pro­moção. Promoção decorrente de normas de natureza programática.

Com o foi visto, tais norm as constituem programas de ação, d i­retrizes para o governo, orientação política previamente fixada. E o m odo pelo qual o Estado, seu principal destinatário e sujeito passi­vo da relação jurídico-política que delas surgem, cum priu e cumpre os dispositivos normativo-programáticos são as políticas públicas. Portanto, políticas públicas surgem como o m odo pelo qual o Esta­do implementa os direitos humanos econômicos e sociais.

Hoje, constituem o modo pelo qual o Estado realiza os imperati­vos do desenvolvimento, que aqui conceituo, seguindo Ignacy Sachs19, como a aquisição progressiva de todos os direitos humanos (civis, polí­ticos, econômicos, sociais e culturais). Esse é o primeiro ponto de inter­seção entre a temática das políticas públicas e o Direito Constitucional.

AGENTES

O segundo ponto diz respeito ao sujeito - responsável pela for­mulação e aplicação das políticas públicas. A essa questão adiciona- se uma outra: quais são os veículos normativos das políticas públicas.

19 SACHS, I. “O desenvolvimento enquanto apropriação dos Direitos Humanos.” In: Estudos Avançados, v. 12, n. 33, maio-ago./1998. p. 149-56.

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A opinião corrente é de que o principal veículo seja a lei. Assim sendo, o responsável pela sua formulação é o Poder Legislativo, atra­vés de processo legislativo regular, com ou sem participação (inicia­tiva) dos outros poderes. Ao Poder Judiciário e ao Poder Executivo caberia apenas aplicá-las. Este quadro está longe de ser tranqüilo.

Primeiro pelo lado do Poder Executivo. A doutrina administra- tivista brasileira majoritária ensina que o poder normativo da Ad­ministração se restringe à fiel execução da lei. Tal entendimento não impede poderosas vozes20 dissonantes e é cego face às exigências e à realidade da Administração Pública brasileira.

Nesses termos, a leitura do princípio da legalidade deve ser revis­ta para se legitimar maior liberdade de decisão ao Poder Executivo diante de situações da realidade social cuja natureza não se adequa ao processo legislativo. Liberdade, aliás, que o Poder Executivo já exerce de fato. Seria só legitimar política e juridicamente.

Obviamente, a liberdade não é ampla, sob pena de se inutilizar o princípio da legalidade e o próprio Estado de Direito. À lei caberia a fixação de standards21 a serem respeitados e densificados pelo adm i­nistrador.

Pelo lado do Poder Judiciário, a realidade igualmente não indi­ca respostas simples. Aquela velha noção de que o Poder Judiciário não realiza decisões políticas e a ele só caberia a automática aplica­ção da norm a ao fato há muito caiu por terra.

Desde a assunção em importância dentro do sistema jurídico das normas-princípio, com seus conceitos fluidos e plurívocos, e das normas programáticas, o Poder Judiciário vem sendo paulatinamen­te chamado a completar politicamente a mens legis e legislatoris e con­trolar, também politicamente, o administrador no exercício de suas

20 GRAU, E. R. O direito posto e o direito pressuposto. 4. ed. São Paulo, Malheiros,2002. p. 244 e s. FERRAZ Jr., T. S. “Agências Reguladoras: Legalidade e Constituciona- lidade*'. In: Revista Tributária e de Finanças Públicas, v. 8, n. 35, 2000. p. 143 e s.

21 Seguindo a doutrina americana sobre o novo modelo de Administração pública que está sendo implantado no Brasil (o gerencial). A respeito vide BRESSER PEREIRA, L. C. Reforma do Estado para a cidadania: A reforma gerencial brasileira na perspectiva internacional. São Paulo, 34/Brasília, Enap, 2002; e FERRAZ Jr., T. S. Op. cit.

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funções constitucionais. Esta é a realidade que embasa os idealizado- res da Reforma do Poder Judiciário dentro do contexto maior da Re­forma do Estado.

Assim, em suma e simplificadamente, na formação e aplicação de políticas públicas, ao Poder Legislativo cabe a fixação de standards22; ao Poder Executivo cabe o preenchimento desses standards e sua materialização; e ao Poder Judiciário cabe o controle (político inclu­sive) da conduta, comissiva ou omissiva, do administrador neste desiderato.

INSTRUMENTOS

A Administração Pública, na implementação de políticas públi­cas, conta com todos os seus instrumentos jurídico-administrativos: administração direta, autarquias, agências, fundações, empresas es­tatais, polícia administrativa, intervenção no domínio econômico, intervenção na propriedade privada, atos, contratos, concessões, per­missões, serviço público e fomento. A questão é como estes instru­mentos devem ser adequados a uma nova realidade em que o Estado não monopoliza a regulação social, dividindo-a com atores da so­ciedade organizada. Como adequá-los à nova função de agente da metarregulação. Três estratégias de ação do Estado nesse contexto foram aqui selecionadas: democracia participativa, administração consensual e fomento institucional.

Antes de traçar os contornos dessas estratégias deve-se fazer um a ressalva. O que aqui está sendo estudados são mecanismos do Estado de transferir para a sociedade a administração de interesses públicos, para assim participar da formulação e implementação de políticas públicas. O conceito de Terceiro Setor é geralmente ligado a ONGs, organizações criadas no seio da sociedade. Nesse sentido, a administração social (alguns autores cham am de privada ) de in ­teresses públicos é processo mais amplo do que a emergência do

22 Princípios, normas gerais, critérios diretores, limites e condições, sempre de forma clara, conforme ensina Tércio Sampaio Ferraz Jr. Op. cit.

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Terceiro Setor. Abrange, além deste último - que geralmente é de­nom inado pela doutrina administrativista pátria de administração associada de colaboração ou entes paraestatais - , a administração asso­ciada de parceria (cujo exemplo paradigmático são as concessioná­rias de serviço público) e entidades criadas e mantidas pelo Poder Público mas que, em razão do alto grau de au tonom ia e participa­ção social nas tom adas de decisão, não podem ser perfeitamente enquadradas no setor estatal. Aliás, esta é a tendência do Direito Administrativo anglo-saxônico, que cada vez mais tem influenciado o brasileiro: considerar como entes intermédios as agências, ONGs, fun­dações etc., não im portando se criadas pelo Estado ou pela socieda­de. O que importa é a forma autônoma e não-estatal de adm inis­tração dos interesses públicos.23

Democracia participativa

Há muito se tem percebido que a democracia representativa não basta. Novos e mais eficientes canais de participação da sociedade na formulação e implementação de políticas públicas estão sendo e de­verão continuar a ser criados.

Caso contrário, estaria sendo desrespeitado o próprio direito ao desenvolvimento que tem por conteúdo a aquisição de todos os di­reitos humanos, inclusive os civis e políticos e, notadamente, o de participação na tomada de decisões políticas.

Para tanto, não basta a formal garantia do voto em eleições pe­riódicas de representantes. A participação deve ser efetiva, em con­creto e constante. Tem-se o exemplo da democracia participativa nos orçamentos participativos e nas audiências públicas promovidas pelas Casas Legislativas na elaboração de leis. Entretanto, foi escolhido um outro exemplo, em razão de suas especificidades: as consultas públi­cas das agências reguladoras de serviço público.

2Í Cf. MOREIRA NETO, D. de F. Curso de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, Forense, 2002.

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E S T A D O , D E S E N V O L V I M E N T O E P O L Í T I C A S P Ú B L I C A S

Como já foi acima vislumbrado, as agências são autarquias sob regime especial. Portanto, são entes criados pelo Estado. Entretanto são dotadas de alto grau de autonomia; seus dirigentes, embora in­dicados pelo Chefe do Poder Executivo, devem ser aprovados pelo Senado e têm mandato fixo. O alcance de seu poder normativo ainda é discutido na doutrina. Certamente, em face da configura­ção do princípio da legalidade em nosso sistema, não é igual ao da agency americana que, em certos casos, pode extrapolar os standards legais. Discute-se se seria igual ou maior que o próprio poder nor­mativo do Chefe do Executivo. Para além de qualquer discussão so­bre o tema, tem-se a seguinte situação: autonomia; grande poder na complementação (poder normativo) e implementação (interven­ção) de políticas públicas no setor previamente padronizadas em lei; e possibilidade de participação da sociedade nesse processo. É vista aí a democracia participativa.

Obviamente, trata-se de um modelo ideal, com pouco tempo de experimentação para avaliarmos o que funciona e o que não funciona.

Resta saber se o Estado brasileiro, recém-saído da Reforma Ad­ministrativa, será forte o suficiente em seu novo papel de gestor ou negociador para se evitar o clientelismo na arena de embate entre os interesses de usuários e prestadores de serviço público em que se constituem as agências reguladoras.

Paulo Lessa Mattos24, pesquisador do Cebrap, faz uma boa análi­se das consultas públicas realizadas pela Anatel. As consultas públicas no setor estão previstas no art. 42 da Lei Geral de Telecomunicações (Lei n. 9.472/97), regulamentadas pelo Regimento Interno da Anatel e, obrigatoriamente, integram o procedimento de edição de atos nor­mativos (resoluções do Conselho Diretor) da entidade. São legitima­dos para propor a edição de ato normativo: membros do Conselho Diretor, o Conselho Consultivo (integrado por representantes dos três poderes, das empresas do setor e da sociedade civil), o Ouvidor

24 MATTOS, P. T. L. “Agências reguladoras e democracia: participação pública e desenvolvimento”. In: SALOMÃO FILHO, C. (coord.). Regulação e desenvolvimento. São Paulo, Malheiros, 2002.

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D I R E I T O I N T E R N A C I O N A L E D E S E N V O L V I M E N T O

(que tem uma função de defensor do interesse público dentro da enti­dade) e o Poder Executivo. Admitida a proposta pelo colegiado do Conselho Diretor, ela deverá ser levada à consulta pública, na qual qualquer pessoa, física ou jurídica, poderá fazer sugestões. No âmbi­to da Anatel, as consultas públicas são viabilizadas pela internet (no encalço da proposta do governo eletrônico). Terminada a consulta, as propostas serão apreciadas pelo Conselho Diretor, que deverá moti­var a recusa ou aceitação.

Não obstante esse belo quadro normativo, a avaliação das prin­cipais consultas públicas realizadas pela Anatel de 1997 a 2002 demons­tra uma muito tímida participação de organizações da sociedade civil, entidades de defesa do consumidor e de outras entidades públi­cas. A maior parte das propostas são encaminhadas pelas próprias empresas do setor ou por entidades ou pessoas a elas ligadas.

Uma possível causa de tamanha apatia seria a novidade e a pouca divulgação do sistema. Entretanto, se a situação perdurar, o Poder Público deverá tomar medidas para revertê-la.

Administração consensual e fomento

De certo modo, o conceito de administração consensual abarca o conceito de fomento público. No Estado reformado, metarregula- dor social, a administração deixa paulatinamente de ser imperativa para se tornar consensual. É o chamado Estado gestor, cujo princi­pal instrum ento são as agências.

A realização desta cham ada administração consensual permite o surgimento de duas figuras de administração privada de interes­ses públicos: a administração associada de parceria e a adm inistra­ção associada por colaboração.

O principal exemplo de parceria vem a ser as concessionárias de serviço público e seu principal instrumento é o contrato de concessão. Contrato de natureza sui generis, uma vez que, mesmo existindo a contraposição de interesses e a busca pelo lucro, é ele perpassado pelo interesse público na eficiente e contínua prestação de serviço público.

Na administração associada por colaboração, vislumbra-se a par­ticipação do Terceiro Setor e seu principal instrumento é o fomento

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E S T A D O , D E S E N V O L V I M E N T O E P O L Í T I C A S P Ú B L I C A S

institucional. Há outros tipos de fomento, todos ligados à realização de políticas públicas de desenvolvimento: fomento empresarial, fomento à pesquisa, fomento à saúde etc. Fomento institucional é aquele consistente no aporte de recursos públicos e fixação de planos e metas para que se viabilize a persecução de interesses públicos não exclusivos do Estado (educação, saúde, previdência etc.) por entidades criadas pela sociedade civil. Seus principais veículos são os contratos de gestão (organizações sociais) e o termo de parceria (organizações da sociedade civil de interesse público). Se o contrato de concessão de serviço público é um contrato sui generis, estes instrumentos nem con­trato são. Melhor seria denominá-los atos complexos ou atos-união, uma vez que em sua formação e execução não há interesses contra­postos, mas paralelos em um mesmo sentido.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quando estudamos países como a índia, vemos o muito que pode ser feito com recursos limitados. O nosso país se singulariza pela disponibilidade de recursos. O Brasil é um dos únicos países que dispõem de nível de renda per capita e de grau de urbanização suficientes para, em prazo relativamente curto, erradicar a fome e a miséria. Nosso problema maior - o da pobreza - tem solução se adotarmos uma política adequada. Vontade e ação política: é disso que necessitamos.25

Os dilemas do direito ao desenvolvimento nas relações Norte-Sul compõem somente a parte introdutória deste trabalho, mas de extre­ma importância na adequada compreensão da gênese, aplicação e atualidade desse direito humano. Nunca houve a pretensão ao esgo­tamento: por não haver espaço; por não haver competência do autor.

O objetivo principal foi dar um enfoque jurídico ao papel do Estado como principal sujeito passivo (devedor) do direito ao desen­

25 FURTADO, C. Em busca de novo modelo. São Paulo, Paz e Terra, 2002. p. 15.

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D I R E I T O I N T E R N A C I O N A L E D E S E N V O L V I M E N T O

volvimento. Nesse campo, foram buscados o aprofundamento e a erradicação da leviandade. Nele será concluído o trabalho.

Trazendo a discussão para a realidade brasileira, sob um ponto de vista histórico-estrutural, a economia nacional possui duas ten­dências perversas: propensão ao endividamento e propensão à con­centração social de renda. Tendências fortemente interligadas ao comportamento das elites tradicionais, que imitam o padrão de con­sumo dos países centrais. Gera-se, assim, um duplo desequilíbrio: deficiência da capacidade de im portar e insuficiência de poupança interna.

Diante de tal quadro, o papel do Estado tem sido decisivo para a promoção do desenvolvimento, uma vez que os mercados sempre desempenharam papel secundário nesse desiderato.

Para um economista, o que foi previamente analisado é simplis­ta demais. Para um profissional do direito, é suficiente para se per­ceber a importância de estudar o instrumental jurídico de que dis­põe o Estado brasileiro na promoção do desenvolvimento. Foi isso o que tentou-se brevemente fazer neste trabalho.

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A Busca pelo Direito ao Desenvolvimento e à Proteção aos Direitos Humanos nas Relações Internacionais do Brasil: Histórico e Desafios

Rui d a S i l v a S a n t o s

Introdução - 1. A posição do Brasil - 2. Década de 1990: a con­solidação dos blocos regionais e a nova ordem mundial - 3. A busca do desenvolvimento por meio da integração - 4. Um novo desenvolvimento? - 5. O debate dentro do Mercosul - Conside­rações finais - Referências

INTRODUÇÃO

Por ser um Estado de dimensões continentais, o Brasil por ve­zes é injustamente apontado por não agir no plano internacional com uma intensidade equivalente à sua importância na com uni­dade internacional1. É um argumento a ser considerado, mas que

1 O diplomata Roberto Abdenur chega a falar em um “sentimento de exclu­são” em relação à participação da diplomacia brasileira nas grandes discussões das relações internacionais, levantando inclusive argumentos de pesquisadores reco­nhecidos no meio intelectual brasileiro que mostrariam um caráter auto-deprecia-

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pode ser refutado quando se revisita, ainda que superficialmente, a história diplomática brasileira e constata-se que, mesmo nos perío­dos de maior isolamento, o Brasil nunca deixou de buscar a seu espa­ço dentro das discussões e dos problemas da ordem mundial.2

O fato de o Brasil ter sido membro-fundador da Organização das Nações Unidas ( o n u ) e, todos os anos, reafirmar à Assembléia Geral dessa organização a sua postura de defensor da paz e da cooperação internacional corrobora essa ativa participação.3 O que pode ser ale­gado com alguma exatidão é que, em determinados períodos de sua história, o Brasil optou por uma política externa que privilegiou o interesse nacional, desvinculando a sua atuação no plano internacio­nal das diretrizes adotadas pelas potências mundiais.4

tivo para definir o povo brasileiro. Segundo Abdenur, Sérgio Buarque de Holanda, por exemplo, teria identificado um certo Bovarismo 110 povo brasileiro em seu clás­sico “Raízes do Brasil”. No entanto, o autor levanta argumentos de ordem política, econômica e social para m ostrar que esta “exclusão” não é condizente com a realida­de e o peso do Brasil nos debates internacionais e que, talvez, esse sentimento possa ser atribuído a fatores momentâneos, identificados em crises econômicas, ou a uma imagem negativa que o Brasil transmita à comunidade internacional, reflexos de uma o r­dem interna injusta. ABDENUR, R. “A política externa e o ‘sentimento de exclusão’” In: JÚNIOR, G. F. & CASTRO, S. H. N. de (orgs.). Ternas de Política Externa Brasilei­ra //, São Paulo, Paz e Terra, Funag e Ipri, 1997. p. 31-46.

2 CERVO, A. & BUENO, C. História da Política Exterior do Brasil, São Paulo, Edi­tora Ática, 1992, p. 9. “A política internacional correspondeu, nos dois últimos sécu­los, a um dos instrumentos com que os governos dos Estados-nação já constituídos afetaram o destino de seus povos, mantendo a paz ou fazendo a guerra, estabelecendo resultados de crescimento e desenvolvimento ou de atraso e dependência”.

3 Logo no discurso da primeira Sessão Ordinária da Assembléia Geral da ONU,

realizada em 1946, o embaixador Luiz Martins de Souza Dantas declarou que uma ver­dadeira assembléia de nações deveria ser “construída sem interferência política e que se fundamente tanto nos grandes movimentos religiosos que brotaram dos ensina­mentos de Cristo, Maomé e Confucio, quanto na contribuição laica de poetas, filóso­fos e cientistas de todos os países. Sem o apoio de uma opinião pública bem informada e livre, qualquer tentativa de uma organização internacional provar-se-ia ilusória, principalmente no presente momento, em que as forças materiais liberadas pelo gênio hum ano já ameaçam alcançá-lo”. Cf. BRASIL. Ministério das Relações Exteriores. A Palavra do Brasil nas Nações Unidas 1946-1995. Brasília, Fundação Alexandre de Gus­mão, 1995. p. 26.

4 Um grande exemplo desta postura foi a Política Externa Independente, adotada a partir da presidência de Jânio Quadros, que rompeu com o alinhamento pratica-

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Essa ruptura foi fundamental para que o Brasil passasse a con­templar os conflitos Norte-Sul dentro das relações internacionais e, de certa forma, esse procedimento lhe inseriu dentro de uma nova perspectiva.

Os movimentos de descolonização na década de 1960 se inten­sificaram, ampliando consideravelmente o núm ero de Estados que passaram a integrar a comunidade internacional. Grande parte des­ses Estados recém-libertados apresentava carências socioeconômi- cas que, por sua vez, incrementavam exponencialmente a neces­sidade de constante reafirmação da defesa e proteção dos direitos essenciais do homem.

Esse fenômeno chamou a atenção da comunidade internacional para a busca de alocação de recursos destinados à reconstrução das sociedades devastadas pelas guerras de descolonização.5

Contribuiu para a quebra desse paradigma, também, a ascensão do movimento terceiro mundista ou dos não-alinhados, inaugurada pela conferência de Bandung em 1955.

Portanto, a implementação de uma política externa que buscou não somente incrementar os laços com os Estados americanos, na

mente automático da diplomacia brasileira em relação à política externa norte-america- na. Não se deve esquecer de salientar que este alinhamento automático se deu 110 con­texto da guerra fria, na qual a formação dos blocos bipolares de poder, respectivamente liderados pelos Estados Unidos e pela ex-União Soviética, começava a se cristalizar. “A política exterior inaugurada por Jânio Quadros - diferentemente da o p a (Operação Pan- Americana) de Juscelino Kubitschek, que priorizava o contexto hemisférico - partia de uma visão universal, embora sem descuidar do regional; possuía um caráter pragmatis- ta, pois buscava os interesses do país sem preconceitos ideológicos; e, para melhor con­secução desses objetivos, adotava postura independente em face de outras nações que tinham relacionamento preferencial com o Brasil. A Política Externa Independente, cal­cada no nacionalismo, não só ampliou a política de JK em termos de geografia, como também enfatizou as relações norte-sul”, CERVO A. & BUENO, C. Op. cit., p. 278.

Outros autores sustentam que a Política Externa Independente começou com a Operação Pan-Americana de JK. Um dos expoentes dessa corrente é o cientista políti­co Ricardo Caldas e os argumentos de sua tese encontram-se na obra A política exter­na do Governo Kid)i$tchek, Brasília, Theasaurus, 1995.

5 Se bem que tais esforços tenahm sido justificados mais pela decorrência dos conflitos ideológicos advindos da guerra fria do que por um eventual apelo à proteção da dignidade humana.

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tentativa de implementação da Associação Latinoamericana do Livre Comércio (Alalc)6, mas também procurou instituir parcerias com Estados que, até então, não tinham nenhum relacionamento com o Brasil - como a China, por exemplo - , mostra a total coerência do pensamento nacional em relação aos movimentos que estavam su­cedendo dentro da comunidade internacional.

Esse novo posicionamento mostrou que a formulação de uma política externa brasileira precisava ser mais antenada com a reali­dade global, e não somente se mostrar reativa em relação à diploma­cia de algumas potências.

1. A POSIÇÃO DO BRASIL

Ainda no espírito de revisão dos conceitos, o Brasil, em seu re­lacionamento com a comunidade internacional, já elegeu a questão do direito do desenvolvimento, consagrado na resolução da o n u de 1986, e a proteção do direito ao desenvolvimento como um direito hum ano essencial, já estabelecido na Declaração Universal dos Di­reitos do H om em (1948) e fortalecido pelos Pactos Internacionais de Direitos Hum anos (1966). Como o Brasil trabalha esta questão dentro dos parâmetros de negociação, principalmente na década de 1990, que assistiu ao enorm e incremento de tratados multilaterais, formação de blocos econômicos e incremento intensivo de relacio­namentos diplomáticos entre países e organizações?

Para responder a essa questão é necessário realizar um pequeno histórico de como o Brasil procedeu nos últimos 50 anos, desde a pro­clamação da Declaração Universal dos Direitos do Homem, até uma pequena contextualização da década de 1990, e como o Brasil proce­deu nas relações internacionais em relação ao direito do desenvolvi­mento e à proteção dos direitos humanos.

6 Substituída, posteriormente, pela Associação Latinoamericana de Integração (Aladi).

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Recorre-se, então, ao histórico que Antonio Augusto Cançado Trindade oferece sobre a participação brasileira na formatação do sis­tema internacional de proteção dos direitos humanos.7 O Brasil par­ticipou da sistematização da proteção dos direitos hum anos desde o seu início, tanto no plano mundial, com a ONU, tanto no plano re­gional, por meio do sistema interamericano.

Detendo-se em um a sumária análise do plano regional, é pos­sível enumerar alguns fatos que ilustram a importância dada pelo Brasil aos trabalhos da Organização dos Estados Americanos ( o e a )

e como as questões de direitos humanos, integração e desenvolvi­mento se inter-relacionam.

Em primeiro lugar, foi o Brasil quem propôs a criação da Corte Interamericana de Direitos Humanos, na Conferência de Bogotá, em 1948, com a ressalva “da necessidade da criação de um órgão judicial internacional para tornar adequada e eficaz a proteção ju rí­dica dos direitos hum anos internacionalmente reconhecidos”8.

A exposição de motivos, prossegue Cançado Trindade, alertou:

para as possíveis “arbitrariedades insuperáveis”, de que era vítima o indivíduo, cometidas pelas próprias autoridades governamentais. Algumas vezes, os próprios tribunais, estreitamente subordinados a um poder executivo opressor, cometem injustiças evidentes; ou então, o indivíduo se vê privado do acesso aos tribunais locais. Em tais casos, se se trata realmente de direitos fundamentais, impõe-se a possibilidade de recorrer a uma jurisdição internacional.9

Outra contribuição dada pelo Brasil, ainda no plano regional, foi a proposta apresentada na v Consulta dos Ministros de Relações Exteriores, realizada em Santiago, em 1959, pelo fortalecimento da

7 A partir deste trecho, todas as citações serão extraídas da obra de CANÇADO TRINDADE, A. A. A proteção internacional dos Direitos Humanos e o Brasil (1948- 1997): as cinco primeiras décadas. 2. ed. Brasília, UnB, 2000.

8 CANÇADO TRINDADE, A. A. Op. cit., p. 39.9 Op. cit., p. 39.

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democracia no continente americano e reforçando a superiorida­de da lei sobre os governos e a incorporação da Declaração Ameri­cana dos Direitos H um anos (1948) ao direito positivo dos Estados americanos. O representante brasileiro, ministro San Tiago Dantas, ponderou na ocasião que: “as situações provenientes das condições sociais e econômicas em que vivemos são desvios ocasionais, transi­tórios, que serão, cedo ou tarde, superados”10.

O utra grande contribuição foi a defesa, por parte da delegação brasileira, em 1969, da necessidade de se manter a validade dos d o ­cumentos basilares, regional e universal, de proteção dos direitos humanos, diante da polêmica que surgiu sobre a viabilidade de m a­nutenção de docum entos que seriam redundantes. Na exposição de motivos, o ministro de relações exteriores J. Magalhães Pinto p o n ­derou que:

o fato de que o Brasil já era partícipe em outros tratados e instru­mentos de proteção internacional dos direitos humanos e de ser a opinião pública internacional sensível a isso; a necessidade de evi­tar eventual isolamento do Brasil em relação ao sistema regional que uma posição de reticência ante o projeto de Convenção acarre­taria; terceiro, a opinião prevalecente entre os governos da região favorável à particularização do sistema interamericano de proteção dos direitos humanos; quarto, a compatibilidade de coexistência entre as convenções globais (das Nações Unidas) e a interamerica- na (como não necessariamente suficientes); e o impulso que daria à própria integração latino-americana, desenvolvendo maior iden­tidade continental e propiciando uma relativa uniformização de legislações nacionais no campo dos direitos humanos."

Além desse intenso trabalho no âmbito das organizações interna­cionais, principalmente dentro da o e a , não se deve deixar de mencio­nar a participação brasileira dentro de foros multilaterais. A primeira

10 CANÇADO TRINDADE, A. A. Op. cit., p. 40.11 CANÇADO TRINDADE, A. A. Op. cit., p. 40-1.

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participação de peso foi na Conferência de Teerã, que, em 1968, reu­niu 84 Estados e serviu para im prim ir um tratam ento global da proteção dos direitos hum anos em todos os seus aspectos. A Procla­mação de Teerã instou os Estados a proteger em suas legislações o direi­to de cada ser humano a ter “liberdade de expressão, de informação, de consciência, e de religião”, assim como o “direito de participar na vida política, econômica, cultural e social de seu país (parágrafo 50)”12.

2. DÉCADA DE 1990: A CONSOLIDAÇÃO DOS BLOCOS REGIONAIS E A NOVA ORDEM MUNDIAL

Os fatos ocorridos nas décadas de 1980 e de 1990 consolidaram essa postura e colocaram novos desafios à diplomacia brasileira.

As crises econômicas da década de 1980 - fruto dos choques do petróleo promovidos pelos Estados produtores na década anterior e da alta taxa dos juros internacionais praticados pelo governo norte- americano - sucedidas por um momentâneo período de prosperi­dade econômica em meados da década de 1990, levou o Brasil a buscar novas formas de cooperação, utilizando principalmente os blocos de integração regional como instrumento, com amplo des­taque para a formação do Mercado Com um do Sul (Mercosul) pelo Tratado de Assunção (1991).

Celso Lafer e Gelson Fonseca Jr. capturaram bem este momento quando mostraram que, com as mudanças estruturais pelas quais o m undo estava passando com o fim da bipolaridade e o desmantela­mento da estrutura de poder mantida pela ex-União Soviética, novos horizontes e novas formas de se fazer diplomacia estavam surgindo.13

Os Estados passaram a viver, segundo a expressão consagrada pe­los autores, em um “Sistema Internacional de Polaridades Indefinidas”.

,2 CANÇADO TRINDADE, A. A. Op. cit., p. 53-4.15 Essas considerações e as seguintes encontram-se no texto “Questões para a Di­

plomacia no Contexto Internacional das Polaridades Indefinidas (Notas Analíticas e

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Se antes havia pelo menos dois paradigmas que davam susten- táculo ideológico aos Estados, com a nova ordem emergente tal bússo­la ainda não foi encontrada, mesmo com os Estados Unidos conso­lidando a sua hegemonia sobre o globo.1'1 Houve uma certa euforia momentânea, segundo a análise de Lafer e Fonseca Jr., com uma clara noção da vitória dos valores liberais e do mercado.15

No entanto, esta breve sensação não passou de uma vitória de Pirro. Em seguida, estourou a Primeira Guerra do Golfo e, em pou ­cos anos, o conflito na Iugoslávia. Ambos evidenciaram às grandes potências e ao pensamento hegemônico mundial que os problemas do m undo não estariam resolvidos com a simples eliminação dos conflitos leste-oeste e pela ascensão do liberalismo.

De fato, como Lafer e Fonseca Jr. muito bem descreveram por meio de metáforas, o cenário internacional passou a ser composto por forças centrípetas e centrífugas, sendo que as primeiras repre­sentaram os movimentos de globalização, de universalização de pro­cessos econômicos, valores sociais, morais e políticos, enquanto as

Algumas Sugestões)”. In: JÚNIOR, G. F. Sc CASTRO, S. H. N. de (orgs.). Op. cit., p. 49- 79. Dizem os autores: “O contexto em que se desenvolvem as opções externas dos paí­ses se modifica, exigindo, a cada dia, adaptações criativas, desvendamento de novos caminhos alterações sobre o próprio modo de se fazer diplomacia”.

14 Como aponta Ignacio Ramonet, editor do Le Monde Diplomatique, “Aconteci­mentos de enorme amplitude - unificação alemã; desaparecimento dos regimes com u­nistas do Leste Europeu; desmoronamento da URSS; crise da Organização das Nações Unidas; abolição do apartheid na África do Sul; fim das ‘guerras de fraca intensidade’ (El Salvador, Nicarágua, Angola, Afeganistão, Camboja); mudanças radicais na Etiópia, Guiné, Argélia, Chile; fim do regime M obutu no Congo-Zaire [...]; reconhecimento m útuo de Israel e dos palestinos; renascimento da China e restituição de Hong-Kong a Pequim; emergência da índia etc. - modificaram, totalmente, o panorama geoestraté- gico do planeta. [...] Este período excepcional corresponde a uma verdadeira mudança de era; isso provoca uma nova angústia do Ocidente, um profundo mal-estar nas socie­dades desenvolvidas”; Geopolítica do Caos, São Paulo, Vozes, 1997. p. 14-5.

13 “O primeiro elemento era a perspectiva de que, finalmente, os valores do libe­ralismo, entrelaçando democracia e mercado, tendiam à inexorável universalização. A rejeição do comunismo e a inanidade política da Europa do Leste configuravam demonstração prática de que a vitória liberal, justamente contra o seu mais aparelha­do adversário, anunciaria, em seqüência, outras vitórias inevitáveis”, cf. RAMONET, I. Op. cit., p. 14-5.

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segundas descreviam a resistência de Estados e povos em aceitar estes valores, recorrendo, muitas vezes, a imagens míticas de valores ancestrais.16

3. A BUSCA DO DESENVOLVIMENTO POR MEIO DA INTEGRAÇÃO

As mudanças de paradigmas internacionais, com o fim da bipo- laridade e a ascensão de um a nova ordem mundial cuja dinâmica ainda é obscura e levanta acaloradas polêmicas no m undo acadêmi­co e prático, acarretaram alterações em conceitos que até então pare­ciam imutáveis, mesmo sem apresentar os resultados esperados.

O conceito de desenvolvimento é um deles. Se houve um tempo em que o desenvolvimento de um Estado esteve intrinsecamente relacionado ao seu crescimento econômico, e exclusivamente depen­dente deste crescimento, nos últimos vinte anos houve uma total ruptura deste valor.

Pode-se traçar até mesmo um paralelo entre a evolução do con­ceito de desenvolvimento com a evolução da própria noção de direi­tos humanos.

É cada vez mais presente que os direitos hum anos englobam direitos políticos, sociais e econômicos e que sem um destes pilares fique satisfeito, não haverá uma completa proteção dos direitos hum anos.17

16 Um ponto a se observar neste m om ento é não colocar valores maniqueístas se tais forças centrípetas ou centrífugas são prejudiciais ou benéficas aos Estados ou à comunidade internacional. Não se trata de “satanizar” um ou outro movimento, mas é incontestável que para os direitos humanos, em particular, a universalização da pro­teção da pessoa humana, do direito ao desenvolvimento e da importância da dem o­cracia como forma de mantê-los foi de suma importância para o fortalecimento da proteção da pessoa humana, pelo menos no que tange ao plano jurídico. Entre as obras que tratam deste tema, um a das mais relevantes é a de José Lindgren A. Alves, Os Direitos Humanos Como Tema Global, Coleção Estudos. São Paulo, Perspectiva/ Brasília, Fundação Alexandre de Gusmão, 1994.

17 Refere-se a este fato Jayme Benvenuto Lima Jr. nas seguintes palavras: “A refe­rência à indivisibilidade dos direitos hum anos está relacionada a uma compreensão

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Portanto, existe um grande relacionamento entre a integração econômica e a proteção dos direitos hum anos caso se pense que, em última análise, a segunda deve ser o fim que justifica completamen­te a primeira.

Não é lógico, muito menos racional e até mesmo completamen­te contraproducente, que um Estado adote uma política econômica que desmantele sistemas inteiros de proteção e seguridade social, em nome de uma fictícia estabilidade monetária.

Essa foi a diretriz buscada por diversos Estados e que encontrou a sua maximização na Argentina que, de um Estado com sólida for­mação educacional e um padrão de vida relativamente alto - se comparado aos seus vizinhos latino-americanos - passou a sofrer uma crise inimaginável, até mesmo para os piores pesadelos kafka- nianos: em 2002, a economia Argentina sofreu uma retração de 11% e a inflação cresceu 41%. O desemprego formal atualmente ronda a casa dos 25% e a renda de quem trabalha declinou 17%. Segundo dados do Instituto Siempro, 18,4 milhões de argentinos - de uma população próxima a 36 milhões de pessoas - estão vivendo abaixo da linha de pobreza, sendo que 7,8 milhões podem ser considerados indigentes. Em 1990, a linha de pobreza alcançava 12%. Em 2002, essa taxa saltou para 52%.18

Sob outro prisma, integração econômica requer um mínimo de inter-relacionamento entre as diversas expectativas dos Estados que se submetem ao processo, resultando em um a síntese que, ao final, produzirá um novo elemento.

Esse processo pode ser visto de forma mais cabal na União Eu­ropéia que, indubitavelmente, foi a região que mais longe chegou na

integral desses direitos, pela qual não se admite o seu fracionamento”; Os direitos huma­nos, econômicos, sociais e culturais. Rio de Janeiro, Renovar, 2001. p. 76. Flávia Piovesan afirma que “Os direitos humanos compõem assim uma unidade indivisível, interdepen­dente e inter-relacionada, capaz de conjugar o catálogo de direitos civis e políticos ao catá­logo de direitos sociais, econômicos e culturais”; PIOVESAN, F. (org.), Direitos Humanos, Globalização Econômica e Integração Regional. São Paulo, Max Limonad, 2002. p. 41.

18 Todos os dados foram retirados da coluna de Joelmir Beting, O Estado de S. Paulo, 19.4.2003.

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imbricação das instituições nacionais em busca da supranacionali- dade. Em certa medida, este é um processo que ocorre atualmente no Mercosul, se bem que com diversas ressalvas.19

Constitucionalmente, o Brasil procura a realização desses obje­tivos, visando atender tanto os desígnios da proteção aos direitos hum anos quanto a busca do desenvolvimento por meio dos proces­sos de integração e por medidas de cooperação. O art. 4o da Consti­tuição Federal de 1988 diz que:

A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações inter­nacionais pelos seguintes princípios:

i - Independência Nacional;li - prevalência dos direitos humanos;m - autodeterminação dos povos;iv - não-intervenção;v - igualdade entre os Estados;vi - defesa da paz;vn - solução pacífica de conflitos;vni - repúdio ao terrorismo e ao racismo;ix - cooperação entre os povos para o progresso da humanidade;x - concessão de asilo político.Parágrafo único. A República Federativa do Brasil buscará a

integração econômica, política, social e cultural dos povos da Amé­rica Latina, visando à formação de uma comunidade latino-ameri­cana e nações.

Deve-se notar que um dos instrumentos explicitamente descritos pela Constituição Federal para que o Brasil consiga atingir os seus ob­

19 Uma crítica recorrente a ser feita ao Mercosul é em relação à tomada de decisões, ainda realizadas em grande parte nos planos governamentais. O Mercosul, a princípio, não se preocupou muito com a criação de instituições supranacionais fortes, preferindo adotar mecanismos de resoluções de controvérsias atrelados aos processos de decisão dos Estados integrantes do bloco. Por isso, com a crise que assolou recentemente os prin­cipais Estados, principalmente a Argentina, chegou-se tanto a falar no fim ou, para não ser tão pessimista, em uma estagnação do bloco. A sensação é que uma crise de iguais proporções entre os membros da União Européia não impediria o prosseguimento do bloco, que continuaria a tramitar por meio de seus organismos supranacionais.

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jetivos na esfera internacional é a integração em todos os campos sociais, principalmente com os Estados da América Latina.

Por que o legislador preocupou-se em deixar claro este instrumen­to? A resposta talvez resida no fato de que o processo de integração é considerado um passo fundamental para fortalecer o papel da região no cenário internacional. E o Brasil, devido à importância de sua eco­nomia e ao tamanho de seu território, poderia dar uma imensa contri­buição ao processo.

Essa percepção pode ser identificada por ocasião da p rom ul­gação da Constituição, quando a maioria dos Estados da América Latina vivia um intenso e complexo processo de redemocratização e consolidação de suas instituições democráticas, ao mesmo tempo em que estavam envoltos em uma crise econômica sem precedentes, que poderia provocar um grande retrocesso a modos autoritários do poder. Portanto, era imperioso que o Brasil reforçasse em sua Carta Magna esta necessidade.

Mas a pura e simples integração será instrumento suficiente para chegar à consolidação do desenvolvimento e da proteção dos d i­reitos humanos? Talvez, para os analistas que esperam resultados a curto prazo, a resposta seja negativa, no entanto mesmo com todas as imperfeições existentes na implementação do Mercosul, é inegá­vel que houve um avanço.20

4. UM NOVO DESENVOLVIMENTO?

Este tema tornou-se tão complexo, não somente devido à varie­dade de fatores que devem ser levados em consideração, mas, princi­

20 Apesar de ser uma integração basicamente econômica, um exemplo deste avanço da institucionalização da democracia é o Protocolo de Ushuaia, no qual os Estados-membros reafirmaram o seu compromisso na defesa do regime democrático e a condenação de toda e qualquer ação que vise à reinstauração de regimes autoritários na região. Um bom texto que descreve o processo é o de Guido Fernando Silva Soares, em “União Européia, Mercosul e a proteção dos direitos hum anos”. In: PIOVESAN, F. (org.). Direitos Humanos, Globalização Econômica e Integração Regional. São Paulo, Max Limonad, 2002. p. 121-62.

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palmente, porque o conceito de desenvolvimento também foi ques­tionado no decorrer dos anos. Um bom exemplo desse questiona­mento reside na polêmica que tomou o debate da economia brasileira durante o último governo, dividindo até mesmo importantes lideran­ças políticas e econômicas nacionais.

Neste caso, fez-se referência aos debates existentes entre os cha­mados monetaristas (liderados pelo então Ministro da Economia Pedro Malan) - que colocavam a estabilidade fiscal e o controle da dívida pública acima de tudo - e dos desenvolvimentistas (liderados pelo ex-Ministro Luiz Carlos Mendonça de Barros e pelo ex-candi- dato à presidência da República, José Serra), que clamavam por uma política econômica que permitisse ao Brasil crescer mais do que a tí­mida média de 2% ao ano apresentada na década de 1990 (contra a média de 9% a 10% apresentada pela China, por exemplo).21

No entanto, essas discussões internas sobre o melhor modelo para a política nacional escondem dois dilemas mais profundos.

O primeiro é a falência do modelo apresentado como soluciona- dor e que poderia trazer algum alívio ao problema do desenvolvi­mento aos Estados periféricos. A receita oferecida pelo Consenso de Washington, que incluía (1) o afastamento da atuação do Estado de to­das as atividades possíveis; (2) privatizações em série; (3) austerida­de fiscal; e (4) desregulamentação dos direitos sociais e trabalhistas, não trouxe os resultados esperados.22 Muito pelo contrário, os Esta­

21 Luiz Carlos Mendonça de Barros concedeu uma entrevista bastante esclarece­dora à Folha cie S. Paulo, em 28.10.2001, sobre o assunto.

22 O economista Paulo Nogueira Batista, em um pequeno ensaio intitulado “O Consenso de Washington: a visão neoliberal dos problemas latino-americanos”, deta­lha a gênese da reunião que deu origem ao documento que, informalmente, foi cha­mado de “Consenso de Washington”. Em uma passagem, o economista nota a total falta de referências do documento aos problemas sociais da América Latina, o que re­força a idéia de que a carta preocupou-se somente com a saúde macroeconômica dos países. “O Consenso de Washington não tratou tampouco de questões sociais como educação, saúde, distribuição de renda, eliminação da pobreza. Não porque as veja como questões a serem objeto de ação num a segunda etapa. As reformas sociais, tal qual as políticas, seriam vistas como decorrência natural da liberalização econôm i­ca. Isto é, deverão emergir num mercado exclusivamente do livre jogo das forças de

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dos que mais seguiram este modelo são os que viram cair violenta­mente os seus padrões de qualidade de vida. A Argentina novamente pode ser citada como o exemplo maior de como, a longo prazo, uma política de extrema liberalização da economia pode não só deixar de trazer o desenvolvimento a uma economia, como colocar em falên­cia praticamente todos os setores da sociedade e provocar um retro­cesso gigantesco nos indicadores sociais.

O segundo dilema sobre a política de desenvolvimento é de ca­ráter interno e refere-se ao fato de que ainda que o crescimento da economia tenha sido acima da média durante o milagre brasileiro o mesmo não se traduziu em uma justa distribuição de renda ou uma redução da pobreza. Parafraseando uma famosa expressão, o bolo cresceu, mas não foi dividido entre os famintos.

O economista Ricardo Carneiro, em obra de bastante fôlego, analisa o fracasso do projeto desenvolvimentista brasileiro e o fato de que, a falta de dinamismo da economia brasileira nos últimos 20 anos, em média, deveu-se a esta extrema dependência dos humores dos investidores internacionais.23

Dentro desse contexto, é importante ressaltar que, para que haja uma política de desenvolvimento consistente, é necessário que os Estados pensem em termos multidisciplinares. A economia não irá funcionar sem que haja uma base sólida dentro da sociedade, que não somente saiba manejar os instrumentos corretos que busquem o desenvolvimento, como também possam usufruir dos resultados deste trabalho, por meio de direitos que assegurem este usufruto.2'1

oferta e da procura num mcrcado inteiramente auto-regulável, sem qualquer rigidez tanto no que se refere a bens quanto ao trabalho. Um mercado, enfim, cuja plena ins­tituição constituiria o objetivo único das reformas”, p. 19.

23 CARNEIRO R., Desenvolvimento em crise, a economia brasileira no último quar­to do século xx. São Paulo, Unesp/Campinas, Unicamp, 2002.

24 Celso Lafer e Gelson Fonseca ]r., citando Paul Kennedy, apontam esta inter-rela- ção entre as esferas econômica, política e social no seguinte trecho: “Os três campos ana­líticos (no caso, estratégico-militar, econômico e de valores) interpenetram-se de diversos modos. Lembre-se, p. ex., a análise de Paul Kennedy, que revela a capacidade de a eco­nomia sustentar, limitar ou dissolver opções estratégicas, da mesma forma, ambições estratégicas conformam valores e são modelados ideologicamente”. Op. cit., p. 51.

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Por outro lado, esse relacionamento entre crescimento econômi­co e proteção a direitos consagrados constitucionalmente está se tor­nando um dilema difícil de se resolver. Algumas lideranças tendem a distorcer o argumento, tentando provar que a economia só iria cres­cer e, conseqüentemente, oferecerem condições de distribuição equâ- nimes, caso as proteções aos direitos dos cidadãos, principalmente no campo trabalhista, venham a sofrer reformas que possibilitem a ex­pansão econômica.

Esse argumento, no mínimo falacioso, expõe diversos perigos porque parece justificar quaisquer excessos em nome de um a supre­macia do direito ao crescimento sobre quaisquer outros direitos. Como bem alerta José Augusto Lindgren Alves:

o desenvolvimento entendido como simples crescimento econô­mico nunca foi de per se garantia de direitos, nem civis e políticos, nem econômicos e sociais [...] os direitos civis e políticos são ins­trumentos legais importantes para a conquista da cidadania social. Sem eles, a economia dos Estados até pode crescer - e a de muitos tem realmente crescido sem que esse “desenvolvimento” traga benefícios ao conjunto da cidadania.25

Deve-se notar, portanto, que é vital o esclarecimento desta inter­dependência entre variáveis econômicas, expressas na questão desen- volvimentista, e a proteção dos direitos humanos, principalmente aqueles concernentes ao direito do desenvolvimento e, conseqüente­mente, ao direito ao desenvolvimento.

Sem que haja condições necessárias para que um Estado consiga gerar riqueza, é praticamente impossível que ele assegure garantias mínimas de sobrevivência e de proteção dignas à sua população. O Brasil é um Estado que exemplifica com perfeição esta carência, prin­cipalmente porque, apesar de constar na lista das 20 maiores econo­mias do m undo, ainda não conseguiu alcançar índices sociais coe­rentes com o seu progresso econômico. E, o que é pior, com a falta de

25 PIOVESAN, F. (org). Op. cit., p. 81.

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dinamismo enfrentada pela economia nos últimos anos, a tendência será haver até mesmo uma reversão desses índices.26

Claudia Perrone Moisés aponta essa mudança de mentalidade em relação ao conceito de desenvolvimento, destacando que o tema é um a preocupação da ONU desde a sua criação. O que m udou foi que, enquanto até a década de 1960, desenvolvimento e crescimen­to econômico eram utilizados como sinônimos, a partir dessa data, tomou-se consciência de que um conceito de desenvolvimento mais eficaz deveria possibilitar aos Estados encontrar um caminho que p u ­desse chegar a um nível de vida que se auto-sustentasse.

Na década de 1970, houve uma reformulação profunda do con­ceito de desenvolvimento, com o reconhecimento de que, utilizado no sentido de crescimento econômico, mas mantendo situações de extrema desigualdade, o sistema era simplesmente ineficaz. Ainda se­gundo Perrone Moisés, o termo desenvolvimento tomou um novo sentido: “Antes entendido como puramente econômico, ganha hoje outras conotações, pressupondo uma aproximação integrada (eco­nômica e social) e um a ação global”27.

Por fim, Amartya Sen, renomado economista indiano, também se aproxima desta análise integrada entre economia e sociedade e critica a possibilidade de que o pensamento único permita o desen­volvimento aos Estados da periferia. Em seu ensaio “Sobre Ética e

26 Ao ser questionado em uma entrevista por que é tão difícil acabar com a pobre­za no país, o economista Ricardo Paes de Barros, considerado um a autoridade em estu­dos contra a redução da pobreza, parece acertar no diagnóstico do caso brasileiro: “Existem dois caminhos para chegarmos lá; crescimento econômico ou redução da de­sigualdade social. O Brasil tem conseguido reduzir a extrema pobreza fundamental­mente via expansão da economia. E aí está o problema: quando a economia vai bem, a extrema pobreza cai; quando a economia vai mal, a pobreza também vai mal. Temos mostrado insistentemente que o impacto da redução da desigualdade social para a re­dução da pobreza é muito maior do que o impacto do crescimento econômico. O pro­blema no Brasil é que temos uma excelente política econômica, mas nenhuma política social, e assim não dá para acabar com a pobreza". Revista Isto É, junho de 2002.

27 MOISÉS, C. P. “Direitos Humanos e desenvolvimento: A contribuição das Nações Unidas". In: AMARAL Jr., A. do & MOISÉS, C. P (orgs.). O cinqüentenário da Declaração Universal dos Direitos do Homem, São Paulo, Edusp, 1999. p. 181-2.

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Economia”, Sen retoma as duas origens da ciência econômica, uma calcada na ética e outra na engenharia, ou na técnica, que visaria en­tender o funcionamento dos mercados para se atingir, em última instância, o bem-estar do homem. O economista deixa claro que a m oderna ciência econômica tende a privilegiar o segundo aspecto em detrimento do primeiro.28

Apesar de esta divisão ter culminado na eleição de um presidente que, com um considerável peso, representou um clamor por m udan­ças profundas nas desigualdades da estrutura socioeconômica brasi­leira, o fato é que a polêmica ainda não acabou. As medidas tomadas pelo governo atual deverão se equilibrar entre as exigências do merca­do internacional de boa gestão das finanças públicas e a garantia do pagamento dos compromissos do Estado aos credores internacionais e as reivindicações e cobranças no campo social.

Dentro desse campo consta a proteção dos direitos humanos em sua totalidade.

5. O DEBATE DENTRO DO MERCOSUL

A evolução da imbricação dos debates entre o direito ao desen­volvimento, a proteção aos direitos hum anos e os processos de inte­gração provam que não é mais possível refletir sobre essas questões de modo estanque, compartimentado.

As benesses do processo de transnacionalização e do incremen­to dos fluxos de intercomunicabilidade ao redor do globo vieram

28 “Pode-se dizer que a importância da abordagem ética diminuiu substancial­mente com a evolução da economia moderna. A metodologia da chamada economia positiva’ não apenas se esquivou da análise econômica normativa como também teveo efeito de deixar de lado uma variedade de considerações éticas complexas que afe­tam o com portam ento hum ano real e que, do ponto de vista dos economistas que estudam esse comportamento, são primordialmente fatos e não juízos normativos. [...] Eu diria que a natureza da economia moderna foi substancialmente empobrecida pelo distanciamento crescente entre economia e ética”, SEN, A. Sobre ética e economia. São Paulo, Companhia das Letras, 1999. p. 23.

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acompanhadas de problemas que atingem o m undo como um todo. E estas três vertentes são apenas pontas do iceberg dessa complexi­dade, que também atinge problemas ambientais, socioeconômicos e, principalmente, políticos.

E um exemplo dos esforços da diplomacia brasileira ao lidar com essas questões contemporâneas pode ser contemplado em uma análise do Mercosul, a principal aposta do Estado em termos de es­forços de integração político-econômica.

Ao analisar o Tratado de Assunção, que deu origem ao bloco composto por Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai constatar-se-á, com certa decepção, que os quatro Estados não pensaram nesses ter­mos tão imbricados. Na realidade, não existem expressas referências a mecanismos de proteção à pessoa humana, com exceção no preâm­bulo29, que diz:

Considerando que a ampliação das atuais dimensões de seus mercados nacionais, através da integração, constitui condição fun­damental para acelerar seus processos de desenvolvimento econô­mico com justiça social.

Pode-se notar, por meio do documento, que os Estados do bloco optaram por percorrer um caminho de sedimentação do campo econô­mico, passando, gradualmente, à proteção de direitos sociais e políticos.

É uma linha de pensamento até compreensível, tendo em vista as imensas carências dos povos e das estruturas econômicas desses blocos.

No entanto, como provam os documentos posteriores, começa a haver uma mudança de mentalidade nos dirigentes do bloco.

O Protocolo de Ushuaia (1998), por exemplo, passou a enfatizar a democracia como condição fundamental para a permanência de um Estado-membro no bloco.30

29 Todas as referências de agora em diante serão retiradas do livro RANGEL, V. M. Direito e relações internacionais. 6. ed. São Paulo, RT, 2000.

30 Cláusula que vem sendo constantemente invocada nos últimos anos e funcio­nou relativamente bem, por exemplo, quando a democracia no Paraguai passou por um período de instabilidade por conta do caso Wasmosy.

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Alguns autores apontam o Protocolo de Ushuaia como um avan­ço considerável da proteção dos direitos hum anos dentro do bloco. Guido Fernando Soares Silva, por exemplo, aponta o documento como o ato multilateral mais importante adotado pelo Mercosul.31 Para Estados que recentemente saíram de regimes ditatoriais e que somente agora podem contar e estão aprendendo a trabalhar em um regime democrático, a salvaguarda e a proteção da democracia no bloco realmente é um avanço considerável, tanto no que concerne ao funcionamento interno dos Estados, quanto do relacionamento do bloco como um todo com outras regiões do globo.

Com o apontou o jusfilósofo Norberto Bobbio, em um ensaio que discute o relacionamento entre a democracia e o sistema in ­ternacional, um a característica im portante da democracia é a p u ­blicidade pelos atos do governo.32 Mesmo lamentando-se que tal publicidade não se repita na esfera internacional, é indubitável que, com os processos de globalização econômica e de internacionaliza­ção de todas as esferas da sociedade, atualmente, chegou-se a um ponto em que, o sistema internacional se encontra muito mais per- meabilizado por informações do que há 50 anos, como o próprio Bobbio, otimista como sempre, apontou.33

31 Cf. “Contudo, a nosso ver, até os dias correntes, o ato multilateral mais im por­tante, adotado sob a égide do Mercosul foi o Protocolo de Ushuaia, subscrito pelos Presidentes do Brasil, Argentina, Bolívia, Chile, Paraguai e Uruguai, durante a xiv Reu­nião Ordinária do Conselho do Mercado Com um, reunido de 2-24/7/1998, naquela cidade argentina. Introduz ele, com toda solenidade, a cláusula democrática no M er­cosul e, por seus termos, os Estados-partes do Mercosul e os Estados-associados realizamo que, no espaço da União Européia, realizou o Tratado de Amsterdã: a consagração do mais im portante dos direitos humanos, ou seja, o direito subjetivo de os indivíduos viverem em uma democracia”; PIOVESAN, F. (org.) Op. cit., p. 157-8.

12 “A característica da democracia, sobre a qual não me cansei de insistir em todos estes anos, é a da publicidade dos atos de governo. Só quando um ato é público podem os cidadãos julgá-lo, e assim exercitar uma das prerrogativas fundamentais do cidadão democrático - o controle dos governantes”; BOBBIO, N. Três ensaios sobre a democra­cia, São Paulo, Cardim & Alario, 1991. p. 74.

33 “Não obstante, o número dos Estados democráticos tem aumentado, e os pri­meiros passos para a democratização da sociedade internacional já foram dados”. Op. cit., p. 77.

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Outros pontos que podem ser apontados dentro da estrutura jurídico-política do Mercosul são que as proteções aos direitos h u ­manos e ao direito ao desenvolvimento se complementam tanto no plano da legislação interna quanto no plano regional.

Enrique Ricardo Lewandowski aponta traços bastante seme­lhantes entre as constituições dos quatro Estados-membros no que tange à proteção dos direitos humanos. O autor enumera, entre outros direitos, o direito à vida, encontrado explicitamente nas Cons­tituições Brasileiras, Paraguaia e Uruguaia. A constituição Argen­tina, embora não mencione diretamente a proteção à vida, deve protegê-la por força do “Convenção Americana de Direitos H um a­nos”34, da qual é signatária e, por força de artigo constitucional, tem o mesmo grau de hierarquia que a Constituição. Todos os quatros Estados proíbem a pena de morte, a liberdade de ir e vir, a prisão arbitrária e a adoção do princípio nullum crimen nulla poena sine lege e do due process oflaw, além de proibirem a tortura e tratam en­tos cruéis e degradantes. As constituições também adotaram o p rin ­cípio da isonomia, assim como a liberdade de expressão, instru­mento vital na denúncia dos abusos de poder.35

Alessandra Passos Gutti e Carolina de Mattos Ricardo apontam que, partindo do Tratado de Assunção, o bloco criou mecanismos e foros de consulta que buscaram aprimorar os instrumentos de pro­teção aos direitos humanos.36 Entre eles, os mais importantes são o Foro Consultivo Econômico-Social, previsto no art. 28 do Protocolo de Ouro Preto (1994), cujo objetivo é: “viabilizar a participação da sociedade civil organizada (setores econômicos e sociais dos Estados- parte) no processo decisório do Mercosul”37.

Esse dispositivo é inteiramente condizente com a preocupação e o destaque que o Mercosul deu à democracia como norteadora de todo o processo.

34 Também denominada “Pacto de San José da Costa Rica”.35 Essas comparações encontram-se, de modo bem mais detalhado, em PIOVE-

SAN, F. (org.). Op. cit., p. 255-83.36 PIOVESAN, F. (org.). Op. cit., p. 307-34.37 PIOVESAN, F. (org.). Op. cit., p. 319.

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De fato, ao conclamar setores da sociedade para discutir sobre os rum os do bloco econômico, o bloco estaria, de fato, incluindo vozes significativas da sociedade civil na construção deste futuro.

As autoras citam, também, como instituições estabelecidas no Mercosul, no que concerne à proteção dos direitos humanos, o Acor­do Marco Inter-regional de Cooperação entre a Comunidade Euro­péia e seus Estados-membros e o Mercosul e seus Estados-partes. Tal acordo comprova a força existente na globalização em prol da p ro­teção dos direitos humanos, reforçando os instrumentos baseados no direito ao desenvolvimento para chegar a este ponto.

Por outro lado, também reforça o entrelaçamento dos com pro­missos existentes entre dois blocos com considerável poder de barganha em relação à defesa de direitos. Isso nada mais é do que a transnacionalização dos direitos, comprovando, mais uma vez, a in­suficiência das fronteiras nacionais no fomento e na proteção destes direitos.

Por fim, não seria possível terminar este ensaio sem citar o fato de que os quatro Estados do Mercosul são signatários da Convenção Americana de Direitos Humanos (1969).38 A assinatura deste acor­do é valiosa na proteção de tais direitos, pois complementa as ações inscritas tanto nos planos internos de cada Estado-parte, quanto em relação aos marcos instituídos pelo Mercosul, enquanto bloco.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A existência dos sistemas de proteção interno do Mercosul e do inter-regional concedem maior subsídio à sociedade na proteção de seus direitos e o Estado na formulação de políticas que visem à con­secução do desenvolvimento econômico dentro dos padrões estabe­lecidos pela sociedade globalizada. No entanto, é necessário advertir

38 A Convenção foi ratificada pela Argentina, em 1984, pelo Paraguai, em 1989, e por Uruguai e Brasil, em 1985. O reconhecimento da Corte pelos Estados foram, res­pectivamente, em 1984, 1993, 1985 e 1998.

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que ainda há um longo caminho a ser percorrido em direção a uma ordem justa e equânime.

Não se deve esquecer que, assim como o Brasil, os Estados do bloco passam por crises econômicas de origem tanto interna quan­to internacional, que ainda não permitem um a folga na consecução desta ordem justa.

É necessário um aprimoramento diário destes mecanismos de proteção para que eles consigam realmente cobrir todas as d im en­sões da proteção da pessoa humana, dentro da complexa sociedade internacional atual.

REFERÊNCIAS

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5Migrações e Desenvolvimento

L i l i a n a L y r a J u b i l u t

Introdução - 1. Migrações -1 .1 . Migrações voluntárias e forçadas - 1.2. Migrações legais e ilegais - 2. Desenvolvimento como fator gerador de migrações forçadas - 3. A proteção internacional em caso de migração - 4. A necessidade de auxílio internacional para eliminar as migrações forçadas e para o desenvolvimento - Con­siderações finais - Referências

“O homem pode perder todos os chamados Direitos do Homem sem perder a sua qualidade essencial de homem, sua dignidade humana. Só a perda da própria comunidade é que o expulsa da humanidade."

Hannah Arendt, Origens cio totalitarismo.

INTRODUÇÃO

A frase citada na epígrafe refere-se ao fenôm eno dos apá- tridas e dos deslocados internos resultantes da Segunda Guerra Mundial, mas, se a situação da grande maioria dos migrantes nos dias de hoje for analisada, será visto que a lição de Hannah Arendt se mantém atual.

Isso porque os deslocamentos de seres hum anos dentro de seu próprio Estado ou entre Estados continuam a existir e têm, na

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D I R E I T O I N T E R N A C I O N A L E D E S E N V O L V I M E N T O

verdade, se recrudescido, dificultando, com isso, o exercício dos di­reitos humanos, um a vez que o Estado é o espaço primário de reali­zação desses.

Tal recrudescimento apresenta inúmeras causas entre as quais é possível destacar a consolidação do fenômeno da globalização (que acentua a diferença econômica entre os Estados, muitas vezes in ­tensificando a pobreza, o que leva pessoas a buscar novos lares a fim de encontrar melhores condições de vida) e os conflitos internos (uma vez que na guerra o êxodo de pessoas é com um )1, ambos pre­sentes na década de 1990.

Além de colaborar com o aum ento das migrações, essas causas contribuem para distinguir as movimentações atuais das ocorridas no passado, pois tornam o fenômeno migratório mais complexo e o dotam de aspectos de novidade. Enquanto antes da segunda m e­tade do século xx a migração ocorria dos Estados do Norte para o Sul, em função da busca de trabalho no Novo Mundo, atualmente os grandes fluxos migratórios se originam nos Estados do Sul e têm como destino os do Norte, uma vez que o processo migratório está intim am ente ligado ao processo de desenvolvimento global cujo centro é o Norte (especialmente os Estados Unidos e a União Euro­péia), que acaba por atrair a população da periferia. Além de os con­flitos étnicos serem praticamente inexistentes nessa região, o que não é verdade para muitos Estados do Sul.

Nesse sentido, o ensinamento de Marie-Antoinette Hily:

É desnecessário lembrar que, na Europa, desde os anos de 1960, as migrações representam um papel nas mudanças sociais e políticas da sociedade e alimentam, regularmente, os debates sobre a integração e a gestão da diversidade. Mas, diferentemente dos anos de 1980, quando os imigrantes e seus filhos se limitavam a manter os laços com seus países de origem, a globalização dos

1 Para detalhes sobre os conflitos internos de maior impacto na última década verificar AMARAL Jr., A. O direito de assistência humanitária. Rio de Janeiro, Renovar, 2002.

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anos de 1990 vê o conceito de migração evoluir à medida que os fenômenos de mobilidade se tornam mais complexos. Este últi­mo aspecto - ressaltando que o fim do século xx viu a imigração mudar de natureza como produto do prolongamento dos anos 1960 e 1970 - ilustra as orientações segundo convém estabele­cer de modo diferente a integração nas sociedades de população estrangeira.2

A estas complexidade e novidade, pode-se acrescer o fator n u ­mérico das migrações para ter idéia de sua magnitude no m undo con­temporâneo: atualmente há 175 milhões de migrantes no mundo, o que eqüivale a 3% da população mundial, e representa quase 10% da população dos Estados ricos.3

De tudo isso decorre um a dificuldade intrínseca em se estudar, de modo abrangente, o tema das migrações. Em razão de tal fato, optou-se por fazer um corte metodológico no tema e analisar, no presente artigo, a relação entre as migrações e o desenvolvimento. Isso porque tal aspecto se torna cada vez mais relevante no m undo contemporâneo, no qual verificam-se o aumento das migrações por questões de desenvolvimento e a diminuição da proteção assegura­da a essas pessoas.

Essa relação entre migrações e desenvolvimento é inclusive ava­lizada pela Organização das Nações Unidas (ONU) que a afirma em várias de suas resoluções, entre as quais pode-se destacar a seguinte passagem:

Consciente que, entre outros fatores, o processo de globalização e liberalização, incluindo o aumento da distância econômica e social entre vários países e a marginalização de alguns países na economia global, contribuiu para enormes fluxos de pessoas entre

2 HILY, M-A. Migrações Econômicas, Políticas e Sociais Contemporâneas. Folheto de divulgação do seminário Cultura e Intolerância, São Paulo, dez./2003. p. 8-9.

3 Dados obtidos em onu . Esperança para mais de 150 milhões de pessoas. UNews Brasil\ ano 3, n. 16, jul.-ago./2003. p. 6-7.

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países e para a intensificação do complexo fenômeno da migração internacional.4

Para entender essa relação, dividiu-se o presente artigo da seguin­te maneira: (1) aspectos introdutórios das migrações, a fim de traçar um panoram a das mesmas que perm ita o en tend im en to de suas várias possibilidades; (2) o tema do desenvolvimento buscando apon­tar seu papel como causa de migrações; (3) os aspectos de proteção aos migrantes, dem onstrando a incompletude da mesma e, em fun­ção disso, (4) possíveis medidas para corrigir tal situação.

1. MIGRAÇÕES

Entende-se por migrações a:

movimentação de entrada (imigração) ou saída (emigração) de indivíduo ou grupo de indivíduos, geralmente em busca de melho­res condições de vida, sendo que essa movimentação pode se dar entre países ou dentro de um mesmo país.5

Tal fenômeno pode ser classificado de m odo geral em três gran­des grupos: (1) caso haja a transposição de fronteira entre Estados ou não, podendo, assim, ser interna ou internacional; (2) com base no grau de escolha do migrante em realizar a migração, quando se pode ter migrações voluntárias, caso a escolha compita totalmente ao migrante, ou migrações forçadas, quando a opção pela migração decorra de razões externas; e (3) com base na legalidade da migra­ção, ou seja, se o migrante está ou não autorizado a entrar e perm a­

4 Cf. a/rf.s/54/212, p. 3 ( “Aware that, among other factors, theprocess o f globaliza- tion and liberalization, including the widening economic and social gap between and among many counties and the marginalization o f some countries in the global economy; has contributed to large flows o f peoples between and among countries and to the inten­sificai ion o f the complex phenomenon o f International migratiorí’ - tradução livre da autora).

" Cf. Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Objetiva, 2001. p. 1920.

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necer no Estado para o qual se destina, decorrendo daí migrações legais ou ilegais.

Normalmente o terceiro critério - migrações legais ou ilegais re­laciona-se às migrações internacionais, pois dentro de um mesmo Estado a liberdade de locomoção é mais ampla e às migrações vo­luntárias já que muitas vezes a migração forçada tem caráter de urgência impedindo preparativos burocráticos.

Esses critérios não são excludentes, mas sim combinam-se entre si, possibilitando a classificação das migrações de várias formas, o que denota mais uma vez a complexidade do assunto6, fator que di­ficulta estudos e soluções abrangentes sobre esse tema.

1.1. MIGRAÇÕES VOLUNTÁRIAS E FORÇADAS

A migração voluntária é a situação à qual normalmente se faz referência ao usar a palavra migração. Ocorre quando o migrante decide por sua livre vontade deixar seu local de residência habitual.

Ela tem como base aspectos econômicos e sociais - a busca de melhores condições de emprego e vida - , sendo comuns a formação de redes de migração e os movimentos de famílias inteiras. Por aque­las entende-se um fenômeno mais complexo pelo qual membros da mesma comunidade se ajudam e estimulam a migração de outros, e por esses o fato de alguns membros de uma mesma família migra­rem primeiro e, assim que se estabelecem, levarem os demais.

Já a migração forçada não decorre exclusivamente da vontade do migrante; como a própria denominação esclarece, há algo que os impele a deixar seu lar, sendo este fator normalmente relacionado a questões de sobrevivência:

A migração pode ser literalmente uma questão de vida ou morte para aqueles que estão escapando da violência ou de regi­mes repressivos. Para os menos favorecidos sobrevivência pode sig­

6 O presente estudo não se deterá em explicações sobre a diferença entre migra­ções internas e internacionais, uma vez que é a mesma de fácil compreensão e que ambas serão objetos de análise. Assim, quando não claramente for apontada a classi­ficação em interna ou internacional, estar-se-á referindo a ambas.

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nificar exílio, falta de moradia, mendicância para ter o mínimo para viver, dependência de caridade ou dependência de auxílio humanitário internacional [...] Em outras palavras migrantes são uma parte do sistema global de estratificação e conflitos étnicos.7

É possível dividi-la em quatro grandes grupos: (1) migrações for­çadas em decorrência de uma política específica do Estado para tal; (2) por perseguição e/ou grave e generalizada violação de direitos hum a­nos - motivos que permitem a caracterização de pessoas que cruzam fronteiras internacionais como sendo refugiados; (3) em razão de con­flitos armados (internos ou internacionais), distúrbios internos ou tensões internas - nessas situações caso a pessoa consiga deixar o país pode ter o status de refugiado concedido; do contrário, e tendo que dei­xar sua residência habitual para buscar maior segurança, pode tornar- se deslocada interna; e (4) por falta de efetividade de direitos sociais, econômicos e culturais (Desc), o que limita a qualidade de vida.

Analisando essas quatro situações tem-se como ilustração do primeiro caso a adoção de políticas públicas de deportações e expul­sões, sendo o seu mais conhecido exemplo histórico o Estado nazista e sua política de deixar a Alemanha “livre dos judeus”, concretizada por atos estatais que impingiam a migração forçada em massa das pessoas pertencentes a esse grupo.

Tal situação poderia ser entendida também como de perseguição a indivíduos, ou seja, a segunda hipótese de migração forçada, mas optou-se aqui por diferenciar as duas hipóteses em função de na pri­meira se ter o Estado efetivando a trasladação das pessoas forçosa­mente, ou seja, a participação ativa do Estado na movimentação das pessoas que caracteriza a migração, fato esse que geralmente não ocorre nas situações de perseguição, ainda quando resultantes da ação

7 RICHMOND, A. H. Global apartheid - refugees, racism and the new world order. Oxford University Press, 1994. p. 195 ( “Migration may be literaly a matter o f life and death for those escaping violence or repressive regimes. For the least fortunate, survival may mean exile, homelessness, scraping a livelihood by begginig, reliance on charity, or dependence on international humanitarian aid [...] In other words, immigrants are part o f a global system o f social stratification and ethclass conflict”— tradução livre da autora).

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estatal, posto que nessas, na maioria dos casos, é o próprio indivíduo que decide deixar seu Estado e providencia sua movimentação.

Na situação de perseguição, tem-se a possibilidade de aplicação do instituto do refúgio, que se funda em regras internacionais un i­versais8 claras que trazem, entre outros aspectos, a definição de quem vem a ser refugiado.

Essa definição estabelece que para a pessoa ser considerada re­fugiada deve possuir um bem -fundado tem or9 de perseguição em função de sua raça, religião, nacionalidade, opinião política, ou per- tencimento a certo grupo social; estar fora de seu Estado de origem e/ou residência habitual10 e ser merecedor" e carecedor12 de proteção internacional.

À essa definição alguns Estados, entre eles o Brasil13 e os membros da União Africana, agregaram a possibilidade de concessão de refúgio com base na grave e generalizada violação de direitos humanos.

Como se depreende da caracterização do refúgio, faz-se necessá­rio que a pessoa esteja em um Estado que não seja o seu de origem e/ou residência habitual. Ocorre que, muitas vezes, a transposição de fronteiras internacionais não é possível, mas indivíduos necessitam deixar seus lares em virtude de perseguição ou violações de direitos humanos. Em razão dessa situação, surge o grupo dos deslocados in­ternos, que ilustra a terceira hipótese de migração forçada e abrange:

8 A Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados (1951) e o Protocolo Relativo ao Estatuto dos Refugiados (1967), ambos patrocinados pela ONU.

9 Isso significa que (1) a situação objetiva do país de origem e/ou residência da pessoa deve corroborar o tem or de perseguição individual, e que (2) a perseguição não precisa ser concretizada, bastando que haja razões que justifiquem o medo dela vir a existir.

10 Caracterizando a alienage, em uma clara demonstração de utilização do con­ceito clássico de soberania.

11 Isto é, não estar abrangido pelas cláusulas de exclusão da concessão do refúgio, por exemplo, não ter praticado crimes contra a humanidade.

12 O que define alguém como refugiado é a situação objetiva de seu país de ori­gem, assim, caso essa apresente melhora considerável, a ponto de se entender que o bem-fundado temor não mais existe, a proteção do refúgio deixa de ser necessária, e a pessoa não é mais carecedora de proteção internacional.

13 Cf. inc. ni do art. Io da Lei n. 9.474/97, específica sobre refugiados.

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as pessoas ou grupos de pessoas que se viram forçadas ou obriga­das a escapar ou fugir de seu lar ou de seu lugar de residência habi­tual, especialmente em função ou para evitar os efeitos de um conflito armado, de situações de violência generalizada, de viola­ções de direitos humanos ou de catástrofes naturais ou provocadas pelo ser humano, e que não tenham cruzado uma fronteira estatal internacionalmente reconhecida.1,1

E por fim, como quarta hipótese de migrantes forçados, tem-se os denominados migrantes econômicos, que deixam seus lares em função da baixa ou nula realização de seus Desc, buscando encon­trar condições de sobrevivência em outro Estado.

Verifica-se que esses quatro grupos se diferenciam tanto pelo motivo ensejador da migração quanto pelo grau de influência na escolha do indivíduo.

Assim, tem-se que no caso de políticas do Estado a violação aos direitos humanos - especialmente à vedação da discriminação e à liberdade de residência - é tão expressiva que praticamente não exis­te outra alternativa para o indivíduo a não ser deixá-lo. Já nos casos de refugiados e deslocados internos a situação se altera - o funda­mento das migrações passa a ser a perseguição e/ou grave e genera­lizada violação de direitos hum anos - e o grau de participação do Estado na escolha é em parte diminuído, posto que na maioria das ações relacionadas ao primeiro grupo o Estado assume publicamen­te a política adotada e aqui não o faz. Isso não significa que a parti­cipação estatal deixe de existir, mas, enquanto no primeiro caso é o Estado que claramente força a migração, aqui a decisão final cabe ao

14 Cf. anexo do representante do Secretário Geral da ONU sobre deslocados Inter­nos 110 documento e / c n . 4/1998/53/Add. 2 de 11.02.1998 ( “A los efectos de estos p rin ­cípios, se entiende por desplazados internos los personas o grupos de personas que se han visto forzadas u obligadas a escapar o huir de su hogar o de seu lugar de residencia habi­tual', en particular como resultado o para evitar los efectos de un conflicto armado, de situaciones de violência generalizada, de violaciones de los derechos hum anos o de catás­trofes naturales o provocadas por el ser hum ano y que no han cruzado una frontera esta­tal internacionalmente reconocida”- tradução livre da autora).

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indivíduo, ainda que seja o Estado que tenha contribuído com a maior parcela de atuação para essa opção.15 E no que se refere à falta de efetividade dos Desc, verifica-se que o Estado tem influência dire­ta na migração, posto que não propiciou a realização desses direitos, mas o vínculo entre a decisão do migrante e o Estado é confuso, pois, uma vez que a verificação desta não-efetivação é revelada por meio das questões econômicas e sociais, que também são as bases da maio­ria das migrações voluntárias, pode-se tom ar aquelas por essas e com isso camuflar a responsabilidade do Estado por essas migrações.

Verifica-se, dessa feita, que a classificação das migrações em vo­luntárias ou forçadas, e das várias formas de migrações forçadas é, na prática, complexa, o que dificulta tanto o estabelecimento de cri­térios claros para o tratamento de cada uma delas quanto a adoção de medidas gerais de proteção como será visto mais adiante.

1.2. MIGRAÇÕES LEGAIS E ILEGAIS

No caso de migrações internacionais, tanto quando são migra­ções voluntárias quanto migrações forçadas, há a possibilidade de serem divididas as mesmas em legais ou ilegais, ou seja, em migra­ções nas quais o migrante possui autorização ou não para entrar e permanecer no Estado para o qual se está dirigindo.

Via de regra essa autorização se dá por meio de ato administra­tivo, e dela decorrem direitos e deveres ao seu titular, garantindo a ele a inclusão na nova sociedade, no sentido de ser possuidor desses direitos.

A concessão dessa autorização é matéria interna de cada Estado, e está diretamente ligada à soberania estatal em sua concepção clás­sica, qual seja, a de uma esfera inviolável de atuação do Estado den­

15 A responsabilidade estatal continua a existir nos casos de refúgio e de desloca­mento interno. Como exemplo, pode-se citar a limitação, por parte de alguns Estados, como Itália e Alemanha, da concessão de refúgio a pessoas perseguidas por seus Esta­dos mas não a pessoas perseguidas por grupos não-estatais.

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tro de seu território, que tem poder discricionário para regular quem entra e permanece no mesmo.

Assim cada Estado estabelece suas políticas de entrada e permanên­cia de estrangeiros em seus territórios e não há como alterar as mesmas.

A questão migratória depende, desse modo, da vontade política de cada Estado que leva em consideração suas próprias necessidades.

Dessa feita, verifica-se que, com o aumento da migração e das dificuldades econômicas, a não-concessão de autorizações de entra­da e/ou permanência para migrantes16 sofreu recrudescimento, e com isso ocasionou o aumento do núm ero de migrantes ilegais, pois a prática revela que o fato de não possuírem autorização não tem impedido a movimentação dos mesmos.

Tal fato é relevante, posto que, sem essa autorização, o indivíduo encontra-se desprovido dos direitos que teria caso estivesse legal­mente nesse Estado, do que pode resultar violação a seus direitos mais essenciais.

Assim sendo, e em função da mencionada possibilidade de com­binação entre os diferentes critérios classificatórios das migrações aqui utilizados, é possível afirmar que no que tange às migrações forçadas, em todas as suas modalidades, a maioria absoluta da população abran­gida por elas é de migrantes ilegais. Dessa feita, trata-se de um grupo vasto de pessoas que além de terem seus direitos fundamentais viola­dos em seu Estado de origem a ponto de se verem forçadas a deixá- los, têm seus direitos humanos limitados em seus novos Estados, posto que não possuem autorização para lá entrar e/ou permanecer.

2. DESENVOLVIMENTO COMO FATOR GERADOR DE MIGRAÇÕES FORÇADAS

Tanto no que tange à temática dos deslocados internos quanto às migrações por falta de efetividade dos Desc, verificou-se uma li­

16 Verificou-se que, na prática, até as autorizações para viagens de turismo têm sido diminuídas, em função de, entre outros fatores, existir temor de migrações ilegais.

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gação direta com o tema do desenvolvimento, isso porque no pri­meiro caso, na maioria das vezes, a situação se funda em uma vio­lência estrutural que decorre de um m enor grau de desenvolvimento de instituições democráticas e sociais e no segundo caso tem-se que uma das bases de verificação do desenvolvimento, os Desc, não está sendo realizada.

Cumpre aqui apontar o que se entende por desenvolvimento para os fins do presente estudo.

O termo desenvolvimento não apresenta um conceito consen­sual e imutável. Desde o seu aparecimento após a Segunda Guerra Mundial e ao longo das últimas quatro décadas verifica-se altera­ções significativas no que se vislumbra ao se tratar da questão do desenvolvimento.

Foi assim que se passou de aspectos puramente econômicos, nos quais a ajuda estrangeira era vista como o centro da política desen- volvimentista, para a noção de desenvolvimento tendo como núcleo o ser h um ano17, a partir da década de 199018, quando surgiu a idéia de desenvolvimento hum ano, conceito com o qual se trabalhará.

O desenvolvimento hum ano significa, resumidamente, “um pro­cesso de ampliação das escolhas das pessoas, visando a um a vida lon­ga e sadia, com acesso ao conhecimento e aos recursos necessários a um padrão digno de vida”19, ou seja: “uma aproximação integrada (econômica e social) e uma ação global”20, que para ser efetivadas necessitam de:

17 Cf. art. 2.1 da Declaração sobre Direito ao Desenvolvimento: “a pessoa hum a­na é o sujeito central do desenvolvimento e deveria ser participante ativo e beneficiá­rio do direito ao desenvolvimento".

18 Para maiores informações sobre a evolução histórica do conceito de desenvol­vimento ver OLIVEIRA, S. M. de. Barreiras não tarifárias no comércio internacional e direito ao desenvolvimento. São Paulo, 2002. Dissertação. Faculdade de Direito, Uni­versidade de São Paulo.

19 CANÇADO TRINDADE, A. A. Tratado de direito internacional dos direitos humanos. 1. ed. Porto Alegre, Sérgio Antonio Fabris Editor, 1999. p. 285.

20 Cf. MOISÉS, C. P. “Direitos Humanos e desenvolvimento”. In: AMARAL Jr., A. do & MOISÉS, C. P. (orgs.) O cinqüentenário da Declaração Universal dos Direitos do Homem. São Paulo, Edusp, 1999. p. 182.

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um processo cumulativo que compreende elementos como: cres­cimento econômico (crescimento), redistribuição de recursos (igual­dade), atuação do Estado (intervenção), democratização do processo (participação), consideração da ordem internacional (reforma e cooperação), os quais devem estar presentes em medidas políticas, instrumentos legais e princípios subjacentes delineadores dos meios e fins do desenvolvimento.21

Por ser, portanto, um conceito complexo e interdisciplinar têm- se apresentado na doutrina várias noções conceituais que visam abarcar todas as vertentes do desenvolvimento. Há duas abordagens principais: (1) o desenvolvimento como síntese dos direitos hum a­nos, pela qual se entende que:

O direito ao desenvolvimento pode ser considerado não como um direito à parte, mas como o direito que proporcionará os meios necessários para que se realizem os demais. Pode-se dizer que se trata de uma síntese de todos os direitos humanos, que tem como objetivo tornar concreto o art. xxvm da Declaração Univer­sal dos Direitos do Homem, segundo o qual todo homem tem direito a uma ordem social e internacional em que todos os direi­tos e liberdades possam ser plenamente realizados22

ou (2) como um vetor, pelo que se entende que o desenvolvimento enseja o direito a um processo de desenvolvimento, representado por um vetor, na expressão matemática do termo, do qual constam os demais direitos hum anos sendo uma combinação de dados que deve sempre se manter igual ou melhorar.

Na verdade, caso se adote, entre tantas teorias sobre o tema, a visão do desenvolvimento como sendo a síntese dos direitos hum a­nos ou como sendo um vetor que permite a realização total dos di­reitos humanos, e relembrando a universalidade, a interdependência,

21 Cf. OLIVEIRA, S. M. de. Op. cit., p. 460.22 Cf. MOISÉS, C. P. Op. cit., p. 192.

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o inter-relacionamento e a indivisibilidade dos direitos hum anos23; tem-se que nas quatro hipóteses de migração forçada há relação di­reta com o tema, posto que se verifica, em todas elas, falha no cum ­primento de direitos humanos assegurados por meio de diplomas internacionais, tais como a Declaração Universal dos Direitos do H o­mem (1948), os Pactos Internacionais de Direitos Humanos (1966), que tratam tanto de direitos civis e políticos como de Desc, e a Decla­ração sobre o Direito ao Desenvolvimento (1986).

Nos dois últimos casos a relação é mais direta, pois sempre que o tema desenvolvimento vem à tona as questões econômicas e so­ciais o acompanham, mas, como exposto, as questões de direitos ci­vis e políticos tam bém são pertinentes a esta temática, em função das mencionadas indivisibilidade, inter-relação e interdependência dos direitos humanos.

Desse modo, verifica-se que as migrações forçadas não somente se caracterizam como práticas ilegais dos Estados, pois violam um direito hum ano específico (a liberdade de ir e vir, da qual decorre a possibilidade de permanecer), mas, também, porque violam o direi­to hum ano ao desenvolvimento, enquanto:

processo econômico, social, cultural e político abrangente, que visa ao constante incremento do bem-estar de toda a população e de todos os indivíduos com base em sua participação ativa, livre e sig­nificativa no desenvolvimento e na distribuição dos benefícios daí resultantes2,1

e enquanto:

direito humano inalienável, em virtude do qual toda a pessoa e todos os povos estão habilitados a participar de um desenvolvi­mento econômico, social, cultural e político, a ele contribuir e dele

23 Cf. art. 5o da Declaração de Viena (1993).24 Cf. o segundo parágrafo preambular da Declaração sobre o Direito ao Desen­

volvimento.

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desfrutar, no qual todos os direitos humanos e liberdades funda­mentais possam ser plenamente realizados.25

Voltando à lição dos liberais políticos, entre os quais John Locke e Jean-Jacques Rousseau26, o Estado surge a partir de um contrato social para proteger os indivíduos contra os abusos do poder.

Com o advento do constitucionalismo e da Revolução Francesa, essa proteção assegurada pelo Estado começa a ser delimitada em termos de direitos, os denominados “direitos fundamentais”. Esses direitos são (1) historicamente afirmados27; (2) decorrentes da dig­nidade inerente aos seres humanos simplesmente em função de sua condição de seres humanos; e (3) asseguram aos indivíduos tanto uma esfera de autonomia quanto a possibilidade de exigir prestações do Estado (direitos civis e políticos e Desc, respectivamente), ou seja, inserem o indivíduo na comunidade que o cerca, assegurando-lhe assim o “direito a ter direitos”28.

Após a Segunda Guerra Mundial, e com o surgimento da ONU,

o tema dos direitos fundamentais ganhou força na esfera internacio­nal, sendo agregado de valores que, mesmo que ainda não tenham sido positivados internamente, são protegidos internacionalmente, com pondo o que denominamos “direitos hum anos”. Apesar dessa internacionalização, o Estado segue sendo a esfera primária de rea­lização dos direitos humanos, tendo responsabilidades em relação a este tema.

25 Cf. art. Io da Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento.2,1 Tema presente, por exemplo, nas obras Segundo Tratado sobre o Governo Civil

e o Contrato Social, respectivamente.27 Cf. nos ensina Fábio Konder Comparato em seu livro A afirmação histórica dos

Direitos Humanos, os direitos humanos são afirmados historicamente e não derivam de características inerentes aos seres humanos, posição em que é acompanhado por Celso Lafer e Hannah Arendt. A dignidade hum ana é inerente ao ser hum ano e em função dela deve-se estabelecer historicamente direitos que a resguardem, direitos denominados direitos humanos.

28 De acordo com a célebre fórmula de Hannah Arendt e que confirma a idéia citada na epígrafe desse artigo pela qual é na comunidade que se exercem os direitos fundamentais.

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Essa responsabilidade decorre da consagração dos direitos h u ­manos na esfera internacional por meio de normas convencionais, atos unilaterais e costumes internacionais, do que deriva inclusive a conceituação de algumas regras internacionais de direitos humanos, por exemplo a Declaração Universal dos Direitos do Homem, como sendo de jus cogens1*, ou seja, de ordem pública internacional.

Dessa consagração deriva a preocupação com a efetividade dos direitos humanos, que para Norberto Bobbio vem a ser o grande desafio dos direitos hum anos.30

A efetividade dos direitos hum anos é atualmente a preocupação principal no que tange ao tema, especialmente no que se refere aos Desc. Isso porque esses direitos exigem em sua maioria ações con­tínuas por parte dos Estados. As ações dem andadas pelos Desc norm alm ente não são realizadas imediatamente ou por questões financeiras ou por questões políticas, sendo concretizadas por meio de normas programáticas. Normas programáticas são aquelas que apresentam eficácia diferida, ou seja, que não são estabelecidas para serem realizadas naquele m om ento e sim quando houver disponibi­lidade política e financeira para tal.

A questão dos recursos disponíveis traz consigo três problemas: (1) a falta de recurso ou (2) a existência de recurso, mas a não-apli- cação do mesmo em um a dada região do Estado, ou, ainda, (3) a efe­tiva aplicação dos recursos, mas sem a produção de resultados, pois os problemas são mais complexos e estruturais.31

29 Regras de direito internacional que em função de sua importância são inder- rogáveis e derrogam quaisquer regras em contrário. Cf. art. 53 da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados (1969).

,0 Tal preocupação se depreende de várias passagens do livro A era dos direitos entre as quais é possível destacar: “Mas tam bém esta busca dos fundam entos pos­síveis - em preendim ento legítimo e não destinado, como o outro, ao fracasso - não terá nenhum a im portância histórica se não for acom panhada pelo estudo das con­dições, dos meios e das situações nas quais este ou aquele direito pode ser realiza­do”, p. 24.

31 Como no caso do nordeste brasileiro, onde aconteceram vários programas de fomento, mas que foram ineficientes, ineficiência essa ligada a questões como, por exemplo, a corrupção, a má administração e a estrutura política do coronelismo.

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Nos três casos há o agravamento da pobreza (uma das maiores causas de mortalidade) e das desigualdades regionais, acarretando migrações forçadas, tanto internas como internacionais.

Existem vários modos de se medir a pobreza e o desenvolvimen­to, um deles é o índice de Desenvolvimento Hum ano ( i d h ) da ONU

que leva em conta a esperança de vida ao nascer, taxa de alfabetiza­ção da população adulta, e ingressos per capita.

Além de vários modos de se medir a pobreza existem duas gran­des classificações da mesma que são relevantes: o conceito de pobre­za absoluta que mede o nível de pobreza de um Estado e o conceito de pobreza relativo que mede o nível de pobreza de um indivíduo.

Quando se fala do desenvolvimento como causa de migrações, ambos os conceitos são relevantes, pois a pobreza relativa muitas vezes decorre diretamente da pobreza absoluta.

A pobreza, assim, não se iguala à não-realização do direito ao desenvolvimento, mas está relacionada a ela, pois ambos dem ons­tram a não-realização dos Desc.

Do exposto, verifica-se que a não-realização dos Desc e, conse­qüentemente, um menor grau de desenvolvimento (já que os indica­dores sociais refletem a realização dos direitos e, por conseqüência, o desenvolvimento) geram migrações que não dependem exclusiva­mente da vontade do indivíduo, mas que contam com uma partici­pação estatal relevante, ou seja migrações forçadas.

Até porque, “os Estados têm a responsabilidade primária pela criação das condições nacionais e internacionais favoráveis à realiza­ção do direito ao desenvolvimento”32.

A problemática do desenvolvimento em sua relação com os re­cursos disponíveis auxiliou a proliferação de tentativas de se expli­car as causas fundamentais do m enor desenvolvimento de certos Estados. Para os objetivos deste estudo, essas causas não são tão rele­vantes posto que o que se quer demonstrar é a relação direta entre desenvolvimento e migrações e não propor soluções para aumentar

32 Cf. art. 3.1 da Declaração sobre Direito ao Desenvolvimento.

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o desenvolvimento ou achar explicações para o m enor desenvolvi­mento de um dado Estado.

Apesar disso, cumpre ressaltar que o desenvolvimento apresen­ta duas dimensões (1) a interna - relativa aos Estados isoladamente; e (2) a internacional - que envolve toda a comunidade internacio­nal, isso porque essa pode auxiliar aquela uma vez que:

os Estados têm o dever de cooperar uns com os outros para assegu­rar o desenvolvimento e eliminar os obstáculos ao desenvolvimento. Os Estados deveriam realizar seus direitos e cumprir suas obrigações, de modo tal a promover uma nova ordem econômica internacional f...] assim como a encorajar a observância dos direitos humanos”,

e com isso minimizar o papel do desenvolvimento enquanto causa de migrações forçadas.

3. A PROTEÇÃO INTERNACIONAL EM CASO DE MIGRAÇÃO

Verifica-se, assim, que o desenvolvimento é um a das causas de migrações forçadas e, portanto, violadora dos direitos humanos, e pode-se afirmar que esse tipo de migração se encaixa no quadro geral dos regimes migratórios no que tange à proteção internacio­nal, que é praticamente inexistente.

Apesar de, como mencionado, ser um fenômeno complexo e abran­gente no mundo atual, razão pela qual é apontado como: “uma reali­dade econômica e social, e um impasse nas políticas internacionais e nacionais”3'1, a migração e os migrantes não apresentam um siste­ma internacional de proteção que lhes proteja totalmente. Existem direitos correlatos assegurados em vários diplomas internacionais, como a liberdade de circulação prevista na Declaração Universal dos

33 Cf. art. 3.3 da Declaração sobre Direito ao Desenvolvimento.34 H1LY, M-A. Op. cit.

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Direitos do H o m em 35 e a previsão de tolerância aos migrantes des­tacada na Declaração Universal sobre Diversidade Cultural patroci­nada pela Unesco (2001 )36, mas os mesmos são insuficientes, uma vez que não asseguram um sistema de proteção aos migrantes, mas tão- somente direitos pontuais nos Estados que os acolhem.

Como foi mencionado, o Estado é o principal responsável pela efetivação do desenvolvimento e dos direitos humanos - o que abran­ge a implementação dos Desc - e, conseqüentemente, deveria elimi­nar, ou ao menos evitar, as migrações forçadas. Ocorre que isso nem sempre é o que se verifica na prática, fazendo-se necessário um sis­tema complementar de proteção.

Esse sistema é encontrado na esfera internacional, por meio do Direito Internacional dos Direitos Humanos - em seu sentido mais amplo, que tem como escopo garantir a proteção da pessoa hum ana em qualquer situação, - e de seu sistema de implementação, pois, como citado, as migrações forçadas têm em sua origem violações a direitos essenciais dos indivíduos.

Mesmo com o auxílio da sociedade internacional quanto à p ro­teção dos direitos humanos, nota-se que a proteção aos migrantes é, ainda, incipiente, sendo um dos temas de direitos hum anos menos desenvolvidos, até em função de sua relação direta com a soberania dos Estados. Por isso, a questão das migrações apresenta tão-som en­te proteção em alguns de seus aspectos.

Para facilitar a compreensão do sistema de proteção existente será dividido novamente o tema da migração entre voluntária e for­çada, e dentro daquela entre legal e ilegal.

A migração voluntária legal tem proteção no que tange ao trata­mento não discriminatório que o migrante deve ter em seu novo Estado, baseado nos mencionados tratados de direitos hum anos e em várias resoluções da Assembléia Geral da o n u 37 e em um tratado específico sobre o tema - a Convenção para a Proteção dos Direitos

35 Cf. art. 13 da Declaração Universal dos Direitos do Homem.36 Cf. preâmbulo da Declaração Universal sobre Diversidade Cultural da Unesco.37 Tais como: a / res/54/1 158, a / 55/275, A/ res/54/180, e a / res/54/2 12.

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dos Trabalhadores Migrantes e Membros de suas Famílias ( 1990)38- , que resultou da atuação de um grupo especial estabelecido pelo Secretário Geral da ONU a fim de tentar criar regras de proteção a essas pessoas.39

Essa Convenção possui 93 artigos e está dividida em 9 partes, das quais todas se aplicam aos migrantes legais, garantindo-lhes to ­dos os direitos hum anos no Estado de migração. Entre esses direitos destacam-se o direito de trabalhar e de saber as condições de traba­lho'10, direito a transferir sua renda para outro Estado", direito de associação'12, direito à saúde e à educação13, e direito de acesso à pre­vidência social e à moradia44, por serem relacionados diretamente à problemática da migração

Ademais, tal diploma legal exorta os Estados a legislarem inter­namente a fim de promover os direitos por ela assegurados, evitando que regras internas sobreponham-se a regras internacionais quando essas sejam mais protetivas.45

Um passo importante dado pela Convenção para a Proteção dos Direitos dos Trabalhadores Migrantes e Membros de suas Famílias é o fato de ela ter dedicado sua terceira parte, que abrange os arts. 8o a 35, à proteção de todos os trabalhadores migrantes, incluindo, dessa feita, os migrantes ilegais no escopo da proteção.

38 Tal convenção para alguns estudiosos faz parte do núcleo duro do Direito Internacional dos Direitos Humanos, ou seja, não pode ser violado sendo quase uma regra de jus cogens.

39 Anteriormente existiam duas convenções sobre trabalhadores migrantes - ambas no âmbito da Organização Internacional do Trabalho: a convenção 97 de 1949 e a conveção 143 de 1975.

4U Cf. art. 37, das Convenção para a Proteção dos Direitos dos Trabalhadores Migrantes e Membros de suas famílias.

41 Cf. art. 47, das Convenção para a Proteção dos Direitos dos Trabalhadores Migrantes e Membros de suas famílias.

42 Cf. art. 40, das Convenção para a Proteção dos Direitos dos Trabalhadores Migrantes e Membros de suas famílias.

43 Cf. arts. 43, a e e, e 45, a e c, das Convenção para a Proteção dos Direitos dos Trabalhadores Migrantes e Membros de suas famílias.

44 Cf. art. 43, d e e, das Convenção para a Proteção dos Direitos dos Trabalhadores Migrantes e Membros de suas famílias.

45 Tal conduta encontra-se presente também em várias resoluções da Assembléia Geral da o n u que solicitam que os Estados protejam os migrantes e respeitem os seus direitos humanos.

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Tais artigos são os relativos aos direitos mais essenciais, e que devem ser assegurados a qualquer ser hum ano, em qualquer situa­ção. Entre esses direitos destacam-se o direito à vida46, “a não ser sub­metido à tortura”'17, liberdade de pensamento, religião e opinião48, segurança física49 e de ser reconhecido como pessoa perante a lei.50

Apesar disso, essa Convenção somente entrou em vigor em lü de julho de 2003, quando o 222 instrumento de ratificação foi obtido, sendo todos estes provenientes de Estados em desenvolvimento e de m enor desenvolvimento relativo, com exceção da Turquia, a acei­taram.51 Assim, tem-se que a Europa e os Estados Unidos, que rece­beram de 1995 a 2000 cerca de 12 milhões de migrantes52, não se obrigaram a assegurar essa proteção aos migrantes, o que leva à con­clusão de que a proteção existente atualmente para os migrantes voluntários, ainda que legais, é incipiente.53

Já no que tange à migração forçada, verificaram-se vários níveis de proteção. Neste grupo de migrantes, com base na classificação

46 Cf. art. 9o, das Convenção para a Proteção dos Direitos dos Trabalhadores Migrantes e Membros de suas famílias.

47 Cf. art. 10, das Convenção para a Proteção dos Direitos dos Trabalhadores Migrantes e Membros de suas famílias.

48 Cf. arts. 12 e 13, das Convenção para a Proteção dos Direitos dos Trabalhadores Migrantes e Membros de suas famílias.

49 Cf. art. 16, das Convenção para a Proteção dos Direitos dos Trabalhadores Migrantes e Membros de suas famílias.

50 Cf. art. 24, das Convenção para a Proteção dos Direitos dos Trabalhadores Migrantes e Membros de suas famílias.

31 Até 11 de janeiro de 2005, vinte e sete Estados haviam ratificado a Convenção (Azerbaijão, Belize, Bolívia, Bósnia e Herzegovínia, Burkina Faso, Cabo Verde, Colôm ­bia, Equador, Egito, El Salvador, Filipinas, Guatemala, Guiné, Gana, Líbia, Mali, Méxi­co, Marrocos, Quirguistão, Senegal, Seichelles, Sri Lanka, Tajiquistão, Timor Leste, Turquia, Uganda e Uruguai), e outros dezesseis já assinaram (Argentina, Bangladesh, Cambodja, Chile, Comoros, Gabão, Guiné-Bissau, Indonésia, Lesotho, Libéria, Paraguai, Peru, São Tomé e Príncipe, Sérvia e Montenegro, Serra Leoa e Togo); con­forme o Centro de Informações das Nações Unidas no Rio de Janeiro (Unicrio).

52 Cf. ONU. Esperança para mais de 150 milhões de pessoas. Op. cit.53 Tanto que a Comissão de Direitos Humanos da ONU decidiu nomear um Relator

Especial para os Migrantes, com a missão principal de efetivar a proteção aos mesmos.

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apresentada no item 1 do presente trabalho, é possível identificar a população expulsa de seu Estado pelo próprio Estado, os solicitan- tes de refúgio e refugiados, os deslocados internos, e os migrantes que deixam seu Estado em função de não efetivação dos Desc.

Quanto ao primeiro grupo, a proteção internacional se dá por meio do fortalecimento dos direitos humanos em geral, por exemplo, pela proibição de retirar a nacionalidade arbitrariamente de um indi­víduo - que se encontra em vários diplomas internacionais, como é o caso do art. 15 da Declaração Universal dos Direitos do Hom em - , prática que antecedeu muitas vezes a expulsão em massa de pessoas. Tais garantias não eliminam por completo a possibilidade de migra­ção forçada em razão de uma política do Estado para tal, mas m ini­mizam a mesma, uma vez que os Estados tendem, em sua maioria, a agir dentro dos ditames do Direito Internacional.

Já no que se refere aos solicitantes de refúgio e os refugiados, veri­fica-se que contam com uma proteção sistematizada e não apenas com dispositivos esparsos. Esse sistema de proteção baseia-se no âmbito universal na Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados (1951) e no Protocolo Relativo ao Estatuto dos Refugiados (1967); em instrumentos regionais - como a Convenção sobre Aspectos dos Refugiados Africanos (1969) da Organização da Unidade Africana51 e a Declaração de Cartagena (1984) de Estados centro-americanos - e em instrumentos locais - como a Lei brasileira n. 9.474/97.55

As garantias decorrentes desse sistema são inúmeras entre as quais se destacam: (1) a proibição de ser devolvido para um Estado no qual sua vida e/ou integridade física esteja ameaçada (o denom i­nado princípio do non-refoulement); (2) o direito a um procedimen­to justo de análise de sua solicitação de refúgio; (3) após a concessão do statusde refugiado, o direito à integração na sociedade que o aco­

54 Agora denominada União Africana.55 Para maiores detalhes sobre o sistema de proteção aos refugiados verificar

JUBILUT, L. L. O Direito Internacional dos Refugiados e sua aplicação no sistema jurí­dico brasileiro. São Paulo, 2003. Dissertação (Mestrado). Faculdade de Direito, Univer­sidade de São Paulo.

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lheu; e (4) a proteção do Alto Comissariado das Nações Unidas pa­ra Refugiados (Acnur)56 e, conseqüentemente, da o n u durante todo o processo (da saída de seu Estado de origem e/ou residência habi­tual até a integração total no novo Estado ou o retorno voluntário a seu país de origem).

Por meio desse sistema são protegidos atualmente 9,7 milhões de refugiados diariamente no m undo, ao que se somam quase 1 m i­lhão de solicitantes de refúgio e mais de 1 milhão de repatriados (refugiados que retornaram voluntariamente a seu Estado).57

Tal sistema tam bém é com partilhado, em bora não to ta lm en­te, pelos deslocados internos, que somam hoje quase 4,5 milhões de pessoas.58 Essas pessoas contam, na verdade, com um sistema de proteção em construção, fundado ora em sua semelhança com os refugiados - quando são protegidos pelo Acnur - ora em suas peculia­ridades - como no trabalho do grupo temático da Comissão de Di­reitos Humanos da o n u sobre deslocados internos que apresentou uma resolução com a supracitada definição de deslocados internos (item 1.1) e princípios sobre a sua proteção.

Apesar desses avanços, a proteção ainda não é suficiente posto que não se tem um órgão estabelecido para fiscalizar e/ou imple­m entar a proteção aos deslocados internos ou um órgão que tenha competência para tratar somente dos deslocados internos e que as regras ainda não possuem força jurídica de um tratado, o que per­mite dizer que a proteção a esse tipo de migrantes também não está consolidada.

Nos três casos supramencionados de migração forçada, verifi- cou-se que os sistemas de proteção privilegiam as migrações em decorrência de violações de direitos civis e políticos, posto que (1)

56 Órgão da ONU criado em 1950 para tratar da temática dos refugiados, com sede em Genebra e escritórios regionais por todo o mundo, inclusive no Brasil (onde o escritório foi reaberto em 2004).

57 Cf. site do Acnur, disponível em: <URL: http://www.unhcr.ch>; acessado em 619/2004. “Existem ainda mais de 55 mil reassentados e mais de 910 mil pessoas apá- tridas ou de interesse do Acnur que não se enquadram nas demais categorias”.

58 Idem.

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os motivos clássicos59 para a caracterização de refúgio são o bem- fundado temor de perseguição em função da raça, nacionalidade, opinião política, pertencimento a grupo social ou religião; denom i­nados status civil e político do indivíduo; que (2) normalmente se define deslocado interno com base nos mesmos critérios cabendo a distinção entre estes e aqueles no fato de terem cruzado ou não uma fronteira internacional; e que (3) as políticas de Estados para expul­são em massa também se baseiam inicialmente na privação de direi­tos desse grupo. Minimiza-se assim, a importância dos Desc, e, com isso, esquece-se a universalidade, a interdependência, o inter-rela­cionamento e a indivisibilidade dos direitos hum anos60, consagradas há mais de uma década.

As condições econômicas e sociais dos migrantes são, desta feita, mitigadas, o que prejudica a possibilidade do estabelecimento de um sistema de proteção com base nas mesmas. Isso porque se criou a fal­sa idéia de que somente ocorrem migrações forçadas por violações de direitos civis e políticos e não pela não-implementação de Desc, do que decorre a falta de um sistema internacional de proteção para os migrantes em função dessa situação.61

59 Existem autores, como o professor James Hathaway, que apontam a possibili­dade de se utilizar a falta de efetividade dos Desc como motivo para os indivíduos serem considerados refugiados. Tal possibilidade decorre de um a definição abrangen­te de perseguição, que entende que se tem três ordens de direitos fundamentais: os ina­lienáveis, os passíveis de limitação em caso de ameaça à vida do Estado e os Desc. No caso das duas primeiras ordens, qualquer violação ensejaria perseguição. Já no que tange aos Desc, tem-se que os mesmos devem ser realizados na medida dos recursos disponíveis, e caso não sejam, esta falha do Estado pode dar ensejo à “perseguição” necessária para a definição de refugiados. Tal possibilidade é, contudo, remota, pois para o sistema universal de proteção dos refugiados, além de ter que existir bem-fun- dado termos de perseguição, essa tem de ser por um dos cinco supramencionados motivos.

60 Fato que pode ser explicado em função da primazia, durante a guerra fria, da idéia de divisão dos direitos humanos em dois grupos, até em função da existência de dois Pactos Internacionais sobre a matéria (um sobre direitos civis e políticos e outros sobre Desc), situação que somente foi totalmente superada com a Declaração de Viena em 1993.

61 A possibilidade de o sistema internacional de proteção aos refugiados abranger também migrantes econômicos já foi aventada e defendida com base na indivisibilida­de inter-relacionamento, universidade e interdependência dos direitos humanos, mas

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Dessa feita, os migrantes forçados pelas condições de desenvol­vimento do Estado não contam com proteção internacional, posto que sua condição se baseia em questões de Desc e não de violações de direitos civis e políticos, não abrangido pela proteção interna­cional existente e que são de mais difícil caracterização.

Os migrantes forçados em função do desenvolvimento são, assim, duplamente prejudicados, pois não contam com a proteção de seu Estado - que não efetivou as medidas necessárias para o desenvol­vimento adequado a uma qualidade de vida satisfatória - e também não podem gozar da proteção internacional, pois não se encontram abrangidos por nenhum a das poucas possibilidades que esta coloca aos migrantes.

Fala-se aqui de um a proteção efetiva, que permita aos migran­tes integração em um outro local para recomeçar suas vidas e não a garantia apenas de direitos essenciais, posto que estes são asse­gurados a quaisquer indivíduos na esfera internacional, até para os migrantes ilegais como visto quando da análise da Convenção pa­ra a Proteção dos Direitos dos Trabalhadores Migrantes e Membros de suas Famílias.

Assim sendo, pode-se concluir que som ente os solicitantes de refúgio e os refugiados possuem um sistema de proteção efetivo, pois enquanto os migrantes legais, os deslocados internos e as pes­soas expulsas pelo seu próprio Estado contam com regras esparsas, mas que lhes ensejam um certo nível m ínim o de proteção, os m i­grantes ilegais e os migrantes forçados por falta de implementação de Desc (situações que, na maioria das vezes, estão cumuladas) são praticamente excluídos da proteção internacional.

Tal situação engendra um paradoxo da globalização, pois ao mesmo tempo em que ela aumenta e facilita a circulação do capital, verifica-se que a circulação do trabalho e das pessoas, com garantias mínimas legais, é dificultada:

tal sistema conta com escassos recursos e depende da boa vontade dos Estados (que não é a mesma para migrantes econômicos), e a inclusão desses, de acordo com os críticos dessa possibilidade, poderia significar a ruína do sistema como um todo.

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Em um mundo globalizado - o novo eufemismo en vogue - abrem-se as fronteiras aos capitais, bens e serviços, mas lamenta­velmente não às pessoas, aos seres humanos. Abrem-se as econo­mias nacionais aos capitais especulativos, ao mesmo tempo em que se fecham às conquistas sociais das últimas décadas.62

Faz-se, assim, necessário adotar medidas, como ações visando à ampla liberdade de trabalho, para se compatibilizar às questões do desenvolvimento e das migrações, o que exige esforço doméstico e internacional

4. A NECESSIDADE DE AUXÍLIO INTERNACIONAL PARA ELIMINAR AS MIGRAÇÕES FORÇADAS E PARA O DESENVOLVIMENTO

Pelo acima exposto verifica-se que se faz necessário o auxílio da comunidade internacional aos migrantes forçados que ainda não contam com sistemas efetivos de proteção.63 Dessa feita, indispen­sável aprim orar os sistemas que já estão em construção, como o dos deslocados internos, e estabelecer sistemas para os migrantes que ainda não contam com nenhum a proteção, entre os quais se desta­cam os migrantes por questões relativas ao desenvolvimento.

Em ambos os casos o que se verifica é a necessidade de efetivar os direitos hum anos já consagrados, pois se esses forem respeitados na prática as causas das migrações forçadas serão extintas e a prote­ção aos migrantes forçados não será mais necessária.

Contudo, tal fato é no m undo atual utópico, até porque as cau­sas das migrações forçadas são inúmeras, assim como as causas do menor grau de desenvolvimento de alguns Estados e, caso se fique

62 Cf. CANÇADO TRINDADE, A. A. Op. cit., p. 266.65 Cumpre aqui relembrar que o sistema geral de direitos humanos se aplica a

todos os seres humanos, sem discriminação, inclusive aos migrantes.

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esperando a eliminação das mesmas sem garantir os direitos dos m i­grantes forçados durante tal espera, eles ficariam totalmente despro­tegidos por um longo período.

No que tange aos migrantes forçados em função de questões de desenvolvimento, que são os que mais de perto interessam ao pre­sente estudo, essa proteção internacional é necessária, pois norm al­m ente a pobreza absoluta gera pobreza relativa e o grau de d e ­senvolvimento do Estado intervém no grau do desenvolvimento do indivíduo, ou seja, para pessoas nessas condições não basta p ro­teção quanto ao seu trabalho ou tratamento igualitário, como os despendidos aos migrantes voluntários legais, mas se faz necessário um auxílio maior: oportunidades para recuperar o que lhes foi ne­gado para que a partir daí possam ter chance de desfrutar de quali­dade de vida no sentido mais amplo da expressão.

Esse auxílio deve existir em dois níveis: (1) a proteção destes indivíduos quando se tornam migrantes - tanto no que tange à m i­gração em si quanto no que tange à integração dos mesmos em suas novas sociedades, ou seja, tanto internacionalmente quanto interna­mente64 nos Estados - e (2) o auxílio ao desenvolvimento dos Esta­dos com m enor grau de implementação de Desc.

A primeira hipótese poderia ser concretizada de início por meio de atos internacionais que afirmassem a existência de vários tipos de migração entre as quais as migrações forçadas em função de desen­volvimento e que propusessem a criação de sistemas de proteção es­pecíficos para cada um deles.

E, em seguida, com a elaboração de um sistema exclusivo para es­ses migrantes, privilegiando a inclusão social dos mesmos para, com

61 Esse item foi denom inado de “A necessidade de auxílio internacional paraeliminar as migrações forçadas e para o desenvolvimento”, apesar de ter sido aponta­da a necessidade de ações domésticas, pois o tema das migrações é de interesse m u n ­dial e mesmo a adoção de medidas internas de proteção só será eficaz caso ocorra em escala mundial, ou seja, se a comunidade internacional adotar como um todo ou a maioria dos Estados adotar tal prática, razão pela qual essas medidas foram engloba­das como auxílio internacional à migração.

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isso, efetivar o art. 28 da Declaração Universal dos Direitos do H o­mem que prevê que:

Toda pessoa tem direito a uma ordem internacional e social em que os direitos e liberdades estabelecidos na presente Declaração (ou seja, quase a totalidade dos direitos humanos reconhecidos) possam ser plenamente realizados.

A postura adotada por alguns Estados de anistiar imigrantes ile­gais, como feito pelo Brasil em 1998 quando houve a anistia de 100 mil imigrantes ilegais, pode ser tida como um início de elaboração desse sistema, mas legalizar sua permanência é apenas uma das eta­pas de sua proteção.

Nas palavras do Secretário Geral da o n u , Kofí Annan:

Gerir o fenômeno migratório não implica apenas abrir as por­tas e colaborar no plano internacional. Também exige que cada país desenvolva esforços para integrar os recém-chegados [...] Só graças a uma estratégia criativa de integração dos imigrantes os países podem assegurar que esses enriqueçam a sociedade de aco­lhimento, em vez de trazerem instabilidade.65

O u seja, os Estados devem domesticamente também se preocu­par em garantir os direitos essenciais dos migrantes, por exemplo, por meio da já citada ampla liberdade de trabalho; pois somente a proteção internacional da migração sem o respaldo de políticas internas de integração66 não gerará resultados que assegurem a dig­nidade dessas pessoas.

Quanto ao segundo nível de auxílio, seria necessária uma maior participação da comunidade internacional nas questões de desen­

63 ANNAN, K. Uma estratégia de migração para o mundo, Folha de S. Paulo,29.1.2004. Caderno Opinião, p. XX.

66 Integração necessária até para assegurar o futuro de alguns Estados, como os membros da União Européia, o Japão e a Federação Russa, que dependem da migra­ção para manter seus níveis populacionais, cf. ANNAN, K. Op. cit.

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volvimento, a partir da qual ela assumisse de m odo mais eficaz a res­ponsabilidade pelo mesmo.

Essa responsabilidade existe caso se enxergue o desenvolvimento enquanto direito assegurado pela comunidade internacional, tanto pelo fato de o direito ao desenvolvimento integrar o rol de direitos humanos desde 1986, quanto pela obrigação de cooperar existente entre os Estados, que se fortalece após a Segunda Guerra Mundial e que se encontra presente tanto na Carta da o n u quanto em outros tratados, sobretudo nos que se ocupam de temas de direito ambien­tal, de patrimônio comum e de direitos humanos, temática na qual o desenvolvimento está englobado.67

Ademais, pela própria Carta da o n u verifica-se a obrigação de cooperação específica no que tange ao desenvolvimento, posto que no art. 56 encontra-se a obrigação de cooperar; que no art. 55 há te­mas que ensejariam obrigações entre os quais os direitos humanos, níveis mais altos de vida e desenvolvimento, ou seja, o desenvolvi­mento é apresentado, nesse diploma legal, como a obrigação inter­nacional que ele é.68

Se a esfera jurídica (e consequentemente moral) for colocada de lado e optar-se por uma análise mais egoísta, da qual a argumenta­ção utilitarista é um paradigma, poder-se-ia enxergar a realização dos Desc nos Estados de m enor desenvolvimento como vantagem para os Estados mais desenvolvidos.

67 A necessidade de cooperação internacional no que tange especificamente ao de­senvolvimento também está presente em documentos internacionais, como se depreen­de dos seguintes parágrafos da resolução a/res/54/212 da Assembléia Geral da ONU: “Urges Metnber States and the UN system to strenghten international coopera-tion in the area o f International migration and development in order to address the root causes o f migration, especially those related to poverty, and to maximize the benefits o f international migration to those concerned” c “Also calls upon the international community to make the option o f remaining in one's country viablefor ali people, to which end efforts to achieve sustaintable economic and social development, ensuring a better economic balance between developed and developing countries, should be strenghtenedy\

68 A n e ce ss id a d e d e c o o p e ra ç ã o p a ra a e fe t iv a ç ã o d o d ir e ito a o d e s e n v o lv im e n to

é tã o re le v a n te q u e a p r ó p r ia o n u e sta b e le ce u u m p r o g r a m a d e p a rc e r ia s c o m en tes

p r iv a d o s , o UN Compact v is a n d o a p r o fu n d a r a m e sm a .

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Isto por que poderia se argum entar que, caso as pessoas não fiquem em seus Estados e imigrem pode haver desestabilização das relações econômicas nos Estados mais desenvolvidos para os quais imigrarem.69

Assim, tem-se que a comunidade internacional deve tanto ten­tar prevenir as migrações forçadas em função da não-efetivação dos Desc quanto zelar pelo desenvolvimento de todos os seus membros, quer por razões jurídicas - que deveriam bastar por si mesmas - quer por razões egoístas, e como tal processo não é imediato mas ao contrário é lento e gradual, deve a comunidade internacional come­çar a se preocupar em estabelecer um sistema de proteção efetivo para todos os migrantes, incluindo-se os por questões econômicas e sociais, pois sem esse sistema os direitos hum anos dessas pessoas são mais uma vez violados e a comunidade internacional falha dupla­mente em sua obrigação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Verifica-se, assim, que as migrações são um problema atual e de grande dimensão em todo o m undo, mas que ainda não contam com um tratamento adequado por parte tanto da comunidade in­ternacional quanto dos Estados individualmente.

Verifica-se, ainda, que entre as diversas causas das migrações, em especial as forçadas, encontra-se o tema do desenvolvimento, que é apontado como:

69 Tal postura parecer estar sendo utilizada na Europa, pois como aponta Bruno Nascimbene: “A ação internacional dos Estados do Norte (países desenvolvidos) sobre aqueles do Sul (países em via de desenvolvimento) é intensa no sentido de favorecer e incrementar a cooperação a fim de que a pressão migratória se reduza. A ação, em par­ticular» se concretiza em programas de formação profissional, em programas de assis­tência e ajuda destinada a criar postos de trabalho naqueles países, cujos cidadãos, dessa forma, não terão mais razões (ao menos hipoteticamente) de emigrar devido às privações no campo do trabalho” As migrações no direito internacional e o futuro do direito, Revista da o a b , ano X X V II, n. 65, jul.-dez./1997. p. 26.

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o alfa e o ômega dos direitos humanos, o primeiro e o último direito humano, o começo e o fim, o meio e a meta dos direitos humanos, resumindo é ele o direito central do qual todos os outros derivam.70

Mas que também o desenvolvimento depende de uma ação da comunidade internacional para sua efetiva realização.

Dessa feita, tem-se que a comunidade internacional deve agir em duas frentes a fim de dar respostas adequadas às migrações rela­cionadas ao desenvolvimento: assegurando direitos aos migrantes e buscando minimizar as causas do menor grau de desenvolvimento de certos Estados que não somente servem de base para migrações for­çadas como também pode ser visto como causador da impossibilida­de de uma vida que respeite a dignidade da pessoa humana, ferindo, assim, a própria fundamentação dos direitos humanos.

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70 BEDJAOUI, M. “The right to development”. In: STEINER, II. & ALSTON, P. International Human Rights in Context-Law, Politics and Morais. 2. ed. Oxford, Oxford University Press. 2002. p. 1321 (“the Alpha and Omega o f hum an rights, the first and the last hum an right, the beggining and the end, the means and the goal of hum an rights, in short it is the core right from wich ali the others stem” - tradução livre da autora).

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6A Transmutação da Organização da Unidade Africana em União Africana: Entraves e Potencialidades Institucionais

A d a l b e r t o N a d e r

Introdução - 1. Falência do estado pós-colonial, pobreza e pande- mias - 2. Intencionalidades na criação da União Africana - 3. Princípios e objetivos da entidade - 4. Órgãos da União Africa­na - 5. Sanções eventuais aos membros - 6. O parlamento Pan- Africano - Considerações finais - Referências

INTRODUÇÃO

Presentes em Lomé, capital do Togo, no mês de julho de 2000, para a derradeira reunião de cúpula, de número 37, da Organiza­ção da Unidade Africana ( o u a ) , os 51 representantes de um total de 53 Estados da África fariam história, ao adotarem formalmen­te o ato constitutivo da União Africana ( u a ) .

Sediada em Adis-Abeba, no coração da República Federal Democrática da Etiópia, a u a substituiu a generalista o u a , sua predecessora, fundada em 1963, em meio à guerra fria e no au ­ge do processo de descolonização que marcou, decisivamente,

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as relações internacionais do Segundo Pós-guerra. A o u a apresenta­va múltiplos objetivos, dentre os quais a promoção da unidade e da solidariedade africanas, o banimento dos últimos resquícios do co­lonialismo no continente de Nelson Mandela e Kofi Annan, o fo­mento à cooperação econômica, política e cultural regionais, dentre outros.

No período posterior à Segunda Guerra Mundial, pari passu com o desenvolvimento de organizações internacionais de cunho univer- salista - como a Organização das Nações Unidas ( o n u ) e de todo o conjunto de instituições que formam o seu sistema - , processos regionais de institucionalização das relações internacionais surgi­ram em todos os continentes, conforme lição de Nguyen Quoc Dinh, Patrick Daillier e Alain Pellet. Segundo os autores, após 1945:

[...] as solidariedades regionais - simultaneamente geográficas e ideológicas - reforçaram-se consideravelmente tanto entre os paí­ses ocidentais (“integração européia”: as Comunidades Européias de 1951 e 1957; solidariedade política: Aliança Atlântica e Otan), solidariedade econômica entre países industrializados (Oece mais tarde OCDE, a i e , Alena) como entre Estados do Terceiro Mundo ( o u a , Anase, Opep, organizações econômicas e regionais em África e na América Latina). Sem contar com as organizações regionais que reflectem outras solidariedades, por exemplo entre Estados desenvolvidos e subdesenvolvidos.1

A OUA, portanto, entrou em operação no curso do mencionado processo, com a suplementar incumbência de atuar como mediado­ra em guerras civis, nos conflitos internos dos Estados e também em disputas territoriais dos Estados-membros. Tais mediações, no entanto, revelaram-se não raramente ineficazes, em decorrência da escassez de recursos da organização e tam bém porque os Estados integrantes das forças de manutenção da paz, mercê das suas lealda-

1 DINH, N. Q.; DAILLIER, P. & PELLET, A. Direito Internacional Público. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1999. p. 52. Grifo nosso.

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des tribais ou étnicas, acabavam por se envolver nas batalhas que lhes cabiam apaziguar. Quanto ao mecanismo de resolução de con­flitos da OUA, explicam Nguyen, Daillier e Pellet que:

A Carta de Addis-Abeba de 15 de Maio de 1963 que criou esta organização prevê o estabelecimento de uma Comissão de Media­ção, de Conciliação e de Arbitragem (art. 19°). Esta disposição foi concretizada pelo Protocolo do Cairo de 21 de Julho de 1964.

A solução adotada é original, porque o mesmo órgão tem fun­ções não jurisdicionais e arbitrais. Não estão previstas modalida­des de composição diferentes segundo as funções assumidas, o que é tecnicamente pouco satisfatório.

[...]O mecanismo tem tido alguns resultados satisfatórios em certos

processos (Congo, litígios fronteiriços entre Argélia e Marrocos, entre Somália e Etiópia). Tem-se provado ineficaz noutros casos.2

O balanço histórico da OUA revelou-se, de modo geral, distante das elevadas aspirações que animaram seus fundadores, razão pela qual, no curso da reunião da OUA em Uagadugu/Burkina Fasso, em junho de 1998, veio à tona o debate acerca da real necessidade de se dar alguma sobrevida à instituição, diante de suas notórias dificulda­des em debelar os graves conflitos que há muito ocorriam na África.

De fato, a crônica falta de recursos financeiros que marcou toda a trajetória da o u a criou sérios obstáculos à consecução de seus obje­tivos estatutários, muito embora a o u a tenha cumprido um im por­tante papel histórico - ao menos no plano estritamente simbólico - , ao contribuir para a consolidação da mística pan-africana3, na medi­da em que se elevara à condição de vetor da unidade continental. Desse modo, segundo lição de Albert Bourgi, docente na Faculdade de Direito e de Ciência Política de Reims/França, ainda que contasse com orçamentos insignificantes, a OUA logrou operacionalizar:

2 Op. cit., p. 754.3 BOUGI, A. “Voyage à rin térieur de F o i /a ”. In: Politique Êtrangère. v.4/98. p. 780.

Tradução livre do autor.

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as múltiplas estruturas de concertação de que dispõe a África junto às organizações do sistema das Nações Unidas. Os grupos africanos na ONU e nas agências especializadas repercutem 110 cotidiano as decisões tomadas pela o u a e velam para que os interesses do Conti­nente, no sentido amplo, sejam preservados. Isso vai da designação dos países chamados a tomar assento no seio de certos órgãos prin­cipais da o n u (como o Conselho de Segurança) até à inscrição de questões na ordem do dia dos trabalhos das instâncias deliberativas das Nações Unidas, passando pela defesa e atendimento de reivindi­cações nos grandes fóruns internacionais. As grandes conferências mundiais organizadas pela o n u foram ocasião para que a África sustentasse projetos freqüentemente negociados e elaborados ao fim de reuniões ocorridas sob a égide da OUA.4

A despeito de ter forjado um espaço próprio na política africa­na, sobretudo com o fim do antagonismo político-ideológico entre as superpotências atômicas após o fim da guerra fria, a atuação da o u a revelou-se insuficiente, em face dos enormes desafios historica­mente impostos às populações e autoridades políticas africanas.

A falta de verbas igualmente persistiu no tempo, estreitando so­bremaneira as margens de m anobra da entidade, situação que lhe obrigou a privilegiar, na medida do possível, os meios pacíficos de so­lução de controvérsias entre seus m em bros, ante os altos custos de hipotéticas intervenções nos locais dos conflitos.

Assim, de acordo com os motivos revelados na proposta de su­cessão da OUA pela nova entidade:

desde o Encontro de Lusaka, a o u a entrou em uma fase de muta­ção para que se torne a União Africana. Tal União, com a qual sonham todos os africanos, não representa, do ponto de vista de sua concepção, uma idéia nova, originando-se no panafricanismo, e do ideal que inspirou os pais fundadores da o u a f...]. Do 25 de maio de 1963, em Adis-Abeba (Etiópia) ao 9 de setembro de 1999, em Sirte (Líbia), os esforços empreendidos foram deslocados para

' Op. cit., p. 783. Tradução livre do autor.

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que o sonho da União se tornasse realidade. A declaração de Sirte, tendo logrado a adoção do Ato Constitutivo da União Africana, foi analisada como um ponto de ancoragem da vontade política dos Chefes de Estado e de Governo dos países-membros da o u a , para se viabilizar o desafio maior de integração do Continente Africa­no. O mandato do Encontro de Lusaka inscreve-se perfeitamente neste quadro político e traduz a vontade coletiva das populações africanas de viabilizar tal União.5

Não houve, portanto, com o surgimento da UA, um a ruptura no acúmulo da experiência institucional da OUA, que, ademais, voltou- se, em sua última fase, a temas recorrentes no pós-guerra fria, como o reforço dos mecanismos de proteção dos direitos hum anos e tam ­bém dos valores democráticos.

A nova organização, muito ao contrário, aprofunda e radicali­za os objetivos que inspiraram os fundadores da o u a .

Desse modo, na concepção de Mwayila Tshiyembe, diretor do Ins­tituto Pan-africano de Geopolítica da Universidade de Nancy/França, a criação dos Estados Unidos da África seria o grande projeto a se atin­gir pela u a , um sonho “acalentado desde os primeiros dias do pan- africanismo”, e que:

aflora nos debates de todas as instâncias comunitárias africanas. Para inúmeros responsáveis políticos, a falência do Estado pós- colonial constitui o epicentro da marginalização do continente e a causa da recrudescência da violência, que mergulha áreas inteiras da África no caos. Tal falência estaria também na origem da misé­ria exponencial que ameaça a sobrevivência de dezenas de milhões de indivíduos, que destrói o que resta dos laços sociais e deixa cam­po livre às ameaçadoras pandemias de Aids e de malária, enquanto os altos escalões empresariais se encontram no desemprego, expa­

5 Le Passage de L ’o u a à 1’Union Africaine. Disponível em: <URL: http://www.africa- union.org/fr/commpub.asp?lD=60>. Tradução livre do autor. O referido encontro de Lusaka, capital da Zâmbia, ocorrido no ano de 2001, serviu para que os líderes da África definissem o programa sobre o estabelecimento da ua.

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triados ou estacionados em um setor público em bancarrota, que reduz a pó os saberes conquistados por imensa luta na escola oci­dental [...].6

A toda evidência, o retomado processo de unificação continental africano apenas palidamente reproduz as cores vibrantes do modelo europeu que lhe serve de inspiração, uma vez que as assimetrias no desenvolvimento político de ambas experiências integracionistas são profundas e crescentes nas circunstâncias e complexidades que lhes são próprias.

Contudo, o esforço na tentativa de uma nova construção com u­nitária é indiscutivelmente válido e mesmo edificante, na medida em que poderá auxiliar as populações civis africanas na elevação de padrões de vida ainda muito insatisfatórios. Para tanto, alguns bem atados nós górdios do processo político africano haverão de ser devi­damente suprimidos, conforme será visto adiante.

1. FALÊNCIA DO ESTADO PÓS-COLONIAL, POBREZA E PANDEMIAS

Cifras e estatísticas eloqüentes delineiam o panorama de uma África que, ao mesmo tempo em que se inclina a um projeto de en­vergadura, consubstanciado na consolidação da novel u a , deve fazer face a toda uma pletora de dificuldades inerentes a sua incômoda condição de continente mais pobre do planeta.

Com efeito, segundo revela o Banco Mundial, boa parte dos afri­canos sobrevive com um a média de gastos inferior a dois dólares para mitigar suas necessidades diárias. As notícias em periódicos sobre as dificuldades em inúmeros Estados do continente acumu- lam-se, a exemplo recente publicação dos riscos iminentes de morte

TSHIYEMBE, M. “L’Afrique face au défi de 1’État multinacional. In: Le Monde Diplomatique, set./2000. p. 14. Tradução livre do autor.

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para 13 milhões de habitantes do sul da África, no ano de 2002, em razão da prolongada seca que atingiu a região.7

Ademais, a temível Síndrome de Imunodeficiência Adquirida (Aids) converteu-se em verdadeira pandemia no continente, confor­me dem onstram alguns dados estatísticos alarmantes. Assim é que cerca de 71% de todos os portadores do h i v no m undo habitam a África Subsaariana, sendo que Botsuana e Zimbábue são os Estados mais atingidos. Estima-se que, na região, a expectativa de vida, de 59 anos no início dos anos de 1990, estará abaixo dos 45 anos em 2005. Além da Aids, a malária, a fome e a subnutrição atingem, de modo progressivo, todo o continente africano.

Do ponto de vista estritamente político, a falência do Estado pós- colonial deita raízes no próprio colonialismo, que “loteou”, por assim dizer, o continente africano entre as potências imperialistas européias do fim do século xix, conforme lição do historiador Eric Hobsbawm:

duas regiões maiores no mundo foram, para fins práticos, inteira­mente divididas: África e Pacífico. Não restou qualquer Estado independente no Pacífico, então totalmente distribuído entre bri­tânicos, franceses, alemães, holandeses, norte-americanos e - ainda em escala modesta - japoneses. Por volta de 1914, a África perten­cia inteiramente aos impérios britânico, francês, belga, português e, marginalmente, espanhol, à exceção da Etiópia, da insignificante Libéria e daquela parte do Marrocos que ainda resistia à conquista completa.*

7 Folha de S. Paulo (M undo), 25.6.2002. Ao longo da matéria, explicitou-se, a respeito das dificuldades na interlocução norte-sul, que “até mesmo uma Conferência da o n u sobre alimentação, realizada em Roma no início do mês, cujo resultado deve­ria ter sido um plano com estratégias para com bater a fome, produziu mais brigas e intrigas do que soluções. Como já ocorreu várias vezes no passado, a reunião reve­lou profundas diferenças entre o Norte e o Sul e uma recusa total por parte dos Esta­dos Unidos e da União Européia de investir mais bilhões de dólares em auxílio ao desenvolvimento agrário. Analistas dizem que o problema na região sul do continen­te africano tem sido agravado por políticas governamentais fracassadas e conflitos políticos - particularmente no Zimbábue e em Malauí”.

8 Cf. A em dos impérios 1875-1914. 2 .ed. São Paulo, Paz e Terra, 1989. p. 89. (Grifo nosso).

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O arbítrio na divisão dos territórios africanos entre as potências coloniais européias deixou como legado a cisão de tribos, etnias, povos, tanto na África quanto em outras regiões, conforme atesta Hobsbawn, para quem, ainda no tempo presente, “o m undo pós- colonial está assim quase inteiramente dividido pelas fronteiras do imperialismo”9.

Nas últimas décadas do século XX, um a grave estagnação econô­mica literalmente engessou a economia continental, com evidentes perdas de mercados para os commodities africanos, constatação que aprofundou a vulnerabilidade regional. Não obstante, o ajuste m a­croeconômico neoliberal imposto pelos centros internacionais não levou em conta, como de hábito, pelo menos três sérios handicaps dos Estados africanos.

O primeiro seria o nível de educação (média geral de escolarida­de) relativamente baixo no continente, mesmo se comparado com o restante dos Estados do Terceiro Mundo. Assim, de acordo com dados de 1971 acerca da África Subsaariana, a média de escolaridade da p o ­pulação economicamente ativa era menos da metade daquela apre­sentada pelo conjunto dos países em desenvolvimento (1,5 ano de estudos contra 3,3 anos). Igualmente discrepante era a taxa de esco- larização: 52% da população africana contra 88% nos demais Estados do Terceiro Mundo no primário, e 8% contra 31% no secundário.10

O segundo handicap consistiria na excessiva fragmentação con­tinental, responsável por um grande núm ero de Estados de baixa demografia. Nesse sentido, de acordo com Paul Collier, e outros:

[...] em 1971, a população média dos últimos era de cerca de 6 milhões de habitantes (34 milhões para os demais países em vias de desenvolvimento). Os países africanos (de pequena base popu­

9 HOBSBAWN, E. A era dos extremos: o breve século xx, 1914-1991. São Paulo, Companhia das Letras, 1995. p. 206.

10 COLLIER, P.; GUILLAUMONT, P.; JEANNENEY, S. G. & GUNNING,). W. “Lavenir de Lomé: que peut 1’Europe pour la croissance de l’Afrique?”. In: Politique Étrangère, Institut Français des Relations, n .l, 1997. p. 153. Tradução livre do autor.

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lacional) apresentam, em sua maioria, uma baixa densidade demográfica, o que se converteu em um fator de elevação do custo infra-estrutural por habitante. Enfim, na maioria dos países, etnias diversas coexistem - fragmentação medida por certos indicadores (Mauro, 1995), o que se constituiu em fator de enfraquecimento da unidade nacional, fragilização do poder e, às vezes, graves pro­blemas (guerras civis ou de secessão).11

O último handicap apontado tam bém seria de caráter dem o­gráfico, representado tanto pelas altas taxas de natalidade continen­tais nos últimos trinta anos quanto pela acelerada urbanização ocor­rida nos Estados africanos, fenômeno que engendrou necessidades em infra-estrutura e equipamentos públicos superiores à capacida­de dos governos em provê-las adequadamente, fato que também contribuiu para as instabilidades social e política.

Tais instabilidades, de sua parte, vez por outra convertem alguns Estados africanos em solo fértil para todo o tipo de despotismo e improvisações governamentais, estas não raramente levadas a cabo por cleptocracias, conforme sublinha Robert I. Rotberg, professor de Harvard, em análise dos problemas enfrentados pelo Zimbábue do Presidente Robert Gabriel Mugabe:

Líderes venais representam a maldição da África. Se a África Sub- saariana está imersa “em uma bagunça”, para citar Julius Nyerere, presidente fundador da Tanzânia, trata-se de uma bagunça produ­zida por seus líderes. Para que se tenha certeza, a África apresenta constrangimentos geográficos, uma cascata de doenças tropicais e um legado colonial complexo. Mas onde líderes visionários retira­ram a Ásia da pobreza desde 1960, muitos chefes de governo afri­canos, no mesmo período, presidiram sobre enormes declínios nos padrões de vida africanos, enquanto cuidadosamente enriqueciam a si e aos seus compadres.12

11 Op. cit., p. 153.12 ROTBERG, R. I. “Africas’s Mess, M ugabes Mayhem”. In: Foreign Affairs, v. 79,

n. 5, 2002. p. 47. Tradução livre do autor.

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Ainda que se possa objetar o relativo simplismo acerca da re­corrente comparação entre os casos de sucesso na Ásia - perfor­mance não reproduzida nem pelos Estados africanos nem pela maioria dos integrantes do Terceiro M undo a verdade é que os problemas supra-elencados indicam alguns dos maiores entraves à construção, na África, de uma sinergia entre Estados que venha a dar conta de todas as mazelas experimentadas pelos seus povos nas últimas décadas.

Integrar eficazmente a região implicaria, ante tal constatação, na necessidade de se garantir a intangibilidade do Estado multinacio­nal africano e em se criar uma espécie de “federação de territórios”, segundo defende Tchiyembe, uma vez que em inúmeros Estados da região não se guardou correlação alguma “entre o espaço político e o espaço sociocultural”. Por essa razão:

um novo pacto social é indispensável para fundar o Estado multinacional sobre o duplo consentimento das nações e dos ci­dadãos, reconciliando-se, assim, a cidadania (individualismo) e a multinacionalidade (comunitarismo) como dois pólos de legiti­mação.13

Tais seriam alguns dentre os principais desafios que se apresen­tam à novel u a , herdeira, ainda no seu nascedouro, de todas as difi­culdades inerentes a tão problemática região do globo.

2. INTENCIONALIDADES NA CRIAÇÃO DA UNIÃO AFRICANA

O Ato Constitutivo da u a entrou em vigor em 26 de maio de 2001, após ter sido devidamente ratificado por 2/3 dos Estados-mem- bros da extinta o u a .

13 Op. cit., p. 15.

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O arquétipo inspirador do projeto africano é o da União Européia ( u e ) , que há tempos serve de modelo a toda e qualquer construção comunitária no mundo. Além do tributo confesso rendido ao velho continente, a África ambiciona, explicitamente, valer-se das experiên­cias adquiridas pela Associação da Nações do Sudeste Asiático (Asean) e pelo próprio Mercado Comum do Sul (Mercosul), dentre outras organizações internacionais, na consecução de seu projeto regional.14

O arranjo político dos membros da u a forjou-se em torno de reuniões ocorridas em Sirte (Líbia), em setembro de 1999, e em Lomé, em julho de 2000. Seguiu-se à Declaração de Sirte a formal adoção do Ato Constitutivo da u a , em julho de 2001.

As motivações socioeconômicas decorrem do interesse manifes­to dos dirigentes africanos de enfrentar criativamente os desafios da globalização e da integração regional, pela concepção de estratégias que, inspiradas em soluções políticas originais, estejam perfeitamen­te ajustadas às realidades do continente africano. Desse modo, a mera leitura do Ato Constitutivo revela ser ele não um programa detalha­do de ação global, mas antes um documento que se limita à defini­ção mais genérica dos desafios que se impõem à África e os meios jurídicos para enfrentá-los.

O Ato Constitutivo, todavia, derroga explicitamente, em seu art. 33, a própria Carta da OUA, já que o objetivo da UA reside justam en­te em substituí-la cabalmente.

O documento apresenta duas partes, uma estritamente normativa e outra que define as estruturas e poderes de diferentes órgãos da entidade.

Na parte normativa (arts. 3o e 4o) previu-se a necessidade de se acelerar a integração econômica na África, bem como de se garantir a preservação de valores e princípios consensualmente aceitos no m undo atual (como a democracia, o Estado de Direito, o direito à boa governança, e os direitos humanos) no continente. Tais metas, embo­ra ambiciosas, deverão ser atingidas gradualmente, no decorrer das próximas décadas.

14 Le passage de 1’o u a à VUnion Africaine. Op. cit., p. 2.

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Na medida em que a u a representa uma organização de Estados soberanos, outro problema que se impõe é o de definir se a entidade tomará, no curso dos anos, a forma de uma federação ou de uma confederação de Estados.

Nesse sentido, estabeleceu-se que, em qualquer dos casos, o reco­nhecimento das fronteiras herdadas do colonialismo, legitimadas no Ato Constitutivo, não deve significar que os Estados africanos desis­tiram de criar uma entidade mais integrada, que sobrepaire as sobe- ranias territoriais dos membros da instituição.

O art. 5o, do Ato Constitutivo, enumera os órgãos a serem insti­tuídos pela UA, tornando prioritária a redação do protocolo do futuro Tribunal de Justiça Africano.15 Já o Protocolo sobre o Parlamento Pan-africano foi adotado em março de 2001, com assinatura por par­te de dezoito Estados-membros e ratificação por três deles.

Ao todo, nove diferentes órgãos integram, originalmente, a UA,

de acordo com seu Ato Constitutivo, sem prejuízo de outros que ve­nham a ser estabelecidos pela entidade: (1) a Conferência da União; (2) o Conselho Executivo; (3) o Parlamento Pan-Africano; (4) o Tri­bunal de Justiça; (5) a Comissão; (6) o Comitê de Representantes Per­manentes; (7) os Comitês Técnicos Especializados; (8) o Conselho Eco­nômico, Social e Cultural; (9) as instituições financeiras.

3. PRINCÍPIOS E OBJETIVOS DA ENTIDADE

Logo em seu preâmbulo, o Ato Constitutivo apresenta os mais de cinqüenta chefes de Estado e de governo dos Estados da o u a , artífi­ces da substituição desta pela novel u a . 16 Para a reunião que deu ori­

15 Vale lembrar que o Mercosul que serve de inspiração à ua ainda não conta com semelhante instituição.

16 Adotaram o Ato Constitutivo da União Africana os Presidentes da República dos seguintes membros: África do Sul; Angola; Arábia Saudita; Argélia; Benin, Botsua- na; Burkina Fasso; Burundi; República dos Camarões; República Centroafricana;

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gem à u a , as Repúblicas da Etiópia e de Maurício e o Lesoto enviaram seus Primeiros-Ministros. Entre os Chefes de Estado, compareceram o Rei da Suazilândia, além do autodenominado “Guia da Revolução de Primeiro de Setembro da Grande Jamahiriya Árabe Popular Socialista da Líbia”, quem seja, o Coronel M uam m ar Kadafi.

Ainda no preâmbulo do Ato Constitutivo, os líderes africanos explicitam as intenções que lhes serviram de m otor na criação da UA:

Inspirados pelos nobres ideais que guiaram os Pais Fundadores da nossa Organização continental e gerações de Pan-Africanistas na sua determinação de promover a unidade, a solidariedade e a coe­são, assim como promover a cooperação entre os povos e entre os Estados da África;

Considerando os princípios e os objectivos enunciados na Carta da Organização da Unidade Africana e no Tratado de cria­ção da Comunidade Econômica Africana;

Evocando as heróicas lutas levadas a cabo pelos nossos povos e os nossos países para a independência política, dignidade humana e emancipação econômica;

Considerando que, desde a sua criação, a Organização da Uni­dade Africana desempenhou um papel determinante e valioso na libertação do Continente, na afirmação de uma identidade comum e na realização da unidade do nosso Continente, e que forneceu um quadro único para a nossa acção colectiva em África, como nas nossas relações com o resto do mundo;

Resolvidos a fazer face aos multifacetados desafios com que o nosso Continente e os nossos povos se confrontam, face às mudan­ças sociais, econômicas e políticas que se operam na África e no mundo;

Convencidos da necessidade de acelerar o processo de imple­mentação do Tratado de criação da Comunidade Econômica Afri­

Chade; Comores; Congo; Costa do Marfim; Djibuti; Egito; Eritréia; Gabão; Gâmbia; Gana; Guiné; Guiné Bissau; Guiné Equatorial; Libéria; Madagascar; Malauí; Mali; Mauritânia; Moçambique; Namíbia; Niger; Nigéria; Quênia; Uganda; Ruanda; Repú­blica Democrática do Congo; São Tomé e Príncipe; Senegal; Seicheles; Serra Leoa; Somália; Sudão; Tanzânia; Togo; Tunísia; Zâmbia e Zimbábue.

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cana, com vista a promover o desenvolvimento sócio-económico da África e enfrentar, de forma mais efectiva, os desafios da mun- dialização;

Guiados pela nossa visão comum de uma África unida e forte, e pela necessidade de construir uma parceria entre os governos e todos os segmentos da sociedade civil, em particular as mulheres, os jovens e o sector privado, a fim de consolidar a solidariedade e coesão entre os nossos povos;

Cientes do facto de que o flagelo de conflitos em África consti­tui um importante impedimento para o desenvolvimento sócio- económico do Continente, e da necessidade de promover a paz, segurança e estabilidade, como um pré-requisito para a imple­mentação da nossa agenda de desenvolvimento e de integração;

Resolvidos a promover e proteger os direitos humanos e dos povos, consolidar as instituições e cultura democráticas, e a promo­ver a boa governação e o Estado de direito;

Determinados também a tomar todas as medidas necessárias para reforçar as nossas instituições comuns e dotá-las dos poderes e recursos necessários para lhes permitir desempenharem efectiva- mente as suas missões;

Evocando a Declaração que adoptámos durante a Quarta Sessão Extraordinária da nossa Conferência em Sirte, Grande Jamahiriya Árabe Líbia Socialista e Popular, em 9/9/99, pela qual decidimos estabelecer a União Africana, em conformidade com os objectivos fundamentais da Carta da Organização da Unidade Africana e do Tratado de criação da Comunidade Econômica Africana.

Pelas razões supra, a entidade é criada. Os princípios fundam en­tais a informar as ações futuras da u a foram elencados no art. 4o do seu Ato Constitutivo, e apresentam todos caráter pacifista, democra- tizante e socialmente includente, tudo com vistas a fomentar um abrangente processo desenvolvimentista na região, em uma espiral econômica virtuosa, assegurada por um ambiente político estável, em que os Estados velam pelos direitos hum anos de seus povos, em vez de se constituírem eles mesmos em violadores de tais direitos,

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conforme tantas vezes ocorreu nos anos que se seguiram à descolo­nização da África.17

Quanto aos objetivos da u a , foram arrolados no art. 3o de seu Ato Constitutivo, e englobam temas como (1) a necessidade do res­peito à integridade territorial dos Estados africanos; (2) o fomento à integração social, econômica e política do continente; (3) a concer- tação diplomática dos Estados no que lhes for de interesse comum; (4) a garantia da estabilidade política e do desenvolvimento polí­tico, econômico e social regionais e dos direitos humanos; e (5) a efetivação da democracia. À instituição cumpre, igualmente, (1) fomentar a cooperação interestatal nos mais variados domínios da atividade humana; (2) harmonizar políticas entre as comunidades econômicas presentes e futuras; (3) promover a investigação cientí­fica; e (4) envidar esforços, inclusive pela criação de parcerias inter­

17 Assim, consta do art. 4o a seguinte principiologia, verbo ad verbum: “A União Africana funciona em conformidade com os seguintes princípios fundamentais: a) igualdade soberana e interdependência entre os Estados-membros da União; b) res­peito das fronteiras existentes 110 m om ento da acessão à independência; c) participa­ção dos povos africanos nas actividades da União; d) estabelecimento de uma política comum de defesa para o continente africano; e) resolução pacífica dos conflitos entre Estados-membros da União através dos meios apropriados que sejam decididos pela Conferência da União; f) proibição do uso da força ou da ameaça do uso da força entre os Estados-membros da União; g) não ingerência de qualquer Estado-membro da União nos assuntos internos de outro; h) direito de a União intervir num Estado- membro em conformidade com uma decisão da Conferência em situações graves nomeadamente, crimes de guerra, genocídio e crimes contra a humanidade; i) coexis­tência pacífica dos Estados-membros da União e seu direito de viver em paz e em segurança e de procurar ajuda, através da Conferência da União, assim como o direi­to de a União intervir para restaurar a paz e a segurança; j) direito dos Estados-mem­bros de pedirem a intervenção da União, com vista à restauração da paz e segurança; k) promoção da autonom ia colectiva no quadro da União; 1) promoção da igualdade dos gêneros; m) respeito pelos princípios democráticos, pelos direitos humanos, pelo Estado de direito e pela boa governação; n) promoção da justiça social para asseguraro desenvolvimento econômico equilibrado; o) respeito pela santidade da vida hu ­mana, condenação e rejeição da impunidade, dos assassinatos políticos, e dos actos de terrorismo e actividades subversivas; p) condenação e rejeição de mudanças inconsti­tucionais de governos”.

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nacionais relevantes, para que as doenças passíveis de prevenção possam ser erradicadas.18

4. ÓRGÃOS DA UNIÃO AFRICANA19

O conjunto de órgãos inicialmente previstos no art. 5o, do Ato Constitutivo, é desdobrado nos arts. 6o e seguintes, sendo que este dispõe que a Conferência dos Chefes de Estado e de Governo da UA,

órgão supremo, reúne-se em sessão ordinária ao menos uma vez por ano e, no caso de um Estado-membro requisitar, pode a C on­ferência se reunir em sessão extraordinária, desde que o pedido seja

18 Nos termos do Ato Constitutivo, art. 3o: “São objectivos da União: a) Realizar maior unidade e solidariedade entre os países e povos da África, b) Respeitar a sobe­rania, integridade territorial e independência dos seus Estados Membros, c) acelerar a integração política e sócio-económica do continente, d) promover e defender posições africanas comuns sobre as questões de interesse para o continente e os seus povos, e) encorajar a cooperação internacional, tendo devidamente em conta a Carta das Nações Unidas e a Declaração dos Direitos do Homem, f) promover a paz, a seguran­ça e a estabilidade no continente, g) promover os princípios e as instituições democrá­ticas, a participação popular e a boa governação, h) promover e proteger os direitos do hom em e dos povos, em conformidade com a Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos c outros instrumentos pertinentes relativos aos direitos do homem, i) criar as necessárias condições que permitam ao continente desempenhar o papel que lhe compete na economia mundial e nas negociações internacionais, j) promover o desen­volvimento duradoiro nos planos econômico, social e cultural, assim como a integra­ção das economias africanas, k) promover a cooperação em todos os domínios da actividade humana, com vista a elevar o nível de vida dos povos africanos, 1) coorde­nar e harmonizar as políticas entre as Comunidades Econômicas Regionais existentes e futuras, para a gradual realização dos objectivos da União, m) fazer avançar o desen­volvimento do continente através da promoção da investigação em todos os domínios, em particular em ciência e tecnologia, n) trabalhar em colaboração com os parceiros internacionais relevantes na erradicação das doenças susceptíveis de prevenção e na promoção da boa saúde no continente”.

19 Estabelece o art. 5o, do Ato Constitutivo, que “ 1. São Órgãos da União: a) A Con­ferência da União; b) O Conselho Executivo; c) O Parlamento Pan-Africano; d) O Tri­bunal de Justiça; e) A Comissão; f) O Comitê de Representantes Permanentes; g) Os Comitês Técnicos Especializados; h) O Conselho Econômico, Social e Cultural; i) As instituições financeiras. 2. Outros Órgãos que a Conferência decida estabelecer’'.

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referendado por 2/3 dos votos dos Estados-membros. Q uanto à presidência, será exercida por um Chefe de Estado ou de Governo, sempre pelo prazo de um ano, mediante consulta aos Estados- membros.

A Comissão, cujas decisões são tomadas por consenso, detém inúmeros poderes e funções. É ela o órgão que (1) define as políticas comuns da UA; (2) delibera sobre os relatórios e as recomendações dos demais órgãos; (3) examina as demandas dos Estados para aderirem à entidade e cria seus novos órgãos; (4) controla a implementação das políticas e decisões da organização e zela para que estas sejam implementadas pelos Estados; (5) adota os orçamentos da u a ; (6) estabelece diretivas ao Conselho Executivo sobre a gestão de confli­tos, e a restauração da paz. À Comissão cumpre, igualmente, (1) nomear e demitir os magistrados do Tribunal de Justiça e (2) desig­nar o Presidente da Comissão, seus eventuais adjuntos e também os Comissários, além de (3) determinar suas funções e mandato.

Segundo estabelece o art. 10, o Conselho Executivo é composto pelos Ministros das Relações Exteriores ou outras autoridades que sejam designadas pelos governos dos Estados-membros. O Conselho Execu­tivo decide por consenso ou pela maioria de 2/3 da UA (art. 11) e tem como atribuições coordenar a tomada de decisão sobre políticas em inúmeras áreas de interesse comum para os Estados-membros.20

Nos próximos anos, novos comitês técnicos especializados deverão ser criados, nos mais variados domínios, todos submetidos ao Conselho Executivo e compostos por ministros ou altos funcio­

20 O art. 13 indica as áreas de interesse, a saber: (1) Comércio externo; (2) Ener­gia, Indústria e Recursos Minerais; (3) Alimentação, recursos agrícolas e animais, produção pecuária e florestas; (4) Recursos hídricos e irrigação; (5) Protecção am ­biental, acção humanitária, resposta e alívio em caso de calamidades, e ciência e tec­nologia; (6) Transportes e Comunicações; (7) Seguros; (8) Educação, saúde, cultura e desenvolvimento de recursos humanos; (9) Ciência e tecnologia; (10) Questões de nacionalidade, residência e imigração; (11) Segurança social, incluindo a form ula­ção de políticas de cuidados materno-infantis, assim como de políticas relacionadas com os incapacitados e diminuídos; (12) Instituição de um sistema de medalhas, prê­m ios africanos.

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nários que se encarregarão dos setores relevantes de suas áreas de competência.

No que tange ao Parlamento Pan-Africano, este tem como fito “ga­rantir a plena participação dos povos africanos no desenvolvimento e na integração econômica do continente” (art. 17), sendo que o Ato Constitutivo deixou a cargo de um protocolo a exata definição do mencionado organismo.

Do mesmo modo, para o Tribunal de Justiça, entidade prevista no art. 18, do mencionado documento, espera-se outro protocolo que o regulamente.

No plano mais estritamente econômico, três instituições finan­ceiras foram previstas na arquitetura institucional da u a : um Banco Central Africano; um Fundo Monetário Africano e também o Banco Afri­cano de Investimento (art. 19).

A Comissão, que cum pre o papel de Secretariado da O rgani­zação, será composta pelo Presidente e Vice(s), Comissários e de­mais integrantes da burocracia, sendo que sua estrutura, suas atri­buições e as regras que a regem deverão ser determinadas pela C on­ferência (art. 20).

Há também a previsão para um Comitê de Representantes Per­manentes, com posto por representantes e outros plenipotenciá- rios dos Estados-membros, cuja incumbência reside na prepara­ção dos trabalhos do Comitê Executivo, agindo sob instruções do Conselho (art. 21).

Já o Conselho Econômico, Social e Cultural é órgão de consulta, integrado por representantes profissionais dos Estados-membros, e seus poderes, bem como a sua composição e organização, deverão ser determinados pela Conferência.

5. SANÇÕES EVENTUAIS AOS MEMBROS

Reza o art. 23 que a Comissão privará o Estado em débito com a u a do direito de tomar a palavra nas reuniões. A se confirmar a mencionada hipótese, seus nacionais perderão, igualmente o direito

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de voto e o direito de ocupação de cargos ou função nos órgãos da instituição.

Aos Estados que não respeitarem as decisões políticas da u a , ca­berá a submissão a sanções, sobretudo no que tange aos laços com outros Estados-membros em matéria de transportes e comunicações.

Caberiam, igualmente, outras medidas nos domínios político e econômico, todas determinadas pela Conferência (art. 23).

O Ato Constitutivo prevê, em seu art. 30, a impossibilidade de participação nas atividades da u a , de governos que tenham chegado ao poder por quaisquer vias inconstitucionais. A medida é de grande interesse para dar sustentação à diretriz institucional de promoção do ambiente democrático e estável na África, cujo passado recente é pródigo em exemplos de regimes de força nos viéses autoritário ou totalitário.

Sediada em Adis-Abeba, capital da República Federal Democrá­tica da Etiópia, a u a conta com diversas línguas de trabalho, interna corporis, quais sejam todas as existentes na África - se possível - bem como o árabe, o inglês, o francês e o português. A ressalva constan­te do art. 25 é assaz pertinente, sobretudo em face da significativa quantidade de idiomas existentes no continente, fato que, na práti­ca, provavelmente restringirá as línguas de trabalho ao grupo das explicitamente designadas no Ato Constitutivo.21

6. O PARLAMENTO PAN-AFRICANO

O Ato Constitutivo da u a prevê, conforme mencionado, a cria­ção de um Parlamento continental, cujo projeto de protocolo já se encontra devidamente elaborado. Estão presentes no preâmbulo do mencionado documento as motivações que impelem os Estados- membros a instalar o Parlamento, órgão justificado pela:

:1 Apenas a Nigéria, país mais populoso do continente, com quase 120 milhões de habitantes, conta com cerca de 250 grupos étnicos com cultura e línguas próprias.

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necessidade imperiosa e urgente de se consolidar as aspirações dos povos por uma maior unidade, solidariedade e coesão no seio de uma comunidade mais abrangente, que transcenda as diferenças culturais, ideológicas, étnicas, religiosas e nacionais.

O projeto atenderia a outro elevado motivo, qual seja, a resolução dos africanos no desiderato de promover “os princípios democráticos e a participação popular, a consolidação das instituições e cultura de­mocráticos, e a assegurar a boa governação”, além de garantir a prote­ção dos “direitos do homem e dos povos, de conformidade com a Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos e aos outros ins­trumentos pertinentes dos Direitos Humanos”.

De acordo com o art. 2.2, do protocolo, os parlamentares pan- africanos representam não os seus Estados de origem, mas o conjun­to dos povos africanos, sendo que o art. 2.3 revela o objetivo último do Parlamento: converter-se, ao longo de suas atividades, em uma instituição dotada de plenos poderes no plano legislativo, com membros eleitos por voto direto e universal.

O texto legal apresenta, a seguir, uma ressalva fundamental e elucidativa, dando conta dos poderes apenas consultivos do Parla­mento, até que os membros procedam a uma necessária emenda no protocolo, conferindo maiores poderes ao Parlamento.

Dentre os objetivos constantes do projeto - todos muito genéri­cos inclui-se o de “contribuir para um futuro mais próspero para os povos africanos, pelo favorecimento da auto-suficiência coletiva e pela retomada econômica” (art. 3.6). Outra meta é a de “reforçar a so­lidariedade continental e criar um sentimento de destino comum en­tre os povos africanos” (art. 3.8), bem como “facilitar a cooperação entre as comunidades econômicas regionais e seus fóruns parlamentares”.

No que tange à composição do Parlamento, aos Estados-mem­bros assegurou-se um a representação equânime, com cinco cadei­ras reservadas a cada um, sendo que, no interior do Estado, a repartição da cota deve “refletir a diversidade de opiniões políticas de cada parlamento nacional” (art. 4.3).

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O protocolo prevê que os parlamentares da entidade serão elei­tos ou designados pelos parlamentos nacionais dos Estados-mem­bros, ou mesmo por qualquer outro órgão legislativo (art. 5.1), sendo que a duração do mandato está vinculada à duração do mandato de cada membro em seu próprio parlamento de origem (art. 5.3).

Há previsão de imunidades e privilégios parlamentares (arts. 8o e 9o), sendo que o art. 11 determina as atribuições e poderes dos representantes, aos quais cabe o exame dos orçamentos da com uni­dade, com direito a recomendações sobre o tema (art. 11.2), a harm o­nização e a coordenação das leis dos Estados-membros (art. 11.3), bem como a promoção da coordenação e da harmonização de polí­ticas, medidas, programas e atividades das comunidades econômi­cas regionais e fóruns parlamentares africanos (art. 11.7).

O art. 12 estabelece o regulamento interior e a organização do Parlamento Africano, cujo orçamento foi previsto no art. 15. C on­trariamente ao Ato Constitutivo da u a , o protocolo não define a sede do Parlamento (art. 16), porém o art. 17 estatui exatamente o mes­mo grupo de línguas de trabalho definido para a organização para uso interna corporis: além do árabe, do inglês, do francês e do por­tuguês, todas as línguas africanas - se possível.

Em ambos os casos, a regra redundará em letra morta, já que a verdadeira Babel que se instalaria tanto na UA quanto no Parlamen­to, no caso de adoção indiscriminada de línguas africanas, implica­ria em custos com tradução absolutamente insuportáveis, em muito superiores, dada a diversidade cultural africana, aos gastos orçam en­tários em Bruxelas com a tradução dos trabalhos para todos os idio­mas oficiais da u e .

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ainda que seja prematuro qualquer exercício de futurologia acerca do destino reservado à u a , a exegese do seu Ato Constitutivo revela um certo descompasso entre o possível e o desejável, entre a dura realidade enfrentada pelos africanos e as elevadas intenções contidas em seu projeto institucional.

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O passivo de tragédias vividas pelas populações do continente, as dificuldades impostas pelos processos de globalização, cujas for­ças motrizes tendem a se abster de operar inversões econômicas benéficas aos soi-disant “perdedores”, a pouca tradição democrática consolidada em um a região com um passado de tantos regimes de força, a pobreza intrínseca à região, o legado de divisões e atrocida­des causadas pelas potências coloniais, tudo, enfim, remete a um relativo ceticismo quanto à viabilidade da u a .

Há quem sustente que a África não terá meios suficientes para, sem contar com auxílio externo, dar conta de todo esse estado de coi­sas, agravado, ademais, pelas pandemias que atingem a região, so­bretudo a impressionante contaminação dos cidadãos africanos, em progressão aritmética, pela Aids. Nesse sentido, a relutância apresen­tada pelos laboratórios internacionais em humanizar os preços dos rem édios acaba por corroborar aquilo que se convencionou de­nominar, ao longo dos anos de 1980, de “fadiga do doador”, ou seja, a relutância dos países desenvolvidos em colaborar nas mudanças macroeconômicas no hemisfério sul, inclusive com a efetiva amortiza­ção das pesadas dívidas externas com que devem arcar os Estados do Terceiro Mundo.

Dentre as altas aspirações apresentadas pela u a , todavia, consta o objetivo maior de se evitar as guerras fratricidas que têm acome­tido a África nas últimas décadas, bem como a intenção de se velar por um sistema democrático ainda bastante incipiente.

Tais metas, a rigor, dependem em m enor grau de auxílio exter­no e estão fortunadamente longe da inexeqüibilidade graças à norm a referendada pela u a segundo a qual as fronteiras coloniais deverão ser respeitadas pelos Estados-membros.

Desse modo, a efetivação de uma era de paz durável no conti­nente seria um promissor começo para a elevação geral dos padrões de vida dos povos africanos.

Nesse sentido, cabe mencionar que ao menos os projetos de paz africanos poderão receber algum auxílio externo, conforme ficou dem onstrado na reunião do G-8, em que os m andatários das sete economias mais ricas do globo - Reino Unido, Canadá, França, Ale­

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A T R A N S M U T A Ç Ã O D A O R G A N I Z A Ç Ã O D A U N I D A D E A F R I C A N A

manha, Itália, Japão, Estados Unidos, mais a Rússia - assinaram, no dia 27/6/2002, em Kananaskis/Canadá, um acordo com os líderes da Nigéria, da Argélia, da África do Sul e do Senegal para a promoção do desenvolvimento econômico e político regionais.

O mencionado acordo inclui o apoio a uma força de intervenção militar e o compromisso de erradicação da poliomielite no continen­te, além de uma prometida dotação de cerca de US$ 12 bilhões para a ajuda econômica até o ano de 2006, dos quais, cerca de US$ 6 bilhões/ano em auxílio ao desenvolvimento. O acréscimo é de 50% em relação à assistência atual, sendo que as transferências estariam, de maneira totalmente inédita, vinculadas ao compromisso, por parte dos líderes do continente, em fortalecer a democracia e combater a cor­rupção, o despotismo e as freqüentes violações aos direitos humanos.22

Segundo noticiou, recentemente, a BBC Brasil23, o plano seria uma resposta a uma iniciativa africana denominada “Nova Parceria para o Desenvolvimento da África”, ou Nepad, em Inglês, que prevê refor­mas econômicas por parte dos governos africanos em troca de ajuda, oportunidades comerciais e apoio na resolução de conflitos. O pla­no de ação teria como meta um acordo para estabelecer uma força de paz na região; um compromisso para a erradicação da poliomie­lite até 2005; um acordo para aumentar o acesso dos produtos africa­nos ao mercado global, com a derrubada de barreiras alfandegárias e subsídios agrícolas nos próximos três anos; uma oferta para que metade dos novos recursos para o desenvolvimento africano sejam empregados em Estados que contem com governos legítimos.

A força militar de intervenção regional, por outro lado, deverá ser composta por Estados da África, sob a égide da u a , e terá como

22 O Estado de S. Paulo, 29.6.2002. Na mesma matéria, noticiou-se que o primei­ro-ministro cio Canadá, Jean Chrétien, proponente do pacto, afirmou que “Hoje temos um acordo que representa um novo início e uma nova esperança para o continente africano”, enquanto o Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas, o africano Kofi Annan, teria dito que o acordo marca uma mudança fundamental nas relações entre os países industrializados e um continente que, por décadas, tem sido deixado de lado.

23 Cf. Disponível em: <URL: http://www.bbc.co.uk/portuguese>.

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D I R E I T O I N T E R N A C I O N A L E D E S E N V O L V I M E N T O

objetivo acabar com as guerras intra-regionais, bem como com as guerrilhas que impedem o desenvolvimento de partes do continen­te. Na reunião de dois dias do G-8, houve um acordo para o perdão da dívida dos países mais pobres, em um total de aproximadamente US$ 1 bilhão, quantia avaliada como insuficiente pelas organizações de ajuda humanitária que atuam no continente.

Tais eventos sugerem vislumbráveis progressos na região, uma vez que convergem com as boas intenções contidas nos documentos inaugurais da u a .

A problemática africana consubstancia-se em um desafio no campo dos direitos humanos, a ser efetivamente solucionado por um viável esforço planetário, hipótese defendida, entre outros, pelo ex-presidente sul-africano Nelson Mandela e por Graça Machel, ex- ministra da Educação de Moçambique, ambos líderes da o n g Inicia­tiva Global de Liderança, do Movimento Global pelas Crianças:

Vivemos em uma economia global de US$ 30 trilhões, ou seja, recursos há. No ano passado, o mundo gastou duas vezes mais em defesa que em educação - em algumas regiões, chegou a gastar quatro vezes mais.21

Rupert Cornwell, contudo, em matéria publicada no The Inde- pendent demonstra ceticismo quanto às medidas adotadas pelo G-8, uma vez que: “o auxílio financeiro, em termos reais [...], caiu 40% entre 1990 e 1999. O dinheiro extra, se vier realmente, só elevará o auxílio aos níveis de uma década atrás”25.

A despeito de uma incredulidade bastante disseminada quanto ao futuro socioeconômico da África, há que se reconhecer, em meio

24 MANDELA, N. & MACHEL, G. Educação e Futuro. Folha de S. Paulo. CadernoOpinião. 26.5.2002.

23 Cf. “Plano do G-8 para a África inclui ajuda adicional de US$ 6 bi ao ano”, Folhade S. Paulo (Mundo), 28.6.2002. Acrescentou Cornwell que “a o n g Oxfam classificou a reunião como ‘uma oportunidade desperdiçada’. Só ‘migalhas1 foram oferecidas, disse o diretor da organização, Puil Twyford. O complemento de US$ 1 bilhão em alí­vio da dívida anunciada para os países mais endividados ilustra a discrepância. Como apontaram especialistas em desenvolvimento, a quantia é pouco mais do dobro do queo Canadá gastou na cúpula de Kananaskis”.

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A T R A N S M U T A Ç Ã O D A O R G A N I Z A Ç Ã O D A U N I D A D E A F R I C A N A

às i m e n s a s d i f i c u l d a d e s q u e p e r m e i a m o c o t i d i a n o d o c o n t i n e n t e ,

u m a n í t i d a r e n o v a ç ã o d a s e s p e r a n ç a s , r e v e la d a e m in ic ia t iv a s c o m o

a c o n c r e t i z a ç ã o d e p r o j e t o s id e a l i s ta s , c o m o a i n s t i t u c i o n a l i z a ç ã o d a

u a , a p a r t i r d a e x p e r i ê n c i a c u m u l a d a d a o u a .

A análise dos cenários internacionais futuros evidentemente não pode desconsiderar o engessamento provocado pelas políticas de caráter realista (realpolitik) atualmente adotadas pelos Estados Unidos, desde os graves ataques terroristas ao seu território, em 11 de setem­bro de 2001. Com efeito, o governo republicano tem apresentado uma quase monotemática preocupação com a segurança nacional, sendo que tal tendência percola toda a agenda internacional, deixando pouco espaço para uma discussão mais elevada acerca de uma neces­sária mudança de curso nos debates e nas ações internacionais futu­ras, sobretudo no que tange à promoção dos direitos humanos.

Parece-nos, contudo, que a história deve ser avaliada no longo curso, em ciclos superiores à distorcida ótica de um ou no máximo dois mandatos eletivos na potência hegemônica.

Desse modo, enquanto se aguarda alguma eventual sensibiliza­ção de maior significado na potência hegemônica, a África deve seguir obrando para consolidar a u a , na medida em que os enor­mes desafios do presente século haverão de ser enfrentados não mais pelo Estado-nação em seu casulo, mas antes por instituições internacionais de caráter abrangente, como a o n u reformada, e o u ­tras de grande legitimidade regional, como a u a , inclusive por meio de operações de apoio e reforço m útuo entre tais entidades, tal como determinado pelo Capítulo vm da Carta da o n u .

Vale ressaltar, por último, o significativo papel reservado a um Brasil progressivamente solidário no esforço institucional africano. Caberá ao multicolor país de Machado de Assis, Gilberto Freire e Milton Santos, detentor da maior população mundial de afro-des- cendentes, efetivamente, contribu ir no esforço africano, sobretu­do pelo aprofundamento dos bons níveis de cooperação Sul-Sul já existentes, nos mais diversos âmbitos de interesse recíproco: econô­mico, científico, educacional e universitário, cultural (sobretudo com os membros africanos da Comunidade dos Países de Língua

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D I R E I T O I N T E R N A C I O N A L E D E S E N V O L V I M E N T O

Portuguesa) e institucional. Neste sentido, a instalação de uma em ­baixada brasileira em Adis-Abeba parece-nos um a medida de fun­damental importância, nos anos vindouros.

A despeito do difícil caminho trilhado pelas sociedades civis afri­canas desde a emancipação política dos seus Estados de origem, ini­ciativas plenas de significado e esperança, como a edificação da UA,

bem dem onstram que a África, ciente de suas inumeráveis vicissi- tudes históricas, pavimenta uma melhor estrada rum o a um futuro mais auspicioso, hum ano e pacífico, para o bem dos seus povos.

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7Diversidade Cultural e Desenvolvimento

F e r n a n d o F e r n a n d e s d a S i l v a

Introdução - 1 . 0 conceito de patrimônio cultural da humanida­de: os compromissos entre a atual e a futura geração - 2.0 patrimô­nio cultural da humanidade: os bens tangíveis - 3 .0 patrimônio cultural da humanidade: os bens intangíveis - 4 .0 conceito inter- disciplinar de desenvolvimento: a necessidade da diversidade cul­tural - Considerações finais - Referências

INTRODUÇÃO

Após a Segunda Guerra Mundial, a cooperação internacional foi institucionalizada por meio da ação das organizações interna­cionais. O primeiro passo nesse sentido foi a criação do Sistema das Nações Unidas, cabendo à Organização das Nações Unidas ( o n u ) a função de garantir a paz e a segurança internacionais, e às organizações autônomas e às agências especializadas a ela liga­das funções de cooperação nos campos econômico, financeiro, social, cultural, dentre outros.1

1 Cf. (1) MEDEIROS, A. P. C. de. “As Organizações Internacionais e a Cooperação Técnica”. In: MARCOVITCH, J. (org.) Cooperação internacional: estratégia egestão. São Paulo, Edusp, 1994. p. 233-319; e (2) arts. 57 e 63 da Carta da ONU (1945).

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D I R E I T O I N T E R N A C I O N A L E D E S E N V O L V I M E N T O

A cooperação internacional, por meio das organizações inter­nacionais, pressupõe um empreendimento comum entre Estados visando ao desenvolvimento dos mais atrasados. Essa cooperação manifesta-se de várias formas, sendo inclusive normativa, pelas quais as organizações in ternacionais p roduzem no rm as in te r ­nacionais - resoluções, recomendações, convenções etc. - a serem adotadas pelos Estados com o propósito de aprimorarem as suas le­gislações e atenderem aos objetivos preconizados por aquelas orga­nizações.

Nesse contexto, em 1945, foi criada a Organização das Nações Unidas para a Educação, à Ciência e à Cultura (Unesco)2 com o objetivo de promover a paz internacional, por meio de um a polí­tica de cooperação cultural e educacional que viabilize relações de tolerância e respeito m útuo entre os povos.

Todas essas relações são possíveis num a atmosfera política, so­cial e econômica, de respeito à dignidade hum ana e, portanto, de todos os seus atributos, inclusive a identidade cultural.

Assim o respeito à identidade cultural de cada ser hum ano ou com unidade é a criação de políticas que visam à m anutenção da diversidade cultural do nosso planeta. Ela é um elemento subjacen­te em todas as relações de cooperação estabelecidas pela Unesco como pressuposto para a prom oção da paz:

Que, posto que as guerras nascem na mente dos homens, é na mente dos homens que devem erigir-se as bases da paz;

Que, no curso, da história, a incompreensão mútua dos povos tem sido motivo de desconfiança e receio entre as nações, e a causa dos desentendimentos que acabaram por degenerarem em guerra com muita freqüência [...].3

2 Criada pelo Tratado de Londres (1945).3 §§ Io e 2o do Preâmbulo do Tratado de Londres (tradução livre do autor). O

texto do Tratado de Londres está disponível na obra: Unesco. Textos Fundamentales: M anual de la Conferencia General y el Consejo Ejecutivo. Paris, Unesco, 1994. p. 7-21.

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D I V E R S I D A D E C U L T U R A L E D E S E N V O L V I M E N T O

O respeito à dignidade hum ana e à sua identidade cultural são valores correlatos àqueles encontrados nos arts. 13 e 15 do Pacto In ternacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e C u ltu ­rais (1966); e no art. 27, alínea 1, da Declaração Universal dos Direitos do H om em (1948) que estipula que: “todo hom em tem o direito de partic ipar livremente da vida cultural da co m u n id a ­de, de fruir as artes de participar do progresso científico e de seus benefícios”4.

Essas regras revelam a valorização do ser hum ano no Direito Internacional após a Segunda Guerra Mundial e a consideração des­se valor nas decisões da política internacional.

Por outro lado, no contexto do m undo globalizado de hoje, a interdependência entre valores é uma característica elementar dada a complexidade das situações e das soluções que devem ser tomadas: direitos hum anos e comércio, meio ambiente e comércio, cultura e meio ambiente, cultura e desenvolvimento etc.s

Assim, a diversidade cultural é elemento indissociável da noção de desenvolvimento.

Ela é fundamental para o pleno desenvolvimento das qualidades produtivas e criativas do ser humano, constituindo-se num patrim ô­nio da humanidade.

Neste artigo, procurar-se-á dem onstrar a relação de interde­pendência entre diversidade cultural e desenvolvimento e o papel da Unesco na realização deste propósito.

A Os textos da Declaração Universal dos Direitos do H om em e do Pacto In ter­nacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais estão contidos, por exem­plo, na obra de RANGEL, V. M. Direito e relações internacionais. 6. ed. São Paulo, r t , 2 0 0 0 .

5 Cf. SOARES, G. F. S. “As regras do Comércio Internacional e seu Confronto com as Normas Internacionais de Proteção Ambiental”. In: AMARAL Jr., A. (org.). o m c e o comércio internacional. São Paulo, Aduaneiras, 2002. p. 205-48.

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D I R E I T O I N T E R N A C I O N A L E D E S E N V O L V I M E N T O

1. O CONCEITO DE PATRIMONIO CULTURAL DA HUMANIDADE: OS COMPROMISSOS ENTRE A ATUAL E A FUTURA GERAÇÃO

O princípio do patrimônio cultural da humanidade revela o inte­resse da comunidade internacional em proteger os bens culturais considerados relevantes na formação da civilização humana.

No campo normativo o princípio do patrimônio cultural da hu­manidade apresenta-se pela primeira vez no Direito Internacional, através do Tratado de Londres (1945) que outorga à Unesco a compe­tência para zelar pela:

conservação e pela proteção do patrimônio universal dos livros, das obras de arte e monumentos de interesse histórico ou científi­co, e recomendar às nações interessadas as convenções internacio­nais que sejam necessárias para tal fim [...].6

O conceito do Tratado de Londres é restrito, pois contempla apenas os bens culturais tangíveis.

A Declaração sobre Princípios da Cooperação Cultural Inter­nacional (1966)7 estabelece um conceito mais amplo ao considerar a variedade e a diversidade cultural elementos do patrimônio comum dos povos.8

Esta definição contempla todas as manifestações culturais do planeta, bens tangíveis e intangíveis, assim como elimina qualquer hierarquia entre as culturas ao estabelecer que “cada cultura tem uma dignidade e um valor que devem ser respeitados e preservados”9.

6 Cf. art. Io, alínea c, do Tratado de Londres (tradução livre do autor).7 O texto da Declaração sobre Princípios da Cooperação Cultural Internacional,

versão em inglês. Disponível em: <URL: http://www.unesco.org/shs/human_ rights/ hrba.htm>; acessado em 17/3/2004.

8 Cf. art. Io, alínea 3, da Declaração sobre Princípios da Cooperação Cultural Internacional.

9 Cf. art. Io, alínea 1, da Declaração sobre Princípios da Cooperação Cultural Internacional (tradução livre do autor).

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D I V E R S I D A D E C U L T U R A L E D E S E N V O L V I M E N T O

Assim, temos um conceito mais próximo dos princípios de Di­reito Internacional alicerçados após a Segunda G uerra M undial, a exemplo do princípio da autodeterminação dos povos que pressu­põe que cada sociedade e as minorias possuem o direito de estabe­lecer a sua forma de organização política e jurídica, e, portanto, a sua identidade cultural10; ou em relação ao princípio da cooperação in ­ternacional que elege a cooperação como um dos instrumentos de aproximação entre os povos e, conseqüentemente, o intercâmbio en ­tre as suas diferentes culturas."

A Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural da Unesco (2001)12 reafirma o conceito de patrimônio cultural da humanidade estabelecido pela Declaração de 1966 ao prever que a diversidade cul­tural é um dos seus elementos, declarando inclusive que a “diversi­dade cultural é necessária para a humanidade assim como a biodi­versidade é para a natureza”.13

Nesse sentido, a Declaração de 2001 estabelece a interdependência entre a cultura e o desenvolvimento ao prescrever que a diversidade cultural “ é uma das raízes do desenvolvimento”, sendo pressuposto para o aperfeiçoamento intelectual, emocional, moral e espiritual do ser humano.14

O princípio do patrimônio cultural da humanidade possui como um dos seus fundamentos o reconhecimento da humanidade como su­jeito de Direito Internacional e como a real titular deste patrimônio.

Nasce, portanto, o compromisso da atual geração de transmitir à futura os bens que integram o patrimônio cultural da humanidade.

10 Cf. art. 55 da Carta da o n u .

11 Cf. art. Io, alínea 3, da Carta da ONU.

12 O texto da Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural da Unesco, versão em inglês. Disponível em: <URL: http://www.unesco.org/confgen/press_rel/021101_clt_ diversity.shtml>; acessado em 17/3/2004.

13 Cf. art. Io da Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural da Unesco (tradução livre do autor).

14 Cf. art. 3o da Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural da Unesco (tradução livre do autor).

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D I R E I T O I N T E R N A C I O N A L E D E S E N V O L V I M E N T O

Trata-se de um compromisso de solidariedade entre gerações, o qual é considerado plenamente cumprido quando atende aos se­guintes princípios:

princípio da conservação de opções: a atual geração deve conser­var a diversidade cultural existente e transmiti-la às futuras ge­rações a fim de que possam exercer o direito de opção para a resolução dos seus problemas futuros;princípio da qualidade: a atual geração deve assegurar às futuras gerações bens culturais nas mesmas condições qualitativas atuais; princípio da conservação do acesso: a atual geração deve assegu­rar às futuras gerações as mesmas condições de acesso aos bens culturais atuais.15

A Declaração sobre as Responsabilidades das Presentes e Futu­ras Gerações (1997),16 aprovada sob o patrocínio da Unesco, prescre­ve que a atual geração deve eliminar ou limitar ações que causem prejuízos às futuras gerações. O art. 7o dessa Declaração determina que em face dos “direitos hum anos e das liberdades fundamentais, a presente geração deve tom ar os cuidados para preservar a diversida­de cultural da hum anidade”17.

Assim, a presente geração tem a responsabilidade de proteger o patrimônio cultural tangível e intangível e de transmiti-lo às futuras gerações. No que diz respeito à futura geração, a Declaração de 1997 assegura-lhe o direito à dignidade e à liberdade, possibilitando-lhe o recebimento dos bens culturais que lhe permitam o seu desenvolvi­mento pleno.

15 Cf. WEISS, E. B. Fairness to future generations: international lawy common patri- monyy and intergenerational equity. Tóquio, The United Nations University, Nova Ior­que, Transnational Publishers Inc. Dobbs Ferry, 1989. p. 40-6.

16 O texto da Declaração sobre as Responsabilidades das Presentes e Futuras Ge­rações, versão em inglês. Disponível em: <URL: http://vvww.unesco.org/shs/human_ rights/hrbb.htm>; acessado em 17/3/2004.

17 Tradução livre do autor.

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D I V E R S I D A D E C U L T U R A L E D E S E N V O L V I M E N T O

Esta Declaração outorga a responsabilidade de transmissão dos bens ao Sistema das Nações Unidas, às organizações intergover- namentais e não governamentais, aos indivíduos, e aos órgãos públi­cos e privados.ls Alexandre Charles Kiss,ly denom ina esta relação de responsabilidade de trust, isto é, os Estados e as organizações inter­nacionais são considerados tutores dos bens culturais devendo zelar pela proteção de tais bens e assegurar a transmissão deles da atual pa­ra a futura geração.

2. O PATRIMÔNIO CULTURAL DA HUMANIDADE: OS BENS TANGÍVEIS

O Tratado Constituição da Unesco estabelece que a coopera­ção internacional no campo da proteção dos bens culturais é exe­cutada através da aprovação de convenções e recomendações inter­nacionais.20

Esses instrumentos internacionais disciplinam a proteção dos bens culturais móveis e imóveis em tempos de paz e em tempos de guerra.

Além disso, disciplinam a proteção sob as perspectivas da con­servação, da restituição e do retorno. As normas de conservação pre­vêem medidas de proteção que visam manter a integridade física dos bens culturais; as normas de restituição prevêem medidas de coope­ração entre os Estados para que os bens culturais retirados ilicita­mente de um território possam ser restituídos aos seus territórios de origem; e as normas de retorno disciplinam as medidas de coopera­ção entre os Estados para o retorno dos bens culturais aos territó­rios de origem sem que houvesse infração à legislação de exportação

18 Cf. art. 12 da Declaração sobre as Responsabilidades das Presentes e Futuras Gerações (tradução livre do autor).

19 Cf. “La notion de patrimoine comum de rhum anitc”. In: Recueil de Cours - Academie de Droit International de La Haye, v. 2, tom o 175, 1982. p. 231.

:u Cf. art. IV, b , 4, do Tratado de Londres.

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D I R E I T O I N T E R N A C I O N A L E D E S E N V O L V I M E N T O

à época da saída do bem. As normas de retorno decorrem das rei­vindicações perpetradas por ex-colônias asiáticas, africanas e am e­ricanas em relação às suas antigas metrópoles em face dos bens que foram exportados durante o período colonial.21

As convenções estabelecem obrigações entre os Estados signa­tários, gerando um a responsabilidade internacional em caso de não cumprimento de suas disposições. Segundo o Tratado Constituição da Unesco elas somente podem entrar em vigor se forem aprovadas pelo quorum de 2/3 dos Estados-membros desta organização reunidos na Conferência Geral, que se realiza a cada dois anos. As convenções, aprovadas sob o patrocínio da Unesco, são as seguintes:

• Convenção para a Proteção dos Bens Culturais em Caso de C on­flito Armado - Convenção de Haia (1954),22 e os seus Protocolos i (1954) e ii (1999).

Essa Convenção disciplina a proteção dos bens culturais imóveis e móveis em tempos de guerra, com ênfase na conservação e na resti­tuição dos bens culturais. Através da Convenção de Haia , os Estados comprometem-se a se abster de utilizar os bens culturais,

seus sistemas de proteção e suas redondezas para fins que possam expor tais bens à destruição ou deterioração em casos de conflito armado e privando-se de todo ato de hostilidade para com esses bens;23

a praticar qualquer ato de roubo, pilhagem, e apropriação indevida dos bens culturais24 e a prática da represália contra os bens culturais.25

21 Cf. CASANOVA Y LA ROSA, O. La protección internacional dei patrimonio cul­tural. Madri, Instituto Hispano-Luso-Americano dc Derccho Internacional ( i h l a d i ) ,

1991. p. 16-31.22 Aprovada no Brasil pelo Decreto Legislativo n. 32, de 14 de agosto de 1956.23 Cf. art. 4o, inc. 1, da Convenção de Haia de 1954.24 Cf. art. 4o, inc. m, da Convenção de Haia de 1954.25 Cf. art. 4o, inc. iv, da Convenção de Haia de 1954.

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D I V E R S I D A D E C U L T U R A L E D E S E N V O L V I M E N T O

A Convenção de Haia recentemente teve o seu campo de aplica­ção ampliado pelo Estatuto de Roma do Tribunal Penal In terna­cional (1998).26 Nos termos do Estatuto de Roma são considerados crimes de guerra os atos praticados por pessoas que cometeram vio­lações graves nas leis e usos de Direito Internacional relativos aos con­flitos armados internacionais, destacando-se entre eles:

os ataques dirigidos intencionalmente contra prédios dedicados ao culto religioso, às artes, às ciências ou à beneficência, monumentos históricos, hospitais e lugares onde se agrupam doentes e feridos, sempre que não sejam objetivos militares;27

e a prática do saque a uma cidade ou a uma localidade, mesmo quan­do tomadas de assalto.28 O Estatuto também considera tais atos como crimes nos casos de conflitos armados não internacionais.29

• Convenção sobre as Medidas a Serem Adotadas para Proibir e Im ­pedir a Importação, Exportação e Transferência de Propriedades Ilíci­tas dos Bens Culturais — Convenção da Unesco de 1970.30

Disciplina o combate ao tráfico ilícito dos bens culturais em tem ­pos de paz através de medidas de prevenção e repressão a serem ado­tadas pelos Estados signatários.

Os Estados devem adotar leis e regulamentos de proteção aos seus bens culturais, com especial enfoque no controle de exportação e importação; um inventário nacional para controlar a circulação dos seus bens culturais; medidas educativas para despertar o interesse da sociedade na proteção dos bens culturais e medidas de divulgação em caso de desaparecimento do bem cultural.31

26 Verificar o texto do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, e co­mentários, na obra MAIA, M. Tribunal Penal Internacional: aspectos institucionais, jurisdição e princípio da complementaridade. Belo Horizonte, Del Rey, 2001.

27 Cf. art. 8o, alínea /;, IX, do Estatuto de Roma.28 C f art. 8o, alínea b, XVI, do Estatuto de Roma.29 C f art. 8o, alínea e, iv e v, do Estatuto de Roma.10 Aprovada no Brasil pelo Decreto Legislativo n. 71, de 28 de novembro de 1972.

Promulgada pelo Decreto n. 72.312, de 31 de maio de 1973.11 C f art. 5o da Convenção da Unesco de 1970.

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D I R E I T O I N T E R N A C I O N A L E D E S E N V O L V I M E N T O

O art. 7o, alínea b, (ii), da Convenção da Unesco de 1970 in tro­duz o princípio do possuidor de boa-fé, segundo o qual o Estado, onde o bem estava localizado, possa requerer ao outro Estado a restituição deste bem para o território de origem, desde que pague ao com pra­dor ou possuidor de boa-fé justa indenização.

No âmbito da Convenção da Unesco de 1970, em 1978, foi criado o Comitê Intergovernamental para Promover o Retorno dos Bens Culturais aos Seus Estados de Origem ou a Restituição em Casos de Apropriações Ilícitas. Entre outras atribuições, compete ao Comitê promover negociações bilaterais, pela via diplomática, para a resti­tuição e o retorno dos bens culturais.

Caso de relevo no âmbito do Comitê foi a reclamação feita pelo Governo Grego contra o Governo Britânico, em 1984, para p rom o­ver o retorno dos mármores do Lorde Elgin, ou mármores do Partenon, retirados do território grego por uma missão liderada pelo então embaixador britânico Lorde Elgin. Os mármores foram retirados e transportados para a Inglaterra, entre 1801 a 1815, e são constituí­dos, na sua maioria, de métopas, frisos e frontões. Em outubro de 1985, o Governo Britânico negou a solicitação grega. Entretanto, as negociações continuam no âmbito do Comitê sem uma solução definitiva até o m omento.32

• Convenção Relativa à Proteção do Patrimônio Mundial, Cul­tural e Natural - Convenção da Unesco de 1972.33

Disciplina a proteção dos bens culturais imóveis de “valor univer­sal excepcional” para toda a humanidade, em tempos de paz, com ênfa­se nas políticas de conservação, assim classificados: os monumentos, os conjuntos arquitetônicos e os lugares notáveis.34

32 Cf. SILVA, F. F. da. A Prevenção e a Repressão do Tráfico Ilícito dos Bens Cultu­rais na Convenção da Unesco (1970). São Paulo, 2003. Tese (Doutorado). Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo. p. 86-93.

33 Aprovada 110 Brasil pelo Decreto Legislativo n. 71, de 30 de junho de 1977, com reserva ao § Io do art. 16. Promulgada pelo Decreto n. 80.978, de 12 dezembro de 1977.

M Cf. art. Io da Convenção da Unesco de 1972.

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D I V E R S I D A D E C U L T U R A L E D E S E N V O L V I M E N T O

Tais bens são selecionados pelo Comitê do Patrimônio Mundial, organismo vinculado à Unesco e criado pela Convenção, que os ins­creve na Lista do Patrimônio Mundial, a cada dois anos.

A convenção prevê medidas de cooperação - técnica, financeira e educativa - coordenadas pelo Comitê do Patrimônio Mundial, aos Estados que não dispõem de recursos suficientes para conservarem os bens culturais imóveis localizados em seus territórios.

No caso brasileiro, as cidades protegidas pela Convenção da Unesco de 1972 são Brasília ( d f ) , Cidade de Goiás ( g o ) , Congonhas ( m g ) , Diamantina ( m g ) , Ouro Preto ( m g ) , Salvador ( b a ) , Olinda (pe)

e São Luiz ( m a ) . Entre as medidas de relevo, em 2002, o Comitê do Patrimônio Mundial autorizou uma doação de 50 mil dólares para a reconstrução do centro histórico da Cidade de Goiás, seriamente danificado em razão das chuvas ocorridas em dezembro de 2001 que provocou o transbordamento do Rio Vermelho.35

• Convenção Relativa à Proteção do Patrimônio Cultural Suba­quático - Convenção da Unesco de 2001.

Disciplina a proteção dos bens culturais encontrados nos fundos oceânicos especialmente visando à conservação em caso de explora­ção submarina.

Esta convenção não está inserida no ordenamento jurídico b ra ­sileiro.

As recomendações devem ser aprovadas pelo quorum de m aio­ria simples entre os Estados-membros da Unesco reunidos na Con­ferência Geral. Tais recomendações não se submetem aos processos de manifestação da vontade dos Estados - assinatura, ratificação, adesão, dentre outros - , típicos das convenções internacionais e dos tratados. As recomendações têm a finalidade de estabelecer parâme­tros internacionais de proteção que os Estados-membros devem adotar para o aprim oram ento das suas legislações de proteção. As recomendações da Unesco relativas à proteção dos bens culturais tangíveis são as seguintes:

35 Cf. SILVA, F. F. da. As cidades brasileiras e o patrimônio cultural da humanidade. São Paulo, Edusp/Peirópolis, 2003. p. 167.

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D I R E I T O I N T E R N A C I O N A L E D E S E N V O L V I M E N T O

Recomendação que Define os Princípios Internacionais que De­verão Aplicar-se às Escavações Arqueológicas - Conferência Ge­ral, Nova Deli, 1956;Recomendação Relativa à Proteção da Beleza e do Caráter dos Lugares e Paisagens - Conferência Geral, Paris, 1962; Recomendação sobre as Medidas a Serem Adotadas para Proibir e Impedir a Importação, Exportação e Transferência de Proprie­dade Ilícitas dos Bens Culturais - Conferência Geral, Paris, 1964; Recomendação Concernente à Conservação dos Bens Culturais que a Execução de Obras Públicas ou Privadas Pode Pôr em Perigo - Conferência Geral, Paris, 1968;Recomendação sobre a Proteção, em Âmbito Nacional, do Patri­m ônio Cultural e Natural - Conferência Geral, Paris, 1972; Recomendação Relativa à Salvaguarda dos Conjuntos Históri­cos e sua Função na Vida Contemporânea - Conferência Geral, Nairóbi, 1976.

3. O PATRIMONIO CULTURAL DAHUMANIDADE: OS BENS INTANGÍVEIS

Os bens intangíveis ou imateriais correspondem geralmente às manifestações culturais ligadas aos costumes, à língua, às receitas mé­dicas e culinárias, isto é, aos comportamentos de uma comunidade.

A proteção dos bens imateriais é importante porque mantém a identidade cultural de uma comunidade, através da qual pode-se aprender com o seu estilo de vida e com a sua forma de organização: sistemas jurídicos, formas de governo e administração, formas de o r­ganização social, línguas e dialetos, diagnóstico de doenças e as formas de erradicação, normas éticas, preceitos religiosos, dentre outros.36

36 Cf. Nossa Diversidade Criadora: Relatório da Comissão Mundial de Cultura e Desenvolvimento> CUÉLLAR, J. F. (org.). Campinas, Papirus/Unesco, 1997. p. 231-69.

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D I V E R S I D A D E C U L T U R A L E D E S E N V O L V I M E N T O

No plano internacional, a Recomendação sobre a Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular ( 1989)37 é o instrumento mais im ­portante sobre a definição e as medidas de proteção dos bens imate- riais. Essa Recomendação é organizada em seis itens: (1) Definição da Cultura Tradicional e Popular; (2) Identificação da Cultura Tra­dicional e Popular; (3) Conservação da Cultura Tradicional e Popu­lar; (4) Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular; (5) Difusão da Cultura Tradicional e Popular; (6) Proteção da Cultura Tradicio­nal e Popular; e (7) Cooperação Internacional.

Nos termos desta Recomendação a “cultura tradicional popu­lar” integra o patrimônio universal da humanidade3S, cuja definição é a seguinte:

Conjunto de criações que emanam de uma comunidade cul­tural fundadas na tradição, expressas por um grupo ou por in­divíduos e que reconhecidamente respondem às expectativas da comunidade enquanto expressão de uma identidade cultural e social; seus padrões e valores são transmitidos oralmente, por imi­tação ou outros meios. Suas formas compreendem, entre outras, a língua, a literatura, a música, a dança, os jogos, a mitologia, os ri­tos, os costumes, o artesanato, a arquitetura e outras artes.39

As medidas de conservação dos bens imateriais a serem adota­das pelos Estados, mais especificamente a “cultura tradicional e po­pular”, são:

a criação de serviços nacionais de arquivo através dos quais sepermite a compilação e o acesso aos bens imateriais;

37 O texto da Recomendação sobre a Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popu­lar, versão em espanhol. Disponível em: <URL: http://www.unesco.org/ culture/laws/ paris/htm l_sp/pagel.shtm l>; acessado em 17/3/2004.

38 Cf. § 2o do Preâmbulo da Recomendação sobre a Salvaguarda da Cultura Tra­dicional e Popular.

39 Cf. item “A” da Recomendação sobre a Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular (tradução livre do autor).

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D I R E I T O I N T E R N A C I O N A L E D E S E N V O L V I M E N T O

a criação de um arquivo nacional central para a prestação de de­terminados serviços de proteção e difusão dos bens imateriais; a criação de museus ou seções de cultura tradicional e popular nos museus existentes;a priorização das formas de apresentação das culturas tradicio­nais e populares que realçam os testemunhos vivos ou passados dessas culturas;a harmonização dos métodos de arquivo; a formação de profissionais que possam executar tarefas de con­servação da cultura popular compreendendo a “conservação física até o trabalho analítico” e;a garantia à comunidade cultural as cópias de materiais relativos à cultura tradicional e popular.10

Duas críticas de relevo cabem em relação a esta Recomendação.41 A primeira refere-se ao conceito de bem imaterial trazido pela

Recomendação: “cultura tradicional e popular”, que provoca um estreitamento no campo de aplicação deste instrumento internacio­nal, pelo fato de que a expressão bem imaterial é gênero, sendo aque­la a espécie.

A segunda crítica relaciona-se à previsão de que a “cultura tra­dicional e popular” na medida em que se traduz em manifestações de criatividade intelectual “merece uma proteção análoga a que se outorga a produções intelectuais”42.

Este parece ser um problema sério, pois muitas vezes os interes­ses que envolvem a “cultura tradicional e popular” são contrários

40 Cf. item “C” alíneas ay by cy dy e>fi e gy da Recomendação sobre a Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular (tradução do autor).

41 Cf. artigo preparado pelo Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial. Propostas, Experiências e Regulamentos Internacionais sobre a Proteção do Patrimônio Imate­rial; Ministério da Cultura e Iphan. O Registro do Patrimônio Imaterial - dossiê final das atividades da Comissão e do Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial. Brasília, jul./2000. p. 95-105.

42 Cf. item “F”, da Recomendação sobre a Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular (tradução livre do autor) (grifo do autor).

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àqueles que envolvem a propriedade intelectual. São os casos relati­vos aos atos de biopirataria, a exemplo do pesquisador estrangei­ro que aprende numa comunidade indígena o know-how de certas receitas médicas para depois patenteá-las no seu Estado de origem, acarretando inclusive a formação de direitos intelectuais contra a própria comunidade que passa a sofrer restrições sobre o exercício de sua atividade cultural.

Acredita-se que deva haver no campo internacional uma distin­ção clara entre o regime jurídico da “cultura tradicional e popular” e o regime jurídico da propriedade intelectual com a instituição de normas que solucionem os conflitos de interesses e direitos que pos­sam surgir, assim como normas de conexão entre ambos os regimes.

4. O CONCEITO INTERDISCIPLINAR DE DESENVOLVIMENTO: A NECESSIDADE DA DIVERSIDADE CULTURAL

O relatório Nosso Futuro Comum, preparado pela Comissão M un­dial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, introduziu um con­ceito novo de desenvolvimento, denom inando-o de sustentável:

Em essência, o desenvolvimento sustentável é um processo de transformação no qual a exploração dos recursos, a direção dos in­vestimentos, a orientação do desenvolvimento tecnológico e a mu­dança institucional se harmonizam e reforçam o potencial presente e futuro, a fim de atender às necessidades e aspirações humanas.43

Num outro momento, o mesmo relatório indica que o desenvol­vimento sustentável não pode colocar em risco sistemas naturais indispensáveis para a manutenção da vida na Terra, sendo eles a atmosfera, as águas, o solo e os seres vivos.44

43 Cf. Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Nosso Futuro Comum. 2. ed. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 1991. p. 49.

44 C f Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Op. cit., p. 48.

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O conceito de desenvolvimento sustentável estabelecido pela Co­missão é interdisciplinar, pois congrega valores econômicos, sociais, culturais, jurídicos e políticos.

Em relação ao campo econômico, propõe uma mudança da re­lação de uso dos bens, típica das relações capitalistas, ao limitá-la, impondo-se obrigações de recuperação e renovação às sociedades a fim de evitar o desaparecimento deles.

No campo social e cultural propõe-se um a ética de responsabili­dade universal pelo fato de as pessoas tomarem consciência de que qualquer ação praticada, por m enor que seja, possui efeitos no pre­sente e no futuro que podem ameaçar a sobrevivência da coletivida­de humana. A jurídica, em razão do compromisso selado entre a atual e as futuras gerações, através de fontes de direito interno e Direito Internacional, entre elas as constituições, as leis, os tratados, as reso­luções, as declarações, dentre outras fontes, para a proteção dos bens culturais e naturais. Por último, a política, pois somente nos regimes políticos em que a dignidade humana seja plenamente respeitada é possível pensar em desenvolvimento numa condição humana, que contemple todas as necessidades do ser hum ano estimulando as suas ações virtuosas: amor, compaixão, fraternidade, solidariedade, e res­ponsabilidade com uma ética construtiva. No momento, o regime político mais próximo desta condição hum ana é o democrático. Em outras palavras, o regime democrático cria o espaço institucional adequado para o respeito à dignidade humana.

Nesse contexto, a diversidade cultural é elemento indispensável para a realização do desenvolvimento sustentável.

A coexistência das diferentes culturas é pressuposto para a coe­xistência das diferentes formas de estratégia de sobrevivência do ser humano. Assim, o intercâmbio entre as várias comunidades cultu­rais é uma potencialidade para a criatividade humana, fundamental para, num m undo ameaçado, elaborar estratégias múltiplas de so­brevivência e da plena realização das necessidades do homem.

Dessa forma, o papel da Unesco em patrocinar a aprovação de normas internacionais que garantam a proteção dos bens culturais,

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e, portanto, a diversidade cultural do planeta, é um dos mais relevan­tes na construção do desenvolvimento sustentável.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A cooperação internacional após a Segunda Guerra Mundial transformou-se numa das principais vertentes do Direito Internacio­nal Moderno. A necessidade de sua implementação está diretamente ligada à manutenção da paz nas relações internacionais.

Essa cooperação compreende, também, compromissos entre ge­rações através das quais a atual geração garante condições de realiza­ção de uma vida plena para as futuras gerações.

Assim, resulta um novo conceito de desenvolvimento que está correlacionado com valores econômicos, sociais e culturais, juríd i­cos e políticos.

Esse conceito interdisciplinar reforça a noção de desenvolvimen­to agregada à condição hum ana e ao estímulo das ações virtuosas do homem: amor, compaixão, solidariedade, fraternidade, dentre outros. Tais valores criam uma atmosfera econômica, social e políti­ca de respeito à diversidade cultural existente na Terra.

A diversidade cultural é um elemento indispensável para a plena realização do desenvolvimento sustentável.

A proteção das várias comunidades culturais do nosso planeta assegura a elas o exercício das suas manifestações culturais e, po r­tanto, da sua plena capacidade criativa.

Este dado é fundamental para a elaboração de estratégias que assegurem a sobrevivência dos seres hum anos da atual e das futuras gerações com a real satisfação das suas necessidades.

Nesse sentido, a Unesco vem exercendo o verdadeiro papel de tu- tora dos bens culturais da humanidade, na denominada relação de trust, observada por Kiss, ao patrocinar a aprovação de normas internacionais que protegem os bens culturais tangíveis e intangí­veis. Essa proteção assegura a diversidade cultural e a riqueza criati­va do ser hum ano que deve ser transmitida para as futuras gerações.

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8Desenvolvimento, Costume Internacional e Soft Law

S a l e m H i k m a t N a s s e r *

Introdução: direito, valores e necessidades sociais - 1 . 0 Direito Internacional e o desenvolvimento - 2. Desenvolvimento c costume internacional - 3. Desenvolvimento e soft law - Considerações finais - Referências

INTRODUÇÃO: DIREITO, VALORES E NECESSIDADES SOCIAIS

Sabe-se que há uma conexão, sempre ideal, e nunca perfeita, entre o direito e a idéia de justiça.

Na realidade, uma norma de uma dada ordem e a própria ordem no seu todo podem ser vistas como mais ou menos justas e mais ou menos legítimas. Ou seja, é sempre possível discutir o caráter justo e legítimo do produto da elaboração e aplicação das normas jurídicas, bem como dos resultados e do funcionamento global de uma ordem jurídica.

A possibilidade desse questionamento provém essencialmen­te do fato de que tanto os valores que incorporam e revelam o que

* O autor agradece à Srta. Natasha Caccia pela revisão crítica do texto e suges­tões feitas.

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D I R E I T O I N T E R N A C I O N A L E D E S E N V O L V I M E N T O

é justo , quanto a avaliação dos resultados da regulação jurídica são relativos. Assim, a justiça, que pode ser descrita como um valor h u ­mano que tende ao absoluto, só se realiza na práxis social de forma incerta e relativa, de forma fundamentalmente evolutiva.

Uma ordem jurídica qualquer deve, idealmente, tender ao equa- cionamento dos argumentos de legitimidade e de justiça, e à realiza­ção de resultados que mais se aproximem do justo ideal.

Um elemento, dentre os vários possíveis, que permitiria julgar assim uma ordem jurídica é a consideração de sua real adequação aos objetivos de preservar os valores vigentes num a dada sociedade e de atender às necessidades sociais.

A adequação e correspondência da ordem jurídica com os valo­res e as necessidades dependerão, por suposto, dos conteúdos mate­riais das normas, mas também das qualidades formais (técnicas) das mesmas. Em outras palavras, para avaliar a correlação entre o direito e as condições sociais, é preciso certamente atentar para os com an­dos, proibições, permissões e quaisquer outros conteúdos norm ati­vos, mas é igualmente preciso observar quem produz esse direito e como o faz, a quem se dirigem suas normas e qual o alcance e a força destas.

É a hipótese deste texto que o tema do desenvolvimento abriu um intenso debate sobre a adequação do Direito Internacional, em ambos os sentidos. Aqui, tratar-se-á apenas incidentalmente do con­teúdo material das normas do Direito Internacional na matéria. A atenção estará centrada nas transformações dos modos de produção do direito e dos tipos de normas que ele contém .1

Tanto a ordem jurídica quanto os valores que, supõe-se, ela deve proteger, assim como as necessidades a que deve garantir resposta,

1 A possibilidade de se fazer um estudo normativo do direito, como se pretende fazer neste texto, em vez de um outro centrado no conteúdo material do mesmo, está inspirada, sobretudo, nos escritos de Prosper Weil, especialmente em “Le droit inter­national en quête de son identité” e “Vers une normativité relative en droit internatio- nal”, publicados originalmente na Révue Générale de Droit International Publicy 1982. p. 5-47. Estes e outros artigos que sintetizam o pensamento do autor foram publica­dos em obra compilatória (WEIL, P. Écrits de droit international. Paris, p u f , 2000).

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existem sempre no âmbito de uma dada sociedade, cujas caracterís­ticas devem determinar as funções básicas e as características essen­ciais do direito que nela se produz e se aplica.

1. O DIREITO INTERNACIONAL E O DESENVOLVIMENTO

O Direito Internacional é o direito da sociedade internacional. Ao menos para efeitos de delimitação deste direito, pode-se dizer que esta sociedade é composta por Estados soberanos e iguais. Disso resulta que, segundo consenso doutrinário consagrado pelo tempo2, as fun­ções essenciais desse direito consistem em garantir a coexistência dos Estados e favorecer a cooperação entre eles, ou seja, assegurar a coe­são da sociedade internacional. Tais funções estariam suportadas por uma terceira, basilar, que é a preservação da soberania territorial.

Coexistência e cooperação têm inspirado a evolução do Direito Internacional, quer nos seus aspectos materiais, quer nos formais e técnicos. Foi assim que, para se restringir apenas ao século xx, quan­do ocorreram as mais espetaculares transformações desse direito, proscreveu-se a guerra e o uso e ameaça da força, surgiram e flores­ceram as organizações internacionais e a diplomacia, bem como os tratados internacionais converteram-se ao multilateralismo.

Coexistência e cooperação não inspiram apenas isoladamente, cada uma, o Direito Internacional e sua evolução, mas também a arti­culação entre ambas assume essa influência. Tornou-se lugar comum dizer que a dimensão (ou a lógica) da cooperação tem ganhado pre­cedência, ou ascendência, sobre aquela da coexistência nas relações entre os Estados, e isso transparece no Direito Internacional.3

2 Cite-se apenas para ilustração os exemplos de Weil nas obras citadas anterior­mente, e CARRILLO SALCEDO, J. A. El derecho internacional en perspectiva histórica. Madri, Tecnos, 1991. p. 15.

3 Ver nesse sentido CARRILLO SALCEDO, J. A. El derecho internacional en un mundo en cambio. Madri, Tecnos, 1985.

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A crescente importância da cooperação como função e objeti­vo do Direito Internacional resulta fundamentalmente (mas não de forma exclusiva) da percepção da inevitável e crescente interdepen­dência dos Estados e, num a certa medida, do reconhecimento da exis­tência de um verdadeiro destino comum4.

Em outras palavras, cooperação e coexistência resultam e se de­finem a partir dos valores e das necessidades verificados na socieda­de internacional.

Ao longo do século XX e de forma especialmente intensa após a Segunda Guerra Mundial, as transformações na sociedade dos Esta­dos expuseram um conflito entre novos e antigos valores, entre as ne­cessidades de uns e interesses de outros.

O aspecto principal dessas transformações foi, sem sombra de dúvida, o acesso à independência e ao status de Estados soberanos de inúmeros povos da Ásia, especialmente durante a década de 1940, mas também na primeira metade dos anos 70, e da África, começan­do em meados da década de 1950 e se estendendo pelos ciois decê­nios seguintes, e que sofriam o que se pode chamar de “déficit de desenvolvimento”.

Esses Estados pretenderam uma reforma profunda da ordem anterior e promoveram idéias que, uma vez implementadas, criariam uma “nova ordem internacional”. Essa nova ordem, essencialmente econômica, mas também política e jurídica, implicava a incorpora­ção, pelo direito, de alguns novos princípios, regras e mecanismos; implicava a adaptação do direito aos novos valores e às necessidades do grupo, de seus novos sujeitos, representativos de grande parte da humanidade.

É claro que os novos Estados africanos e asiáticos não estavam sozinhos nessa campanha por uma ordem mundial diferente e mais justa. Afinal, as necessidades relacionadas ao desenvolvimento e à in­

4 Alexander Wendt, em seu livro Social theory o f international politics diferencia a interdependência do destino com um pelo fato de que a primeira implica que os bens e perigos resultam das relações entre os atores, enquanto no segundo esses bens e peri­gos são os mesmos para todos os atores, independentemente de suas relações.

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dependência política não eram exclusividade dos recém-chegados à sociedade interestatal. O advento das independências deu, no entan­to, ímpeto e força ao movimento contestador e reivindicador que se articulou em torno de dois movimentos organizados e quase institu­cionais, o Grupo dos 775 e o Movimento dos Países não Alinhados6, compreendendo a quase totalidade dos países em desenvolvimento.

As reivindicações resultaram, nesse momento histórico e desde então, na incorporação de princípios gerais pelo Direito Internacio­nal, tais como a autodeterminação política e econômica dos povos, a soberania sobre os recursos naturais, a igualdade soberana dos Esta­dos, temperada pela correção das desigualdades reais, dentre outros.

O mais importante desses princípios talvez seja o que consagra um “direito ao desenvolvimento”7 de que são titulares Estados, povos e indivíduos.8

Para além dessa afirmação e incorporação de princípios, deu-se a construção gradual de um regime jurídico do desenvolvimento, um “Direito Internacional do Desenvolvimento”.

Esse regime jurídico não se encontra apenas no Direito Interna­cional Público. Ele se forma, na verdade, na confluência do Direito Internacional com o direito interno e o chamado direito transnacional.

Além disso, tem como principal característica o fato de ser um direito orientado, definido “menos por seu âmbito de regulação que pelo objetivo que persegue”9.

5 Sua formação começa a ser ensaiada no Cairo, em 1961, e é oficializada quando da realização da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento, em Genebra, em 1964.

6 Movimento social de pequenos e médios Estados, comprometidos com o não- alinhamento durante o período da guerra fria, bem como com a paz e o desarmamen­to. Esses compromissos resultam de suas várias conferências que, além das preocupa­ções de natureza política, expressam também reivindicações de natureza econômica.

7 SALMON, J. Dictionnaire de droit international public. Bruxelas, Bruylant/AUF,2001.

8 De fato, há uma tendência em reconhecer o direito ao desenvolvimento como um direito fundamental dos seres humanos.

9 FEUER, G. & CASSAN, H. Droit international du développement. 2. ed. Paris, Dalloz, 1991. p. 24.

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Trata-se de um direito de antecipação e de finalidade, que pensa a sociedade futura e, por isso mesmo, compõe-se de regras positivas e prospectivas.10

Substancialmente, é um direito articulado em torno dos contro­les que os Estados em desenvolvimento detêm sobre as atividades eco­nômicas em seu território, das transferências de conhecimento e de capitais em direção a esses Estados e de regimes especiais no campo do comércio internacional."

No entanto, esse resultado final não é atribuível apenas à afir­mação, pelos países em desenvolvimento, de determinados valores e necessidades, ou mesmo à conscientização da comunidade interna­cional acerca da importância dos mesmos.

O resultado final, o direito e suas normas em determinado tempo, constitui o equacionamento das tensões entre valores conflitantes, necessidades individuais ou coletivas e interesses de uns e outros, mas também espelha as relações de poder e força na sociedade. O direito resulta, portanto, de um complexo de relações entre valores, necessi­dades e possibilidades.

De fato, no que diz respeito ao Direito Internacional do Desen­volvimento, pode-se dizer que não foi bem-sucedido nas suas inten­ções de reformular por completo a ordem internacional, “substituin­do aquela antiga, injusta e perimida, por uma nova, mais racional e eqüitativa”12. Os grandes princípios inspiradores da nova ordem eco­nômica internacional não foram incorporados ao direito positivo senão de maneira parcial.

O direito substantivo, material, pode-se dizer, reflete as condi­ções sociais que presidiram sua evolução, mas é possível questionar a adequação desse mesmo direito, na sua materialidade, aos valores e às necessidades que foram revelados na última metade de século. Com efeito, é possível sustentar que esse direito não produz os resul­tados para os quais se orienta(va), pois deveria garantir aos Estados as condições favoráveis ao seu desenvolvimento.

10 Idem, p. 27.11 Para um panorama, ver FEUER, G. Op. cit.12 FEUER, G.& CASSAN, H. Op. cit., p. 20.

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A problemática do desenvolvimento, combinada com as condi­ções factuais da sociedade internacional no m om ento em que sur­giam os novos Estados, trouxe desafios ao Direito Internacional, não só no seu conteúdo, mas na sua normatividade. A ordem anterior, na sua dimensão jurídica, viu-se contestada não só na essência de suas normas, mas também nos seus mecanismos de criação e nas diver­sas modalidades normativas que produzia.

Com o dito antes, ao Direito Internacional são atribuídos, tra ­dicionalmente, alguns aspectos relacionados ao caráter interestatal da sociedade internacional. Numa sociedade em que não há um poder central e na qual os atores estão organizados horizontalm en­te, todos autônom os e independentes (ao menos em tese), e tendo por funções a coexistência e a cooperação entre esses mesmos agen­tes, o Direito Internacional só pode ser produzido por ele mesmo, já que não reconhece autoridade que lhe seja superior e a quem esteja submetido. Mesmo para os que não professam a fé no funda­m ento voluntarista para o Direito Internacional, é inegável que a produção desse direito dependa em grande parte da vontade dos Estados.

A vontade, concertada, é definidora de um a das fontes princi­pais desse direito; sem um encontro de vontades não há, efetivamen­te, tratados. O papel do aspecto volitivo na produção dos costumes, a outra fonte importante, é mais discutível, tendo tanto defensores quanto detratores. Para os voluntaristas, o costume se produz pela vontade tácita, para os objetivistas, ele nasce espontaneamente. Como quer que seja, o costume é tradicionalmente associado à con­sagração de práticas generalizadas no tempo.

A violência (real e simbólica) do movimento de descolonização, bem como a luta pela construção de um a nova ordem econômica mundial, não se poderia combinar com a espera por uma gradual e demorada construção dos novos costumes; tampouco poderia re­crutar as vontades dos que discordavam dos novos rumos para a celebração de tratados. Assim, era preciso buscar novos modos de criar um direito diferente. Disso resultaram os chamados costume selvagem e a soft law.

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2. DESENVOLVIMENTO E COSTUME INTERNACIONAL

O costume é fonte do Direito Internacional tão fundamental quanto misteriosa.13

A dou trina lhe reserva tra tam en to que oscila entre a conde­nação à irrelevância, provocada pelo avanço do direito escrito, e o diagnóstico de um papel preponderante, continuado e sempre reno­vado.1'’ Nesse estudo, acredita-se que ainda seja a fonte por excelên­cia desse Direito Internacional em contínua evolução.

A sua conceituação usual e consagrada, tanto pelo próprio costu­me internacional15 quanto pelo art. 38 do Estatuto da Corte Interna­cional de Justiça16, fundamenta-se na coexistência de dois elementos: a prática generalizada e a opiniojuris.

A prática é generalizada no sentido de que deve ser uniforme, constante e contínua. A opinio juris é a convicção de que essa práti­ca generalizada constitui-se numa prática juridicamente obrigatória, um dever ser. Os costumes podem ser gerais (universais), regionais ou mesmo bilaterais.

Um problema central do costume internacional diz respeito à possibilidade de se opor uma norma costumeira a Estados que não participaram diretamente da construção da prática nem da elabora­

13 “Le mystère dc la coutumc tout dabo rd , demeure cntier, aussi dense et irapé- nétrable que jam ais”. Cf. WEIL, P. “L'avis consultatif sur la licéité de la menace ou de 1'emploi d 'arm es nucléaires: deux lectures posibles”; In: WEILL, P. (org.). Écrits de droit international. Paris, PUF, 2000. p. 58.

14 Para uma ilustração muito interessante desse fluxo e refluxo na teoria do costu­me internacional, consultar CAHIN, G. La coutume internationale et les organisations internationales. Paris, Pedone, 2001, especialmente na sua introdução.

15 Pensa-se, com efeito, que é o fato de os Estados acreditarem ter a obrigação jurídica de se comportarem de acordo com as práticas consagradas por eles mesmos, e que acreditam serem obrigatórias, que define o costume como fonte do Direito Internacional. Em outras palavras, o costume define o costume.

1<s Que prevê que a Corte, “cuja função é decidir de acordo com o Direito Inter­nacional as controvérsias que lhe forem submetidas, aplicará: b) o costume internacio­nal, como prova de uma prática geral aceita como sendo direito”.

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ção da opinio juris. Parece consagrada a idéia de um costume inter­nacional equivalente em significado ao “Direito Internacional geral”, um direito oponível aos Estados em geral (todos, quando universal; os de uma parte do globo, quando regional), independentemente de sua participação direta na produção das normas costumeiras.

Em todo caso, esse costume internacional, constituído pela rela­ção necessária entre prática generalizada e convicção de juridicida- de, e obrigatório para todos os Estados ou apenas para um grupo, consolida-se no tempo.

A dúvida que se coloca consiste em saber quanto tempo é neces­sário para essa consolidação. Não há resposta precisa a essa questão. O processo costumeiro se dá por fases: passa-se da conduta neutra juridicamente à prática relevante para o direito, daí para a constru­ção da norm a e finalmente para a definição de seu alcance.17 O período necessário ao desenrolar desse processo pode variar, e é certo que é reduzido pela aceleração e transformação das relações sociais internacionais. Todavia, deve-se perguntar até que ponto pode-se acelerar o processo costumeiro sem que ele perca o caráter de processo e fonte costumeira? Em outras palavras, o conceito de costume pode aceitar a inclusão de regras nascidas menos de um processo e mais de um instante?

Q uando do surgimento dos novos Estados e da sua militância a favor de uma nova ordem internacional, dois foram os principais efeitos sobre o direito costumeiro internacional.

Por um lado, houve um forte questionamento das normas cos­tumeiras anteriormente consagradas. Desafiar a ordem anterior, in­justa e perimida, significava em grande medida negar legitimidade às normas que foram produzidas num a sociedade anterior, em que os novos Estados não existiam senão como colônias, protetorados ou territórios dependentes, e que, por esta mesma razão, não participa­ram desse processo de criação normativa. Desafiavam-se, portanto,

17 Sobre este trio, formalização,“normatização” e alcance, ver CAHIN. Op. cit., que constrói sua tese sobre as influências da institucionalização sobre o costume.

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normas e conteúdos que espelhavam a ordem social anterior, e em cuja elaboração não participaram. Dizer que a ordem e as normas anteriores já não valem não bastava, no entanto.

É por isso que, por outro lado, tentou-se impor o reconheci­mento da existência (ou ao menos o nascimento) de novas regras costumeiras mais apropriadas ao m om ento histórico. Para tal, advo­gou-se a possibilidade de os costumes nascerem de forma instantâ­nea ou de m odo selvagem™.

O costume instantâneo consiste na admissão, em tese, de que a regra costumeira possa nascer baseada num único com portam ento ou num a prática insipiente, desde que se possa identificar um a con­vicção razoavelmente generalizada de sua obrigatoriedade.

O conceito próximo, mas não idêntico, de costume selvagem, sig­nifica que, contrariamente ao que seria com um no surgimento da norm a costumeira, a opinio juris surgiria antes da prática.

Ambos os fenômenos, portanto, redundam num a preponderân­cia do elemento denominado subjetivo ou psicológico do costume. A convicção da existência da norm a jurídica seria mais importante do que a verificação de uma prática generalizada que a suporte e confirme.

A prevalência da opinio juris ganha sua dimensão mais proble­mática quando se leva em conta a identificação do costume com o Direito Internacional geral. O raciocínio é o que segue: a convicção que se deve demonstrar é geral e não unânime; uma vez demonstra­da, apesar da ausência da prática generalizada, estabelece a existência de uma norm a jurídica que obriga o conjunto dos Estados, incluídos aqueles que não compartilhavam dessa crença na sua juridicidade.

Como já foi dito, o costume é uma fonte complexa. Apesar da aparente simplicidade dos dois elementos, identificar a prática rele­

18 A distinção entre costume com portado e costume selvagem foi publicada por DUPUY, R.-J., “Coutum e sage e coutume sauvage”. In: Mélanges offerts à Charles Rousseau. Paris, Pedone, 1974. p. 75-87, artigo que se consagrou e que foi posterior­mente republicado em DUPUY, R.-J., Dialectiques du droit international. Paris, Pedo­ne, 1999.

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vante e verificar a existência da opinio juris são tarefas das mais difí­ceis. Atualmente, essa complexidade ganha ainda mais profundidade. Anteriormente, o exercício consistia em verificar a existência da nor­ma costumeira; hoje, à luz das novidades, consiste em verificar seu nascimento, enquanto este se dá.

Seja como for, a tentativa dos Estados novos de fazer reconhecer a existência de novas normas, fundadas em princípios por eles con­siderados mais justos e, portanto, destinados a um status jurídico19 (independendo essa existência normativa da prática anterior), tem necessariamente como efeito colateral uma potencial transformação profunda da estrutura normativa do Direito Internacional.

Resta tratar dos mecanismos utilizados para a afirmação dos princípios e da realidade da nova opinio juris.

Os novos Estados se beneficiaram da dupla circunstância de sua maioria numérica e da institucionalização das relações interestatais. De fato, os Estados surgidos da descolonização, integrando o grupo mais amplo dos Estados em desenvolvimento, faziam agora parte do grupo mais numeroso. Com a crescente transformação da ordem in­ternacional e sua passagem do estágio puramente relacionai a um estágio mais institucional, e a marcante participação do conjunto dos Estados nas organizações internacionais, especialmente a Orga­nização das Nações Unidas (O N ü ) , esta se revelou o foro mais apro­priado para se fazer ouvir os argumentos pela nova ordem e fazer valer a força dos números.

Como essa força numérica só tem sentido nos órgãos plenários, assim o campo em que se deu o combate em torno das novas de­mandas foi naturalmente a Assembléia Geral da o n u . O s instrum en­tos de que se armaram os novos Estados foram as resoluções dessa Assembléia, que serviram como veículos de inúmeras declarações e recomendações, planos de ação que incorporavam os novos valores e pretendiam atender às necessidades sociais.

É claro que a Assembléia Geral da o n u produziu, desde a cons­tituição da ONU, milhares de resoluções. Apenas algumas delas pre­

19 DUPUY, P.-M. Droit international public. Paris, Dalloz, 1992. p. 277.

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tendem ser a expressão da nova opinio juris, a qual deveria ser obri­gatória e inevitavelmente seguida pela prática. Saber quais depen­dem de um estudo pormenorizado, caso a caso, do teor de cada re­solução, das circunstâncias de sua adoção, e da prática subseqüente dos Estados.

As primeiras coincidem com o início da descolonização africana e com a entrada de novos Estados na organização, a partir de 1960,20 sendo as mais importantes a “Declaração sobre o a Independência dos Países e dos Povos Coloniais” (1960)21, a “Estratégia para a Pri­meira Década das Nações Unidas para o Desenvolvimento”(1961)22 e a “Resolução sobre a Soberania Permanente sobre os Recursos Natu­rais” (1992).23

É igualmente significativo que um a resolução da Assembléia Geral da ONU2 4 tenha sido adotada para acolher uma Declaração da Conferência de 31 Estados no Cairo, anterior à formação do Grupo dos 77, mas que lançou as suas bases. Essa resolução apresenta um interesse ainda maior quando se leva em conta que inspirou a Con­ferência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento (Cnuced), realizada em Genebra em 1964, e que se constituirá a par­tir de então em órgão permanente da organização.25

Por outras resoluções definiram-se estratégias para a Segunda e Terceira Décadas das Nações Unidas para o Desenvolvimento,26 a “Declaração e Programa de Ação sobre a Instauração de uma Nova

20 Em 1960 surgem dezoito novos Estados no Continente Africano, e dezesseis são adm itidos nas Nações Unidas. Baseado em TRUYOL Y SERRA, A. La sociedad internacional. Madri, Alianza Editorial, 1998. p. 197-216.

21 Res. 1.514 (xv) de 14 de dezembro de 1960.22 Res. 1.710 (xvi) de 19 de dezembro de 1961.23 Res. 1.803 (xvil) de 1962.24 Res. 1.820 (xvil) de 18 de dezembro de 1962.25 Res. 1.995 (xix) de 1964. A Cnuced será a partir de então o porta-voz da cam ­

panha pela adoção de regras derrogatórias do Direito Internacional comum, tentan­do fazer avançar o objetivo do desenvolvimento. V. FEUER, G. & CASSAN, H. Op. cit., p. 14.

26 Res. n. 2.626 (xxv) de 24 de outubro de 1970 e Res. n. 35/56 de 5 de dezem­bro de 1980.

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Ordem Econômica Internacional”27 (1974), a “Carta de Direitos e Deveres Econômicos dos Estados” (1974).

Dentre essas resoluções inaugurais do direito do desenvolvimen­to, as primeiras foram aprovadas com tranqüilidade, tanto por países desenvolvidos quanto por aqueles em desenvolvimento, enquanto as outras foram objeto de vivas controvérsias. De modo geral, pode-se dizer que a cisão foi se estabelecendo à medida que ganhava curso a idéia de fazer eqüivaler a aceitação das resoluções e o comprometi­mento com uma nova opinio juris, e à medida que as resoluções foram ganhando conteúdos mais detalhados e precisos.

Em conclusão, sobre o tema do costume internacional, deve-se dizer que as resoluções serviram de instrumento àqueles que tenta­vam demonstrar o nascimento ou afirmar a existência de normas e regras de costume resultantes de um processo de formação norm a­tiva diferente, mas, ainda assim, costumeiro.

Essas resoluções, no entanto, são também as primeiras expres­sões de um fenômeno que se relaciona com a mutação do costume internacional, mas com ele não se confunde: a soft law.

3. DESENVOLVIMENTO E SOFT LAW

O fenômeno da soft law28 manifesta-se de duas maneiras distin­tas no Direito Internacional ou no conjunto mais amplo da regula­ção normativa, jurídica e não jurídica.

O primeiro desses meios ou mecanismos é o que se poderia cha­m ar de soft law material ou substancial. Diz esta respeito às carac­terísticas substanciais das normas jurídicas, às obrigações por elas criadas, à sua precisão, ou bem às conseqüências de suas violações.

27 Res. 3.201 e 3.202 (s-vi) de Io de maio de 1974.Para um panorama sobre o fenômeno, conferir BAXTER, R. R. “International

Law in ‘Her Infínite V arie i/”. In: International and cornparative law quarterly, v. 29, out./1980. p. 549-66.

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As normas do Direito Internacional, especialmente as contidas nos tratados, serão consideradas soft se possuírem uma ou várias das seguintes características: disposições genéricas de modo a criar p rin ­cípios e não propriamente obrigações jurídicas; linguagem ambígua ou incerta impossibilitando a identificação precisa de seu alcance; conteúdo não exigível, como simples exortações e recomendações; ausência de responsabilização e de mecanismos de coercibilidade (tribunais).

Ora, é possível fazer reservas tanto ao uso da expressão soft law quanto ao seu próprio conceito nas condições acima descritas. Em primeiro lugar, todo direito contém princípios ao lado de regras, to ­do direito, necessariamente expresso na forma lingüística, conhece um certo grau de incerteza e ambigüidade. Todo direito faz uso de alguma dose de exortações a bem agir. Essas razões não são suficien­tes à qualificação de um direito como sendo mole, ou menos direito.

Além disso, é verdade que em geral se espera a obtenção da garantia jurisdicional para a satisfação do direito material, é tam ­bém verdade que é excepcional no caso do Direito Internacional e nem por isso se está em presença de menos direito.

O que parece mais plausível é sustentar que essas manifestações de flexibilidade e incerteza, conhecidas do direito desde sempre, são mais comuns no Direito Internacional. Este seria, na linguagem dos defensores da soft law, um direito mais soft por natureza, e no seu conjunto.

O Direito Internacional do Desenvolvimento, assim como outros ramos do Direito Internacional29, é um domínio em que proliferam essas expressões de um a normatividade relativa. Nele, a com bina­ção da necessidade da ação centrada no longo prazo e a complexida­de dos problemas, ligada tanto à sua dimensão propriamente técnica ou social, quanto aos interesses divergentes, faz com que surjam em abundância as soluções de compromisso, em que os Estados se obri­

29 O Direito Internacional Econômico como um todo, a proteção internacional dos direitos hum anos c o Direito Internacional do Meio Ambiente são tam bém áreas em que se prolifera a soft law.

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gam a colaborar, a trabalhar em conjunto e a envidar esforços, enun­ciam princípios gerais, e valem-se de ambigüidades.

A segunda forma de soft law, no entanto, é a que mais apresen­ta interesse e é a que está mais conectada com a transformação dos modos de produzir Direito Internacional. Ela consiste na tese de que se pode criar Direito Internacional através de mecanismos soft. Isso implica, no fundo, a revolução no campo das fontes desse direito.

Esses mecanismos consistem em instrumentos concertados que não são, a priori, obrigatórios. Desses instrumentos, o exemplo his­tórico mais marcante, e talvez o mais relevante até hoje, é o das reso­luções da Assembléia Geral da ONU, mas ele não é o único.

A discussão em torno do valor jurídico das resoluções das orga­nizações internacionais é antiga.30 Não resta dúvida de que aquelas produzidas pela Assembléia Geral da ONU são obrigatórias apenas quando se referem ao funcionamento do próprio órgão. Quando d i­zem respeito ao comportamento que se espera dos Estados, fora do âm ­bito da organização, o entendimento tradicional é 1 10 sentido de lhes negar obrigatoriedade. É justamente esse entendimento que se vê contestado. Algum direito, diz-se, resulta desses instrumentos. Seria, ao menos, um direito em gestação.

De fato, o traço comum, que caracteriza algumas dessas resolu­ções, os chamados gentlemerís agreements, algumas atas finais, com u­nicados conjuntos, códigos de conduta, e tantos outros, tão comuns 1 10 universo do direito do desenvolvimento, está no fato de serem todos eles instrumentos que resultam da atividade diplomática dos Estados, mas aos quais estes últimos não quiseram atribuir caráter obrigatório (no sentido de vinculante). A qualificação desses instru­mentos como sendo de soft law vem de que eles são vistos como por­tadores de um direito que ainda não é, mas virá a ser.31

Os Estados têm suas razões para fazer uso desses instrumentos mais flexíveis. Basicamente, essas razões podem ser referidas às difi­

30 Conferir, por exemplo, o texto de VIRALLY, M. La portée juridique des recom- mandations de organisations internationales. a f d i , 1974. p. 31-56.

31 DUPUY, P.-M. Op. cit., p. 285 e s.

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culdades para assumir compromissos mais constringentes, e que re­sultam tanto de incertezas científicas quanto de problemas políti­cos. No campo do desenvolvimento, por exemplo, em que os obje­tivos finais são extremamente ambiciosos, os problemas são comple­xos, e as soluções muitas vezes são necessariamente de longo prazo, é mais difícil prever medidas e antecipar com certeza seus resulta­dos. Assim, também, os custos imediatos de algumas medidas para alguns dos atores podem fazer com que lhes seja difícil sustentar politicamente a aceitação de obrigações muito rígidas.

A solução acaba sendo regular os comportamentos por normas e regras que não são juridicamente obrigatórias, mas que fornecem algum grau de previsão sobre as condutas dos atores sociais e até mesmo um a expectativa em relação a essas condutas.

Se é certo que a flexibilidade apresenta certas vantagens, por possibilitar a cooperação entre os Estados em situações complexas e permitir uma alteração facilitada dos termos dos acordos, ela tam ­bém aporta problemas graves, ligados à certeza e à segurança ju rí­dicas, que tendem a se intensificar à medida que o número e a va­riedade desses instrumentos aumentam.

De fato, a inclusão desses instrumentos num m undo jurídico de que constituem a parte soft dificulta a própria conceituação do direi­to e a delimitação da fronteira entre este e o não direito. Ela cria a pos­sibilidade de graus de juridicidade, de mais direito e menos direito.

O observador e o estudioso podem, à sua escolha, se felicitarem pelo enriquecimento e vitalidade da regulação das relações entre os Estados, ou lamentarem a graduação e diluição da normatividade do Direito Internacional.

Seja como for, é certo que o tema do desenvolvimento fez parte do nascimento do fenômeno da soft law, através das resoluções da Assembléia Geral da o n u , e ainda hoje o seu direito é um dos ramos em que mais se encontram os chamados instrumentos soft. Bastam para comprová-lo os exemplos da Declaração do Rio de janeiro e a Agenda 21, ambas de 1992, que tratam do desenvolvimento em co­nexão com a temática do meio ambiente.

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CONSIDERAÇOES FINAIS

Tendo a eqüidade no seu centro, o problema do desenvolvimento trouxe desafios e transformações para o Direito Internacional. Res­ta verificar se um direito de costumes acelerados e instrumentos de quase direito é ferramenta tão apropriada para a realização da justi­ça quanto o foi para a sua proclamação.

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9Financiamento Internacional do Desenvolvimento: seu Papel na Implementação do Direito ao Desenvolvimento

S i l v i a M e n i c u c c i d e O l i v e i r a

Introdução - 1 . 0 conteúdo do direito ao desenvolvimento e o papel do financiamento internacional do desenvolvimento - 2. A abordagem do direito ao desenvolvimento em relação à coopera­ção internacional para desenvolvimento e sua operacionalização - 3. Os primeiros passos na busca de um consenso universal na esfe­ra do financiamento internacional do desenvolvimento - 3.1. Os resultados da Conferência do Milênio e o objetivo de realização do direito ao desenvolvimento - 3.2. O Consenso de Monterrey: os resultados da Conferência Internacional sobre Financiamento do Desenvolvimento (2002) - Considerações finais- Referências

“We who are about to die demand a miracle”W. H. Auden

INTRODUÇÃO

Este artigo tem por objetivo analisar o papel do financia­m ento internacional do desenvolvimento na implementação do direito ao desenvolvimento, tendo em mente as perspectivas decor­rentes da iluminação do Direito Internacional pelos princípios desen-

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volvimentistas, após sua inserção na temática dos direitos humanos. A questão do desenvolvimento, explorada inicialmente no campo econômico, tornou-se objeto, no campo jurídico internacional, do Direito Internacional Econômico e, na década de 1970, deu os primei­ros passos rum o ao Direito Internacional dos Direitos Humanos.

As diferentes abordagens teóricas, limitadas ao crescimento eco­nôm ico ou relativas às noções de instituições, dependência, ne­cessidades básicas, capacidades e funcionamentos ou englobando aspectos multidimensionais, inclusive o hum ano, refletiram-se no sentido do desenvolvimento e em suas implicações jurídicas. No entanto, como observado por Cláudia Perrone Moisés, foi ao ser elevado à esfera dos direitos hum anos com a Declaração da Assem­bléia Geral da Organização das Nações Unidas ( o n u ) sobre o Direi­to ao Desenvolvimento (Resolução n. 41/128, de 04 de dezembro de 1986), que se positivaram todas as dimensões que o term o desen­volvimento implica.'

O preâmbulo da mencionada Declaração estabelece que o

desenvolvimento é um processo econômico, social, cultural e polí­tico abrangente, que visa ao constante incremento do bem-estar de toda a população e de todos os indivíduos, com base em sua par­ticipação ativa, livre e significativa no desenvolvimento e na justa distribuição dos benefícios daí resultantes, e que o direito ao desen­volvimento é um direito humano inalienável, e a igualdade de opor­tunidades é uma prerrogativa tanto dos Estados como dos indi­víduos que compõem o Estado.2

De m odo mais pontual, o § Io do art. Io define:

O direito ao desenvolvimento é um direito humano em virtu­de do qual toda pessoa humana e todos os povos estão intitulados a participar no, contribuir para e gozar do desenvolvimento eco­

1 MOISÉS, C. P. “Direitos Humanos e Desenvolvimento: a Contribuição das Na­ções Unidas”. In: AMARAL Jr., A. do & MOISÉS, C. P. (orgs.). O cinqüentenário da Declaração Universal dos Direitos do Homem. São Paulo, Edusp, 1999. p. 182.

2 Tradução livre da autora.

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nômico, social, cultural e político, no qual todos os direitos huma­nos e liberdades fundamentais possam ser plenamente realizados.3

Diante dos termos da Declaração, cumpre investigar a relevância que o financiamento internacional do desenvolvimento assume em relação aos direitos humanos.

Nesta perspectiva, deve-se observar que, apesar das inovações tecnológicas e científicas e da facilitação do fluxo de mercadorias, serviços e finanças, as desigualdades em âmbito nacional e interna­cional persistem e aprofundam-se, e suas implicações à condição hum ana são agravadas. O desespero de um a imensa parte da hum a­nidade, cujas raízes alcançam a escassez de recursos e a conseqüen­te limitação de suas capacidades, no sentido da obra de Amartya Sen, denuncia a insuficiência de mecanismos para solução de vio­lações con tínuas aos direitos h u m anos e to rn a p rem en te a n e ­cessidade de se refletir acerca de um Direito Internacional mais comprometido com os princípios de justiça distributiva.

Os meios e fins da complexa estrutura do financiamento no âmbito internacional, disciplinados no seio do Direito Internacional Econômico, possuem extrema relevância ao se considerar a urgência de realização do direito ao desenvolvimento.4 Genericamente, as ori­gens remotas do financiamento internacional do desenvolvimento coincidem com esquemas de políticas coloniais e posteriores relações entre antigas colônias e metrópoles. Essa área das relações interna­cionais sofreu a influência dos ideais de reconstrução do pós-Segun- da Guerra Mundial, logo ofuscados pelos interesses das grandes potências durante a polarização da Guerra Fria e marcados pelos contornos do movimento da Nova Ordem Econômica Internacional, durante as décadas de 1960 e 1970. As considerações do desenvolvi­mento na sociedade internacional a partir da década de 1980, em

3 Tradução livre da autora.1 Ao se falar em financiamento do desenvolvimento, há de se ter em mente que o

mercado privado atua ao lado de estruturas institucionais, criadas e mantidas porEstados e organizações internacionais, e a existência de variados instrumentos definanciamento. Do mesmo modo, deve-se ressaltar o papel de outros atores não esta­

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especial sua relação com outros temas, tais como, meio ambiente, direitos humanos, democracia, desarmamento, cultura, paz e segu­rança internacionais, contribuíram com novos elementos ao debate.5

A construção de uma abordagem do financiamento internacio­nal pautada pelo direito hum ano ao desenvolvimento é recente. Por meio da Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento (1986) e da Declaração de Viena (1993), alcançou-se consenso na sociedade inter­nacional em relação à consideração do direito ao desenvolvimento como um direito humano, inserindo-o nas controvérsias que podem ser encontradas nessa consagração.6 Neste particular, destaca-se a li­mitação de recursos financeiros, físicos e institucionais, em níveis nacional e internacional, capaz de restringir a amplitude e a rapidez de realização do direito ao desenvolvimento.7

tais 110 campo do financiamento internacional do desenvolvimento, notadamente as organizações não-governamentais. Para um estudo das possíveis contribuições des­sas organizações e do setor privado e modalidades de sua representação em insti­tuições internacionais dedicadas à causa do desenvolvimento ver: HERMAN, B.; PIETRACCI, F. & SHARMA, K. “Introduction”. In: HERMAN, B.; PIETRACCI, F. & SHARMA, K. (eds.). Financing for Development: Proposals from Business and Civil Society. Tokyo, New York, Paris, The UNU Press, 2001. p. 1-14.

5 O setor de financiamento internacional especificamente relacionado ao de­senvolvimento sustentável, embora tenha relação íntima com o direito ao desenvolvi­mento, não foi abordado neste artigo. Estudos que demonstram as tendências acerca deste assunto, o qual tem alcançado crescente refinamento no âm bito dos instru­mentos de Direito Internacional do Meio Ambiente e também de direitos humanos, podem ser encontrados em: unu Report to the World Sum m it on Sustainable Develop­ment: Making Integrated Solutions Work for Sustainable Development, 26 August - 4 September 2002, Johhannesburg, South África. Tokyo, The u n u Press, 2002; Inter-Lin- kages in Financing Sustainable Development: Inter-likages: Synergies and Coordination among Multilateral Environmental Agreements> Tokyo, The u n u Press, August 2002; e UNU/lAS (Institute o f Advanced Studies) Report International Sustainable Development Governance: The Question ofReform: Key Issues and Proposals, Final Report. Tokyo, The UNU Press, August 2002.

6 COMPARATO, F. K. “O reconhecimento de direitos coletivos na esfera interna- cional”. In: BAPTISTA, L. & FONSECA, J. F. da (coords.). O Direito Internacional no Ter­ceiro Milênio: estudos em homenagem ao Prof Vicente Marotta Rangel. São Paulo, LTr, 1998. p. 646-7.

7 Alguns instrumentos de direitos humanos reconhecem a questão da limitação dos recursos de modo explícito. O art. 2.°, § Io, do Pacto Internacional sobre Direitos

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A limitação de recursos remete ao tema da priorização, que não deve ser ignorado se a realização dos direitos hum anos necessita do gasto de recursos, em geral, limitados.s Se todos os direitos são de igual valor, eles têm a mesma importância. Logo, se uma escolha deve ser feita para traçar as prioridades, ela deve ser feita por meio de um processo democrático, nas esferas nacional e internacional, tendo em mente a implementação dos direitos humanos. A teoria da justiça de John Rawls tem sido utilizada em relatórios da ONU para reforçar a opinião de que prioridade deve ser dada àqueles em situa­ções marginalizadas, de forma a se favorecer os grupos mais vulne­ráveis da sociedade. A dimensão dos recursos no contexto dos direitos hum anos ocupa, pois, um lugar de grande relevância nos programas para sua implementação.9

Assim, o financiamento internacional pode ser analisado como um aspecto da dimensão internacional do direito ao desenvolvi­mento. Para tanto, é importante considerar as principais posições

Econômicos, Sociais e Culturais e o art. 10 da Declaração sobre o Direito ao Desenvol­vimento são exemplos de disposições nesse sentido. Para comentários acerca de justicia bilidade e limitação dos recursos no contexto do direito ao desenvolvimento, v: Doc. ONU: E/CN.4/1999/WG.18/2, 27 July 1999, Study on the current State o f progress in the implementation o f the right to development submitted by Mr. Arjun Sengupta, independent expert, pursuant to commission resolution 1998/72 and General Assetnbly resolution 53/155, p. 6-9, §§ 21-32; ou: SENGUPTA, A. “Realizing the right to development”. In: Development and change. The Hague: Institutc of Social Studies, Blackwell Publishers, v. 31, n. 3, June, 2000. p. 558-61.

8 Para uma análise do enfrentamento das prioridades na prática do desenvolvi­mento ver: SANO, H. -O. “Development and Hum an Rights: the necessary but partial integration o f hum an rights and development”. In: Human Rights Quarterly. The Johns Hopkins University Press, v. 22, n. 3, August 2000. p. 750. Francês Stewart res­salta vantagens na eleição de determinados direitos humanos em razão da facilitação no monitoram ento e na escolha de índices para avaliação universal. STEWART, F. “Basic Needs Strategies, Human Rights and the Right to Development”. In: Human Rights Quarterly. The Johns Hopkins University Press, v. 11, n. 3, August 1989. p. 348.

9 Para maiores detalhes ver: Doc. ONU: e/c \ .4 /1 9 9 9 /wg.18/2, 27 July 1999, Study on the current State o f progress in the implementation o f the right to development submit­ted by Mr. Arjun Sengupta, independent expert, pursuant to Commission resolution 1998/72 and General Assetnbly Resolution 53/155, § 31, p. 8-9. Sobre a teoria de justiça de Rawls ver: RAWLS, J. A theory o f justice. Rev. ed. Oxford Press, 1999.

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acadêmicas e os resultados dos trabalhos dos mecanismos extracon- vencionais, criados no seio da o n u , especialmente o mecanismo de follow-up, formado por um grupo de trabalho e pelo perito inde­pendente, Arjun Sengupta10, que enriquecem a discussão e perm i­tem diferentes abordagens. Nessas circunstâncias, com base no exame a respeito do direito ao desenvolvimento e da agenda inter­nacional no início do século XXI1', distinguem-se, para efeitos de sis- tematização, duas possíveis formas de análise (restrita e ampla) do financiamento internacional.

Em sentido restrito, a proposta do perito independente a res­peito dos chamados pactos para desenvolvimento constitui o p r in ­cipal objeto de investigação. Em sentido amplo, o financiamento internacional do desenvolvimento será analisado levando-se em con­ta os resultados da Conferência do Milênio da o n u (2000), especial­mente o compromisso exarado na Declaração do Milênio de tornar o direito ao desenvolvimento uma realidade para todos e o estabeleci­mento das Metas de Desenvolvimento do Milênio. Na mesma pers­pectiva, o consenso de Monterrey, alcançado na Conferência da ONU

para Financiamento do Desenvolvimento (2002), constituiu um componente importante no caminho da unificação dos fins do fi­nanciamento do desenvolvimento em nível internacional.

Desse modo, por meio da análise do papel do financiamento internacional do desenvolvimento na implementação do direito ao desenvolvimento, buscar-se-á verificar se, apesar do aprofundam en­

10 Esse mecanismo de follow-up foi criado conforme os termos da Resolução n.1.998/72 da Comissão de Direitos Humanos da ONU. Doc. ONU: E/CN.4/RES/1998/72,22 April 1998, The right to development, Commission on Human Rights Resolution 1.998/72. Em 2004, o mandato do perito independente foi encerrado, sendo criada uma Força Tarefa de Alto Nível sobre Direito ao Desenvolvimento.

11 A globalização acelerada da economia mundial - a liberalização e a expansão do movimento de mercadorias, serviços e finanças - foi um fator de especial im por­tância no delineamento das oportunidades e também dos desafios para o desenvolvi­mento e colocou o financiamento internacional do desenvolvimento no centro da agenda internacional. Isso ocorreu não apenas pela perspectiva da cooperação inter­nacional, mas também por meio de uma crítica à arquitetura internacional financeira e comercial, moldurada pelo Fundo Monetário Internacional ( f m i) , pelo Banco M un­dial ( b m ) e pela Organização Mundial de Comércio ( o m c ).

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to das disparidades em níveis domésticos e nas relações internacio­nais, os primeiros passos rum o a um forte consenso na sociedade internacional, referente aos fins e meios do financiamento interna­cional do desenvolvimento podem ser identificados; e, ainda, se esse consenso é corolário da consagração, pelo Direito Internacional, do desenvolvimento como um direito hum ano e dos reflexos de seus princípios nas estratégias e políticas de desenvolvimento.

1. O CONTEÚDO DO DIREITO AO DESENVOLVIMENTO E O PAPEL DO FINANCIAMENTO INTERNACIONAL DO DESENVOLVIMENTO

O questionamento acerca do conteúdo do direito ao desenvol­vimento é significativo em razão de suas implicações às esferas dos direitos e deveres dele decorrentes. Pode-se aferir que há, desde a concepção do direito ao desenvolvimento como um direito hum a­no, um a bifurcação, expressa pela sua consideração como:

uma síntese dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais existentes, que confere dinamismo ao conceito de direi­tos humanos por meio de um consenso crescente sobre os obje­tivos de desenvolvimento; ouum novo direito que emergiu na comunidade internacional como uma resposta consensual a novos problemas e percepções, e não uma agregação dos direitos humanos.12

Grande parte da doutrina considera o direito ao desenvolvimen­to como um direito síntese, cujos objetivos primordiais seriam a pro­moção e a proteção do conjunto dos direitos humanos, em âmbito nacional e internacional, a fim de fortalecer e aprofundar a indivisi­

12 ALSTON, P. “The right to development at the international levei”. In: SNYDER, E E. & SATHIRATHAI, S. (eds.). Third World Attitudes Towards International Law: an Introduction. Dordrecht: Martinus Nijoff Publishers, 1987. p. 814.

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bilidade e a interdependência de todos os direitos hum anos.13 A teo­ria da síntese engloba algumas visões diferenciadas, relacionadas, por exemplo, à realização do art. 28 da Declaração Universal dos Direitos do H om em 14 (1948) ou ao conceito de direito fator15. A teoria da sín­tese contribuiu para a posição de determinados países desenvolvidos que negaram utilidade ao direito ao desenvolvimento, uma vez que os direitos componentes já gozavam da proteção dos Pactos Interna­cionais de Direitos Humanos (1966). Apesar de essa posição negli­genciar a contribuição em relação às obrigações internacionais deri­vadas do direito ao desenvolvimento, ela manteve ativa a constan ­te busca de esclarecimento de seu conteúdo, em que se inserem os

13 Sobre a consideração do direito ao desenvolvimento como um direito síntese ver: ISA, F. G. El derecho al desarrollo: entre la justicia y la solidaridad. Cuadernos Deus- to de Derechos Humanos, n. 1. Bilbao: Instituto de Derechos Humanos/Universidad de Deusto, 1998. p. 44; COLLIARD, C. A. “L’adoption par Tassemblée générale de la décla- ration sur le droit au développement: 4 décembre 1986”. In: Annuaire Français de Droit International. Paris, Editions du CNRS, v.33, 1987. p. 624.; SHELTON, D. “A Response to Donnelly and Alston \ In: Califórnia Western International Law Journal. Symposium Development as an Emerging Human Right: 22-23 February 1985, v. 15, n. 3, summer 1985. p. 526.; ESPIELL, H. G .“The Right to Development as a Human Right”. In: Texas International Law Journal. University of Texas, School of Law, v. 16, n. 2, spring 1981. p. 205.; RICH, R. Y. “The right to development as an emerging hum an right”. In: Virgínia Journal o f International Law. v. 23, n. 2, winter 1983. p. 287-328.; WITKOWSKA, M. M. K. The UN “Declaration on the Right to Development in the Light of its Travaux Pre- paratoires”. In: WAART, P. de; PETERS, P. & DENTERS, E. (eds.). International Law and Development. Dordrecht, Martinus Nijhoff Publishers, 1988. p. 384.

14 Sobre a consideração do direito ao desenvolvimento como um direito síntese com objetivo de concretizar o direito hum ano a uma ordem social e internacional na qual todos os direitos declarados na Declaração Universal dos Direitos Humanos pos­sam ser realizados (art. xxvm) ver: MOISÉS, C. P. “Direitos hum anos e desenvolvimen­to: a contribuição das Nações Unidas”. In: AMARAL Jr., A. & MOISÉS, C. P. (orgs.). Op. cit., p. 192. E também: MOISÉS, C. P. “O Art. 28 da Declaração Universal dos Direitos do Hom em ou a Garantia da Apropriação Efetiva dos Direitos Humanos”. In: Revista da Faculdade de Direito da USP. São Paulo, v. 94, 1999. p. 315-21.

13 Sobre o direito ao desenvolvimento como um direito fator capaz de tornar os elementos das obrigações internacionais de cooperação para a promoção da realização dos direitos hum anos mais operacionais ver: SINKONDO, M. H. “De la fonction juri- dique du droit au développement”. In: Revue de Droit International et de Droit Compa- ré. Bruxelles x, 68. anneé, n. 4, 1991. p. 276-7 e 282-93.

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recentes trabalhos dos mecanismos extraconvencionais da onu, nos quais o direito ao desenvolvimento foi identificado como direito a um processo particular de desenvolvimento'6.

A consideração integral da Declaração de 1986 permite apurar a definição do art. Io por meio do destaque de seus elementos essen­ciais. Nesse sentido, o direito ao desenvolvimento é um direito a um processo de desenvolvimento, no qual todos os direitos humanos e liberdades fundam entais possam ser plenamente realizados, e de­ve ser exercido de maneira que assegure: (1) participação efetiva e plena dos indivíduos em todos os estágios do processo de decisão; (2) igual oportunidade aos indivíduos de acesso a recursos; (3) justa distribuição dos benefícios do desenvolvimento e de renda; (4) res­ponsabilidades dos Estados de materializar o processo de desenvol­vimento por meio de políticas nacionais e internacionais; (5) coope­ração internacional entre Estados e instituições internacionais para facilitar a realização desse direito; e (6) desempenho das atividades, com a manutenção do respeito aos direitos civis, políticos, econômi­cos, sociais e culturais, em razão da interdependência e da indivisi­bilidade dos mesmos.17

Portanto, o direito ao desenvolvimento como o direito a um processo de desenvolvimento não é apenas um direito umbrella ou o

16 Doc. ONU: F./CN.4/2001/WG.18/2, 2 January 2001, Third report o f the independ- ent expert on the right to development, Mr. Arjun Sengupta, submitted in accordance with Commission Resolution 2000/5, § 5, p. 3.; A/55/306, 17 August 2000, Right to development, note by the Secretary-General, the report o f the independent expert on the right to development, Arjun Sengupta, pursuant to General Assernbly Resolution 54/175 and Commission on Human Rights Resolution 2000/5, §§ 15-25, p. 6-8.; e/CN.4/1999/ w g . 18/2, 27 July 1999, Study on the current State o f progress in the implernentation o f the right to development submitted by Mr. Arjun Sengupta, independent expert, pursuant to Commission Resolution 1998/72 and General Assernbly Resolution 53/155, §§ 36-56. p. 9-14.

17 SENGUPTA, A. Op. cit., June 2000. p. 565-6. Apesar de não constar na Decla­ração sobre direito ao desenvolvimento, deve-se considerar entre os elementos do con­teúdo do direito ao desenvolvimento a sustentabilidade, nos termos em que foi afir­mada na Declaração sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio, 1992).

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sumário de um conjunto de direitos.18 É o direito a um processo que expande as capacidades ou liberdade dos indivíduos de melhorar seu bem-estar e de realizar o que eles valorizam. Para esclarecer sua posição, Sengupta ilustrou o conceito de desenvolvimento como m e­lhorias em um vetor de direitos humanos, que ilustra as condições para sua realização. Esse vetor é composto por direitos hum anos econômicos, sociais e culturais, assim como direitos civis e políticos, e taxas de crescimento do Produto Nacional Bruto ( p n b ) e outros recursos institucionais, técnicos e financeiros, que permitam pro­gressos no bem-estar de toda a população e a realização sustentada dos direitos hum anos.19 Para admitir a posição que o perito conce­de aos recursos no vetor do direito ao desenvolvimento, deve-se entender que a sua proposta se relaciona ao momento de implemen­tação do direito, e não à conceituação.

Há duas implicações decorrentes da consideração do desenvol­vimento como um processo integrado: (1) a realização de todos os direitos, separada ou juntamente, deve ser baseada em programas de

18 Como elementos constituintes do direito ao desenvolvimento, cada direito hum ano deve ser realizado de maneira que leve em conta sua interdependência com todos os outros direitos humanos, de forma a não obstaculizar a realização de outros direitos e não ignorar as exigências de sustentabilidade do processo de realização de todos os direitos.

19 A utilização da representação simbólica do vetor foi uma tentativa de conceder sentido econômico à linguagem jurídica e política da Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento, e de repensar o processo de desenvolvimento. Para a representação,na qual o vetor foi definido simbolicamente por Rh = (g, R /, R2 .... R/z), com o direitoao desenvolvimento Rh consistindo em uma relação entre crescimento do p n b ge a rea­lização de n direitos humanos, ver: MARKS, S. P. The Human Rights Framework for Development: Five Approaches. Paper of talk delivered at the UNDP-Sponsored Second Global Forum on World Development, Rio de Janeiro, Brazil, 9-10 October 2000, p. 9. Disponível em: <URL: http://www.hsph.harvard.edu/fxbcenter>. Assim, mesmo se esse crescimento econômico com justiça, eqüidade e observação aos direitos humanos não for incluído no vetor ilustrativo do direito ao desenvolvimento devido a sua natureza, a importância desses recursos, assim considerados, permanece imensa, uma vez que os mesmos afetam todos os direitos humanos, ainda mais se considerados na perspectiva da interdependência. SENGUPTA, A. “On the Theory and Practice of the Right to Development”. In: Human Rights Quarterly. v. 24, 2002. p. 871.

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desenvolvimento amplos, com utilização de todos os recursos, tec­nologias e finanças, por meio de políticas nacionais e internacionais; e (2) a realização dos direitos hum anos é o objetivo dos programas, e os recursos e as políticas relativas a tecnologia, finanças e arranjos institucionais são os instrumentos para atingir esse objetivo. Por isso, para o perito, é necessário incluir o crescimento dos recursos (tais como o PNB, tecnologias e instituições) como elemento integral no vetor de direitos hum anos que constitui o direito ao desenvolvi­mento, o que é implícito na linguagem dos Pactos Internacionais de Direitos Humanos e da Declaração Universal dos Direitos do H o­mem, que se referem ao progresso contínuo do bem-estar ou das condições de vida.20

Os resultados do desenvolvimento são a realização dos diferen­tes direitos humanos, e os meios como eles são realizados consti­tuem o processo de desenvolvimento, o qual deve ser caracterizado por: transparência, responsabilidade, eqüidade, não-discriminação, redução das desigualdades e sustentabilidade. Os resultados do p ro ­cesso de desenvolvimento são a realização conjunta dos direitos humanos, e o processo de desenvolvimento que conduz a esses resultados também é um direito humano. Portanto, o processo de desenvolvimento engloba um program a de políticas e contínua realização dos direitos hum anos, e os recursos para sua realização são gradualm ente obtidos por meio do crescimento econômico de maneira consistente com as normas de direitos humanos. Nesse sen­tido, a caracterização do crescimento econômico deriva não apenas de seu papel instrumental para o direito ao desenvolvimento, mas tam bém de seu papel substantivo.

2ü Essa consideração gera reflexos na concepção de mecanismos de m onitora­mento internacional da implementação do direito ao desenvolvimento. Nos estudos realizados na o n u , as propostas compreendem o trabalho conjunto entre os dois comi­tês acerca dos pactos internacionais de direitos humanos e o exame dos avanços de crescimento e desenvolvimento tecnológico e institucional etc. (recursos em senti­do amplo) por meio da criação de um comitê internacional, especialmente voltado ao direito ao desenvolvimento, incumbido de tecer recomendações baseadas no consen­so internacional.

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A definição do direito ao desenvolvimento como direito a um processo particular apresenta traços da teoria de metadireitos de Sen (um metadireito a x pode ser definido como o direito a ter políticas p (x) que têm como objetivo tornar o direito a x realizável, ou seja, um metadireito a x se concentra não na realização de x, mas na busca de políticas que permitirão que x se torne alcançável no futu­ro)21, bem como da teoria dos direitos básicos de Henry Shue22. Ambas teorias são comprometidas com a melhora da condição h u ­mana e constituem, de certa forma, uma crítica e uma indicação ao Direito como instrumento não apenas de declaração ou positivação dos direitos humanos, mas também de garantia da realização des­ses direitos. Nesse aspecto, as políticas para tornar os direitos hum a­nos realizáveis se tornam o objeto do direito ao desenvolvimento e podem ser, assim, encaradas como obrigações a serem cumpridas pelos titulares de deveres deste direito, notadamente os indivíduos e os Estados em níveis nacional e internacional, atuando individual ou conjuntamente, o que permite indicar também a sociedade inter­nacional.23

21 SEN, A. “The right not to be hungry”. In: ALSTON, P. & TOMASEVSKI, K. (eds.). The Right to Food. International Studies in Human Rights. Netherlands Institu- te of Hum an Rights (sim ). Utrecht: M artinus Nijhoff Publishers, 1984. p. 69-82.

22 Na teoria de Henry Shue, um direito básico é aquele cujo gozo é essencial parao gozo de todos os outros direitos. Ele não é necessariamente superior ou preferível em relação a outros direitos. Mas, se as pessoas devem ser capazes de realizar ou exercitar outros direitos, os direitos básicos precisam ser estabelecidos com segurança antes que os outros direitos possam ser assegurados. Além disso, quando um direito é básico, qualquer tentativa de realizar outro direito pelo sacrifício do direito básico afetaria negativamente a própria realização do direito que objetiva. O direito a um processo de desenvolvimento pode ser, neste sentido, descrito como básico em relação a todos os outros direitos. Sem sua realização, nenhum outro direito pode ser realizado efetiva­mente e de maneira sustentada. SHUE, H. Basic rights: subsistence, affluencey and us Foreign Folicy. Second Edition. Princeton, Princeton University Press, 1980. principal­mente p. 18-20.

23 A discussão acerca dos sujeitos do direito ao desenvolvimento é polêmica, des­viando-se do escopo deste artigo. Para uma abordagem didática a respeito do assunto, ver: ESPIELL, H. G. “ l he Right to Development as a Human Right”. In: CLAUDE, R. P. 8c WESTON, B. H. (eds.). Human Rights in the World Community: Issues and Action. Second Edition. Philadelphia: University o f Pennsylvania Press, 1992. p. 167-75.

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F I N A N C I A M E N T O I N T E R N A C I O N A L D O D E S E N V O L V I M E N T O

Em linha com a anterior caracterização do crescimento eco­nômico, ilum inada por essas teorias, pode-se reforçar que o fi­nanciamento do desenvolvimento possui papel fundamental para implementação dos direitos humanos. Ele é um dos elementos cons­titutivos do vetor ilustrativo do direito ao desenvolvimento e , con­forme a proposta de Sengupta, consubstancia uma esfera das políticas nacionais e internacionais. Essas políticas demandam um ambiente acima de tudo democrático capaz de refletir na sua con­cretização e institucionalização por meio do Direito, que, como enfatiza Perrone Moisés, deve buscar a justiça.24

Nos relatórios do perito independente, a cooperação internacio­nal apresenta duas esferas não excludentes: (1) os arranjos bilaterais ou específicos por país; e (2) os arranjos concebidos e executados, internacionalmente, em um processo multilateral, no qual todos os países desenvolvidos, agências multilaterais e instituições interna­cionais participem para prover facilidades, às quais todos os países em desenvolvimento possam ter acesso.25 Há que se ter em mente que a assistência e a cooperação da sociedade internacional são necessárias não somente como panacéias na forma de transferência de recursos para suplementar os recursos domésticos dos países em desenvolvimento; mas, sobretudo, para implementar as mudanças

24 “O Direito deve buscar a justiça. O Direito Internacional, a justiça internacio­nal. O Direito Internacional Econômico, um a ordem econômica justa. ( . ..) A ordem, tal como se apresenta, é um obstáculo à realização dos direitos humanos; por outro lado, os direitos humanos podem constituir uma ferramenta para transformação des­ta ordem”. MOISÉS, C. P. Direito ao desenvolvimento e investimentos estrangeiros. São Paulo, Oliveira Mendes, 1998. p. xvii-xvm e 97.

25 As seguintes facilidades multilaterais foram destacadas, com intuito ilustrativo, pelo perito: ( I ) ajuste estrutural e concessão de financiamento pelas instituições finan­ceiras internacionais; (2) programas de acesso a mercados na órbita multilateral da OMC; (3) reestruturação do sistema financeiro internacional para resolver os proble­mas de fluxos financeiros inadequados e instáveis aos países em desenvolvimento; (4) redução do protecionismo nos países desenvolvidos; (5) comércio de commodities. Todas essas questões devem ser revisadas a fim de guiar as obrigações de cooperação internacional dos Estados na busca de realizar o direito ao desenvolvimento, de m odo transparente, não discriminatório, eqüitativo, participativo no que respeita ao proces­so decisório e à divisão dos benefícios.

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D I R E I T O I N T E R N A C I O N A L E D E S E N V O L V I M E N T O

nas instituições e regras de operação da economia internacional para permitir a esses países participar e gozar, por exemplo, de bene­fícios das transações comerciais internacionais, dos fluxos financei­ros, da transferência de tecnologias e dos avanços nas comunicações.

Como afirmou Sengupta:

Todo o movimento dos direitos humanos fundou-se no trata­mento igual de todos os seres humanos, na igualdade de oportuni­dades e na demanda por justiça. O movimento de formulação do direito ao desenvolvimento também foi motivado inicialmente para criar uma ordem econômica internacional mais igualitária. A divisão Norte-Sul dos anos 1970 e 1980 provavelmente perdeu hoje muito de sua relevância, o que demanda um repensar subs­tancial sobre a nova ordem econômica internacional. No entanto, a aspiração de realizar eqüidade e justiça social permanece como motivação fundamental de todos os direitos humanos e não pode ser separada de qualquer programa para a realização do direito ao desenvolvimento.26

2. A ABORDAGEM DO DIREITO AO DESENVOLVIMENTO EM RELAÇÃO À COOPERAÇÃO INTERNACIONAL PARA DESENVOLVIMENTO E SUA OPERACIONALIZAÇÃO

O p e r i t o i n d e p e n d e n t e d a ONU e s t i p u lo u u m e s q u e m a p a r a r e a l i ­

z a ç ã o p ro g re s s iv a , im p l íc i t a n o c o n c e i to d e d i r e i t o a o d e s e n v o l v im e n ­

to , q u e c o n s is te e s s e n c ia lm e n te n a a d o ç ã o p o r p a ís e s e m d e s e n v o lv i ­

m e n t o d e p r o g r a m a s n a c io n a i s d e d e s e n v o lv im e n to , c o m a e le ição d e ,

26 Doc. ONU: a/55/306, 17 August 2000, Right to development, note by the Secre- tary-General, the report o f tlie independent expert on the right to development, Arjun Sengupta, pursuant to General Assembly Resolution 54/175 and Commission on Human Rights Resolution 2000/5, § 17, p. 6. Tradução livre da autora.

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por exemplo, metas de erradicação de pobreza, ou com adoção das Metas de Desenvolvimento do Milênio.27 O intuito é manter uma certa limitação no número de direitos selecionados como alvos nos programas para que resultados concretos sejam auferidos. Além disso, ao se estipular metas, a avaliação adequada dos progressos se torna mais viável. De modo ilustrativo, a proposta, influenciada pela teoria dos direitos básicos de Shue, englobou os direitos à alimentação, à saúde e à educação primária, por serem direitos intimamente relacio­nados ao direito à vida e já fazerem parte de algumas atividades exis­tentes no seio de certas instituições internacionais. Não obstante essa ilustração, não há nenhum a razão que impeça o Estado de escolher outros direitos. Ainda nesse particular, deve-se ter em mente que a pobreza, além da dimensão da renda, compreende a dimensão das capacidades, como explica Sen.

A referência à representação simbólica do direito ao desenvolvi­mento como um vetor lembra que não deve haver redução em ne­nhum dos indicadores de direitos humanos. A realização de todos os direitos humanos de maneira inter-relacionada demanda recursos adicionais, o que deve ser refletido na cooperação internacional, no contexto da operacionalização dos programas de desenvolvimento.

27 Os comentários neste tópico foram feitos com base nos seguintes documentos da ONU: a /5 5 /3 0 6 , 17 August 2000, Right to Development, note by the Secretary-General: The Secretary-General has the honour to transmit to the General Assetnbly the report o f the independent expert on the right to development, Arjun Sengupta, pursuant to General Assetnbly Resolution 54/175 and Commission on Human Rights Resolution 2000/5; e /cn .4 /2 0 0 1 /w g .1 8 /2 , 2 January 2001, Third report o f the independent expert on the right to development, Mr. Arjun Sengupta, submitted in accordance with Commission Resolu­tion 2000/5.; e E/CN.4/RES/2001/9, 18 April 2001, The right to development, Commission on Human Rights Resolution 2001/9. e /cn .4 /2 0 0 2 /w g .1 8 /2 , 20 December 2001, Fourth report o f the independent expert on the right to development, Mr. Arjun Sengupta, submit­ted in accordance with Commission Resolution 2001/9. Para detalhes acerca da proposta, sugere-se a consulta dos mesmos. Sobre a erradicação da pobreza e a implementação do direito ao desenvolvimento, ver: Doc. ONU: a /5 5 /3 0 6 , 17 August 2000, Right to deve­lopment> note by the Secretary-General, The report o f the independent expert on the right to development, Arjun Sengupta, pursuant to General Assetnbly Resolution 54/175 and Commission on Human Rights Resolution 2000/5, % 39-63, p. 11-18.; SEN, A. Desen­volvimento como liberdade. Trad. de Laura Teixeira Motta. São Paulo, Companhia das Letras, 2000.

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Na proposta do perito, os pactos para desenvolvimento constituem o mecanismo para assegurar a reciprocidade entre as obrigações dos países em desenvolvimento para implementação dos progra­mas de desenvolvimento e as obrigações da sociedade internacional de cooperar na implementação destes programas.

Essa proposta se inspira na idéia de pacto, apresentada pelo m i­nistro norueguês, Stoltenberg, no final da década de 1980 e, poste­riormente, aprimorada por economistas desenvolvimentistas. Desde então, essa idéia ganhou terreno no seio do Programa das Nações Unidas para Desenvolvimento (Pnud), especificamente na conside­ração dos relatórios sobre desenvolvimento hum ano, com a in ten ­ção de se apoiar programas a serem implementados pelos países em desenvolvimento, em conform idade com um a seqüência de po lí­ticas e compromissos de concessão de assistência, em termos de financiamento e acesso a mercados, bem como outras políticas a serem adotadas pelos países e instituições internacionais financeiras prestadoras de assistência ou envolvidas na cooperação, para con­ceder suporte aos esforços dos países em desenvolvimento.28

O propósito dos pactos é garantir aos países em desenvolvimento que, se eles cumprirem suas obrigações, o programa para realizar o direito ao desenvolvimento não será interrompido em razão da au ­sência de financiamento.29 Nesse aspecto, é imperativo que quaisquer

28 SENGUPTA, A. “On the Theory and Practice of the Right to Development Op. cit., p. 881-2.

29 Sobre os resultados das reuniões realizadas entre o perito independente e a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico ( o c d e ) , o FMI, o BM e os governos do Reino Unido, dos Estados Unidos e dos Países Baixos, a respeito da opera- cionalização dos pactos para desenvolvimento, ver Doc. o n u : E/CN.4/2002/\vG.18/2/Add. 1, February 2002, Addendum to the fourth report o f the independem expert on the right to development, Mr. Arjun Sengupta, submitted in accordance xvith Commission Resolution 2001/9; Mission to the OECD, the United Kingdom, the International Monetary Fund, the World Bank, the United States o f America, and the Netherlands. Na Resolução 2.002/69, de 22 de abril de 2002, a Comissão de Direitos Humanos solicitou ao perito independente que efetuasse estudos específicos de países relevantes ao modelo operacional de pacto de desenvolvimento proposto, levando em conta os diferentes esquemas nacionais, regionais e internacionais. Os estudos abrangeram Brasil, A rgentina e Chile. Doc. ONU: E/CN.4/RES/2002/69, 22 April 2002, The right to development, Commission on Human Rights Resolution 2002/69, § 21. Alguns instrumentos de cooperação para o

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condicionalidades ou obrigações a serem cumpridas pelos países em desenvolvimento sejam compatíveis com seus interesses, aprovadas e monitoradas por eles próprios. As obrigações concernentes à rea­lização dos direitos humanos devem ser ressaltadas, e o esquema de monitoramento prevê o estabelecimento em cada país de uma co­missão nacional de direitos humanos. A obrigação da sociedade internacional deve, também, ser estabelecida no esquema dos pactos. As instituições internacionais ou os países doadores de recursos de­vem assegurar que todos os obstáculos ao acesso a comércio e finan­ças sejam removidos e que o custo de implementação do direito ao desenvolvimento seja partilhado de m odo adequado. Além disso, a proposta do perito inclui a criação de um Fundo para Financiamen­to dos Pactos de Desenvolvimento com contribuições dos membros do Comitê de Assistência ao Desenvolvimento ( c a d ) da Organiza­ção para Cooperação e Desenvolvimento Econômico ( o c d e ) 30.

Sem desmerecer os possíveis resultados positivos dos pactos, é forçoso recordar as posições divergentes entre países em desenvolvi­mento e países desenvolvidos na consulta acerca do direito ao desen­volvimento promovida em 1990 pela o n u , posto que não há uma

desenvolvimento foram analisados pela Comissão, tendo como propósito alterações na sua operacionalização com base nesta proposta do direito ao desenvolvimento. Pa­ra este estudo que incluiu o New Partnership for África s Development (Organização para Unidade Africana, 2001) e os esquemas do BM, do FMI e da ONU (Comprehensive Deve­lopment Frameworky Poverty Reduction Strategy Papersy Common Country Assessment e United Nations Development Assistance Framework) ver: Doc. o n u : ECN.4/2002/wg. 18.6,18 September 2002, Fifth report o f the independent expert on the right to development, Mr. Arjun Sengupta, submitted in accordance with Commission Resolution 2002/69: Fra- meworksfor development cooperation and the right to development.

30 O perito considerou, também, que poderia ser útil o estabelecimento de um fórum sob os auspícios da Comissão de Direitos Humanos da o n u o u um grupo de apoio para discutir os problemas enfrentados no processo de realização do direito ao desenvolvimento e possíveis medidas para alcançá-la, composto por representantes governamentais, instituições internacionais e o c a d . Como a Declaração sobre o Direi­to ao Desenvolvimento não tem a natureza de um tratado internacional, esse fórum não teria o status de mecanismo convencional e suas recomendações não seriam man- datórias. As diversas partes envolvidas, decidindo por consenso, poderiam tecer reco­mendações a fim de mobilizar os recursos para a implementação do direito ao desen­volvimento.

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consideração global da ordem internacional e abre-se o risco de criar novas relações de dependência. Não obstante as constantes res­salvas feitas pelo perito de não limitação à questão de erradicação de pobreza e da não imposição de condicionalidades, deve-se atentar para os perigos envolvidos nessa proposta, ou seja, destacar o risco de regressão à questão das necessidades básicas dos seres hum anos e de abandono da preocupação com as implicações do sistema inter­nacional no gozo dos direitos humanos. Os pactos limitam-se a m e­didas avençadas bilateralmente e não questionam os problemas estru­turais do sistema internacional.31

A noção de desenvolvimento como um processo que permite mudanças positivas em um Estado não se iguala à implementação do direito ao desenvolvimento. Esse ú ltim o inclui um im p o r ta n ­te fator que é a dimensão internacional. O pacto para desenvolvi­m ento não deve ser confundido com a implementação do direito ao desenvolvimento, o que não significa dizer que a elaboração do pacto não possa ser importante. Porém, ele não captura a totalida­de da dimensão internacional do direito ao desenvolvimento. Essa dimensão abrange, além da assistência ao desenvolvimento (bila­teral ou multilateral), a criação de um ambiente internacional favo­rável à implementação do direito ao desenvolvimento. A assistência ao desenvolvimento não pode substituir a ação multilateral para estabelecer um a ordem internacional justa e democrática.

31 Doc. ONU: f./c n .4/2002/28, 20 March 2002, Right to development, report o f the open-ended Working Group on the Right to Development on its third session (Getieva, 25 February - 8 March 2002), § 52. p. 19-20. Os pactos possuem potencial para m anuten­ção dos problemas verificados em programas tradicionais de assistência ao desenvol­vimento. Há necessidade de uma seleção de Estados e, salvo para o caso dos deno­minados “países de menor desenvolvimento relativo”, não há consenso sobre critérios de determinação dos “países em desenvolvimento” no âmbito internacional. Por sua vez, o peso da vontade política dos Estados é extremamente forte, o que deixa margem à não observância dos compromissos ou à imposição de determinadas condicionali­dades em razão da diferença de poder de negociação entre as partes. Exigiriam-se, pois, consideração prévia e estipulação detalhada de parâmetros, critérios e obrigações a ambas as partes.

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Tendo em mente esse elemento fundamental da dimensão inter­nacional do direito ao desenvolvimento, os tópicos seguintes procu­raram analisar, em um a perspectiva mais ampla, o reflexo dos princípios do direito ao desenvolvimento e de sua força emancipa- tória na consideração do financiamento do desenvolvimento pela sociedade internacional.

3. OS PRIMEIROS PASSOS NA BUSCA DE UM CONSENSO UNIVERSAL NA ESFERA DO FINANCIAMENTO INTERNACIONAL DO DESENVOLVIMENTO

3.1. OS RESULTADOS DA CONFERÊNCIA DO MILÊNIO E O OBJETIVO DE REALIZAÇÃO DO DIREITO AO DESENVOLVIMENTO

A Declaração do Milênio foi adotada pela Assembléia Geral da ONU por meio da sua Resolução n. 55/2, em 18 de setembro de 200032, no contexto do reconhecimento de uma responsabilidade co­letiva dos Estados-membros de implementar os princípios de dig­nidade hum ana, igualdade e eqüidade, globalmente, levando em conta as gerações presente e futuras. Os Estados-membros reafirma­ram seu compromisso com: (1) os propósitos e princípios da Carta da o n u ; (2) a manutenção da igualdade soberana de todos os Esta­dos; (3) o respeito pela sua integridade territorial e independência política; (4) a resolução de disputas por meios pacíficos e em con­formidade com o Direito Internacional; (5) o direito à autodetermi­nação dos povos; (6) a não interferência nos assuntos internos dos

32 A Declaração do Milênio foi adotada pelos 189 membros da ONU (2000), que se tornaram 191, após a entrada da Suíça e de Timor Leste. Doc. ONU: à /re s /5 5 /2 , 18 September 2000. Resolution adopted by the General Assetnbly 55/2 United Nations Mil- lennium Declaration. Para um a análise integral do texto da declaração, sugere-se a lei­tura do mencionado documento.

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Estados; (7) o respeito aos direitos humanos e liberdades fundamen­tais; e (8) a cooperação internacional na solução dos problemas inter­nacionais de caráter econômico, social, cultural e humanitário.

Os resultados alcançados na Conferência e formalizados na Declaração do Milênio partiram da constatação de que o desafio central enfrentado pela comunidade internacional é assegurar que a globalização se torne um a força positiva para todos os povos do mundo. Esse fenômeno tem beneficiado a poucos e impõe dificul­dades substanciais aos países em desenvolvimento, o que demanda políticas internacionais correspondentes às necessidades desses paí­ses e formuladas com sua efetiva participação. Em termos gerais, devem ser ressaltados os compromissos relativos à criação de um ambiente conducente ao desenvolvimento e à eliminação da pobre­za, em níveis nacional e global; e os esforços para promover boa governança e democracia, fortalecer o prim ado do Direito e respei­tar todos os direitos hum anos e liberdades fundamentais universal­mente reconhecidos, incluindo o direito ao desenvolvimento. Deve- se enfatizar, também, o compromisso exarado de tornar o direito ao desenvolvimento uma realidade para cada ser humano.

Os valores fundamentais, considerados na declaração como es­senciais às relações internacionais no século xxi, compreendem:

Liberdade (homens e mulheres têm o direito de viver suas vidas e criar suas crianças em dignidade, livres da fome e do medo da violência, opressão ou injustiça; e governança democrática e par­ticipativa, baseada na vontade do povo, melhor assegura esses direitos);Igualdade (nenhum indivíduo e nenhuma nação devem ser pri­vados da oportunidade de se beneficiarem do desenvolvimento); Solidariedade (os desafios globais devem ser gerenciados de ma­neira que se distribuam os custos e encargos justamente, de acordo com os princípios básicos de eqüidade e justiça social. Aqueles que sofrem ou que menos se beneficiam merecem a ajuda da­queles que mais se beneficiam);Tolerância (os seres humanos precisam respeitar uns aos outros, em toda sua diversidade de crença, cultura e línguas. As diferen­

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ças nas e entre as sociedades não devem ser temidas ou reprimidas, mas sim enaltecidas como um ativo precioso da humanidade. Uma cultura de paz e diálogo entre as civilizações deve ser ativa­mente promovida);Respeito pela natureza (prudência deve ser mostrada no gerencia­mento de todas as espécies vivas e recursos naturais, de acordo com os preceitos do desenvolvimento sustentável. Somente dessa forma, as riquezas imensuráveis disponibilizadas a nós pela natu­reza podem ser preservadas e passadas a nossos descendentes. As insustentáveis estruturas correntes de produção e consumo pre­cisam mudar no interesse de nosso bem-estar futuro e de nossos descendentes); e, por fim,Responsabilidades partilhadas (a responsabilidade pelo gerencia­mento do desenvolvimento social e econômico mundial, assim como pelas ameaças à paz e segurança internacionais precisa ser dividida entre os Estados do mundo e deve ser exercida multila- teralmente. A o n u , como a organização mais universal e mais re­presentativa no mundo, deve ter um papel central).13

Para traduzir esses valores em ações concretas foram identifica­dos objetivos cruciais nas seguintes áreas: (1) paz; (2) segurança e desarmamento; (3) desenvolvimento e erradicação da pobreza; (4) proteção do meio ambiente; (5) direitos humanos; (6) democracia e boa governança; proteção dos vulneráveis; (7) necessidades especiais da África; e (8) fortalecimento da o n u . Por sua vez, os objetivos foram especificados nas denominadas Metas de Desenvolvimento do Milênio3'1, que são, na verdade, resultantes do aprimoramento das

33 Tradução livre da autora34 Como forma de esclarecer a questão de fins (valores), objetivos e metas é inte­

ressante recordar as considerações de Fábio Nusdeo, no contexto da política econômi­ca e seus fins. Os fins seriam expressões ainda genéricas e vagas de preferências da sociedade, politicamente manifestadas, em conceitos mais operacionais e tecnicamen­te trabalháveis. “Assim, o fim vago de progresso pode ser traduzido no conceito mais técnico de desenvolvimento econômico, quando então diz-se que ele fim, converteu- se em um objetivo. O mesmo quanto ao desejo de justiça que o especialista procurará associar a um dado padrão de distribuição de renda. Finalmente, quando possível, ao objetivo pode ser imposto um valor quantitativo e aí ele se transforma numa meta.

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metas de Desenvolvimento Internacional, adotadas no contexto do CA D da o c d e , fato este que fomenta alguns questionamentos na sociedade internacional. As Metas do Milênio compreendem: (1) erradicação da pobreza extrema e da fome; (2) educação primária universal; (3) promoção da igualdade de gênero e fortalecimento das mulheres; (4) redução da mortalidade infantil; (5) melhora da saúde materna; (6) combate a Hiv/Aids, malária e outras doenças; (7) sustentabilidade ambiental; e (8) criação de uma parceria global para desenvolvimento, que englobe um sistema comercial e finan­ceiro mais aberto, baseado em normas, previsível, não discriminató­rio, em níveis nacional e internacional, e atenção especial às necessi­dades dos países em desenvolvimento.35

A relevância do financiamento do desenvolvimento para a im ­plementação das Metas do Milênio foi destacada. Compromissos foram assumidos, por exemplo, em relação a Ajuda Oficial ao Desenvolvi­m ento ( a o d ) , concessão de acesso a mercados aos produtos dos paí­ses em desenvolvimento, questões relativas à dívida externa, matérias relacionadas a problemáticas farmacêuticas e outros p ro­gramas de assistência, com especial menção à situação da África. Não obstante as referências e os compromissos acerca do financia­mento, o desafio de assegurar que os recursos sejam utilizados de forma apropriada, eficiente e eqüitativa para satisfazer as necessida­

Esquematicamente, evolui-se da maior generalidade para a maior especificidade, como se vê: f im —» OBJETIVO —» M ETA”. NUSDEO, F. Curso de economia: introdução ao direito econômico. São Paulo, r t , 3. ed., 2001. p. 169.

■*5 O intuito das metas e dos indicadores utilizados é especificar as obrigações dos Estados cm âmbito internacional e nacional quanto ao desenvolvimento. Um estudo esclarecedor acerca das Metas do Milênio pode ser encontrado em: FAURE, J.-C. The dac Journal. Development Cooperation, 2001 Report. International Development. Paris, o e c d 2002, v. 33, n. 1. Especificamente sobre indicadores consultar: Pnud Human Development Report 2001y M aking new technologies work for human development, Tech- nical note 3, Assessing progress towards the Millennium Declaration goals for develop­ment and poverty eradication. UNDP, New York. p. 247. Para verificar avanços e especi­ficações desses compromissos ver Doc. ONU: A/56/326, 6 September 2001, Road map towards the implementation o f the United Nations Millennium Declaration, Report o f the Secretary-General, §§ 262-302, p. 46-52; ou disponível em: <URL: http:// www.un.org/ millenniumgoals/index.hmtl>.

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des de todos os indivíduos em todas as partes do m undo foi consi­derado pela sociedade internacional em uma conferência da o n u em Monterrey em 2002, voltada ao financiamento internacional do desenvolvimento.36 Desse modo, alcançado o consenso no que con­cerne aos princípios, objetivos e metas de desenvolvimento, to r­nou-se urgente um exame mais apurado dos meios de implemen­tação, entre os quais é determinante o financiamento.

3.2. O CONSENSO DE MONTERREY:OS RESULTADOS DA CONFERÊNCIA INTERNACIONAL SOBRE FINANCIAMENTO DO DESENVOLVIMENTO (2002)

O documento final da Conferência Internacional sobre o Finan­ciamento do Desenvolvimento (2002)37 com preende o Consenso de Monterrey acerca de uma resposta mundial para os problemas de financiamento do desenvolvimento, principalmente em relação aos países em desenvolvimento, formulada em 73 parágrafos, divididos em três partes: I. Como fazer frente aos problemas do financiamento para o desenvolvimento; II. Principais medidas; e III. Manutenção do compromisso. Seus objetivos incluem a erradicação da pobreza, o

36 Conforme ressalta Oscar Rojas, os esforços relativos à realização de um a con­ferência acerca do tema do financiamento iniciaram-se na Assembléia Geral em 1997, após as crises financeiras na Ásia e na América Latina e, também, em razão das preo­cupações acerca dos impactos negativos da globalização. A iniciativa deve ser vista, ainda, no contexto de que a busca de desenvolvimento é inseparável da busca da paz. Consoante Rojas, a consideração holística do desenvolvimento alcançou a perspectiva do financiamento. A Conferência Internacional sobre o Financiamento do Desenvol­vimento pode ser considerada uma oportunidade de conceder maior especificidade e conteúdo aos princípios e metas estipulados na Declaração do Milênio. ROJAS, O. R. “The International Conference 011 Financing for Development”. In; FRANCO, A. (ed.). Financing for Development in Latin America and the Caribbean. Tokyo, New York, Paris, The UNU Press, 2001. p. 7-12.

37 Doc. ONU: a /CO NF. 198/3, 1.° de marzo de 2002, Documento final de la Conferen- cia Internacional sobre la Finaneiación para el Desarrollo, Monterrey (MéxicoJ, 18 a 22 de marzo de 2002y Note dei Secretario General.

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crescimento econômico sustentado e a promoção do desenvolvimen­to sustentável, à medida que se avança rum o a um sistema econômi­co mundial, baseado na eqüidade e com a participação de todos.

Consoante o escopo do Consenso de Monterrey, os problemas de financiamento englobam as preocupações com a redução do volume dos recursos disponíveis para o alcance das metas de desenvolvimen­to acordadas internacionalmente, inclusive as fixadas pela Declara­ção do Milênio. Assim, a mobilização e a utilização de recursos finan­ceiros e a criação, em níveis nacional e internacional, das condições econômicas necessárias para se atingir as metas de desenvolvimento foram considerados como os primeiros passos para assegurar que o século xxi seja o século do desenvolvimento para todos. O docum en­to faz uma única referência expressa relativa aos direitos humanos, incluindo o direito ao desenvolvimento, no § 11.

Essa referência, não apenas por ser única, merece reflexão. O § 11 está inserido na Parte II que trata das medidas principais, es­pecialmente no tópico sobre mobilização de recursos financeiros nacionais para o desenvolvimento. O fragmento arrola como indis­pensável a um desenvolvimento sustentável a boa gestão dos assuntos públicos, e indica a aplicação de políticas econômicas ra ­cionais, a existência de instituições democráticas sólidas que respon­dam as necessidades da população e o melhoramento da infraestru- tura como constituintes da base de um crescimento econômico sustentado, da eliminação da pobreza e da criação de postos de tra ­balho. Na seqüência, o respeito aos direitos hum anos é mencionado como condição essencial ao desenvolvimento, ao lado de outras con­dições que se reforçariam reciprocamente, a saber: liberdade, paz, segurança, estabilidade interna, Estado de Direito, igualdade de gê­neros, compromisso de criar sociedades justas e democráticas e polí­ticas com orientação de mercado.

A eleição desta última condição (políticas com orientação de mercado) deve ser criticada quando se sabe que o modelo desenvol- vimentista pautado por resultados (eficiência) é controverso pelo testemunho da realidade de desigualdades no m undo, e enfrenta críticas no seio da teoria macroeconômica pela consideração da

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necessidade de uma revisão ética do conceito de racionalidade eco­nômica. Contudo, não se deve ignorar a relevância das várias m en­ções às Metas do Milênio e sua relação com os direitos humanos, especialmente o direito ao desenvolvimento, conforme abordado no item anterior (3.1). A referência às metas desenvolvimentistas da Declaração do Milênio deve iluminar a interpretação do docum en­to na medida em que este assume claramente a preocupação com o cum prim ento destas metas.

A análise do documento de Monterrey permite constatar o reco­nhecimento de que, não obstante a afirmação de que cada país é o principal responsável pelo seu próprio desenvolvimento econômico e social e da conseqüente importância das políticas e estratégias nacionais, as economias nacionais estão inter-relacionadas com o sistema econômico mundial. As oportunidades de comércio e inves­timentos são fundamentais para a ajuda aos países em sua luta con­tra a pobreza. Portanto, os esforços nacionais de desenvolvimento devem ser complementados por um ambiente internacional econô­mico favorável. Diante disso, em uma economia mundial cada vez mais interdependente, é indispensável adotar um enfoque integral em relação aos problemas nacionais, internacionais e sistêmicos de financiamento do desenvolvimento, relacionados entre si.

Nessas circunstâncias, os participantes da conferência reconhe­ceram que a paz e o desenvolvimento se reforçam mutuam ente e decididos a defender e respeitar a Carta da ONU e apoiando-se nos valores da Declaração do Milênio, comprometeram-se a promover sistemas econômicos, em âmbito nacional e internacional, baseados nos princípios de justiça, eqüidade, democracia, participação, trans­parência, responsabilidade e inclusão, e a unir forças no marco de um multilateralismo dinâmico para promover um a visão com um de um futuro melhor. Por fim, reconheceu-se que o sucesso no al­cance das metas de desenvolvimento exige uma nova aliança entre os países desenvolvidos e os países em desenvolvimento.

Os participantes assumiram também compromissos acerca de medidas, declarados com base nos seguintes temas: (1) mobilização de recursos financeiros nacionais para o desenvolvimento; (2) mobi­

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lização de recursos internacionais para o desenvolvimento (investi­mento direto estrangeiro e outros fluxos de capitais privados); (3) aumento da cooperação internacional financeira e técnica para o de­senvolvimento, destacando-se o papel e a relevância da a o d 38; (4) dívi­da externa; (5) comércio internacional como promotor do desenvol­vimento39; e (6) tratamento de questões sistêmicas por meio do fomento da coerência e da coesão dos sistemas internacionais mone­tários, financeiros e comerciais em apoio ao desenvolvimento.

Em especial este último tema possui uma substancial carga de crítica à atual ordem internacional e indica os parâmetros para sua reforma. Ressaltou-se a urgência da necessidade de se fomentar a coerência, a boa gestão e a coesão dos sistemas internacionais m one­tários, financeiros e comerciais, de fortalecimento do papel da ONU

no contexto do desenvolvimento e na promoção de coordenação das políticas e programas de outras instituições internacionais, bem como de coerência, em níveis operacional e internacional, para se alcançar as Metas de Desenvolvimento do Milênio. Nos termos do Consenso de Monterrey, é preciso, pois, uma reforma da arquitetura interna­cional financeira, que se proceda com transparência e participação ativa dos países em desenvolvimento, a fim de aum entar o financia­mento do desenvolvimento e promover a erradicação da pobreza.

A r e v i t a l i z a ç ã o d o s i s t e m a d a ONU fo i c l a r a m e n t e c o n s i d e r a d a

c o m o u m a q u e s t ã o p r i o r i t á r i a c o m i m p o r t â n c i a f u n d a m e n t a l n a

p r o m o ç ã o d a c o o p e r a ç ã o i n t e r n a c i o n a l e m p r o l d o d e s e n v o l v i m e n ­

t o e n o e s t a b e l e c i m e n t o d e u m s i s t e m a e c o n ô m i c o m u n d i a l q u e b e ­

38 Para um panorama acerca da situação atual da AOD ver: FAURE, J.-C. The /MC

Journal. Development Cooperation. In: OECD 2001 Report International Development. v. 33, n .l. Paris, O ECD 2002. Para um a análise crítica e propostas para mudanças acerca de a o d , ver SPETH, J. G. “A new deal developm ent assistance in a global econom y”. In: Harvará International Review, winter 1998/1999. p. 48-51.

39 Considerações acerca do papel do comércio internacional no financiamento do desenvolvimento podem ser encontradas em: NILES, T. “Required international initia- tives in trade policy”. In: HERMAN, B.; PIETRACCI, F. & SHARMA, K. (eds.). Op. cit. p. 135-8. Sobre comércio internacional e direito ao desenvolvimento, ver: OLIVEIRA, S. M. Barreiras não tarifárias no comércio internacional e direito ao desenvolvimento, Rio de Janeiro, Renovar, 2005.

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neficie a todos. Para tanto, a Assembléia Geral deve desempenhar com eficiência seu papel central como principal órgão deliberativo, normativo e representativo da ONU, e o Conselho Econômico e Social ( c e s ) deve ser fortalecido para que possa desempenhar suas funções, nos termos da Carta da ONU'10. Jens Martens comenta que o fortale­cimento do papel da o n u é de grande importância no financiamen­to do desenvolvimento. Em um sistema de financiamento global do desenvolvimento genuinamente multilateral e participativo, a o n u

(e não o bm , o fm i o u o c a d da OCDE) têm que ser a principal insti­tuição de processo decisório e de coordenação política; e a Carta da ONU estabelece sem ambigüidades o papel central desta organização na formulação e orientação da política macroeconômica global.41 No mesmo sentido, Julian Disney comenta que a ONU possui um mandato na cooperação internacional econômica, a ser desempe­nhado especialmente pelo CES. Todavia, esse orgão, desde seus pri­meiros anos de atuação, falha no cum prim ento dessa tarefa. O pro­cesso decisório nesse campo ocorre em organizações outras ( fm i ,

BM, OCDE), dominadas pelos países mais desenvolvidos. A Conferên­cia Mundial para Desenvolvimento Social (Copenhagen, 1995) des­tacou a necessidade de maior cooperação internacional no desen­volvimento e na implementação das políticas econômicas e sociais e reafirmou o papel central de coordenação que o sistema da ONU,

especialmente o c e s , deveria ter no alcance dessas metas. Alguns progressos foram feitos nas direções acordadas em Copenhagen, especialmente desde as crises financeiras de 1997 e 1998, no que diz respeito ao estreitamento das relações entre as instituições de Bretton Woods e a o n u . O c e s também procurou fortalecer seu en ­

10 Para propostas voltadas a fortalecer o papel do CBS, diante dos compromissos exarados na Declaração do Milênio, ver: DISNEY, J. “Strengthening the Economic and Social Council”. In: HERMAN, B.; PIETRACCI, F. & SHARMA, K. (eds.). Op. cit., p. 159-67.

" O fortalecimento da ONU é uma das recomendações feitas por Martens no con­texto da a o d . Sobre o assunto ver: MARTENS, J. “Rethinking and recommiting to offi- cial development assistance”. In: HERMAN, B.; PIETRACCI, F. & SHARMA, K. (eds.). Op. cit., p. 117-22.

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volvimento na consideração internacional de questões macroeconô­micas, constatando-se avanços nos seus processos internos e de suas comissões relevantes, tais como a Comissão de Desenvolvimento Sustentável e a Comissão de Desenvolvimento Social. No entanto, em geral, sua influência nas principais questões de política econômica continua a ser pouco significativa, e apesar de seu impacto sobre a política social apresentar força relativa, especialmente porque ele coordena um a vasta gama de agências internacionais, o c e s continua focando excessivamente processo e não substância.42

Apesar da Conferência de M onterrey poder ser considerada como um passo importante para reverter essa tendência e revitalizar o mandato da o n u nesse campo, o percurso é longo e sujeito a inú­meros contratempos. Em conformidade com o que assinalou Gert Rosenthal, a consideração do financiamento internacional do desen­volvimento na esfera da o n u é substancialmente polêmica por envol­ver o risco de intrusão na esfera jurisdicional de instituições finan­ceiras m u lti la te ra is , a poss ib ilidade de dup licação de funções e p rogram as de trab a lh o e um a potencial m udan ça no p roces­so decisório dessas instituições, em geral marcado pela pondera­ção baseada nas contribuições de capital dos Estados-membros.43 Como enfatizado no Consenso de Monterrey, são primordiais refor­mas institucionais e uma reorganização na estrutura de financia­mento internacional de desenvolvimento, assegurando-se a lideran­ça à O N U por meio do fortalecimento do CES.

A semente para a oportunidade da sociedade internacional para conferir efetividade aos compromissos assumidos no início do milê­nio de tornar o direito ao desenvolvimento uma realidade para todos

A2 DISNEY, J. “Strengthening the Economic and Social Council”. In: HERMAN, B.; PIETRACCI, F. & SHARMA, K. (eds.). Op. cit., p. 159-67.

43 Por estar intrinsecamente vinculado ao desenvolvimento, o financiamento po­de ser legitimamente abordado no seio da O NU. Com base nessa idéia, Gert Rosenthal tece propostas no sentido de um a relação complementar entre a o n u e as instituições de Bretton Woods, levando em conta o processo deliberativo corrente em cada uma das organizações. ROSENTHAL, G. “The Role of the United Nations in Financing for Development: An Institutional Approach”. In: FRANCO, A. (ed.). Op. cit., p. 13-23.

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foi, assim, semeada. No entanto, há de se ressaltar que muitos dos compromissos assumidos não são novidades na agenda interna­cional. Desse modo, é preciso que essa campanha internacional em prol do desenvolvimento fomente a criação de meios para tornar esses compromissos exigíveis.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O mito da criação do homem foi utilizado, por Fábio Konder Comparato, com o intuito de chamar a atenção para o fato de o de­senvolvimento da habilidade técnica em mãos de alguns poucos, não contrabalanceado pela extensão da sabedoria política a todos, haver engendrado um permanente déficit ético, consubstanciado na organi­zação oligárquica tanto no interior das sociedades nacionais quanto nas relações internacionais.44 Conformação essa que tem provocado grandes catástrofes sob a forma de massacres coletivos, fomes, epide­mias, explorações aviltantes, intolerância em formas diversas como conseqüências inevitáveis da divulsão operada entre a minoria pode­rosa e a maioria indigente. Contudo, conclui que ainda há tempo de se fazer a grande opção no século xxi: a humanidade.

Essa conclusão remete a outra perspectiva da mesma tragédia grega, ao diálogo entre Prometeu e as oceânides no qual o titã res­ponde a indagação acerca de que remédio havia dado ao homem contra o desespero: “Dei-lhes uma esperança infinita no futuro”. Conforme Fíannah Arendt, é a capacidade de agir que confere espe­rança aos negócios humanos.45 Nessas circunstâncias, a demanda por um a nova ordem é uma expressão política e também jurídica dessa esperança de se estabelecer um futuro, no qual os direitos hum anos se tornem uma realidade para todos. Todavia, se ao ter em mente o contexto internacional julgue-se necessário um milagre

44 COMPARATO, F. K. “A humanidade no século xxi: a grande opção”. In: Revis­ta Praga, n. 9, jun./2000.

45 ARENDT, H. A condição humana. Trad. de Roberto Raposo. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2000. p. 259.

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para a concretização de mudanças neste sentido, continua-se com o pensam ento arendtiano, com base no qual foi aferido que se t r a ­ta de um verdadeiro aviso de realismo em razão da capacidade dos homens de realizar milagres, por terem recebido o dúplice dom da liberdade e da ação e, assim, poderem estabelecer uma realidade que lhes pertence de direito.'16

A Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento foi o início de uma série de eventos no longo caminho para se eliminar o déficit ético nas relações internacionais e estabelecer a ordem internacional e social prevista no art. 28 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, ou seja, uma ordem em que os direitos hum anos possam ser plenamente reconhecidos. Como visto, o direito ao desenvolvi­mento confere destaque à dimensão política ao ter como um de seus elementos primordiais a participação de todos os indivíduos e povos.

A construção do consenso na sociedade internacional acerca dos fins e meios do desenvolvimento, decorrente da consagração do direito ao desenvolvimento como um direito hum ano e posteriores especificações, demanda um repensar dos mecanismos de fomento do desenvolvimento e a instauração progressiva de uma nova ordem mundial. Esses desafios carregam um a enorme carga política no plano internacional, mas, tendo-se como pressuposto o fato de que a política se situa no espaço entre os homens, pode-se esperar um

46 “Todo ato, considerado, não da perspectiva do agente, mas do processo em cujo quadro de referência ele ocorre e cujo automatismo interrompe, é um ‘milagre’ - isto é, algo que não poderia ser esperado. Se é verdade que ação e começo são essencialmente idênticos, segue-se que uma capacidade de realizar milagres deve ser incluída também na gama das faculdades humanas. Isso soa mais estranho do que o é realmente. É da própria natureza de todo novo início o irromper no mundo como uma ‘improbabili­dade infinita’, e é, contudo, justamente esse infinitamente improvável que constitui de fato a verdadeira trama de tudo que denominamos de real. (...) não é, pois, nem um pouco supersticioso, e até mesmo um aviso de realismo, procurar pelo imprevisível e pelo impredizível, estar preparado para quando vierem e esperar ‘milagres’ na dimen­são da política. E, com quanto mais força penderem os pratos da balança em favor do desastre, mais miraculoso parecerá o ato que resulta na liberdade, pois é o desastre e não a salvação que acontece sempre automaticamente e que parece sempre portanto irresistível”. ARENDT, H. “Que é liberdade?”. In: Entre o Passado e o Futuro. Trad. de Paulo W. Barbosa de Almeida. São Paulo, Perspectiva, 5. ed., 2001. p. 218-20.

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milagre. Cumpre ao Direito Internacional, como um instrumento de regulação da relação entre ordem e poder, conferir a moldura jurídica da ordem internacional e social, da qual é parte o financia­mento internacional do desenvolvimento, em conformidade com as normas internacionais dos direitos humanos.

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10A Abordagem do Direito ao Desenvolvimento nos Tratados sobre Investimentos

B e r n a d e t e d e F i g u e i r e d o D i as

Introdução - 1. O direito ao desenvolvimento e investimentos estrangeiros - 1.1. O direito ao desenvolvimento e a construção do direito do desenvolvimento - 1.2. A relação do investidor estrangeiro com o Estado receptor - 2. O direito ao desenvolvi­mento e os tratados sobre investimentos - 2.1. Tratamento preferen­cial e mais favorável - 2.2. Medidas restritivas ao desenvolvimento - Considerações finais - Referências

INTRODUÇÃO

No ano de 2002, o fluxo mundial de investimentos diretos foi de 651 bilhões de dólares, dos quais 162 bilhões de dólares tive­ram como destino países em desenvolvimento. Esse fluxo m u n ­dial vem sendo reduzido desde 1998, e o fluxo para os países em desenvolvimento teve uma redução de 22% nesse período.1

1 Cf. United Nations Conference on Trade and Development. World Invest- m ent Report 2003: FDI Policies for Development: national and international perspec­tives - an overview. New York/Geneva, United Nations, 2003. p. 8.

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D I R E I T O I N T E R N A C I O N A L E D E S E N V O L V I M E N T O

Diante desse cenário, muitos Estados têm liberalizado seus regi­mes internos sobre investimentos e se envolvido em acordos bilate­rais sobre investimentos, acordos de livre comércio e acordos de bitributação, visando à maior atração do capital estrangeiro.

Essa atração de investimentos tem como objetivos o crescimen­to e o desenvolvimento econômico nacional.

Para que esses objetivos sejam atingidos, são necessárias não apenas a atração de investimentos, mas a atração dos investimentos mais vantajosos para o Estado (como investimentos em tecnologia e investimentos com objetivo exportador) e a implantação de políti­cas públicas que assegurem os benefícios decorrentes da atração de investimentos, como políticas ambientais, concorrenciais, consume- ristas e de transferência de tecnologia.

No entanto, muitos dos acordos internacionais celebrados com o objetivo de atrair investimentos restringem, ou até mesmo vedam, a implantação de tais políticas. Dessa forma, impedem que os obje­tivos desenvolvimentistas que motivaram a atração dos investimen­tos sejam atingidos.

Surge, portanto, um conflito entre o direito ao desenvolvimen­to e os direitos dos investidores estrangeiros, na maioria originários de países desenvolvidos.

No presente artigo, será analisado inicialmente o direito ao de­senvolvimento e a construção do direito do desenvolvimento (item 1.1) e a relação do investidor estrangeiro com o Estado receptor de investimentos (item 1.2), destacando a contraposição de interesses entre as partes envolvidas na relação. Em seguida, será abordado o direito ao desenvolvimento nos acordos internacionais sobre in ­vestimentos (item 2), adotando como referência o Acordo sobre Medidas de Investimentos Relacionadas ao Comércio (Trims)2 e a Área de Livre Comércio das Américas (Alca), bem como a juris­prudência internacional sobre controvérsias em matéria de inves­timentos envolvendo, de um lado, um país em desenvolvimento e,

2 Sigla da expressão inglesa Trade-Related Investment Mensures.

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A A B O R D A G E M DO D I R E I T O AO D E S E N V O L V I M E N T O

de outro, um país desenvolvido ou um investidor originário de um país desenvolvido.

1. O DIREITO AO DESENVOLVIMENTO E INVESTIMENTOS ESTRANGEIROS

A realização do direito ao desenvolvimento é prejudicada pelo conteúdo dos tratados sobre investimentos, que refletem o conflito entre os interesses dos investidores e de seus Estados de origem (na maioria das vezes países desenvolvidos) e os interesses dos Estados receptores de investimentos.

1.1. O DIREITO AO DESENVOLVIMENTO E A CONSTRUÇÃO DO DIREITO DO DESENVOLVIMENTO

O direito ao desenvolvimento é considerado um dos direitos h u ­manos pela Organização das Nações Unidas ( o n u ) , segundo o qual a igualdade de oportunidades para o desenvolvimento é uma prer­rogativa dos Estados e dos indivíduos.

O direito do desenvolvimento define-se pelo objetivo que perse­gue, sendo composto por um conjunto de elementos de Direito In­ternacional, interno e transnacional.

As principais ações internacionais de fomento ao desenvolvimen­to são decorrentes de tratados internacionais.

No âmbito interno, a responsabilidade pela consecução do de­senvolvimento é do próprio país em desenvolvimento.

Além disso, a celebração de contratos entre entes privados de di­ferentes nacionalidades, ou entre um ente privado estrangeiro e um Estado muitas vezes tem implicações desenvolvimentistas, como é o caso dos contratos de investimento3, dos contratos de transferência de tecnologia e de prestação de serviços.

•’ Os contratos de investimentos são acordos firmados diretamente entre o inves­tidor estrangeiro e o Estado receptor de investimentos. São também chamados de

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D I R E I T O I N T E R N A C I O N A L E D E S E N V O L V I M E N T O

As discussões acerca da existência de um direito ao desenvolvi­mento intensificaram-se principalmente em decorrência das m udan­ças sociopolíticas do Segundo Pós-guerra, dentre as quais destacam-se a independência de várias colônias, que conduziram os países em desenvolvimento à reivindicação da soberania econômica, ao percebe­rem que o simples reconhecimento de suas soberanias políticas não seria suficiente para assegurar-lhes independência econômica.

A soberania plena somente seria alcançada pela soberania eco­nômica, ou seja, pela aplicação dos princípios de não ingerência, da autodeterminação e da soberania sobre os recursos naturais.

Dessa forma, era necessário o reconhecimento da igualdade en­tre os Estados, vedando interferências econômicas, de um Estado em outro, seja diretamente ou pela atuação das empresas transnacionais; da liberdade de cada Estado estabelecer o seu próprio sistema políti­co e econômico; e do direito inalienável dos Estados de dispor de suas riquezas e recursos naturais, de acordo com os interesses nacionais, em respeito ao princípio da independência econômica dos Estados.

Além disso, para a efetividade do direito do desenvolvimento, é necessário que a igualdade aplicada aos Estados seja a igualdade real, aplicando-se as regras de maneira distinta, na exata proporção da desigualdade real existente entre os Estados.

Isso pode ser feito pela aplicação de instrumentos corretivos, como a concessão de tratamento diferenciado e mais favorável aos países em desenvolvimento na aplicação de acordos internacionais.

Objetivando o reconhecimento internacional de suas soberanias econômicas, os países em desenvolvimento mobilizaram-se para a aprovação de resoluções sobre o tema do desenvolvimento na Assem­bléia Geral da o n u .

Em 4 de dezem bro de 1986, a Assembléia Geral da ONU ado ­tou a Resolução n. 41/128, intitulada Declaração sobre Direito ao

acordos de desenvolvimento ou acordos de cooperação e têm como objeto, de um lado, a disciplina do tratamento oferecido pelo Estado receptor ao investimento estrangeiro e, de outro, o m ontante e a modalidade de investimento a ser realizado.

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A A B O R D A G E M D O D I R E I T O A O D E S E N V O L V I M E N T O

Desenvolvimento, aprovada por 146 votos favoráveis, um contra e oito abstenções'1 c 5.

A Resolução n. 41/128 consagra o direito ao desenvolvimento cultural, social, político e econômico como direito hum ano inalie­nável, que pressupõe o direito à autodeterminação e à soberania plena sobre as riquezas e recursos naturais.

Dessa forma, no plano internacional, seria função dos Estados atuarem em cooperação para a realização do direito ao desenvolvi­mento, formulando políticas internacionais favoráveis ao desenvol­vimento dos Estados mais pobres. No plano nacional, caberá a cada Estado adotar as medidas necessárias ao próprio desenvolvimento.

Apesar de consistir em regra não vinculante6, a resolução insere o direito ao desenvolvimento no contexto dos direitos humanos, sendo ao mesmo tempo um direito individual e um direito coletivo. Assim, o desenvolvimento visa à satisfação dos interesses essenciais do homem, num contexto internacional de interdependência entre os Estados.

O direito do desenvolvimento é visto com ressalvas pelos países desenvolvidos, dificultando a criação de regras internacionais vincu- lantes que reconheçam esse direito.

1.2. A RELAÇÃO DO INVESTIDOR ESTRANGEIRO COM O ESTADO RECEPTOR

A relação entre o investidor estrangeiro e o Estado receptor de investimentos é marcada pela existência de interesses contrapostos, cuja conciliação é buscada pela elaboração de regras internacionais sobre investimentos estrangeiros.

4 Voto contra dos Estados Unidos. Abstiveram-se a Dinamarca, a Alemanha, o Reino Unido, a Finlândia, a Islândia, a Suécia, o Japão e Israel.

5 Cf. COLLIARD, C.-A. “UAdoption par L’Assemblée Générale de la Déclaration sur le Droit au Développement: 4 décembre 1986”. In: Annuaire Français cie Droit Inter­national, v. 33, Paris, 1987. p. 614.

6 As resoluções da Assembléia Geral da onu somente vinculam os Estados-membros quando têm por objeto regulamentar procedimentos administrativos da organização.

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D I R E I T O I N T E R N A C I O N A L E D E S E N V O L V I M E N T O

De um lado, os países em desenvolvimento visam à atração de investimentos estrangeiros diretos, a fim de, por exemplo, equilibrar o balanço de pagamentos com o ingresso de divisas, gerar mais empre­gos, injetar recursos financeiros na economia e obter tecnologias mais avançadas. Tratam-se de objetivos voltados ao desenvolvimento de suas economias internas, com o auxílio do ingresso do capital estrangeiro.

Por outro lado, o investidor estrangeiro tem em vista seja a con­quista de novos mercados, a proximidade das matérias-primas, seja a mão-de-obra barata, dentre outros fatores que motivam a realiza­ção de um investimento internacional. O objetivo é, portanto, a oti­mização da produção e a obtenção do maior lucro possível, com o menor risco.

Os Estados elaboram regras internas de controle dos investi­mentos, a fim de atender aos interesses desenvolvimentistas, e basea­dos no pressuposto de que a responsabilidade pelo desenvolvimento do Estado é do próprio Estado.

Tais regras estabelecem fórmulas para o melhor aproveitamen­to possível dos benefícios decorrentes do ingresso do capital estran­geiro, variando entre regras que exigiam um conteúdo nacional m ínim o aos produtos desenvolvidos internamente pelo investidor, um capital m ínim o para o ingresso do investimento, o equilíbrio entre o volume ou valor das importações e o volume ou valor das exportações, e a vedação à importação de empregados, forçando a contratação e treinamento de mão-de-obra local.

Além disso, no âmbito internacional, os países em desenvolvi­mento mobilizaram-se para o reconhecimento de sua soberania econômica, propondo diversas resoluções na Assembléia Geral da ONU que versavam sobre a soberania permanente sobre os recursos naturais, dentre as quais destacam-se as Resoluções n. 1.803 (xvn) e 3.281 (xxix).

A Resolução n. 1.803 (xvn) consistiu na expressão da reivindi­cação de soberania econômica dos países em desenvolvimento, segundo a qual a administração e condução da economia nacional caberia exclusivamente ao Estado, de acordo com as opções livre­mente escolhidas por ele.

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Dispõe, em termos gerais, que o ingresso de investimentos e a remessa de lucros ao exterior devem submeter-se estritamente às con­dições impostas pelos Estados detentores dos recursos naturais, em nome da soberania que detêm sobre esses recursos.

Dessa forma, essas relações seriam submetidas exclusivamente à legislação interna dos Estados receptores de investimentos e ao Direito Internacional.

Posteriormente, a Resolução n. 3.281 (xxix) aprovou a Carta de Direitos e Deveres Econômicos dos Estados (1974), que instituiu a Nova Ordem Econômica Internacional, cujas premissas já haviam sido lançadas pela Resolução n. 1.803 (xvn).

A Carta de Direitos e Deveres Econômicos dos Estados estabe­leceu como bases da Nova Ordem Econômica Internacional 1) a igualdade; 2) a igualdade das soberanias; 3) a interdependência; 4) o interesse comum; e 5) a cooperação entre os Estados independente­mente de seus sistemas econômicos e sociais.

A Carta reforçou, ainda, o direito de os Estados exercerem a regu­lamentação das atividades das empresas transnacionais situadas em seu território, vedando a interferência dessas empresas nas políticas internas do Estado receptor.

No entanto, por terem sido elaborados sob a forma de resolu­ções, os documentos acima não obrigavam os Estados envolvidos, consistindo em regras de soft law.

Tendo em vista que muitas das exigências contidas nas regras in­ternas dos Estados receptores contrariavam os objetivos de lucro dos investidores estrangeiros, os países desenvolvidos, de onde se origi­nam a maior parte dos investimentos estrangeiros, passaram a in­centivar a celebração de acordos bilaterais sobre investimentos como condição para a realização de investimentos de seus nacionais nos territórios de alguns Estados.

Tais acordos im punham políticas liberais de tra tam ento dos investimentos, vedando os chamados performance requirements ou requisitos de desempenho, estabelecendo a liberdade de ingresso e retorno do capital, prevendo a aplicação dos princípios do trata­mento nacional e da nação mais favorecida aos investimentos origi­

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nários de um Estado signatário do acordo, condicionando a expro- priação dos investimentos ao pagamento de indenização e estabele­cendo a arbitragem internacional para a solução de controvérsias em matéria de investimentos - prevendo inclusive a possibilidade de a controvérsia ser instaurada diretamente pelo investidor contra o Estado receptor, sem a necessidade de intervenção do Estado de ori­gem do investimento.

Atualmente, o objeto desses acordos internacionais sobre inves­timentos foi ampliado, a fim de equipararem a uma expropriação e aos seus efeitos as medidas consideradas tantamount to an expropria- tion, o que na prática implica o controle internacional das medidas regulatórias adotadas pelo Estado receptor, como as relacionadas a políticas ambientais e de defesa do consumidor.

Dessa forma, surgiu no âmbito internacional um desequilíbrio en­tre a proteção dos interesses dos investidores e a dos Estados recepto­res. Isso porque enquanto os interesses dos Estados eram representados por regras de soft law, não vinculantes, os interesses dos investidores estavam protegidos por tratados, cujo descumprimento poderia gerar a responsabilidade internacional dos Estados receptores.

Os interesses desenvolviinentistas foram, portanto, superados pelos interesses do capital.

2. O DIREITO AO DESENVOLVIMENTO E OS TRATADOS SOBRE INVESTIMENTOS

Alguns acordos sobre investimentos abordam o direito ao desen­volvimento, ao oferecer um tratam ento mais favorável aos países em desenvolvimento. É o caso, por exemplo, do Trims e da propos­ta da Alca.

2.1. TRATAMENTO PREFERENCIAL E MAIS FAVORÁVEL

O Trims consistiu em um dos resultados da Rodada Uruguai, que resultou na formação da Organização Mundial do Comércio (omc).

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A o m c t e m c o m o o b je t iv o a l ib e ra l iz a ç ã o o r d e n a d a d o c o m é r c io

m u n d i a l e a m a i o r i a d e s e u s m e m b r o s s ã o p a íse s e m d e s e n v o lv im e n to .

O Trims é de observância obrigatória para todos os membros da o m c e veda a imposição pelos Estados-membros de medidas de inves­timentos que possam ter efeitos distorcivos sobre o comércio. Dessa forma, veda a imposição de medidas que firam os princípios do trata­mento nacional e do acesso a mercados.

Com base no Trims, os países em desenvolvimento podem sus­pender temporariamente a aplicação do acordo, a fim de aplicar o disposto no art. x v iii do General Aggreement on Trade and Tariffs de 1994 (Gatt/94)7, ou no caso de necessidade de equilíbrio do balanço de pagamentos.

Além disso, o prazo de implementação do acordo é variável con­forme o grau de desenvolvimento do Estado membro.

Dessa forma, os países desenvolvidos deveriam eliminar todas as medidas incompatíveis com o acordo até dois anos após a entrada em vigor do Trims; os países em desenvolvimento, após cinco anos da data de sua entrada em vigor; e os países de menor desenvolvi­mento relativo, sete anos após sua entrada em vigor.

Esses prazos poderão ser estendidos pelo Conselho de Com ér­cio de Mercadorias da o m c , a pedido do Estado interessado, em se tratando de países em desenvolvimento e de m enor desenvolvimen­to relativo. Para tanto, é necessário que se demonstre dificuldades de implementação das obrigações descritas no acordo do Trims.

Essa prorrogação foi solicitada por vários Estados, dentre os quais se inclui as Filipinas.

Em outubro de 2000, os Estados Unidos questionaram algumas medidas adotadas pelas Filipinas com relação ao setor automotivo, solicitando ao Órgão de Solução da Controvérsia (osc) da OMC a criação de um painel, sob a alegação de que tais medidas seriam con­

7 O Art. x v i i i do Gatt/94 dispõe sobre Assistência Governamental ao Desenvol­vimento Econômico, incluindo a definição de alguns casos em que os países de m enor desenvolvimento relativo ou em desenvolvimento podem deixar de obedecer a algu­mas das obrigações impostas pelo Gatt/94.

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trárias ao Trims. O governo filipino estaria condicionando a obten­ção de licenças de importação, acesso ao câmbio para importação e o direito de importar com tarifas preferenciais à utilização de peças e componentes fabricados nas Filipinas e ao equilíbrio entre importa­ções e exportações.

Em sua defesa, as Filipinas alegaram que tais medidas não de­veriam ser objeto de análise por um painel no OSC, tendo em vista que teria sido solicitada a prorrogação do prazo de implementação do Trims.

Ainda de acordo com as regras do Trims, durante esse período de implementação os Estados não podem adotar medidas mais res­tritivas que as já existentes na data de entrada em vigor e o período de transição não se aplica às medidas que foram adotadas até 180 dias antes da entrada em vigor do acordo.

Em matéria de investimentos, as propostas em negociação para a formação da Alca em muito se assemelham ao Capítulo 11 do acor­do da Área de Livre Comércio da América do Norte (Nafta)8. Existe, inclusive, um capítulo específico destinado aos investimentos.9

No entanto, contrariamente ao que ocorre no Nafta, em que não se prevê o tratamento preferencial e mais favorável ao México10, estão sendo negociadas exceções à aplicação do acordo sobre investimen­tos no caso de economias menores.

Para os Estados assim considerados, seria facultada (1) a escolha dos setores aos quais seria aplicável o acordo; (2) o princípio do trata­mento nacional poderia deixar de ser aplicado nos momentos de ins­tabilidade econômica; (3) seria afastado o princípio da cláusula da nação mais favorecida sempre que esta fosse uma economia menor; (4) as economias menores poderiam aplicar requisitos de desempenho não vedados pelo Trims, dentre outras prerrogativas.

8 Sigla da expressão inglesa North-American Free TradeArea.9 Analisamos a Terceira Minuta de Acordo, publicada em 21 de novembro de 2003.

Disponível em: <URL: http://www.ftaa-alca.org>.10 O Nafta é um a área de livre comércio constituída pelos Estados Unidos, Cana­

dá e México - único país em desenvolvimento do bloco.

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2.2. MEDIDAS RESTRITIVAS AO DESENVOLVIMENTO

Apesar de possibilitarem esse tratamento preferencial e mais fa­vorável aos países em desenvolvimento (com exceção do Nafta, que trata igualmente todos os seus membros, apesar das evidentes dife­renças nos seus níveis de desenvolvimento), esses acordos prevêem a vedação à imposição de performance requirements e equiparam as medidas regulatórias (adotadas pelos Estados receptores para se organizarem internamente) às expropriações.

No Trims, é vedada aos Estados-membros da o m c a imposição de medidas inconsistentes com o tratamento nacional e o acesso a mercados.

O acordo apresenta em seu anexo uma lista ilustrativa das medi­das consideradas contrárias a esses princípios.

Em relação ao tratamento nacional, são vedadas as medidas de caráter obrigatório com base no direito interno, ou cuja observância seja necessária para a obtenção de vantagens, e que requeiram um certo conteúdo nacional m ínim o na produção ou a equivalência entre o volume ou o valor das importações e o volume ou o valor das exportações.

Quanto ao acesso a mercados, são vedadas as medidas de cará­ter obrigatório ou necessárias à obtenção de certas vantagens e que restrinjam (1) a importação de produtos por um a empresa, em fun­ção do volume ou valor das exportações dessa mesma empresa; (2) a importação por uma empresa dos insumos necessários à sua p ro­dução local, adotando-se medidas de restrição cambial; ou (3) a ex­portação de mercadorias por um a empresa.

Com base na interpretação desses dispositivos, Estados como Indonésia e índia já foram condenados no Sistema de Solução de Controvérsias da o m c por terem adotado medidas de investimentos relacionadas ao comércio consideradas contrárias a esses princípios.

A Indonésia instituiu, em 1993, um regime automotivo segundo o qual eram concedidas reduções e isenções fiscais para empresas do setor automotivo, desde que fosse atingido um determinado nível de

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conteúdo nacional na sua produção. Tais reduções e isenções fiscais eram, ainda, estendidas a empresas pertencentes a nacionais da Indo­nésia, mesmo que situadas fora dela, desde que observado o nível de conteúdo nacional exigido pelas leis indonésias.

A medida foi contestada pelo Japão, pelas Comunidades Euro­péias e pelos Estados Unidos. Foi fornuido um painel para analisar a controvérsia, o qual decidiu que a medida seria incompatível com o princípio do tratamento nacional. Foi, então, determinado que a Indonésia adequasse suas medidas às regras da o m c . A Indonésia noti­ficou à OMC a implementação da decisão em 15 de julho de 1998.

No caso da índia, existia um procedimento administrativo de concessão de licenças de importação de componentes automotivos pelos investidores estrangeiros que exerciam atividades de m onta­gem de veículos au tom otores . Para a ob tenção dessa licença, exigiam-se compromissos de percentuais m ínim os de conteúdo nacional nos veículos produzidos. Além disso, estabeleceu-se a obrigação de equilíbrio entre o valor CIF11 das importações de com ­ponentes automotivos, com o valor FOB12 das exportações de veícu­los e outros componentes automotivos.

Os Estados Unidos e as Comunidades Européias contestaram tais exigências na o m c e, após a realização de consultas entre as par­tes, foi formado um painel para a solução da controvérsia. As medi­das adotadas pela índia foram consideradas inconsistentes com os acordos da OMC, por contrariarem os princípios do tratamento nacional e de acesso a mercados. A índia teve que adequar suas medidas às regras da o m c . A implementação da decisão pela índia foi notificada à o m c em 11 de novembro de 2002.

11 “Expressão utilizada no comércio internacional para denotar que o preço inclui os valores referentes ao custo, ao seguro e ao frete da mercadoria (cost, insurance and freight)”.

12 “Expressão utilizada 110 comércio internacional para denotar que o preço não inclui os valores referentes ao seguro e ao frete da mercadoria, mas apenas com os cus­tos de sua entrega no posto designado para embarque da mercadoria. Despesas com frete e seguro correm por conta cio com prador”.

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Como visto, tanto a Indonésia como a índia adotaram medidas destinadas à preservação do equilíbrio dos seus respectivos balanços de pagamentos e de incentivo à indústria nacional. Tratava-se, p o r­tanto, do exercício do dever do Estado de buscar o próprio desen­volvimento. A implementação dessas medidas desenvolvimentistas, contudo, foi obstada pelos compromissos assumidos por esses Esta­dos no âmbito da o m c .

Na Alca, são propostas vedações aos requisitos de desempenho semelhantes às do Nafta. Existe, por outro lado, a proposta de restrin­girem-se apenas as medidas vedadas pelo Trims, ou, ainda, de uma restrição genérica aos requisitos de desempenho, sem a enumeração específica das medidas proibidas.

Propõe-se também a vedação ao condicionamento da concessão de incentivos ao cum prim ento de certos requisitos, salvo nos casos excetuados no próprio acordo. Em ambos os casos, os requisitos e as exceções assemelham-se ao disposto no Capítulo 11 do Nafta.

Nesse Capítulo, existe uma lista extensa dos performance require- ments, cuja imposição é vedada aos Estados-membros. Por este acordo, é vedada a imposição das medidas enumeradas em relação ao estabe­lecimento, aquisição, expansão, gerenciamento ou operação de um investimento. As medidas seriam: (1) a exigência de certo nível de exportações e/ou de conteúdo nacional; (2) a preferência na aquisição de bens ou serviços no território nacional; (3) o equilíbrio entre o volume ou valor das importações e o volume ou valor das exportações; (4) a restrição à venda no mercado interno das mercadorias produzi­das, condicionando a sua venda no mercado interno a um certo nível de exportações; e (5) a transferência de tecnologia, ou a atuação como fornecedor exclusivo das mercadorias produzidas ou dos serviços for­necidos para uma região específica ou para o mercado mundial.

O Nafta veda, ainda, o condicionamento da concessão de incen­tivos a exigências como (1) conteúdo nacional; (2) preferência na aquisição de mercadorias ou serviços no território nacional; (3) equivalência entre importações e exportações; e (4) a restrição da comercialização interna da produção, condicionando sua venda no mercado interno a um certo nível de exportações.

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O texto permite, contudo, que os incentivos sejam condiciona­dos (1) às exigências de produção local, à prestação de serviços ou ao treinamento ou à contratação de empregados locais; (2) à cons­trução ou à ampliação de certas estruturas; (3) ao desenvolvimento de pesquisas; e (4) ao desenvolvimento no território.

Além disso, o Capítulo 11 prevê em seu art. 1.110 que as m e­didas de expropriação direta ou indireta, ou as medidas a elas equivalentes deverão ocorrer por finalidade pública, de forma não discriminatória, com base no devido processo legal e mediante o pagamento de indenização prévia, com base no valor de mercado dos ativos expropriados e em moeda conversível. Propõe-se a exis­tência de dispositivo semelhante no acordo da Alca.

A extensão do conceito de expropriação, para englobar as medi­das equivalentes à expropriação, ocasiona a possibilidade de revisão por tribunais arbitrais das medidas regulatórias, adotadas interna­mente pelos Estados com a finalidade de atender aos interesses de seus nacionais, tais como medidas ambientais e concorrenciais. Tais tribunais poderão conforme o caso determinar que seja paga uma indenização ao investidor estrangeiro caso a medida seja considera­da “equivalente a uma expropriação”.

No caso do Nafta, diversas decisões arbitrais envolvendo o Méxi­co versaram sobre medidas equivalentes a expropriações, dentre as quais pode-se mencionar o caso Metalclad.

O caso foi decidido por tribunal arbitrai internacional no âm bi­to do Centro Internacional para a Solução de Controvérsias sobre Investimentos (icsid)13, e foi um a disputa diretamente entre o inves­tidor estrangeiro (Metalclad Corporation) e o Estado receptor do investimento (México).

A Metalclad questionou a interferência do México no desenvol­vimento e operação de um depósito de lixo tóxico, o que configura­ria um a expropriação indireta do investimento. O governo mexicano teria impedido a instalação de um depósito de lixo tóxico no Vale de

13 Sigla da expressão inglesa International Centre for the Settlement o f Investment Disputes.

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La Pedrera, em Guadalcazar, estado de San Luis Potosí, no México, sob a justificativa de que a Metalclad não teria todas as licenças neces­sárias à instalação do depósito.

A Metalclad pediu a instauração do tribunal arbitrai, aduzindo que a medida seria equivalente a uma expropriação e pediu uma in ­denização. O tribunal decidiu que o México não assegurou um am ­biente transparente e previsível ao investimento estrangeiro, por ter deixado de aplicar regras claras quanto aos requisitos necessários à realização e operação do investimento realizado. Concluiu que as medidas adotadas pelo México seriam equivalentes a uma expro­priação e condenou o México ao pagamento de indenização no valor de US$ 16,685 milhões à Metalclad.

Dessa forma, o México foi obrigado a pagar uma indenização ao investidor estrangeiro originário de um país desenvolvido em decor­rência da adoção de medidas destinadas à proteção do meio ambiente em seu território.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apesar de ser considerado um direito hum ano inalienável, com base no disposto na Resolução n. 41/128, o direito ao desenvolvi­mento não tem sua aplicação eficaz.

Isso porque a resolução consiste em regra não vinculante para os Estados, e é contrariada por tratados vinculantes, que estipulam re­gras as quais dificultam a consecução do desenvolvimento pelos países em desenvolvimento receptores de investimentos estrangeiros.

Tais tratados, apesar de oferecerem um tratamento mais favorá­vel aos países em desenvolvimento, ao preverem, por exemplo, um prazo maior para sua implementação, impedem a adoção pelos paí­ses receptores de medidas que possibilitariam o aproveitamento dos benefícios decorrentes do ingresso dos investimentos estrangeiros.

Considerando o dever de cada Estado de adotar as medidas necessárias ao próprio desenvolvimento, caberão aos países em de­senvolvimento repensar os compromissos assumidos internacio­

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nalmente, pesando os benefícios e desvantagens da celebração de acordos sobre investimentos, ou do aprofundamento dos já existen­tes, a fim de evitar que os compromissos internacionais nessa maté­ria resultem no aprofundamento da situação de subdesenvolvimento existente.

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11A Revisão do Mecanismo de Solução de Controvérsias da OMC - Sobretudo Sob

A

a Otica dos Países em Desenvolvimento e de Menor Desenvolvimento Relativo*

C y n t h i a K r a m e r

In tro d u çã o - 1. N otificação dos aco rdos - 2. C on su ltas - 3. Bons

ofícios, conciliação e m ed iação - 4. Painéis - 4.1. C o m p o s ição dos

painéis - 5. Ó rgão de apelação - 6. R elatórios d o s painéis e d o

ó rgão d e apelação - 6.1. Desistência e suspensão d o pleito - 6.2.

P rinc íp ios e c ircu lação d o s re la tórios - 7. Retaliações - 8. T ra ta ­

m e n to especial e d ife ren c iad o - 9. P ro c e d im e n to s ace lerados -

10. Nullification atui impairment- 11. T ransferência d e d ire itos de

retaliação - 12. O u tra s p ropostas - 13. Resultados - C onsiderações

finais - Referências

INTRODUÇÃO

O mecanismo de solução de controvérsias da Organização Mundial do Comércio ( o m c ) é regulamentado pelo Entendimen­to sobre Solução de Controvérsias ( e s c ) . O e s c é um dos acordos

* A rtig o e sc r i to e m ja n e i ro d e 2004.

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D I R E I T O I N T E R N A C I O N A L E D E S E N V O L V I M E N T O

multilaterais firmado em Marrakesh ao final da Rodada Uruguai, em abril de 1994. Contém as regras procedimentais para a solução de disputas, as quais entraram em vigor no início de 1995, após exis­tência do sistema do General Aggrement on Trade and Tariffs (Gatt).

Tendo em vista ser um sistema novo, cujos desdobramentos só poderiam ser verificados na prática, na própria Conferência Ministe­rial de Marrakesh ficou acordado que o ESC seria revisto dentro do prazo de quatro anos, a contar de sua entrada em vigor. Ou seja, os Estados-membros teriam até 31 de dezembro de 1998 para fazer alte­rações no sistema com o objetivo de aperfeiçoar o seu funcionamento.

As negociações foram iniciadas ao final de 1997 e como os Mem­bros não lograram obter consenso com relação às alterações propos­tas até alguns dias antes do término do prazo acordado, decidiram estendê-lo por seis meses, até 31 de julho de 1999.

De nada adiantou: o ESC permaneceu inalterado devido à falta de convergência das posições dos Membros.

Quando da ocorrência da Conferência Ministerial de Doha, em novembro de 2001, os Ministros dos Estados-membros da OMC

resolveram tratar do assunto novamente e no parágrafo 30 do m an­dato ficou estabelecido que os Membros concordavam em negociar aprimoramentos e esclarecimentos ao e s c .

Essas negociações deveriam se basear no trabalho que já havia sido desenvolvido até então, bem como em propostas adicionais dos Membros.

As negociações tinham por objetivo lograr um consenso até maio de 2003, ocasião em que deverão ser tomadas as medidas necessárias para assegurar que seus resultados entrem em vigor o mais breve possível.1

Em cum prim ento ao m andato acordado em Doha, os M em ­bros reiniciaram as negociações no início de 2002. O foro para tais

1 Mandato de Doha, §30: “ W e agree to negotiations on iniprovenients and clarifi- cations o f the Dispute Settlement Understanding. The negotiations should be based on the work done thusfar as xvell as any additional proposals by Members, and aim to agree on iniprovenients and ciarifications not later than May 2003, at which time we will take the steps to ensure that the results enter into force as soon aspossible thereaftef.

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discussões era o Órgão de Solução de Controvérsias (osc), reu ­nido em Sessão Especial presidida pelo Em baixador da Hungria, Peter Balás.

Ficou acordado que os trabalhos seriam conduzidos em quatro fases. Primeiramente os Membros discutiriam questões de caráter geral, depois passariam a apresentar propostas sobre os temas que consideravam haver necessidade de alteração. Uma terceira fase seria o debate das propostas em termos conceituais e, como última fase, a apresentação e discussão dos textos legais a serem inseridos ou m o­dificados no ESC. Os documentos apresentados estão contidos na série t n / d s / w , à disposição no site da o m c .

Foram apresentadas mais de quarenta propostas para discussão, as quais versavam sobre os mais diversos aspectos do procedimento para solução de controvérsias da OMC. Abrangiam desde a etapa pre­liminar de consultas até a implementação das decisões. A maioria delas era de propostas que, se implementadas, beneficiariam os Membros como um todo, mas também havia propostas específicas para trata­mento especial e diferenciado dos países em desenvolvimento ( p e d s )

e de m enor desenvolvimento relativo ( p m d r s ).

No t o c a n t e a e s sa s ú l t i m a s , v i s a v a - s e s a n a r u m d o s p r o b l e m a s

m a i s l a t e n te s d o s i s te m a : a d i f i c u ld a d e d e a c e s so e i n t e g r a ç ã o p o r p a r ­

te d o s PEDs e p m d r s .

As estatísticas claramente demonstram tal falha do sistema.2 Ape­sar de a maioria dos Membros da OMC ser p e d s , das aproximadamen­te trezentas disputas iniciadas até o m om ento3, 61% foram iniciadas por países desenvolvidos ( p d s ).

Um estudo realizado pelo México e discutido pelos Membros no segundo semestre de 2003 demonstrou que tal fato não se dá de­vido ao maior núm ero de transações comerciais realizadas por p d s .

O Grupo Africano e os p m d r s têm um peso bastante considerável no comércio mundial e praticamente não se utilizam do sistema.

2 Disponível em: <URL: http://www.worldtradelaw.net>.3 Incluindo pedidos de consulta.

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Diversos podem ser os motivos que levam à não integração dos p e d s e p m d r s no sistema da o m c . Podem ter cunho econômico, mas tam bém social e político. Alguns desses motivos foram identifica­dos por Membros que lançaram propostas para alteração do sistema atualmente em vigor.

Dentre esses motivos, pode-se salientar: (1) o fato de o sistema não arcar com os honorários advocatícios; (2) o fato de as consul­tas não serem realizadas nas capitais dos Estados que não têm ver­bas para se locomoverem a Genebra; (3) o fato de os membros dos painéis nem sem pre levarem em consideração os problem as específicos dos p e d s e p m d r s ; (4) a não obrigatoriedade de haver, no mínimo, um nacional desses Estados na composição do painel que analisa disputas envolvendo-os; e (5) o tratamento não especial e não diferenciado para os p e d s e p m d r s no tocante a prazos.

1. NOTIFICAÇÃO DOS ACORDOS

Com relação aos problemas procedimentais do sistema em ge­ral, mas que também afetam os p e d s e p m d r s , um dos primeiros temas a ser debatido foi a necessidade de notificação dos acordos fir­mados entre as partes envolvidas em uma disputa.

Atualmente, não há um prazo para o cum prim ento de tal obri­gação, o que impede o correto acompanhamento dos casos pelo Se­cretariado e pelos demais Membros.

A proposta feita pelo Japão no documento w/32 sugere que a notificação seja feita dentro do prazo de sessenta dias a contar da solução acordada entre as partes.

2. CONSULTAS

No que diz respeito à fase de consultas, etapa obrigatória, que deve du rar no m ín im o sessenta dias, prévia ao pedido de estabe­lecimento de painel e que tem por objetivo esclarecer pontos rela­

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t i v o s à c o n t r o v é r s i a e i n c e n t i v a r u m a c o r d o e n t r e a s p a r t e s e n v o lv i ­

d a s , fo i d i s c u t i d a a r e d u ç ã o d o prazo g e r a l d e s e s s e n t a p a r a t r i n t a

d i a s , p e r m a n e c e n d o - s e a f a c u l d a d e d o s p e d s e m m a n t e r o s s e s s e n ­

ta d i a s c o m o a t u a l m e n t e .

Conforme já mencionado, os PMDRs, na proposta w/37, pleiteiam que as consultas sejam realizadas em suas capitais quando forem parte em uma demanda, tendo em vista a falta de recursos para se deslocar a Genebra.

As Com unidades Européias ( c e ) (w /l) sugeriram a definição de um prazo de validade para as consultas, além de estabelecer que os pedidos de consultas possam ser retirados a qualquer m o m en ­to. A proposta européia determ ina que o direito de pedir o estabe­lecimento de um painel caducará caso não seja exercido no prazo de dezoito meses do pedido das respectivas consultas.

Tal proposta visa evitar que painéis sejam estabelecidos com base em consultas dormentes, surpreendendo de maneira indevida a outra parte.

Ainda com relação à fase de consultas, discutiu-se a possibilida­de da participação de terceiros interessados.

Pelo sistema atualmente em vigor, depende de anuência do Esta­do consultado que analisará se de fato há um interesse comercial subs­tancial por parte do terceiro. Taiwan propôs que o Estado consultado possa recusar o pedido apenas mediante o fornecimento de justifica­tiva ao terceiro interessado e ao OSC. Costa Rica, por sua vez, sugeriu a aceitação automática do terceiro que alegar interesse substancial na disputa. Jamaica defende que o terceiro sempre deve ser aceito caso a demanda trate de medidas aplicáveis a bens e serviços em geral que afetem o comércio ou medidas que representam um a parte significa­tiva das suas exportações.

Algumas delegações lembraram o caráter bilateral das consultas e ressaltaram que o acesso livre de terceiros poderia prejudicar a busca de uma solução para o conflito. As propostas refletem a busca do equilíbrio entre a promoção da transparência, a coibição de recu­sas arbitrárias e a manutenção do caráter bilateral das consultas para a conclusão de acordos.

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3. BONS OFÍCIOS, CONCILIAÇÃO E MEDIAÇÃO

Quanto a formas alternativas para solução da controvérsia, o Paraguai (vv/16), apoiado pela Jordânia, apresentou proposta para revitalizar o art. 5o do e s c , praticamente nunca utilizado. Essa p ro­posta visa tornar obrigatório os procedimentos de bons ofícios, con­ciliação e mediação, caso uma das partes envolvidas seja um p e d .

Atentou-se para o fato de que, pelo texto proposto (procedures shall be mandatory), entende-se que tais procedimentos constituem uma etapa adicional obrigatória, além das consultas.

Criar um a fase adicional, segundo o ponto de vista da maioria dos Membros, vai contra o objetivo essencial das negociações para revisão do e s c , que é a redução dos prazos.

4. PAINÉIS

Passando à fase que segue às consultas, um assunto debatido foi o prazo para o pedido de estabelecimento de painel. As CE (w /l) e o Japão (w/32) sugeriram que os painéis sejam estabelecidos na pri­meira reunião do OSC, e não na segunda.

De acordo com o sistema atualmente em vigor, em virtude da obrigatoriedade de consenso para a tomada de decisões, o Membro demandado pode bloquear o estabelecimento do painel, votando contra o mesmo, quando o assunto é posto para deliberação pela primeira vez. Apenas em uma segunda reunião do osc é que o esta­belecimento do painel se torna possível, já que a decisão é então tomada por consenso negativo (o painel é automaticamente estabe­lecido ao menos que todos os Membros expressem discordância).

Não houve resistências quanto a essa proposta, mas os p e d s m a­nifestaram interesse em deixar a seu critério o estabelecimento do painel na primeira ou na segunda reunião.

Seguindo a tendência de se d im inuir os prazos para se lograr a solução dos litígios com maior rapidez e eficiência, foi discutida a proposta da Austrália (w/34) que sugeriu que a primeira petição seja

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apresentada juntamente com o pedido de estabelecimento do painel, uma vez que o Membro demandante, ao decidir iniciar uma dem an­da, já está com seus documentos preparados. A proposta que visa à diminuição dos prazos sofre sempre oposição dos p e d s e p m d r s .

4.1. COMPOSIÇÃO DOS PAINÉIS

No tocante à composição dos painéis, há um certo consenso no sentido de que o atual método para escolha dos membros do painel não é o mais eficaz. Isso porque a lista indicativa m antida pelo Se­cretariado com o nome dos membros de painel indicados pelos Membros'1 não é efetivamente usada. Tendo em vista que se exige que as partes em disputa estejam de acordo com relação aos nomes dos membros do painel que julgarão o caso, a parte demandada geralmente discorda dos nomes propostos a fim de ganhar tempo. Só então é que a parte demandante pode solicitar que o painel seja composto pelo Diretor Geral da o m c .

O processo de seleção dos m em bros do painel pode d e m o ­rar meses e pode haver influência indevida do Secretariado nas de­liberações.

As propostas para alterações nesse tema são basicamente três: (1) as CE (w/38) sugerem que seja criado um Órgão Permanente (Standing Panei Body) à imagem do Órgão de Apelação, com a pos­sibilidade de escolha ad hoc de membros do painel para os casos em que se exija um a expertise especial; (2) o Canadá (w/41) sugere que cada Membro indique um nome para uma lista única de possíveis membros de painéis, a qual se tornaria obrigatória; e (3) a Tailândia (w/31), por sua vez, aconselha a criação de uma lista fixa de presi­dentes de painéis enquanto os outros dois membros do painel con­tinuariam a ser escolhidos ad hoc pelas partes.

A s u g e s t ã o d a s CE r e s o lv e r i a o p r o b l e m a d a d e m o r a n a c o m p o ­

s iç ã o d e u m p a i n e l , u m a v e z q u e o s m e m b r o s d e s t e j á e s t a r i a m

1 Conforme art. 8.4 do e sc .

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selecionados, bastando o sorteio para saber quais três julgariam o deter­m inado caso.

Os membros teriam ainda mais autonomia e conhecimento, tanto do mérito das demandas quanto sobre o funcionamento do próprio ESC. Adquiririam experiência, fato que implicaria uma m e­nor intervenção do Secretariado da OMC e uma melhoria técnica dos relatórios emitidos.

Por outro lado, debateram-se os custos para a contratação dos membros permanentes de painéis, a dificuldade de seleção de pes­soas capacitadas em todos os assuntos da o m c e, sobretudo, a retira­da do caráter ad hoc do sistema, privilegiando a diplomacia entre os Estados e a não-jurisdicização.

A proposta do Canadá, apesar de menos inovadora, poderia ser de mais fácil implementação e também teria o efeito de agilizar o processo para composição dos painéis, já que seria uma lista limita­da e de conhecimento prévio dos Membros, os quais não precisa­riam perder tempo rastreando o histórico de membros de painéis sugeridos para poder aceitá-los ou não a cada demanda.

A proposta da Tailândia não resolveria os problemas de com po­sição do painel que são enfrentados pelos Membros atualmente.

5. ÓRGÃO DE APELAÇÃO

No tocante à composição do Órgão de Apelação, a Tailândia (w/30) propôs o aumento do núm ero de membros de sete para nove, en­quanto as CE (w/38) e o Japão (vv/32) propuseram que o Conselho Geral da o m c possa determinar o número de membros, sendo de, no mínimo, sete membros. Tal fato acomodaria as necessidades sazonais e evitaria um a sobrecarga de trabalho, seja em virtude das novas acessões, seja em função do término da Cláusula de Paz, por exem­plo. A Noruega defendeu que o próprio osc deveria ter poder para deliberar sobre o núm ero de membros, não precisando deixar a deli­beração para o Conselho Geral.

Quanto ao período de mandato dos membros do Órgão de Ape­lação, as CE (w/38) e a índia (w/47) propuseram que este passasse

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de quatro para seis anos, não renováveis. Essa proposta recebeu crí­ticas do Chile, que manifestou a sua preferência pela possibilidade de recondução, o que beneficiaria aqueles que tenham tido um bom desempenho.

Com relação à competência do Órgão de Apelação, esta é ape­nas para questões de direito levantadas pelo painel e interpretação dos acordos no âmbito da OMC. Tendo em vista que, em alguns casos, o relatório do painel não fornece dados fáticos suficientes para que o Órgão de Apelação possa apreciar a apelação, a CE suge­re que seja possível o reenvio (remand authority) do caso ao painel. Com isso, evitar-se-ia que o Órgão de Apelação se exima de julgar alguma questão, bem como se impediria que algumas questões não decididas pelo painel, por economia processual ou por ausência de provas, sejam decididas pela primeira vez diretamente pelo Órgão de Apelação, impossibilitando assim que a decisão seja revista.

6. RELATÓRIOS DOS PAINÉIS E DO ÓRGÃO DE APELAÇÃO

Outras propostas, de iniciativa americana, são no sentido de dar aos Membros maior controle sobre os relatórios emitidos pelo painel ou pelo Órgão de Apelação. Tal como ocorre na fase do painel, os Esta­dos Unidos sugerem a emissão de relatório provisório ( interim report) pelo Órgão de Apelação. Assim, as partes em disputa teriam a oportu­nidade de comentar o relatório, antes de oficialmente circulado.

As maiores críticas são por parte do próprio Órgão de Apelação, que dessa forma entende ter sua autonomia e poder afetados.

O utra crítica por parte dos Membros é a criação de uma etapa a mais no procedimento, o que estaria aum entando os prazos para a solução dos litígios.

Nesse mesmo sentido, os Estados Unidos propõem a possibili­dade de o OSC adotar um relatório apenas parcialmente. Tal fato faria com que os Membros tivessem o ônus de ler atentamente os relatórios e discutir em reunião as partes que querem ou não ver implementadas.

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Os p e d s foram os M embros que mais criticaram essa p ropos­ta, um a vez que estaria trazendo um ônus a mais para as delegações, além de possibilitar que um PD, por força política, consiga que ape­nas a parte do relatório que lhe é favorável seja adotada.

Por este último motivo é que a proposta de possibilitar às p ró­prias partes litigantes, e não ao osc como um todo, decidir sobre a supressão de alguns itens dos relatórios tampouco foi bem vista pela maioria dos Membros.

6.1. DESISTÊNCIA E SUSPENSÃO DO PLEITO

As CE (w/38) propuseram que o reclamante possa desistir de seu pleito a qualquer m om ento até a divulgação do relatório provisório. Desse momento em diante, até a adoção da decisão pelo OSC, a desis­tência só seria possível com a anuência das partes envolvidas. Há Membros que preferem limitar a desistência até o m om ento do iní­cio dos trabalhos pelo painel. Os Estados Unidos têm um a proposta no sentido de possibilitar apenas a suspensão dos trabalhos do painel e não a desistência do pleito.

6.2. PRINCÍPIOS E CIRCULAÇÃO DOS RELATÓRIOS

Foram analisadas, ainda, propostas relativas à transparência, à confidencialidade e aos direitos das terceiras partes, que são temas inter-relacionados.

A proposta dos Estados Unidos (w/46) de circulação imediata dos relatórios do painel ao público, em suas versões originais, antes mesmo da tradução para os demais idiomas oficiais, foi criticada pelos países hispânicos.

Os Estados Unidos também defenderam a proposta de divulga­ção imediata das petições ao público em geral, enquanto que o Japão propôs que estas só sejam divulgadas após cada audiência.

Com relação à presença do público nas audiências, defendida pe­los Estados Unidos, a maior parte dos Membros, sobretudo p e d s , ale­ga que poderia afetar a busca de solução negociada entre as partes e conduzir a influências indevidas na apresentação dos argumentos.

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Q uanto aos direitos das terceiras partes, a proposta apresenta­da pela CE (w /l) , Costa Rica (w/12) e Taiwan (w/36), no sentido de fixar o prazo de dez dias, a contar do estabelecimento do painel, pa­ra que os terceiros manifestem seus interesses em participar da con­trovérsia, foi bem aceita, uma vez que já se trata da prática verifica­da na OMC.

Com o objetivo de aum entar seus direitos, discutiu-se a possi­bilidade de as terceiras partes terem acesso às petições de todas as fases e não apenas da primeira, como ocorre atualmente, bem como o direito de terem uma participação ativa em todas as reuniões com o painel, como proposto por Costa Rica e Taiwan, ou participação pas­siva, como sugerido por CE e Japão.

Também a esse respeito, foram comentadas outras propostas da Costa Rica (w/12), do Grupo Africano (w/42) e da índia (w/47). Esses Membros, apoiados pelas CE, sugeriram a inserção no ESC de um artigo que possibilite que terceiras partes sejam ouvidas pelo Órgão de Apelação, mesmo que não tenham participado da fase de painel.

Os Membros, sobretudo p e d s , preferem que seja dada ao tercei­ro apenas uma participação passiva. Eles se preocupam com o fato de haver um desequilíbrio no sistema, aum entando a influência das grandes potências, já que, na prática, apenas os Estados Unidos e a c e s têm condições de participar como terceiros em todos os casos.

Comentou-se, ainda, a proposta das CE (w/38) de permitir a recepção pelos painéis e Órgão de Apelação dos amicus curiae briefs no curso do procedimento. A despeito do apoio dos Estados Unidos, não há consenso em virtude da forte resistência por parte dos p e d s ,

sobretudo da índia, que não vêem vantagens em sua aceitação.Ao mesmo tempo em que se pretende dar maior transparência

aos procedimentos de solução de controvérsias, há uma nítida preo­cupação em se m anter clara a distinção dos direitos das partes, dos terceiros e do público, principalmente por parte do Japão e dos p e d s .

Com relação à confidencialidade, o Canadá tem uma proposta específica para tratamento das informações comerciais (business con-

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fidentiaí Information - b c is ) que tem por objetivo achar um equilíbrio entre a transparência necessária para dar credibilidade ao sistema e a confidencialidade essencial para proteção das empresas envolvidas na demanda.

Outro tema bastante discutido nas reuniões é a necessidade de se resolver a omissão do ESC com relação à ordem dos procedimen­tos estabelecidos no art. 21.5 (painel para resolver se a implementa­ção foi satisfatória) e os procedimentos do art. 22 (imposição de sanções), conhecido como Sequencing.

A proposta australiana é de acrescentar apenas um parágrafo, deixando claro que um Membro não poderá aplicar sanções, tal como retaliar, se ainda houver discordância com relação à imple­mentação. Explicita que se deve pedir primeiro o estabelecimento do painel do art. 21.5.

Já as CE e o Japão, apoiados pela maioria dos Membros, enten­dem que seria necessário um tratamento mais detalhado para o assunto. Por exemplo, sugerem deixar claro se a fase preliminar de consultas é obrigatória antes do estabelecimento do painel sobre implementação, se este pedido de consultas poderá ser feito ainda enquanto decorre o período razoável de tempo ( p r t ) para a imple­mentação da medida, se é possível apelar do relatório do painel, se é admitida a participação de terceiras partes, etc. Tendo em vista a gama de indagações, não foi possível chegar a um consenso quanto a esse assunto.

7. RETALIAÇÕES

Outro tema debatido foi o denominado carrossel. Cabe ao osc dar a autorização para que o Membro vencedor em uma demanda retalie o Membro perdedor. O valor, geralmente, é fixado por arbi­tragem e uma lista dos produtos que serão retaliados é submetida ao osc. A idéia por detrás da proposta é a de que, mediante alteração do valor a ser retaliado, seja submetido ao OSC um novo pedido de au ­torização, tornando possível a rotatividade dos produtos a serem re­taliados (alteração da lista).

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Retaliar a cada m om ento um produto diferente foi uma idéia não bem recebida pela maioria dos Membros.

8. TRATAMENTO ESPECIAL E DIFERENCIADO

Com relação às propostas para tratamento especial e diferencia­do, conforme mencionado anteriormente, os p m d r s pretendem que seja obrigatória a escolha de um membro do painel proveniente de um PMDRs para julgar os casos em que estes estejam envolvidos. Hoje é uma faculdade deles e a maioria dos Membros entende que tornar tal escolha obrigatória seria prejudicial devido à falta de preparo e conhecimento técnico da maioria dos membros dos painéis que são provenientes desses Estados.

A China (w/29) procurou reforçar o tratamento diferenciado para p e d s ao sugerir que um p d seja proibido de abrir mais de dois casos por ano contra um mesmo PED (proposta considerada como um atentado ao livre acionamento do sistema, fato que incentivaria a violação por não ser possível a punição). A China também sugeriu a instituição do princípio da sucumbência em favor dos p e d s nos casos em que os p d s não obtenham vitória.

9. PROCEDIMENTOS ACELERADOS

Com relação a procedimentos acelerados, a Austrália (w/34) comentou sua proposta para estender a outros Membros da o m c

que não participaram da disputa, nem como parte, nem como ter­ceira parte, mas também afetados pela medida declarada inconsis­tente, o direito de requerer compensação mediante o procedimento de arbitragem acelerada5 enquanto a medida não for retirada/im ­plementada.

5 Conforme a rt. 25 do ESC.

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Embora a proposta australiana apresente a vantagem de forçar os Estados que já foram condenados a im plem entar rapidamente as decisões do painel ou do Órgão de Apelação, alguns Estados p o n ­deraram que ela pode vir a favorecer o free riding, ou seja, a p rá ­tica de se beneficiar sem ter tido o ônus de passar por todo o p ro ­cedimento.

A Austrália apresentou, ainda, proposta relativa a um procedi­mento acelerado para análise de medidas de salvaguarda, um a vez que um procedimento muito longo poderia frustrar os Membros afetados de uma condenação tempestiva e eficaz para a proteção da indústria doméstica.

A proposta foi bem recebida pelos demais Membros, que inda­garam se este procedimento não poderia ser aplicado também aos casos de antidumping.

Discutiu-se acerca da exclusão ou não dos p e d s da aplicação desse procedimento acelerado. Segundo alguns Membros, como Noruega e Chile, se a medida violar as regras da OMC, não se justifi­ca o tratamento diferenciado aos PEDS.

O Brasil também apresentou uma proposta (w/45) que consiste na introdução de um mecanismo rápido para apreciação de casos que questionem uma medida já declarada inconsistente com as regras da OMC. Em noventa dias, mais apelação em 45, o caso poderia estar resolvido. A proposta foi muito bem vista pelos Membros, mas em virtude do pouco tempo hábil para se discutir as conseqüências de sua adoção, não foi incluída no texto final do Presidente Balás.

Visando dar maior eficácia ao sistema, algumas outras propos­tas, um pouco mais ousadas, foram postas à mesa.

10. NULUFICATION AND IMPAIRMENT

Com o intuito de determinar antecipadamente o nível de nulli- ftcation and im pairm ent necessário para fixação do m ontante a ser retaliado, o México propõe que este seja fixado já na fase de emissão do relatório do painel. O Equador entende que seria adequado fixar

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A R E V I S Ã O D O M E C A N I S M O D E S O L U Ç Ã O D E C O N T R O V É R S I A S D A O M C

esse nível ao se determinar o p r t 6. A Coréia defende que a determi­nação do nível de nullification and impairment deve se dar na fase do painel de implementação7, enquanto as CE e o Japão querem que seja fixado em qualquer fase antes da imposição das sanções e depois do painel de implementação.

A idéia desses Estados, além de agilizar o processo, é que, fixan­do esse valor antecipadamente, fica mais fácil sentar para negociar uma eventual compensação. Por outro lado, alguns Membros salien­tam a natureza voluntária da compensação e a sua total desvincula­ção com o nível de nullification and impairment. Ou seja, muitas vezes o fato de não se ter um valor em mente facilita a negociação.

11. TRANSFERÊNCIA DE DIREITOS DE RETALIAÇÃO

A proposta do México (w/40) de se criar um mecanismo para transferência de direitos de retaliação obtidos em razão das decisões dos painéis ou do Órgão de Apelação foi considerada por muitos Membros como sendo bastante revolucionária e potencialmente da­nosa para o sistema de solução de controvérsias da OMC. Estar-se-ia dando a um terceiro um direito que não lhe foi originalmente con­ferido.

Mas, por outro lado, seria um a forma de tornar a retaliação efi­caz, tendo em vista que os PEDs, mesmo vencedores, não têm forças políticas para retaliar os pds.

12. OUTRAS PROPOSTAS

O México propôs, ainda, a inclusão no ESC de medidas provisó­rias ou cautelares, efeito suspensivo da matéria sub judice e retroativi-

6 Conforme art. 21.3 (c).7 Conforme art. 21.5.

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D I R E I T O I N T E R N A C I O N A L E D E S E N V O L V I M E N T O

dade das decisões. Todas essas propostas têm por objetivo sanar o problema crucial do sistema: a não-compensação dos danos até en­tão sofridos pela indústria doméstica, acoplado à ausência de san­ção eficaz em caso de não implementação da decisão (soberania dos Estados) e ineficácia da decisão muitas vezes em virtude da demora.

Essas propostas também foram recebidas com certo ceticismo pelos demais Membros, uma vez que modificam por completo o sis­tema de solução de controvérsias da o m c .

Uma maneira de evitar que o p m d r s , vencedor em uma demanda, não tenha forças para retaliar o p d perdedor e acabe não exercendo seu direito, seria a adoção da proposta equatoriana e dos p m d r s de haver uma compensação monetária obrigatória. Ao invés de ser reta­liado, o Estado perdedor deveria pagar ao Estado ganhador uma quan­tia em dinheiro pela violação que estava causando ao comércio inter­nacional.

Essa proposta funcionaria apenas como forma de tratamento especial e diferenciado para os p m d r s e p e d s . Em um a demanda entre PMDRs, entre PEDs ou entre um PMDRs e um PED, nenhum dos dois teria condições de bancar monetariamente a derrota. Nesse caso, seria eficaz a retaliação.

13. RESULTADOS

A maioria das propostas acima mencionadas não foi incluída no texto final apresentado pelo Presidente Balás, em 28 de maio de 2003. Mesmo as incluídas, tal como sequencing, reenvio, aum ento dos direitos das terceiras partes, transparência e tratamento especial e diferenciado, ainda exigem maior análise por parte dos Membros.

Com relação às alterações sugeridas pelo Grupo Africano e pelos p m d r s para a introdução de mais dispositivos prevendo trata­mento especial e diferenciado, as propostas continuam vagas e m ui­to abstratas.

Ademais, torna-se mais difícil progredir com o assunto e obter resultados concretos devido à ausência de interlocutores de tais g ru­

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pos nas reuniões, os quais deveriam defender seus interesses e con­vencer os demais Membros da importância do tema.

Quanto a essas propostas, as principais objeções por parte dos p d s são: (1) apesar de o sistema da o m c não arcar com honorários advocatícios, existe o Advisory Center, instituto da própria OMC, que provê assistência aos p e d s e p m d r s a preços acessíveis; (2 ) não se pode exigir que seja dado tratamento especial e diferenciado sem que este seja solicitado (apenas em 14% dos relatórios adotados pelo OSC tal assunto foi questionado e tratado); (3) a não-atuação de na­cionais dos p e d s e p m d r s como m em bro do painel se deve ao des­preparo intelectual dos mesmos, que acarretaria relatórios de m enor qualidade técnica, fato que seria prejudicial a todos; (4) não há pena­lidade pelo descumprimento de um prazo estipulado no ESC, por­tanto, não há necessidade de se alterar o sistema. As chances de o painel não conceder prazo suplementar para o p e d o u p m d r s que necessitar em virtude de falta de infra-estrutura ou organização são remotas; e (5) o simples fato de ser p e d o u p m d r s não lhes dá mais direito de violar o sistema ou serem menos punidos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tendo em vista os argumentos acima levantados, torna-se difí­cil que haja consenso com relação a algumas das propostas feitas pelos PMDRS para tratamento especial e diferenciado.

Para que se obtenha um resultado concreto e que os p e d s e PMDRS passem a integrar o sistema de forma efetiva, faz-se necessá­rio elaborar uma proposta de como esse tratamento especial e dife­renciado deve ser dado.

O cerne do problema é puramente político e qualquer alteração que venha a ser feita no sistema não fará com que os p e d s e p m d r s

de fato aufiram os benefícios do sistema da OMC. Trata-se do receio de enfrentar um p d em um tribunal internacional, pois, sabem que, apesar de muitas vezes terem direito, sofrerão outras retaliações po ­líticas e econômicas que não compensariam a vitória naquele caso específico.

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O Brasil já superou essa fase e mostrou que não teme os Estados Unidos e as CE. Vide-se as disputas que iniciou até o m om ento e, na maioria das vezes, venceu.

Ocorre que a posição do Brasil é muito diferente da posição dos demais p e d s e p m d r s . O Brasil não depende economicamente de nenhuma grande potência, razão pela qual pode se dar ao luxo de en ­frentar os Estados Unidos e as CE na o m c .

O Brasil é o quarto no ranking dos demandantes para solução de controvérsias perante a o m c , tendo em sua frente apenas os Estados Unidos, as CE e o Canadá.

Quanto à revisão do ESC, a posição brasileira, bem como da maio­ria dos Membros, é no sentido de que o sistema, apesar de ter algu­mas falhas, funciona.

Embora o mandato de Doha refira-se ao esclarecimento e aper­feiçoamento do ESC, como se pôde notar ao longo do estudo, muitas das propostas apresentadas alteram de maneira estrutural o sistema atualmente em vigor, tornando-o mais complexo.

Essa não é a intenção da maioria dos Membros, que, como dito acima, concorda com o fato de que o sistema funciona, apesar de suas pequenas falhas. Acredita-se ser esse o grande motivo do fracasso das negociações cujo prazo era maio de 2003. Não há qualquer grande demandeur de alterações no ESC.

Além disso, não há uma idéia clara de qual seja o objetivo des­sas negociações, não foi estipulada um a ordem de prioridade para tratar dos diversos assuntos, e os Membros se viram, diversas vezes, no impasse de discussões técnicas sem um a perspectiva estratégica.

Ao final de maio de 2003, tornou-se evidente que o prazo não seria cumprido.

Alguns Membros temiam que uma eventual extensão do prazo poderia vincular a revisão do ESC (que de acordo com o parágrafo 47 da Declaração de Doha não faz parte do single undertaking) com o término da Rodada Geral de Negociações.

Voltou-se à análise do mandato que os Ministros haviam confe­rido aos Membros em Doha. Alguns Membros, liderados pela c e ,

defendiam que o mandato não impedia a continuidade dos traba­

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A R E V I S Ã O D O M E C A N I S M O D E S O L U Ç Ã O D E C O N T R O V É R S I A S D A O M C

lhos para revisão do esc um a vez que o termo aim to agree referia-se a resultados e, portanto, se não houvesse consenso até o final de maio, poder-se-ia continuar negociando. Outros, opinião que p a ­rece mais lógica, defendiam que o termo aim to agree referia-se ao prazo fixado e que haveria necessidade de um outro mandato para legitimar a continuidade das negociações.

Entretanto, havia um consenso entre os Membros: dar continui­dade às negociações. A questão que insurgia era apenas de caráter formal: como e quando poderiam continuar negociando?

Conclusão: o prazo para as negociações foi estendido até maio de 2004 pelo Comitê de Negociações Comerciais.

México e CE, com o intuito de detectar os maiores problemas enfrentados pelo sistema atual, apresentaram, no segundo semestre de 2003, documentos para serem discutidos pelos Membros.

Parece que a possibilidade de sucesso dessa nova rodada de ne­gociações será muito maior se os Membros chegarem em breve à conclusão de quais pontos precisam ser alterados antes de iniciar a dis­cussão do texto legal.

REFERÊNCIAS

BALÁS, P. Report by the C hairm an to the Trade Negotiations Committee: t n / d s/5 a t n / d s/9 . Disponível em: <URL: http://vvvvw.docsonline.vvto.org>; acessado no prim eiro semestre de 2003.

COM UNIDADES EUROPÉIAS. Non-Paper b y the EC: )ü b (0 3 )/2 2 2 . D ocum ento restrito aos M em bros da O M C .

MEM BROS DA O M C . Proposals to the Im provem ent and Clariftcation o f the D ispute Settlem ent Understanding: t n / d s/ w /1 a t n / d s/ w /5 6 . Disponível em: <URL: http://www.docsonline.vvto.org>; acessado no prim eiro semestre de 2003.

MÉXICO. Diagnosis o f the Problems affecting the Dispute Settlem ent Mechanism: 1Oü(0 3 )/2 2 0 . D ocum ento restrito aos M em bros da OMC.

SECRETARIADO DA OM C. M inutes o f meeting held in the Centre William Rap- pard on 8 December 1998: w t / o sc / m /5 2 . Disponível em: <URL: http ://w w w . docsonline.w to.org>; acessado no prim eiro semestre de 2003.

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12As Convenções PIC e POP: Rumo ao Desenvolvimento Químico Sustentável?

I n e z L o p e s M a t o s C . d e F a r i a s

In trodução - 1. C onceito d e substância qu ím ica - 2. A es tru tu ra da

proteção juríd ica in ternacional da segurança qu ím ica - 3. P rincí­

pios q u e regem as convenções pop e pic - 4. D ireitos h u m a n o s X

M eio am bien te - 5. Segurança quím ica: u m direito essencial ao

desenvolvim ento h u m a n o - 6. C om érc io in ternacional e seguran ­

ça quím ica in ternacional - 7. M edidas para a im plem entação - 8.

O M ercosul e as convenções pop e pic - 9 . 0 Brasil e as convenções

pop e pic - C onsiderações finais - Referências

INTRODUÇÃO

A introdução de substâncias químicas criadas e/ou manipula­das pelo homem na natureza traz duas conseqüências antinômicas.

De um lado, têm-se os efeitos positivos da utilização de p rodu­tos químicos para o fortalecimento e desenvolvimento de setores da indústria doméstica, por exemplo, uma melhora substancial na produção agrícola com a utilização de herbicidas, pesticidas e fungicidas, que diminuem prejuízos decorrentes de pragas, impulsionando o comércio internacional de agronegócios. Tem- se também a indústria química como a responsável pela melhora

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nas condições de saneamento básico, com o tratamento de águas re­siduais municipais.

Ainda, entre outros fatores positivos, pode-se citar a criação de novos produtos e padrões de consumo, desde brinquedos, utensílios domésticos de plásticos (produzido à base de cloreto de polivinila - p v c ) a perfumes e produtos elétricos, que aum entaram a qualidade de vida, tornando-a mais fácil, e criaram valores estéticos.

A indústria química é também responsável pelo controle de doen­ças, por meio da utilização de medicamentos mais eficazes, que melho­raram substancialmente a saúde do homem e permitiram um aumento de sua expectativa de vida. O Brasil, por exemplo, conseguiu controlar os focos de malária na Região Amazônica com a utilização do inseticida Dietiltriclo-Robenzeno ( d d t ) , considerado altamente tóxico, diminuin­do a mortalidade relacionada à doença. Infere-se, portanto, a íntima liga­ção entre a indústria química e as pessoas nos mercados de consumo.

Estima-se a existência de aproximadamente 100 mil substâncias químicas no comércio e milhares de substâncias de origem natural com as quais os seres humanos estão em contato.

Todavia, muitas delas poluem o meio ambiente ou contaminam os alimentos e os produtos comerciais.

De acordo com o Capítulo 19 da Agenda 21 (1992)', a exposição à maioria desses produtos químicos (aproximadamente 1.500 p ro­dutos químicos representam mais de 95% da produção total do m u n ­do) é bastante limitada, pois a maioria deles é utilizada em quantidades muito pequenas, o que facilita o controle dessas substâncias quím i­cas à preservação da vida hum ana e do meio ambiente.

Sob uma perspectiva econômica, a indústria química mundial tem um faturamento líquido anual de mais de US$ 1,2 trilhão2, sen­

1 Vide Capítulo 19 da Agenda 21. Disponível em: <URL: http://www.preservacao- limeira.com.br/agenda-2 l/linha 19.htm>; acessado em 18/6/2003.

2 Dados de 2001. Essas informações foram obtidas na página da Associação Brasileira da Indústria Química (Abiquim). Disponível em: <URL: http://www.abiquim.org.br/fatu- mundial-2002.pdf>; acessado em 21 /6/2003. Em cinco Estados: Estados Unidos, Japão, Ale­manha, China e França concentram-se 75% do faturamento da indústria química mundial.

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do que a indústria química norte-americana é responsável por mais de 1/3 desse mercado, com a importância de US$ 459 bilhões. Já o Brasil ocupa o nono lugar no ranking mundial, com um faturamen­to líquido anual de US$ 38 bilhões.

Por outro lado, entre os efeitos negativos estão os custos sociais decorrentes do uso dessas substâncias tóxicas. Pesquisas revelam que a utilização de certas substâncias químicas tem promovido impactos nocivos à saúde hum ana e ao meio ambiente de um m odo geral, em razão de terem um processo difícil de degradação natural. Mesmo que no seu ponto de emissão tais substâncias possam ter concentra­ções muito baixas, o efeito de acumulação e transmissão no ecossiste­ma torna-as particularmente perigosas. Ademais, substâncias nocivas acumuladas por anos são encontradas nas zonas mais remotas do planeta, como as regiões polares, por exemplo.

Apesar do conhecimento técnico com relação à nocividade de determinadas substâncias tóxicas, sabe-se que o comércio dessas substâncias no mercado internacional ainda é muito forte, princi­palmente nos países em desenvolvimento, seja em razão da necessi­dade de se combater doenças, seja como uma das principais fontes econômicas.

Em face da preocupação com o impacto nocivo à saúde humana e ao meio ambiente, que o comércio internacional das substâncias altamente tóxicas possa causar e com o intuito de dar efetividade ao Capítulo 19 da Agenda 21, que trata do manejo ecologicamente saudável das substâncias químicas tóxicas e da prevenção do tráfico ilegal internacional de produtos considerados altamente tóxicos e perigosos; a segurança química internacional ganha um nova roupa­gem com a elaboração de dois documentos jurídicos internacionais: a Convenção de Estocolmo sobre Poluentes Orgânicos Persistentes (Convenção p o p - 2001)3 e a Convenção de Roterdã sobre o Consen­

3 A Convenção p o p foi adotada 110 dia 22/5/2001 11a Conferência de Plenipoten- ciários para Poluentes Orgânicos Persistentes, realizada em Estocolmo, Suécia. A entrada em vigor da Convenção p o p ocorreu em 17 de maio de 2004 quando transcor­reu o nonagésimo dia subseqüente ao depósito de sua qüinquagésima ratificação, conforme dispõe o art. 26. A Convenção POP passou a valer também no Brasil em

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timento Prévio Informado para Certas Substâncias Químicas Perigo­sas e Pesticidas no Comércio Internacional (Convenção Pic - 1998)'1.

O presente trabalho visa ao estudo da segurança química in ­ternacional sustentável, em especial as Convenções PIC e POP e seus reflexos à proteção da saúde humana, inclusive a saúde de consum i­dores e trabalhadores, bem como do meio ambiente, contra impactos potencialmente danosos do comércio internacional de certas subs­tâncias químicas e agrotóxicos perigosos, de maneira a garantir às gerações presentes e futuras informações não apenas a respeito dos movimentos transfronteiriços de produtos químicos perigosos no m undo, mas também os seus efeitos à saúde pública internacional.

Entretanto, a precariedade no controle efetivo do uso de tais subs­tâncias constitui grave ameaça ao desenvolvimento sustentável.

1. CONCEITO DE SUBSTÂNCIA QUÍMICA

O controle de movimentos transfronteiriços de certas substâncias químicas é a estrutura basilar para a segurança química e o desenvol­vimento sustentável, uma vez que tanto o manejo ecologicamente sau­dável, empregando-se o termo utilizado no Capítulo 19 da Agenda 21, como a proibição e/ou restrição do uso de substâncias químicas con­sideradas extremamente nocivas pelas comunidades interna e inter­nacional garante a proteção da saúde humana e do meio ambiente.

Mas para uma efetividade desse controle, a qualificação das subs­tâncias químicas existentes e a gradação do nível de periculosidade à saúde pública internacional e ao meio ambiente se tornam infor­mações indispensáveis. Só assim será possível estabelecer medidas

setembro de 2004. As informações foram obtidas na página da internet da Convenção de Estocolmo. Disponível em: <URL: http://www.pops.int>; acessado em 7/9/2004.

4 A Convenção P ic foi adotada em 10/9/1998. De acordo com o art. 26, a entrada em vigor ocorreu no nonagésimo dia subseqüente ao qüinquagésimo depósito de ins­trum ento de ratificação o que se deu no dia 24 de fevereiro de 2004. O Brasil é signa­tário da Convenção PIC desde 11/9/1998 e, assim como a Convenção POP ela entrou em vigor em setembro de 2004. As informações foram obtidas na página da internet da Convenção de Roterdã. Disponível em: <URL: www.pic.int>; acessado em 7/9/2004.

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preventivas contra danos potenciais e, também, responsabilizar os causadores de possíveis danos.

Com o propósito de promover a responsabilidade compartilhada e esforços cooperativos entre os Estados no comércio internacional de certas substâncias químicas perigosas e o uso ambientalmente corre­to desses produtos, a Convenção PIC estabelece três conceitos de substân­cias químicas em seu art. 2o: a geral, a proibida e a severamente restrita.

De acordo com essa Convenção, a substância química de caráter ge­ral refere-se ã substância em si ou em forma de mistura ou preparação, quer fabricada ou obtida da natureza, mas não inclui nenhum organis­mo vivo, e abrange as seguintes categorias: agrotóxicos (inclusive formu­lações de agrotóxicos severamente perigosas) e produtos industriais.

Já a substância química proibida é definida como aquela que tenha tido todos seus usos, dentro de um a ou mais categorias, proibidos por ação regulamentadora final, com vistas a proteger a saúde hum a­na ou o meio ambiente. Inclui substâncias químicas inicialmente não aprovadas para isso, ou que tenham sido retiradas do mercado inter­no pela indústria, ou que passaram a ser desconsideradas em processos nacionais de aprovação com provas irrefutáveis de que tais ações foram adotadas para proteger a saúde hum ana ou o meio ambiente.

Por seu turno, entende-se como substância química severamente restrita aquela que tenha tido quase todos seus usos, dentro de uma ou mais categorias, totalmente proibidos por ação regulamentadora final com vistas a proteger a saúde hum ana ou o meio ambiente, mas para a qual ainda são permitidos determinados usos específicos. Inclui substâncias químicas cuja aprovação tenha sido recusada para quase todos seus usos, ou que tenham sido retiradas do mercado interno pela indústria, ou que passaram a ser desconsideradas em processos nacionais de aprovação com provas irrefutáveis de que tais ações foram adotadas para proteger a saúde humana ou o meio ambiente.

Não obstante o agrotóxico também seja um produto químico5, a Convenção PIC utiliza uma definição específica, qualificando as

5 Segundo o dicionário Aurélio, o agrotóxico é um termo popular para o defensi­vo agrícola, que significa produto químico utilizado 110 combate e prevenção de pra­gas agrícolas.

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formulações de agrotóxicos severamente perigosas como as formula­ções químicas para serem usadas como agrotóxico que, ao serem utilizadas, produzem efeitos prejudiciais graves à saúde ou ao meio ambiente observáveis em curto espaço de tempo após uma única ou múltipla exposição, nas condições de uso. Na verdade, tal distinção é dispensável. Porém, a intenção das partes foi criar procedimentos e critérios diferenciados para informações e inclusões dessas subs­tâncias na relação do Anexo 111 destinado ao movimento transfron- teiriço de certas substâncias químicas mediante o consentimento prévio informado: um para as substâncias químicas, outro para os agrotóxicos.

Algumas substâncias químicas, todavia, são responsáveis pela intoxicação do planeta, em razão de sua lenta biodegradação e po r­que se bioacumulam e são transportados pelo ar, pela água e pelas espécies migratórias através das fronteiras internacionais. São os chamados poluentes orgânicos persistentes ( p o p s ) .

A poluição química é hoje um problema de saúde pública global, necessitando de medidas de alcance mundial para restringir e, em alguns casos, eliminar o acesso aos produtos químicos considerados mais graves. A Convenção P O P tem como propósito proteger a saúde hum ana e o meio ambiente dos efeitos nocivos dos poluentes o r­gânicos persistentes. Reconhece, ainda, a importância de se criar e empregar processos alternativos e produtos químicos substitutivos ambientalmente racionais.

Os P O P s são substâncias químicas semivoláteis classificados em três grupos por meio de critérios científicos: pesticidas, produtos industriais ou resíduos (subprodutos da combustão); de difícil dis­persão, que se acum ulam no meio ambiente, inclusive no tecido adiposo de animais e seres humanos. Por ser um a problemática transfronteiriça decorrente de sua volatilidade, o controle e a elimi­nação ou a restrição dos p o p s dependem, portanto, de uma coope­ração internacional.

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2. A ESTRUTURA DA PROTEÇÃO JURÍDICA INTERNACIONAL DA SEGURANÇA QUÍMICA

A segurança química é, pois, um tema global e por isso exige a cooperação de todos os sujeitos da comunidade internacional para o estabelecimento de medidas preventivas ou remediáveis para a proble­mática ambiental e para a promoção do desenvolvimento sustentável.

A responsabilidade internacional sobre os resíduos perigosos surge apenas na década de 1980, decorrente da criação de leis am ­bientais nacionais mais severas quanto à disposição dos resíduos tó ­xicos nos países desenvolvidos.

A conseqüência foi um redirecionamento desses produtos alta­mente perigosos para os países em desenvolvimento, gerando um comércio lucrativo de movimentos transfronteiriços de resíduos perigosos, mas, ao mesmo tempo, levando ameaça à saúde pública e ao meio ambiente local destinatário.

Atualmente, o movimento transfronteiriço de resíduos perigo­sos é de 40 milhões de toneladas, de um total de 400 milhões de toneladas gerados no m undo.6

Um dos primeiros documentos internacionais a tratar do movi­mento transfronteiriço de resíduos perigosos foi elaborado pela O r­ganização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico ( o c d e )

que elaborou a Recomendação-Decisão do Conselho sobre os Movi­mentos Transfronteiriços de Resíduos Perigosos7, em 1984, que re­conhece a responsabilidade compartilhada dos Estados-membros em salvaguardar a qualidade do meio ambiente tanto em nível interno quanto internacional. Os princípios, decisões e recomendações ado­tados nesse documento remontam o objetivo principal, adotado na

6 LEMOS, H. M. Poluentes Orgânicos Persistentes - A Intoxicação Química do Pla­neta. Diponível em: <URL: http://www.brasilpnuma.org.br/pordentro/artigos_003. htm>; acessado em 19/6/2003 e SOARES, G. F. S. Direito Internacional do Meio Ambien­te. São Paulo, Atlas, 2001.

7 Veja a íntegra do documento na página da o c d e . Disponível em: <URL: h ttp ://w w w .w ebdom inol.oecd .org /horizon ta l/oecdacts .nsf/d isp lay /9bda44ffdcc fa0a0cl256dd60()48b4d8?OpenDocument>; acessado em 19/6/2003.

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Declaração sobre Política Ambiental, de 1974, de proteger e melho­rar progressivamente a qualidade do meio ambiente.

A Recomendação-Decisão estabeleceu um a obrigação de com ­portam ento para os Estados-membros de controlar os movimentos transfronteiriços de resíduos perigosos, por meio da cooperação e pré-notifícação internacional, por intermédio de autoridades nacio­nais de exportação, importação ou de trânsito, que têm o dever de informar precisa e adequadamente o movimento de tais substâncias.

Antes disso, na década de 1970, em outra esfera institucional, atribuiu-se ao Registro Internacional de Químicas Potencialmente Tóxicas ( i r p t c ) a função de controle dos produtos químicos. O i r p t c

foi criado em 1976, decorrendo de uma decisão tomada durante a Conferência de Estocolmo sobre Meio Ambiente Humano, realizada em 1972. Segundo Guido Fernando Silva Soares,

com base nas atividades do i r p t c , passou-se a desenvolver o concei­to de “segurança química” (chemical safety), a princípio, com ênfase num espraiamento mundial dos critérios adotados pelos Estados, em sua órbita interna, por meio de colheita de dados e disseminação das informações sobre critérios nacionais adotados, nos aspectos científicos, técnicos, econômicos e legislativos, internos de regula­mentação referente a produtos químicos classificados segundo crité­rios de cada país, de conformidade com os London Guidelines,8

A problemática ambiental da comercialização e da utilização de substâncias químicas reconhecidas pela sociedade internacional como altamente perigosas e nocivas ao ambiente humano passa para uma dimensão de natureza jurídica internacional, uma vez que afeta toda a coletividade mundial, incluindo até mesmo pessoas que não contribuí­ram (ou contribuíram muito pouco) para o surgimento do problema.

A responsabilidade dos agentes poluidores torna-se indispensável.Como ilustração dos problemas atuais, pode-se citar o caso das

mulheres esquimós na Groenlândia e no Ártico canadense, que apresentam um a concentração de p c b s (policloro bifenil - químico

8 Op. cit., p. 281.

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industrial) em seu leite em quantidade superior à das mulheres dos países desenvolvidos.

Desse modo, a questão da segurança química não se coaduna com o princípio do domínio reservado do Estado, e, portanto, neces­sita de uma política internacional promovida pelos sujeitos de Di­reito Internacional, incluindo-se tal questão como de interesse com um por meio do estabelecimento de normas jurídicas para uma efetiva cooperação internacional.

Em face disso, e tendo em vista a ameaça cada vez maior à saúde humana e ao meio ambiente em decorrência da utilização e dos m o­vimentos transfronteiriços de resíduos perigosos, surge a necessida­de de estabelecer metas para a redução e até mesmo eliminação de certas substâncias.

Essas considerações norteiam a Convenção da Basiléia sobre C on­trole de Movimentos Transfronteiriços de Resíduos Perigosos e seu Depósito, assinada em 22/3/1989, que teve por objetivo primordial estabelecer medidas reguladoras sobre os movimento e o depósito de lixo tóxico oriundo de empresas de países desenvolvidos nos paí­ses em desenvolvimento.9

Igualmente, os Estados, nos quais são gerados resíduos perigo­sos e outros resíduos, têm o dever de administrá-los de forma am- bientalmente saudável e não poderão, em nenhum a circunstância, transferi-los para os Estados de importação ou trânsito.

Um grande avanço nas relações internacionais foi considerar o tráfico ilegal de resíduos perigosos e outros resíduos como uma ati­vidade criminosa.

A Convenção da Basiléia define resíduos em seu art. 3o como substâncias ou objetos, cujo depósito procede, propõe a proceder-se, ou está obrigado a proceder-se em virtude do disposto na legislação nacional. No entanto, a Convenção não proíbe o movimento trans- fronteiriço de resíduos tóxicos, apenas estabelece algumas regras que permitem aos Estados criarem leis mais restritivas em seu orde­namento jurídico interno.

9 A Convenção da Basiléia entrou em vigor no Brasil, com a promulgação do Decreto n. 875 de 10/7/1993.

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Em seu art. 4o, a Convenção da Basiléia cria obrigações gerais aos Estados-parte, dentre elas:

• o direito de proibir a importação de resíduos perigosos e outros resíduos para depósito e dever de informar às outras Partes sua decisão;

• o dever de proibir ou não permitir a exportação de resíduos peri­gosos e outros resíduos para as Partes que proibirem a importação desses resíduos, quando notificadas;

• o dever de proibir ou não permitir a exportação de resíduos peri­gosos e outros resíduos se o Estado de importação não der consen­timento por escrito para a importação específica, no caso de o Esta­do de importação não ter proibido a importação desses resíduos.

Estabelece, ainda, obrigações pró-ativas, na medida em que cada Estado-membro deve tom ar medidas adequadas para:

• assegurar que a geração de resíduos perigosos e outros resíduos em seu território seja reduzida a um mínimo, levando em considera­ção aspectos sociais, tecnológicos e econômicos;

• assegurar a disponibilidade de instalações adequadas para o depó­sito, visando uma administração ambientalmente saudável de resí­duos perigosos e outros resíduos, as quais deverão se localizar, na medida do possível, dentro de seu território, seja qual for o local de depósito;

• assegurar que as pessoas envolvidas na administração de resíduos perigosos e outros resíduos dentro de seu território tomem as me­didas necessárias para evitar a poluição por resíduos perigosos e outros resíduos provocada por essa administração e, se tal polui­ção ocorrer, para minimizar suas conseqüências em relação à saú­de humana e do meio ambiente;

• assegurar que o movimento transfronteiriço de resíduos perigosos e outros resíduos seja reduzido ao mínimo compatível com a adminis­tração ambientalmente saudável e eficiente desses resíduos e que seja efetuado de maneira a proteger a saúde humana e o meio ambiente dos efeitos adversos que possam resultar desse movimento;

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• não permitir a exportação de resíduos perigosos e outros resíduos para um Estado ou grupo de Estados que pertençam a uma orga­nização de integração econômica e/ou política de que sejam Partes Estados, particularmente países em desenvolvimento, cuja legisla­ção tenha proibido todas as importações, ou se tiver razões para crer que os resíduos em questão não serão administrados de forma ambientalmente saudável, de acordo com critérios a serem decidi­dos pelas partes em sua primeira reunião;

• exigir que informações sobre qualquer movimento transfronteiri- ço de resíduos perigosos e outros resíduos proposto sejam forne­cidas aos Estados interessados, de acordo com o Anexo V-A, no sentido de definir claramente os efeitos desse movimento sobre a saúde humana e o meio ambiente;

• impedir a importação de resíduos perigosos e outros resíduos se tiver razões para crer que os resíduos em questão não serão admi­nistrados de forma ambientalmente saudável;

• cooperar com outras Partes e organizações interessadas em ativi­dades, diretamente e através do Secretariado, inclusive divulgando informações sobre o movimento transfronteiriço de resíduos peri­gosos e outros resíduos, com o objetivo de aprimorar a adminis­tração ambientalmente saudável desses resíduos e impedir o tráfi­co ilegal.

Assim, a Convenção da Basiléia é a fonte inaugural para a construção de uma estrutura de proteção jurídica da segurança quí­mica internacional, em nível multilateral, estabelecendo-se um con­trole do movimento de resíduos tóxicos nocivos à saúde hum ana e ao meio ambiente.

Por sua vez, as Convenções p ic e p o p são tratados internacionais autênticos, que consolidam a proteção internacional da segurança química e não são apenas instrumentos jurídicos complementares, visto que estabelecem obrigações pró-ativas aos Estados, para a garan­tia e efetividade da segurança química da sociedade internacional, bem como a responsabilidade por violações às normas internacionais.

Na Convenção POP, aprovou-se um conjunto de medidas que tendem a limitar ou eliminar os produtos nocivos à saúde hum ana

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e ambiental, garantindo-se que o seu uso será feito de forma crite­riosa e controlada e por meio do estabelecimento de processos efi­cazes para dar um destino final aos resíduos.

Reconheceu-se, também, a necessidade de eliminação total de doze poluentes orgânicos persistentes enumerados na Convenção P O P

cuja tarefa não será nada fácil.A chamada dúzia suja é composta pelos agrotóxicos aldrin,

clordano, dieldrin, d d t , dioxinas, endrin, furanos, h c b s , heptacloro, mirex, PCB s e toxafeno. Os países de menor desenvolvimento relativo ainda utilizam essas substâncias na sua economia interna. O pestici­da aldrin, por exemplo, ainda é usado em alguns Estados asiáticos e africanos, e as dioxinas são difíceis de ser controladas, pois resultam da queima de lixos industriais e hospitalares, da fabricação e queima de produtos à base de p v c , além de erupções vulcânicas e incêndios florestais. O d d t foi bastante usado na década de 1960 para o contro­le da malária, mas seus malefícios começaram a aparecer mais recen­temente. Cientistas observaram, por exemplo, que grávidas expostas ao D D T dão à luz antes dos nove meses, o que coloca em risco a vida dos bebês.

Já a Convenção PIC busca promover a responsabilidade com par­tilhada e esforços cooperativos entre os Estados no comércio inter­nacional de certos produtos químicos perigosos.

Porém, a restrição mais severa nos ordenamentos jurídicos esta­tais com a responsabilização dos agentes poluidores tem-se dem ons­trado mais eficaz para a redução desses movimentos, bem como na gestão desses resíduos com transferência de tecnologias mais avan­çadas e a instituição de mecanismos limpos de produção.

3. PRINCÍPIOS QUE REGEM AS CONVENÇÕES POP E PIC

Como visto anteriormente, os p o p s são substâncias orgânicas de grande estabilidade que vão se acumulando no meio ambiente. A Convenção P O P , por sua vez, visa à proteção da saúde hum ana e do meio ambiente dos poluentes orgânicos persistentes, por meio de

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medidas que irão reduzir ou eliminar suas emissões e descargas, especialmente em países em desenvolvimento. E a Convenção PIC

visa estabelecer uma política no comércio internacional de certas substâncias químicas perigosas de maneira a proteger a saúde h u ­mana e o meio ambiente contra danos potenciais e contribuir para o uso ambientalmente correto desses produtos, facilitando o inter­câmbio de informações de certas substâncias químicas perigosas, bem como suas características, estabelecendo um processo decisório na­cional para sua importação e exportação.

Para o alcance de seus objetivos, as Convenções estabelecem os seguintes princípios10:

Precaução: a Convenção p o p estabelece que deverão ser ado­tadas medidas eficazes em termos de custo para evitar a degradação ambiental onde existam ameaças de riscos sérios ou irreversíveis à saúde hum ana e ao meio ambiente; e a falta de certeza científica não será utilizada como motivo para o adiamento dessas medidas (art. 8o, § 7o, a). Para isso, o Comitê de Revisão dos Poluentes Orgânicos Persistentes preparará uma avaliação do gerenciamento de riscos que inclua um a análise das possíveis medidas de controle para a substância química, de acordo com o Anexo F. Já a Convenção PIC coloca as informações sobre medidas de precaução que visam reduzir a exposição à substância química, bem como a sua emissão como uma das informações exigidas para a noti­ficação de exportação (Anexo v).Obrigações de financiamento: a Convenção POP consagra o Fundo Global para o Ambiente ( g e f ) como o principal agen­te de financiamento e obriga os países desenvolvidos a pres­tar auxílio financeiro aos países em desenvolvimento a fim de eliminar, reduzir ou controlar os poluentes orgânicos per-

10 Disponível em: <URL: http://www.escolasverdes.org/pops/legislacao/estocolmo. htm >; acessado em 18/6/2003.

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sistentes. A Convenção p i c , por sua vez, reconhece a necessi­dade de fortalecer a competência e capacidades nacionais no manejo de substâncias químicas, inclusive transferência de tecnologia, assistência financeira e técnica e a promoção da cooperação entre os Estados. Entretanto, as Convenções não estabelecem nem os critérios, nem as formas a serem adota­das para a prestação desse auxílio financeiro.Eliminação total, parcial ou restrição comercial de substân­cias altamente tóxicas: a maior parte dos pesticidas enum e­rados deverá ser retirada do mercado com a entrada em vigor da Convenção p o p . Todavia, para os p c b s se prevê a elimina­ção gradual, assim como para o d d t , em razão de ainda se admitir o seu uso para controle de vetores (fundamental­mente, o mosquito transmissor da malária). Os Estados-par- te ficam ainda obrigados a “tom ar medidas reguladoras com o objetivo de prevenir” a produção e uso de quaisquer novos p o p s . A Convenção P i c traz o mesmo rol de substâncias quí­micas da Convenção p o p que estão sujeitas ao procedimento de consentimento prévio informado no Anexo III. Eliminação dos subprodutos de substâncias químicas: não basta a eliminação de produtos estabelecidos nas convenções como as dioxinas, furanos e hexaclorobenzeno, os Estados devem reduzir as emissões totais com o objetivo de proteger a saúde hum ana e o meio ambiente. Para isso, os Estados de­vem recorrer a processos, materiais e produtos alternativos - prevenindo, na fonte, a produção dos poluentes - em detri­mento de tecnologias finais.Gestão e Depósito Sustentáveis de Substâncias Químicas Nocivas à Saúde H um ana e Ambiental: A Convenção p o p

reconhece a necessidade de um a gestão ambientalmente racional de dejetos, levando-se em consideração as circuns­tâncias e as necessidades dos países em desenvolvimento, principalmente a dos países de m enor desenvolvimento rela­tivo. Além disso, prevê a necessidade de fortalecer a capaci­dade do Estado na gestão dos produtos químicos, inclusive

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mediante a transferência de tecnologia, a prestação de assis­tência financeira e técnica e o fomento da cooperação inter­nacional. Já a Convenção PIC, reconhecendo a necessidade de promover boas práticas da gestão de substâncias químicas em todos os Estados, leva em consideração as normas volun­tárias previstas no Código Internacional de Conduta e no Código de Ética do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) sobre o Comércio Internacional de Substâncias Químicas.Limitações e proibições ao comércio desses produtos qu í­micos: permite-se o comércio de p o p s apenas em situações excepcionais, ou em circunstâncias muito limitadas, como o caso, no qual o Estado importador garante o seu empenho na proteção da saúde e o do meio ambiente e o cumprimento de todos os requisitos consagrados nas convenções. Transparência: embora as Convenções visem eliminar, restrin­gir ou proibir comercialmente certas substâncias qu ím i­cas, há exceções mais genéricas que incluem o uso de poluentes orgânicos persistentes para fins científicos. O movimento transfronteiriço de produtos químicos deve se dar de forma transparente, com as devidas informações e notificações. Responsabilidade internacional: ambas as Convenções se ba­seiam na responsabilização dos Estados-parte. A Convenção PIC tem como objetivo a promoção da responsabilidade com­partilhada e esforços cooperativos entre os Estados-parte no comércio internacional de certas substâncias químicas pe­rigosas, visando à proteção da saúde hum ana e do meio ambiente contra danos potenciais. Tem em vista, também, contribuir com o uso ambientalmente correto desses p rodu­tos, facilitando o intercâmbio de informações sobre suas carac­terísticas, estabelecendo um processo decisório nacional para sua importação e exportação e divulgando as decisões resul­tantes aos Estados-parte. Por seu turno, a Convenção p o p

reconhece as responsabilidades comuns, mas diferenciadas dos Estados, levando-se em consideração as capacidades dos paí-

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ses desenvolvidos e em desenvolvimento. Essa responsabili­zação está em conformidade com o estabelecido no Princípio 7o da Declaração do Rio de Janeiro (1992).

• Acesso e intercâmbio de informações: A Convenção PIC

prevê o intercâmbio de informações científicas, técnicas, tec­nológicas e legais sobre as substâncias químicas nela abran­gidas, inclusive informações toxicológicas, ecotoxicológicas e de segurança. Da mesma forma, estabelece o fornecimen­to de informações publicamente disponíveis sobre ações re- gulamentadoras internas relevantes para os objetivos da p re ­sente Convenção, bem como o fornecimento de informações a outras partes, diretamente ou por meio do Secretariado sobre ações regulamentadoras internas que restrinjam subs­tancialmente um ou mais usos de uma substância química, se for o caso. A exceção a esse princípio limita-se à proteção de quaisquer informações sigilosas na forma em que as par­tes acordarem mutuamente. Já a Convenção POP, ressalta a importância de os fabricantes de p o p s assumirem a respon­sabilidade das empresas de reduzir e o dever de informar aos usuários sobre os efeitos colaterais causados por seus p rodu­tos. Prevê, ainda, o dever de informar aos governos e ao público em geral sobre as propriedades perigosas de certos produtos químicos, por meio da capacitação de trabalhado­res e de pessoal científico, docente, técnico e diretivo, da ela­boração e troca de materiais de formação e sensibilização do público em níveis nacional e internacional, e a elaboração e aplicação de programas de educação e capacitação.

4. DIREITOS HUMANOS X MEIO AMBIENTE

A utilização de produtos químicos tem forte relação com os an ­seios de toda a comunidade internacional, e as práticas modernas revelam que as substâncias químicas podem ser amplamente utiliza­das com boa relação custo-eficiência e com alto grau de segurança. Entretanto, ainda se está longe de assegurar o manejo ecologica-

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mente saudável das substâncias químicas tóxicas dentro dos princí­pios de desenvolvimento sustentável e de melhoria da qualidade de vida da humanidade.

Enquanto os países desenvolvidos exercem um maior controle sobre a utilização de certas substâncias químicas e suas conseqüên­cias para o seu meio ambiente, nos países em desenvolvimento o con­trole dos resíduos tóxicos é incipiente e, em alguns casos, insipiente.

As principais razões referem-se à falta de dados científicos pa­ra avaliar os riscos inerentes à utilização de numerosos produtos químicos e à falta de recursos para avaliar os produtos químicos já utilizados.

D urante décadas se promoveu a contaminação em grande es­cala por substâncias químicas, com seus graves danos à saúde h u ­mana, às estruturas genéticas, à reprodução e ao meio ambiente. Havia um a falsa idéia de que a utilização de certas substâncias altamente tóxicas era sinônima de desenvolvimento econômico. E a principal conseqüência disso é que a recuperação de áreas degra­dadas necessitará de grandes investimentos e de desenvolvimento de novas tecnologias, áreas em que os países em desenvolvimento são deficitários.

Assim, um dos motivos da modernização e do desenvolvimento dos Estados ricos foi a utilização indiscriminada de suas riquezas e de substâncias químicas que contribuíram para degradar não apenas o seu meio ambiente, mas para poluir por ar o meio ambiente de o u ­tros Estados.

Além disso, a tecnologia também foi responsável pela modifica­ção de com portam ento social, criando padrões de consum o alie­nados e nocivos à saúde pública, como a introdução de eletrodo­mésticos na vida doméstica, que expeliam substâncias altamente tóxicas e nocivas à saúde hum ana e ao meio ambiente.

Mas a preocupação com a saúde pública era ofuscada com a sensação de bem-estar e felicidade na aquisição desses bens pelas famílias de várias comunidades nacionais. O refrigerador, por exem­plo, m udou completamente a vida doméstica e tornou-se um sím­

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bolo de status social, pouco im portando se ele poluía a atmosfera do nosso planeta, por expelir P C B s (bifenilas policloradas, que são usa­das em líquidos refrigeradores e em transformadores elétricos), um dos componentes da dúzia suja da Convenção p o p .

Por essas razões, foi necessário repensar o padrão de desenvol­vimento instituído e buscar uma proteção jurídica para reconhecer e, ao mesmo tempo, estabelecer normas de com portam ento social sustentável, a fim de se dar efetividade ao Princípio 8o da Declara­ção do Rio de Janeiro, que diz que “os Estados devem reduzir e eli­minar padrões de consumo e produção considerados insustentáveis”.

A respeito disso, Gilberto Dupas sustenta que:

a sobrevivência da humanidade como espécie, no entanto, está posta progressivamente em risco e irá depender de um enorme esforço conjunto de toda a raça humana. E a esperança de que, um dia, uma parte razoável dos seres humanos possa atingir o atual padrão médio norte-americano tem toda a chance de constituir uma falsa premissa, já que isso exigiria os recursos naturais de mais dois planetas iguais ao nosso. Paradoxalmente, embora saiba­mos ter de preservar a velha mãe Terra, continuamos a destruir seus frágeis ecossistemas naturais, envenenar as águas e poluir o ar com o uso irresponsável da tecnologia."

A sociedade internacional deu um novo passo para a construção jurídica da proteção do meio ambiente com a Declaração do Rio de Janeiro, na qual estabelece um conceito geral de que “os seres hum a­nos têm direito a uma vida saudável e produtiva, em harmonia com a natureza” (Princípio Io).

Esse Princípio se coaduna com o art. 25 da Declaração Univer­sal dos Direitos do Hom em (1948), que diz que todo hom em “tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família

11 DUPAS, G. Ética e poder na Sociedade de Informação. 2. ed. São Paulo, Unesp, 2000. p. 102-3.

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saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação A responsabilidade para realizar os propósitos reconhecidos pela co­munidade internacional é dos Estados.

As Convenções p o p e p ic que tratam da segurança química inter­nacional têm por objetivo comum proteger a saúde hum ana e o meio ambiente dos poluentes orgânicos transfronteiriços, modificando padrões de produção e de consumo de produtos altamente tóxicos. Observa-se, portanto, que esses dois instrum entos jurídicos inter­nacionais dão eficácia aos Princípios Io e 8o da Declaração do Rio de Janeiro numa leitura conjugada com o art. 25 da Declaração Univer­sal dos Direitos do Homem.

Outro direito essencial do homem, consagrado no art. 19 da De­claração Universal dos Direitos do Homem, refere-se ao direito que as pessoas têm de receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras. O direito à informação a respeito da segurança química internacional está consagrado tanto na Convenção pop quanto na pic.

O art. 9.1 da Convenção POP estabelece que

cada Estado-parte deverá facilitar ou realizar o intercâmbio de in­formações relacionadas à redução ou eliminação da produção, uti­lização e liberação de poluentes orgânicos persistentes e às alter­nativas para essa “dúzia suja”, inclusive informações relacionadas aos seus riscos, bem como seus custos econômicos e sociais.

O art. 10.1 tam bém reconhece o direito à informação e prevê a necessidade de conscientização e educação do público. Para isso determina que cada parte deve, de acordo com sua capacidade, p ro­mover e facilitar:

• a conscientização dos formuladores de políticas e decisões com relação aos poluentes orgânicos persistentes;

• a comunicação ao público de todas as informações disponíveis relacionadas aos poluentes orgânicos persistentes;

• a elaboração e implementação de programas de educação e cons­cientização do público, especialmente mulheres, crianças e pessoas

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menos instruídas, sobre os poluentes orgânicos persistentes, seus efeitos para a saúde e o meio ambiente e suas alternativas;

• a participação do público no tratamento do tema dos poluentes orgânicos persistentes e seus efeitos para a saúde e o meio ambien­te e o desenvolvimento de respostas adequadas, incluindo as pos­sibilidades de se fazer aportes, em nível nacional, para a imple­mentação da presente Convenção;

• o treinamento de trabalhadores, cientistas, educadores e pessoal técnico e área gerencial;

• a elaboração e troca de material educativo e de conscientização do público, no plano nacional e internacional; e,

• a elaboração e implementação de programas educativos e de trei­namento, no plano nacional e internacional.

Por sua vez, a Convenção PIC também consagra o direito de in­formação em seu art. 14.1 atribuindo a cada Estado-parte o dever de facilitar:

• o intercâmbio de informações científicas, técnicas, tecnológicas e legais sobre as substâncias químicas abrangidas pela presente Con­venção, inclusive informações toxicológicas, ecotoxicológicas e de segurança;

• o fornecimento de informações publicamente disponíveis sobre ações regulamentadoras internas relevantes para os objetivos da presente Convenção; e

• o fornecimento de informações a outros Estados-parte, direta­mente ou por meio do Secretariado, sobre ações regulamentadoras internas que restrinjam substancialmente um ou mais usos de uma substância química, se for o caso.

Consagra-se, ainda, o direito do consumidor de ter acesso a in­formações dos produtos que consome, principalmente com relação à utilização de substâncias tóxicas, como pesticidas e herbicidas, cujos efeitos são nocivos à saúde pública.

A busca da proteção do hom em por meio da asseguração de um meio ambiente sadio gera obrigações positivas e negativas aos Esta­dos. Obrigações negativas de não mais utilizar, nem permitir a utili­

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zação em seu território ou eliminar definitivamente a “dúzia suja” de acordo com o art. 6o da Convenção p o p , e obrigações positivas de in­formar e listar as substâncias reconhecidas como nocivas à saúde humana, em consonância com o art. 8o, tomando-se as providências necessárias para proteger a saúde do hom em e a proteção do meio ambiente.

A Convenções p o p e p ic instituem um verdadeiro controle sobre os movimentos transfronteiriços de substâncias extremamente pre­judiciais ao hom em e ao meio ambiente, por meio de uma política de segurança química internacional, atribuindo aos Estados-parte o dever de implementar os princípios reconhecidos nessas Conven­ções em seus ordenamentos jurídicos internos.

Essa construção jurídica se apóia no art. 28 da Declaração Uni­versal dos Direitos do Homem, na qual se reconhece que “todo h o ­mem tem direito a uma ordem social e internacional”.

As obrigações internacionais assumidas pelos Estados geram obrigações de ordem interna também, mas nenhuma das Convenções se opõem a implementação de medidas nacionais mais restritivas.

Poder-se-ia, então, nesse enquadram ento jurídico de direitos hum anos, considerar a segurança química um direito essencial do homem? Quais os fundamentos que justificariam a defesa dessa tese?

5. SEGURANÇA QUÍMICA: UM DIREITO ESSENCIAL AO DESENVOLVIMENTO HUMANO

O primeiro passo para a busca da segurança química interna­cional como um direito essencial do hom em de ter um direito ao desenvolvimento quimicamente sustentável se dá com a Declaração de Viena (1993), que reconhece em seu § 11 a necessidade de uma construção jurídica nessa área, quando afirma que:

O direito ao desenvolvimento deve ser realizado de modo a satis­fazer eqüitativamente as necessidades ambientais e de desenvolvi­mento de gerações presentes e futuras. A Conferência Mundial sobre

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Direitos Humanos reconhece que a prática de descarregar ilicitamente substâncias e resíduos tóxicos e perigosos constitui uma grave ameaça em potencial aos direitos de todos à vida e à saúde. Conseqüentemen­te, a Conferência Mundial sobre Direitos Humanos apela a todos os Estados para que adotem e implementem vigorosamente as con­venções existentes sobre o descarregamento de produtos e resíduos tóxicos e perigosos e para que cooperem na prevenção do descar­regamento ilícito. Todas as pessoas têm o direito de desfrutar dos benefícios do progresso científico e de suas aplicações. A Conferên­cia Mundial sobre Direitos Humanos observa que determinados avanços, principalmente na área das ciências biomédicas e biológi­cas, podem ter conseqüências potencialmente adversas para a inte­gridade, dignidade e os direitos humanos do indivíduo e solicita a cooperação internacional para que se garanta pleno respeito aos direitos humanos e à dignidade, nessa área de interesse universal.12

A análise desse parágrafo comprova ser a segurança química um direito essencial do homem, de 3a geração, uma vez que decorre dos sentimentos de solidariedade e fraternidade para o controle de movimentos transfronteiriços de resíduos perigosos, área de interes­se internacional, com o propósito de proteger as pessoas de todo o planeta.

São novos valores juridicamente reconhecidos como direitos hum anos e demonstram a necessidade de se construir um a estrutu­ra interconexa entre as demais dimensões de direitos humanos, a fim de garantir a proteção efetiva do hom em enquanto o centro do universo social.

A garantia dos direitos de Ia geração, como o direito à vida, à integridade física e à saúde depende da efetividade dos direitos de 3a geração (direito ao meio ambiente sadio, direito ao desenvolvimen­to, inclusive o direito ao desenvolvimento químico sustentável).

O conceito de desenvolvimento é muito amplo. Por isso, é in ­dispensável para fins de estudos considerar o desenvolvimento quí­

12 Grifo cia autora.

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mico sustentável como um direito essencial do hom em autônomo, com o propósito de garantir a segurança e uma proteção efetiva des­se direito.

No entanto, o alcance do direito humano segurança química de­pende da necessidade de se estabelecer um a agenda pró-ativa entre os Estados na ordem internacional para implementar políticas inter­nacionais de proibição, e no caso dessa não ser possível, políticas de restrição, de m onitoram ento e de controle de movimentos trans­fronteiriços de substâncias altamente tóxicas à saúde pública inter­nacional.

Ao mesmo tempo, a cooperação internacional entre os Estados também é um imperativo que deve ser estendido à ordem constitu­cional dos Estados, principalmente no que tange ao acesso às tecno­logias limpas, ecologicamente sustentável.

6. COMÉRCIO INTERNACIONAL ESEGURANÇA QUÍMICA INTERNACIONAL

A relação entre comércio internacional e a proteção do meio ambiente é extremamente complexa. De um lado, tem-se o direito do Estado de se desenvolver economicamente, com a participação ativa no jogo do comércio internacional, por meio da inserção de seus produtos na economia global. De outro, tem-se o direito ao desenvolvimento da pessoa de m odo sustentável, que garanta um meio ambiente seguro e sadio não só às presentes, mas, tam bém , às futuras gerações.

O comércio internacional de substâncias químicas altamente tóxicas que afetam a saúde hum ana e do meio ambiente é incompa­tível com o princípio do desenvolvimento sustentável.

Entretanto, embora as Convenções POP e PIC reconheçam a peri- culosidade de certos produtos químicos e, por conseguinte, a neces­sidade de eliminação ou redução dos componentes da dúzia suja considerados nocivos à saúde humana, admite-se isenções em alguns Estados específicos.

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Novos produtos de p c b s serão proibidos, mas, ainda se discute o que fazer com os que estão atualmente em uso em equipamentos elétricos nos países em desenvolvimento.

O problema esbarra no custo operacional para a substituição desses equipamentos sujos por tecnologias e produtos limpos. Para isso, há necessidade de revisões periódicas para tratar do assunto, pois a transferência de tecnologia de mecanismos limpos de desen­volvimento é indispensável para restringir ou eliminar definitiva­mente o comércio internacional da dúzia suja.

Tentou-se estabelecer uma política conjunta com a Organização Mundial das Aduanas ( o m a ) para tornar efetivo o controle trans- fronteiriço de substâncias químicas perigosas. O § Io do art. 13 da Convenção p ic estabelece que:

A Conferência das Partes incentivará a Organização Mundial das Aduanas a atribuir códigos alfandegários específicos do Siste­ma Harmonizado às substâncias químicas individualmente ou a grupos de substâncias químicas relacionados no Anexo III, confor­me o caso. Sempre que um código for atribuído a tais substâncias químicas, cada Parte exigirá que o documento de embarque refe­rente àquela substância química contenha o referido código, quan­do o mesmo for exportado.

Entretanto, a o m a já indicou a impossibilidade de atender às necessidades da Convenção p ic relacionadas à criação de códigos específicos no Sistema Harmonizado, manifestada ao Secretariado da Convenção por meio da correspondência WCO n. 00NL0341- Wi/Fl, de 14/4/2000, na qual sugere o uso do chamado “Código de Nível Nacional” (na n c m : “Itens e/ou sub-itens”), para atender aos casos em que sejam necessários maiores controles sobre o comércio de algum produto.

Essa sugestão da o m a pode se transformar num a barreira técni­ca ao comércio internacional e impedir que produtos originários de países em desenvolvimento tenham acesso ao mercado dos países desenvolvidos se não preencherem os códigos estabelecidos em nível nacional.

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AS C O N V E N Ç Õ E S PIC E P O P : R U M O A O D E S E N V O L V I M E N T O Q U Í M I C O S U S T E N T Á V E L ?

Em decorrência disso, as Convenções p o p e p ic reconhecem as ações especiais que deverão ser tomadas em relação aos países em desenvolvimento, particularmente as dos países de m enor desenvol­vimento relativo, e dos países com economia em transição, em fun­ção de suas necessidades peculiares para fortalecer suas capacidades nacionais para a gestão das substâncias químicas, inclusive median­te a transferência de tecnologia, a prestação de assistência financeira e técnica e a promoção da cooperação entre as Partes.

Nesse sentido, ambas as Convenções prevêem assistência técni­ca e mecanismos e fontes de financiamento, com o propósito de se alcançar seus objetivos.

A Convenção p o p estabelece o compromisso de cada Estado- parte prestar apoio financeiro, bem como oferecer incentivos, res­peitando-se as atividades nacionais, observando-se suas capacidades financeiras.

Por isso, os países desenvolvidos têm a obrigação de prover recur­sos financeiros novos e adicionais aos países em desenvolvimento e os países com economias em transição, para ajudar na aplicação da Convenção, seja por acordos bilaterais, regionais e multilaterais.

Por isso, uma implementação efetiva depende de duas obriga­ções: a de os países desenvolvidos cumprirem efetivamente os com ­promissos contraídos com o auxílio de recursos financeiros, e a de fornecerem assistência técnica e transferirem tecnologia.

Os países em desenvolvimento deverão ter sempre em conta que o desenvolvimento econômico e social sustentável e a erradi­cação da pobreza são as suas prioridades primordiais e absolutas, com a finalidade precípua de proteger a saúde hum ana e o meio ambiente (art. 13).

A administração desses recursos financeiros, no início da vigência da Convenção, ficará a cargo do Fundo para o Meio Ambiente M un­dial, a título provisório, conforme estabelece o art. 14 da Convenção.

A Convenção PIC prevê a assistência técnica, levando-se particu­larmente em consideração as necessidades de países em desenvolvi­mento e de países com economias em transição. Os Estados-parte

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D I R E I T O I N T E R N A C I O N A L E D E S E N V O L V I M E N T O

cooperarão para a promoção de assistência técnica voltada ao desen­volvimento da infra-estrutura e da capacidade necessárias ao geren­ciamento de substâncias químicas para permitir a implementação dos objetivos previstos.

Além disso, estabelece a obrigação dos Estados com programas mais avançados de regulamentação de substâncias químicas o dever de prestar assistência técnica aos demais Estados, inclusive treina­mento, para o desenvolvimento de infra-estrutura e capacidade para gerenciar substâncias químicas em todo seu ciclo de vida.

Quanto aos recursos financeiros, esses não foram estabelecidos pela Convenção p ic , deixando para a Conferência das Partes, em sua primeira reunião, definir e adotar regras financeiras e de procedi­mento a serem seguidas por si própria e por quaisquer corpos sub­sidiários, bem como estabelecer disposições financeiras para reger o funcionamento do Secretariado. As regras financeiras e de procedi­mento serão realizadas por consenso, conforme dispõe o seu art. 18.

7. MEDIDAS PARA A IMPLEMENTAÇÃO

As Convenções POP e PIC estabelecem medidas individuais e co­letivas para a implementação dos objetivos nelas previstos. A C on­venção p ic , em seu art. 15, prevê como medidas individuais aquelas decorrentes das atividades particulares de cada Estado-membro e ne­cessárias para criar e fortalecer infra-estrutura e instituições nacio­nais. Essas medidas poderão incluir, se necessário:

a adoção ou emenda de medidas nacionais legislativas ou adminis­trativas e poderão, também, incluir o estabelecimento de cadastros e bancos de dados nacionais com informações de segurança sobre substâncias químicas;

• o estímulo a iniciativas, por parte de indústrias, para promover a segurança química; e

• a promoção de acordos voluntários.

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AS C O N V E N Ç Õ E S PIC E P O P : R U M O A O D E S E N V O L V I M E N T O Q U Í M I C O S U S T E N T Á V E L ?

Outras medidas individuais são aquelas necessárias para garan­tir, na medida do possível, que o público tenha acesso adequado a informações sobre o manuseio de substâncias químicas e o geren­ciamento de acidentes, bem como alternativas mais seguras para a saúde hum ana ou o meio ambiente, além daquelas substâncias quí­micas que estão relacionadas no Anexo m da Convenção p ic .

Já com relação às medidas coletivas para serem implementadas, os Estados cooperarão diretamente ou, se for o caso, por meio de organizações internacionais competentes em todos os níveis (bilate­ral, regional e multilateral), de maneira a proteger a saúde humana e o meio ambiente, devendo estar em conformidade com o Direito Internacional.

Q uanto às medidas de implementação da Convenção POP, o art. 11 tam bém dispõe sobre medidas individuais e coletivas, na qual os Estados-parte deverão, de acordo com suas capacidades, enco­rajar e efetuar medidas adequadas de pesquisa, desenvolvimento, m onitoram ento e cooperação com relação aos produtos orgânicos persistentes e, quando relevante, as alternativas para os poluentes orgânicos persistentes potenciais, levando-se em consideração os seguintes aspectos, nos termos do artigo:

Fontes e resíduos no meio ambiente;Presença, níveis e tendências nas pessoas e no meio ambiente; Transporte, destino Final e transformação no meio ambiente; Efeitos na saúde hum ana e no meio ambiente;Efeitos socioeconômicos e culturais;Redução e/ou eliminação de seus resíduos; e Metodologias harmonizadas para fazer inventários das fon­tes geradoras e das técnicas analíticas para a medição das emissões.

Essas medidas de aplicação dependerão de obrigações de com ­portam ento dos Estados-parte para desenvolver programas, redes e organizações internacionais, além de fortalecer a capacidade nacio­nal de pesquisa científica e técnica, principalmente na assistência dos

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D I R E I T O I N T E R N A C I O N A L E D E S E N V O L V I M E N T O

países desenvolvidos aos países em desenvolvimento e aos países com economias em transição.

8. O MERCOSUL E AS CONVENÇÕES POP E PIC

Durante a xx Reunião Ordinária do Subgrupo de Trabalho n. 6 do Mercosul “Meio Ambiente” ( s g t - 6 ) realizada em 2001, os Estados- parte do Mercosul reiteraram os termos acordados nas Convenções p ic e pop a respeito do manejo de substâncias/produtos químicos, pesti­cidas perigosos e outros poluentes orgânicos persistentes.13

Os Estados afirmaram que uma das medidas necessárias para tanto é o monitoram ento do comércio internacional de tais substân­cias, com base no registro alfandegário de importações em códigos in­ternacionalmente aceitos.

Segundo o documento, a atribuição de códigos aduaneiros es­pecíficos para identificar as substâncias/produtos químicos listados nos anexos das duas Convenções p ic e p o p é importante, de modo a facilitar suas aplicações em âmbito regional, e que algumas substân­cias/produtos ainda não contam com código específico na N om en­clatura Com um do Mercosul ( n c m ) . Em razão disso, o Subgrupo de Trabalho n. 6 do Mercosul “Meio Ambiente” solicita ao Grupo Mer­cado Com um que recomende à Comissão de Comércio do Merco­sul as providências necessárias para a criação na n c m dos códigos sugeridos em quadro anexo.

Brasil e Argentina têm posições comuns, uma vez que os dois Estados reconhecem que qualquer medida nesse sentido deve ser acompanhada por acesso à tecnologia, novos equipamentos e finan­ciamentos para fábricas.

13 MERCOSUL/GMC/SGT N. 6 / ACTA N. 05/2001. Disponível em: <URL: http :// www .m m a.gov.br/port/sqa/m ercosul/docm erc/atas/ata501/inform e.htm l>; acessa­do em 19/6/2003.

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9. O BRASIL E AS CONVENÇOES POP E PIC

O Brasil tem avançado substancialmente na área de segurança química, assumindo compromissos na ordem internacional, e, na ordem nacional, tem estabelecido políticas nacionais de proteção ambiental nesse segmento.

O Brasil é signatário tanto da Convenção POP, que proíbe o uso da dúzia suja que podem causar, dentre outras doenças, o câncer; quanto, da Convenção de Roterdã PIC, da qual o Brasil participou ativamente durante a Conferência de Plenipotenciários.

Quase todas as substâncias químicas chamadas de “dúzia suja” estão proibidas no Brasil desde 1985, pela Portaria n. 329 do Minis­tério da Agricultura.

O Projeto de Lei do Senado n. 416, de 1999, que proíbe a fa­bricação, a importação, a exportação, a m anutenção em estoque, a comercialização e o uso de d d t foi apreciado pela Comissão de Assuntos Sociais, que deu parecer favorável à aprovação do projeto. O parecer da Comissão reconheceu que a dúzia suja a ser eliminada ou a ter seu uso restringido pela Convenção p o p é extremamente nociva à saúde ambiental e humana, resistente à degradação, muito estável, e cuja característica mais perniciosa é seu efeito bioacumu- lativo nos tecidos dos animais e do homem.

A partir da década de 1980, o Brasil suspendeu a fabricação do DDT em conseqüência da proibição de seu uso na agricultura. No entanto, continuou, até há bem pouco tempo, a empregar o insetici­da no controle dos vetores da malária e de outras doenças transm i­tidas por mosquitos, apesar dos impactos nocivos ao meio ambiente e às saúdes hum ana e animal decorrentes de sua aplicação.

Não obstante muitos Estados onde a malária é endêmica ainda fazerem uso do d d t , seu emprego na batalha contra a moléstia está bem documentado, e os resultados não chegam a ser convincentes. Isso acontece devido à capacidade de adaptação do mosquito trans­missor, o qual, em pouco tempo, dada a rapidez com que se repro­duz, pode desenvolver resistência ao inseticida, tornando-o ineficaz.

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Em vista disso, o d d t é , hoje, proibido em mais de quarenta Estados. A Suíça proibiu sua utilização em 1939; os Estados Unidos, em 1972.

Embora o Brasil tenha proibido o uso de DDT na agricultura des­de 1985, por ato do Ministro da Agricultura, especialistas revelam que ainda há grandes estoques que não foram destruídos e que seu uso não foi totalmente interrompido.

As autoridades brasileiras de vigilância sanitária, no entanto, afirmaram que o estoque remanescente de d d t havia sido recolhido e incinerado, e, portanto, tinham abandonado o seu uso em 1995. Contudo, entre 1990 e 1995, cerca de 3 mil toneladas foram empre­gadas na Amazônia para controlar a malária. Os resultados sobre o referido ecossistema não são conhecidos.

No final da década passada e nos primeiros anos desta, como forma de controlar a importação de casos de malária para as regiões Sul e Sudeste, as autoridades sanitárias utilizaram o inseticida tam ­bém nessas regiões, no bloqueio de focos.

A Secretaria de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde bai­xou a Portaria n. 11, de 8 de janeiro de 1998, que proíbe o uso do DDT nos programas de controle de doenças transmitidas por insetos, inclusive da malária. Apesar disso, a proibição ainda é um objetivo a ser alcançado.

O d d t também continua sendo utilizado como componente de inseticidas domésticos em várias partes do m undo em desenvolvi­mento e constitui a única alternativa, ainda que não totalmente com ­provada para o controle da malária, como ocorrem nos Estados pobres da África, Ásia e América Latina.

No momento, existe um movimento internacional, promovido pela Malaria Foundation International, uma organização não-gover- namental, e pelo Pnuma, para a proibição definitiva do d d t no mundo. Estima-se que tal objetivo se torne possível até 2007.

A proibição definitiva do uso de d d t depende da cooperação internacional, a fim de que os países desenvolvidos aumentem seus investimentos e doações para a pesquisa e o controle da malária nos Estados pobres, de tal forma que se encontrem alternativas econô­

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AS C O N V E N Ç Õ E S PIC E P O P : R U M O A O D E S E N V O L V I M E N T O Q U Í M I C O S U S T E N T Á V E L ?

m i c a s e t e c n i c a m e n t e v i á v e i s p a r a o c o n t r o l e d a d o e n ç a , s e p r e c i s a r

r e c o r r e r a o u s o d o d d t .

Outra medida adotada pelo Brasil foi a Resolução n. 316, de 29 de outubro de 2002H, criada pelo Conselho Nacional do Meio Ambien­te (Conama) e cujo principal objetivo é disciplinar os processos de tratamento térmico de resíduos e cadáveres, estabelecendo procedi­mentos operacionais, limites de emissão e critérios de desempenho, controle, tratamento e disposição final de efluentes, de modo a mini­mizar os impactos ao meio ambiente e à saúde pública, resultantes destas atividades. O art. 5o estabelece que “os resíduos recebidos pelo sistema de tratamento térmico deverão ser documentados, por meio de registro, do qual conste sua origem, quantidade e caracterização”.

Essa resolução reconheceu que os sistemas de tratamento térm i­co de resíduos são fontes potenciais de risco ambiental e de emissão de poluentes perigosos, podendo constituir agressão à saúde e ao meio ambiente se não forem corretamente instalados, operados e m anti­dos. Além disso, está em consonância com a Convenção P O P quando afirma que entre estas substâncias destacam-se, pela sua periculosi- dade, os poluentes orgânicos persistentes, e que deve ser buscada a redução das emissões totais dos poluentes mencionados, com a finali­dade de sua contínua minimização e, onde for viável, sua elimina­ção definitiva, uma vez que têm propriedades tóxicas, são resistentes à degradação, bioacumulam-se, são transportados pelo ar, pela água e pelas espécies migratórias através das fronteiras internacionais e depositados distantes do local de sua emissão, onde se acumulam em ecossistemas terrestres e aquáticos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As Convenções p o p e p i c dão mais um passo para a promoção do desenvolvimento sustentável, conforme estabelece o Princípio 3o, consagrado na Declaração do Rio de Janeiro, bem como o dever dos Estados de cooperar no desenvolvimento e intercâmbio de conheci-

14 Publicada no DOU de 20/11/2002.

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mento científico e tecnológico (Princípio 9o) e do dever de reduzir e eliminar padrões de consumo e produção considerados insusten­táveis (Princípio 8o). Ademais, colabora para a institucionalização do Capítulo 19 da Agenda 21, para se obter um manejo ecologica­mente saudável das substâncias/produtos químicos tóxicos, incluída a prevenção do tráfico internacional ilegal dos produtos tóxicos perigosos.

Torna-se, portanto, necessária a obtenção de informações, orien­tações e ações diretas na aplicação de tecnologias ambientalmente adequadas para que haja um controle dos processos de fabricação, manuseio e utilização dos produtos, bem como o tratamento ou a reciclagem de emissões e resíduos tóxicos, a substituição por tecno­logias mais limpas, sem prejudicar a participação do Estado no co­mércio internacional e, principalmente, a modificação no padrão de consumo de maneira que o consumidor tenha um papel ativo na colaboração do controle da segurança química internacional.

O alcance do direito à informação na segurança química inter­nacional depende de uma política de implementação de selos de cer­tificação ambiental neste segmento, os chamados selos verdes.

Assim, a sociedade civil poderia ter um a participação mais dire­ta e efetiva no controle de substâncias químicas altamente tóxicas, pois os selos seriam uma forma de identificação de produtos ecolo­gicamente saudáveis, e daria aos consumidores o direito de optar pelos produtos que estão no mercado, fazendo-se um trabalho entre os setores públicos e privados. A principal razão para essa sugestão é que a política de governos de programas de selos verdes tem sido um dos melhores instrumentos para a mudança nos padrões de consumo e de produção insustentáveis. Embora a questão da rotu­lagem ambiental não tenha sido objeto de discussão nas Convenções p o p e p ic , isso não impede que os Estados adotem as medidas de ro­tulagem ambiental, um a vez que as leis nacionais também são medi­das de implementação reconhecidas pelas Convenções.

A responsabilidade compartilhada dos Estados quanto aos m o­vimentos transfronteiriços de resíduos altamente tóxicos é um gran­de avanço, que atinge não apenas os Estados, mas os segmentos da

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indústria doméstica que tentam se esquivar da responsabilidade pela simples transferência de resíduos químicos.

Dessa forma, a nova estrutura da segurança química internacio­nal exige um com portam ento pró-ativo de todas as pessoas envolvi­das nessa questão, tanto do produtor de resíduos de origem quanto da empresa receptora desses resíduos, com a obrigação do consenti­mento prévio informado e, quando legalmente previsto, a não-acei- tação da entrada de certas substâncias químicas no mercado inter­no, sem caracterizá-las como barreiras não-tarifárias.

No que tange à responsabilidade comum, mas diferenciada pre­vista na Convenção p o p , busca-se garantir o princípio da igualdade jurídica entre os Estados, como princípio fundamental das relações internacionais, garantido na Carta da ONU (art. 2o, §2°).

Isso faz com que haja uma proporcionalidade na dimensão da responsabilidade de acordo com a capacidade dos Estados.

No entanto, isso não quer dizer que os Estados de m enor desen­volvimento relativo estejam imunes, mas apenas que têm o dever de estabelecer políticas ambientalmente mais seguras quanto ao desen­volvimento químico internacional, e os países desenvolvidos, além disso, têm o dever de auxiliar não apenas com recursos financeiros, mas com a transferência de tecnologias mais limpas.

O princípio maior é a congruência entre comércio e meio am ­biente, de maneira que o comércio internacional se paute numa po­lítica de movimentação transfronteiriça de substâncias químicas eco­logicamente sustentável à garantia da saúde pública global. Só assim se garantirá às pessoas que compõem a sociedade internacional o direito a um desenvolvimento químico sustentável.

REFERÊNCIAS

ALBUQUERQUE, L. A Convenção de Estocolmo sobre Poluentes Orgânicos Persis­tentes. Florianópolis, 2003. Dissertação (M estrado). Faculdade de Direito, Universidade Federal de Santa Catarina.

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D I R E I T O I N T E R N A C I O N A L E D E S E N V O L V I M E N T O

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Preservação. Capítulo 1 9 - M anejo Ecologicamente Saudável Das Substâncias Q uí­micas Tóxicas, Incluída A Prevenção Do Tráfico Internacional Ilegal Dos Pro­dutos Tóxicos E Perigosos. Disponível em: <URL: http://www .preservacaoli- m eira .com .br/agenda-21/ linha 19.htm>; acessado em 18/6/2003.

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13Desenvolvimento Sustentável e Direito Internacional

R o b e r t o d e C a m p o s A n d r a d e

Introdução - 1. Nosso futuro comum - 2. Direito ao desenvolvi­mento - 3. Desenvolvimento e criatividade - 4. Conceito de desen­volvimento sustentável - 5. Princípio de direito e política pública - 6 . Declaração de Nova Deli ( ila - 2002) -6 .1 . Princípio da obriga­ção dos Estados em assegurar o uso sustentável dos recursos na­turais - 6.2. Princípio da eqüidade e da erradicação da pobreza -6.3. Princípio de responsabilidades comuns mas diferenciadas -6.4. Princípio da abordagem preventiva com relação à saúde huma­na, recursos naturais e ecossistemas - 6.5. Princípio da participação pública c do acesso à informação e à justiça - 6.6. Princípio da boa governança - 6.7. Princípio da integração e da interdependência de objetivos sociais, econômicos e ambientais - 7. Institucionalização da sociedade internacional - 8. Responsabilidade internacional - Considerações finais - Referências

INTRODUÇÃO

O princípio jurídico do desenvolvimento sustentável ganha es­pecial importância para o Direito Internacional do Meio Ambien­te ao ser adotado expressamente na Declaração do Rio de janeiro (1992) e na Agenda 21 (1992), resultado de um novo consenso

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D I R E I T O I N T E R N A C I O N A L E D E S E N V O L V I M E N T O

mundial a que se chegou na Conferência Internacional sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Cnumad), ocorrida no Rio de Janei­ro em 1992.

Em 1968 um grupo de cientistas reuniu-se em Roma para dis­cutir os dilemas atuais e futuros do homem. Dessa iniciativa surgiu o Clube de Roma, organização informal que tinha por finalidade a compreensão dos componentes econômicos, políticos, sociais e na­turais que compõem o sistema global.

A primeira empreitada do grupo tinha um a proposta ambicio­sa - o Projeto sobre o Dilema da Humanidade. A fase inicial desse Projeto deu-se com estudos realizados no Massachusetts Institute o f Technology ( m i t ) , e concretizou-se com a publicação dos resultados dessas pesquisas, no relatório “Limites do Crescimento”, em 1972.

O modelo de estudo adotado investigava cinco tendências de interesse global: 1) o ritmo acelerado de industrialização; 2) o rápido crescimento demográfico; 3) a desnutrição generalizada; 4) o esgo­tamento dos recursos naturais não-renováveis; e 5) a deterioração ambiental. Da análise dessas tendências o grupo chegou às seguintes conclusões:

1. Se as atuais tendências de crescimento da população mun­dial - industrialização, poluição, produção de alimentos e dimi­nuição de recursos naturais - continuarem imutáveis, os limites de crescimento neste planeta serão alcançados algum dia dentro dos próximos cem anos. O resultado mais provável será um declí­nio súbito e incontrolável, tanto da população quanto da capaci­dade industrial.

2. É possível modificar estas tendências de crescimento e for­mar uma condição de estabilidade ecológica e econômica que se possa manter até um futuro remoto. O estado de equilíbrio global poderá ser planejado de tal modo que as necessidades materiais básicas de cada pessoa na Terra sejam satisfeitas, e que cada pes­soa tenha igual oportunidade de realizar seu potencial humano individual.

3. Se a população do mundo decidir empenhar-se em obter este segundo resultado, em vez de lutar pelo primeiro, quanto mais ce-

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D E S E N V O L V I M E N T O S U S T E N T Á V E L E D I R E I T O I N T E R N A C I O N A L

do ela começar a trabalhar para alcançá-lo, maiores serão suas pos­sibilidades de êxito.1

A mesma preocupação com o dilema da humanidade mobilizou a realização de uma Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, realizada em Estocolmo, em 1972, que repre­sentou o primeiro passo para a construção de um sistema norm ati­vo internacional de proteção ambiental com principiologia própria.

Este é o m om ento em que a idéia de desenvolvimento econômi­co e preservação da natureza se manifesta de form a sistemática na Declaração de Estocolmo (1972), marco da conscientização m u n ­dial efetiva sobre as questões ambientais. Dessa Conferência resul­taram ainda a criação de um Plano de Ação para o Meio Ambiente, um a Resolução sobre aspectos financeiros e organizacionais no âm ­bito da Organização das Nações Unidas (o n u ) e a instituição de um organismo voltado às questões ambientais, o Programa das Nações Unidas sobre Meio Ambiente (Pnuma ou Unep), com sede em Nai- róbi, no Quênia.

Nesse momento, a preocupação maior da Conferência era ava­liar o impacto da degradação da natureza e estabelecer mecanismos de proteção, mais que aprofundar a relação entre desenvolvimento e preservação.

Travou-se então um interessante debate entre países em desen­volvimento e as economias centrais que já apontava a questão ambiental como importante elemento catalisador do estabelecimen­to de um a maior eqüidade nas relações internacionais, especialmen­te na área econômica. Na ocasião, a posição dos países em desenvol­vimento era a de perseguir um modelo econômico que garantisse a melhoria de qualidade de vida de suas populações. A variável ambiental poderia representar uma ameaça a esta aspiração.

O relatório Nosso Futuro Comum (1987), elaborado pela Comis­são Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento da ONU, pre­

' MEADOWS, L. et al. Limites do crescimento - um relatório para o Clube de Roma sobre o dilema da humanidade. Perspectiva, 1973. p. 20.

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D I R E I T O I N T E R N A C I O N A L E D E S E N V O L V I M E N T O

sidida por Gro Harlem Brundtland (razão pela qual tanto a comis­são quanto o relatório são às vezes designados pelo seu sobrenome), primeira-ministra da Noruega, apontava o modelo de desenvolvimen­to econômico vigente como uma das causas da degradação ambiental no planeta, e propunha como solução um modelo de desenvolvimen­to que tivesse a finalidade precípua de preservar os recursos naturais para as gerações futuras.

O conceito de desenvolvimento sustentável é apresentado no relatório como a saída viável ao dilema ambiental constatado.

A humanidade é capaz de tornar o desenvolvimento sustentável - de garantir que ele atenda às necessidades do presente sem compro­meter a capacidade de as futuras gerações atenderem também às suas.

A análise apresentada pelo relatório sobre os dilemas ambientais a serem enfrentados, assim como a abrangência e profundidade com que abordou este novo conceito de desenvolvimento, fazem-no um dos mais importantes documentos produzidos por uma Comissão interdisciplinar da ONU e que exerceu influência decisiva para a ado­ção deste princípio na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento de 1992.2

Vale mencionar que já em 1980 o Pnuma, em conjunto com International Union for the Conservation o f Nature ( i u c n ) e World

2 No Prefácio do Relatório, diz a Presidente: ‘“Uma agenda global para mudança* - foi o que se pediu à Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Tra­tava-se de um apelo urgente da Assembléia Geral das Nações Unidas para: propor estratégias ambientais de longo prazo para obter um desenvolvimento sustentável por volta do ano 2000 e daí em diante; recomendar maneiras para que a preocupação com o meio ambiente se traduza em maior cooperação entre os países em desenvolvimen­to e entre países em estágios diferentes de desenvolvimento econômico e social e leve à consecução de objetivos comuns e interligados que considerem as inter-relações de pessoas, recursos, meio ambiente e desenvolvimento; considerar meios e maneiras pelos quais a comunidade internacional possa lidar mais eficientemente com as preo­cupações de cunho ambiental; ajudar a definir noções comuns relativas a questões ambientais de longo prazo e os esforços necessários para tratar com êxito os proble­mas da proteção e da melhoria do meio ambiente, um a agenda de longo prazo a ser posta em prática nos próximos decênios, e os objetivos a que aspira a comunidade m undial”, In: Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Nosso Futuro Comum. 2. ed. São Paulo, Fundação Getúlio Vargas, 1991. p. xi.

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Wide Fund for Nature (vvvvf), lançaram o importante relatório “Estra­tégia Mundial para a Conservação” ( e m c ) , resultado da percepção de que a humanidade estava caminhando para sua extinção, se não adotasse mecanismos de conservação. Esse relatório enfatiza a inter­dependência de conservação e desenvolvimento, introduzindo então o termo desenvolvimento sustentável. Estabelecia três objetivos: (1) os processos ecológicos essenciais e os sistemas de sustentação da vida devem ser mantidos; (2) a diversidade genética deve ser preser­vada; e (3) qualquer utilização de espécies e de ecossistemas deve ser sustentável.

Passados pouco mais de dez anos desse primeiro relatório, as mesmas organizações internacionais, após amplo debate, apresen­taram novo relatório intitulado Cuidando do Planeta Terra, p ropon­do um a nova estratégia de desenvolvimento para o mundo, com a finalidade de garantir uma melhor qualidade de vida a seus habitan­tes em um meio ambiente ecologicamente equilibrado.3

Esses relatórios revelam a preocupação mundial sobre a questão ambiental e propõem um a estratégia de mudança de com portam en­to do homem com a natureza. Confirmam a formação de novos va­lores éticos, que apontam para a formulação de novos princípios jurídicos que exprimam uma forma diferente de pensar o planeta.

Na Cnumad, realizada no Rio de Janeiro em 1992, o princípio do desenvolvimento sustentável foi introduzido na agenda política internacional enquanto valor fundamental para a humanidade.

Não só é o conceito-chave da Declaração do Rio de Janeiro pro­clamada na Conferência, como se incorporou como norm a obriga­tória nas duas Convenções firmadas na ocasião, a da Biodiversidade e a do Clima.'1 Um dos resultados relevantes desta Conferência pa­

3 IU CN ; Pnum a & w w f . Cuidando do Planeta Tetra. Uma Estratégia para o Futuro da Vida. Tradução Lenke Peres Alves de Araújo. São Paulo, c l - a Cultural, 1991.

4 A Convenção sobre Mudança do Clima é enfática em seu art. 4o ao procla­m ar que “as partes têm o direito ao desenvolvimento sustentável", e a Convenção da Biodiversidade indica em seu art. 6o medidas gerais para a conservação e a utili­zação sustentável da diversidade biológica e o art. 10 disciplina a utilização sustentável de componentes da diversidade biológica.

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ra a efetivação do princípio do desenvolvimento sustentável na im ­plementação de políticas ambientais foi a criação da Comissão para o Desenvolvimento Sustentável (Comission on Sustaintable Development), subordinada ao Conselho Econômico e Social da o n u (E coso c) , in­cumbida de elaborar relatórios e recomendações à Assembléia Geral da o n u .

1. NOSSO FUTURO COMUM

A inquietante afirmação de U Thant, em 1969, parecia confir­mar um quadro de assombro diante do futuro da humanidade:

Não desejo parecer excessivamente dramático mas, pelas infor­mações de que disponho como Secretário Geral, só posso concluir que os membros das Nações Unidas dispõem talvez de dez anos para controlar suas velhas querelas e organizar uma associação mundial para sustar a corrida armamentista, melhorar o ambien­te humano, controlar a explosão demográfica e dar às tentativas de desenvolvimento o impulso necessário. Se tal associação mundial não for formada dentro dos próximos dez anos, então será grande o meu temor de que os problemas que mencionei já tenham assu­mido proporções a tal ponto estarrecedoras que estarão além de nossa capacidade de controle.5

Diante deste quadro de assombro pela incapacidade da hum a­nidade em controlar a utilização dos recursos naturais do planeta de maneira a preservar a sua própria sobrevivência, a Assembléia Geral da o n u criou em 1983 a Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, organismo independente e que tinha como atri­buições três objetivos:

reexaminar as questões críticas relativas ao meio ambiente e desen­volvimento, e formular propostas realistas para abordá-las; propor

5 MEADOWS, L. e outros. Op. cit., p. 13.

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novas formas de cooperação internacional neste campo, de modo a orientar políticas e ações no sentido das mudanças necessárias; e dar a indivíduos, organizações voluntárias, empresas, institutos e governos uma compreensão maior ciesses problemas, incentivan- do-os a uma atuação mais firme.6

A importância e o significado do trabalho realizado pela Comis­são, que se reuniu pela primeira vez em outubro de 1984 e publicou o relatório em abril de 1987, está no próprio procedimento adotado, com a participação de especialistas de 21 Estados m uito diferen­tes, com grande experiência e de todas as áreas em que se tomam decisões vitais concernentes ao progresso econômico e social dos Estados do planeta. A proposta do trabalho era formular um m éto­do interdisciplinar e integrado para abordar as preocupações m u n ­diais sobre o impacto das atividades econômicas sobre o ambiente.

A Comissão foi assim orientada pela idéia de que desenvolvi­mento e meio ambiente são duas instâncias inseparáveis. E desta percepção surgiram várias conclusões interessantes que revelavam um consenso e uma maior consciência sobre os desafios que a hu ­manidade teria que enfrentar.

Constatou-se então que as estratégias de desenvolvimento adota­das pelos Estados industrializados tinham um padrão evidentemente insustentável. Daí a necessidade de um maior envolvimento de suas lideranças políticas nas questões relativas ao modelo de desenvol­vimento implantado. O expressivo poder econômico e político destes Estados refletem em profundo impacto sobre a possibilidade de se manter o bem-estar de todos os povos, de forma eqíiitativa, e para as futuras gerações.

Ainda apontou para questões críticas relacionadas ao desenvol­vimento desigual, pobreza e aumento populacional. Os vínculos entre pobreza, desigualdade e deterioração ambiental foram um dos focos centrais das análises e recomendações do relatório. E indicam o quanto a questão do desenvolvimento sustentável só pode ser tra ­

6 Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Op. cit., p. 4.

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tada globalmente e exige um novo arranjo nas relações entre Esta­dos industrializados e países em desenvolvimento.

O sugestivo título do relatório elaborado pela Comissão já encer­ra o conceito do desenvolvimento sustentável, aludindo para o futuro do planeta. Futuro de todos e de todas as gerações.

Nosso futuro comum traduz a idéia de garantir que o desenvolvi­mento atenda às necessidades do presente sem comprometer a capa­cidade de as futuras gerações atenderem às suas também.

Mas este conceito na visão da Comissão não tem limites absolu­tos, antes depende do atual estágio da tecnologia e da organização social, e da capacidade do meio ambiente e da biosfera absorver os efeitos da atividade humana. Requer que a tecnologia e a organiza­ção social sejam geridas e aprimoradas para produzir uma nova es­pécie de crescimento econômico.

Este novo padrão exige uma melhor distribuição de recursos en­tre países e cidadãos do mundo. Para enfrentar este dilema o relató­rio trata de um a série de questões inter-relacionadas que merecem uma nova abordagem de tratamento. Os principais temas discutidos dizem respeito ao crescimento populacional, segurança alimentar, preservação da biodiversidade, energia e tecnologias que permitam utilização de fontes energéticas renováveis, desenvolvimento de tec­nologias ecologicamente adaptadas na produção industrial, cresci­mento urbano racional, administração das áreas comuns do planeta, e, finalmente, a manutenção da paz, segurança e desenvolvimento como forma de preservar o ambiente.

A educação e informação ambiental são condições sine qua non pa­ra que a viabilidade deste modelo de desenvolvimento seja alcançada.

O combate à pobreza, além do sentido primordialmente hum a­nitário, fundado no valor da igualdade entre as pessoas e os Estados, reconhecido historicamente, ganha um novo e poderoso ingredien­te que é o de garantir a sobrevivência da humanidade. É que a p ró­pria pobreza causa desgastes ao meio ambiente, decorrentes de uma utilização primitiva e predatória de recursos naturais para a sobre­vivência do homem. A derrubada ou queima de matas para a expan­

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são da fronteira agrícola, o pastoreio extensivo e excessivo, a utiliza­ção de técnicas atrasadas que provocam a erosão e o exaurimento do solo, práticas rurais que p rocu ram com pensar a baixa tecno lo ­gia incorporada com a utilização extensiva dos recursos naturais, a utilização de plantas industriais tecnologicamente defasadas, em muitos casos oriundas das economias centrais e, finalmente, o con­gestionamento das aglomerações urbanas a provocar a concentração de emissão de gases e impactos nefastos sobre os ecossistemas locais. As pessoas que vivem em condições miseráveis, carentes de água, saneamento, educação e informação, estão impossibilitadas de inte­ragir de forma positiva com o meio ambiente. Sem esquecer que as economias desenvolvidas causam uma pressão mais significativa sobre a utilização dos recursos naturais do planeta, como já aponta­ra o relatório do Clube de Roma em 1972.

Para enfrentar o dilema da pobreza, o conceito do desenvolvi­mento sustentável não deve inibir a elevação do nível de bem-estar da população, relacionado ao nível educacional e cultural, tecnoló­gico, social e econômico.

É difícil avaliar um padrão de nível de organização política mais desenvolvida, mas mesmo assim o relatório privilegiou a democra­cia como forma de governo a permitir maior transparência e parti­cipação popular nas decisões.7

No entanto, o crescimento econômico deve-se guiar pelos parâ­metros da sustentabilidade. É indefensável, hoje, pensar em cresci­mento a qualquer custo como saída para a erradicação da pobreza. Seja porque não resolve o problema da distribuição de renda no cur­to prazo. Seja porque coloca em risco a saúde e viabilidade do pia-

7 Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Op. cit., p. 69. “A lei por si só não pode im por o interesse comum. Este requer principalmente a cons­cientização e o apoio da comunidade, o que implica maior participação pública nas decisões que afetam o meio ambiente. O melhor modo de se conseguir isso é descen­tralizar a administração dos recursos de que dependem as comunidades locais, dando- lhes voz ativa 110 tocante ao uso desses recursos. Também é preciso estimular as iniciativas dos cidadãos, dar mais poderes às organizações populares e fortalecer a democracia locai' (grifo nosso).

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neta para as futuras gerações, a médio e longo prazo. O crescimento sustentável a longo prazo, prega o relatório, exigirá mudanças abran­gentes para criar fluxos de comércio, capital e tecnologia mais eqüi- tativos e mais adequados aos imperativos do meio ambiente. Neste ponto os Estados de menor desenvolvimento relativo poderão exigir a cooperação internacional por meio de instrumentos de financia­mento para formas sustentáveis de desenvolvimento, que devem ser preferencialmente criadas e desenvolvidas, respeitando-se as caracte­rísticas e diversidades locais.

O desenvolvimento global sustentável impõe aos países indus­trializados e ricos uma readequação dos padrões de consumo, o que implica em adotar estilos de vida compatíveis com os recursos eco­lógicos do planeta.

A questão do aumento populacional também enfrentada pelo relatório propõe um a relação mais harmoniosa entre crescimento da população e o potencial produtivo cambiante do ecossistema.

O relatório constata que as taxas de crescimento populacional são insustentáveis. Mas adverte que a questão população não se li­mita ao núm ero de pessoas. Em áreas pouco povoadas pode haver pobreza e degradação ambiental. O problema populacional, para a Comissão, tornou-se um a preocupação com o progresso humano, mediante melhorias na educação, saneamento e nutrição, e com a igualdade humana. As pessoas, dispondo de maiores conhecimen­tos e recursos, poderão planejar melhor suas vidas sem um grande núm ero de filhos. Assim o relatório conclui que “o crescimento econômico sustentável e o acesso eqüitativo aos recursos são duas das formas mais seguras de se chegar a taxas de fecundidade mais baixas”.8

O relatório propõe, portanto, um conceito para o desenvolvi­mento sustentável flexível. Não traduz um estado permanente de harmonia, de equilíbrio, mas um processo de mudança, no qual a exploração dos recursos, a orientação dos investimentos, os rumos

8 Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Op. cit., p. 104.

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do desenvolvimento tecnológico e as mudanças institucionais de­vem estar voltados para atender às necessidades das gerações presen­tes e futuras.

Para tanto, se faz cada vez mais necessária um a cooperação in­ternacional para tratar da interdependência econômica e ecológica e ao mesmo tempo o fortalecimento das organizações internacionais que possa viabilizar a adoção de medidas concretas, legais e institu­cionais, capaz de tornar efetiva esta cooperação.

O sentido que este conceito poderá produzir na construção de um a nova ordem mundial será o de consolidar os princípios de soli­dariedade, assistência humanitária, cooperação efetiva entre os Esta­dos por intermédio de organismos internacionais, e a busca por uma justiça mais distributiva e que atenda às necessidades da maioria.

A estratégia do desenvolvimento sustentável, ao procurar p ro­mover a harmonia entre os homens e entre a humanidade e a na tu ­reza, tem as seguintes dimensões e objetivos: (1) um sistema político que assegure a efetiva participação dos cidadãos no processo decisó­rio; (2) um sistema econômico capaz de gerar excedentes e know- how técnico em bases confiáveis e constantes; (3) um sistema social que possa resolver as tensões causadas por um desenvolvimento não-equilibrado; (4) um sistema de produção que respeite a obriga­ção de preservar a base ecológica do desenvolvimento; (5) um siste­ma tecnológico que busque constantemente novas soluções; (6) um sistema internacional que estimule padrões sustentáveis de comér­cio e financiamento; e (7) um sistema administrativo flexível e capaz de se autocorrigir.9

Essas dimensões, como pode se perceber, têm todas elas relações com a ordem jurídica internacional e com a formação de um novo paradigma que possa se readaptar com muito maior freqüência às inovações necessárias em cada um a delas. Para que estes objetivos sejam alcançados, não é necessária somente uma maior cooperação entre os Estados, mas também uma nova postura dos governos em

9 Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Op. cit., p. 70.

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readaptar suas políticas públicas, direcionando-as pelos novos parâ­metros de sustentabilidade que forem sendo produzidos pelo conhe­cimento científico e tecnológico e também pelas decisões políticas no seio da sociedade internacional.

Assim, a administração do espaço com um - os bens comuns do globo - normatizada pelo direito no tema dos domínios públicos in­ternacionais, e que abrange os grandes ecossistemas - oceanos, o espaço cósmico e a Antártida - , encontra alguma resistência na con­cepção tradicional de soberania nacional. Mas progressos têm sido feitos, sendo que o mais recente e importante foi a Convenção das Nações Unidas sobre Direito do Mar, assinada em Montego Bay, Jamaica, em 1982, e que se guiou pela noção de interesse com um da humanidade ao dar tratamento específico sobre a exploração dos fundos oceânicos.

Dentre as muitas questões tratadas neste relatório, que sinteti­zou as preocupações da comunidade científica internacional sobre a questão ambiental, a segurança mereceu destaque e uma abordagem crítica no capítulo intitulado: “Paz, Segurança, Desenvolvimento e Meio Ambiente”. Salienta a importância e a relação direta que o conceito de desenvolvimento sustentável guarda com questões relativas à paz e à segurança.10

Os conflitos podem advir da deterioração do meio ambiente e das opções de desenvolvimento. Para administrar estes conflitos são necessárias um a atuação conjunta dos Estados e a utilização de pro­cessos e mecanismos multilaterais.

10 A análise desta questão pode ser melhor percebida na seguinte passagem do relatório: “O vínculo entre pressões ambientais, pobreza e segurança é afetado por vários fatores, como políticas desenvolvimentistas inadequadas, tendências negativas na economia internacional, desigualdades nas sociedades multiraciais e multiétnicas e pressões decorrentes do crescimento demográfico. Os vínculos entre meio ambiente, desenvolvimento e conflito são complexos e muitas vezes mal compreendidos. Mas um enfoque abrangente da segurança internacional e nacional deveria ir além da ênfa­se tradicionalmente dada ao poderio militar e à competição armada. As verdadeiras fontes de insegurança englobam também o desenvolvimento não-sustentável, cujos efeitos podem vir a misturar-se com formas tradicionais de conflito, tornando-os mais amplos e graves”. Op. cit., p. 325.

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A administração cooperativa ou a gestão conjunta de determi­nadas pressões ambientais estimula a cooperação entre os Estados, fazendo surgir inúmeros sistemas institucionais, acordos e tratados bilaterais e multilaterais, regulamentando questões relacionadas ao meio ambiente, como pesca oceânica, acidentes nucleares, desertifi- cação, despejo de rejeitos tóxicos nos oceanos, poluição transfron- teiriça, biodiversidade e tantas outras questões.

Ao propor uma ação com um de mudança legal e institucional para enfrentar as questões ambientais conflitivas, o relatório Brund- tland elenca um conjunto de medidas que poderia consolidar um regime legal mais efetivo na proteção do meio ambiente:

• reconhecer e respeitar os direitos e responsabilidades recíprocos das pessoas e dos Estados, relativos ao desenvolvimento sustentável;

• criar e aplicar novas normas para o comportamento individual e recíproco dos Estados, a fim de alcançar o desenvolvimento sus­tentável;

• fortalecer e ampliar a aplicação das leis e acordos internacionais já existentes em favor do desenvolvimento sustentável;

• reforçar os métodos existentes e criar novos procedimentos para evitar e resolver disputas relativas ao meio ambiente.11

Essas diretrizes propostas pela Comissão devem ser lidas em con­junto com os parâmetros ambientais estabelecidos e sugeridos aos Estados na adoção de uma legislação mais eficiente e no reconheci­mento de suas responsabilidades:

• manter os ecossistemas e os processos ecológicos correlatos essen­ciais ao funcionamento da biosfera;

• manter a diversidade biológica, assegurando a sobrevivência e pro­movendo a conservação de todas as espécies da flora e da fauna em seus habitats naturais;

11 Op. cit., p. 369.

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• velar pelo princípio de produtividade ótima sustentável, ao explo­rar os recursos naturais e os ecossistemas existentes;

• evitar ou reduzir a poluição ou danos significativos ao meio am­biente;

• estabelecer padrões adequados de proteção ambiental;• efetuar ou pedir que sejam efetuadas avaliações prévias, a fim de

assegurar que os principais novos projetos, políticas e tecnologias contribuam para o desenvolvimento sustentável;

• divulgar prontamente todas as informações importantes, sempre que se tratar de emissões perigosas ou potencialmente perigosas de poluentes, sobretudo de material radiativo.12

O relatório da Comissão Brundtland já revelava uma ruptura no paradigm a legal, então prevalecente, e apontava o princípio do desenvolvimento sustentável como o caminho a ser percorrido na busca de maior efetividade das medidas de proteção ambiental no Direito Internacional: princípio que se alicerça na introdução do novo, na reformulação de políticas públicas, na alteração de com ­portamentos hum anos e estilos de vida, e na busca incessante de uma melhor qualidade de vida para todos os habitantes do planeta, em um meio ambiente sadio e equilibrado.

2. DIREITO AO DESENVOLVIMENTO

O princípio do desenvolvimento sustentável representa uma evolução do direito ao desenvolvimento, reconhecido como direito hum ano essencial de todos a um a qualidade de vida que permita a realização e concretização dos demais direitos humanos, consagra­dos na Declaração Universal dos Direitos do Hom em (1948) refe­rentes à dignidade da pessoa humana. A proteção do meio ambiente insere-se na evolução deste reconhecido direito hum ano ao desen­volvimento, ao acrescer-lhe o especial atributo da sustentabilidade.

12 Op. cit., p. 370.

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O primeiro princípio da súmula dos princípios legais propos­tos para a proteção ambiental e o desenvolvimento sustentável, ado­tados pelo grupo de especialistas em Direito Ambiental, da Com is­são das Nações Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento (c n m a d ) , assim declara: “Direito H um ano Fundamental 1. Todos os seres hum anos têm o direito fundamental a um meio ambiente ade­quado a sua saúde e bem-estar”.

A Ia geração dos direitos hum anos correspondeu, historicamen­te, à afirmação de direitos políticos e civis, estabelecendo contornos para a ação do Estado. A 2- geração significou o surgimento dos direitos sociais, econômicos e culturais, a im por uma ação mais positiva e intervencionista do Estado. A 3a geração de direitos h u ­m anos co rre sp o n d e ao re c o n h ec im e n to dos d ire itos coletivos e difusos, dentre os quais o direito ao meio ambiente sadio e ecolo­gicamente equilibrado e o direito ao desenvolvimento dos povos, tal como reconhecido na Conferência de Viena sobre Direitos H um a­nos de 1993.

A evolução destes direitos, reconhecidos por processos sociais muitas vezes revolucionários, imprime uma tendência de consolida­ção da proteção jurídica do ser hum ano e do seu ambiente natural. Seria difícil imaginar a supressão destes direitos. O que nos mostra a história é uma marcha no sentido de sua ampliação e efetividade, na busca de instrumentos que possam concretizá-los. Embora possa haver momentos de um certo retrocesso em casos muito específicos, esta tendência é irreversível.

O reconhecimento do direito ao desenvolvimento foi um a das conquistas marcantes do século xx para a humanidade.

Sem uma adequada distribuição de recursos entre Estados e cida­dãos do mundo todos os demais direitos garantidos ao ser humano se inviabilizam.

Portanto, a universalização dos direitos hum anos exigiu a inter­nacionalização do direito ao desenvolvimento, enquanto requisito para os povos conquistarem sua capacidade de governar e propiciar às populações as garantias adquiridas que visam precipuamente pro­teger a dignidade da pessoa humana.

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Assim é que a o n u reconheceu o direito ao desenvolvimento na Resolução da Assembléia Geral n. 41/128, de 04 de dezembro de 1986, acentuando a sua dimensão individual enquanto direito inalie­nável do hom em e também coletiva, realçando o papel do Estado na sua consecução.13 A Declaração sobre Direito ao Desenvolvimento (1986) contida na Resolução, dispõe sobre a responsabilidade dos Es­tados em criar condições favoráveis para a realização deste direito.14

Muito embora a Declaração de Viena (1993) tenha disposto so­bre a indivisibilidade, inter-relação, universalidade e interdependên­cia dos direitos humanos, a Declaração de Bangkok, preparatória desta Conferência e que refletia a posição dos Estados do sudeste asiático, revelava preocupação com as particularidades nacionais e regionais e com aspectos históricos, culturais e religiosos de cada Es­tado. Com relação ao direito ao desenvolvimento, alguns Estados da região, como China, Cingapura e Malásia, preferiram dar primazia ao crescimento econômico, em detrimento da qualidade do desen­volvimento, justificando-se que assim poderiam antes assegurar o u ­tros direitos fundamentais como a própria subsistência.15

A história do século xx foi marcada por um desenvolvimento econômico sem precedentes, acompanhado de significativa evolução tecnológica, que redundou em um acúmulo de riquezas e, paradoxal­mente, em uma concentração destas riquezas nas mãos de parcela da população que pôde se apropriar dos direitos conquistados.

O fenômeno marcante do século é o mau desenvolvimento, na precisa lição de Ignacy Sachs, na medida em que o processo históri­

13 “Le droit au développement est le droit inaliénable de Vhomme, en vertu duquel toute personne humaine et tons les peuples ont le droit de participer et de contribuer à un développement économique, social, culturel et politique dans lequel tous les droits de Vhomme et toutes libertés fondamentalespuissent être pleinement réalisés et de bénéficier de ce développement”. Resolução n. 41/128, art. Io, § 1o.

M “a sedimentação e o efetivo gozo do direito ao desenvolvimento só poderá ocorrer de fato à luz da indivisibilidade e da inter-relação dos direitos humanos.” In: DELGADO, A. R T. O direito ao desenvolvimento na perspectiva da globalização - para­doxos e desafios. Rio de Janeiro, Renovar, 2001.

15 Op. cit., p. 108.

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co de desenvolvimento da sociedade não foi capaz de produzir uma distribuição eqüitativa de direitos, rendas e informação.16 Ademais, o festejado progresso econômico de muitos Estados produziu um incalculável passivo ambiental.

A noção de desenvolvimento passou a fazer parte da agenda de debates da o n u e a idéia simplista de crescimento econômico evo­luiu para a formação do conceito de desenvolvimento econômico, social, cultural, político, sustentável e finalmente humano, com a criação de um índice de desenvolvimento hum ano pela ONU. A con­sideração de todas estas dimensões do desenvolvimento o torna uma noção central para a compreensão de nossa época e para o conteú­do de projetos nacionais.17

A evolução do conceito de desenvolvimento tornou-o mais com ­plexo, ao acrescentar as variadas dimensões ligadas às relações sociais, políticas, econômicas, culturais, tecnológicas, de forma a finalmente incluir uma variável qualitativa da sustentabilidade que assegure um patamar diferenciado de bem-estar social. O que significa um exer­cício mais efetivo da liberdade, que implica em maior concretização da igualdade, em um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado.

A qualificação do direito ao desenvolvimento sustentável como direito hum ano atende à necessidade de aperfeiçoamento de meca­nismos internacionais de prevenção e seguimento (monitoramento contínuo) na proteção ao meio ambiente. Por seu turno, propicia uma

16 “O desenvolvimento enquanto apropriação dos direitos hum anos”. In: Estudos Avançados, v. 12, n. 33. Ao analisar a pujança do crescimento econômico do século XX e seus nefastos efeitos distributivos, Sachs observa que “disso resulta uma gigantesca troca e um a má distribuição cada vez mais forte - entre nações e no interior de nações - acarretando fenômenos maciços de desemprego, subemprego e exclusão social, mais do que um desperdício, a destruição de vidas humanas. Enquanto um bilhão de habi­tantes de nosso planeta vive em prosperidade, outro bilhão sobrevive numa miséria que desafia qualquer descrição e quatro bilhões dispõem de rendas modestas próxi­mas do m ínim o vital'’, p. 150.

17 SACHS, I. Op. cit., p. 151: “Sartre dizia que o homem é um projeto. Por razão ainda mais forte, as sociedades humanas deveriam se esforçar para se tornar um projeto”.

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visão integral ou holística dos direitos hum anos na construção de uma cultura universal de observância dos direitos essenciais do ser humano. A busca da universalidade, com base na própria diversida­de cultural, também é característica da nova proposição conciliató­ria de meio ambiente e desenvolvimento. Em perspectiva histórica é altamente significativo que a Declaração Universal dos Direitos do Homem propugnou uma concepção integral, transcendendo divi­sões ideológicas de seu próprio tempo. Afirmou-se a indivisibilida­de de todos os direitos humanos. Criou-se uma multiplicidade de instrumentos de proteção ligados pela unidade conceituai dos direi­tos humanos. Os princípios contidos nessa Declaração passaram a ser interpretados como princípios gerais de direito. Disseminou-se assim uma complementaridade dos instrumentos globais e regio­nais de proteção, refletindo a especificidade e autonomia do Direito Internacional dos Direitos Humanos. O que resultou no reconheci­mento de um núm ero básico de direitos inderrogáveis (violações mais graves), contribuindo para a consolidação do denominado jus cogens no Direito Internacional contemporâneo e para a formação de um novo ethos ou fixação de parâmetros de conduta de valores básicos universais. Gerações sucessivas de culturas distintas reco­nheceram, na Declaração Universal dos Direitos do Homem, uma meta comum a alcançar (common standard ofachievement), que cor­respondia às suas mais profundas e legítimas aspirações e que se afirmou na Proclamação de Teerã (1968): “Uma vez que os direitos hum anos e as liberdades fundamentais são indivisíveis, a realização plena dos direitos civis e políticos sem o gozo dos direitos econômi­cos, sociais e culturais, é impossível”.

A Declaração de Viena procurou realçar a inter-relação entre democracia, desenvolvimento e direitos hum anos e endossa os ter­mos da Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento.18

18 CANÇADO TRINDADE, A. A. “O legado da Declaração Universal e o Futuro da Proteção Internacional dos Direitos Humanos”. In: AMARAL, Jr. A. do & MOISÉS, C. P. (orgs.). O cinqüentenário da Declaração Universal dos Direitos do Homem. São Paulo, Edusp, 1999. p. 15.

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3. DESENVOLVIMENTO E CRIATIVIDADE

A conservação dos recursos naturais, com o fim de propiciar e garantir a qualidade de vida para as presentes e futuras gerações, exige a diferenciação entre o conceito de desenvolvimento do mero crescimento econômico medido por indicadores de renda e a acu­mulação da riqueza nacional.

Schumpeter foi quem descreveu o processo de desenvolvimento econômico a partir de uma visão diferenciada da teoria econômica que sustenta uma tendência do sistema para uma posição de equilí­brio, a que denom inou de fluxo circulatório, no clássico Teoria do Desenvolvimento Econômico.19 Para ele, desenvolvimento significaria as transformações da vida econômica que não fossem impostas de fora do fluxo circulatório, mas que surgissem de dentro do sistema. O desenvolvimento ocorreria com transformações revolucionárias determinadas pelas inovações tecnológicas. O mero crescimento eco­nômico evidenciaria apenas um aumento de população e de rique­za, sem revelar mudanças qualitativas ou fenômenos novos na ativi­dade econômica.20

19 SCHUMPETER, J. A. Teoria do Desenvolvimento Econômico. Rio de Janeiro Fundo de Cultura, 1982: “O desenvolvimento, 110 sentido em que tomamos, é um fenômeno à parte, inteiramente fora do que se possa observar no fluxo circulatório, ou na tendência para o equilíbrio. É transformação espontânea e descontínua das artérias do fluxo, distúrbio de equilíbrio, que altera e desloca, para sempre, o estado de equilí­brio preexistente. A nossa teoria do desenvolvimento nada mais é do que o trato deste fenômeno e dos processos nele incidentes', p. 91.

20 Nesse sentido, vide Eros Roberto Grau: “Daí porque, nos conceitos formulados de desenvolvimento, sempre aparece como nota marcante uma referência a este seu aspecto qualitativo. De outra parte, embora o dado econômico apareça como extrema­mente relevante em todos os conceitos de desenvolvimento, ainda assim é forçoso observar que o conceito de desenvolvimento não é apenas econômico. O processo de desenvolvimento - como foi visto - implica mobilidade e mudança social; realiza-se em saltos de uma estrutura social para outra. Implicando dinâmica mobilidade social, é inerente à idéia de desenvolvimento a de mudança; no caso, não apenas mudança econômica, mas amplamente, sobretudo mudança social. Assim, a noção de desenvol­vimento envolve a necessária visualização de um devir a projetar, no futuro, determi­nados valores”. In: /\ Ordem Econômica na Constituição de 1988 - interpretação e crítica. 2. ed. São Paulo, RT, 1991. p. 234.

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A atividade econômica implica em um a determinada com bi­nação de fatores de produção disponíveis. Esta combinação pode se alterar de forma contínua e paulatina, através de mudanças do m éto­do de produção, o que significaria crescimento econômico. Para que ocorra o fenômeno do desenvolvimento é necessário que a m udan­ça seja descontínua, revolucionária, inovadora, a provocar uma radi­cal alteração na combinação dos fatores de produção. Para este autor, o desenvolvimento teria como atributos: 1) o surgimento de um novo bem, ou nova qualidade de um bem; 2) um novo método de produção; 3) a abertura de um novo mercado; 4) a conquista de nova fonte de suprimento de matéria-prima ou produtos semi-industria- lizados; e 5) a configuração de nova organização na indústria na qual se dera a inovação. Em suma, desenvolvimento cria mudança signifi­cativa no seio do processo de produção.

Para Schumpeter, desenvolvimento consiste principalmente na utilização, de maneira diferente, dos recursos existentes, de com eles produzir novos objetos, independentemente de estes recursos au­mentarem ou não.21

Denomina-se empresa, o empreendimento das novas combina­ções dos meios de produção; e empreendedores, os indivíduos in­cumbidos de realizá-la. Nessa concepção, o empreendedor perderia sua função ao se estabilizar, aderindo às rotinas do fluxo circulató­rio, à sua racionalidade e previsibilidade. A atitude sui generis do empreendedor, sua especial intuição em operar com o desconheci­do, de trabalhar com a incerteza de forma consciente, de aprender a conhecer o ambiente social e natural e controlar os fatos, constitui­riam a força motriz do fenômeno do desenvolvimento.22

21 Op. cit., p. 90.22 “Uma outra espécie de força de vontade é, portanto, necessária para arrancar,

de entre a faina e a preocupação da renda diária, escopo e tempo para conceber e exe­cutar a nova combinação e para convencer-se, a si próprio, a considerá-la uma possi­bilidade real e não apenas como um sonho fuga/.. Essa liberdade mental pressupõe um grande excesso de domínio sobre as solicitações de cada dia e constitui um elemento peculiar e, por natureza, raro.” Op. cit., p. 119.

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O desenvolvimento é, portanto, um processo evolutivo de pa­drões de bem-estar social. No âmbito da economia capitalista, o que faz movimentar este processo é o fenômeno da inovação tecnológi­ca, ao que Schumpeter denom inou de processo de destruição criati­va. Assim é que a produção de novos bens de consumo, a abertura e conquista de novos mercados, o processo de mutação industrial re­sultado do impacto tecnológico, especialmente advindo da indústria eletro-eletrônica que substituiu a tradicional planta fordista,23 reve­lam um processo

que incessantemente revoluciona a estrutura econômica a partir cie dentro, incessantemente destruindo a velha, incessantemente criando uma nova. Esse processo de destruição criativa é o fato essencial acerca do capitalismo. É nisso que consiste o capitalismo e é aí que têm de viver todas as empresas capitalistas.24

Esta visão profética do capitalismo assume contornos mais cla­ros com a intensificação do processo de globalização da economia mundial, diante da velocidade como se movimentam informações, ativos financeiros, mercadorias, plantas industriais e tecnologias. Em um ambiente em que a competição se acirra assustadoramente, o empreendedor passa a ser cada vez mais concorrente de si próprio.

É exatamente neste processo de destruição criativa que a inser­ção de tecnologias limpas e de processos produtivos ambientalmen- te adequados pode promover um modelo de desenvolvimento que

23 FARIA, J. E. C. de O. O direito na economia globalizada. São Paulo, Malhei- ros, 2000.

24 SCHUMPETER, J. Capitalismo, socialismo e democracia. Trad. de Sergio Góes de Paula. Rio de Janeiro, Zahar, 1984. Conforme esclarece ainda o autor, “como esta­mos tratando de um processo orgânico, a análise do que ocorre em qualquer parte do mesmo - digamos, num a empresa isolada ou num a indústria - pode realmente escla­recer detalhes do mecanismo, mas nada conclui além disso. Todos os elementos da estratégia de negócios só adquirem sua verdadeira significação contra o pano de fundo desse processo e dentro da situação por ele criada. Devem ser vistos em seu papel, sob o vento perene da destruição criativa; não podem ser compreendidos a despeito dele, ou, na verdade, sob a hipótese de que existe eterna calmaria”, p. 113.

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não esteja em rota de colisão com a natureza.25 Embora a lógica da economia globalizada ainda seja a da maximização de resultados financeiros através da eficiência dos processos produtivos, o padrão de sustentabilidade a ser fornecido pela comunidade científica inter­nacional deverá guiar esse processo incessante de inovação.

Daí poder-se inferir que o desenvolvimento nesta perspectiva schumpeteriana é um processo que ocorre por saltos, de forma des­contínua e que demanda enorme criatividade para a transformação do modo como os fatores de produção devem ser diferentemente realocados para produzir o impacto desejado. Essa criatividade, em bo­ra seja elemento endógeno a este modelo, tem por conteúdo um conhecimento estranho às variáveis econômicas que exprimem a realidade de forma simplificada. Cuida-se de um saber que pode ter acomodado os mais variados fatores: tecnológicos, culturais, sociais, morais e éticos. A preocupação com os recursos naturais do plane­ta, com a sobrevivência da humanidade, com o futuro desta e das próximas gerações, as pressões sociais advindas do esgotamento de certos recursos, como a água, ou a poluição atmosférica, são dados que irão direcionar estas inovações, estimular a criatividade na busca de novas soluções.

O desenvolvimento entendido como um processo de mudanças qualitativas com vistas a gerar maior bem-estar econômico e social de forma mais eqüitativa enquadra-se nesta nova exigência a que chegou a consciência da hum anidade a partir da década de 1960. O que significa melhor distribuição de recursos materiais que pos­sa viabilizar a pauta contida na Agenda 21, que inclui dentre as prio­ridades fundamentais não somente a cooperação e solidariedade, mas a efetividade do acesso à educação e informação, sem a qual es­tas mudanças qualitativas só farão perpetuar o atual quadro de desi­gualdades.

Celso Furtado observa que na teoria proposta por Schumpeter a idéia de desenvolvimento remanesce vaga e o conceito de novas

25 CAVALCANTI, C. Desenvolvimento e natureza: estudos para uma sociedade sus- tentável 2. ed. Cortez, 1998. p. 17.

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combinações e inovações não parece claro.26 Para o economista b ra­sileiro, sem negar que as inovações tecnológicas sejam o m otor do capitalismo, a espinha dorsal do processo de desenvolvimento está na acumulação do capital:

A teoria das inovações é de enorme importância mas conduz a equívoco pretender formulá-la independentemente da teoria da acumulação de capital. Ora, a acumulação de capital não pode ser explicada mediante categorias abstratas com pretensões à univer­salidade pois está intimamente ligada ao sistema de organização da produção, às formas de distribuição e utilização da renda, enfnn, a um processo histórico cujos elementos específicos devem ser identificados.27

O processo de formação do capital teria, assim, duas dimensões: acumulação e progresso técnico. Considerando que a inovação depende do estágio de acumulação de capital, fica mais fácil com ­preender a relação de dependência dos Estados com maior escassez de capital com as economias centrais. Disso resulta a necessidade de se criar, nos países em desenvolvimento, atividade criadora científi­ca e tecnológica em função de prioridades sociais locais e regionais. Para o Direito Internacional do Meio Ambiente, significaria a con­cretização de normas de natureza programática informadas pelo princípio da cooperação, e que viabilizariam o desenvolvimento com base na inovação técnica e incorporação de tecnologias limpas.

26 Conforme Teoria e Política do Desenvolvimento Econômico. Os Economistas. Abril Cultural. 1983. p 45. “Observando o processo econômico basicamente do lado da produção, Schumpeter colocou-se em posição privilegiada para perceber a im por­tância do progresso técnico como fator dinâmico na economia capitalista. Seu enfo­que é, assim, basicamente diverso do dos demais economistas neoclássicos. E é principalmente por essa mudança de perspectiva que sua obra parece hoje tão atual. Todavia, ele vale mais pela mudança de enfoque que por sua capacidade explicativa do processo de desenvolvimento econômico.”

27 Op. cit., p. 47.

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Significaria, também, que a cooperação não resultaria em sim­ples transferência de tecnologia, ou mero assistencialismo financei­ro, mas provocaria um a ruptura nas relações de dependência, de forma a possibilitar a criação de inovações adaptadas aos ecossiste­mas locais, um a expansão da consciência ecológica através da edu­cação e da disseminação da informação, e um a efetiva distribuição dos recursos que viabilizaria a concretização da independência e autodeterminação dos povos, respeitando as diversidades culturais.

Furtado chamava ainda a atenção para a atitude por ele deno­minada de ingênua, ao se imaginar que os problemas ambientais oriundos do atual modelo econômico praticado pudessem ser solu­cionados necessariamente pelo progresso tecnológico,

como se a atual aceleração do progresso tecnológico não tivesse contribuído para agravá-los. Não se trata de especular se teorica­mente a ciência e a técnica capacitam o homem para solucionar este ou aquele problema criado por nossa civilização. Trata-se ape­nas de reconhecer que o que chamamos de criação de valor econô­mico tem como contra-partida processos irreversíveis no mundo físico, cujas conseqüências tratamos de ignorar. Convém não per­der de vista que na civilização industrial o futuro está em grande parte condicionado por decisões que já foram tomadas no passado e/ou que estão sendo tomadas no presente em função de um curto horizonte temporal. Na medida em que avança a acumulação de capital, maior é a interdependência entre o futuro e o passado. Conseqüentemente, aumenta a inércia do sistema e as correções de rumo tornam-se mais lentas ou exigem maior esforço.28

Para não cair na ilusão redentora da tecnologia, as inovações introduzidas no processo de produção devem obedecer necessaria­mente a um novo padrão orientado pela sustentabilidade. Assiste razão ao economista brasileiro que grande parte da deterioração

28 O mito do desenvolvimento econômico. 3. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1974. p. 20.

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ambiental se deve ao progresso tecnológico, é preciso verificar que este progresso também está sofrendo restrições pelos novos valores e princípios ambientais, e deverá se pautar daqui para frente dentro dos parâmetros técnicos decorrentes do princípio do desenvolvi­mento sustentável. Para que este progresso se redirecione para a p ro­dução de tecnologias limpas, o papel da efetivação deste princípio jurídico é fundamental. E a fim de evitar que o futuro seja demasia­damente comprometido pelo velho padrão tecnológico que se impõe a ênfase na atitude preventiva.

O processo de destruição criativa de Schumpeter só faz sentido para a compreensão de um modelo de desenvolvimento sustentável, enquanto as inovações introduzidas se derem por tecnologias ecolo­gicamente orientadas.

No relatório do Clube de Roma, a abordagem da variável tecno­logia foi determinada por fatores que têm impacto sobre o sistema produtivo, como 1) energia e reservas de recursos naturais; 2) o im ­pacto da energia nuclear; 3) os limites impostos pela poluição; 4) o controle da natalidade; 5) a produção agrícola; e 6) a questão urba­na. Propuseram no referido estudo as seguintes questões, antes de adotar a tecnologia de maneira generalizada:

1. Quais serão os efeitos colaterais, tanto físicos como sociais, se essa técnica for introduzida em larga escala?

2. Que mudanças sociais deverão ser introduzidas antes que essa técnica possa ser apropriadamente adotada, e quanto tempo levará para fazê-lo?

3. Se a técnica for inteiramente bem-sucedida e remover alguns limites naturais do crescimento, quais serão os próximos limites que o sistema em crescimento encontrará? A sociedade preferirá suas pressões às pressões que esta técnica pretende remover?

Essas questões podem servir de guia inicial para se avaliar o im ­pacto de um a inovação tecnológica sobre os limites dos recu r­sos naturais. Foi a forma que o relatório encontrou para conciliar desenvolvimento com inovação tecnológica. Devem ainda ser acres­cidas de indagações mais específicas e técnicas sobre o caso concreto.

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Quem haverá de orientar estas respostas será a nova engenharia no r­mativa que vem se formando não somente nos anexos técnicos de tratados como também por meio de instruções expedidas por orga­nizações internacionais que cuidam da regulamentação de ativida­des produtivas.

A criatividade orientada para a produção de tecnologia limpa não pode se dissociar de todas as dimensões que formam o substra­to do conceito de desenvolvimento sustentável. Vale lembrar a pos- tulação de Amartya Sen, de que:

o desenvolvimento tem de estar relacionado sobretudo com a me­lhora da vida que levamos e das liberdades que desfrutamos. Expandir as liberdades que temos razão para valorizar não só tor­na nossa vida mais rica e mais desimpedida, mas também permite que sejamos seres sociais mais completos, pondo em prática nos­sas volições, interagindo com o mundo em que vivemos e influen­ciando este mundo.29

Diante da necessidade da inovação criativa como elemento p ro­pulsor do processo de desenvolvimento, o Direito Internacional de­verá buscar reforçar ainda mais as normas de natureza programática e as regras de consenso que possibilitem a implementação de polí­ticas públicas viáveis e que possam ser exigidas pela sociedade inter­nacional. O Direito Internacional, neste particular, conta já com uma tradição secular de práticas do consenso e solução pacífica de con­trovérsias. Tanto o modelo repressivo, que não é o campo em que ele se manifesta de forma proeminente, como as decisões judiciais, que tam bém contam com o assentimento das partes para se sub­meter ao julgamento, revelam-se menos propícios que as delibera­ções tomadas no seio das organizações internacionais, bem como os acordos das conferências das partes dos mais importantes tratados.

29 Desenvolvimento como liberdade. Trad. de Laura Teixeira Motta. Companhia das Letras, 2000. p. 29.

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4. CONCEITO DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

A partir da Declaração do Rio de Janeiro, o direito ao desenvol­vimento passou a estar indissoluvelmente ligado à variável ambien­tal da sustentabilidade.

O direito ao desenvolvimento passou a significar necessaria­mente o direito ao desenvolvimento sustentável.

Seria um contra-senso admitir qualquer modalidade de desen­volvimento, sem atentar que a qualidade de vida do ser hum ano no planeta depende de um meio ambiente sadio e ecologicamente equi­librado. O que já implica na reformulação do modelo atualmente praticado para atender às necessidades da geração presente.

O conceito de sustentabilidade inclui a proteção de um direito intergeracional, qual seja, a preservação da natureza para se manter a qualidade de vida no planeta para as gerações futuras. Este direito desponta como direito subjetivo das novas gerações, de poder aten­der suas necessidades com os mesmos recursos naturais de que se dispõe hoje. Não se reporta apenas ao conteúdo econômico da neces­sidade, já que a ciência poderá vir a descobrir novas fontes de ener­gia e permitir tecnologias limpas mais consentâneas com a preser­vação do meio ambiente. Mas de uma necessidade por qualidade de vida que inclua o usufruir do meio ambiente compreendido tam ­bém na sua dimensão cultural. O que significa não somente a pre­servação dos ambientes naturais, como daqueles de especial valor histórico e cultural para a humanidade.

A compreensão do conceito de desenvolvimento sustentável envolve necessariamente a análise do processo de transformação por que passa a sociedade nas dimensões econômica, social, políti­ca, cultural e tecnológica.

O conceito de sustentabilidade insere-se na dinâmica própria do processo de evolução do conhecimento científico e suas conseqüên­cias sobre as atividades econômicas e o meio ambiente. O seu conteú­do reflete o modelo de desenvolvimento, que, na visão de Schumpeter, é determinado pelo processo da destruição criativa. Significa que os

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parâmetros de sustentabilidade se alteram de acordo com o padrão tecnológico utilizado pelo modelo de desenvolvimento determinado historicamente. A sustentabilidade depende também da organização social, da forma como as relações sociais se encarregam de distribuir os recursos e conhecimentos adquiridos das comunidades, o que vai refletir no grau de interação do homem com a natureza.

A organização política vai dizer sobre a maior ou m enor parti­cipação dos cidadãos nos processos decisórios e o envolvimento das comunidades locais com as resoluções envolvendo o ambiente.

A instância econômica vai depender do padrão de bem-estar e consumo alcançado pelas comunidades e como a produção vai estar atendendo estas necessidades sem comprometer os recursos natu­rais e o ambiente natural e cultural. E a dimensão cultural indica a construção de novos valores que se manifestam através de um com ­portam ento ecologicamente orientado.

O relatório Cuidando do Planeta Terra elencou uma série de princípios informadores de uma nova estratégia mundial de preser­vação do ambiente, mas advertiu:

Qualquer estratégia deve servir como guia e não como ordem. Não pode ser seguida como processo de submissão. As sociedades humanas diferem amplamente entre si em termos de cultura, qua­lidade de vida e condições ambientais, e na percepção do signifi­cado dessas diferenças. Tampouco tais características são imutá­veis: a mudança é contínua. Por estas razões, os princípios e ações nesta Estratégia são descritos em termos amplos, devendo ser interpretados e adaptados para cada comunidade. O mundo ne­cessita de uma variedade de sociedades sustentáveis, conseguidas através de diferentes caminhos.30

A definição que este relatório propõe para desenvolvimento sus­tentável consiste na melhoria da qualidade de vida hum ana dentro dos limites da capacidade de suporte dos ecossistemas.

•,0 i u c n , Pnuma & y v w f . Op. cit., p. 8.

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Os princípios de uma sociedade sustentável que dão suporte a esta finalidade, apesar de atributos bastante genéricos, constituem no todo um caminho a ser perseguido e podem servir também de orientação para uma maior aproximação do conceito de desenvolvi­mento sustentável. São nove os princípios ou objetivos que devem orientar o modelo proposto: (1) respeitar e cuidar da comunidade dos seres vivos; (2) melhorar a qualidade da vida humana; (3) conser­var a vitalidade e a diversidade do planeta Terra, que inclui a con­servação dos sistemas de sustentação da vida, da biodiversidade e assegurar o uso sustentável de recursos renováveis; (4) minimizar o esgotamento de recursos não-renováveis; (5) permanecer nos limi­tes da capacidade de suporte do planeta Terra; (6) modificar atitu­des e práticas pessoais; (7) permitir que as comunidades cuidem de seu próprio meio ambiente; (8) gerar uma estrutura nacional para a integração de desenvolvimento e conservação; e (9) constituir um a aliança global.

Os princípios 1, 3 ,4 e 5 tratam dos limites físicos da capacidade de o ambiente suportar a ação antrópica. Preservar a comunidade de seres vivos, os recursos renováveis e não-renováveis, e não ultrapas­sar os limites do planeta significa o cuidado com os grandes espaços comuns e a biosfera. Para atingir estes objetivos, o papel da ciência e tecnologia é vital. E deve ser orientado para o cum prim ento destes princípios, que dirão qual tecnologia dentre as possibilidades do m o­mento melhor se conforma com um padrão sustentável.

A finalidade precípua do modelo é a melhoria de qualidade da vida humana, que também faz parte do ambiente natural. Para que isso ocorra, é necessária um a m udança de com portam ento e da conduta hum ana em relação ao ambiente, m aior autonom ia das comunidades locais, uma nova postura das políticas nacionais. Essas mudanças devem, por fim, estar inseridas dentro de uma nova ordem global determinada pela cooperação entre Estados.

Todos esses ingredientes, na visão deste relatório, faziam parte de uma estratégia global para o planeta. O seu sentido é apontar um a direção por meio de valores consensuais a serem persegui­dos. Suas conclusões não destoam daquelas obtidas pela Comissão

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Brundtland. O que demonstra que estes valores fazem parte de uma nova consciência mundial que vai se consolidando a cada nova con­ferência internacional e com o trabalho contínuo de inúmeras orga­nizações internacionais e organizações não-governamentais.

O conceito de sustentabilidade adotado pela Comissão Brund­tland, no relatório Nosso Futuro Comum , como sendo o suprimento das necessidades presentes sem comprometimento para as gerações futuras de atender às suas necessidades, contém dois conceitos- chave: 1) o de necessidade, em especial dos Estados mais carentes de recursos; e 2) o de limitação que o estágio da tecnologia e da orga­nização social impõe ao ambiente. A sustentabilidade, nesta visão, engloba todos os países, desenvolvidos e em desenvolvimento, com economia de mercado ou planejamento central. Deve haver um consenso básico sobre o conceito de desenvolvimento sustentável e com relação às estratégias para sua consecução.

Quanto à noção de necessidade, é preciso observar inicialmente que ela se relaciona a um padrão determinado social e culturalmen­te. Se é certo que existem necessidades básicas de sobrevivência do homem, grande parte dos bens de consumo produzidos na socieda­de m oderna e em economias desenvolvidas se dirige a atender uma necessidade criada pela própria atividade econômica, que pode ter decorrido de mudanças de com portam ento ou das relações sociais. A necessidade é, então, criada ou induzida por valores cultuados em determinada sociedade. É também moldada pelo padrão tecnológi­co vigente.

O que im porta na conclusão do relatório é que, m esm o na noção mais estreita de sustentabilidade física, está implícita uma preocupação com a eqüidade social entre gerações, que deve, evi­dentem ente, ser extensiva à eqüidade em cada geração.31 Nessa perspectiva, atender às necessidades das gerações presentes e futuras significa atendê-las de maneira equânime.

Cada cidadão do planeta tem o direito de usufruir dos recursos naturais dentro dos parâmetros da sustentabilidade. Para tanto, a

31 Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Op. cit., p. 46.

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todos é devido o mesmo acesso à educação e informação, a partici­pação nas decisões políticas, a garantia de poder atender às necessi­dades básicas dentro de um padrão que lhe assegure a preservação da dignidade. Todos esses valores estão entrelaçados, na medida em que não é possível garantir a dignidade sem o acesso à educação. Tampouco exigir comportamentos em harm onia com a natureza sem que a informação esteja disseminada, e que o discurso político inclua na pauta de discussão as questões ambientais. Por tudo isso o desenvolvimento sustentável exige que as sociedades atendam às necessidades humanas, tanto aum entando o potencial de produção quanto assegurando a todos as mesmas oportunidades.32 A eqüida­de entre os Estados está intimamente ligada à noção de interesse comum. Somente através da cooperação internacional o quadro de desigualdades poderá se modificar.

A limitação que a tecnologia e a organização social impõem ao desenvolvimento consiste no segundo conceito-chave proposto pela Comissão Brundtland.

A idéia central é de que o limite de crescimento, sem comprome­ter os recursos ecológicos, depende do estágio de desenvolvimento da tecnologia. É um processo constante que deve ser orientado no senti­do de aliviar a pressão ecológica e aumentar a capacidade de utiliza­ção dos recursos. Quanto aos recursos renováveis, a sua utilização deve observar os limites de regeneração e crescimento natural, consi- derando-se as interligações entre os ecossistemas. Com relação aos recursos não renováveis, o relatório propõe que seu uso deve levar em conta a sua disponibilidade, tecnologias que minimizem o seu esgota­mento e a probabilidade em se obter substitutos. O índice de destrui­ção desses recursos deve manter o máximo de possibilidades futuras.

Diante dessas considerações, conclui o relatório:

Em essência, o desenvolvimento sustentável é um processo de transformação no qual a exploração dos recursos, a direção dos inves­timentos, a orientação do desenvolvimento tecnológico e a mudança

32 Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Op. cit., p. 47.

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institucional se harmonizam e reforçam o potencial presente e futu­ro, a fim de atender às necessidades e aspirações humanas.33

Por ser o desenvolvimento um processo de mudança, a dificul­dade em se estabelecer os parâmetros da sustentabilidade vai reper­cutir na formação do conteúdo material do princípio jurídico. A importância dessa questão reside na operacionalidade deste princí­pio no Direito Internacional. Como aferir responsabilidade ou exi- gir-se o cumprimento de determinada conduta com fundamento em princípio tão flexível e mutável?

Daí poder-se concluir que o conceito de desenvolvimento sus­tentável comporta dois sentidos. O primeiro, mais amplo, ditado por regras gerais, que apontam o sentido em abstrato que este p ro­cesso deve seguir, fornecendo a direção que vai guiar a apreciação do conhecimento fornecido pela ciência natural. O segundo deverá for­necer o parâm etro técnico de sustentabilidade, com base no está­gio de desenvolvimento da tecnologia e conhecimento científico. E também pelos elementos específicos de determinada organização social. Este segundo sentido, mais específico, vai surgir da necessida­de de análise do caso concreto.

O primeiro sentido bem se amoldaria aos requisitos para confi­gurar o princípio jurídico. Aqui, os limites são genéricos e abstratos. Apontam a direção. Revelam a orientação que a norma quer im pri­mir à conduta humana.

Para que a no rm a seja aplicada e se concretize, há necessida­de que estes limites genéricos ou, para utilizar um a analogia com os tratados-quadro, que a moldura seja permanentemente nutrida pelo conhecimento advindo das ciências naturais e sociais. Para a plena configuração do conceito é necessário que ele se preencha de con­teúdo material oriundo de outras fontes. Percebe-se o quanto a solu­ção é interdisciplinar.

Assim, ao se analisarem as opções de energia para determinada indústria, a internalização do custo ambiental será importante para

33 Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Op. cit., p. 49.

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se aferir qual das possibilidades atende a todas as condições e pa­râmetros da sustentabilidade. Que incluem não só o controle da po­luição atmosférica, mas a probabilidade de esgotamento do recurso natural utilizado, do impacto social causado e do grau de certeza científica que uma inovação tecnológica propicia.

Este sentido mais estrito do conceito permite sua maleabilida­de frente às inúmeras possibilidades que a inovação, tanto tecnoló­gica como social, criará neste processo de transformação orientado pelo desenvolvimento sustentável. Exige do princípio jurídico um intercâmbio necessário com o conhecimento de outras áreas da ciência.

Este diálogo constante entre o direito e as demais ciências na formação do conteúdo da norm a jurídica é de especial relevância para o Direito Ambiental, cuja complexidade de situações a enfren­tar exige mais que um a interpretação formal do direito.

Desse modo, é possível também inferir que o princípio jurídico do desenvolvimento sustentável tenha dois sentidos. Um de elevado nível de abstração e generalidade, ao assegurar às gerações v indou­ras um meio ambiente sadio e equilibrado. O segundo a permitir a sua aplicabilidade, que vai depender da aferição do padrão de tecno­logia disponível em determinado m om ento histórico, que seja o mais consentâneo com os parâmetros de sustentabilidade. A defi­nição destes parâm etros é mutável e flexível, e depende substan ­cialmente do grau de certeza científica conhecido; do que resulta a especial relevância do princípio da precaução no m om ento de aferi­ção do parâmetro de sustentabilidade ou na avaliação do segundo sentido deste conceito.

Diante de um quadro de incerteza científica sobre as conse­qüências de certa atividade humana sobre os recursos naturais, tal atividade estará à margem do permitido pela normatividade especí­fica dos princípios jurídicos ambientais.

A m udança de padrão tecnológico provoca, portanto, uma nova relação entre a norm a e seu conteúdo. Tentar delimitar a especifici­dade jurídica do conceito do desenvolvimento sustentável significa compreender os parâmetros de sustentabilidade.

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Por outro lado, a diversidade de identidades culturais e condi­ções ambientais no planeta exige um tratamento global, mas dife­renciado. O que pode deixar o princípio jurídico com parâmetros ainda mais flexíveis, sem perder com isto o seu caráter vinculante de norm a jurídica.

No Direito Internacional, o princípio do desenvolvimento sus­tentável bem se enquadra na espécie normativa dos princípios gerais do direito, fonte do Direito Internacional. Pelo seu reconhecimento em inúmeros tratados, resoluções, declarações e especialmente pela sua invocação expressa em recente decisão da Corte Internacio­nal de justiça, no caso Gabcíkovo-Nagimaros, tende a assumir um papel cada vez mais relevante na solução de questões complexas de natureza ambiental. Suas funções mostram claramente maior ade­quação para o deslinde de conflitos internacionais, que têm forte tradição na solução consensual de litígios. Para a finalidade concilia­dora do princípio em estudo, de com por o direito ao desenvolvi­mento com a proteção do ambiente, esta categoria normativa pode melhor resguardar a coerência sistêmica de um ordenamento jurídi­co marcado por valores muitas vezes colidentes.

5. PRINCÍPIO DE DIREITO E POLÍTICA PÚBLICA

Importa, aqui, diferenciar princípio jurídico de política pública, pela proximidade que o teor das normas constitucionais programáti- cas tem com o objeto das políticas de governo. Isso é relevante pela tendência natural em se confundir o princípio de desenvolvimen­to sustentável com os mecanismos políticos de sua implementação. Embora o conceito de sustentabilidade deva servir de guia para a ela­boração e consecução de políticas públicas ambientais, econômicas e sociais, a sua delimitação jurídica se faz necessária até para compreen­der o papel que o direito possa ter para sua efetivação e controle.

José Afonso da Silva, em seu clássico Aplicabilidade das Normas Constitucionais, sugeriu uma classificação para as normas constitu­

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cionais de princípio de eficácia limitada: as definidoras de princípio institutivo e organizativo e as definidoras de princípio programáti- co.3'1 Segundo o constitucionalista:

as programáticas envolvem um conteúdo social e objetivam a in­terferência do Estado na ordem econômico-social, a fim de propi­ciar a realização do bem comum, através da democracia social. As de princípio institutivo têm conteúdo organizativo e regulativo de órgãos e entidades, respectivas atribuições e relações.35

Neste estudo, interessam especialmente as normas de princípio programático e sua relação com as políticas públicas. Isso porque a aplicação do princípio do desenvolvimento sustentável será aferi- da de maneira mais precisa no próprio conteúdo e direção das ações estatais. Embora normas de eficácia reduzida, compreendidas e n q u a n ­to programas de Estado a serem implementados por sua atuação, o professor Silva ressalta a imperatividade das normas decorrente dos limites que impõem aos sujeitos de direito, a criar uma situação de vantagem efetiva aos sujeitos que delas terão benefícios. Como ensi­na, disso decorre: “um vínculo jurídico inequívoco, que constitui o enlace entre os sujeitos da relação nelas fundadas, caracterizando a bilateralidade atributiva essencial a toda regra de direito”.36

A eficácia jurídica destas normas se manifesta ao vincular o le­gislador, ao informar a concepção de Estado e de sociedade e, com isso, inspirar sua ordenação jurídica, ao constituir sentido teleológi- co para a interpretação, integração e aplicação das normas jurídicas, ao condicionar a atividade discricionária da Administração e do Poder Judiciário e ao criar situações jurídicas subjetivas.37

A norm a programática vincula a ação do Estado, mas não se confunde com a sua estratégia política ou escolha de prioridades, ou, ainda, com a discricionariedade dos atos da Administração. Na­

31 In: Aplicabilidade das normas constitucionais. São P au lo , RT, 1968. p. 110.35 SILVA, J.A. Op. cit., p. 118.36 SILVA, J. A. O p . c it., p. 140.37 SILVA, J. A. O p . c it., p. 150.

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turalmente que a ação estatal não deve contrariar os princípios pro- gramáticos estabelecidos pelo ordenamento jurídico.

O princípio do desenvolvimento sustentável amolda-se melhor à natureza desta espécie normativa por conter parâmetros de con­duta hum ana que devem ser obedecidos no sistema internacional, especialmente pelos Estados. A nova qualidade do modelo de desen­volvimento proposto depende substancialmente de implementação de políticas públicas compatíveis com os critérios de sustentabili­dade. Assim, políticas voltadas ao fomento industrial não podem deixar de considerar a variável ambiental. As fontes de energia utilizadas devem ser compatíveis com a capacidade de suporte dos ecossistemas. Os mecanism os de financiam ento devem priorizar a utilização de tecnologias limpas. Deve-se analisar ainda o impacto social da política que, como já apontado pelo relatório da Com is­são Brundtland, pode ter um efeito pernicioso sobre o ambiente.

A questão ambiental, além de complexa, tem esta peculiaridade da globalidade, de envolver um saber totalizante. O aspecto interdis- ciplinar revela o quanto o enfrentamento dessa complexidade exige uma visão do todo. As políticas públicas devem, portanto, se harm o­nizar para não perder esta perspectiva global. O choque de interes­ses muitas vezes contrapõe valores que aparentemente deveriam dar suporte a uma política sustentável. Um assentamento popular em área ambientalmente protegida poderá revelar demagogia política ao invés de representar efetivamente um a solução para o problema social. Se a busca de maior eqüidade social é fundamental, este movimento não pode desconsiderar a proteção ambiental.

O âmbito de discricionariedade de um Estado, portanto, não pode ofender o interesse de todos os Estados em proteger os recur­sos naturais para as futuras gerações. A ação estatal vê-se controlada por um princípio universal, já incorporado em muitos ordenam en­tos jurídicos, mas que só faz sentido ao vincular todos os Estados.

A natureza vinculante do princípio revela-se na esfera do Direi­to Internacional na obrigação dos Estados em adotar políticas públi­cas compatíveis com critérios de sustentabilidade. Impõe também à

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comunidade internacional a obrigação de cooperação na viabiliza­ção dessas políticas.

Importante será a identificação de normas programáticas infor­madas pelo princípio do desenvolvimento sustentável, para distin- gui-las dos mecanismos políticos de implementação de um modelo de desenvolvimento, o que levará a indagar até que pon to metas e objetivos de um programa político que conduzam a um padrão insustentável de consumo e desenvolvimento poderiam ser ques­tionadas no âmbito do Direito Internacional por contrariar um prin­cípio jurídico. O que vai aferir também o grau de eficácia que o princípio possa ter na aplicação do direito na arena jurídica inter­nacional.

De acordo com o relatório da Comissão Brundtland, os princi­pais objetivos das políticas ambientais e desenvolvimentistas que derivam do conceito de desenvolvimento sustentável seriam os se­guintes: (1) retomar o crescimento; (2) alterar a qualidade do desen­volvimento; (3) atender às necessidades essenciais de emprego, alimentação, energia, água e saneamento; (4) manter um nível p o ­pulacional sustentável; (5) conservar e melhorar a base de recursos; (6) reorientar a tecnologia e administrar o risco; e (7) incluir o meio ambiente e a economia no processo de decisões.38

Percebe-se, muito claramente, que os objetivos das políticas p ú ­blicas recomendados pela Comissão confundem-se com o próprio conteúdo do conceito de desenvolvimento sustentável em suas várias dimensões e do princípio jurídico que se extrai desse conceito.

Isso leva à conclusão de que as políticas públicas, enquanto m e­canismos para colocar em marcha e executar um processo de desen­volvimento, deverão ser irrefutavelmente informadas pelo princípio do desenvolvimento sustentável.

As políticas públicas são conduzidas pelos órgãos do Executivo, que devem obediência aos princípios e normas constitucionais de proteção ambiental. Além destas normas de direito interno dos Esta­

38 Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Op. cit., p. 53.

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dos, elas não podem contrariar as norm as de Direito Internacional, aí incluindo-se os costumes e os princípios gerais de direito. Vale lembrar o disposto no art. 27 da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados (1969): “Uma parte não pode invocar as disposições de seu direito interno para justificar o descumprimento de um tratado”.

Considerando a dimensão global da proteção ambiental, como já afirmado, ainda que um Estado não tenha se obrigado in terna­cionalmente por tratado, não estaria ele comprometido com os prin­cípios gerais de direito, reconhecidos mundialmente pela grande maioria dos Estados? Especialmente por princípio que tem por escopo a garantia da sobrevivência da vida no planeta?

E, aqui, deve-se questionar se este princípio deve informar tam ­bém o Estado que ainda não o incorporou ao seu direito interno. Tratando-se de uma questão que pode comprometer a saúde do pla­neta, e, portanto, a sobrevivência de todos, não estaria este princípio vinculado substancialmente à noção de interesse com um da hum a­nidade? Seria ilógico pensar de forma diferente. Mas, poder-se-ia argumentar que determinadas atividades predatórias não teriam o condão de comprometer o meio ambiente global. Por exemplo, a poluição de uma bacia fluvial sem relevância poderia ser questiona­da, quando a população local manifesta a sua aceitação em troca dos empregos que a atividade poluidora propicia? Que impacto esta poluição traria ao ambiente do planeta? Esta população local, por meio de seu governo, não poderia fazer uma opção de desenvolvi­mento em prejuízo das gerações futuras locais? Uma tal atitude pos­sibilitaria a intervenção de um organismo internacional para coibir a atividade?

Parece que, por ora, a relutância em aprofundar a consciência sobre os riscos globais das agressões ambientais e a resistência para se conseguir um consenso com a questão climática são um sintoma bem evidente disto. Ademais, os princípios clássicos de soberania, independência, autodeterminação dos povos e não-intervenção, que regem a ordem jurídica internacional, podem servir de escudo para muitos Estados justificarem a não-adoção de políticas públicas dire­cionadas para a sustentabilidade. Some-se ainda a alegação freqüen­

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te e real da falta de recursos para tornar inócua a emergência de res­ponsabilidade, dada a insolvência ex ante. Não haveria outro meio de se exigir internacionalmente a adoção de uma política pública consentânea com o princípio do desenvolvimento sustentável que não através de um a conduta apoiada firmemente nos mecanismos de cooperação internacional.

Nesse passo, o Estado não poderia se recusar a receber os recur­sos e aplicá-los na promoção de um modelo de desenvolvimento aceitável pelo Direito Internacional. A cooperação não pode ter o ca­ráter de imposição de um modelo proposto, mas simplesmente de­ve corresponder aos anseios locais de implementar uma forma de desenvolvimento compatível com as peculiaridades do ambiente fí­sico e cultural. Além disto, deve procurar fomentar a atividade de pes­quisa científica e tecnológica de cada comunidade.

Os instrumentos mais adequados para a efetivação do princípio passam, sem dúvida alguma, pelos mecanismos disponíveis pelas agências internacionais de financiamento, bem como pelos instru­mentos de solução de controvérsias de organizações que ocupam cada vez mais um espaço significativo na resolução de disputas entre Estados, como é o caso da Organização Mundial do Comércio ( o m c ) .

Para o Direito Internacional, este princípio se vincula à concep­ção que se vem construindo sobre os grandes espaços públicos inter­nacionais identificados com um interesse com um da humanidade. Assim, o Tratado da Antártida, assinado em 1959, reconhece no preâmbulo ser de interesse de toda a humanidade que aquele espaço continue para sempre a ser utilizado para fins pacíficos e não se con­verta em cenário ou objeto de discórdias internacionais. No mesmo sentido, a disposição preambular da Convenção sobre a Conservação dos Recursos Vivos Marinhos Antárticos, assinada em 1980.390 Tra­

39 R A N G E L , V. M . Direito e relações internacionais. 7. ed . São P au lo , r t , 2002. “ R e c o n h e c e n d o a im p o r tâ n c ia d e se p ro te g e r o m e io a m b ie n te e p re se rv a r a in te g r id a ­d e d o eco ss is te m a d o s m a re s a d ja c e n te s à A n tá r t id a ; a c r e d i ta n d o se r d o in te re sse d e to d a a h u m a n id a d e p re se rv a r a s á g u a s q u e c i r c u n d a m o C o n t in e n te A n tá r t ic o u n ic a ­m e n te p a ra fins pac íf icos , e e v i ta r a su a t r a n s f o rm a ç ã o e m c e n á r io o u o b je to d e d is ­c ó rd ia s in te rn a c io n a is .”

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tado sobre Princípios Reguladores das Atividades dos Estados na Exploração e Uso do Espaço Cósmico, inclusive a Lua e demais Cor­pos Celestes, patrocinado pela Assembléia Geral da ONU em 1966, dispõe, em seu artigo primeiro, que a exploração e o uso deste es­paço deverão ter em mira o bem e interesse de todos os Estados, qualquer que seja o desenvolvimento econômico e científico, e são incumbência de toda a humanidade.40

Segundo lição do Professor Alexandre Kiss, o Direito Internacio­nal do Meio Ambiente, ram o especial do Direito Internacional como o Direito do Mar e do Espaço Extra-atmosférico, tem por objeto a proteção da biosfera, compreendida como a totalidade do ambiente ou a parte do universo onde se encontram todas as formas de vida. Mas, protegê-la em benefício de quem? A quem obriga e com qual fundamento? Para responder essas questões é necessário definir a finalidade do Direito Internacional do Meio Ambiente.

A proteção da biosfera em sua globalidade, sugere o Professor Kiss, estaria a exigir um a condição jurídica próxima da personalida­de jurídica. Tal qual ocorreu na Convenção do Mar (1982) com os recursos minerais dos grandes fundos oceânicos proclamados patri­mônio com um da humanidade.

Há também uma outra via para se aproximar da finalidade da proteção internacional do meio ambiente. Encontra-se no preâm bu­lo da Carta Mundial da Natureza, adotada pela Assembléia Geral da ONU em 1982 (Resolução n. 37/7), ao dispor que a humanidade é par­te da natureza e a vida depende do funcionamento ininterrupto dos sistemas naturais, que são as fontes de energia e matéria nutritiva, e ao reconhecer um valor intrínseco a toda forma de vida do planeta.41

10 RANGEL, V. M. Op. cit." KISS, A. Droit international de Venvironement. Paris, Pedone, 1989. “Vhumanité

fa it partie de la nature et la vie dépend du fonctionnement ininterrompu des systèmes naturels qui sont la source d'énergie et de matières nutirtives”. Afirma ainda a “Charte mondiale de la Nature” cm seu preâmbulo: “Toute forme de vie est unique et mérite d ’être respectée, quelle que soit son utilité pour Vhomme, et, afm de reconnaitre aux autres organismes vivants cette valeur intirnsèque, Vhomme doit se guider sur um code moral d ’action". p. 14.

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Dessa forma, a proteção da biosfera torna-se interesse comum da humanidade, que se identifica com a sobrevivência da espécie humana, tanto quanto a possibilitar a concretização da liberdade e dignidade humanas. Essa noção não pode excluir a dimensão tem ­poral. A preservação do ambiente só faz sentido ao se considerar as gerações futuras. De outra forma, como afirma o Professor Kiss “tout peut être consommé et gaspillé dans le présentV2

Essa noção de interesse com um da hum anidade insere-se no Direito Internacional em contraponto ao direito convencional t ra ­dicional fundam entado no voluntarismo e no princípio da reci­procidade. Algumas normas internacionais já contrariavam esta con­cepção voluntarista. Inicialmente, a liberdade de navegação sobre os rios internacionais, a proibição do transporte de escravos por mar, uma certa proteção à liberdade religiosa e um a tendência de hum a- nização do direito da guerra. A partir da P rim eira Guerra M un­dial surge um interesse partilhado por todos os Estados em supri­m ir condições desumanas do trabalho e coibir o trabalho infantil. Após a Segunda Guerra Mundial, os direitos hum anos ganharam uma enorm e preocupação da sociedade internacional, o que resul­tou na construção de um sistema de proteção convencional, que obri­ga os Estados independentemente de qualquer regra de reciprocida­de. A partir da regulamentação dos grandes espaços de domínio público e da proliferação de um direito convencional protetivo dos recursos naturais nos anos de 1960, sem esquecer da proteção interna­cional dos direitos humanos, a idéia de uma ordem pública inter­nacional começa a se formar em razão de um interesse com um da humanidade que passa a vincular e obrigar os Estados.

Assim a natureza pública da proteção ambiental na ordem in­ternacional identifica-se com a própria finalidade do Direito Inter­nacional do Meio Ambiente de proteção da biosfera, que tem por fundamento o interesse comum da humanidade. Esse interesse tam ­bém fornece a razão do direito dos povos ao desenvolvimento, que

42 KISS, A. Op. cit., p. 15.

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se fundiu de maneira irreversível ao direito ao meio ambiente eco­logicamente equilibrado, das presentes e futuras gerações.

6. DECLARAÇÃO DE NOVA DELI (ILA - 2002)

A International Law Association ( i l a ) , uma das mais tradicio­nais associações dedicadas ao estudo do Direito Internacional'3, p ro­moveu em abril de 2002, em Nova Deli, conferência bienal, na qual uma das Comissões tinha a incumbência de elaborar relatório sobre as discussões havidas em torno dos aspectos legais do desenvolvi­mento sustentável.

A Comissão dedicada ao estudo do desenvolvimento sustentável formou-se na conferência realizada no Cairo em 1992, tendo ela­borado relatórios resultados das conferências bienais, nos quais se buscou delinear os princípios abrangidos pela sustentabilidade. Na conferência que se deu em Nova Deli em 2002, apresentou-se uma proposta de declaração elaborada pelo grupo de trabalho que com ­punha a Comissão. Após o questionamento de alguns pontos desta proposta, chegou-se a um texto final contendo sete princípios funda­mentais que constituem o cerne do conceito de desenvolvimento sus­tentável. A preocupação da Comissão em escolher princípios que melhor pudessem definir o campo de abrangência e dimensões da sustentabilidade deve-se à grande dificuldade em precisar o seu con­torno. Dada a flexibilidade do conceito, sua vocação holística e tota- lizante, corre-se o risco de sua abrangência torná-lo demasiadamente vago e impreciso. Ao mesmo tempo, enquanto princípio em forma­ção, a necessidade de se estabelecer critérios e parâmetros que pos­

43 “The International Law Association was founded in Brussels in 1873. Its objec- tives, under its Constitution, include the study; elucidation and advancement o f interna- tional law, public and private, the study o f comparative law, the making o f proposals for the solution o f conflicts o flaw and for the unification oflaw ; and the furthering o f inter­national understanding andgood will”. The ila has consultative status, as an internatio­nal non-governarnental organisation, with a number o f the United Nations specialised agencies.” D isp o n ív e l e m : < U R L : h t t p : / /w v w . i l a - h q .o r g /h tm l /m a in _ a b o u t .h tm >.

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sam melhor defini-lo traduz-se na percepção do debate atual sobre os pontos fundamentais e inescapáveis para a sua compreensão. Assim, embora essa declaração não contenha todos os princípios já discutidos e correlatos com o desenvolvimento sustentável, procurou indicar os princípios nucleares e essenciais para a conformação do conceito. Dessa forma, a Comissão chegou a um a conclusão das dimensões fundamentais desse princípio e que constituem os traços configuradores de sua existência, representados pelos seguintes prin­cípios proclamados na Declaração de Princípios de Nova Deli de Direito Internacional sobre Desenvolvimento Sustentável:

6.1. PRINCÍPIO DA OBRIGAÇÃO DOS ESTADOS EM ASSEGURAR O USO SUSTENTÁVEL DOS RECURSOS NATURAIS

A Resolução ressaltou a importância do princípio da soberania dos Estados sobre a utilização de seus recursos naturais, e a respon­sabilidade decorrente das atividades praticadas em seu território que possam causar dano ambiental a outros Estados. Afirmou, ainda, a obrigação de os Estados gerenciarem estes recursos de forma racio­nal, segura e sustentável, de forma a preservá-los para as futuras gerações. Declarou, expressamente, ser a proteção e relevância do ambiente natural, especialmente o gerenciamento do sistema climá­tico, da diversidade biológica, fauna e flora do planeta, do interesse com um da humanidade. Os recursos do espaço cósmico e dos cor­pos celestes, da plataforma continental, fundos oceânicos e subso­lo além dos limites da jurisdição nacional pertencem à herança comum da humanidade.

Este princípio aponta que a soberania estatal encontra limites exatamente no uso sustentável de seus recursos. As políticas de de­senvolvimento, além de atentar para suas próprias conveniências e particularidades, não podem afastar-se do princípio do desenvolvi­mento sustentável. A sua aplicação é uma obrigação do Estado e um direito de suas populações, que, como foi visto, insere-se no campo de proteção do direito à vida e à saúde.

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6.2. PRINCIPIO DA EQÜIDADE E DA ERRADICAÇÃO DA POBREZA

É um princípio central para o alcance do desenvolvimento sus­tentável. Refere-se à eqüidade entre gerações, mas também um direi­to de todos os povos da presente geração a um justo acesso dos recursos naturais do planeta. Isso só é possível mediante a observân­cia do Capítulo ix da Carta da ONU, sobre Cooperação Internacional, e a Declaração do Rio de Janeiro. Atribui também responsabilidade aos Estados em prestar assistência para a erradicação da pobreza no planeta. É a dimensão social do princípio a exigir uma melhor dis­tribuição de direitos, informações e bem-estar econômico.

6.3. PRINCÍPIO DE RESPONSABILIDADES COMUNS MAS DIFERENCIADAS

A capacidade dos Estados em prestar assistência deve ser levada em consideração nesta parceria global. A Resolução ressalta que a necessidade e os interesses de países em desenvolvimento, em espe­cial dos de m enor desenvolvimento relativo, precisam ser reconheci­dos. Os países desenvolvidos devem adequar os seus padrões de con­sumo aos níveis de sustentabilidade bem como prestar assistência financeira para que países em desenvolvimento possam ter acesso e capacidade de produção de tecnologia com acentuada orientação ecológica. E, por fim, aduz a liderança dos países desenvolvidos em assumir responsabilidades em questões concernentes ao desenvolvi­mento sustentável.

Essa posição não deixou de receber crítica por ocasião dos deba­tes da Comissão, na medida em que acentuava o papel dos países desenvolvidos na condução de uma política global que caminhe para a consolidação do princípio, de certa forma discriminando a atuação de países em desenvolvimento. A própria terminologia em ­pregada deveria enfatizar o aspecto econômico do desenvolvimento quando quer classificar Estados cujas economias possam ser mais ou menos desenvolvidas. As dimensões social, política e cultural que o conceito de desenvolvimento abrange não permitiriam uma classifi­

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cação diante da diversidade de culturas e Estados do planeta. Nem quer dizer que as economias mais desenvolvidas não teriam o que aprender com esta diversidade cultural.

6.4. PRINCÍPIO DA ABORDAGEM PREVENTIVA COM RELAÇÃO À SAÚDE HUMANA, RECURSOS NATURAIS E ECOSSISTEMAS

A abordagem preventiva é essencial para o desenvolvimento sustentável na medida em que direciona a atividade dos Estados, das organizações internacionais e da sociedade civil, em especial da co­munidade científica e empresarial, no sentido de evitar danos am ­bientais, também quando houver incerteza científica. O que exige a responsabilidade pelo dano causado, baseada em critérios claros e objetivos bem definidos. Os processos de decisão devem endossar a abordagem preventiva e tom ar todas as medidas apropriadas ainda quando houver certeza científica. Por fim, estas medidas necessitam de embasamento científico atualizado e transparente, o que im por­ta na reprovação do protecionismo econômico e no estabelecimen­to de mecanismos transparentes que permitam às partes envolvidas um permanente processo de consulta. Também prevê a revisão por órgão judiciário ou administrativo.

Esse princípio ganha tanto mais importância quando percebe­mos que a virtude do desenvolvimento sustentável de conciliar ativi­dade humana e proteção do meio natural só pode ser viabilizada com a introdução e o constante desenvolvimento de processos produtivos ecologicamente orientados. A atitude repressiva tende a perder im ­portância diante da disseminação de condutas que busquem na pre­visão e conhecimento científico os caminhos mais adequados para preservação do meio ambiente. Somente a integração de todos os princípios, com seus deveres e obrigações, viabiliza o compromisso com uma conduta efetivamente preventiva. Sem acesso eqüitativo à informação, educação e justiça toda esta nova concepção de desen­volvimento remanesce restrita ao debate acadêmico. A reformulação

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de modos de produzir pela introdução do novo só pode surtir efeito se o novo puder ser compreendido e aceito pelas comunidades locais.

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6.5. PRINCIPIO DA PARTICIPAÇAO PUBLICA E DO ACESSO À INFORMAÇÃO E À jUSTIÇA

A participação pública é essencial para garantir a transparência das políticas de governo, bem como para o engajamento de organi­zações da sociedade civil, de forma responsável. Requer a proteção do direito hum ano à manifestação de idéias e opiniões e acesso a todas as informações relativas ao uso sustentável dos recursos na tu ­rais, sem ônus financeiro para o requerente e respeitando apropria­damente a informação empresarial sigilosa. A garantia de acesso de todos à justiça, de forma eqüitativa entre cidadãos de diferentes Estados, é uma forma de conferir mais poder ao cidadão.

Vê-se como a democracia para atuar de maneira positiva em relação à proteção do meio ambiente está a exigir a participação p ú ­blica nos processos de decisão. O aprim oram ento dos mecanismos desta participação e o crescimento da atuação da sociedade civil dependem da maior difusão de informação e conhecimento, assim como da persecução constante por maior justiça social.

6.6. PRINCÍPIO DA BOA GOVERNANÇA

Obriga Estados e organizações internacionais a tom ar procedi­mentos de decisão e responsabilidade transparentes e dem ocráti­cos, a encetar medidas de combate à corrupção, respeitar os direitos hum anos e implementar a intervenção pública de acordo com as normas da OMC. Organizações não-governamentais também estão su­jeitas a uma governança interna democrática e com efetiva respon­sabilidade. Inclui o respeito aos princípios da Declaração do Rio de janeiro, requer responsabilidade social para empresas e investimen­tos como condição de existência de um mercado global que assegu­re justa distribuição de riquezas entre as comunidades, bem como de suas populações.

Este princípio chama a responsabilidade de todos os atores inter­nacionais a estabelecer uma conduta mais transparente e voltada para implementação de maior eqüidade social. Exige a participação públi­ca, o acesso à informação e à justiça e o respeito às garantias do cida­

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dão asseguradas pela Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948). O papel das instituições internacionais e dos governos é cru­cial para a efetivação deste princípio. A criação de mecanismos de controle e a responsabilidade internacional se mostram como cami­nhos viáveis para a sua realização.

6.7. PRINCÍPIO DA INTEGRAÇÃO E DA INTERDEPENDÊNCIA DE OBJETIVOS SOCIAIS, ECONÔMICOS E AMBIENTAIS

Reflete a interdependência das dimensões social, econômica, financeira, ambiental e aspectos dos direitos humanos contida nos princípios de Direito Internacional concernentes ao desenvolvimen­to sustentável. Estes princípios estão inter-relacionados entre si e devem se guiar pelos princípios desta declaração. Em obediência à Carta da o n u e ao direito dos povos assegurado pela Carta.

Ao indicar o núcleo da principiologia do desenvolvimento sus­tentável, a Comissão da i l a sobre “Aspectos Legais do Desenvolvi­mento Sustentável” contribuiu não só para a melhor compreensão de seu significado, como também para sua afirmação no Direito In­ternacional, enquanto princípio reconhecido pela comunidade aca­dêmica internacional, a orientar condutas e políticas dos Estados e também decisões das cortes internacionais.

7. INSTITUCIONALIZAÇÃO DA SOCIEDADE INTERNACIONAL

O fenômeno da institucionalização da sociedade internacional se acentua após o término da Segunda Guerra Mundial e revela uma certa relativização do conceito de soberania, conforme aponta o Professor Juan Antonio Carrillo Salcedo.1'’ A vulnerabilidade das

44 In : Soberania dei Estado y Derecho Internacional. M a d r i , T ecnos, 1985.

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transações comerciais em um mercado mundial, a instantaneidade na transmissão de informações, a rapidez no volume das com uni­cações, o constante intercâmbio de pessoas entre Estados, e ainda o desenvolvimento de armas de longo alcance, reforçam a tendência de fortalecimento das organizações internacionais.

A criação da o n u no findar da Segunda Guerra Mundial re­presentou para a hum anidade, ainda que simbolicamente naque­le momento, um grande avanço para a construção de uma nova ordem m u n d ia l f irm ad a em valores fu n d a m e n ta is de p ro teção do ser hum ano, de manutenção da paz e segurança mundiais, e no dever de assistência e cooperação m undial para um a m elhor d istribui­ção de justiça e riquezas entre os Estados.

O art. 2o, item 4, da Carta da o n u (1945) expressa uma concep­ção distinta da Paz de Westfalia ao proibir o recurso das forças arm a­das nas relações internacionais. O recurso à guerra deixa de ser competência soberana dos Estados e passa a ser regulado por um sistema coletivo de segurança, instituído pela Carta e especialmente disciplinado em seus Capítulos vi e vil, que cuidam respectivamen­te da Solução Pacífica de Controvérsias e da Ação Relativa a Amea­ças à Paz, Ruptura da Paz e Atos de Agressão.

A ação coletiva em casos de ameaça à paz ou atos de agressão dependerá, não obstante, de decisão unânime dos Estados membros do Conselho de Segurança da o n u e titulares do direito de veto, ou seja, das grandes potências. Diante da abrangência dos interesses desses Estados em escala mundial, a ONU vem dem onstrando ainda incapacidade para formular uma noção coerente de interesse geral sobre segurança, bem como para atuar de acordo com o interesse geral da comunidade internacional.

Essa situação, com o fim da guerra fria, e com as medidas tom a­das pelo Conselho de Segurança na Guerra do Golfo, revela m udan­ças positivas no sentido de se buscar uma legitimação para o uso da força dentro do sistema de segurança coletivo da Carta da o n u . De maneira pouco tímida, a o n u repudiou os ataques terroristas perpe­

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trados no dia 11 de setembro em Nova York e Washington. Embora tenha havido eloqüente consenso mundial de repulsa aos ataques, os Estados Unidos tom aram a dianteira na condução da operação mili­tar levada a cabo no Afeganistão. Também, o ataque ao Iraque des­considerou por completo a necessidade de autorização do Conselho de Segurança para tal fim. O que indica ainda a impotência da o n u

para efetivamente ter o comando do sistema de segurança coletivo, nos casos em que um dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança com direito a veto estiver envolvido.

De qualquer forma, o Direito Internacional convive ainda com duas concepções das relações internacionais, a de Westfalia e a da Carta da o n u . O que de certo modo torna a sua atuação cada vez mais relevante na formação de um a cultura jurídica global. E que se vem dando de maneira insofismável por um sólido e irreversível processo de codificação do Direito Internacional, sendo que muitas das convenções adotadas têm nascimento por iniciativa e realização da própria o n u . A coexistência dessas concepções demonstra que o Direito Internacional se alicerça na necessidade de cooperação ins­titucionalizada, por intermédio de organizações internacionais un i­versais e regionais, sem prescindir do princípio da soberania estatal.

Essa situação pode colocar o jurista frente a um dilema. As ve­lhas estruturas tornaram-se superadas e as novas diretrizes ainda não se consolidaram. Há dois níveis de sociedade internacional que se interagem: a relacionai e a institucional. Esse modelo traz a noção de justaposição de soberanias na comunidade internacional, que convivem de forma a atender o interesse geral e universal da com u­nidade internacional, com base em uma normatividade que se funda em grande parte no consentimento de seus membros, mas que começa a aceitar normas de natureza imperativa. Conforme dou tri­nam Nguyen Quoc Dinh, Patrick Daillier e Alain Pellet:

se o novo sistema institucional fez progressos consideráveis e pare­ce irreversível, está longe de ter suplantado o sistema “relacionai”

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tradicional e de satisfazer os apóstolos da sociedade internacional organizada.45

Esta nova dimensão das funções do Direito Internacional se m a­nifesta nas norm as protetivas dos direitos hum anos, na proteção do interesse geral da comunidade internacional, incluindo, aqui, o meio ambiente e o direito ao desenvolvimento, e na noção de patri­m ônio com um da hum anidade, e que poderia ser melhor com ­preendida com o a de um interesse com um da h u m a n id a d e que venha a significar um dos fu n d am en to s do Direito Internacio­nal. A humanização do Direito Internacional conheceu com a Carta da o n u e com a Declaração Universal dos Direitos do Hom em um m om ento de grande avanço, que se converteu em parte do direito constitucional da comunidade internacional, e alcançou uma posição superior em relação aos outros instrumentos de Direito Internacio­nal e leis nacionais.

A promoção do interesse geral da comunidade internacional se manifesta em normas de proteção internacional do meio ambiente, na noção de recursos naturais compartilhados e no desenvolvimen­to do conceito de responsabilidade decorrente de danos ambientais.

A positivação jurídica da noção de patrimônio comum da h u ­manidade, através dos Tratados da Antártida, da utilização dos espa­ços extraterrestres e dos fundos marinhos e oceânicos, representou a superação do conceito exclusivista de soberania territorial e a rele­vância de fatores coletivos e comunitários na ordem internacional contemporânea, afastando a perspectiva individualista dos Estados,

45 D I H N , N . Q .; D A ILLIER , P. & PELLET, A. Direito Internacional Público. L isboa, F u n d a ç ã o C a lo u s te G u lb e n k ia n , 1999. C o n c lu e m o s a u to re s : “P o s ta à p ro v a a s o b e ra ­n ia d o E s tad o pe la s o l id a r ie d a d e in te rn a c io n a l , c h e g o u -se , d e p o is d e q u a s e d o is s é c u ­los d e ev o lu ção , a u m a p lu ra l id a d e d e s is tem as , q u e faz d e sa p a re c e r n ã o o s is tem a in te re s ta ta l clássico, m as u n ic a m e n te o seu m o n o p ó l io . A in d a é n e c essá r io n o t a r q u e a o rg a n iz a ç ã o in te rn a c io n a l ta l c o m o ela é c o n c e b id a h o je e m d ia n ã o n eg a a s o b e ra n ia n e m m e s m o a lim ita : é n a v o n ta d e d o s E s ta d o s q u e ela e n c o n t r a o seu f u n d a m e n to e visa s o m e n te p e r m i t i r u m a co ex is tên c ia d a s s o b e ra n ia s tã o h a r m o n io s a q u a n to p o s s í­vel”. p. 58.

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vale dizer, a tendência dos Estados em determ inar de forma unila­teral e discricionária o alcance das normas e obrigações jurídicas internacionais.

A proteção desse interesse com um da hum anidade se configu­ra na própria finalidade do Direito Ambiental, como já advertiu o Professor Kiss. Aí se inclui não só a proteção dos grandes espaços in terna­cionais de domínio público, mas a apropriação dos recursos naturais do planeta.

Esse interesse comum diz respeito tanto ao direito de as presen­tes e futuras gerações usufruírem um ambiente sadio e de forma eqüitativa, quanto ao direito de todos os povos em perseguir níveis adequados de bem-estar econômico e social.

8. RESPONSABILIDADE INTERNACIONAL

O tema da responsabilidade do Estado por dano ambiental so­frido por outro Estado vem ocupando papel relevante no Direito In ­ternacional, pelo desenvolvimento que o instituto vem ganhan­do nos estudos para elaboração do Projeto sobre Responsabilidade elaborado pela Comissão de Direito Internacional da o n u , como também pela solução através de instrumentos do Direito Interna­cional de casos paradigmáticos tratando de alguns acidentes que produziram efeitos catastróficos para o meio ambiente. Alguns com solução muito rápida, por via extrajudicial, como o caso da em pre­sa Sandoz na Suíça, outros que se arrastam pela via judicial até os dias de hoje, como do acidente em Bhopal na índia, sem esquecer o da fundição Trail, litígio entre Estados Unidos e Canadá, que gerou im portante norm a sobre responsabilidade dos Estados em matéria ambiental.'16

46 E s tes c a s o s e s tã o b e m e x p o s to s n o c a p í tu lo ‘‘C r ô n ic a s d e D e s a s t r e s e L i t í ­g io s I n t e r n a c i o n a i s ”, d a o b r a , d o P r o fe s s o r G u i d o S o a re s , Direito internacional do meio ambiente. Emergência, obrigações e responsabilidades. S ão P a u lo , A tlas , 2 0 0 1 .

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O tratamento conferido à responsabilidade no Direito Interna­cional, por suas peculiaridades, cria possibilidades diversas para o en­foque do tema. Uma delas diz respeito a uma abordagem preventiva para a qual a responsabilidade pode contribuir para maior efetivida­de de normas de natureza programática, quando trata da responsa­bilidade decorrente de uma obrigação de fazer.

A principiologia do Direito Internacional deve exercer influência considerável sobre o seu sistema de responsabilidades. Assim, tem-se a responsabilidade decorrente da obrigação de evitar o dano, orien­tada pelo princípio da prevenção e do desenvolvimento sustentável. A prevenção do dano vem ganhando importância e urgência no seu tratam ento em razão da consciência do risco para a comunidade internacional e muitas vezes de seus efeitos irreversíveis. Ademais, o custo de sua reparação pode significar uma soma muito superior ao custo de sua prevenção.

Por isso, o princípio da prevenção angariou entre teóricos e ati­vistas do meio ambiente posição de destaque, como já analisado, enriquecendo a análise e o estudo do Direito Ambiental em todas as suas perspectivas. Relaciona-se com a questão da educação ambien­tal, com o direito à informação, e até mesmo dando suporte ao p rin ­cípio do poluidor-pagador, na medida em que só a existência de normas repressivas pode inibir comportamentos degradadores.

O que releva analisar no campo das responsabilidades é a obri­gação dos Estados em adotarem políticas públicas, práticas am bien­tais e legislação própria consentânea com o princípio do desenvol­vimento sustentável, dentro da ótica da prevenção. O princípio da prevenção é o que mais se amolda com a adoção de um modelo sus­tentável de desenvolvimento, que presume planejamento e regula­ção. Para a concretização desses dois princípios, como foi visto tam ­bém, a cooperação internacional deve ser mais do que aspiração para a sociedade internacional, mas princípio jurídico a guiar não só a formação do jus scriptum como a tomada de decisões na solução de controvérsias.

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O professor Guido Soares em minuciosa e rica análise do insti­tuto da responsabilidade17 cuidou inicialmente das fontes de obriga­ção em Direito Internacional, para então tratar de seu conteúdo dentro do que denom inou de grandes temas da proteção ambiental. O primeiro deles versa sobre normas proibitivas de poluição trans- fronteiriça, sobre prevenção de danos a espaços internacionais co­muns e regulamentação de certas atividades militares e industriais. O segundo aborda a proteção a domínios determinados; vida selva­gem; combate à desertificação e à seca; pesca internacional e p ro ­teção do patrimônio natural e cultural. O terceiro analisa os funda­mentais deveres de cooperação lato sensu. E, finalmente, o quarto que contém os deveres de os Estados absterem-se do uso da força na solução de controvérsias sobre o Direito Internacional do Meio Ambiente.

A responsabilidade civil pode ser tratada no Direito Internacio­nal em dois sistemas distintos: da responsabilidade subjetiva ou por culpa, que decorre da prática de ato ilícito internacional, e cuja regu­lamentação está esparsa pelas diversas fontes do Direito Interna­cional, e da responsabilidade objetiva ou por risco, regulamentada estritamente pelo direito escrito, que institui a reparação indepen­dente da ilicitude do fato gerador do dano, também denominada pela C D I de responsabilidade internacional dos Estados por danos causados por atos não proibidos pelo Direito Internacional. Nessa espécie de responsabilidade, a vigência da norm a escrita é funda­mental. Nesse ponto, vale-se mais uma vez da preciosa relação de textos normativos, elaborada por Soares, que dispõem da responsa­bilidade objetiva.'18

Na responsabilidade subjetiva, como o ilícito se configura pelo descumprimento de qualquer norma do Direito Internacional, cum ­pre ressaltar a função do princípio e sua normatividade, para con­cluir que a afronta a um princípio integrador de todos os princípios,

47 Direito internacional do meio ambiente. Emergência, obrigações e responsabilida­des. S ão P au lo , A tlas, 2001.

48 O p . c it., p. 135 e s.

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como visto, gera responsabilidade decorrente do descumprimento de uma obrigação de fazer. Restaria então analisar se a conduta do Estado que contrarie a norma internacional de proteção ou progra- mática já seria capaz de gerar responsabilidade independentemente da superveniência do dano.

Têm-se duas situações distintas. Aquela em que o Estado, em decorrência do princípio, tem uma obrigação de fazer, que se traduz na implementação de políticas públicas sustentáveis e na obrigação de legislar em matéria ambiental em estrita obediência ao princípio. E outra situação em que o Estado se vê na contingência de evitar o dano ambiental e que resulta em um a obrigação de não fazer.

A ação ou omissão do Estado ao afrontar um princípio, portan­to, norm a de Direito Internacional, configuraria um ilícito gerador de responsabilidade. Uma ação do Estado que pode se caracterizar por uma política industrial evidentemente insustentável poderia ser objeto de questionamento por mecanismos de solução de contro­vérsias ou instrumentos de cooperação internacional. Esses meca­nismos no Direito Internacional estão muito mais consentâneos com a prática do consenso, e com a viabilidade de se utilizar para a sua realização de mecanismos de cooperação.

A obrigação de prevenção do dano ecológico traz em si uma espe­cial qualidade do dano ambiental, assim referida por Gilles Martin:

Os instrumentos jurídicos clássicos não eram, com efeito, muito adequados ao tratamento do dano ecológico, mas, sim, à aplicação de danos economicamente mensuráveis, e a modifi­cação dessa errônea interpretação somente foi possível a partir do reconhecimento da natureza específica e autônoma do dano ambiental.49

49 M A R T IN , G . J. “ Le d o m m a g e é c o lo g iq u e d a n s la c o m m u n a u t é e u r o p é e n n e ”. P a le s tra p r o fe r id a 110 p a in e l “O d a n o a m b ie n ta l e s u a r e p a r a ç ã o d u r a n t e o S e m in á ­r io I n te r n a c io n a l d e D ire i to A m b ie n ta l”, r e a l iz a d o 110 R io d e Ja n e iro , d e 28 a 31 d e o u t u b r o d e 1991. In: W A L C A C E R , F. C . Conferência Internacional de Direito Am bien­tal - Anais. R io d e Ja n e iro , E x p re s sã o e C u l tu r a 1992. A p u d S A M P A IO , F. J. M . Responsabilidade civil e reparação de danos ao meio ambiente. R io d e Jan e iro , L u m e n Ju ris , 1998. p . 103.

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