Junior Vasconcelos do Amaral - faculdadejesuita.edu.br · o problema do seguimento e do serviço...

119
Junior Vasconcelos do Amaral AKOLOUTHIA E DIAKONIA NO EVANGELHO DE MARCOS Uma análise narrativa de Mc 15,40-16,8 Dissertação apresentada ao Departamento de Teologia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Teologia. Área de concentração: Teologia Sistemática Orientador: Prof. Dr. Johan Konings, SJ. Belo Horizonte FAJE - Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia 2009 Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

Transcript of Junior Vasconcelos do Amaral - faculdadejesuita.edu.br · o problema do seguimento e do serviço...

Junior Vasconcelos do Amaral

AKOLOUTHIA E DIAKONIA NO EVANGELHO DE MARCOS Uma análise narrativa de Mc 15,40-16,8

Dissertação apresentada ao Departamento de Teologia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Teologia. Área de concentração: Teologia Sistemática Orientador: Prof. Dr. Johan Konings, SJ.

Belo Horizonte

FAJE - Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia

2009

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

2

Agradecimento

A Deus que me amou primeiro.

À minha mãe Maria e ao meu pai por me educarem para o discipulado e o serviço.

À Rosa, também mãe, por sua fidelidade a Deus e o serviço aos empobrecidos.

A meu irmão, Julio César, companheiro de caminhada e à Celeste, irmã do coração.

Ao mestre e orientador, Konings, por sua paciência, dedicação e amizade.

Ao Programa Capes- PROSUP, pela ajuda com a bolsa de estudos.

À Faje, com seus docentes e funcionários, pela excelência na educação.

Aos companheiros e amigos da Comunidade Santo Estevão.

Aos amigos de vida presbiteral, Ivanir, Márcio, Julio Cézar e Geraldo e todos os

outros, pelo incentivo.

Às amigas Aíla, Áurea, Sandra, Lorena e Solange, pela delicadeza em servir.

E àqueles todos que persistem em seguir a Jesus, “caminho, verdade e vida” (Jo 14,6).

Homenagem

À memória de meu pai Vasconcelos. Ele, tal qual um veleiro, se foi. Eu apenas o perdi

de vista.

“Quando o veleiro parte, levando a preciosa carga de um amor que nos foi caro, e o vemos sumir na linha que separa o visível do invisível dizemos: ‘já se foi’. Terá sumido? Evaporado? Não, certamente. Apenas o perdemos de vista. O ser que amamos continua o mesmo” (Victor Hugo).

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

3

RESUMO

A perícope de Mc 15,40-16,8 corresponde ao clímax narrativo do Segundo Evangelho. Deseja

elucidar o testemunho das mulheres diante da cruz (15,40), no sepultamento de Jesus (15,47)

e diante do anúncio do jovem no sepulcro vazio (16,6). Esta trama narrativa, que evidencia o

querigma da morte-ressurreição de Jesus, lança a perspectiva do encontro com Jesus na

comunidade dos discípulos na Galiléia. Com o imperativo “ide dizer”, as mulheres são

convocadas a testemunhar Jesus Ressuscitado. A trama põe em clarividência o protagonismo

do discipulado e do serviço das mulheres. Este trabalho busca luzes para compreender a

magnitude do discipulado e do serviço na comunidade cristã e elucidar a importância do

testemunho qualificado das mulheres. Estas que, com sua práxis, corroboram a profissão de fé

do centurião que diz: “Na verdade, este homem era Filho de Deus” (15,39).

PALAVRAS-CHAVES

Catequese narrativa, teologia marcana, akolouthein, mathētēs, diakonein, análise narrativa,

eixos semânticos, mulheres testemunhas.

ABSTRACT The scripture passage, Mk 15, 40 – 16, 8, narrates the climax of the Second Gospel. Its

intention is to elucidate the testimony of the women regarding the Cross (15, 40); the burial of

Jesus (15, 47) and the pronouncement of the youth in the empty tomb (16, 6). The storyline,

which reveals the kerygma of the death and resurrection of Jesus, launches the perspective of

the encounter with Jesus in the community of the disciples in Galilee. The imperative “Go and

tell” summons the women to go and bear witness to the resurrected Jesus. The plot gives clear

evidence of the protagonism of the discipleship and service of the women. The objective of

this paper is to comprehend the magnitude of discipleship and service in the Christian

community and to elucidate the great importance of the testimony of the women who with

their praxis confirm the profession of faith of the Centurion who says “In truth, this man was

the Son of God”.

KEY-WORDS

Catechetical narrative, Markan theology, akolouthein, mathētēs, diakonein, narrative analysis,

semantic axes, women witnesses.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

4

SUMÁRIO

SIGLAS E ABREVIAÇÕES .......................................................................................................................... 6

INTRODUÇÃO .............................................................................................................................................. 7

1 MARCOS E A AKOLOUTHIA/DIAKONIA: ESTADO DA QUESTÃO ...................................................10

1.1 O EVANGELHO DE MARCOS ONTEM E HOJE..................................................................11

1.2 MARCOS COMO EVANGELHO ESCRITO...........................................................................14

1.3 O EVANGELHO DE MARCOS COMO LITERATURA E COMO TEOLOGIA ..................16

1.3.1 REDAÇÃO ..............................................................................................................................17 1.3.2 LINGUAGEM ..........................................................................................................................19 1.3.3 ESQUEMA DO EVANGELHO .....................................................................................................23 1.3.4 TEOLOGIA DO EVANGELHO ....................................................................................................26

1.4 CRISTOLOGIA NARRATIVA: “QUEM É JESUS?”..............................................................30

1.5 TÍTULOS CRISTOLÓGICOS ..................................................................................................33

1.6 HERMENÊUTICA CRISTOLÓGICA: CONVITE AO DISCIPULADO................................35

1.7 ESTUDOS RECENTES SOBRE MC 15,40-16,8.......................................................................36

1.8 CONCLUSÃO ............................................................................................................................37

2 ESTUDO LITERÁRIO-CRÍTICO DE MC 15,40-16,8..............................................................................39

2.1 PROBLEMÁTICA.....................................................................................................................39

2.2 TEXTO ORIGINAL, TRADUÇÃO E PARALELOS MC 15,40-16,8.......................................40

2.3 DELIMITAÇÃO ........................................................................................................................42

2.4 CRÍTICA TEXTUAL-DOCUMENTAL....................................................................................44

2.5 LUGAR DA PERÍCOPE EM MARCOS...................................................................................46

2.5.1 CONTEXTO ANTERIOR ............................................................................................................47 2.5.2 CONTEXTO POSTERIOR ...........................................................................................................48

2.6 DIVISÃO ESTRUTURAL DE MC 15,40-16,8 ..........................................................................48

2.7 TRADIÇÃO E REDAÇÃO EM MC 15,40-16,8 ........................................................................51

2.8. COERÊNCIA DO TEXTO .......................................................................................................52

2.9 COMPOSIÇÃO E ESTILO .......................................................................................................53

2.10 RECURSOS LITERÁRIOS .....................................................................................................56

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

5

2.11 UM MINI-DRAMA ..................................................................................................................57

2.12 AS MULHERES TESTEMUNHAS.........................................................................................63

2.13 CONCLUSÃO ..........................................................................................................................68

3 ESTUDO DOS EIXOS SEMÂNTICOS AKOLOUTHEIN E DIAKONEIN E ANÁLISE NARRATIVA

DE MC 15,40-16,8 .........................................................................................................................................70

3.1 AKOLOUTHEIN: “SEGUIR” ....................................................................................................71

3.1.1 O CONCEITO DE AKOLOUTHEIN ...............................................................................................71 3.1.2 MATHĒTĒS “DISCÍPULO”.........................................................................................................76

3.2 DIAKONEIN: “SERVIR” ..........................................................................................................80

3.3 ANÁLISE NARRATIVA DE MC 15,40-16,8 ............................................................................85

3.3.1 O TEXTO................................................................................................................................86 3.3.2. A INTRIGA ............................................................................................................................87 3.3.3 GESTÃO DOS PERSONAGENS ...................................................................................................90 3.3.4 FOCALIZAÇÃO DO NARRADOR ................................................................................................93 3.3.5 A TEMPORALIDADE ................................................................................................................95 3.3.6 O CONTEXTO .........................................................................................................................97 3.3.7 O PONTO DE VISTA ...............................................................................................................101

3.4 COMO CONFLUEM OS EIXOS AKOLOUTHEIN E DIAKONEIN NA NARRATIVA DE MC

15,40-16,8? ...................................................................................................................................................105

3.5 CONSIDERAÇÕES SOBRE A PRAGMÁTICA E A HERMENÊUTICA ............................106

3.6 CONCLUSÃO ..........................................................................................................................110

CONCLUSÃO GERAL...............................................................................................................................111

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA ............................................................................................................115

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

6

SIGLAS E ABREVIAÇÕES

ACR Almeida Corrigida e revisada

AT Antigo Testamento

BAC Biblioteca de Autores Cristianos

BJ Bíblia de Jerusalém

Cf. Conferir

CNBB Conferência Nacional dos Bispos do Brasil

CT Crítica textual

DENT Diccionario Exegetico del Nuevo testamento

DH Denzinger - Hünermann

DITNT Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento

DTNT Diccionario Teológico del Nuevo Testamento

ed. Edição

GLNT Grande Lessico del Nuovo Testamento

GNT The Greek New Testament

LXX Septuaginta

NT Novo Testamento

NTG Novum Testamentum Graece

p. pp. Paralelo, paralelos

Q Fonte Quelle

s, ss. Seguinte, seguintes

sq. Paralelo valendo para a seqüência

TDNT Theological Dictionary of the New Testament

TEB Bíblia Tradução ecumênica

v, vv. Versículo, versículos

As abreviações bíblicas seguem a tradução da CNBB.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

7

INTRODUÇÃO

Este trabalho é fruto de uma preocupação e de um desejo!

A preocupação consiste em evidenciar que em tempo algum se falou tanto sobre os

temas seguimento e serviço como hoje. A Igreja latino-americana com a realização da V

Conferência Geral do Episcopado em Aparecida, debruçou-se sobre a temática do seguimento

de Jesus Cristo tendo como vieses norteadores o discipulado e a missão1. Estas temáticas

apontam implicações para a vida dos seguidores e seguidoras de Jesus nos tempos atuais. A

Igreja, em sua totalidade é chamada à práxis do seguimento e da missão que é serviço. A

problemática de fundo, para a Igreja atual, gravita em torno da tensão existente entre o

acreditar em Jesus de Nazaré e a práxis de fé no Cristo Ressuscitado. Como conciliar o desejo

de seguir a Jesus e a práxis de discípulo no mundo hodierno? Como compreender o

testemunho de fé dos homens e mulheres na atual conjuntura? Como entender a participação,

o seguimento e o serviço das mulheres na comunidade cristã, presidida e precedida pelos

homens? Claramente estas problemáticas deram sentido à realização deste trabalho. Nossa

pretensão é lançar luzes para a reflexão do seguimento e do serviço das mulheres na

comunidade cristã de hoje.

O desejo de elaborar esta pesquisa tem seu advento com e a partir do estudo da

Teologia. O interesse em aprofundar os estudos se deu de forma clara a partir da leitura do

Evangelho de Marcos, principalmente sob a intenção de compreender o querigma elaborado

por aquele evangelista, tendo como inspiração a dinâmica narrativa que mais se parece com

um convite a responder “quem é Jesus?”.

Nosso desejo está também associado à intenção de compreender a dramática narrativa

elaborada por Marcos, principalmente no que se refere à perícope de Mc 15,40-16,8, na qual

se vê condensado o relato da paixão-morte-ressurreição de Jesus, apontando a presença de

1 O tema inspirador da V Conferência do Episcopado da América Latina e do Caribe, ou Conferência de Aparecida, “Discípulos e missionários de Jesus Cristo para que nossos povos nele tenham a vida”, refere-se ao discipulado no Evangelho de João, no qual se narra: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14,6).

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

8

algumas mulheres na cena. Este trabalho, portanto, nasceu do enorme desejo de compreender

a presença daquelas mulheres no cenário cruel da morte de Jesus, no saudoso lugar chamado

sepulcro e no relato da ressurreição. Ainda que este trabalho não tenha a pretensão de resolver

o problema do seguimento e do serviço das mulheres, o desejo de pensar a diferença do

discipulado, a partir do relato marcano, o ilumina e o orienta. É possível considerar que

também hoje as mulheres vivenciam a profunda experiência do testemunho, a partir da

coincidência entre a palavra ouvida e vivenciada. As mulheres, chamadas por Jesus ao

seguimento, compreendem a dinâmica do caminho da cruz e do serviço fraterno. O

seguimento e o serviço podem ser entendidos não a partir do gênero, mas da abertura irrestrita

do coração para a experiência amorosa com o mestre que chama a seguir e a servir.

Para tal reflexão, será tomado como ponto de partida o texto de Mc 15,40-16,8, o

relato final do Evangelho de Marcos. Esta escolha não foi aleatória. A perícope em questão

tem como pano de fundo e cenário o testemunho da morte de Jesus, a visita das mulheres ao

sepulcro e o anúncio da ressurreição de Jesus, bem como a ordem de as mulheres irem

anunciar que Jesus está vivo e que precede os discípulos à Galiléia. Esta brilhante narrativa

apresenta o testemunho das mulheres frente à cruz de Jesus. Elas são testemunhas da morte,

do sepultamento e do anúncio da ressurreição. A narratividade marcana ganha singularidade

por causa da simplicidade e exatidão narrativa. Com matizes suaves Marcos considera a

temática do testemunho, do seguimento (akolouthein) e do serviço (diakonein) das mulheres,

bem como o serviço dos agentes narrativos envolvidos na intriga narrativa, José de Arimatéia

e o jovem, junto ao sepulcro vazio, que anuncia que Jesus ressuscitou.

Tendo tomado o texto bíblico, torna-se importante fazer um levantamento do

Evangelho de Marcos: Marcos e a akolouthia/diakonia, estado da questão. É o capítulo

primeiro. Faz-se mister compreender o Evangelho de Marcos ontem e hoje, na tentativa de

ver sua leitura e estudo na história. A partir deste estudo, será possível compreende-lo como

um escrito literário com pretensões teológicas. Far-se-á necessário o estudo da redação, da

linguagem, do esquema e da teologia do Evangelho para assim evidenciar o convite feito pelo

evangelista Marcos em responder a pertinente questão “Quem é Jesus?”. Vê-se, portanto, que

a cristologia narrativa elaborada por Marcos utiliza-se de títulos para falar de Jesus e elucidar

o convite que ele faz aos discípulos. Para Marcos, Jesus, o Messias é quem faz o convite ao

discipulado e à dinâmica do serviço. Após esta constatação, faz-se necessário levantar os

estudos recentes sobre Mc 15,40-16,8.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

9

O segundo capítulo toma Mc 15,40-16,8 como caso exemplar. Neste capítulo,

apresentamos a problemática central, ou seja, o que o texto da perícope nos oferece para falar

a respeito do testemunho, do seguimento e do serviço das mulheres. Será oportuna a

utilização da tradução instrumental e da crítica textual ou documental, bem como a elaboração

dos demais passos do estudo diacrônico. Após observar os recursos literários da perícope, será

necessário estudá-la sob a perspectiva de um mini-drama composto de três cenas rápidas e

importantes para o macro-relato marcano. Evidencia-se, portanto, o testemunho das mulheres,

fundamental para a compreensão do discipulado e do serviço das mesmas na comunidade

cristã.

O terceiro capítulo, considerado o coração de nosso trabalho, se detém ao método de

análise narrativa. Primeiramente, dedica-se à análise dos eixos semânticos akolouthein e

diakonein, pois nota-se que estes servem de base para a compreensão da narrativa marcana.

Também, faz-se oportuno o estudo do eixo gerador mathētēs, que se vê relacionado ao eixo

akolouthein. Depois, o que se quer compreender é como Marcos articula estes eixos na trama

narrativa e como se dá a confluência dos mesmos na trama por ele elaborada. Para uma maior

clareza sobre os eixos confluentes na intriga marcana, é importante elaborar a análise

narrativa, tendo como percurso o texto, a intriga, a gestão dos personagens, a focalização do

narrador, a temporalidade, o contexto e o ponto de vista narrativo. Após a leitura da intriga

marcana sob a gestão do método faz-se oportuno apontar as considerações pragmáticas e a

hermenêutica do texto. Assim, a intriga elaborada por Marcos ilumina nosso trabalho e lança

luzes sobre a compreensão e o sentido do seguimento e do serviço hoje.

Este trabalho só atingirá seu objetivo se ao final do mesmo o leitor se sentir chamado a

buscar novos horizontes hermenêuticos para a problemática do seguimento (discipulado) e

serviço (diaconia) das mulheres na Igreja atual. Quem sabe o presente trabalho sirva como

base para a reflexão de outros estudantes no compromisso com a leitura bíblica e com o

alargamento da compreensão do seguimento e do serviço prestado pelas mulheres na

comunidade dos discípulos de Jesus.

Deus, que inspirou a criatividade narrativa de Marcos em sua literatura evangélica e

sempre suscita na Igreja o desejo do seguimento e do serviço, abençoe este trabalho!

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

1 MARCOS E A AKOLOUTHIA/DIAKONIA: ESTADO DA QUESTÃO

“Tudo começou com um encontro. Algumas pessoas entraram em contato com Jesus de Nazaré e com ele ficaram”.

(W. Kasper, Jésus, le Christ).

Podemos considerar o Evangelho de Marcos a primeira catequese mistagógica

transmitida pelo Fato Cristão. Um Evangelho que visou a introduzir o discípulo na dinâmica

do seguimento de Jesus, a fim de se encontrar com o Reinado de Deus, por ele, anunciado

(Mc 1,14-15). O discípulo é convidado a andar pelos caminhos do mestre, caminho

constituído pela doação de vida, cujo memorial se registra no auge da narrativa evangélica

(Mc 14–16). O Evangelho, inaugurando uma nova forma de falar de Jesus e do falar de Jesus,

a partir de e como uma “boa notícia”, pretende apresentá-lo à humanidade. Para Marcos, Jesus

é quem convida o ser humano ao discipulado (1,16) e instaura a pergunta: “Quem sou eu para

vós?” (8,29). As indagações do mestre conduzem o discípulo convidado à ação-reflexão, ao

testemunho de vida, ao anúncio de que Jesus é “verdadeiramente o Filho de Deus” (15,39).

A catequese do chamado/experiência/testemunho, foi, contudo, esquecida pela Igreja1.

O Evangelho de Marcos foi deixado de lado na elaboração dos conteúdos da fé, pois, parecia

ser incompleto e rudimentar. Hoje, contudo, no intuito de revisitar o Fato Cristão, a fim de

conhecer melhor Jesus, é imprescindível retomar o estudo e a reflexão do “Segundo

Evangelho”. Marcos, como uma tradição coletada, organizada e anunciada, é fonte fidedigna

para conhecer a Jesus e o seu movimento2. A obra de Marcos, portanto, sinaliza o desejo de

assimilar a experiência de uma pessoa, Jesus. A vida e a obra do mestre são apresentadas por

meio da catequese narrativa3, que visa a convidar o discípulo ao seguimento e ao serviço.

1 Cf. TAYLOR, V. Evangelio según san Marcos. Madrid: Cristandad, 1979. p. 35. 2 O “movimento de Jesus” pode ser designado a partir de um grupo ligado a Jesus em sua vida terrena. Nos Evangelhos, tais membros, são nomeados “discípulos” (mathētēs). A pesquisa atual visou a encontrar dados históricos que corroboram a tese do “movimento” como dinâmica iniciada com Jesus em sua pregação. Alguns dados da tradição permitem afirmar que, em poucas décadas, ocorreu um desenvolvimento sócio-religioso relevante no movimento Jesus. Para Stegemann, o movimento Jesus se situa no coração dos movimentos carismáticos no tempo de Jesus. Cf. STEGEMANN, E.; STEGEMANN, W. História social do protocristianismo: os primórdios no judaísmo e as comunidades de Cristo no mundo mediterrâneo. São Paulo: Paulus, 2004. p. 217. 3 O tema central do Evangelho de Marcos é a identidade de Jesus. Para Aldana, Marcos quer mostrar à comunidade quem é Jesus (cf. ALDANA, H. O. M. O discipulado no Evangelho de Marcos. São Paulo: Paulinas/Paulus, 2005. p. 8). Para Marcos, a fé judaico-cristã não é uma ideologia (nem um corpo de doutrina teórico prática) é o reconhecimento da revelação histórica de Deus em um povo, de modo especial, na carne de Jesus de Nazaré (cf. FAUSTI, S. Ricorda e raconta il vangelo: la catechesi narrativa di Marco. Milano: Ancora, 1998. p. 5).

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

11

Destarte apresentando Jesus em suas palavras e ações, Marcos deseja despertar o

leitor-ouvinte da Palavra ao seguimento-discipulado, à experiência profunda de engajamento

com o mestre Jesus.

Com o estudo do Evangelho e a elaboração da perspectiva de estudo da obra marcana,

nosso trabalho visa a reapresentar a novidade deste Evangelho para a comunidade cristã

hodierna: “Se alguém quer me seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e me siga” (8,34).

Neste primeiro capítulo faremos um levantamento histórico sobre o Evangelho de

Marcos, no passado e no presente e sobre o tema da akolouthia e diakonia na cena final do

Evangelho.

1.1 O Evangelho de Marcos ontem e hoje

Durante muito tempo, Marcos foi considerado um evangelho inacabado,

diferentemente de Mateus, Lucas e João. Por não incluir a narrativa da infância de Jesus, nem

o testemunho das aparições do Ressuscitado, Marcos sofreu o preconceito literário e foi

considerado uma obra fraca. Também por não incluir os discursos de Jesus (em particular a

cena do “Sermão da Montanha”, assim como muitas parábolas), esse evangelho foi menos

estudado e citado na tradição patrística e nos escritos teológicos da Escolástica. O Segundo

Evangelho foi visto muitas vezes como um simples resumo dos outros evangelhos. Uma só

exceção a esse desinteresse, mas de maneira prudente, é o testemunho atribuído a Clemente

de Alexandria, relativo à existência de uma versão “secreta” do Evangelho de Marcos4.

No século XIX, a adesão de muitos exegetas à teoria das duas fontes5 (a pregação de

Pedro e o protomarcos) conduz ao interesse em estudar o Evangelho de Marcos não somente

como obra literária, mas como documento, no qual se verificam camadas das tradições

supostamente “autênticas”, que podem servir de reconstrução da personagem histórica de

Jesus.

No início do século XX, em 1901, com a obra Das Messiasgeheimnis in den

Evangelien, zugleich ein Beitrag zum Verständnis des Markusevangeliums, de William

Wrede, dá-se início à pesquisa sobre o Segundo Evangelho. Para Wrede, Marcos não

significava um ingênuo compilador de tradições históricas, ele era, antes, aquele que

conseguiu desenvolver uma tese precisa proveniente da redação: o segredo messiânico,

4 Cf. TAYLOR, p. 31. 5 Cf. TUYA, M. Biblia comentada: evangelios. BAC: Madrid, 1963. p. 617.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

12

segundo o qual a messianidade de Jesus não deve se tornar pública antes da ressurreição. O

segredo messiânico seria um produto do cristianismo primitivo. Wrede toma como ponto de

partida a ausência da reivindicação messiânica do Jesus histórico e permite reconciliar as duas

cristologias em conflito no cristianismo primitivo: uma cristologia “baixa”, segundo a qual

Jesus se tornaria Messias a partir da ressurreição, e uma cristologia “alta”, que interpretava já

a existência de Jesus terrestre em termos messiânicos. Não se faz necessário dizer que esta

hipótese foi largamente discutida e que, hoje como ontem, está muito distante de um

consenso. A leitura dos escritos de Wrede sobre o Segundo Evangelho é fundamental para a

compreensão da teologia do autor do Evangelho de Marcos e sua intenção literário-narrativa,

afirma Cuvillier6.

Em 1943, com a promulgação da Divino Afflante Spirito7, o Evangelho de Marcos

adquire uma real importância na Igreja católica e, como os outros Evangelhos, deve ser

anunciado e estudado. Os estudiosos da Bíblia, preocupados com a interpretação de Marcos e

seu ensino nas faculdades de teologia, formularam a seguinte pergunta: quais as razões para o

aparente “esquecimento” do Segundo Evangelho?

As razões estavam claramente calcadas em afirmativas razoáveis derivadas de estudos

precedentes do Segundo Evangelho: a) Pensava-se que a obra de Marcos constituía uma

síntese das atividades do apóstolo Pedro, cuja figura estava consideravelmente destacada na

narrativa do Evangelho8; b) Afirmava-se, também, que o Evangelho de Marcos constituía uma

síntese do Evangelho de Mateus9; pois, visivelmente Mt narra algumas coisas que Mc não

leva em consideração.

Na linha da crítica moderna, surgida nas primeiras décadas do séc. XIX10, desenvolve-

se no século XX a “crítica redacional”. Em 1956 tem origem a tese marcante e consagrada de

6 Cf. CUVILLIER, L. Evangile de Marc. Geneve: Labor et fides, 2002, p. 17. 7 No dia 30 de setembro de 1943, por ocasião da memória de São Jerônimo e do cinqüentenário da encíclica Providentissimus Deus; Pio XII publicou uma encíclica sobre os estudos bíblicos, a Divino Afflante Spiritu. Tal encíclica é de suma importância para os estudos exegéticos. Cf. DH 3825. 8 Desde o princípio do século II o testemunho externo atribui unanimemente a paternidade do segundo Evangelho a Marcos, “o intérprete de Pedro”, fixando o lugar de composição em Roma, apesar de que as opiniões posteriores o situam em Alexandria. Sobre a data de composição surgiram variadas tradições, porém o conjunto dos dados inclina a situá-lo em uma data posterior ao martírio de Pedro, não durante sua vida. Cf. TAYLOR, p. 34. Segundo Pesch, “o anonimato da obra indica a autoridade da Palavra, que sustenta a pregação da Igreja”. Cf. PESCH, Il vangelo di Marco. vol 1. Brescia: Paideia, 1980. p. 80. 9 O Evangelho favorito da Igreja primitiva foi o de Mateus. Desde Agostinho, seguiu-se a opinião que a única coisa que fez Marcos, foi seguir e abreviar Mateus. Durante a Idade Média e depois da Reforma, se escreveram alguns comentários, mas não se percebeu a prioridade de Marcos. Também passou muito tempo para se reconhecer o valor da crítica histórica sobre o estudo do Evangelho de Marcos. 10 Vale lembrar que muitos foram os que nesta época dedicaram seus estudos ao Evangelho de Marcos.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

13

Willi Marxsen sobre o Segundo Evangelho: Der Evangelist Markus, Studien zur

Redaktionsgeschichte des Evangeliums. Marxsen afirma que o Evangelho de Marcos pode ser

visto como uma obra teológica construída a partir do uso de fontes reinterpretadas na

“textura” redacional.

A partir dos anos 1980, a nova crítica literária (particularmente a narrativa) privilegia a

leitura e análise sincrônica dos Evangelhos. Citamos, neste sentido, a obra de David Rhoads e

Donald Michie, Mark as Story: an introduction to the narrative of a Gospel (1982). Por esta

época aparecem também várias formas de leitura do Evangelho, como sejam as materialistas

(em meados da década de 1970), retóricas (no fim dos anos de 1970), feministas11 (sobretudo

nos EUA) e, recentemente, as leituras psicológicas12 e espiritualizantes13. O Segundo

Evangelho foi comentado e estudado por diversas perspectivas: histórico-crítica, narrativa14,

semiológico-estrutural15, sociológica16, psicanalítica, etc17.

Assim o interesse por Marcos se expandiu, sendo considerado o Evangelho da moda.

O reaparecimento de Marcos se deu em todos os lugares: teatros, literatura, liturgia e,

especialmente, na exegese de todo signo, podendo-se afirmar que em nenhum outro tempo

escreveu-se tanto sobre o Segundo Evangelho como nos últimos duzentos anos. Claramente,

este interesse pela obra marcana reside na importância da narrativa da comunidade e do

hagiógrafo, que buscaram relatar, teologicamente, os acontecimentos que circundaram a

11 Embora estudando o discipulado de iguais no Evangelho de Mateus, Fiorenza faz alusão ao Evangelho de Marcos (cf. FIORENZA, E. S. Discipulado de iguais: uma ekklesia-logia feminista crítica da libertação. Petrópolis: Vozes, 1995). 12 Cf. CUVILLIER, p. 18. 13 Uma leitura espiritual do Evangelho de Marcos é encontrada na obra recente de A. Grün (cf. GRÜN, A. Jesus caminho para liberdade: O Evangelho de Marcos. São Paulo: Loyola, 2006). Podemos encontrar também uma leitura orante de Marcos, baseada na lectio divina (cf. FAUSTI, S. Ricorda e raconta il vangelo: la catechesi narrativa di Marco. Milano: Ancora, 1998). 14 O método de análise narrativa (da obra marcana) pode ser evidenciado no trabalho de C. Focant (cf. FOCANT, C. Evangile selon Marc. Paris: Cerf, 2004). 15 A leitura estrutural pode ser observada na obra de O. Genest (cf. GENEST, O. Le Christ de la passion: perspective structurale: analyse de Marc 14,53 - 15,47, des paralleles bibliques et extra-bibliques. Montreal: Bellarmin, 1978). Lembramos também o estudo lingüístico-semântico elaborado por Nolli (cf. NOLLI, G. Evangelo secondo Marco. Roma: Agencia libro cattolico, 1978). 16 A forma de leitura sociológico-libertadora pode ser observada na obra de C. Gallardo (cf. GALLARDO, C. B. Jesus homem em conflito: o relato de Marcos na América Latina. São Paulo: Paulinas, 1997). 17 Cf. HERRERO, F. P. Evangelio según san Marcos. In. GUIRRARO OPORTO, S.; SALVADOR GARCIA, M (Eds). Comentário al Nuevo Testamento. 2. ed. Madrid/Atenas, Madrid/PPC, Salamanca/Sígueme, Navarra/Verbo Divino, 1995. p. 125. (La casa de la Biblia). BABUT, J-M. Actualite de Marc. Paris: Cerf, 2002. Também encontramos algumas leituras latino-americanas sobre o Evangelho de Marcos: ARENS, E.; ASCENSIO, L. A.; DIAZ MATEOS, M. El que quiera venir conmigo: discípulos según los evangelios. Lima: CEP, 2007. ALDANA, H. O. M. O discipulado no Evangelho de Marcos. São Paulo: Paulinas/Paulus, 2005. MAZZAROLO, I. Evangelho de Marcos: estar ou não com Jesus. São Paulo: Mazzarolo, 2004.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

14

pessoa de Jesus e todo seu movimento18. Marcos aparentemente não poupou esforços para

retratar Jesus como pregador do Reino de Deus e o envolvimento dos discípulos no anúncio

do mestre, bem como as conseqüências do seguimento por ele proposto.

1.2 Marcos como evangelho escrito

Na perspectiva de estudo, a pesquisa sobre do Segundo Evangelho conduz a uma

afirmativa importante para o estudo neotestamentário: a criação de um novo gênero literário19.

Segundo Bultmann, trata-se de “uma criação cristã original inteiramente a serviço da fé e do

culto cristão”20. O autor, Marcos, partindo da tradição cristã ou proto-eclesial de Jesus, dá

início ao gênero literário denominado “Evangelho”. Para Conzelmann, Marcos representa

uma etapa intermediária entre a tradição oral e Lucas ou Mateus21. O autor proto-cristão,

Marcos, resume a tradição de Jesus a partir de suas comunidades, entendendo “evangelho” no

sentido de um livro e de um gênero literário22.

Carlos Palácio afirma que os evangelhos surgem para firmar concretamente a figura de

Jesus. “Narrar o querigma do crucificado e ressuscitado no quadro da ‘história’ de Jesus é

explicitar o querigma cristológico de maneira realmente significativa”23. Portanto, o

Evangelho de Marcos oferece uma figura concreta para a fé cristã: Jesus, o Messias.

Nas primeiras comunidades, o termo euangelion24 designava a proclamação da

salvação em Jesus Cristo. Para Paulo, na Epístola aos Romanos, escrita por volta do ano 57,

falar do evangelho de Deus consistia em anunciar que o próprio Deus se diz ao mundo,

através de Jesus Cristo e dos seus mensageiros25. Marcos, ao recolher os materiais da tradição

sobre Jesus e compor seu relato, dá início a uma nova forma de literatura chamada Evangelho.

18 Cf. HERRERO, p. 126. 19 Cf. FOCANT, C. Evangile selon Marc. Paris : Cerf, 2004. p. 29 20 BULTMANN, R. L’ histoire de la tradition synoptique, suivie du complément de 1971. Paris: A. Malet, 1973. p. 452. 21 Cf. CONZELMANN, p. 185. 22 Cf. PESCH, p. 33. 23 PALÁCIO, C. Jesus Cristo história e interpretação. São Paulo: Loyola, 1979. p. 46. 24 No idioma do NT, “o termo euangelion pode indicar a mensagem alegre da salvação e o conteúdo da pregação de Jesus”. Progressivamente, indicará o próprio Jesus: ele não é somente o agente da pregação, mas é ao mesmo tempo conteúdo do Evangelho (cf. DUQUOC, C. Cristologia: ensaio dogmático I. São Paulo: Loyola, 1992. p. 66). 25 Em Paulo, to. euvaggeli,on tou/ Cristou/ não deve ser entendido só como a concreta proclamação missionária, mas, antes, a correspondente catequese: didaché, destinada a aprofundar e imprimir o anúncio da ressurreição de Jesus, o fundamento da fé cristã (cf. I Cor 15,3ss). Este didático anúncio paulino, na forma de uma explanação histórico-narrativa do princípio da fé, que visa à salvação, é devedor da herança judaica, na qual a “boa nova” compreende a tensão entre a promessa profética e a realização histórico-escatológica (cf. PESCH, p. 34).

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

15

O autor do Segundo Evangelho está inserido no processo de recepção e de uso do

conceito “evangelho” anunciado por Jesus (1,15; 14,9). O “evangelho” se constituí

proclamação: a vinda do Reinado de Deus. A “Boa-Nova” de Jesus Cristo é compreendida por

Marcos como missão e anúncio do Reino, a “descida” de Deus ao chão da história dos

homens.

Sobrino afirma:

Jesus não fez de si mesmo o centro de sua pregação e missão. Jesus se sabia, vivia e trabalhava a partir de algo e para algo distinto de si mesmo. [...] A vida de Jesus foi uma vida des-centrada e centrada em torno de algo distinto de si mesmo. [...] Isso que é central na vida de Jesus aparece nos evangelhos expresso com dois termos: ‘reino de Deus’ e ‘Pai’26.

Desta forma, faz-se possível compreender os eixos teológicos27 existentes no

Evangelho de Marcos: por um lado, os interesses missionário e querigmático, ou melhor, da

missão e do anúncio; por outro, o intuito de revelar Jesus e o Reinado do Pai, inaugurado por

Jesus (Mc 1,14). O anúncio do Reino por Jesus e o anúncio de Jesus crucificado-ressuscitado

estão teologicamente relacionados e não se compreende um sem o outro.

A narrativa marcana se apresenta, portanto, como a narração de uma “boa notícia”

(1,1) concernente a Jesus de Nazaré, um homem condenado ao suplício da crucificação por

Pôncio Pilatos, procurador da Judéia nos anos 30. Através da práxis e das palavras de Jesus,

Marcos reconhece a manifestação do “Cristo”, o Messias enviado de Deus, prometido pelos

profetas nas Escrituras28.

Com exceção de Mc 1,1 e 1,14, Marcos põe sempre a expressão euangelion na boca de

Jesus. Portanto, “na visão de Marcos, o evangelho é a boa nova de Jesus Cristo, quer dizer, a

boa notícia que Jesus trouxe da parte de Deus”29. Ocorre também em Marcos a expressão

keryssein to euangelion (1,14 e 14,9), traduzida “anunciar o Evangelho”. Esta expressão

sintetiza a missão eclesial: proclamar a Boa-Nova de Jesus.

Os que anunciam a “Boa-Nova” de Jesus têm diante de si a pergunta cruciante: “Quem

sou eu para vós?” (Mc 8,29)30. A resposta de Marcos, sua cristologia ou “teologia narrativa” e

não “teologia sistemática”, nos conduz progressivamente ao clímax narrativo do Evangelho, à

cruz, lugar onde o Messias Crucificado é proclamado Filho de Deus (15,39).

26 SOBRINO, J. Jesus, o libertador. A história de Jesus de Nazaré. São Paulo: Vozes, 1994. 27 PESCH, p. 34. 28 Cf. CUVILLIER, p. 7. 29 SCHILLEBEECKX, E. Jesús: la historia de um Viviente. Madrid: Cristandad, 1981. p. 99. 30 Cf. LENTZEN-DEIS, F. Comentário ao Evangelho de Marcos. São Paulo: Ave Maria, 2003. p. 37.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

16

Segundo J. Mateos e F. Camacho, o propósito de Marcos seria demonstrar que em

Jesus se realiza a plenitude humana (o Filho do Homem) e que o homem pleno é o Messias

Filho de Deus e não o Messias davídico, tão esperado pela comunidade judaica31. O Messias

Jesus, o Filho de Deus, é universal, enquanto aquele, esperado por Israel, é particular. Em

Jesus, a salvação é possível a todos, pois ele se fez servo de todos os homens.

“Com o Evangelho de Marcos, inicia-se algo novo”, afirma Gnilka32. A novidade

reside na composição que visa ao não esquecimento de alguém e de algo: Jesus e o Reino.

Narrar um feito e um fato significa não deixá-los cair no esquecimento histórico. Marcos

instaura um processo memorativo idôneo, a fim de impedir que o Jesus histórico, seu anúncio

e seus feitos fossem esquecidos. Marcos, portanto, criou com sua obra algo realmente novo33.

1.3 O evangelho de Marcos como literatura e como teologia

A obra marcana pode ser compreendida a partir dos movimentos missionário e

catequético da proto-Igreja, que têm consciência da “tradição de Jesus”, da herança deixada

pelo Mestre e Senhor. Antes mesmo de Marcos escrever seu livro, possivelmente, já havia

outras tradições a respeito de Jesus, além de relatos soltos e isolados (logia). Marcos,

originalmente, agrupa estes variados relatos formando uma “história de Jesus”; na realidade, o

relato de sua pregação pública. Não se trata de uma biografia, no sentido da historiografia

moderna, mas de um relato continuado e coerente sobre a atividade de Jesus, com fins

teológicos. Há, portanto, no coração da narrativa de Marcos, uma lógica catequética que faz a

história e a vida de Jesus terem sentidos em Deus e no Reinado de Deus no mundo. Jesus

anuncia o Reino, transformando as realidades humanas por meio da epifania de Deus.

Marcos recolhe em seu tesouro tradições preciosas sobre Jesus que circulavam na boca

e na memória das pessoas das primeiras comunidades. À estrutura narrativa – um relato de

viagem durante um ano – subjaz um critério teológico, que supõe a íntima relação entre Jesus

e o Pai34. Na vida do crucificado, há a epifania do Messias, o Filho-Servo de Deus, o Filho do

Homem.

31 Cf. MATEOS, J.; CAMACHO, F. Marcos: texto y comentario. Madri: Almendro, 1994. p. 13. 32 GNILKA, J. Teologia del Nuevo Testamento. Madri: Trotta, 1998. p. 162. 33 Esta afirmação pode ser encontrada na obra de Frankemölle, na obra Evangelium. O autor fala de um aspecto básico intra-cristão, que foi o que possibilitou pela primeira vez o gênero literário evangélico (cf. GNILKA, Teologia, p. 164). 34 As relações do filho Jesus com o Pai e do Pai com o filho Jesus podem ser verificadas em Mc 1,11; 9,7; 14,36; 15,33. Evidentemente que esta não é uma preocupação marcana, mas é possível identificar a relação de Jesus e Deus na narrativa marcana.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

17

Pesch afirma que o material do Evangelho de Marcos, distintamente de Lucas, não

apresenta um “método de apresentação histórica de seu tempo”, mas uma história passada

“em forma teologicamente meditada e pura, ao mesmo tempo popular e narrativa” 35.

Segundo Harrington, o Evangelho de Marcos apresenta uma estrutura geográfico-

teológica: da Galiléia para Jerusalém e de Jerusalém para a Galiléia. A primeira estrutura, a

geográfica, é encontrada em Mc 1,16–8,21. A segunda, a teológica, se dá com o fato de Jesus

ir de Jerusalém à Galiléia (cf. Mc 16,8)36. Para Marcos, as regiões Galiléia e Judéia não

indicam apenas zonas geográficas, mas exprimem um valor teológico. A Galiléia desprezada

e pagã é o lugar onde se manifesta a salvação que vem de Deus. Em contrapartida, Jerusalém,

epicentro da religião judaica, se revela inóspita para Deus e seu ungido, torna-se lugar da

extrema hostilidade que gera a morte. A salvação, a partir da ressurreição do Messias, se

manifesta na “Galiléia dos gentios”, e não mais no centro cúltico de Jerusalém37. É na Galiléia

que os discípulos são chamados a seguir o Messias Ressuscitado (16,7).

1.3.1 Redação

O livro de Marcos apresenta uma redação de conjunto, reunindo a atividade de Jesus,

desde o batismo por João até a morte, juntamente com a narrativa do sepulcro vazio38. Marcos

contava com materiais muitas vezes fragmentados, que não forneciam tanta objetividade. O

material da tradição de Jesus havia passado do âmbito semítico para o grego, sendo, em parte,

configurado ao modo de articulação da língua grega. Isso não significa que o Evangelho tenha

sido redigido em hebraico e depois traduzido para o grego. O autor escreveu em grego, idioma

em que deve ter encontrado boa parte de seu material tradicional, mas ele ainda pensava com

o um semita.

Poder-se-ia ainda perguntar se o material utilizado pelo autor para a redação do

Evangelho seria exclusivamente oral ou também escrito. Parece provável que o relato pré-

35 PESCH, p. 54. 36 Cf. HARRINGTON, D. Il vangelo secondo Marco. In: BROWN, R. E.; FITZMEYER, J. A.; MURPHY, R. E. (ed. interamente rinnovata). Nuovo Grande Commentario Biblico. Brescia: Queriniana, 1997. p. 777. 37 Para Conzelmann, seguindo as considerações de Lohmeyer, Lightfoot e Marxsen, aquelas cidades têm valor teológico. Tais realidades ambivalentes servem para retratar a acolhida e o desprezo para com Deus e sua Palavra encarnada. Jesus, a Salvação de Deus, retornando para a Galiléia dos gentios convida os discípulos para o seguirem lá, onde os seres humanos desejam conhecer a Deus. Hoje também, há muitos lugares desprezados pelo mundo capitalista que acolhem com fé a Palavra e o próprio Deus (cf. CONZELMANN, H. Teologia del nuovo testamento. Brescia: Paideia, 1972. p. 186). 38 Cf. VIELHAUER, P. Historia de la literatura cristã primitiva. introduccion al Nuevo Testamento, los apocrifos y los padres apostólicos. Salamanca: Sígueme, 1991. p. 350.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

18

marcano da paixão estivesse já fixado por escrito39. Tradicionalmente, aceitou-se a origem

fundamental de Marcos na pregação de Pedro. Mas com o tempo se desenvolveram novas

hipóteses. A fundamental foi a de que um texto ou fonte, Ur-markus, “um Mc anterior ao

evangelho de Marcos”40, havia sido utilizado pelo autor para a redação de seu evangelho.

Porém, esta afirmativa encontrou muitas críticas41.

Também seria pouco provável que Marcos tivesse conhecido e mencionado a Q42.

Muito embora existam pontos de convergência entre o material de Marcos e a Q, não parece

que haja direta relação entre ambas as fontes.

Quanto ao estilo, há que se concordar mais com a posição que afirma que a

composição redacional de Marcos se assemelha com um “escrito não literário”, bastante

acessível e singular, diferente de um “escrito literário”, que geralmente é denso e difícil de ser

lido e interpretado. De acordo com esta concepção, o Evangelho de Marcos provavelmente

não se caracteriza como uma obra preponderantemente literária, pois seu traço estilístico

indica um autor literariamente inexperiente, porém um narrador popular exímio.

Assim, o Evangelho de Marcos não se identifica com um material prontamente escrito

e condensado de forma literária. Ele está muito mais próximo da tradição antiga, baseada na

oralidade, que na matéria escrita. Marcos transmite a tradição de Jesus narrando-a como uma

história, de forma oral e sintética, em função da re-narração criativa. Isso não significa que ele

não dominasse o material coletado. Segundo Pesch, a intervenção ao mesmo tempo literária e

teológica do autor mostra-se, sobretudo, na disposição do material em forma de representação

histórica, predeterminada na tradição de Jesus, em particular na história pré-marcana da

paixão43.

Na narrativa de Marcos, é possível perceber seqüências ou versículos que servem de

transição ou ligação entre dois blocos temáticos. Essas seqüências sintetizam o tema da

unidade anterior e antecipam o tema da unidade seguinte, proporcionando, dessa maneira,

39 Cf. VIELHAUER, p. 354. 40 TUYA, p. 617. 41 Cf. LAGRANGE, M-J. Evangile selon s. Marc. Paris: Gabalda, 1947. p. 33. Para Taylor, é preferível rechaçar esta hipótese. Segundo seu parecer, a maioria dos exegetas admite que o evangelista utilizou uma só fonte: a coleção de sentenças de Marcos, contudo, neste ponto, as opiniões se diferem quando se trata de determinar a natureza, identidade e unidade da tal fonte. A importância das hipóteses levantadas consiste em que todas elas supõem que o evangelista utilizou várias fontes. Para um maior esclarecimento sobre este assunto e suas hipóteses (cf. TAYLOR, p. 89-98). 42 Cf. SCHWEIZER, E. Il vangelo secondo Marco. Brescia: Paideia, 1971. p. 12. 43 Cf. PESCH, p. 55.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

19

uma chave conclusiva do tema tratado anteriormente e indicativa do assunto a seguir44. Tal

recurso é chamado de “sumário”. Os sumários elaborados pelo autor do Evangelho ajudam a

determinar os momentos importantes de mudança, ocorridos na narração da prática de Jesus,

além de favorecer a compreensão das mudanças de sentido. Nesses momentos, é possível

encontrar uma chave para perscrutar a intenção redacional do autor. Os sumários reestruturam

o texto, produzindo também mudanças de sentido (cf. Mc 6,30-34)45. Radermakers afirma que

as funções dos sumários são: a) “resumir uma situação”: concentrando a atenção sobre à

pessoa de Jesus; b) “esboçar uma nova orientação”: Jesus propõe uma novidade aos

discípulos46.

Assim, os sumários parecem apresentar um caráter redacional, propriamente marcano.

Podem ser encontrados no curso do Evangelho seis sumários, como esboço sobre a vida e

obra de Jesus47, seus destinos, e um breve relato que insere os discípulos em estreita relação

com o Mestre48. Vale, no entanto, sublinhar que a discussão sobre estes sumários é grande,

pois são heterogêneos.

Marcos configura a imagem de conjunto da atividade de Jesus essencialmente por

meio da narração das obras messiânicas, em especial histórias de milagres e apotegmas e, de

um modo seletivo e paradigmático, com passagens da doutrina de Jesus. Tal seleção literária

constitui já um ato teológico, que tem como objetivos literário e teológico não separar da

tradição (transmissão) os materiais recebidos, apresentando-os de maneira conjuntamente

harmoniosa. A missão do evangelista consiste na conexão das tradições “isoladas”, visando a

formar um todo, tal como uma colcha de retalhos. O que o autor conecta e o modo como o faz

já possibilita observar a orientação teológico-redacional que segue49.

1.3.2 Linguagem

Para o evangelista Marcos, a conexão de cada uma das passagens e materiais, ou

mesmo tradições, ocorre freqüentemente pela simples adição de kai, (e), kai. euvqu,ς (e, em

44 Cf. STANDAERT, B. L’Evangile selon saint Marc: commentaire. Paris: Cerf. 1983. p. 48. 45 Cf. GNILKA, J. El Evangelio según san Marcos. Salamanca: Sígueme. 1986. v. 1, p. 99-102. 46 Cf. RADERMAKERS, J. La bonne nouvelle de Jésus: selon saint Marc. Bruxelles: Institut d’ Etudes Theologiques, 1974. p. 41. 47 Radermakers apresenta seis grupos de sumários: 1,14-15; 3,7-12; 6,6b-7; 8,31-33; 10,32-34 e 14,1-11. Cf. RADERMAKERS, p. 41. 48 Cf. ROBERT, A.; FEUILLET, A. Introduction a la Bible: Nouveau Testament. Vol 2. Paris : Desclée, 1959, p. 210-211. 49 Cf. VIELHAUER, p. 356.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

20

seguida: 41 vezes) ou pa,lin (de novo). As conexões mais estreitas se estabelecem mediante

relações locais ou temporais: Jesus vem “dali”, do cenário que se acaba de mencionar, até o

lugar da próxima história, produzindo assim a impressão de relação e movimento50. A mesma

coisa acontece com as expressões comuns “naqueles dias” e “naquele dia”, que aparentam

acentuar a seqüência e realidade temporal, mas estão inseridas no texto e se mostram mais

preocupadas com o sentido teológico.

Lembrando que Mc foi escrito em grego, não podemos negar que o autor pensa como

um judeu familiarizado com uma catequese em aramaico. Ele conhece perfeitamente os

costumes judaizantes (7,3-5; 14,12; 15,42), conserva os vocábulos aramaicos, sobretudo os

utilizados por Jesus em momentos mais solenes: talitha kum (5,41), epheta (7,34), abba

(14,36; 3,17; 15,34). A base semitizante pode ser reconhecida com freqüência especialmente

nas palavras de Jesus51. A isso se une um estilo inculto, rudimentar e popular. Marcos também

utiliza frases semitizantes: anastas apelthen (7,24), anastas erchetai (10,1)52 além de

expressões típicas do ambiente semítico original, como, por exemplo: corban (7,11),

Bartimeu ou filho de Timeu (10,46), abba (14,36) e Eloi, Eloi, lama sabactani (15,34)53.

Na obra de Marcos, encontram-se também expressões latinas. Os latinismos poderiam

evidenciar e corroborar a hipótese de que Marcos tenha escrito sua obra em Roma,

destinando-a aos cristãos daquela região, embora se deva levar em consideração que se trata

de termos veiculados em todo o Império Romano. Pode-se encontrar um número expressivo

de palavras latinas, tais como: centurio (15,39), cuadrante (12,2), quadrans (12,42),

flagellare (15,15), speculator (6,27), census (12,14), sextarius (7,4), praetorium (15,15) e

legio (5,9).

A pesquisa sobre a obra marcana revelou também certo “paulinismo”54 na narrativa do

Evangelho. Alguns termos próprios de Paulo, presentes na narrativa marcana, como pneuma,

50 Cf. VIELHAUER, p. 357. 51 Cf. MANNS, F. Le milieu sémitique de l’Évangile de Marc. Liber Annuus 48 (1998), p. 125. 52 Cf. TUYA, p. 612. 53 Cf. ROBERTSON, A.T. Imágenes verbales en el Nuevo Testamento. Mateo y Marcos Vol. 1. Barcelona: Talheres gráficos, 1998. p. 260. 54 Observa Konings, em artigo a ser publicado, que Karl-Ludwig Schmidt, citando Wendling, observou que Mc 1,1 tem colorido paulino, e o atribui ao redator do evangelho (Der Rahmen der Geschichte Jesu. Berlin 1919. Repr. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1969, p. 18 e nota 10). De acordo com Gonzáles, Marcos não conheceu a teologia paulina, pois em seu evangelho não se averigua indícios da pré-existência do Filho. Portanto, esta discussão poderia permanecer suspensa, mas é possível imaginar uma possível intermitência entre estas tradições, que conviviam contemporaneamente (cf. GONZÁLES, C. I. Ele é a nossa salvação. São Paulo: Loyola, 1992. p. 214).

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

21

sarx e, sozein, são utilizados por este autor de uma maneira muito própria. Pode-se afirmar

que estes termos se encontram em consonância com a teologia paulina, mas não se deve dizer

que suas origens remetem exclusivamente a Paulo. Com seu novo gênero literário, Marcos

pretendeu apenas apresentar a economia salvífica, o mistério da vida, paixão, morte e

ressurreição de Jesus55, o querigma propriamente dito, que não é exclusividade paulina, mas

produto da tradição cristã, de um modo geral. É possível, pois, imaginar uma “semelhança”

nas teologias paulina e marcana, não descartando inteiramente a hipótese das intermitências

entre elas. Num exemplo concreto, a palavra eireneuete (paz) só está presente no Novo

Testamento em Mc 9,50 e em Rm 12,18; 2Cor 13,11; 1Ts 5,13.

Numa análise mais profunda do Evangelho de Marcos é possível perceber

características próprias:

A) Pobreza de vocabulário: No texto marcano, a união de frases se faz pelo conectivo

kai (e) e um advérbio palin (“outra vez” ou “de novo”). São simples elementos literários sem

valor cronológico. De maneira insistente, Marcos utiliza alguns verbos repetitivamente como:

“fazer”, “ter”, “poder” e “querer”. Tuya observa em Mc uma inflação de kai, podendo ser

observado no início de oitenta perícope (cf. 1,21-45)56.

B) Esquematismos: Marcos narra histórias mais ou menos “arquitetadas” num

esquema. Ele tem um estilo próprio de narrar. Com a utilização de esquematismos, pode-se

averiguar uma unidade no pensamento do autor desse Evangelho. A narrativa é composta de

“cenas muito vivas, arrojadas no modo de um pensamento muito simples, incapaz de variar

seus procedimentos”57. Um exemplo de esquematismo pode ser observado a partir da

comparação entre os relatos da tempestade acalmada (4,39-41) e de um exorcismo (1,25-27).

C) Estruturas estereotipadas: A história das formas descobriu em Marcos algumas

estruturas redacionais estereotipadas. Isso indica que o autor do Segundo Evangelho teria em

mente uma estrutura delineada, um pensamento esquemático.

55 Cf. TUYA, p. 620. Tuya diz que “a doutrina da justificação pela fé, tão típica do querigma de Paulo, não se encontra exposta com a mesma clareza em Marcos”. Esta afirmação pode ser considerada irrelevante, pois, Marcos não estava preocupado com a justificação pela fé, uma temática tipicamente paulina. Contudo, podemos dizer que o querigma marcano é bastante claro: Jesus morreu e ressuscitou e seu seguimento é fundamental para a salvação (cf. TUYA, p. 620). 56 Cf. TUYA, p. 621. 57 LAGRANGE, p. 78.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

22

1) Relatos curtos: que têm por finalidade levar a uma sentença de Jesus; a cena das

espigas arrancadas e debulhadas no sábado (2,23-28) traz sua máxima final: “O sábado foi

instituído para o homem, e não o homem para o sábado”.

2) Relatos circunstanciados que trazem detalhes pitorescos e precisos, tais como

relatos de milagres: a tempestade acalmada, a reanimação da filha de Jairo, etc.

3) Relatos que narram os feitos a vida de Jesus ou dos discípulos que podem ser

observados no batismo, na tentação, na vocação dos Doze, no martírio de João Batista, na

transfiguração, na paixão e ressurreição58.

D) Realismo descritivo: os esquematismos mais ou menos flexíveis de alguns relatos,

juntamente à vivacidade e o colorido da descrição, assinalam um realismo narrativo. Marcos

utiliza palavras do cotidiano (1,38; 2,11; 14,31), o que Lucas não faria59.

Outras características redacionais poderiam ser acenadas na linguagem do autor do

Segundo Evangelho, por meio das coordenadas estruturais que englobam a obra. Pode-se

notar que Marcos se baseia na repetição, um fenômeno marcante na totalidade da obra

marcana. Os sumários, as fórmulas decorrentes, os agrupamentos de relatos ou parábolas

formam um esquema constante, juntamente com os paralelismos que relatam as situações e os

“sanduíches” literários60, que incluem entre dois relatos ou partes de relato um outro relato,

que é essencial e decisivo (cf. Mc 5,21-43).

Ao averiguar a formação de unidades literárias, afirma-se que o autor de Marcos

recorre, de maneira freqüente, às inclusões e paralelismos, também presentes nos livros do AT

(especialmente nos livros sapienciais e nos Salmos) bem como nos escritos rabínicos61.

Portanto, o Evangelho de Marcos, como uma combinação de tradições e materiais,

encontrados e fornecidos pelos querigmas diversos sobre o Crucificado-Ressuscitado, é uma

obra meritoriamente rica em detalhes lingüísticos e de rápida compreensão. Marcos narra com

58 TUYA, p. 621. 59 Cf. TUYA, p. 622. 60 Este recurso literário também pode ser notado na narrativa das visitas dos parentes [a casa] de Jesus, na qual Marcos intercala o confronto de Jesus com os escribas em que estes o acusam de estar possesso por um demônio e de curar os enfermos pela força de Beelzebul (3,20-35). Jesus afirma o que é central na narrativa: “Se Satanás se levanta contra si mesmo, e for dividido, não pode subsistir; antes tem fim” (3,26). Em outras palavras poderia se dizer: Se uma família está dividida contra si mesma não pode subsistir. Dois níveis podem ser percebidos nesta perícope; de um lado a própria família de Jesus, de outro a família-comunidade, que corre o risco de se dividir, por deixar-se levar pelo poder demoníaco. (cf. GRÜN, A. Jesus caminho para liberdade: O Evangelho de Marcos. São Paulo: Loyola, 2006.). 61 Cf. RADERMAKERS, p. 39. Tais obras utilizam fórmulas paralelas que favorecem a memorização: paralelismo sinonímico e antitético.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

23

agilidade o Evento Jesus, fornecendo ao leitor, ao pesquisador e ao fiel o sentido da vida de

Jesus de Nazaré, o Messias, Filho de Deus.

1.3.3 Esquema do Evangelho

Todo o labor em determinar o esquema de um texto tem algo de re-criação e de re-

leitura, não podendo ser uma atitude neutra, como não o é a leitura. Sobre o texto são

projetadas as intenções, as pré-compreensões, as disposições sociais ou políticas62. Assim, os

“óculos” de quem lê o texto têm grande importância. Contudo, faz-se mister lembrar que o

texto não é fruto da imaginação de quem o lê, não podendo ainda ser deformado pelo leitor; o

texto deve ser lido sob a ótica da precisão, na intenção de perscrutar a potencialidade,

garantindo-o a possibilidade de ser um outro. Manter a alteridade do texto é assegurar uma

leitura verdadeiramente íntegra e sensata.

Ao assinalar algumas características do Evangelho de Marcos, percebeu-se que este

não tem um esquema divisório perfeitamente estabelecido. O agrupamento de vários

episódios insinua mais uma ordem teológica que cronológico-literária. No entanto, as linhas

(temáticas) gerais do Evangelho são facilmente percebidas.

Um primeiro tipo de esquema divide Marcos em três partes: 1) Atividade de Jesus

dentro e fora da Galiléia (1,1-8,26); 2) O caminho de Jesus até a paixão e sofrimentos

próprios do discipulado (8,27-10,52); 3) Jesus em Jerusalém (11-16)63.

Uma variante deste tipo é o esquema bipartido64: 1) 1,1-8,26(30): a pregação geral de

Jesus, culminando na pergunta “Quem é este?”; 2) 8,27- 16,8: o ensinamento e o gesto final

do Filho do Homem-Servo Sofredor.

R. Pesch, por sua vez, estuda o Evangelho de Marcos por meio de um esquema de

seções múltiplas65. Esta divisão, mais detalhada, tentará verificar os pormenores da narrativa e

62 Cf. GADAMER, H. G. Verdad y método. Fundamentos para una hermenéutica filosófica. Salamanca: Sígueme, 1977. p. 332. 63 Outras divisões podem ser percebidas, uma outra possível seria: 1) a prática pelo Reino (1,2–8,21); 2) a crise e a mudança de prática: instruções aos discípulos (8,27–10,45); 3) e o confronto com o poder e seu desenlace (11,1–16,8a). Tal divisão contemplaria o desenrolar da práxis de Jesus desde a Galiléia até o ato derradeiro em Jerusalém (Cf. GALLARDO, C. B. Jesus homem em conflito: o relato de Marcos na América Latina. São Paulo: Paulinas, 1997. p. 3). 64 Alguns estudiosos de Marcos o vêem estruturado de forma bipartida. Segundo Aldana, trata-se de um esquema pedagógico para uma maior compreensão da obra marcana. Cf. ALDANA, p. 101. Cf. GNILKA, J. El evangelio según san Marcos. Mc 1,8,26. Vol. 1. Salamaca: Sígueme, 1986. Também, cf. KONINGS, J. Marcos. São Paulo: Loyola, 1994. p. 5. E Bíblia tradução da CNBB, introdução ao Evangelho de Marcos. 65 Cf. PESCH, p. 78-90. No entanto, Pesch leva em consideração as duas grandes seções do Evangelho (1,1-8,26 – 8, 27-16,8), pois afirma que 8,27 inaugura a segunda metade do Evangelho (cf. PESCH, p. 84).

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

24

linguagem, bem como os aspectos introdutórios para a compreensão da cristologia: o eixo

vital do Segundo Evangelho.

Após mencionar a intenção do seu Evangelho (1,1) e apresentar o prólogo da narração

(1,2-15), Marcos inicia a primeira seção (1,16-3,6). Ela se estrutura essencialmente a partir de

três coleções pré-marcanas da tradição: a) tradição do Batista e de Jesus (1,2-15); b) a tradição

do “dia de Cafarnaum” (1,21a. 29-39); c) coleção pré-marcana de disputa (2,15–3,6). A

vocação dos primeiros discípulos é inserida propositalmente no início da atividade, como

forma de testemunho da tradição (1,16-20). O “dia de Cafarnaum” é alongado até o primeiro

dos quatro exorcismos relatados no Evangelho. A narrativa do milagre em 1,40-45 está

inserida como primeira exaltação da ação de Jesus em toda a Galiléia (1,39), esta narrativa

coloca Jesus em conformidade com a lei mosaica. A primeira seção do Evangelho apresenta

cinco formas de disputa: 1) Jesus perdoa os pecados (ao paralítico) (2,1-12); 2) come com

Levi, o publicano (2,13-17); 3) os discípulos de Jesus não jejuam (2,18-22); 4) arrancam

espigas no dia de sábado (2,23-28) e, ainda, 5) Jesus cura no dia de sábado o homem da mão

seca (3,1-6). Essa seção apresenta Jesus em plena dinâmica (os termos-chave são: e;rcomai

“chegar”, “ir” em 1,7.9.14.39 e e,xousi,a “poder-autoridade” em 1,22.27; 2,10) na Galiléia, no

lago (1,16; 2,13), em Cafarnaum e em seu entorno (1,21-39; 2,1-3,6)66.

A segunda seção (3,7-6,29), fundamentalmente, facilita a compreensão e o

entendimento do sentido do seguimento, pois apresenta Jesus e seus discípulos. Marcos se

utiliza da narrativa dos milagres (3,7-12; 4,1.35.41; 5,1-43; 6,32-56). Essa seção está

vinculada ao sumário (3,7-12). O autor apresenta aqui a hostilidade dos escribas (3,20-30) e a

verdadeira família de Jesus (3,31-35). Marcos relata quatro milagres (4,35-5,43), sendo três

narrados sem interrupção, o último equivale a um sanduíche literário (a cura da mulher com

hemorragias, intercalado com a cura da filha de Jairo). Marcos aparentemente segue o

sumário de 3,7-12. Jesus constitui o grupo dos Doze em 3,13-19. Esta narrativa está

relacionada à de 6,7-13, na qual se especifica a missão dos Doze. Entre os relatos da

instituição e missão dos apóstolos, estão inseridas as parábolas do Reino (4,1-34), divididas

em três mini-seções: a) Parábola do semeador (4,1-25); b) parábola do homem que espalha a

semente (4,26-29); c) parábola do grão de mostarda (conclusão: 4,30-34). A segunda seção,

tal qual a primeira, pode ser dividida em quatro partes: 1) a diferenciação dos ouvintes de

Jesus (3,7-35); 2) o mistério do Reino de Deus (4,1-34); 3) a pergunta: “Quem é ele?” – ponto

66 Cf. PESCH, p. 37.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

25

culminante da atividade taumatúrgica de Jesus (4,35–5,43); 4) o destino da recusa de Jesus e a

missão dos discípulos (6,1-29)67.

A terceira seção (6,30-8,26) descreve, depois da missão dos Doze, Jesus dirigindo-se

aos Judeus (particularmente 6,32-44), depois da abolição da distinção “puro e impuro”, ele

dirige-se aos pagãos (em particular 7,24-30; 8,19). Esta seção pode ser subdividida em três

partes68: 1) Jesus, pastor de Israel (6,30-56); 2) abolição da distinção “puro e impuro” como

barreira entre judeus e pagãos (7,1-23); 3) incompreensão dos discípulos quando Jesus se

dirige aos pagãos (7,24-8,26).

Em Mc 8,27 inicia-se a segunda metade da obra. A partir deste momento, “o fio de

exposição é oferecido pela narrativa pré-marcana da paixão”69.

A quarta seção (8,27-10,52) evidencia o destino de sofrimento do Filho do Homem e

as condições para o discipulado na comunidade cristã. O desfecho desta seção se dá no início

da estada de Jesus em Jerusalém (10,52). Marcos associa a descrição da viagem a Jerusalém

com os três anúncios do sofrimento e da ressurreição (8,31; 9,31; 10,33), a fim de instruir a

comunidade no conceito do seguimento até a cruz (8,34ss.). Esta seção pode ser subdividida

em três partes: 1) introdução ao mistério do sofrimento e da ressurreição e o seguimento até a

cruz; 2) instrução para a comunidade dos discípulos de Jesus; 3) ensinamentos sobre o

matrimônio, a riqueza, o serviço e o seguimento de Jesus (10,1-52). A quarta seção, concebida

essencialmente como ensinamento à comunidade, é sumamente importância para elucidar o

entendimento da cristologia marcana, pois faz menção aos títulos cristológicos: Cristo (8,29;

9,41); Filho de Deus (9,7); Filho do Homem (8,31. 38; 9,10. 12. 31; 10,33. 45; Filho de Davi

(10,47) e Mestre (9,17. 38; 10,17).

No cap. 10 é determinante não só a narrativa da paixão, mas sobremaneira a pequena

narrativa catequética (10,1-12.17-27.35-45). Este capítulo é constituído pela tradição das

logias, em particular, o ensinamento posterior à primeira e à segunda profecia do sofrimento e

ressurreição (8,34-9,1; 9,36-50). Entre a narrativa da transfiguração (9,2-13) e a segunda

profecia, Marcos insere a narrativa de um quarto exorcismo (9,14-29), que se adapta bem ao

contexto das vicissitudes do discipulado, que pressupõe a provisória ausência de Jesus, o que

espantou os discípulos, causando-lhes medo. Em Mc 10, a notícia da viagem dá continuidade

67 Cf. PESCH, p. 83. 68 Cf. PESCH, p. 84. 69 PESCH, p. 84.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

26

à narrativa pré-marcana da paixão (10,1). Marcos acopla ao ensinamento sobre o matrimônio

(10,2-12), o ensinamento sobre a “criança” (10,13-16) e ainda interpreta o paradigma da

riqueza (10,17-27), caracterizando uma tradição considerável para o seguimento (10,28-31).

A terceira parte da narrativa catequética (10,35-45) é central para Marcos, pois traz a

discussão o eixo semântico diakonia, o serviço. No fechamento dessa parte principal (10,46-

52), Marcos torna a seguir, como no início (8,27-33), o relato pré-marcano da paixão, que

determina a articulação com as anotações da viagem em 8,27; 9,30; 10,1. A didaskalia dos

discípulos está intimamente vinculada aos termos-chaves: “seguimento” (a;kolouqe,w em 8,34;

9,38; 10,21. 28. 32. 52), “reino de Deus” e “vida eterna” (9,1. 43. 45. 48;

10,14. 15. 17. 23. 24. 31).

A quinta seção (11,1-12,44) se esquematiza em três partes: 1) entrada de Jesus em

Jerusalém e demonstração profética no templo (11,1-25); 2) questionamento da autoridade de

Jesus e resposta de Jesus com a narrativa da parábola do assassinato do filho do dono da vinha

(11,27-12,12); 3) o ensinamento messiânico de Jesus no Templo (12,13-44). O relato de Mc

13, considerado um discurso escatológico, está em conjunto com a quinta seção. Este capítulo

se encontra subdividido em: 1) pregação sobre o fim, ou destruição do Templo (13,1-13); 2) a

grande tribulação (13,14-23); 3) anúncio da vinda do Filho do Homem (13,24-27); 4) a lição

da figueira e a exortação à vigilância (13,28-33).

A sexta grande seção (14,1-16,8), segundo Pesch pode ser subdividida em três partes:

1) traição de Judas e apreensão de Jesus (14,1-52); 2) condenação de Jesus por parte do

Sinédrio e negação de Pedro (14,53-72); 3) entrega de Jesus à morte, sepultamento e anúncio

da ressurreição, diante do túmulo vazio (15,1–16,8)70. Taylor afirma que esta seção é a melhor

articulada. Isto se deve ao fato de que a paixão-ressurreição foi a primeira parte da tradição

evangélica que se narrou como relato esquematizado, pois foi preciso narrar toda a série de

acontecimentos para resolver o paradoxo da cruz71.

1.3.4 Teologia do Evangelho

Marcos, ao compor sua obra narrativa a respeito de Jesus, instaurou um processo

idôneo e inédito na intenção de impedir que Jesus histórico ficasse esquecido. A novidade da

narrativa marcana consiste na forma e no modo da exposição da Boa Notícia72. Quanto ao

70 PESCH, p. 87. 71 Cf. TAYLOR, p. 633. 72 Cf. GNILKA, Teologia, p. 162.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

27

conteúdo, sabe-se que este procede, em sua maior parte, da ampla tradição sobre Jesus de

Nazaré.

No centro da intenção marcana está o problema teológico: evitar o esquecimento de

Jesus, o Filho de Deus. O interesse histórico é conseqüência. Porém o que importa mesmo é a

mensagem central: “Quem é Jesus?” O Messias do segredo, o sofredor ou o Ressuscitado?

Considerando o procedimento literário de Marcos, “não é aconselhável esperar uma

teologia unitária no Evangelho”73. Marcos não pretendeu elaborar uma teologia

sistematicamente acabada. Mas, constituiu teologias abertas, que possibilitam responder à

pergunta que não se cala: “Quem é Jesus?” É pertinente a dúvida relacionada à afirmação de

que haja no Evangelho de Marcos um sentido unitário. Pois, em Marcos, é possível encontrar

teologias entrecruzadas percebidas a partir da leitura da redação final. A novidade teológica

do evangelista se instala, essencialmente, no fato de ele fornecer à sua obra uma estrutura

narrativa, que leva em consideração o legado da tradição e a narrativa pré-marcana da Paixão,

constituindo uma teologia sobre a vida de Jesus.

Paulo, diferentemente de Marcos, elaborou com seus escritos uma cristologia em torno

dos títulos cristológicos: Kyrios, Filho de Deus, Cristo, Primogênito da Criação, Crucificado,

Ressuscitado, Mediador. Marcos, por sua vez, não fala de Jesus por meio de confissões, hinos

ou títulos, apenas, mas a partir da narração sobre o anúncio e a práxis de Jesus74.

Em matizes gerais, uma estrutura teológica do segundo Evangelho poderia ser traçada

a partir da dinâmica narrativa apresentada pelo autor. Primeiramente, Jesus é recebido

favoravelmente pelas multidões; depois, seu messianismo humilde e espiritual decepciona a

expectativa do povo e o entusiasmo se arrefece; então Jesus se afasta da Galiléia para se

dedicar à formação do pequeno grupo dos discípulos fiéis, cuja adesão incondicional ele

obtém no momento da confissão de Pedro em Cesáreia de Filipe. Esse momento decisivo

determina e orienta as coordenadas do ministério de Jesus, que se consumará drasticamente

em Jerusalém. A oposição cada vez maior o conduz ao drama da paixão que é, finalmente,

73 PESCH, p. 101. 74 Para Gallardo, em um mundo em que a história é a dos vencedores, (Marcos) escreve um relato de reverso da história, sobre esse judeu vencido, dirigido a uma comunidade de perseguidos não judeus, provavelmente romanos, a quem propõe como norma de vida esse judeu. Trata-se de um relato inconcluso, de uma prática truncada violentamente que não dá resposta imediata à pergunta óbvia sobre o que aconteceu com Jesus. É possível perceber que esta posição assumida por Gallardo parece divergir não apenas da teoria sobre a teologia unitária de Marcos, bem como daquela sustentada em nosso trabalho, o qual afirma que as teologias desenvolvidas pelo autor de Marcos visam a responder, de forma narrativa, à pergunta “Quem é Jesus”? (cf. GALLARDO, p. 21).

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

28

coroado pela resposta vitoriosa de Deus na ressurreição de Jesus. A resposta sobre a

identidade de Jesus está claramente presente no seguimento, no discipulado inaugurado por

Jesus. Ele chama ao seguimento e instrui como mestre aqueles que o seguem.

Marcos consegue, portanto, atingir sua finalidade ao escrever o Evangelho: resumir a

tradição de Jesus para a primeira geração cristã. Ao unir a práxis missionária de Jesus à

catequese (didaskalia) do mestre, Marcos traça o itinerário teológico do Evangelho: uma

cristologia narrativa. Esta cristologia consiste em apresentar a tradição sobre a autoridade de

Jesus de Nazaré (exousia), a pregação do Reinado de Deus, o querigma da salvação, o

sofrimento na cruz, a morte expiatória e a Ressurreição, como a ação de Deus na vida de

Jesus. Trata-se de três tradições conservadas sobre o Messias: o Filho do Homem, o Servo

Sofredor e o Filho de Deus75.

Com isso, é possível perceber na obra de Marcos três eixos em confluência. O

primeiro trata da Vida de Jesus. O segundo equivale ao eixo missionário. O terceiro eixo

refere-se à progressiva revelação celeste da dignidade de Jesus. Estes eixos podem ser

denominados teológicos76. Tais forças tensoras no Evangelho fazem parte, claramente, da

“arte de tecer a intriga”77. Marcos utiliza estes eixos como estratagemas literários, buscando

narrar de forma inteligível os acontecimentos com Jesus de Nazaré. Estes eixos, heterogêneos

em um primeiro olhar, se implicam mutuamente, constituindo a rede de relações, configurada

em um tecido narrativo. O autor do Evangelho, em sua prudência narrativa, busca conservar a

tradição, não só por meio da transmissão, mas igualmente da recepção e da interpretação

presente na narrativa textual. O texto, em sua textura, já se mostra narrado, recebido e

interpretado pelo autor e sua comunidade.

O primeiro eixo teológico, concernente à Vida de Jesus, comunica a preparação do

“caminho do Senhor”, anunciado por João Batista (1,2-8), encerrando com o Ressuscitado que

“precede” os discípulos à Galiléia (14,28; 16,7). O arco de tensão da vida de Jesus abarca a

história de Jesus apresentada por Marcos; não se trata de uma biografia, mas de uma história

epifânica, uma história de revelação. O caminho de Jesus é caminho para o sofrimento; ele sai

da Galiléia e vai para Jerusalém, lugar ápice de sua atividade. Em Jerusalém, o Ressuscitado

75 PESCH, p.111. 76 No intuito de reproduzir criativamente a tradição de Jesus, Marcos compõe sua obra por meio de temáticas fundamentais: os arcos de tensão que, de acordo com Pesch, perpassam o Evangelho. PESCH, p. 117. Preferimos aqui traduzir arcos de tensão, por eixos teológicos. 77 RICOEUR, P. A hermenêutica bíblica. São Paulo: Loyola, 2006. p. 288. Nesta obra, Ricoeur elabora os principais recursos da teologia narrativa, designando-a narratologia.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

29

anuncia que é na Galiléia, na comunidade dos discípulos, que ele se revelará. Para a Galiléia,

encaminham-se os seguidores e é lá no ponto originante da atividade de Jesus, que se dará o

encontro com o Ressuscitado.

O segundo eixo é aretalogico: o autor do Evangelho atinge o reconhecimento da

verdadeira dignidade de Jesus. Este eixo pode ser considerado missionário, proveniente da

admiração, da aclamação ante o mistério da ação de Jesus, sobretudo por meio da narrativa

dos milagres. A atividade jesuânica está antecipada pelo anúncio de João Batista (1,7) e

acentuada no início da atividade na sinagoga de Cafarnaum em variação sempre nova. O eixo

aretalógico tem seu clímax na exclamação do centurião romano (cf. 15,39): “uma exclamação

transposta em evidência” 78, uma genuína profissão de fé.

Existe, evidentemente, entre os dois primeiros eixos uma união intrínseca, dado que a

vida do mestre Jesus é, ao mesmo tempo, epifania de Deus e objeto de admiração dos homens.

Tal objeto epifânico desencadeia a curiosidade e a decisão do seguimento por parte de

homens e mulheres. É possível afirmar que o livro de Marcos em sua totalidade é uma obra de

missão, um convite para o seguimento79.

O terceiro eixo – presente no início, no centro e no desenlace do Evangelho – diz

respeito à progressiva revelação celeste da dignidade de Jesus. Primeiro, no batismo (1,11),

depois, na transfiguração (9,7) e, por fim, na morte-ressurreição (15,33. 38; 16,6-8). Este eixo

pode ser entendido a partir do esquema: adoção, proclamação, aclamação. Um esquema

“místico gradual” 80, uma entronização gradual na realização da dignidade de Jesus. Ao ser

adotado pelo Pai, Jesus inicia seu ministério e gradualmente é compreendido pelos discípulos,

até ser proclamado messias do povo e, por fim, aclamado Filho de Deus. O crescimento

teológico revela a dinâmica marcana: revelar Jesus, o Messias, o Filho de Deus, aquele que

desperta o coração humano para o desejo do seguimento.

Para a Igreja de hoje, a obra de Marcos é peculiarmente preciosa, pois conserva a

tradição mais antiga sobre Jesus e inaugura a nova forma de falar sobre ele: a cristologia

narrativa.

78 Cf. PESCH, p. 118-119. 79 Cf. PESCH, p. 120. 80 PESCH, p. 120.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

30

1.4 Cristologia narrativa: “Quem é Jesus?”

O Evangelho de Marcos foi definido como o “livro da epifania secreta”81. Segundo

Conzelmann, esta definição pode ser julgada justa e não superada, pois Marcos evoca uma

revelação ascendente de Jesus, o Messias, o Filho de Deus, na história dos homens da

Palestina. E esta revelação chegou aos tempos hodiernos. A revelação do Messias torna-se

visível na estrutura da obra marcana. Esta revelação se dá de modo surpreendentemente bem

estruturada82, podendo-se dizer que o Evangelho de Marcos em sua intenção e estruturação

quer revelar quem é Jesus de Nazaré, o Filho de Deus.

Marcos, movido pelo Espírito, visa a preservar para a Igreja do porvir as tradições

apostólicas da “memória de Jesus” ou a “tradição de Jesus”, considerada o fundamento do seu

Evangelho. A cristologia de Marcos, a “memória de Jesus”, é clara e surpreendente. Ele

apresenta Jesus como verdadeiro homem. Jesus, em sua condição humana, precisa orar (1,35;

6,31), comer (2,16), beber (15,36). Ele sente fome (11,12), toca as pessoas (1,41), é tocado

por elas (5,57), fica triste (3,5) e se indigna (10,14). É homem que também sente sono,

cansaço e é despertado nos momentos de sono (4,38-39). Homem de conhecimento limitado

(13,32), pois precisa olhar em seu derredor para ver quem o tocou (5,30). Por fim, como todo

ser humano passa pela trágica experiência da morte (15,37).

Marcos percebe na vida de Jesus a epifania de Deus. A cristologia marcana, não nega

a divindade de Jesus. Ao contrário, é com exousia divina que ele fala e age. Marcos o

descreve como o soberano sobre o reino da enfermidade (1,40-45; 8,22-26; 10,46.52), dos

demônios (1,32-34) e da morte (5,21-24,35-43), e também sobre os elementos da natureza

(4,35-41; 6,48; 11,13-14,20). Jesus prediz o futuro (8,31; 9,9-21; 10,32-34; 14,17-21),

conhece os corações humanos (2,8; 12,15) e, por fim, vence a própria morte (16,6).

Relatar o “caso” Jesus e sua memória como “Boa-Nova” de Deus é questão meritória

de Marcos. Ao empreender esta jornada, ele relata a história de um homem inserido numa

situação, num contexto, num tempo e num lugar, sem arrancá-lo de Deus83. O autor do

Segundo Evangelho traduz a experiência do homem Jesus, o Filho único de Deus, Deus feito

carne na história dos homens, sem desconectá-lo da história divina.

81 “Dibelius define o evangelho de Marcos como ‘o livro da epifania secreta’” (CONZELMANN, p. 184). 82 A concepção de Marcos, sua revelação resulta da estrutura do livro. Em termos literários, a configuração é primitiva, elementar. Mas do ponto de vista teológico, esta se revela surpreendentemente bem estruturada. Isso pode ser notado já na introdução: Varch. tou/ euvaggeli,ou VIhsou/ Cristou/. (cf. CONZELMANN, p. 184). 83 Cf. MOINGT, J. O homem que vinha de Deus. São Paulo: Loyola, 2008. p. 248.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

31

Em sua cristologia narrativa, Marcos elabora um importante conceito teológico: o

“segredo messiânico”, também conhecido como “teoria do segredo”84. A narrativa de Mc tem

em 4,11, com a palavra musthrion, o ponto de apoio para a formulação do segredo. Esta

expressão aparece apenas uma vez no Evangelho. No episódio da transfiguração, Jesus ordena

a seus discípulos desçam do monte e não digam a ninguém o que viram, até que o Filho do

Homem ressuscite dentre os mortos (9,9). Sobre a revelação, cai o véu do ocultamento, ao

menos até que Jesus tenha concluído sua vida terrena. Ocultamento que se faz através das

ordens de silêncio85.

O ocultamento ou segredo messiânico, concernente ao próprio texto do Evangelho,

explicita que Jesus, revelando sua exousia (messianidade), quer manter-se anônimo durante a

vida terrena, ordenando que somente após o tempo pós-pascal se anuncie quem ele é (9,9).

Não resta dúvida sobre a importância desse segredo para a teologia do Evangelho. Segredo

este que determina a cristologia incipiente de Marcos.

O segredo messiânico ganha visibilidade nas ordens de silêncio aos possessos

(1,25.34; 3,12), aos curados (1,44; 5,43; 7,36; 8,26) e aos discípulos (8,30; 9,9), mas também

nos momentos de incompreensão dos seguidores a respeito do mestre Jesus (7,13; 8,17s; 9,30;

10,10). Há ainda duas outras ordens de silêncio, bem configuradas em passagens da tradição

marcana: o leproso deve calar-se até que as autoridades confirmem oficialmente sua cura

(1,44) e o demônio deve ficar calado quando se confronta com o Messias (1,25). Além destas

que pertencem ao estilo de exorcismos, outras passagens foram interpretadas por Marcos no

contexto do “segredo messiânico”, a saber, 1,34 e 3,12.

O procedimento literário do segredo inaugurado por Marcos nem sempre foi percebido

na história da exegese. No entanto, consiste, objetivamente, em dizer que o “segredo do Filho

de Deus”86 se desvela à luz do Ressuscitado. O acontecimento pascal é, portanto, condição de

possibilidade para a compreensão de fé na revelação em Jesus de Nazaré, o Filho de Deus.

O segredo messiânico em Marcos substitui os relatos das aparições pascais presentes

nos demais Evangelhos. O esquema do segredo, ou melhor, a idéia de revelação implicada

84 A concepção do segredo messiânico, apresentada por W. Wrede (na obra Das Messiasgeheimnis in den Evangelien, em 1901) influenciou poderosamente em todos os estudos seguintes sobre a cristologia marcana. Muitos estudiosos procuraram rechaçar esta teoria do segredo messiânico. Percebe-se que alguns conceitos, sobre tal “segredo”, mudaram desde a primeira concepção. (cf. GNILKA, Teologia, p. 167). Não podemos deixar de mencionar outra importante sobre o segredo messiânico: TILLESSE, G. M. Le secret messianique dans l'Évangile de Marc. Paris: Cerf, 1968. 85 Cf. GNILKA, Teologia, p. 167. 86 Cf. GNILKA, El evangelio, p.198

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

32

nele se interessa em desdobrar a cristologia narrativa, que pode ser compreendida a partir do

horizonte da querigmatização da tradição de Jesus. Atrás do processo literário do velar e

desvelar não se escondem os atos da vida de Jesus, mas esconde-se o fato mesmo de que o

anunciador se converteu em anúncio. Jesus é anunciado a partir da perspectiva pascal. Ele

mesmo não se anunciou, mas proclamou o advento o Reinado de Deus. Jesus, portanto, ao ser

compreendido a partir da perspectiva da cruz e ressurreição não é mais segredo, mas é

querigma, anúncio encorajador para o discipulado.

Chama a atenção que o convite ao silêncio – e não uma ordem de silêncio – volte a se

repetir no final aberto do Evangelho. Este fato pode ser interpretado no horizonte do segredo

messiânico. As mulheres que junto à porta do sepulcro, escutaram a mensagem da Páscoa,

deveriam falar, mas “não disseram nada a ninguém, pois tinham medo” (16,8b). Por que no

momento em que a ordem é proclamar, falar sobre o ocorrido, as mulheres preferem o

silêncio? Evidentemente, esta passagem não deve ser compreendida historicamente, mas

teologicamente, pois neste momento o Evangelho atinge seu clímax narrativo, conduzindo o

ouvinte da Palavra a fazer, per se, a uma hermenêutica para a vida de discípulo de Jesus.

O Evangelho de Marcos convoca seu o ouvinte da Palavra a responder à pergunta:

“Quem é Jesus”? A “Boa-Nova” de Marcos, constituindo-se numa cristologia narrativa,

convida o discípulo a se decidir por uma fé radical em Jesus87. O ouvinte da Palavra é

chamado à dinâmica do seguimento ou se preferir pode ficar parado diante do sepulcro vazio

e sem vida.

De acordo com a narrativa marcana, a resposta mais adequada à pergunta “Quem é

Jesus?” é: Ele é o Messias, Filho de Deus, crucificado-ressuscitado. Ao recorrer às confissões

presentes na obra marcana, a de Pedro (8,29: “Tu és o Cristo”) e a do centurião romano

(15,39: “Verdadeiramente, este homem era Filho de Deus”), pode-se afirmar que, para

Marcos, Jesus é o enviado de Deus (9,37). O objetivo deste Evangelho é difundir a fé em

Jesus, outorgando à sua “história” terrena um inestimável valor teológico. A história terrena

de Jesus é convite constante ao discipulado. Nesta perspectiva, nota-se que a cristologia de

Marcos está embebida da intriga do convite ao seguimento, que pode ou não ser acolhido pelo

leitor ou ouvinte.

Marcos, inaugurando sua cristologia narrada, acende um lampejo de esperança para o

futuro dos cristãos. Ao ser re-visitada, a narrativa cristológica de Marcos converte-se em

87 Cf. GNILKA, Teologia, p. 168.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

33

possibilidade de elucidação da práxis cristã em todos os tempos. A cristologia narrada,

construída a partir da arte de recontar os fatos e palavras que envolveram Jesus, converte-se

em convite para o discipulado. Convite para a descoberta do Deus escondido88. A cristologia

marcana é, portanto, expressão da vida plenamente humana, na qual se esconde a divindade,

que se faz visível, no entanto, nos ensinamentos e obras de Jesus para todos aqueles que têm

olhos para ver e ouvidos para escutar.

O discípulo, aceitando o convite ao seguimento, se depara com a resposta para a

questão cristológica. É no caminho e na intimidade de Jesus, que se desvela a beleza do

encontro. No seguimento de Jesus, em direção da cruz, se descobre o segredo e se pode

responder à pergunta: “Quem sou eu para vós?”.

É possível considerar a narrativa marcana uma cristologia do caminho. Marcos, ao

narrar as palavras e a práxis de Jesus, deseja revelá-lo em sua identidade. O Segundo

Evangelho constitui-se, portanto, convite e caminho aberto à liberdade do discípulo. O

discipulado é graça e desafio e exige daquele que se aventura a caminhar o conhecimento de

Jesus à medida que se faz o caminho.

1.5 Títulos cristológicos

Percebe-se a presença de alguns títulos de Jesus na obra marcana, tais títulos podem

elucidar a pergunta cristológica “Quem é Jesus?”. Explicitamente, Marcos inicia sua narrativa

afirmando, “Princípio do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus” (1,1). Tanto a expressão

Jesus Cristo quanto o predicativo Filho de Deus são claramente indícios de que a intenção

marcana é apresentar Jesus, o Cristo-Ungido do Pai, como o verdadeiro Filho de Deus, o

Filho do Homem89.

O título “Filho de Deus” está destacado na obra marcana em: 3,11; 5,7; na confissão

dos demônios; 1,11 na declaração do Pai no batismo; em 9,7 na narrativa da transfiguração e,

por último e não menos importante, em 15,39 na exclamação feita pelo centurião junto à cruz.

Provavelmente a expressão Kyrios90 (11,3; 16,20) tenha o mesmo sentido que tem o título

“Filho de Deus”, pois expressa senhorio e poder. São expressões típicas da Igreja primitiva.

No entanto,

88 Cf. TAYLOR, p. 136-137. 89 Cf. TUYA, p. 615. 90 O título “Senhor” dado a Jesus nestes versículos não é um dado marcano, afirma Schweizer (Evangelo, p. 396).

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

34

“Marcos, sem dúvida, não conheceu a teologia paulina, já que, em seu evangelho, não se descobrem vestígios de uma ‘preexistência’ do Filho, antes da sua encarnação. Apresenta-nos simplesmente a sua teologia do Filho de Deus ao relatar a vida pública de Jesus”91.

Em algumas passagens, também se percebe, a atribuição de poderes divinos a Jesus:

ele perdoa pecados (2,5-12), é senhor dos anjos (13,27), leva os escribas a verem a

transcendência do Messias (12,35-37) e proclama-se “senhor” do sábado (2,28)92.

Quanto ao título “Filho de Davi” (10,47; 12,35-37), pode-se atribuir-lhe uma

conotação messiânica. Com relação ao título “Filho do Homem”, discutiu-se, no decorrer dos

tempos, se Jesus o toma exclusivamente de Dn 7,14 ou se procede das narrativas apocalípticas

contemporâneas a ele ou ainda das parábolas de Henoc.

O título Cristo, tradução de Messias, enseja a discussão se este termo procede das

narrativas apocalípticas ou se o deriva da tradição profética? De fato, o título de Messias pode

estar ligado à imagem do servo sofredor de Isaías, mas também pode aludir a figura do

glorioso-divino Filho do Homem de Daniel, conforme a evolução deste título na hermenêutica

bíblica judaica. É possível afirmar que o Messias Jesus, na narrativa marcana, assume tanto o

papel de servo sofredor quanto a figura do Filho do Homem.

Por fim, o primeiro título, Cristo, destaca a grandeza do Ungido (na narrativa dos

milagres), e o segundo, Messias, destaca a obediência do Servo Sofredor (na narrativa da

Paixão, no qual Jesus carrega sua cruz até o Gólgota). Os títulos cristológicos, concebidos

por Marcos, servem para narrar a história de Jesus e autenticar o convite ao discipulado dos

cristãos de todos os tempos e lugares.

A cristologia narrativa, portanto, pretende elucidar a realidade de Jesus, o Cristo, em

seu sofrimento e glorificação. O autor de Marcos, ao falar de Jesus aos primeiros cristãos do

caminho, lança no horizonte futuro as razões hermenêuticas para responder àquela pergunta

fundamental, “Quem é Jesus?” Por fim, a narrativa marcana almeja nortear os passos dos

discípulos no horizonte da fé, da esperança e da profunda experiência de Jesus, o Messias, o

Filho de Deus.

91 GONZÁLES, p. 214. 92 Cf. TUYA, p. 615. Quanto aos títulos cristológicos seguintes nos servimos das informações de Tuya.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

35

1.6 Hermenêutica cristológica: convite ao discipulado

“Coragem! Ele te chama. Levanta-te”. (Mc 10,49)

A obra do autor de Marcos, portanto, constitui-se numa cristologia narrativa do

caminho93. Após elucidar as perspectivas distintas que condensam a obra marcana, o leitor é

convidado a contemplar esta obra como um grande convite ao discipulado de Jesus: “Segui-

me” (Mc 1,17). O ouvinte da Palavra é chamado a dar uma resposta à revelação de Deus em

Jesus, o Cristo. A obra de Marcos é, em sua construção e transmissão, tentativa hermenêutica

da autocomunicação de Deus à humanidade e aos discípulos do mestre Jesus.

A narrativa cristológica do caminho é perpassada pela epifania de Deus em Jesus e

inspirada pelo Espírito. É este Espírito que concede inteligência e perspicácia ao hagiógrafo e

à comunidade que vive a experiência de Jesus, o crucificado-glorioso. A narrativa por si é

uma hermenêutica, dá a pensar, revelando-se como alteridade inédita e livre.

A “Boa-Nova” de Marcos explicita a epifania de Deus em Jesus a todo o gênero

humano. A revelação de Deus é, já, condição de possibilidade de acolhida ao mistério da

Encarnação do Filho. O Verbo encarnado é consolidação do projeto divino da Salvação.

Projeto constituído por vias humanas, na imanência aberta e diligentemente obediente a Deus.

O Logos, o euangelion, ao entrar no mundo faz-se carne em Jesus e, ao ser

interpretado, ganha força instigante e norteadora para a comunidade dos seguidores. O

Evangelho é mensagem salutar e perigosa, é a confirmação de que o desejo de Deus é a

felicidade humana, a bem-aventurança da Criação, mas revela também que este sonho divino

só se concretiza a partir e por meio do compromisso exigente do caminho de Jesus. A

cristologia narrativa de Marcos é ao mesmo tempo a Palavra de Jesus aos homens na história

e o seu falar sobre Jesus como memória na história. É uma mensagem nova e desafiadora.

A obra marcana, em sua sóbria narratividade, revela o desejo de Deus em Jesus: que o

discípulo vá à Galiléia, a fim de lá experimentar a força dinâmica daquele que vive,

constatando o seguro querigma do centurião romano “Verdadeiramente ele era o Filho de

Deus”. O móbil da Ressurreição não permite que o discípulo se estagne em Jerusalém, local

93 Muitos versículos do Evangelho de Marcos evidenciam o ir e vir de Jesus, tanto para a Galiléia ou Cafarnaum, quanto para Jerusalém e seus arredores. Jesus está sempre em movimento (cf. 1,16. 21. 35; 2,1. 13. 23; 3,1. 7.13. 20; 4,1. 35; 5,1. 21; 6,1. 45; 7,24. 31; 8,10. 22. 27; 9,2. 9. 28. 30. 33; 10,1. 17. 32. 46. 52; 11,1. 11. 15. 11. 20. 27; 13,1; 13,3; 14,3. 17. 26. 32).

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

36

da morte, mas instaura sempre mais o desejo de “ver” Jesus que está vivo na Galiléia dos

discípulos e discípulas.

A experiência do Ressuscitado, que passou pela morte, é o convite do Evangelho de

Marcos. Para viver segundo a Ressurreição, faz-se mister, antes de tudo, “tomar a cruz” e

seguir a via do crucificado, rumo à Jerusalém, confiante nas promessas de Deus. Trilhar os

caminhos de Jesus consiste afirmar que o Mestre está sempre à frente e que só se faz o

caminho, quando se põe a caminhar. Da Jerusalém do poder para a Galiléia marginalizada é

que o Evangelho chega ao seu clímax. É, portanto, na Galiléia que o discípulo haverá de

reconhecer Jesus.

1.7 Estudos recentes sobre Mc 15,40-16,8

Assim como a pesquisa se dedicou a investigar o Evangelho de Marcos, alguns críticos

também se debruçaram sobre o problema da akolouthia e diakonia no Evangelho. No entanto,

não se acha nenhuma obra com uma pesquisa exclusiva sobre os eixos semânticos propostos

por este trabalho. Em relação ao eixo semântico akolouthia, particularmente, acha-se por bem

mencionar além do estudo clássico de Schulz94, os apontamentos mais recentes de Aldana95 e

a obra de Fumagalli96. No que se refere ao discipulado, encontramos alguns estudos

recentes97.

Segundo Aldana, o tema do discipulado em Marcos pode ser estudado a partir de três

tendências: conservadora, média e liberal98. Na primeira, conservadora, estão os que

defendem a noção de que a teologia de Marcos incorpora uma visão favorável e positiva dos

discípulos. Esta tendência observa que os discípulos, no fim, saem vitoriosos, pois são

escolhidos livremente por Jesus, após um período de convivência com ele (3,13).

Ernest Best99 representa a posição média, que engloba as opiniões de que a teologia é

em parte favorável e em parte desfavorável aos discípulos. A posição liberal é defendida por

94 Cf. SCHULZ, A. Discípulos do Senhor. São Paulo: Paulinas, 1969. 95 Cf. ALDANA, p. 13. 96 Cf. FUMAGALLI, A. Fatica e gioia della sequella. La formazione dei discepoli nel vangelo di Marco. Milano: Ancora, 2002. 97 WILLIAMS, J. Discipleship and Minor Characters in Mark’s Gospel in: Bibliotheca Sacra. 153 (1996), p. 332-343. Também lembramos o estudo atual de Aldana (cf. ALDANA, H. O. M. O discipulado no Evangelho de Marcos. São Paulo: Paulinas/Paulus, 2005). 98 Aldana apresenta aqui a perspectiva de estudo de Clifton Black que está baseada em A. Loisy. 99 Segundo Aldana, Best estudou a temática do discipulado numa série de trabalhos dos anos de 1970. A síntese de sua pesquisa pode ser encontrada na obra Following Jesus: Discipleship in the Gospel of Mark de 1981 (cf. ALDANA, p. 13).

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

37

Theodore Weeden, que afirma que a teologia de Marcos pode ser tida ao longo do evangelho

como uma difamação dos discípulos100.

Em se tratando de discípulas-seguidoras, tira-se proveito também do estudo de

Elizabeth Schussler Fiorenza101, de Ana Maria Tepedino102 sobre o discipulado no Evangelho

de João e outras obras na mesma linha.

Contudo, há pesquisas sobre o final do Segundo Evangelho ou ainda a respeito da

narrativa pré-marcana da Paixão que serviu de fonte para Mc 15-16. Esta problemática pode

ser observada nas obras de R. Pesch103 e V. Taylor104. O. Genest105, porém, propõe um estudo

mais específico de Mc 14,53- 15,47, na perspectiva da analise estrutural. C. Focant106, por sua

vez, elabora uma análise narrativa do Evangelho de Marcos, mas não se detém apenas ao final

da narrativa.

1.8 Conclusão

O Segundo Evangelho, que tem seu nascimento na proto-comunidade cristã, evidencia

o desejo de anunciar Jesus Cristo, o Filho de Deus. A narrativa marcana, a mais clara

catequese narrativa, ao transformar-se em escrito, parece ter como objetivo principal

responder à instigante questão: “Quem é Jesus?”. Estruturado de forma simples e portador de

uma linguagem acessível a todos, o Evangelho de Marcos elabora uma teologia inovadora, na

qual são narradas as palavras e os fatos de Jesus. Marcos, inaugurando a cristologia narrativa,

observa o convite feito por Jesus ao seguimento e ao serviço do Reino de Deus: “Segui-me, e

eu farei de vós pescadores de homens” (Mc 1,17). Sistematizando os primeiros ecos sobre

Jesus na comunidade cristã, Marcos, tem como finalidade principal reproduzir o querigma da

morte-ressurreição: Jesus “Ressuscitou, não está aqui” (Mc 16,6; cf. 1Cor 15,3-5). O Segundo

Evangelho tem a missão de indicar aos discípulos o encontro com o Ressuscitado; a proposta

marcana se instaura na perspectiva de que o discípulo vá à Galiléia, pois, é lá, na comunidade

100 Esta é uma consideração defendida na obra Mark: Traditions in conflict de 1971 (cf. ALDANA, p. 13). 101 Cf. FIORENZA, E. S. Discipulado de iguais. uma ekklesia-logia feminista crítica da libertação. Petrópolis: Vozes, 1995. 102 Cf. TEPEDINO, A. M. A. L. Discipulado de iguais: Um estudo sistemático-pastoral sobre o discipulado das mulheres nos evangelhos. Rio de Janeiro: PUC-Rio (Dissertação de Mestrado). 1986. 103 Cf. PESCH, R. Il vangelo di Marco: Introduzione e commento ai capp. 1,1-8,26. Brescia: Paideia, 1980. ________. Il vangelo di Marco: commento ai capp. 8, 27-16, 20. Brescia: Paideia, 1982 104 Cf. TAYLOR, V. Evangelio según san Marcos. Madrid: Cristandad, 1979. 105Cf. GENEST, O. Le Christ de la passion: perspective structurale: analyse de Marc 14,53 - 15,47, des paralleles bibliques et extra-bibliques. Montreal : Bellarmin, 1978. 106 L’Évangile selon Marc. Paris: Cerf, 2004.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

38

apostólica, que se encontra o Vivente. Para o encontro com Jesus, o Ressuscitado, são

indispensáveis o caminho do discipulado (8,34) e a experiência da diaconia (9,35).

A narrativa marcana, como um convite a descobrir quem é Jesus e com ele caminhar,

desperta nos cristãos de todos os tempos e lugares o desejo de configurar a vida com a do

mestre que vai a Jerusalém encontrar-se com a cruz, símbolo não da morte, mas da

ressurreição. É mister observar que a narrativa marcana se faz convite àqueles que estão à

beira do caminho ou que já estão no caminho do mestre Jesus.

A narrativa final de Marcos (15,40-16,8) que será estudada exegeticamente nos

possibilita evidenciar que o convite a encontrar-se com Jesus leva o discípulo,

consequentemente, ao encontro da cruz, do sepulcro e do Ressuscitado. Esta narrativa pode

nos ajudar a compreender que o serviço e o discipulado têm sua gênese e sentido no encontro

com aquele que está vivo na Galiléia de todos os tempos, na comunidade dos seguidores. Mas

como entender esta narrativa sob o prisma do serviço, do discipulado e do testemunho? Como

compreender a akolouthia e a diakonia das mulheres na Igreja de Marcos e no cruel cenário

da cruz? De que forma o testemunho das mulheres pode ser creditado diante das estruturas

androcêntricas da Igreja nos tempos? É o que os próximos capítulos tentarão responder.

Certamente a leitura atenda de Marcos e a interpretação do discipulado e do serviço à luz do

Ressuscitado sejam os melhores caminhos a percorrer.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

39

2 ESTUDO LITERÁRIO-CRÍTICO DE Mc 15,40-16,8

“Ide dizer aos seus discípulos e a Pedro: Ele vos precede à Galiléia”. (Mc 16,7)

Após apresentar o estado da questão e a perspectiva de estudos do Evangelho de

Marcos, nosso segundo passo consistirá em averiguar os detalhes exegéticos da perícope de

Mc 15,40-16,8. Apresentaremos a tradução instrumental e a crítica textual ou documental,

bem como os demais passos do estudo diacrônico, para ulteriormente estudar os eixos

semânticos akolouthein e diakonein na análise narrativa do texto exemplar de Mc 15,40-16,8.

2.1 Problemática

É possível considerar a narrativa marcana da Paixão-morte e ressurreição de Jesus a

primeira construção teológica do gênero literário Evangelho1, que apresenta de forma

narrativa o anúncio de Jesus. A tradição pré-marcana2 da Paixão aponta indícios

imprescindíveis para a comunidade dos discípulos e demais seguidores de Jesus na história

dos tempos. A narrativa da Paixão é arquitetada a partir e por meio da experiência da sequella

Jesu, do seguimento de Jesus. O convite de Jesus ao discipulado está presente na narrativa de

Marcos do início ao fim da obra. Tal convite conduz o discípulo a inserir-se na dinâmica do

seguimento do mestre. É no caminho, na experiência da sequella, que o discípulo pode

compreender quem é Jesus. O discípulo não está só, ele vive na comunidade dos que seguem

os passos de Jesus. Deste modo, o evangelista Marcos ao ser inserido na proto-igreja é capaz

de condensar os ideais de Jesus e dos discípulos e narrá-los como experiência de seguimento e

de serviço, na construção e consolidação do Reinado de Deus anunciado por Jesus de Nazaré.

Todavia, o seguimento de Jesus, retratado na obra marcana, tem seu desfecho na

trágica realidade da cruz. Para o discípulo, a cruz simboliza aparentemente a ausência da vida

e da esperança. Em contrapartida, por meio da fé, na cruz está presente a sutil manifestação de

1 Fazemos nossa as palavras de Pesch quando diz: “O autor do evangelho de Marcos criou com sua obra um novo gênero literário”. (PESCH, R. Il vangelo di Marco. Prima parte, introduzione e commento ai capp. 1,1-8,26. Brescia: Paideia, 1980. p. 33). Com o título de seu livro (Mc 1,1) Marcos deu início ao processo denominado “evangelho”, livro no qual o autor proto-cristão resumiu a tradição de Jesus com a ajuda da comunidade. Pode-se entender “evangelho” não no sentido de denominar um livro, mas um gênero literário. 2 Pesch buscou esclarecer o sentido da tradição pré-marcana no Evangelho de Marcos. Segundo ele, a obra marcana é preciosa porque conserva a tradição da origem antiqüíssima em muitos aspectos, respeitando a atividade e as palavras de Jesus. Segundo Pesch, se se observar a tradição pré-marcana integrada à composição do Evangelho de Marcos, constata-se uma rica multiplicidade, tanto de gêneros literários, como também os materiais que variam segundo a diversidade de ambientes religiosos, bem como os estágios da elaboração das narrativas. Cf. PESCH, p. 123.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

40

Deus, que em sua intervenção liberta Jesus das algemas da morte. A cruz torna-se, agora, sinal

do poder divino (cf. 1Cor 1,18). Para Marcos, no lugar da solidão por excelência, o Calvário,

estão algumas mulheres que fitam de longe. As discípulas se deparam com a triste realidade

da morte de cruz, da mais eloqüente ameaça ao anúncio de vida proclamado por Jesus. No

entanto, faz-se necessário perceber que o querigma da ressurreição (Mc 16,7), dirigido a elas

no final da trama, simboliza a mais forte prova do poder de Deus, que não abandona seu

Filho, Jesus. O jovem junto ao túmulo, ao quebrar o silêncio sepulcral, ordena que aquelas

mulheres se dirijam a Pedro e aos discípulos e os instruam a prossegui no caminho, pois Jesus

os precede à Galiléia. É imprescindível que elas anunciem que Jesus ressuscitou e está à

frente da comunidade cristã.

Com esta narrativa surgem algumas perguntas. Em primeiro lugar, por que, no

Evangelho de Marcos, algumas mulheres estão ao pé da cruz, no (sepultamento)

embalsamamento de Jesus e à porta do sepulcro vazio? Em segundo lugar, são elas

testemunhas-protagonistas e da Boa Notícia ou meras personagens que favorecem a

veracidade da trama? Em terceiro lugar, qual o sentido dado por Marcos ao testemunho destas

mulheres? Em quarto lugar, será o testemunho das mulheres válido diante da comunidade dos

discípulos? Em último lugar, qual o sentido de serviço e discipulado inaugurado por aquelas

mulheres?

Pode-se afirmar que a narrativa da perícope de Mc 15,40-16,8 abre leques de

possibilidades, perguntas e constatações e, também, a prévia consideração de que aquelas

mulheres, ao pé da cruz, são testemunhas qualificadas para o anúncio da ressurreição de Jesus

na comunidade dos discípulos.

Assim, com o auxílio da exegese, levantaremos os possíveis indícios literários para

responder às indagações acima e para o estudo dos eixos semânticos akolouthein e diakonein

na análise narrativa de Mc 15,40-16,8.

2.2 Texto Original, Tradução e Paralelos Mc 15,40-16,8

15

40

+Hsan de. kai. gunai/kej avpo. makro,qen qewrou/sai( evn ai-j kai. Mari,a [h] Magdalhnh. kai. Mari,a h VIakw,bou tou/ mikrou/ kai. VIwsh/toj mh,thr kai. Salw,mh(

Havia também mulheres de longe observando, entre as quais Maria a Madalena, Maria, mãe de Tiago o Menor e de Joses e Salomé,

41 ai] o[te h=n evn th/| Galilai,a| hvkolou,qoun auvtw/| kai. dihko,noun auvtw/|( kai. a;llai pollai. ai sunanaba/sai auvtw/| eivj ~Ieroso,lumaÅ

as quais, quando ele estava na Galiléia,o seguiam e o serviam, e outras muitas que com ele tinham subido a Jerusalém.

Lc 8, 2-3

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

41

42 Kai. h;dh ovyi,aj genome,nhj( evpei. h=n paraskeuh. o[ evstin prosa,bbaton(

E já ao cair da tarde, como era dia de preparação, isto é, véspera do sábado,

sq. Jo19,38-42

43 evlqw.n VIwsh.f ÎoÐ avpo. ~Arimaqai,aj euvsch,mwn bouleuth,j( o]j kai. auvto.j h=n prosdeco,menoj th.n basilei,an tou/ qeou/( tolmh,saj eivsh/lqen pro.j to.n Pila/ton kai. hv|th,sato to. sw/ma tou/ VIhsou/Å

tendo vindo José de Arimatéia, conselheiro respeitável, que também estava aguardando o Reino de Deus, cheio de coragem entrou junto a Pilatos e pediu o corpo de Jesus.

Sq. Dt 21,22s; Ex 34,25

44 o de. Pila/toj evqau,masen eiv h;dh te,qnhken kai. proskalesa,menoj to.n kenturi,wna evphrw,thsen auvto.n eiv pa,lai avpe,qanen\

Pilatos admirou-se de que já estava morto e, convocando o centurião perguntou a ele se tinha morrido há muito tempo.

45 kai. gnou.j avpo. tou/ kenturi,wnoj evdwrh,sato to. ptw/ma tw/| VIwsh,fÅ

e, conhecendo do centurião, concedeu o cadáver a José.

46 kai. avgora,saj sindo,na kaqelw.n auvto.n evnei,lhsen th/| sindo,ni kai. e;qhken auvto.n evn mnhmei,w| o] h=n lelatomhme,non evk pe,traj kai. proseku,lisen li,qon evpi. th.n qu,ran tou/ mnhmei,ouÅ

e tendo comprado um lençol, tendo descido ele, envolveu-o no lençol e o colocou num sepulcro, que estava escavado na rocha, e rolou uma pedra diante da entrada do sepulcro.

(6,29); At 13,24

47 h de. Mari,a h Magdalhnh. kai. Mari,a h VIwsh/toj evqew,roun pou/ te,qeitaiÅ

E Maria a Madalena e Maria, de Joses, observavam onde ele era colocado.

cf.15,40 16,1

16 1

Kai. diagenome,nou tou/ sabba,tou Mari,a h Magdalhnh. kai. Mari,a h Îtou/Ð VIakw,bou kai. Salw,mh hvgo,rasan avrw,mata i[na evlqou/sai avlei,ywsin auvto,n.

E, transcorrido o sábado, Maria a Madalena e Maria, a <mãe> de Tiago, e Salomé compraram aromas a fim de ir embalsamá-lo.

14,8 Jo 19,40

2 kai. li,na prwi> th/| mia/| tw/n sabba,twn e;rcontai evpi. to. mnhmei/on avnatei,lantoj tou/ hli,ouÅ

E, muito cedo, no primeiro dia da semana, vão ao sepulcro, ao surgir o sol,

3 kai. e;legon pro.j eauta,j( Ti,j avpokuli,sei hmi/n to.n li,qon evk th/j qu,raj tou/ mnhmei,ouÈ

e diziam umas às outras: Quem removerá para nós a pedra da entrada do sepulcro?

Jo11,38-39

4 kai. avnable,yasai qewrou/sin o[ti avpokeku,listai o li,qoj\ h=n ga.r me,gaj sfo,draÅ

E, ao levantar a vista, observaram que a pedra tinha sido removida, pois era muito grande.

Jo 20,1b

5 kai. eivselqou/sai eivj to. mnhmei/on ei=don neani,skon kaqh,menon evn toi/j dexioi/j peribeblhme,non stolh.n leukh,n( kai. evxeqambh,qhsan

E, entrando no sepulcro, viram um jovem sentado do lado direito, revestido de uma túnica branca, e ficaram cheias de espanto.

At 1,10b

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

42

6 o de. le,gei auvtai/j( Mh. evkqambei/sqe\ VIhsou/n zhtei/te to.n Nazarhno.n to.n evstaurwme,non\ hvge,rqh( ouvk e;stin w-de\ i;de o to,poj o[pou e;qhkan auvto,nÅ

Ele porém disse-lhes: não vos espanteis. Buscais Jesus, o Nazareno, o crucificado? Ressuscitou, não está aqui. Vede o lugar onde o colocaram.

7 avlla. upa,gete ei;pate toi/j maqhtai/j auvtou/ kai. tw/| Pe,trw| o[ti proa,gei uma/j eivj th.n Galilai,an\ evkei/ auvto.n o;yesqe( kaqw.j ei=pen umi/na

Mas ide dizer aos discípulos dele e a Pedro <que>: Ele vos precede à Galiléia. Lá o vereis, como ele vos disse.

14,28 Mt 26,32; 28,7

8 kai. evxelqou/sai e;fugon avpo. tou/ mnhmei,ou( ei=cen ga.r auvta.j tro,moj kai. e;kstasij\ kai. ouvdeni. ouvde.n ei=pan\ evfobou/nto ga,rÅ

E, saindo, fugiram do sepulcro, pois estavam tomadas de temor e de assombro. E nada disseram a ninguém, pois temiam.

Dn 10,7

2.3 Delimitação

A perícope de Mc 15,40-16,8 está bem delimitada. Embora, nas edições bíblicas

consultadas, muitas vezes, os versículos 40-41 estejam acoplados aos versículos precedentes.

Isto é o caso na TEB3 e CNBB4 que subdividem o final de Mc 15 em três “unidades” literárias

ou perícopes: 15,33-41 (a morte de Jesus)5; 15,42-47 (o sepultamento ou sepultura); 16,1-8

(as mulheres no sepulcro ou sepulcro vazio) A ACR6 sugere as seguintes divisões: 15,16-20

(os soldados escarnecem de Jesus); 15,21-41 (Jesus crucificado); 15,42-47 (o corpo de Jesus

posto em um sepulcro); 16,1-8 (ressurreição de Jesus Cristo). Para Tuya7, a perícope de Mc

15,40-16,8 é composta por três pequenas perícopes: 15,38-41 (morte de Cristo); 15,42-47 (a

sepultura de Cristo); 16,1-8 (as mulheres visitam o sepulcro). Gnilka considera os vv. 40-41

parte final da seção sobre o caminho da cruz, crucificação e morte de Jesus (15,20b-41)8.

Convém observar que há muitas outras divisões sugeridas para a perícope estudada. A

principal diferença, com nossa delimitação, é que muitos colocam um novo início em 15,42 e

não em 15,40, considerando o tema das mulheres que observam de longe conclusão da

crucificação de Jesus. A BJ sugere como divisão três perícopes: 15,40-41(as santas mulheres

no calvário); 15,42-47 (o sepultamento); 16,1-8 (o túmulo vazio e mensagem do anjo)9.

3 Cf. BÍBLIA Tradução Ecumênica. São Paulo: Loyola, 1994. 4 Cf. BÍBLIA Sagrada: Tradução da CNBB. 6. ed. Com Introduções e notas. Brasília: CNBB; São Paulo: Canção Nova, 2007. 5 Estas são apenas intitulações sugeridas pelas edições bíblicas que não estão presentes no texto original. 6 Cf. A BÍBLIA Sagrada: O Velho e Novo Testamento. Trad. João Ferreira de Almeida. Ed. Corrigida e Revisada Fiel ao Texto original. São Paulo: Sociedade Bíblica Trinitariana do Brasil, 2005. 7 Cf. TUYA, M. Biblia comentada: Evangelios II. BAC: Madrid, 1964. p. 630. 8 Cf. GNILKA, p. 362. 9 Cf. BÍBLIA de Jerusalém. Nova Edição Revista. São Paulo: Paulus, 2000.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

43

Konings10 e Pesch11 dividem a perícope de Mc 15,40-16,8 em três perícopes: 15,40-41

(testemunhas da morte); 15,42-47 (sepultura) e 16,1-8 (sepulcro vazio e anúncio da

ressurreição). Preferimos, portanto, adotar esta última forma de divisão, considerando os vv.

40-41 como introdução ao tema do testemunho, que culminará em 16,1.

O verbo +hsan de (v.40), marca uma nova etapa narrativa12. Portanto, apoiando-se

nesta consideração há como corroborar a tese inicial de que a perícope em pauta tem uma

delimitação bem definida, com início, meio e fim. Tais limites serão observados a partir da

divisão da perícope em três cenas sucessivas de acontecimentos.

Observam-se na narrativa da perícope mudanças de cenário, na constelação de

personagens, tempo e localização. A narrativa, no entanto, afirma que os últimos fatos da vida

de Jesus ocorreram em Jerusalém, em lugares diferentes da cidade. O assunto é o mesmo: o

testemunho da morte e ressurreição de Jesus. A unidade literária da narração é inerente à

história transmitida por Marcos: morte e ressurreição de Jesus. A mudança de cenário não

acusa a uma falta de unidade e concisão narrativa, mas corresponde a uma forma diferenciada

de narrar, observando os lugares onde ocorreram os fatos. A unidade literária é estabelecida

em torno da figura destaque, Jesus. A unidade da trama está no fato de o autor não mudar o

alvo narrativo. Tal como um fotógrafo, Marcos voltou o foco de sua de sua câmera para Jesus,

priorizando dois ângulos essenciais: a morte e a ressurreição. Do retrato tirado por Marcos, o

zoom focaliza apenas o importante: o clímax narrativo, a unidade literária, ou seja, o fato de

que durante a morte de Jesus algumas mulheres observavam de longe e foram elas mesmas as

responsáveis pelo embalsamamento do cadáver e, por fim, as protagonistas do querigma da

ressurreição, as enviadas a anunciar que Jesus não estava morto, mas que ressuscitou.

O esquema abaixo apresenta as mudanças principais no retrato da perícope:

personagens, tempo e localização.

10Cf. KONINGS, J. Sinopse dos Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas e da “Fonte Q”. São Paulo: Loyola, 2005. p. 265-268. 11 Cf. PESCH, p. 735-791. 12 Cf. TAYLOR, V. Evangelio según san Marcos. Madrid: Cristianidad, 1979. p. 724.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

44

V. 40

Mulheres diante da

cruz

V. 42

À tarde

V. 43

José de Arimatéia

vai a Pilatos

V. 46

José desceu

Jesus da cruz

V. 46b

Lugar à parte

V. 1

Passado o sábado

V. 2

Lado externo

V. 5

Lado interno

V. 7

Ide: Envio das

mulheres

Fora de Jerusalém

Véspera Palácio em Jerusalém

Fora de Jerusalém

Sepulcro Unção Sepulcro Sepulcro Galiléia

1ª cena 2ª cena 3ª cena

2.4 Crítica textual-documental

Após a delimitação, é importante observar o teor exato do material escrito13.

Para a crítica textual (CT) da perícope de Mc 15,40-16,8 será adotado primeiramente

The Greek New Testament (GNT) e, para maior refinamento, o Novum Testamentum Graece

(NTG)14.

Em Mc 15,40-16,8 podemos observar algumas variantes textuais significativas para a

interpretação da perícope como um todo.

Mc 15,40 +Hsan de. kai. gunai/kej avpo. makro,qen qewrou/sai( evn ai-j kai. Mari,a h

Magdalhnh. kai. Mari,a h VIakw,bou tou/ mikrou/ kai. VIwsh/toj mh,thr kai. Salw,mh,

1) Mari,a h Magdalhnh. Segundo o aparato de NTG Mari,a é testemunhado pelos א

A, D, (L) Y, 1 e 33 (f 1 33), e pelo texto majoritário. Mas B, C, W, Θ 0184, 1 (f ¹), minúsculo

2427 e uma versão siríaca heracleana escrevem Mari,am, sendo mais próximo do hebraico

ים ר .Miriam מ

2) Mari,a h VIakw,bou: A Û escrevem tou VIakw,bou. Porém D, L, Θ, Y f 13 28. 33. 565.

579. 1424 al. suprimem tanto h como tou. As variantes se explicam pelos paralelos nos outros

evangelhos. A versão antiga siríaca sinaítica (sys) lê “Maria filha de Tiago, o menor”.

13 A crítica textual é a verificação do “teor e da grafia de um texto conforme cabe pressupô-los para o autor original. Em decorrência, a crítica textual tem a tarefa de reconstituir o texto mais antigo possível do Novo Testamento com base nos documentos textuais” (SCHNELLE, U. Introdução à exegese do novo testamento. São Paulo: Loyola, 2004. p. 29). 14 Como bases documentais, podemos fazer uso dos textos críticos do Novo Testamento de ALAND, B. et. al. The Greek New Testament. 4. ed. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft; United Bible Societies, 1994 e NESTLE-ALAND. Novum Testamentum graece, post Eberhard et Ervin Nestlé ed. 27. revis. communiter ediderunt Bárbara et Kurt Aland, Johannes Karavidopoulos, Carlo M. Martini, Bruce M. Metzger. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 1993. Esta edição representa um considerável avanço como base de trabalho para a crítica textual-documental do Novo Testamento. Também utilizamos um texto mais literal: KONINGS, Sinopse, p. 265-268.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

45

3) ’Iwshtoj: a lição do NTG está presente em א D, L (D), Q, 083, 0184, f 1.13 33, 565,

2427, 2542s. l.844. A variante é testemunhada, além dos mencionados, ainda por poucos

manuscritos que divergem do texto majoritário, versão copta boáirica. B acrescenta o artigo h.

Outras escrevem Iwsh. Algumas traduções latinas e siríacas escrevem Ioseph.

Mc 15,40 à h:

1) segundo (txt) NTG, em א B C K N WD 0184 f¹ 892.2427.2542. l.844 al.

2) h tou: A Û.

3) filia: sys.

4) omite h: D L Q Y f13 28. 33. 565. 579. 1424 al.

Mc 15,40 ݹ Iwshtoj:

Iwshtoj mhthr: txt 2 א D L (D) Q 083. 0184 f (¹)13 33. 565. 2427. 2542s *. l 844 pc k bo.

h Iwshtoj mhthr: somente no B

Iwsh: somente em Y

Iwsh: א * A C W Y Û sa

Joseph lat sys.

Mc 15,47 h de. Mari,a h` Magdalhnh. kai. Mari,a h` VIwsh/toj evqew,roun pou/ e,qe

itaiÅ

1) Mari,a h Magdalhnh. kai. Mari,a: Θ, f 1 33, 2542, syh escrevem Mariam (duas

vezes). 2) h: o artigo falta em D, L, f 1 13 Û. O texto do NTG é testemunhado por 2א A, B, C,

W, D, Q, Ψ, 083, 33, 579, 2427 al.

3) VIwsh/toj substituído por Iakwbou em D pc it vgms sys . Escrevem Iakwbou kai

Iwshtoς: Q e f 13 565 2542 pc k asmss bo

Comparando os vv. 40 e 47, observa-se que o primeiro (40) apresenta três (ou quatro)

nomes: Mari,a h Magdalhnh. kai. Mari,a h VIakw,bou tou/ mikrou/ kai. VIwsh/toj mh,thr kai.

Salw,mh. Já o v. 47 traz algumas mudanças visíveis: Mari,a h Magdalhnh. kai. Mari,a h

VIwsh/toj. Neste versículo percebem-se algumas omissões: do nome VIakw,bou, que está ligado

ao segundo nome, Mari,a e da palavra mh,thr, bem como, do nome Salw,mh, a terceira mulher

do grupo referido no v. 40. De modo que, no v. 47 são mencionadas apenas duas. Percebe-se

que o v. 40 é rico em detalhes. Já o v. 47 é rápido e parece apenas querer lembrar o que já fora

dito no v. 40. O GNT menciona, na altura do v. 47, o v. 40 como paralelo, com o sinal

indicativo (!).

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

46

Mc 16,1 Kai. diagenome,nou tou/ sabba,tou Mari,a h Magdalhnh. kai. Mari,a h Îtou/Ð

VIakw,bou kai. Salw,mh hvgo,rasan avrw,mata i[na evlqou/sai avlei,ywsin auvto,n.

1) diagenome,nou tou/ sabba,tou...kai. Salw,mh: os nome das duas mulheres (Maria

Madalena e Maria de Tiago) são omitidos por D, ítala d, (k) e n. Em compensação, estes

manuscritos, bem como Θ e algumas versões, introduzem aqui o termo poreuqeisai. O GNT

qualifica a lição adotada como {A}15.

De um modo geral, as variantes de 15,40; 15,47 e 16,1 fazem referência às mulheres

que se encontram na cena narrada por Marcos. As variantes estudadas estão relacionadas aos

nomes dos personagens. É mister perceber que estas variantes fazem pensar em outras

possibilidades de leitura e revelam a significância deste relato.

2.5 Lugar da perícope em Marcos

A perícope está situada no cenário final do Evangelho de Marcos, os capítulos 14-16

considerados ápice narrativo-teológico do Evangelho e, conforme Pesch e outros,

reproduzindo a narrativa pré-marcana da paixão16.

Taylor afirma que o final do Evangelho está narrativamente bem articulado. Esta

articulação deve-se ao fato de a paixão e a ressurreição serem a parte mais primitiva da

tradição evangélica, profundamente presente a Marcos e sua comunidade. Portanto, tal relato

deve ser bem narrado para os cristãos de outras comunidades e do futuro, aonde chegar o

Evangelho segundo Marcos17.

A divisão do Evangelho em duas seções possibilita visualizar o quadro narrativo

marcano, o retrato tirado por Marcos e a teologia vigente na narrativa. Seguimos em grandes

linhas o esquema bipartido adotado por muitos comentaristas18.

15 Para o GNT, a partir da investigação dos editores, esta variante está precedida pela sigla {A}, significando que sua originalidade é virtualmente certa. 16 Cf. PESCH, p. 90. 17 Taylor afirma que Marcos precisou narrar toda a série de acontecimentos com Jesus, acrescentando extratos novos e próprios, para resolver o paradoxo da cruz. Esta opinião é também compartilhada por outros estudiosos de Marcos, Dibelius, Bultmann e Schimidt. Para Taylor, eles não abrem mão da possibilidade de Marcos ter modificado e introduzido à narrativa (14,1-16,8) material complementário. Taylor não se preocupa apenas com a tese de que Marcos reproduziu a narrativa mais primitiva, mas com a tese que diz que Marcos criou uma nova forma de falar sobre Jesus e os acontecimentos ocorridos com ele. Cf. TAYLOR, p. 633. 18 Buscamos observar o Evangelho de Marcos a partir da divisão em duas seções. Este esquema é inspirado na divisão proposta por Gnilka. Cf. GNILKA, J. El evangelio según san Marcos. Mc 1,8,26. Vol. 1. Salamanca: Sígueme, 1986. Também, cf. KONINGS, J. Marcos. São Paulo: Loyola, 1994. p. 5 e Bíblia tradução da CNBB, introdução ao Evangelho de Marcos. A divisão, com adaptação das seções do Evangelho, é proposta por J.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

47

Prelúdio I Seção

“Quem é este?”. Que Reino é este que ele anuncia? 1,1-8,26

II Seção

“O messias diferente”: Filho do Homem, Servo e Filho de Deus 8,27-16,20

João Batista, o arauto e precursor 1,1-13

O início em torno de Cafarnaum 1,14- 3,6

O caminho de Jerusalém e convite para o discipulado 8,27-10,52

Palavras e atos do Reino 3,6-6,6b Atividade em Jerusalém 11,1-13,27

Anúncio ampliado/seção dos pães 6,6b-8,26

Paixão, Morte e Ressurreição 14,1-16,8

A perícope se situa na terceira parte (14,1-16,20) da segunda seção do Evangelho.

Os vv. 40-41 ligam o conjunto Mc 15,40-16,8 aos versículos precedentes (38-39),

tendo em comum o testemunho de Deus e dos homens sobre Jesus. Taylor, entre outros,

considera os vv. 40-41 como parte do relato da crucificação Mc 15,21-4119. Pesch, ao

contrário, considera os vv. 40-41 um pequeno relato anexo às duas narrativas seguintes vv.

42-47 e 16,1-820.

A terceira parte da segunda seção de Marcos (14,1-16,20) é composta por três

cenários narrativos: 1) a unção em Betânia e a traição de Judas, seguida da prisão de Jesus

14,1-52; 2) a condenação de Jesus por parte do Sinédrio e negação de Pedro 14,53-72; 3) a

condenação à morte por Pilatos, a crucifixão e o sepultamento de Jesus e, ainda, o anúncio da

ressurreição diante do sepulcro vazio 15,1-16,8, bem como 16,9-20, as aparições de Jesus

ressuscitado não podem ser considerados como parte da composição marcana21.

2.5.1 Contexto anterior

Mc 15,21-39: Corresponde à crucificação e morte de Jesus. A perícope de Mc 15,40-

16,8 tem seus dois primeiros versículos 40-41 associados à perícope anterior. Após rasgar-se

o véu do Santuário (v. 38) e o centurião confessar que Jesus era “verdadeiramente (o) filho de

Konings. Cf. ALDANA, H. O. M. O discipulado no Evangelho de Marcos. São Paulo: Paulinas/Paulus, 2005.p. 101-104. Evidentemente, outros estudiosos estruturam o Evangelho de Marcos com divisões diferentes. 19 Cf. TAYLOR, p. 710. 20 Cf. PESCH, p. 736. 21 Não há dúvidas de que Mc 16,9-20 é um apêndice não escrito por Marcos. Para Pesch, este relato não depende do Evangelho canônico e não faz parte da obra originária, mas é declarada no Concílio de Trento parte do cânon neotestamentario (conforme a Vulgata; Decretum de canonicis Scripturis, de 8 de abril de 1546. Cf. DH 1501). Não se trata, portanto, de um relato conclusivo para o Evangelho de Marcos, mas de um estrato de narrativa pascal (cf. PESCH, p. 795-786).

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

48

Deus” (v.39) vê-se o testemunho das mulheres, daquelas que seguiram e serviram Jesus,

enquanto esteve na Galiléia. Para Vanhoye, a palavra do centurião é o atestado da filiação

divina de Jesus, correspondendo ao ponto mais importante do testemunho de Marcos22. O

evangelista continua a narrativa afirmando que estavam no cenário algumas mulheres, que

observavam de longe (v. 40). Prefere-se considerar que este elemento já prepara o testemunho

da ressurreição. Pois, as que testemunham a morte são também responsáveis por atestar a

ressurreição.

Pode-se afirmar que Mc 15,40-16,8 forma uma unidade literária, possuindo uma

mensagem própria. Tal perícope está, no entanto, em sintonia com a narrativa sobre a morte

de Jesus que a antecede, em 15,1-39.

2.5.2 Contexto posterior

Não há propriamente contexto posterior. Mc 16,9-20 é um apêndice posterior

deuterocanônico, ao corpo da obra marcana. Refere-se às aparições do Ressuscitado. Pesch,

como a maioria dos exegetas atuais, afirma que o fim do Evangelho de Marcos, posterior a

16,8, deve ser considerado secundário (apêndice). A forma originária da tradição textual é

finalizada em 16,823.

2.6 Divisão estrutural de Mc 15,40-16,8

A tradução literal (cf. item 2.2) será re-aproveitada neste tópico a fim de se

compreender a textura da perícope final do Evangelho de Marcos. A divisão desta perícope

permitirá visualizar as palavras-chaves de compreensão e as cenas sucessivas

respectivamente.

Para uma melhor compreensão do conjunto da perícope, faz-se mister dividi-la em três

cenas, diferentes, mas conexas à mensagem central. A 1ª cena menciona a presença das

mulheres diante do cenário da cruz (15,40-41). A 2ª cena está ligada ao personagem José de

Arimatéia que leva o corpo de Jesus para ser sepultado (15,42-47). A 3ª e última cena faz

22 Cf. VANHOYE, A. La passion selon les quatres evangiles. Paris: Cerf, 1981. p. 59. 23 Cf. PESCH, p. 94. Para um estudo crítico, aprofundado sobre o final (ou os finais) do Evangelho de Marcos, cf. METZGER, A textual commentary on the Greek New Testament. 2. ed. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 1994. p. 102-106. Os doze últimos versículos não estão presentes nos dois mais antigos códices, B e א e no Antigo Latino manuscrito k, o Sinaítico Siríaco. Mc 16,9-20 falta também em muitos manuscritos da versão Antiga Armênia, os manuscritos Adysh e Opiza, nos manuscritos da versão Antiga Geórgia, e nos manuscritos da versão Etiópica. Cf. METZGER, B. M. The text of the New Testament. Its transmission, corruption, and restoration. 2. ed. Oxford: Clarendon, 1979. p. 226. Segundo Gnilka, 16, 1-8 + a chamada conclusão breve 9-20 pode ser encontrada em 0112, 099, L, Y, 579, 274mg I, 1602 (cf. GNILKA, El evangelio p. 411).

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

49

menção à presença das mulheres no sepulcro vazio e a mensagem do jovem no sepulcro, que

ordena às mulheres narrarem aos discípulos que Jesus está vivo e que os precede à Galiléia

(16,1-8).

As três cenas da perícope podem ser entendidas a partir dos paralelismos averiguados.

A) antitético: em 15,41, observa-se um possível paralelo antitético, referindo-se às

cidades Galiléia/Jerusalém.

B) culminativos: é possível constatar, nas três cenas, a expressão (verbal) observaram.

Num primeiro momento, elas observam de longe o que acontece com Jesus (qewrou/sin v. 40).

Num segundo momento, junto do sepulcro, observam onde o corpo de Jesus é colocado

(qewrou/sai v. 47). Num terceiro momento elas observam que a pedra do sepulcro havia sido

removida (evqew,roun v. 4). O desenlace, ou ponto culminante da cena, se estabelece com as

palavras do jovem que diz: “lá (na Galiléia) o vereis (o;yesqe), como ele vos disse”24.

Averiguar esta perícope a partir das três cenas significa não isolá-las, mas

compreender a diferença que cada cena comporta, em sua particularidade, e o que representa

para o todo da perícope. Neste sentido, a perícope também não pode ser entendida desconexa

do contexto, nem da obra marcana. O que se visa a observar é o sentido da unidade literária,

as acentuações que o autor estabelece a partir das expressões axiais, que perpassam a narrativa

em sua globalidade. Averiguar a perícope a partir das três cenas significa compreender o

crescendo literário-teológico da dramática experiência da cruz à esperança do anúncio da

ressurreição: “Lá o vereis como ele vos disse”.

No esquema abaixo é possível observar o paralelismo de palavras e expressões, bem

como a subdivisão utilizada pelo autor do Evangelho. Vê-se que Marcos contrapõe algumas

expressões significativas como: Galiléia/Jerusalém; conselheiro/centurião; corpo/cadáver;

sábado/primeiro dia da semana. Também repete algumas palavras importantes para a futura

hermenêutica do texto: sábado; lençol, observar, ver, dizer, sepulcro, remover, pedra.

A subdivisão da perícope em três cenas pode ser também justificada por meio do uso

da partícula aditiva kai, presente em 15,42 e 16,125.

24 Cf. GNILKA, p. 400. 25 A conjunção kai costumeiramente indica uma relação de unidade entre as partes. Cf. WEGNER, U. Exegese do novo testamento: manual de metodologia. 3. ed. São Leopoldo: Sinodal, São Paulo: Paulus, 1998. p. 89.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

50

Portanto, é possível perceber o esquema tripartido do texto de Mc 15,40-16,8. As

palavras grifadas são as que aparecem repetidas no texto. Há certamente uma intenção na

repetição de palavras26. É possível perceber que os vv. 42-46, inseridos no quadro, formam o

recheio de um “sanduíche” narrativo, ou seja, um relato enxertado dentro de outro relato. As

palavras destacadas em itálico identificam as realidades opostas, como por exemplo, Galiléia

e Jerusalém. Alguns verbos são destacados (em negrito) a fim de mostrar as “amarrações” da

perícope. Em negrito, destacam-se também palavras-chaves que ajudam na compreensão do

texto.

1ª cena

15,40 Havia também mulheres de longe observando, entre as quais Maria a Madalena

e Maria, mãe de Tiago o Menor e de Joses e Salomé,

41 as quais, quando ele estava na Galiléia o seguiam e o serviam e outras muitas que

com ele tinham subido a Jerusalém.

2ª cena

42 E já ao cair da tarde, como era dia da preparação, isto é, véspera do sábado,

43 tendo vindo José de Arimatéia, conselheiro respeitável, que também estava

aguardando o Reino de Deus, cheio de coragem entrou junto a Pilatos e pediu o corpo de

Jesus.

44 Pilatos admirou-se de que já estava morto e, convocando o centurião perguntou a

ele se tinha morrido há muito tempo.

45 e, conhecendo do centurião, concedeu o cadáver a José.

46 e tendo comprando um lençol, tendo descido ele, envolveu-o no lençol e o colocou

num sepulcro, que estava escavado na rocha, e rolou uma pedra diante da entrada do sepulcro.

47 E Maria a Madalena e Maria, de Joses, observavam onde ele era colocado.

3ª cena

16,1 E, transcorrido o sábado, Maria a Madalena e Maria, a <mãe> de Tiago, e Salomé

compraram aromas a fim de embalsamá-lo.

2 E muito cedo no primeiro dia da semana, vão ao sepulcro, ao surgir o sol,

3 e diziam umas as outras: Quem removerá para nós a pedra da entrada do sepulcro?”

26 Este recurso literário é utilizado para evidenciar uma realidade, um fato, um lugar ou mesmo um personagem. A repetição é um recurso da literatura que está próxima da oralidade. “Outra prova dos limites de Marcos como escritor é que, quando descreve uma cena nova, repete, às vezes, muitas palavras, e expressões que utilizou em relatos anteriores”. Este recurso pode ser observado no segundo relato da multiplicação dos pães que segue o primeiro relato de multiplicação (cf. Mc 3, 20-35; 5,21-42 e outros), Cf. TAYLOR, p. 75, cf. também BENÍCIO, P. J. A língua do Evangelho segundo Marcos no códice grego da Biblioteca nacional do Rio de Janeiro. Fides reformata X 1 (2005), p. 109.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

51

4 e, ao levantar a vista, observaram que a pedra tinha sido removida, pois era muito

grande.

5 E, entrando no sepulcro, viram um jovem sentado ao lado direito, revestido de

numa túnica branca, e ficaram cheias de espanto.

6 Ele porém disse: não vos espanteis. Buscais Jesus o Nazareno, o crucificado?

Ressuscitou, não está aqui. Vede o lugar onde o colocaram.

7 Mas ide dizer aos discípulos dele e a Pedro <que>: “Ele vos precede à Galiléia. Lá o

vereis, como ele vos disse”.

8 E, saindo, fugiram do sepulcro, pois estavam tomadas de temor e de assombro, e

nada disseram a ninguém, pois temiam.

2.7 Tradição e redação em Mc 15,40-16,8

A última seção do Evangelho de Marcos (14,1-16,8), correspondendo ao relato pré-

marcano da paixão e ressurreição de Jesus, deve ser considerada a primeira parte da tradição

evangélica que se contou como relato seguido, pois era preciso narrar todos os

acontecimentos para resolver o paradoxo da crucificação de Jesus27. É possível conceber o

“relato pré-marcano da paixão como uma unidade narrativa não autônoma”28 relacionada ao

contexto narrativo que o precede29.

Segundo Taylor, os estudos recentes sugerem com freqüência que 14,1-16,8 se baseia

em uma narração breve e sintética, ou seja, um possível querigma que se transformou em

tradição. Convém examinar os argumentos nos quais se baseia esta hipótese30. Para isso,

Taylor retoma a análise elaborada por Bultmann que afirmou que o relato final do Evangelho

de Marcos é primitivo e muito conciso, pois condensa alguns temas, como: a detenção de

Jesus, sua condenação por parte do Sinédrio e de Pilatos, o caminho do Calvário, a

crucificação e a morte. Marcos desenvolveu neste relato um grupo de narrações relacionadas a

Pedro, a saber, a condução de Jesus ante o sumo sacerdote, a negação de Pedro e, como

27 Cf. TAYLOR, p. 633. 28 PESCH, p. 126. 29 As tradições que precedem a narrativa pré-marcana da paixão podem ser observadas na totalidade do Evangelho de Marcos. Algumas tradições são observadas: 1) tradição do Batista e de Jesus (1,2-15); 2) o pré-marcano dia de Cafarnaum (1,21a;29-39); 3) a narrativa pré-marcana da disputa (2,15-3,6); 4) a narrativa pré-marcana das semelhanças ou parábolas (4, 2-10;13-20; 26-33); 5) a narrativa pré-marcana dos milagres (3,7-12; 4,1.35-39.41; 5,1-43; 6,32-56); 6) uma narrativa catequético-paradigmática para a instrução da comunidade: matrimonio, filhos, riqueza, (10,2-12; 17-27; 35-45) e 7) a narrativa pré-marcana da paixão (8,27-33; 9,2-13. 30-35; 10,1.32-34. 46-52; 11,1-23. 27-33; 12,1-12.13-17. 34c. 35-37. 41-44; 13, 1s.; 14,1-16,8 que constitui indubitavelmente o verdadeiro e próprio núcleo fundamental da exposição de Marcos. Cf. PESCH, p. 128-129. 30 Cf. TAYLOR, p. 776-777.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

52

introdução a esta última, o anúncio da negação. Marcos utilizou também um conjunto de

relatos relacionados à última ceia, que incluía a preparação da Páscoa (14, 12-16), o anúncio

da traição de Judas (14,17-21) e a saída de Jesus para o Getsêmani e as profecias lá

pronunciadas (14.27-31)31.

Destarte é possível averiguar que Marcos utilizou-se da narrativa pré-marcana da

paixão para formar o relato final da paixão e ressurreição de Jesus 15,40-16,832, como

conhecemos. Esta perícope retoma da tradição pré-marcana apenas a questão do testemunho,

primeiro no cenário da cruz (15,40), depois no sepultamento (15,47) e, por fim, no sepulcro

vazio (16,1-7).

De acordo com Taylor, a referência às mulheres em 15,40s. 47 e 16,1 reflete o desejo

de relacionar a morte, o sepultamento e a ressurreição de Jesus aos testemunhos acreditados.

Estas três listas de nomes das testemunhas da paixão-ressurreição de Jesus indicam as

tradições observadas por Marcos na redação da perícope em estudo.

Segundo Taylor, Marcos, familiarizado com duas tradições diferentes, a de 15,47 e a

de 16,1, harmonizou-as em 15,40. A tradição de 15,47 mencionava apenas “Maria Madalena”

e a “Maria de Joses”, no entanto, a tradição de 16,1 mencionava “Maria Madalena” e a “Maria

de Tiago e Salomé”. Como Marcos sabia que as distintas mulheres haviam estado presentes

na crucificação, não percebeu nenhum problema em combinar as duas listas. O evangelista

sabia ou supôs que “Maria de Joses” e “Maria de Tiago” eram a mesma pessoa e, portanto,

usou a grande descrição encontrada em 15,40: “Maria a mãe de Tiago o Menor e de Joses”,

acrescentando também os nomes Maria Madalena (15,47; 16,1) e Salomé (16,1)33.

2.8. Coerência do texto

A análise literário-redacional da narrativa em questão possibilitou-nos averiguar uma

coerência interna. Esta coerência é evidenciada a partir da estrutura textual, que mesmo sendo

tripartida não deixa de lado o essencial da narração: os fatos decorridos com Jesus. A

narrativa marcana da paixão-ressurreição de Jesus é anúncio e testemunho de fé. De modo

particular, a perícope de Mc 15,40-16,8 é autenticada pelo testemunho da comunidade

31 Cf. TAYLOR, p. 633-634. 32 Fazemos nossa a afirmação de Pesch (cf. PESCH, p. 65): “Marcos, a partir de 14,1ss, segue inteiramente o relato da paixão”. 33 Este é o parecer de Taylor, no que se refere à lista das mulheres testemunhas do crucificado-ressuscitado. Este estudo será mais bem elaborado na busca pelo sentido exegético do texto, item 2.9. Cf. TAYLOR, p. 776. Pesch admite listas igualmente originárias de 25,47 e 16,1. Cf. PESCH, 739

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

53

marcana que situa junto ao cenário narrativo algumas mulheres, discípulas e servidoras de

Jesus. Se a diferença entre as listas de 15,40 e 16,1 parece criar problema, convém observar

em primeiro lugar que segundo a crítica textual o texto adotado em 16,1 deve ser considerado

como original34. Segundo a análise da tradição a diferença se explica pela fusão de tradições.

O desenrolar da narrativa, o modo como o editor final do texto bíblico situou os

acontecimentos e as personagens e a imbricação entre as cenas que se conectam com

harmonia, são fatores fundamentais para a averiguação da coerência textual, como veremos a

seguir.

2.9 Composição e estilo

A narrativa marcana é caracterizada por uma linguagem simples e objetiva35. Sem se

prender aos pormenores, Marcos apresenta os derradeiros fatos ligados à pessoa de Jesus de

Nazaré. As mudanças de cenário, descritas nas três cenas da narrativa, indicam que os

materiais utilizados pelo evangelista são aparentemente coerentes. A mudança de cenário não

indicaria necessariamente uma falta de coerência narrativa, mas um enriquecimento, pois

indica que outros materiais foram utilizados para narrar os fatos.

Os materiais coletados pelo autor do Segundo Evangelho constituem recordações

claras e arquitetadas com coerência. Tais materiais não evidenciam uma obra meticulosa, mas

objetiva e concisa. Evidentemente não se trata de uma tragédia histórica como Macbeth.

Trata-se, contudo, de uma obra teologicamente elaborada, com pretensão querigmático-

catequética. O desejo marcano é, na perícope em questão, anunciar que os fatos narrados estão

diretamente relacionados a uma pessoa: Jesus. Os fatos são, segundo o texto recebido da

tradição, testemunhados por algumas pessoas, discípulos ou discípulas de Jesus, que

transmitiram o que viram e experimentaram.

A sucessão factual, explicitada na narrativa, é testemunhada primeiro por algumas

mulheres diante da cruz. No segundo momento, o sepultamento de Jesus, a iniciativa de um

homem prestigioso da sociedade, é também testificado pelas mulheres que se dirigem ao

sepulcro a fim de voltarem no outro dia. No terceiro momento, que se inicia com um novo

34 Marcado por GNT com a letra {A}: alto grau de probabilidade. 35 Evidentemente a análise redacional de um texto do Evangelho marcano é mais difícil, pois não se possui acesso direto às fontes eventualmente utilizadas por Marcos. Pode-se, no entanto, falar em intervenção redacional quando se observa a incidência de termos, expressões, estilo ou idéias teológicas típicas do evangelista. A coerência e coesão textual podem ser também deduzidas a partir da redação do texto propriamente dito, bem como a partir do exame do contexto literário. Cf. WEGNER, p. 145.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

54

dia, Marcos evidencia o desejo das testemunhas de Jesus de embalsamar o corpo de Jesus com

os aromas comprados. Ao chegarem ao sepulcro se deparam com o mensageiro, porta-voz de

Deus, que lhes confia uma missão diaconal: anunciar aos discípulos e a Pedro que a direção

certa para caminhar é a Galiléia e que Jesus os precederá no caminho.

Portanto, a coerência interna se faz evidente a partir da realidade do testemunho. É o

testemunho, o anúncio, que suscita a credibilidade ao texto. O testemunho é alicerce

fundamental para a vida do texto e da narrativa, bem como para a vida da comunidade que lê

e medita o texto sagrado.

A narrativa da paixão tem seu ponto culminante na morte de Jesus, que é precedida

por seu forte grito e da declaração querigmática do centurião da guarda romana: avlhqw/j ou-toj

o a;nqrwpoj uio.j qeou/ h=n, “Verdadeiramente este era Filho de Deus” (15,39)36. Fabris afirma

que Marcos é fiel a seu cânon narrativo: nenhuma concessão à retórica e à anedota curiosa. Na

narrativa desta perícope não se percebe nenhum exagero semântico ou lingüístico. Marcos

parece não desprezar a tradição sobre a paixão de Jesus, contada a partir da simplicidade

narrativa, da sobriedade simbólica. A costura dos retalhos mostra no fim uma colcha

harmônica, com matizes coerentes aos últimos acontecimentos ocorridos com Jesus37.

Marcos é consciente da integração existente entre os três atos que compõem a

perícope. Pesch afirma que esta não pode ser considerada um legado autônomo do contexto da

Paixão de Jesus, nem mesmo ser considerado um “fragmento de tradição isolada”, nem

mesmo uma composição redacional do evangelista Marcos38.

A 1ª cena retrata o testemunho das mulheres diante do crucificado. Marcos é fiel à

tradição ao compor o relato do testemunho das discípulas de Jesus. Observa-se que Mt e Lc

relatam também, tendo Mc como fonte, a presença de algumas mulheres aos pés do

crucificado.

A 2ª cena da perícope é composta pelo último episódio da trajetória histórica de Jesus,

seu sepultamento, relatado por todos os quatro evangelhos. Fabris diz:

“Apesar das divergências nas particularidades redacionais, há entre eles uma concordância de fundo: Jesus foi sepultado por iniciativa de um judeu simpatizante e autorizado, identificado com José de Arimatéia (cf. At 13,29). Já este pormenor, isto

36 Para um aprofundamento nesta questão Cf. TAYLOR, p. 724. 37 FABRIS, R. Marcos in: BARBAGLIO, G; FABRIS, R; MAGGIONI, B. Os evangelhos (I). São Paulo: Loyola, 1990. p.609. 38 A hipótese de “um fragmento de tradição isolado”, levantada por R. Bultmann, é contestada por Pesch. Cf. PESCH, p. 735

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

55

é, que não se trate de um discípulo qualificado, depõe em favor da historicidade do fato”39.

Marcos relata a morte de Jesus em consonância com a legalidade da época. Segundo o

costume judaico, fundamentado em Dt 21,22s e respeitado pelas autoridades romanas, o corpo

do condenado à morte deveria ser retirado da cruz antes do pôr-do-sol. Assim, as notícias de

Marcos sobre o sepultamento de Jesus concordam com o costume judaico. Isto pode servir de

indício para a coerência e coesão histórica da perícope, do relato composto pelo autor de

Marcos.

A particularidade da composição do relato, sobretudo de envolver o cadáver num

lençol ou sudário e depositá-lo no túmulo talhado na rocha, corresponde ao costume judáicos,

diz Fabris40.

A composição do relato da sepultura tem seu desfecho com o relato do testemunho de

duas mulheres, Maria Madalena e Maria de Tiago/Joses, que pertenciam ao grupo que seguiu

Jesus, elas são testemunhas oculares do lugar do túmulo. Este é um dado imprescindível para

Marcos, pois permite estabelecer a continuidade histórica entre este episódio e a visita das

mulheres ao sepulcro na manhã do domingo.

A 3ª cena, equivalente ao anúncio da ressurreição, pode ser considerada clímax

narrativo do Evangelho. Este anúncio ganha um núcleo no testemunho do misterioso

personagem da madrugada pascal, junto ao sepulcro vazio: “Buscais Jesus, o Nazareno, o

crucificado? Ressuscitou, não está aqui. Vede o lugar onde o colocaram” (16,6).

“Com a narrativa do anúncio da ressurreição de Jesus no sepulcro aberto e vazio se

conclui a história pré-marcana da Paixão e termina o Evangelho de Marcos”, afirma Pesch41.A

3ª cena da perícope corrobora as duas predições sobre a ressurreição, no início da história da

paixão (9,9. 31; 10,34). Portanto, a composição deste último ato segue uma performance

composicional. Aparentemente Marcos não modificou de modo substancial o modelo

narrativo e redacional na última e mais importante parte do evangelho42.

Marcos, com seu trabalho redacional, costurou textos e informações com um estilo

propriamente narrativo. A desenvoltura da composição é averiguada no desenrolar dos fatos,

39 FABRIS, p. 611. 40 Cf. FABRIS, p. 612. 41 PESCH, p. 757. 42 No entanto, isso não descartaria possibilidades de adição ou substituição de palavras por parte do redator. Cf. PESCH, p. 759.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

56

narrados com simplicidade e objetividade. O autor final de Marcos conseguiu transmitir a

essência e o fundamento a respeito da pessoa de Jesus de Nazaré: “Ele ressuscitou!”; e a

responsabilidade deste anúncio é atribuída às discípulas que estavam ao pé da cruz.

2.10 Recursos literários

Marcos utiliza alguns recursos próprios43. Na perícope em questão, nota-se que o

recurso fundamental e útil para o autor marcano é a narrativa de fatos imediatos, relatados um

após o outro. A própria narratividade é, já, um estilo da obra marcana. Uma narrativa rápida44,

sem detalhes e objetiva, que visa a atingir o ponto nevrálgico da revelação de Deus em Jesus:

a morte e ressurreição do Filho de Deus.

Marcos sintetiza as últimas peripécias da vida de Jesus em uma narrativa coerente e

coesa. A perícope é composta por orações curtas em linguagem popular, contendo inclusive,

expressões latinas (cf. 15,44.45 kenturi,wna) e semitizantes (cf. 15,41 sunanaba/sai, 15,42

paraskeuh.) que conferem um colorido distinto, mas ao quadro narrativo, expressando a

intencionalidade de Marcos: narrar os fatos ocorridos com Jesus nos últimos “três dias” de sua

vida terrestre.

Marcos também faz uso de muitos verbos, o que corrobora a tese que sua obra se

assemelha a uma catequese narrativa45. Há expressões narrativas propriamente de Marcos, que

ilustram o micro-contexto (adjacência imediata) da morte e ressurreição de Jesus46.

A identificação de personagens e de cenário, nas intrigas literárias, que envolvem as

figuras é também um outro recurso notoriamente marcano. Marcos não se preocupa com

enfeites literários, mas sua narrativa é bem esquematizada, não permite brechas para detalhar

as idiossincrasias dos personagens. Como um bom narrador, Marcos prende a atenção do

43 Gnilka julga que Marcos utilizou-se de: narrações e sentenças formadas à base de uma tradição anterior; narrações baseadas no testemunho pessoal, provavelmente o de Pedro e de narrações distribuídas tematicamente e formadas por sentenças e apotegmas. Cf. GNILKA, Evangelio, p. 120. 44 Benício afirma que as conjunções kai. (e), de, (mas) ga,r (porque, pois) apontam para a rapidez, vivacidade e expressividade com que Marcos redige a sua obra (cf. BENÍCIO, p. 102). 45 Cf. SCHNELLE, p. 51. 46 Não se trata apenas de ver a perícope como uma ilha, mas como um membro anexado ao corpo da obra marcana. Os recursos literários viabilizam a análise do contexto, do Sitz im Leben, da situação vital em que a obra ou a perícope foi redigida. Cf. SCHNELLE, p. 50. O macro-contexto no qual está inserido a perícope apresenta recursos próprios. Tais como: as narrativas de milagres, apotegmas, ditos (pouca freqüência), parábolas, sentenças, ensinamentos e discurso apocalíptico. É viável recordar que a narrativa do Evangelho de Marcos, como interstício da comunidade marcana, deseja testemunhar “quem é Jesus” e o que ele simboliza para os discípulos e discípulas, àqueles que são interpelados pela leitura e meditação da Boa nova.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

57

leitor. O escritor sábio é prudente e não permite que aquele que o lê se disperse em detalhes,

mas que se fite somente no que é central, na teleologia da literatura.

A perícope em questão permite ao leitor averiguar um esquema próprio de um sábio

escritor. Primeiro, o escritor de Marcos lança ao cenário a figura de algumas mulheres, que

testemunham à crucificação de Jesus. Elas estão situadas no Gólgota; e ao largo observam o

drama da morte de Jesus. No segundo momento, do sepultamento na véspera sabática, Marcos

inaugura a presença de José de Arimatéia e re-apresenta Pilatos no cenário. As mulheres

observam onde sepultam Jesus. Num terceiro momento, temos a introdução de um novo

tempo para o cenário: o domingo. A intriga literária destaca algumas mulheres e um jovem,

que poderia ser a manifestação de um anjo, um arauto da ressurreição. No final enigmático, as

mulheres se encontram estarrecidas e tementes com o misterioso querigma do jovem; elas

saem e não dizem nada a ninguém. Contudo, antes de tal acontecimento, o mensageiro pede

para que elas narrem aos discípulos e a Pedro que Jesus ressuscitado os precede à Galiléia e

que lá o verão.

Marcos utiliza poucos recursos literários para narrar os momentos finais da Paixão de

Jesus. A narrativa marcana da Paixão – morte e ressurreição de Jesus – per se pode ser

considerada um novo gênero literário; ao mesmo tempo inovador e intrigante. A genialidade

literária de Marcos contribuiu para que os demais evangelistas escrevessem seus evangelhos.

Destarte é notório que Mt e Lc adicionaram detalhes próprios que não eram, a juízo de

Marcos, tão relevantes para tratar sobre Jesus47e sua morte-ressurreição.

2.11 Um mini-drama

Como já observamos, o texto abordado aqui pode ser considerado uma encenação

dramática. Explicitaremos aqui esta abordagem.

1ª cena: 15,40-41

Os versículos 40-41 (como exórdio da perícope48) têm como cenário o Gólgota,

localizado fora de Jerusalém, mencionado anteriormente nos vv. 21-22: “E levaram-no fora

para o crucificarem [...] ao lugar chamado Gólgota, que traduzido, quer dizer ‘lugar da

Caveira’”. O v. 40 apresenta algumas mulheres que observam de longe o que acontecia com

47 Cf. GABEL, J.B.; WHEELER, C. B. A bíblia como literatura: uma introdução. São Paulo: Loyola, 1993. p. 171. 48 Estes versículos são considerados, por Taylor, apêndice que prepara o leitor para os relatos do enterro e da ressurreição. Cf. TAYLOR, p. 724.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

58

Jesus. São elas: Maria (a) Madalena, Maria, mãe de Tiago o Menor49 e de Joses e Salomé50. O

verbo que exprime a ação das três mulheres é qewrou/sai, traduzido por “vendo”, “olhando”,

“observando”, “percebendo”. Gnilka diz que “os únicos seguidores de Jesus que

contemplaram sua morte foram as mulheres, elas contemplaram de longe”51, em seu parecer o

v. 40 se apóia no Sl 38,12 que diz:“Meus amigos, também eles se afastam de minha desgraça,

e os meus parentes se põem à distância” (LXX avpo. makro,qen)52.

O v.41 introduz duas expressões verbais significativas para a narrativa marcana:

hvkolou,qoun e dihko,noun. Tais expressões podem ser traduzidas por “seguiam” e “serviam”. O

autor, afirma que aquelas mulheres seguiam e serviam Jesus, na Galiléia, desde o início de seu

ministério. Afirma ainda que outras muitas (mulheres) estavam lá e que havia subido com

Jesus a Jerusalém. Neste versículo aparece também o verbo sunanaba/sai que se refere a

“subir”, “ir” a algum lugar na companhia de alguém. Quando se refere a ir à Jerusalém, o

verbo quase sempre é “subir”. Este verbo está relacionado, indubitavelmente, com o termo

hvkolou,qoun.

2ª cena: 15,42-47

O v. 42 introduz um termo importante para a tradição judaica, paraskeuh., que

significa o dia antes do sábado. No grego do NT é expressão para indicar um tempo de

preparação, “dia da preparação”, no caso, antes de um sábado. Este termo está presente

também em Mt 27,62; Lc 23, 54. Em Jo 19,14.31.42, significa a preparação da Páscoa53, que

coincide com o sábado. Em Mc, porém, que situa a morte de Jesus no dia da Páscoa,

paraskeuh., tem seu sentido geral de “preparação” para o sábado, por isso Mc o chama

também de prosa,bbaton (Mc 15,42).

49 Também conhecido como “o irmão do Senhor” (cf. Mc 6,3; Mt 12,46; Jo 2,12; At 12,17; 15,13-21; 21,18-25; Tg 1,1; Gl 1,19; 2,9. 12;). É de se supor que Tiago e Joses fossem muito conhecidos na comunidade primitiva (cf. a referência a Simão, Alexandre e Rufo de Mc 15,21). O adjetivo genitivo masculino tou/ mikrou/ distingue este Tiago do outro (filho de Zebedeu) por sua estatura ou por sua idade. Nada sabemos de Joses. Cf. TAYLOR, p. 725. 50 Em Mt 27,56 Salomé é identificada como “a mãe dos filhos de Zebedeu” (cf. FOCANT. C. L’evangile selon Marc. Paris: Cerf. p. 588). 51 GNILKA, p. 381. 52 Cf. GNILKA, p. 381. 53 No dia da preparação o cordeiro deveria ser imolado, a refeição preparada, e removido todo o fermento das casas. Este termo também pode designar o sexto dia da semana, a sexta-feira que precede o shabbat (cf. KONINGS, J. Evangelho segúndo João: amor e fidelidade. São Paulo: Loyola, 2005. p. 250-252).

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

59

O v. 43 põe em cena um novo agente: José de Arimatéia (cf. Mt 27,57; Lc 23,51; Jo

19,38)54. A narrativa afirma que este era um ilustre conselheiro do Sinédrio. O relato de

Marcos não afirma que José é discípulo de Jesus. Segundo Taylor, a ação desempenhada por

José pode ter sido motivada tanto pela simpatia que tinha por Jesus quanto pela compaixão

para com o crucificado ou, talvez, pela preocupação com a pureza ritual no dia da

“preparação”55. Marcos apenas diz que José também aguardava o advento do Reino de Deus.

E, entrando com audácia junto a Pilatos, pediu o corpo de Jesus (sw/ma tou/ VIhsou). Para a

tradição, o corpo não deveria ficar exposto, pois o próximo dia era sábado. Por isso, José de

Arimatéia não tinha tempo a perder.

No v. 44 Marcos apresenta Pilatos admirado com o fato de Jesus ter morrido. Pilatos

pergunta ao centurião se havia muito tempo que Jesus tinha morrido. Pois havia crucificados

que suportavam até três dias o suplício da cruz56.

O v. 45 apresenta Pilatos ciente sobre a morte de Jesus, a partir do testemunho do

centurião. Ele, assim, entrega (evdwrh,sato do grego dwre,omai que significa “presentear”,

“conceder” cf. 2Pe 1,3ss.), o cadáver (ptw/ma) de Jesus a José de Arimatéia. O verbo

dwre,omai tem sentido de ação benévola, como em Gn 30,20; 1Esd 1,7. Marcos sublinha que

se trata de uma decisão graciosa de Pilatos. Segundo Taylor, na língua grega dwre,omai

representa a terminologia oficial das permissões do governador: donavit cadaver57. A

expressão ptw/ma “cadáver” atesta a novidade que Jesus está morto de fato, diferentemente do

v. 43 que indica sw/ma, que pode ser traduzido por “corpo”58. Esta expressão também pode ser

encontrada em 14,8 na unção em Betânia e na última ceia 14,22.

V. 46: Uma vez obtida a permissão para enterrar Jesus, José compra uma mortalha, um

tipo de lençol, e envolve Jesus. Colocando-o no túmulo escavado na rocha, rola a pedra diante

54 O topônimo grego ~Arimaqai,a parece corresponder a Ramaqai,n Rāmāatyim. Sua localização provável é a vila atual de Rentîs (30 km a nordeste de Jerusalém). Cf. FOCANT, C. L’ evangile selon Marc. Paris : Cerf, 2004. p. 591. 55 Preferimos fazer nossas as palavras de Taylor quando diz que, “Mateus deduz que José era discípulo (27,57). Neste sentido, uma vez mais, se manifesta o caráter primitivo do relato de Marcos” (TAYLOR, p. 727). Evidente, porém, que Mc não está preocupado com a exatidão dos fatos, se José era mesmo discípulo, no sentido clássico. Marcos apenas relata os fatos dizendo que houve uma preocupação por parte de José de Arimatéia, um importante representante do Sinédrio. Para Focant, é provável que José de Arimatéia fosse um simpatizante próximo do objeto da pregação de Jesus, o Reino de Deus (cf. FOCANT, p. 590). 56 São naturais tanto a surpresa quanto a pergunta de Pilatos, pois alguns crucificados conseguiam suportar dois ou três dias de tormento. Este versículo, “leva a marca da autenticidade” Cf. Lagrange, apud TAYLOR, p. 728. 57 Cf. TAYLOR, p. 728. 58 FOCANT, p. 590.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

60

da entrada. Nota-se que o autor se refere duas vezes à palavra lençol (sindo,na) e duas vezes a

palavra sepulcro (mnhmei,w).

Como o trabalho era excessivo para que fosse realizado por José de Arimatéia sozinho,

há de se imaginar que ele tivesse contado com a ajuda dos seus criados. Ao enterro, nenhum

discípulo assistiu, tampouco as mulheres. Não se menciona a unção, e a juízo de Marcos esta

não foi levada a cabo (cf. 16,1, cf. também 14,8 e Lc 23,55ss). Segundo Jo 19,39s,

Nicodemos trouxe uma mescla de mirra e aloés, que foram colocadas nas pregas das ataduras,

“segundo o costume de enterrar alguém entre os judeus”. Marcos leva em consideração

somente a tradição do lençol, do pano novo que envolveria o cadáver de Jesus59.

O v. 47, como desfecho da 2ª cena, lembra as mulheres presentes desde o início da

cena, mencionando apenas duas: Maria de Mágdala e Maria de Joses, que observam onde

Jesus é colocado (evqew,roun). As duas mulheres são apenas testemunhas do sepultamento de

Jesus e não prestam ajuda durante o ato fúnebre. Contudo, se respeita a regra dos testemunhos

de Dt 19,15, pois a tradição cristã apresenta estas mulheres como testemunhas. Seus nomes

estabelecem um elo entre a sepultura (a 2ª cena) e a crucificação (1ª cena)60.

3ª cena: 16,1-8

A 3ª cena tem início com um novo dia, v.1, que deve ser entendido como a noite antes

do primeiro dia da semana. Os judeus contam os dias a partir do anoitecer. Caindo a noite,

terminava-se o shabbat. Então as mulheres (Maria Madalena, Maria de Tiago e Salomé)

podiam comprar os produtos aromáticos para embalsamar Jesus. Marcos refere que as

mulheres compraram perfumes quando terminou o sábado (diagenome,nou tou/ sabba,tou), quer

dizer, depois das seis da tarde (diagi,nomai cf. At 25,13; 27,9), “transcorrido”, “passar”. Os

avrw,mata são provavelmente azeites perfumados e não ervas aromáticas, como com freqüência

é traduzido61.

O v. 2 afirma que na manhã seguinte, bem cedo, no primeiro dia da semana

(sabba,twn) aquelas mulheres foram ao túmulo, quando o sol estava a despontar. A seqüência

dos termos de temporalidade, pode ser compreendido como sugerindo “terceiro dia”62

59 TAYLOR, p. 729. 60 Cf. GNILKA, p. 391. 61 TAYLOR, p. 731. Para Lucas, kai. mura (23,56), ocorre também no grego clássico, nos LXX (2 Mac 11,26). 62 Fazemos nossa a afirmação de Gnilka (cf. GNILKA, p. 406):“o terceiro dia é o dia da ajuda divina e indicação de que um defunto está verdadeiramente morto”.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

61

mencionado em 8,31, 10,34; 15,29. Em 15,42 mencionou a paraskeuē ou prosabbaton, no v.

1 a passagem do sábado, e no v. 2 o primeiro dia da semana.

No v. 3 as mulheres indagam entre si: “Quem removerá para nós a pedra da entrada

do sepulcro?”. Marcos afirma que as mulheres, ao erguerem os olhos viram que a pedra já

tinha sido removida (v.4)63. Segundo Taylor, Marcos não tenta explicar como se removeu a

pedra; a narrativa dá a pensar que a remoção de tal pedra havia sido obra de Deus ou de Cristo

ressuscitado. O autor de Marcos ainda surpreende o leitor afirmando: “Ora, a pedra era muito

grande”. Mas o que mais surpreende é a sobriedade narrativa de Marcos, implicando, porém

não afirmando, que o sepulcro estava vazio. O anúncio dramático fica subentendido até o

momento em que o jovem mensageiro diz no v. 6: hvge,rqh( ouvk e;stin w-de\ i;de o` to,poj o[pou

e;qhkan auvto,n. “Ressuscitou, não está aqui. Vede o lugar onde o colocaram”.

No v. 5, Marcos se refere, novamente, às mulheres, que agora entram no sepulcro e

vêem um jovem sentado à direita, vestido com uma túnica branca. O jovem64 está à direita do

sepulcro – lugar de destaque e honra – e revestido de branco (cf. Mc 9,3, as vestes de Jesus na

transfiguração se tornam brancas). Marcos descreve o espanto das mulheres com a expressão

evxeqambh,qhsan, termo forte que só Marcos utiliza no NT (cf. 9,15). Aparentemente, Marcos

escreve com liberdade narrativa, pois algumas palavras são próprias de seu vocabulário.

O v.6 introduz uma exortação às mulheres: “não temais”65. O jovem declara que Jesus

ressuscitou e assinala o lugar onde o haviam colocado. Marcos introduz termos

desconhecidos: Nazarhno.n (cf. 1,24), evstaurwme,non (cf. 15,13). Esta última palavra, que

significa “o crucificado”, termo da tradição, e que corresponde ao emprego que faz Paulo em

1Cor 1,23; 2,2; Gal 3,1. Esta expressão, um tanto formal, está intimamente unida a VIhsou/n

to.n Nazarhno.n, que quer dizer: “Jesus o Nazareno”66.

No v.7, interrompe-se o querigma sobre o ressuscitado (avlla., cf. 9,22; 14,36,

caracteriza mudança) e dá-se início a missão das mulheres, que devem comunicar aos

discípulos que Jesus os precede (proa,gei) à Galiléia. É na Galiléia que os discípulos podem

63 TAYLOR, p. 734. 64 O jovem, em grego neani,skon, está à direita e vestido de branco, podendo indicar dois elementos de dignidade. Esta descrição pode aludir a um anjo. Segundo Taylor, Marcos descreve de forma gráfica o que crê ter acontecido. Os vv. 6s, nos quais o “anjo” utiliza uma linguagem humana, sublinham esta impressão. Cf. TAYLOR, p. 735. 65 De acordo com Gnilka, o anúncio do jovem junto ao sepulcro evidencia uma angelofania, muito presente no gênero da haggadah. A angelofania é caracterizada pela aparição do anjo, a reação de medo, a mensagem a comunicar, a resposta do receptor. Cf. GNILKA, p. 398. 66 Cf. TAYLOR, p. 735.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

62

ver o ressuscitado. Não “subjaz aqui uma rivalidade entre a comunidade de Jerusalém e da

Galiléia”; o mais provável historicamente é a reunião do discipulado na Galiléia e ida a

Jerusalém estimulada pela Páscoa67. O encontro como ressuscitado se dá num lugar: na

Galiléia. Esta cidade, para Marcos, corresponde “à pátria filha do Evangelho, o cenário

principal da atuação terrena de Jesus”68, o lugar, por excelência, da vocação ao discipulado69.

Portanto, ver o Ressuscitado na terra de sua atuação terrena significa também poder

compreendê-lo plenamente. Só podemos compreender Jesus quando o vemos como terreno,

crucificado e ressuscitado. De acordo com Taylor, Marcos faz referência à Galiléia devido ao

fato de saber das aparições do ressuscitado naquele lugar e não em um outro70.

O v. 8 diz que a mensagem (do jovem) assusta as mulheres; elas sentem “tremor”

(tro,moj, cf. 1 Cor 2,3; 2 Cor 7,15; Ef 6,5) e “assombro” (e;kstasij, cf. Mc 3,21; 5,42)71, o que

condiz bem com o momento em que voltaram e abandonaram o sepulcro, assustadas. Tremor

e assombro são reações reflexas no encontro do humano com o divino. Marcos afirma que as

mulheres não disseram nada a ninguém, pois tinham medo. O Evangelho tem seu desfecho

com esta afirmação abrupta. Parece que os evangelistas posteriores consideraram intolerável

este final. Mateus afirma que as mulheres, com medo e ao mesmo tempo alegria, correram

para narrar os fatos aos discípulos. Lucas diz que contaram tudo aos Onze e aos demais. Que

evfobou/nto ga,r (pois temiam) é mesmo o final original do evangelho de Marcos é hoje a

posição defendida pela maioria dos estudiosos72.

A 3ª cena condensa o querigma pascal expressado anteriormente nas profecias da

paixão, sinalizando que o final do caminho de Jesus não é a cruz, mas a ressurreição da

morte73. É indispensável, portanto, perceber que os discípulos e discípulas são convidados a

anunciar: “Ele ressuscitou” (Mc 16,6b).

67 GNILKA, p. 406. 68 GNILKA, p. 402. 69 CF. FUMAGALLI, A. Fatica e gioia della sequella. La formazione dei discepoli nel Vangelo di Marco. Milano: Ancora, 2002. 70 Cf. TAYLOR, p. 736. 71 Cf. MUNDLE, W. e,kstasiς. In: COENEN, L.; BROWN, C. Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento. Vol. III. São Paulo: Vida Nova, 2000. p. 784. Esta expressão pode indicar “frenesi”, “confusão”, “assombro”. 72 TAYLOR, p. 738, Cf. também GNILKA, p. 405. 73 Cf. GNILKA, p. 406.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

63

2.12 As mulheres testemunhas

Depois de termos apontado a estrutura de superfície do drama, focalizamos o papel

testemunhal das mulheres74.

Pesch afirma que

“os três últimos fragmentos (15,40-41.42-47;16,1-8) da história pré-marcana da paixão, que Marcos continua a seguir até a conclusão, apresentam mulheres galiléias, seguidoras de Jesus, como as novas personagens do episódio; elas se tornam, portanto, as testemunhas da crucificação, do sepultamento e do anúncio da ressurreição” 75.

Esses fragmentos narrativos constituem a unidade da perícope, apresentando como

testemunhas dois grupos de mulheres: o primeiro grupo menciona pelo nome três ou quatro

mulheres, que Mc afirma terem seguido e servido Jesus enquanto esteve na Galiléia. O

segundo grupo, mais numeroso que o primeiro, é constituído por mulheres anônimas, que

fizeram companhia a Jesus na subida a Jerusalém.

40 +Hsan de. kai. gunai/kej avpo. makro,qen qewrou/sai( evn ai-j kai. Mari,a h Magdalhnh.

kai. Mari,a h VIakw,bou tou/ mikrou/ kai.76 VIwsh/toj mh,thr kai. Salw,mh( 41ai] o[te h=n evn th/|

Galilai,a| hvkolou,qoun auvtw/| kai. dihko,noun auvtw/|( kai. a;llai pollai. ai sunanaba/sai auvtw/|

eivj ~Ieroso,lumaÅ

40 Havia também mulheres de longe observando,

– entre as quais

–– Maria a Madalena, Maria, mãe de Tiago o Menor e de Joses e Salomé,

––– 41as quais, quando ele estava na Galiléia, o seguiam e lhe serviam

–– e outras muitas que com ele tinham subido a Jerusalém.

74 É verdade que nem Marcos nem os evangelhos como um todo designam explicitamente uma mulher de “discípula/aluna” de Jesus (mathētria), mas a palavra “seguir” (akolouthein) circunscreve, sobretudo no Evangelho de Marcos, de forma marcante, o seguimento de Jesus. De Mc 15,40s, decorre claramente que as mulheres que seguem a Jesus desde a Galiléia estão numa relação contínua de seguimento a ele. Diferentemente do que acontece em relação aos discípulos masculinos, Marcos atribui expressamente às mulheres um comportamento especial frente a Jesus: elas o “serviam”. Portanto, este serviço se expande até hoje como testemunho de fidelidade e amor ao mestre (cf. STEGEMANN, E.; STEGEMANN, W. p. 423). 75 PESCH, p. 735. 76 Aqui Pesch afirma que o artigo h em B Y 131 poderia não ser originário, mas apresenta a possibilidade de a mãe de Joses ser a terceira ou quarta mulher no cenário da Paixão de Jesus. Cf. PESCH, p. 736.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

64

Para Pesch, este breve relato tem dupla função: nomear as testemunhas da crucificação

de Jesus, na comunidade primitiva e apresentar algumas seguidoras particularmente fiéis a

Jesus 77.

A construção dos versículos 40-41 é complexa, pois contém uma descrição

subordinada com dois sujeitos, que constituem os grupos acima mencionados78. O grupo das

mulheres discípulas não se restringe apenas àquelas nomeadas pelo autor de Marcos, mas

inclui também mulheres que viviam o discipulado “anônimo”, na discrição.

Nos versículos anteriores, que lembram o que foi anunciado em 10,32 (o que estava

para lhe acontecer) mencionavam-se apenas as figuras masculinas: soldados, sacerdotes,

escribas, os transeuntes (15,29) e os espectadores presentes (15,35). Agora é introduzido novo

sujeito: as mulheres.

Inicia-se, assim, a última seqüência com cenas sucessivas até a morte de Jesus.

“Algumas mulheres foram testemunhas” da crucificação, assistindo ao largo, sem nada poder

fazer.

Apesar de terem seguido Jesus em proximidade79, desde a Galiléia (v. 41a), agora

estão observando Jesus de longe (v. 40 a). De um lado, muitas mulheres estavam próximas a

Jesus desde o início de seu ministério, na Galiléia. De outro, poucas são aquelas que, à

distância, observam os acontecimentos derradeiros na capital Jerusalém. O distanciamento das

amigas do Justo é certamente um motivo tradicional da passio iusti 80. Todavia, tal indicação

corresponde à situação histórica, particularmente no episódio da crucificação de Jesus. O

contexto vital permitia à mulher somente assistir avpo. makro,qen “de longe” o que acontecia no

mundo dos varões, permeado pela crueldade. Normalmente, as mulheres assistiam a tais

fatos, pois após as chacinas, elas eram as responsáveis pela pureza ritual do local onde o

sangue jorrava. Esta era também uma forma de serviço das mulheres hierosolimitanas.

77 Cf. PESCH, p. 736. Com a menção do testemunho da crucificação e da morte de Jesus vivente na primeira comunidade se iniciou a conclusão do “evangelho da comunidade primitiva”, que está estreitamente próxima do primeiro e fundamental evangelho cristão (cf. 1Cor 15,3-5): o Cristo morto (Mc 15,37), sepultado (15,42-47), ressuscitado (16,6) e anunciado (16,7). Cf. PESCH, L’ Evangelo, p. 209. 78 Cf. PESCH, p. 736. 79 PESCH, p. 736. 80 Cf. PESCH, p. 737.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

65

Entre as mulheres que assistiam ao trágico episódio Marcos nomeia81 apenas três (ou

quatro, segundo a numeração de Pesch82). Maria de Mágdala83, Maria (mãe ou mulher) de

Tiago o Menor e (a) mãe de Joses, e Salomé. Pesch diz que estas mulheres “devem ter

participado da comunidade primitiva e lá trabalhado”84. Lc 8,3 também menciona Joana,

mulher de Cusa e Susana, entre aquelas que serviam e seguiam a Jesus.

Maria Madalena constantemente ocupa o primeiro posto (cf. 15,47; 16,1; Lc 8,2;

24,10). Maria, mãe de Tiago o Menor (e também de Joses?), mencionada posteriormente em

15,47, ocupando o segundo lugar, antecedendo Salomé, em 16,1 (cf. Lc 24,10: Maria de

Tiago). Para Gnilka, as três mulheres constituem uma espécie de “réplica dos três discípulos

preferidos por Jesus (5,37; 9,1; 14,33)85”.

Excurso: Três ou quatro mulheres?

Pesch afirma que Maria de Tiago, aparece identificada com o nome de seu pai (muito provavelmente) ou de seu filho (menos provável). No cenário redacional de Mt 27,56, ela é apresentada antes como mãe de José, cf. 27,6186. Tiago, provavelmente é a figura mais notória, pois é citado identificado à mulher. Mas muitos eram os “Tiagos” no período apostólico. Dois são mencionados na comunidade primitiva (o filho de Zebedeu, cf. 1,19, e o irmão do Senhor, cf. 6,3). Há um acréscimo que possivelmente serviria para distinguir seu nome, o menor, (o; mikro.j). É mais provável que este termo indicasse mais a estatura física que a idade cronológica. Em Mt 10, a título de esclarecimento, a lista dos apóstolos apresenta primeiro Tiago, filho de Zebedeu e depois Tiago, filho de Alfeu. Mc (3,16-19), ao listar os apóstolos, apresenta primeiramente Tiago, filho de Zebedeu, João, o irmão de Tiago, apelidados de Boanerges, “Filhos do trovão”. Depois Tiago, filho de Alfeu. Lc (6, 14-16) apresenta Tiago, juntamente com seu irmão João, depois Tiago, filho de Alfeu. O livro dos At (1,13) apresenta primeiro Pedro e Tiago e depois Tiago, o filho de Alfeu. Marcos apresenta uma outra mulher de nome Maria (cf. 15,47), mãe de Joses ou também VIw.shfoj Iōsēf, que supostamente não seria a mãe de Jesus (cf. 6,3). Ela é nomeada em 15,47 após Maria de Mágdala; em Mt 27,56 é identificada como Maria

81 Dolores Ruiz aponta a importância da nomeação das mulheres no relato bíblico. Para ela, a identificação, no contexto de um processo judaico, valida um testemunho (cf. Jo 8,17; 5,35.59). “A morte e ressurreição operam uma mudança impensável na cultura daquele tempo, principalmente a respeito da condição da mulher (...). Está claro que a morte, sepultamento e ressurreição de Jesus fazem romper os moldes e barreiras impostas à mulher por uma sociedade que só levava em consideração os varões” (cf. RUIZ, M. D. El feminismo secreto de Marcos. Communio 31 1998, p. 9-11). 82 Cf. PESCH, 739. “No v. 40b são indicadas quatro (e não três) mulheres”. 83 Mari,a h Magdalhnh, mencionada novamente nos v. 47 e 16,1 (Mt 27,56. 61; 28,1; Lc 8,2; 24,10; Jo 19,25; 20,1. 11. 16. 18). Em Lc 8,2 e Mc 16,9 afirma-se que desta mulher havia saído sete demônios (cf. TAYLOR, p. 724). 84 PESCH, p. 737. 85 GNILKA, p. 381. 86 Cf. PESCH, p. 738.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

66

de Tiago. Pesch afirma que o nome Tiago seria uma possível “variante dada ao nome do filho de José”87. Pesch sustenta sua posição, em relação ao número de quatro mulheres diante do cenário da cruz, dizendo que a formulação VIwsh/toj mh,thr (v.40), antecipando o nome do filho, quer evitar a repetição do nome Maria, que já era bastante conhecido na comunidade88. Para Pesch, o fato de a personagem Maria ser apresentada, no v. 40 como ‘mãe’ de Joses89 não pode ser desconsiderado, pois tal Joses seria também uma pessoa notável na comunidade primitiva. Há que se notificar também uma outra possível ligação entre uma destas mulheres à figura de Clopas, averiguada em Jo 19,25. No entanto, Pesch afirma, que Schnackenburg “considera esta identificação uma audácia”90.

Marcos apresenta, por fim, outro nome à lista das discípulas, Salomé. Também em 16,1 ela está situada após as outras mulheres e, isso poderia estar associado ao fato de não portar o nome de Maria. Em Mt 27,56 este nome é identificado como a mãe dos filhos de Zebedeu (cf. Mt 20,20).

Se para Pesch, Marcos menciona quatro mulheres junto ao cenário da cruz. Taylor, por sua vez, diz que “mencionam-se provavelmente três mulheres, mas seriam quatro mulheres se com a ajuda das fontes B Y 131 lesse o artigo h antes de VIwsh/toj mh,thr”91. Para Gnilka, Marcos menciona apenas três nomes92.

Aparentemente Mc 15,40 refere-se à Mari,a h VIakw,bou tou/ mikrou/ kai. VIwsh/toj mh,thr (Mt VIwsh.f) como se utilizasse o artigo h como em 16,1 h VIakw,bou.

“Ao parecer, é a mãe de Tiago e Joses, porque não é provável que sys tenha razão ao dizer que era a filha de Tiago (sy pe hl dizem “mãe”). Lagrange observa que segundo o costume árabe é freqüente conhecer a uma mulher pelo nome de seu filho, e que na expressão de Marcos pode suspeitar-se a existência de um influxo semítico (compara-se com o uio.j th/j Mari,aj de 6,3). É de se supor que Tiago e José fossem muito conhecidos na comunidade primitiva (cf. a referência a Simão, Alexandre e Rufo de 15,21), ainda que seja difícil identificá-las. Sem dúvida alguma, não são os irmãos de Jesus (6,3), porque não é provável que Marcos designasse à Virgem Maria com uma circunlocução. É mais provável a opinião de que Tiago seja “o filho de Alfeu” (3,18)”93.

A respeito das três (ou quatro) mulheres mencionadas no v.40, Marcos diz que

seguiam a Jesus (avkolouqe,w) quando estava na Galiléia, e o serviam (diakone,w), esta última

expressão faz “alusão aos serviços materiais prestados”94. Os imperativos hvkolou,qoun e

87 PESCH, p. 738. 88 Cf. PESCH, p. 739. 89 José irmão do Senhor não é muito nomeado na tradição posterior; diferentemente de Tiago, sempre associado ao título “o irmão do Senhor” (cf. item 2.11 nota referente a Tiago Menor). 90 Cf. PESCH, 739. 91 TAYLOR, p. 724. 92 Cf. GNILKA, p. 381, cf. também FOCANT, p. 588. 93 TAYLOR, p. 724. 94 GNILKA, p. 382.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

67

dihko,noun descrevem o prolongar-se do seguimento e do serviço durante a atividade de Jesus

na Galiléia. A importância deste seguimento na Galiléia se estende até ao momento derradeiro

da crucificação e morte, em Jerusalém95. As mulheres, que caminharam com Jesus para

Jerusalém, são apresentadas por Marcos como aquelas que compreenderam que o seguimento

de Jesus é seguimento da cruz96. Destarte, a postura destas mulheres constitui a

complementação necessária da confissão do centurião. A profissão de fé deve estar

acompanhada da disposição de vida. Drewermann considera importante o fato de as mulheres

não desesperarem diante da morte de Jesus97. Evidentemente o não-desespero demonstra a

capacidade humana “de compreender a cruz de Jesus”98 e a maturidade de entender que, para

carregá-la não é necessário somente estar com Jesus, mas que é preciso viver, antes de tudo,

como ele viveu. A fé, portanto, não se corresponde como uma questão intelectual, mas como

uma práxis de vida.

“À reta confissão da fé tem que acompanhar a práxis reta da vida. Esta compreende o serviço amoroso e o sim à cruz. Galiléia e Jerusalém são termos que servem para recordar uma vez mais a totalidade do caminho de Jesus, que foi um caminho até a cruz. Desta maneira, o final do relato da crucificação sai ao encontro do conceito do evangelho”99.

Pesch observa que este breve relato narrativo (Mc 15,40-41) apresenta importantes

informações históricas100: 1) cita três ou quatro mulheres como testemunhas da crucificação

de Jesus; 2) atesta, como outros relatos (cf. Lc 8,2; Mt 27,55), que Jesus mantinha mulheres

em seu discipulado e que, possivelmente, se tornaram pregadoras itinerantes; 3) confirma a

precedente indicação sobre a presença de numerosos peregrinos pascais no seguimento de

Jesus durante seu caminho até Jerusalém. Para a história da tradição, o texto é um importante

indício da forma longa da história pré-marcana da paixão e do lugar onde foi atribuída à

tradição: a primeira comunidade de Jerusalém.

Com aceno ao testemunho da crucificação e da morte de Jesus conclui-se a história

pré-marcana da paixão e do Evangelho de Marcos, que está baseado no querigma fundamental

da primeira comunidade (cf. 1Cor 15,3-5): Morto (15,37) – sepultado (15,42-47) –

ressuscitado (16,6) – anunciado (16,7). Esta conclusão, segundo Pesch, está antecipada já nas

95 Cf. PESCH, p. 741. 96 Cf. GNILKA, p. 382. 97 Cf. DREWERMANN, E. El mensaje de las mujeres: la ciencia del amor. Barcelona: Herder, 1996. p. 176. 98 FUMAGALLI, p. 113. 99 GNILKA, p. 382. 100 Cf. PESCH, p. 742.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

68

profecias da paixão e ressurreição no início da história da paixão (8,31; 9,31; 10,33s.), a

última profecial está ligada ao longo trajeto (de subida) a Jerusalém101.

No retrato de Mc, a memória da atividade de Jesus na Galiléia (v.41a) influenciou

fortemente a concepção do evangelista e está ilustrada na primeira parte da obra (1,1 – 8,26).

A observação sobre o seguimento das mulheres está inserida no amplo eixo dos textos

relacionados ao seguimento102 (cf. 1,16-20; 3,13-19).

Evidentemente, observamos divergências exegéticas entre os pesquisadores de

Marcos. A perícope em questão (especificamente os vv. 40, 47 e 16,1) traz questões

pertinentes para o estudo atual do Evangelho de Marcos. Para nosso intento, menos

importante é a cientificidade ou história do texto ou o número exato de mulheres que olhavam

“de longe”. Trata-se de perceber o significado do papel exercido por estas personagens na

narrativa da paixão e ressurreição de Jesus.

À guisa de conclusão, afirmamos que, às mulheres citadas por Marcos (tanto as

nomeadas no primeiro grupo, quanto às “anônimas” do segundo) a tradição neotestamentaria

atribuiu a importante missão de testemunhar, de forma querigmática, os fatos acontecidos

com Jesus de Nazaré: sua paixão-morte e ressurreição, a fonte e sentido para a fé cristã.

Segundo Gnilka, às mulheres, concretamente as três mencionadas por seu nome, lhes coube a

missão de informar e testemunhar o acontecido com Jesus de Nazaré103. O testemunho destas

mulheres se torna conteúdo indispensável para os cristãos de ontem e de hoje e de amanhã.

2.13 Conclusão

O estudo literário-crítico da perícope de Mc 15,40-16,8 permitiu-nos observar a

densidade do relato final do Segundo Evangelho e ainda lançar no horizonte da fé a

compreensão mais abrangente a respeito dos eixos semânticos akolouthein e diakonein, a

partir do conceito gerador testemunho, que, acima de tudo, deve ser vivido como um

ministério na Igreja. O testemunho é o que formaliza a vida do cristão e também certifica a

razão de sua esperança (1Pd 3,15). Para Marcos, o discipulado vivido pelos personagens

envolvidos no relato da perícope parece estar associado ao irresistível convite feito por Jesus

101 Cf. PESCH, p. 742. 102 Cf. PESCH, p. 743. 103 GNILKA, p. 381.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

69

no início do Evangelho: “Segui-me” (1,17). Acompanhar o mestre em seus caminhos é

requisito indispensável para a fé e o testemunho dos discípulos.

A perícope estudada mostra-se em consonância com a tradição reproduzida por

Marcos, quando solenemente afirma se tratar do Evangelho (da Boa Nova) de Jesus Cristo,

Filho de Deus (cf. 1,1). A perícope marcana corrobora a Boa Notícia de Jesus que é convite

ao seguimento e às experiências da renúncia e da cruz (8,34). O relato de Mc 15,40-16,8

equivale ao testemunho daqueles que se aventuraram no caminho com Jesus para Jerusalém

(10,1), e, que à medida que iam caminhando, recuperavam as olhar da cegueira na fé (10,52).

O Filho do Homem se encontrará com a morte na Jerusalém incrédula (9,31) e lá, diante da

crueldade dos homens poderosos, que algumas mulheres permanecerão ao largo observando o

acontecido com Jesus. São mulheres testemunhas, que vivem o discipulado e,

concomitantemente, são exortadas ao serviço de proclamar que Jesus não está morto no

sepulcro, mas que vive, está ressuscitado e que precede os discípulos à Galiléia (16,7).

Nosso próximo passo consistirá no estudo dos eixos semânticos akolouthein e

diakonein, que norteiam a perícope de Mc 15,40-16,8, bem como um estudo do eixo gerador

mathētēs. Num segundo momento, a análise narrativa da perícope buscará perceber a riqueza

dos detalhes narrativos fornecidos pela redação de Marcos. Por fim, nossa intenção consistirá

em observar como se dá a confluência dos eixos axiais no relato da perícope em menção e os

efeitos que o texto comunica em sua leitura, juntamente com a hermenêutica, ou seja, a leitura

atualizada da perícope em estudo.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

70

3 ESTUDO DOS EIXOS SEMÂNTICOS AKOLOUTHEIN E DIAKONEIN E ANÁLISE NARRATIVA DE Mc 15,40-16,8

“Deus convida e dá forças: ‘Vamos, homem amado,

tu não estás só!’” (E.Schillebeeckx)

Após os estudos sobre o Evangelho de Marcos e da focalização da perícope de Mc

15,40-16,8, estudaremos, neste capítulo, os eixos semânticos akolouthein e diakonein,

imprescindíveis para a compreensão da narrativa marcana, bem como o conceito gerador

mathētēs1. Os eixos semânticos, tanto na narrativa evangélica quanto na narrativa da perícope

em questão, se encontram em confluência, como recursos utilizados pelo narrador para

desenvolver e guiar a narrativa. Em seguida, analisaremos a perícope em questão com o

método sincrônico de análise narrativa2.

É mister averiguar o sentido teológico de tais eixos que perpassam a perícope e lhe

dão sentido. Os eixos semânticos akolouthia e diakonia, na narrativa marcana, serão

estudados distintamente e após a investigação se poderá perceber as implicações que eles

causam na intriga narrativa.

1 No estudo dos eixos semânticos, encontrou-se também outro eixo bastante importante para o estudo do Evangelho de Marcos: mathētēs ou “discípulo”. Tal eixo pode ser considerado um elo articulador entre os dois eixos propostos pelo estudo da perícope. Neste sentido, não existiria o seguimento nem o serviço se não houvesse o discípulo para seguir e servir o mestre. “O verbo seguir (akoloutheō) está relacionado com o conceito de discípulo (mathētēs) que designa aquele que ouviu o chamado de Jesus e se uniu a ele, por uma resposta ativa que compromete toda a existência”. Cf. BOMBONATTO, I. Seguimento de Jesus: Uma abordagem a partir da cristologia de Jon Sobrino. São Paulo: Assunção, 2001. (Tese de doutorado). p. 49. Embora, o termo ocorra somente em 16,7 e não diretamente em relação às mulheres, lhe dedicaremos um estudo no 3.1.1. 2 Para uma introdução à análise narrativa: Cf. VITÓRIO, J. Narratividade do livro de Rute. Estudos Bíblicos 98 (2008), p. 85-106; ALETTI, J-N. L’art de raconter Jésus-Christ, Paris: Seuil, 1989; MARGUERAT, D.; BORQUIN, Y. Como leer los relatos bíblicos. Iniciación al análisis narrativo. Bilbao: Sal Terrae, 2000 ; WÉNIN, A. De l’ analyse narrative à la théologie des recits bibliques. Revue théologique de Louvain, 39 (2008), p. 369-396; ALETTI, J-N. La construction du personage Jésus dans les récits évangéliques: Le cas de Marc. In: FOCANT, C. ; WÉNIN, A. (Ed.) Analyse narrative et bible. Deuxième colloque international du RRENAB. Louven: University, 2005. p.19-42). O foco deste método está voltado para os recursos literários utilizados pelo narrador, no processo de elaboração do texto, tendo como perspectiva o efeito a ser produzido nos leitores, naqueles que ouvem a Palavra. A análise narrativa preocupa-se, portanto, com a tríade: narrador – texto – leitor. “Orienta-se de forma prioritária sobre o leitor ou a leitora, e o modo no qual o texto os fazem cooperar no deciframento do sentido”. MARGUERAT, D.; BOURQUIN, Y. Como leer, p. 17. A análise narrativa detém-se na observação do leitor sobre os expedientes utilizados para narrar a história, de forma a permiti-lo entrar na narratividade, no universo narrativo. Importa para o (a) leitor (a) apenas o texto, no qual o autor deixou impressões indeléveis de sua capacidade narrativa. Cf. MARGUERAT, D. Entrer dans le monde du récit. Une présentation de l’analyse narrative. Transversitalités. 59 (1996), p. 1-17.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

71

Após averiguar o sentido destes eixos no macro-contexto (Mc) será possível analisá-

los no micro-contexto da perícope, observando a intenção que eles comportam e o sentido

bíblico-teológico que apresentam.

Com a ajuda da análise narrativa da perícope de Mc 15,40-16,8, chega-se, portanto, ao

ponto nevrálgico da questão: o que o texto, especificamente no modo em que se encontra, diz?

Esta pergunta, aparentemente pragmática3, está sempre na ponta da língua de quem se

aventura a ler e meditar a Palavra de Deus – a Bíblia. A preocupação do leitor consiste em

encontrar o sentido do texto. Aqui, as preocupações com o autor e o contexto são

minimamente relevantes. Portanto, “a verdadeira pergunta que deve ser feita ao texto bíblico

é: ‘Por que você me conta isso, desse modo?’”4.

Neste momento, faz-se oportuno um estudo sistemático sobre os eixos axiais

akolouthia e diakonia com uma consideração sobre o conceito mathētēs. Eles contribuirão

para a ulterior análise narrativa.

3.1 Akolouthein: “seguir” No estudo do eixo semântico akolouthein nos referiremos também ao estudo do termo

gerador mathētēs, “discípulo”.

3.1.1 O conceito de akolouthein

Akoloutheō se forma de keleuthōs, “um caminho” (de Homero em diante),

significando “ir para algum lugar com outra pessoa”, “acompanhar”, “ir atrás de alguém”,

“seguir”, e também (com intenções hostis) “perseguir”. Juntamente com o sentido literal

surgiu também o sentido metafórico: “seguir o sentido”, “entender” (Platão), “seguir a opinião

de alguém”. Entre os estóicos akoloutheō tem conotações religiosas e filosóficas. Emprega-se

em referência à conformidade dos sábios à lei do mundo ou a Deus5.

3 A análise narrativa indaga acerca da peculiaridade e função das narrações. Para Egger, “na exposição, o narrador pode empregar vários meios lingüísticos para dar eficácias às narrativas segundo o seu objetivo (intenção pragmática)”. EGGER, W. Metodologia do novo testamento. Introdução aos métodos lingüísticos e histórico-críticos. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2005. p. 116. 4 Estudar um texto bíblico pode ser comparado a uma viagem empreendida para se conhecer um lugar. Cf. SILVA, C. M. D. Aprenda a enxergar com o cego Bartimeu, ou... Por que é necessário um método para ler a Bíblia? Estudos Bíblicos 98 (2008). p. 34. 5 Cf. BLENDINGER, C. avkolouqe,w. In: COENEN, L.; BROWN, C. Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento. Vol. 1. São Paulo: Vida Nova, 2000. p. 578.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

72

No AT, na versão da LXX, o verbo seguir não tem implicação religiosa. O guerreiro

segue o comandante (Jz 9,4. 49: Abimelec), Eliseu segue Elias, deixando tudo para trás, sai

para servi-lo (cf. 1Rs 19,20-21 yrex]a; %l;h',). Em Os 2,7, a LXX utiliza a expressão avkolouqh,sw

para retratar o adultério, o seguimento dos amantes6. Em Nm 22,20 Deus que diz a Balaão:

“Se aqueles homens te vieram chamar, levanta-te, vai com eles; todavia, farás o que eu te

disser”. O termo avkolouqe,w pode ser também encontrado no AT em 1Sm 25,42; Is 45,147.

Mas é Jr 2,2 que melhor explicita a fórmula seguir a YHWH, onde se lê: “Lembro-me de ti,

da piedade da tua mocidade, e do amor do teu noivado, quando me seguias no deserto, numa

terra em que não se semeava”.

No mundo judaico, a instrução dada pelos rabinos aos seus discípulos, de acordo com

Schulz8, não se limitava de fato ao campo teórico; pelo contrário, seu método preferido de

ensinar preocupava-se de preferência com a prática da Torá. A posição do discípulo era

análoga a de um servo: ele desempenhava na casa do rabi quase todas as tarefas que se faziam

necessárias. Este tipo de serviço era, muitas vezes, mais importante do que o estudo da Torá.

Na sociedade judaica da época de Jesus o doutor da Lei ocupava uma posição de

elevado prestígio. Isso provinha da dignidade divina da Torá. Os discípulos dos doutores não

se atreviam a andar ao lado dos mestres, mas seguiam a certa distância, deixando clara a

posição de superioridade do mestre. O doutor da Lei deveria, no entanto, buscar reunir em seu

entorno o maior número possível de discípulos, instruindo-os para que eles, um dia, se

tornassem também mestres.

Documentos rabínicos da época cristã prescrevem, segundo Schulz, que só um

discípulo que tivesse recebido instrução regularmente e escalado todos os graus até a

ordenação é que poderia ocupar o cargo de mestre da Lei, com a autoridade que esse cargo

trazia consigo9.

O lugar oficial para a educação dos discípulos era a casa do mestre. Durante as lições,

tanto o mestre como os discípulos permaneciam sentados. A forma de transmissão era o

diálogo, suscitado geralmente por algum questionamento, por parte sempre do discípulo.

6 Cf. KITTEL, G. avkolouqe,w in: KITTEL, G. (ed.) Theological dictionary of the new testament. Vol. 1. Michigan: Eerdmans, 1977. p. 211. Para Kittel, yrex]a; %l;h' pode ser aplicado para paixão erótica ou amor (cf. Pr 7,22). 7 Cf. KITTEL, in. TDNT. p. 211. 8 SCHULZ, A. Discípulos do Senhor. São Paulo: Paulinas, 1969. p. 19. 9 SCHULZ, p. 20.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

73

Lembra Schulz que a instrução era proporcionada também através de comparações,

que geralmente terminavam com alguma pergunta. A discussão entre alunos fazia parte da

prática didática no judaísmo. O mestre, muitas vezes, era interpelado pelos discípulos com

perguntas densas e enigmáticas. O meio de defesa preferido consistia em citar trechos das

Escrituras a fim de se tentar resolver os problemas10.

No NT o termo avkolouqe,w tem dois importantes significados: a) fazer caminho com

alguém, acompanhar; b) ir atrás de, ir em seguimento.

O termo avkolouqe,w é usado 59 vezes nos Sinóticos, 18 vezes em Jo, 4 vezes em At, 1

vez em Paulo, 6 vezes no Ap. Portanto, está presente nos escritos próximos ao mundo

rabínico, que vivenciava a cultura mestre-discípulo11. O grande número de citações demonstra

a importância deste vocábulo para o NT e os cristãos da primeira geração.

Os sujeitos de akolouthein são normalmente pessoas; o objeto de akolouthein é sempre

uma pessoa ou grupo de pessoas. Isto se aplica também ao uso absoluto do verbo,

principalmente no particípio (Mc 8,10; Mc 3,7; 10,32; 11,9). Aquele a quem se segue, está em

dativo. No entanto, em sentido semitizante, pode dizer-se também avkolouqe,w o;pίsw com

genitivo (Mc 8,34; Mt 10,38). Nos enunciados a cerca do seguimento de Jesus há que se

diferenciar dois grupos. Tão somente no caso dos discípulos pode-se falar propriamente de

seguimento. A multidão segue (por algum tempo) Jesus em seu caminho, mas (geralmente)

não vai em seguimento de Jesus (Mc 2, 15; 3,7)12.

O termo técnico rabínico yrex]a; %l;h', que pode ser traduzido em grego por e..;rcesqai.

o.pi.sw ou άkolouqein é aplicado aos discípulos de Jesus, sendo até, muitas vezes, sinônimo de

“ser discípulo”. O verbo “seguir” serviu, em muitos momentos do NT, como imagem para

designar o maqhtής (cf. Jo 1,40.43)13.

Segundo Kittel, a pesquisa de status mostra que o termo avkolouqe,w, no seu significado

mais abrangente, expressa a Sequella Christi14. Além de se referir à relação do discípulo com

10 SCHULZ, p. 21. 11 Cf. TEPEDINO, A. M. A. L. Discipulado de iguais: Um estudo sistemático-pastoral sobre o discipulado das mulheres nos evangelhos. Rio de Janeiro: PUC-Rio ( Dissertação de Mestrado), 1986. p. 29. 12 Cf. SCHNEIDER, G. avkolouqe,w. In: BALZ, H.; SCHNEIDER, G. Diccionario Exegetico del Nuevo Testamento. Vol. I. Salamanca: Sígueme, 1996. p. 147. 13 Cf. SCHULZ, p. 33 (cf. nota 1). 14 Cf. KITTEL, in TDNT. p. 212.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

74

Jesus é também um termo utilizado para designar a vivência da fé do discípulo, seguidor de

Jesus.

Portanto, faz-se necessário observar que a expressão avkolouqe,w encontra-se no NT

apenas em forma de verbo e nunca como substantivo, avkoloύqesi/j/akolouqia, pois este verbo

caracteriza ação e não conceito15. O termo “seguir”, nos quatro evangelhos, expressa relação

concreta com o Jesus terreno, embora nunca se desvinculando da fé pascal.

No Evangelho de Marcos, é possível observar que Jesus escolhe doze homens, dentre

o grupo dos que o seguiam (3,13-19). Convida-os para viverem em sua companhia e o

seguirem. Os discípulos seguem Jesus em suas idas e vindas (6,1; Cf. Mt 8,23; Lc 22,39),

desempenham serviços e recebem instruções na “casa do mestre”. Os não-discípulos de Jesus,

que também o reconhecem como mestre, vêm pedir-lhe conselho (12,28-34), o envolvem em

disputas, determinadas, às vezes, por seu próprio comportamento, às vezes, pelo de seus

discípulos.

A partir dos relatos vê-se que Jesus toma a iniciativa de chamar os discípulos com

plena autoridade, assim como Deus chama os profetas no AT (cf. Jr 1,4-7; Is 8,11-18). O

discípulo deixa tudo para andar atrás de Jesus (cf. Mc 1,18; 10,28; Lc 5,11; Mt 8,19). Os

discípulos são chamados a participar do trabalho de Jesus, associando-se à vida missionária e

também a sofrer o mesmo destino de Jesus (Mc 10,22-45)16. As condições para o discipulado

de Jesus são: renunciar a si mesmo e tomar sua cruz.

Constata-se que o discipulado significa adesão pessoal a Jesus num sentido que denota

relação de vida (8,20), exigindo a entrega total até a morte.

O eixo semântico-teológico avkolouqe,in pode ser percebido 17 vezes no Evangelho de

Marcos. No convite feito a Levi (2,14: avkolou,qei moi) se encontram três elementos

fundamentais de avkolouqe,n: 1) adesão inicial, 2) atividade e 3) proximidade contínua. De fato,

a fórmula com que Jesus o convida espera uma resposta permanente (avkolou,qei: imperativo,

presente). A resposta imediata de Levi (hvkolou,qhsen auvtw/|: aoristo ingressivo) denota

aproximação, e conota a duração e a futura atividade (cf. 1,18: hvkolou,qhsan auvto,n). A

resposta permanente, segundo o convite de Jesus (2,14), é expressa no indicativo imperfeito

15 KITTEL, in. TDNT. p. 212. 16 Cf. TEPEDINO, p. 31.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

75

hvkolou,qoun (2,15), cujo sujeito telw/nai kai. amartwloi., “cobradores e pecadores”,

prolongando a ação do discípulo Levi17.

Os discípulos convidados pelo mestre Jesus, são chamados a deixar de lado a vida

antiga, o que não é uma condição prévia, mas uma conseqüência lógica (cf. Mc 1,16ss; Mt

9,9). Em Mc 10,17ss, é possível averiguar a exigência do mestre Jesus que convida o jovem

rico. Este, por sua vez, “retrocede ante o oferecimento inaudito da vida eterna e se afunda na

tristeza de seus bens terrenos”18. Ele não conseguiu abandonar aquilo que o amarrava para

seguir Jesus.

O discípulo de Jesus é convidado à dinâmica de segui-lo. “Caminhar atrás dele é fazer

das suas opções a orientação da vida”19. O verbo grego avkolouqein significa manter a relação

de proximidade com alguém, graças à atividade de movimento, subordinado àquela pessoa.

Tem, pois, um duplo sentido: estático relacional ou de proximidade e outro dinâmico de

movimento constante. Parte-se de um estado de proximidade que é mantido por meio do

movimento subordinado20.

Para o seguimento supõe-se um caminho, όdo,ς, que pode ser entendido como “modo

de vida”, “proceder” ou “conduta” (Mc 1,2; 8,27; 9,33b.34; 10,32.52). Tal caminho comum é

marcado pelo personagem protagonista que convida ao movimento de seguir. Em sentido

metafórico, expressa a coincidência do modo de vida. A relação de proximidade se converte

em relação de semelhança, ou seja, de discipulado.

O caminho de Jesus21 (8,26-10,52), por sua vez, o conduz a Jerusalém (10,32: vHsan

de. evn th/| odw/| avnabai,nontej eivj ~Ieroso,luma) onde há de sofrer até a morte (10,33s). Este é

também o destino do discípulo de Jesus (8,34: avra,tw to.n stauro.n auvtou/: carregar a sua cruz).

Seguir Jesus significa, portanto, assemelhar-se a ele pela prática de um modo de vida, de uma

atividade, que se insere no movimento subordinado, que tem, no fim do caminho, um

desfecho como o de Jesus. A missão está, portanto, incluída no seguimento22.

17 MATEOS, J. Los “doce” y otros seguidores de Jesus en el evangelio de Marcos. Madri: Cristandad, 1982. p. 46. 18 BORNKAMN, Jesus de Nazaré. Petrópolis: Vozes, 1976. p. 156. 19 TEPEDINO, p. 28. 20 Cf. MATEOS, p. 44. 21 No Evangelho de Marcos, a imagem de Jesus é constituída a partir do caminho (principalmente para Jerusalém 8,27 -10,52). Cf. MANICARDI, E. Il camino di Gesù nel vangelo di Marco. Rome: Biblical Institue press, 1981. p. 44. 22 Cf. MATEOS, p. 44.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

76

Fundamentalmente, o seguimento de Jesus só se faz compreensível como serviço à realidade

do Reinado de Deus.

Faz-se necessário agora buscar o sentido bíblico-teológico do termo mathētēs, que

pode ser traduzido por “discípulo”. Este termo, como já explicitado antes, pode ser

considerado elo entre os eixos propostos neste estudo. Para se entender os eixos akolouthia e

diakonia faz-se necessário explicitar o eixo mathētēs. Há que se considerar que todo caminho

de seguimento se faz a partir de alguém que se dispõe a caminhar. No caso, o discípulo é

aquele que se põe a seguir o caminho do mestre Jesus e se dispõe a fazer a experiência

daquele que o chamou: tomar sua cruz e o seguir, como servo obediente à voz do mestre que o

chamou.

3.1.2 Mathētēs: “discípulo”

No grego, a terminologia mathētēs ou manthanō23 designa a pessoa que se vincula à

outra para apropriar-se de seus conhecimentos e experiências: um aprendiz, um estudante. Só

se pode ser um mathētēs se existe um didaskalos, um mestre ou um professor ao qual o

discípulo tem de pagar honorários24. Não existe mestre sem discípulos e nem discípulos sem

mestre. Portanto, “não existe discipulado sem aquele que chama ao discipulado”25.

No AT, a palavra “mestre” não é muito freqüente, pois o único mestre é YHWH, em

cujo nome falavam os profetas. Segundo J. Mateos, a relação mestre-discípulo é desconhecida

no AT, nem sequer os profetas têm discípulos, senão servidores ou acompanhantes26. No

entanto, a palavra lamad foi utilizada com muita freqüência, significando o desejo de aprender

a orientar a vida segundo a vontade de Deus. O povo todo era sujeito do “aprender”. A

consciência predominante na comunidade do AT era a da eleição de Deus. Daí que o termo

mathētēs está praticamente ausente nos LXX, onde aparece só como leitura variante em Jr

13,21; 20, 11.

Para o judaísmo rabínico, o termo talmid serviu para expressar o vínculo, quase de

escravidão, entre o discípulo-mestre.

23 Cf. MÜLLER, D. maqhtής. In: COENEN, L.; BROWN, C. DITNT. Vol 1. p. 582. Processo mediante o qual a pessoa adquire o conhecimento teorético. A palavra desempenha papel fundamental na formação do discípulo. 24 Cf. MÜLLER, O. seguimiento. In: COENEN, L.; BEYREUTHER, E.; BIETENHARD, H. Diccionario teológico del Nuevo Testamento. Vol. IV. Salamanca: Sígueme, 1990. p. 176. 25 BARTH, K. Chamado ao discipulado. São Paulo: Fonte editorial, 2006. p. 23. 26 Cf. MATEOS, p.22.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

77

O termo mathētēs encontra seu centro de gravidade no Novo Testamento. Aparece 250

vezes27 e se refere aos “homens” que rodeavam Jesus enquanto mestre. À primeira vista, a

manifestação de Jesus em público na Palestina não traz nenhuma novidade. Da mesma forma

que os escribas, Jesus reuniu em torno de si um grupo de discípulos. A palavra “discípulo”, a

tradução de maqhtής, é um termo que indica os seguidores de Jesus, sobretudo os Doze28.

Para Schulz, a tradição primitiva concretizada nos Evangelhos revela claramente que

Jesus toma propositalmente o modelo das relações mestre-discípulos, peculiar entre os

rabinos, deixando que o chamem de Rabbi, ou seja, “mestre”29. O termo hebraico Rabbi, título

de respeito para dirigir-se aos mestres da Lei, pode ser encontrado três vezes em Mc, duas

vezes presente na boca de Pedro (9,5; 11,21) e uma vez de Judas Iscariotes (14,45). O termo

aramaico Rabbuni está presente na boca do cego curado em 10,5130.

O termo didάskaloς, correlativo de maqhtής, pode ser encontrado doze vezes no

Evangelho de Marcos; sete vezes na boca de personagens que pertencem à cultura semita, mas

que não são do círculo de Jesus (5,35 os que vêm à casa do chefe da sinagoga; 9,17 o pai do

menino epilético; 10,17.20 o rico que se aproxima de Jesus; 12,14 fariseus e herodianos;

12,19, saduceus; 12,34, um letrado). Na boca dos discípulos aparece quatro vezes (4,38, os

que acompanham Jesus na barca, se professam discípulos; 9,38 João; 10,35 Tiago e João; 13,1

um de seus discípulos). O termo didάskaloς está presente também na boca de Jesus, para

designar-se a si mesmo como mestre (14,14).

Segundo Aldana, mathētēs, de modo geral, designa um escolar que acompanha o

mestre para ser instruído por ele; nos Evangelhos, porém, esta palavra se refere ao pequeno

grupo de discípulos que seguem Jesus31. A designação οί μαqetai.. está presente explicitamente

em Marcos 42 vezes. Sendo um plural articulado; pode ser aplicado aos discípulos de João

Batista, três vezes (2,18 duas vezes; 6,29) e aos fariseus, uma vez (2,18). De acordo com

Mateos, das 42 vezes que Mc aplica o termo mathētēs, 37 vezes ele o utiliza com o pronome

pessoal genitivo possessivo auvtou/ (οί μαqhtai, auvtou/ - 2,15.16.23; 3,7,9; 5,31; 6,1.35.45; 7,2;

27 Cf. RENGSTORF, H. W. maqhtής. In: KITTEL, G. (ed.) Theological dictionary of the new testament. Vol. IV. Michigan: Eerdmans, 1977. p. 441. 28 Para maior esclarecimento da distinção e semelhança entre os Doze e os discípulos, Cf. MATEOS, p. 09-21. 29 Cf. SCHULZ, p. 19. 30 Cf. MATEOS, p. 23. p. 449. 31 Cf. ALDANA, H. O. M. O discipulado no evangelho de Marcos. São Paulo: Paulus-Paulinas, 2005. p. 11.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

78

8,4.6.10.27.33.34; 9,18.28.31; 10,46; 11,1.14; 12,43;13,1 14,13.32). A leitura de οί μαqhtai,

sem possessivo, se encontra como variante em 6,41; 7,17; 8,1; 9,14; 10,10.13.24; 14,12.16.32

O termo mathētēs pode ser encontrado pela primeira vez, no plural, em Mc 2,15

(maqhtai/j auvtou/) logo após o chamado feito a Levi (2,14: akolou,qei moi), atribuído ao grupo

seguidor de Jesus, que compartilhará da mesma mesa com os cobradores de impostos e com

os pecadores.

A característica especial dos discípulos de Jesus é a chamada, κλήσις, ou seja, a

convocação para o seguimento33. O aspecto de sequella aparece em todos os relatos que falam

daqueles que seguem Jesus. “A resposta do discípulo não é uma confissão oral da fé em Jesus,

mas sim um ato de obediência”34. Jesus é quem chama, convoca. O publicano (Mc 2,14) o

segue. Neste encontro é testemunhada a exousia, “poder-autoridade”35 de Jesus, que é

incondicional, imediata e sem explicações. Bonhoeffer afirma que o discípulo é arrancado de

sua relativa segurança de vida e lançado à incerteza completa; de uma situação previsível e

calculável para o imprevisível e fortuito; do domínio das possibilidades finitas para o domínio

das realidades infinitas36.

Em dados momentos Jesus se dirige explicitamente às pessoas com as palavras “vem e

segue-me”, como no caso de Pedro e André (cf. Mc 1,17) ou quando chama Levi (cf. Mc

2,14). Tais passagens são marcadas pela iniciativa do mestre Jesus37.

Portanto, o chamado ao discipulado é sempre uma iniciativa de Jesus. O discípulo

chamado por Jesus é convidado a entregar-se sem reservas (Mc 3,31-35). A relação com Jesus

é permanente: os discípulos estão ligados pela fé e obediência à pessoa de Jesus. O elemento

decisivo no discipulado não é a adesão intelectual, mas o acolhimento voluntário da palavra

do mestre, o desejo de colocar em prática a palavra.

Jesus, ao chamar os discípulos, torna-se ao mesmo tempo o protótipo do “caminho do

discípulo”. O seguimento e o “estar com Jesus” devem ser entendidos como o desejo do

32 MATEOS, p. 21. 33 Cf. RENGSTORF, in: TDNT, p. 449. 34 BONHOEFFER, D. Discipulado. 9. ed. São Leopoldo: Sinodal, 2004. p. 20. 35 Mc fala muitas vezes que Jesus dispõe o poder-autoridade sobre os espíritos imundos (1,27; 3,15), sobre o sábado (2,28), sobre o pecado (2,10). “Por trás disso está o único a quem pertencem o poder e a autoridade, Deus, e este os outorga ao ‘filho do homem’, que é Jesus” 8,31 (KONINGS, J. Marcos. São Paulo: Loyola, 1994. p. 16). Trata-se, portanto, de um poder autorizado por Deus, um poder plenipotenciário. 36 Cf. BONHOEFFER, p. 21. 37 Cf. TEPEDINO, p. 19.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

79

discípulo de maior conformidade com o caminho e com o pensamento do mestre Jesus. O

contraste entre um seguimento puramente material e o verdadeiro seguimento aparece em Mc

9,33b.34, no qual os discípulos “no caminho” (9,33b.34: evn th/| odw/|), que é o de caminho de

Jesus e cujo desfecho será a morte (9,31), discutem sobre quem é “maior” (9,34: ti,j mei,zwn).

Ainda que acompanhem Jesus no caminho, na realidade não o “seguem”38.

Assim, poderia se afirmar que os termos maqhtής e akolouqein estão intrinsecamente

relacionados, tal como um sinônimo. Não se pode entender o discípulo longe da dinâmica do

seguimento e nem o seguimento sem o discípulo. Ambas as realidades se correlacionam na

dinâmica do caminho. Para Schulz, o conceito “seguir” conta com o sinônimo “discípulo”,

ambos não podem ser entendidos ilhados. Esta afirmação Schulz justifica a partir de Mc 8,34:

“Se alguém quiser me seguir, renegue-se a si mesmo, tome a sua cruz e me siga”39. Não se

pode considerar discípulo quem não se coloca no movimento e no caminho do mestre.

Neste sentido pode-se levar em consideração termo dw,deka, que pode ser traduzido por

“os Doze”, usado no Evangelho para designar os apóstolos nomeados por Jesus (cf. Mc

3,14ss.). Jesus nomeou “os que ele queria” para o seguimento, “os quais responderam

individualmente ao seu chamado”. O termo Doze pode estar relacionado aos dados do AT e

do judaísmo, aludindo a Israel como um todo (as doze tribos) ou, ainda, a doze indivíduos

designados por Jesus para a missão de constituir o Israel definitivo. O novo Israel não se

constitui por uma pertença étnica, mas por uma adesão pessoal a Jesus, expressa na aceitação

de segui-lo40.

Tepedino considera que, para se compreender a condição de maqhtής de Jesus, é

importante ter presente que tal convite inclui ainda um outro chamado: à diakonia, ou seja, ao

serviço41. Jesus afirma que os que forem atrás dele serão constituídos pescadores de homens

(Mc 1,17). Os pescadores, chamados ao seguimento de Jesus, entendiam claramente qual a

tarefa eram convidados a realizar; para eles, era comum pescar. Agora são chamados a pescar

os homens, os que necessitavam de salvação. Os discípulos são chamados a atrair os homens

para o Reino de Deus. A grandeza do discipulado está no serviço aos irmãos (10,43). O

primeiro no discipulado é aquele serve, que vive a diakonia do Reino. “Quem dentre vós

38 Cf. MATEOS, p. 44. 39 Cf. SCHULZ, p. 50. 40 O termo Doze denota em primeiro lugar a totalidade de Israel escatológico, representando a continuação por doze nomes. Na LXX, este termo indicaria a constituição e a criação do povo de Israel. A questão dos Doze é bastante controvertida e foge ao interesse do presente trabalho (cf. MATEOS, p. 72). 41 Cf. TEPEDINO, p. 22.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

80

quiser ser o primeiro, será servo de todos” (10,44). Isso porque o próprio Jesus, o Filho do

Homem, não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate de muitos

(10,45). Jesus, o servo de todos, é aquele que anuncia o Reinado de Deus, testemunhando com

sua vida que anunciar é servir. Portanto, o mestre que chama os discípulos a servir é ao

mesmo tempo o paradigma do serviço.

Diante da perspectiva aberta pela análise do termo akolouthein, seguido do eixo

articulador e sinonímico mathētēs faz-se necessário compreender o sentido teológico e bíblico

da expressão diakonia, ou seja, serviço.

3.2 Diakonein: “servir”

O termo serviço, tanto nas línguas clássicas quanto nas modernas, foi sempre

estigmatizado e desvalorizado; carregando uma conotação humilhante, este termo

correspondeu sempre à relação entre alguém que serve e outro que é servido, denotando a

relação senhor e servo. Quem serve está em relação de dependência opressiva, quem é

servido, geralmente, é considerado o opressor.

Na Grécia antiga, as tarefas consideradas indignas do homem livre eram deixadas para

o servo. No mundo desenvolvido de hoje, os serviços menos importantes são deixados para os

estrangeiros, àqueles que se submetem a qualquer situação para sobreviverem, haja vista os

brasileiros no exterior.

Em grego há quatro expressões que podem exprimir os diversos matizes do termo

serviço. A primeira é leitourgeō, que significa o serviço voluntário na comunidade política,

podendo também indicar o ministério cultual do sacerdote. A segunda expressão, latreuō, que

pode designar a atitude interior do homem religioso (oração) ou ainda servir para salário. A

terceira expressão, therapeuō, pode ser utilizada para indicar o serviço espontâneo. E a quarta

expressão, diakoneō, para indicar a ajuda pessoal e não só físico-material aos outros

homens42.

Para o grego profano, diakonέw significa: 1) servir a mesa (como algo indigno e

desonroso para o homem livre); 2) ganhar o sustento (passando para o conceito genérico de

serviço); 3) servir (ao bem comum, por exemplo: na pólis de Platão ou a uma divindade,

convertendo-se em tarefa, sendo considerada uma atividade digna do homem livre).

42 Cf. HESS, K. servicio. In: COENEN. L.; BEYREUTHER, E.; BIETENHARD, H. Diccionario teológico del Nuevo Testamento. Vol IV. Salamanca: Sígueme, 1990. p. 212-216. Também Cf. BEYER, H. W. Diakonέw. In: KITTEL, G. FRIEDRICH, G. Grande Lessico del Nuovo Testamento. Vol. II. Brescia: Paideia, 1966. p. 957.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

81

Segundo Kittel, a entrega espontânea da própria pessoa a serviço do próximo

permaneceu como uma prática desconhecida no ambiente grego. Para eles, a meta mais

elevada do ser humano era o desenvolvimento do indivíduo, em sua particularidade. O

substantivo diakonein poderia designar as atividades anteriormente descritas como também

significar serviço, ministério e função43.

O AT, na versão LXX, desconhece o vocábulo diakonέw. No entanto, o termo

diάkonoς aparece sete vezes, sempre designando o criado, o servo da corte (cf. Est 1,10).

No NT, o termo diakonέw aparece 36 vezes. 21 vezes nos Sinóticos, incluindo também

At, 3 no Evangelho de Jo, 8 vezes no corpus paulinum, 1 vez em Hb e 3 vezes na 1 Pe. A

palavra diakonia se encontrada uma vez só em Lc 10,40 e outras vezes em Hb 1,14; At 6,1;

1Ts 1,12, designando o serviço, a caridade e o ofício de ministro. O termo διάκονος,

“servidor”, é o que executa as atividades designadas por meio do verbo diakonέw e do

substantivo diakonία44.

O termo diakonέw ou “servir” ou “ministrar” é utilizado nos sentidos de: a) servir à

mesa: Cf. Mc 1,31// Lc 10,40; Jo 12,2; Lc 17,8; At 6,2; b) assistência às pessoas: Mc 1,41//

Lc 8,3; Mt 4,11; 25,44; c) na comunidade: 2Tm 1,18; Hb 6,10; 1Pe 4,10.11; 1Tm 3,10.13; d)

relação com a coleta em favor dos “santos” de Jerusalém: Rm 15,25; 2Cor 8,19; e) para

expressar o anúncio do evangelho: 2 Cor 3,8; 1Pe 1,12; f) ao se referir a Jesus, designando a

humilhação e entrega na paixão e morte: Mc 10,45; Lc 22,26.27; g) seguimento: Jo 12,25. 26;

(Se alguém me serve, siga-me). Também em Lc 12,37, significando a inversão escatológica

da norma vigente, o Senhor servirá o servo45.

Em Marcos, o termo aparece pela primeira vez em 1,13.31 para relatar o serviço

(diēkonei) prestado pela sogra de Pedro, logo após ser curada por Jesus de uma febre. A idéia

de serviço ocupa um lugar destacado pela série de sentenças, acentuadas pareneticamente,

encontradas em 10,42-45. O serviço é, indubitavelmente, a atitude fundamental, o elemento

essencial do seguimento46. Isto pode ser visto pela disposição redacional da série de

sentenças, que se conectam com o terceiro anúncio da paixão (10,33s), e pela cena em que se

reclamam os postos de honra (10,35-40). Esta disposição corresponde exatamente à maneira

43 Cf. BEYER, in. GLNT, p. 957. 44 Cf. WEISER, A. diakonέw in: BALZ, H.; SCHNEIDER, G. Diccionario Exegetico del Nuevo testamento. Vol. I. Salamanca: Sígueme, 1996. p. 912. 45 Cf. BEYER, in. GLNT. p. 958. 46 Cf. STEGEMANN, E.; STEGEMANN, W. p. 423.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

82

em que Marcos havia procedido já, quando do segundo anúncio da paixão (9,31. 35). “Tanto

nesta última passagem como na outra, se aborda o mesmo problema existente na comunidade

marcana e em seus dirigentes: o afã de honras e o desejo de poder”. Tanto numa passagem

quanto noutra, o evangelista tenta resolver este problema da mesma maneira, orientando

através das palavras de Jesus e de suas obras, de seu serviço, elaborando, assim, o

chamamento para seguir Jesus em sua cruz47.

Pode-se ainda afirmar que o vocábulo grego diakonίa passa, no NT, por algumas

transformações semânticas. Este termo pode significar: a) ministrar o serviço (à mesa): At

6,1-2; Ap 2,19; b) serviço de coletas: At 11,29; 12,25. Tal serviço de coletar donativos para os

irmãos necessitados demonstra a koinōnia, a comunhão solidária (cf. 2Cor 9,13; At 2,44); c) a

tarefa da pregação da palavra ou serviço do evangelho: At 6,4; 2 Tm 4,11. A diakonia à

comunidade corresponderia à liturgia de ação de graças do Cristo, que se imolou por todos. O

decisivo na comunidade não é o serviço do altar, mas o serviço aos irmãos, exigência que

procede do serviço ao altar48.

O termo semântico diάkonoς49 (cf. Mc 9,35; 10,43), a partir da teologia de Paulo, se

converte em expressão do trabalho evangélico (cf. Rom 11,13; 2Cor 4,1; 6,3). A comunidade

eclesial é agora, com seus membros, servidora. No entanto, é a partir de 2Cor 3,6 que o termo

diάkonoς adquire o sentido de servidor da nova aliança. Paulo é agora o servidor de Cristo,

que continua a missão de Cristo no interior da comunidade e se preocupa com a salvação dos

homens fora da mesma. Ele se intitula servidor do Evangelho (Ef 3,7; Cl 1,23), servidor da

nova aliança (2Cor 3,6), servidor de Cristo (2Cor 11,23; Cl 1,7; 1Tm 4,6), servidor de Deus

(2Cor 6,4) e servidor da comunidade (Cl 1,25).

Também os companheiros de Paulo são chamados de diάkonoi (Ef 6,21; Cl 1,7; 4,7;

1Ts 3,2). São colaboradores (Rm 16,3.9.21; 2Cor 8,23). Em At o termo diάkonoi é aplicado

por Lucas aos sete homens que aparecem ao lado dos apóstolos, encarregados da assistência

aos pobres da comunidade, mas que possuíam também funções espirituais (cf. Estevão, At

6,8-10 e Filipe, At 21,8)50.

47 SCHNEIDER, in. DENT. p. 916. 48 TEPEDINO, p. 45. 49Em Mc 9,35 e 10,43-45 decorre que “servir” caracteriza um comportamento exemplar dos discípulos de Jesus – como imitação do comportamento de Jesus, – tendo, portanto, uma conotação perfeitamente positiva no contexto do seguimento. Cf. STEGEMANN, E.; STEGMANN, W. p. 423. 50 HESS, in. DTNT, p. 214.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

83

Originariamente, as diversas funções no interior da comunidade podiam ser

denominadas “serviços” (cf. 1Cor 12,5) e os que as realizavam eram chamados servidores

(1Cor 3,5; Col 1,25). O “serviço”, na comunidade cristã, gradativamente vai se transformando

em ofício, em uma função desempenhada sob a supervisão de outro membro da comunidade:

o epíscopo.

É possível encontrar também no NT mulheres servidoras, termo que poderia ser

entendido como diakonia feminina (cf. Rom 16,1; 1Tm 3,11). Rm 16,1 refere-se neste

sentido, a Febe, “que serve (diάkonon, acusativo masculino) na igreja que está em Cencréia”.

A palavra diάkonoς é atribuída a quem cumpre a vontade de Jesus (cf. Jo 12,26).

Analogamente pode ser atribuída a quem cumpre ordens na comunidade cristã: se Febe era

diaconisa, ela não ocupava uma posição de destaque na comunidade de Cencréia.

Independente de ser ou não diaconisa, Febe era uma cristã dedicada que servia a autoridade

daquela congregação. Paulo também utiliza a palavra σuνεργoύς para saudar Priscila; tal

termo poderia ser traduzido por “cooperadores”, referindo-se também a Áquila (cf. Rom

16,3). Em Rm 16,6.12 Paulo saúda as mulheres que trabalharam (kopiw,saj) por ele ou pelo

Senhor.

Na teologia paulina, o conceito de diakonia alargou seu horizonte. De acordo com

Hess, a obra da salvação, na pregação de Paulo, pode ser considerada diakonia de Deus em

Cristo entre os homens, cujos realizadores são os discípulos. Cristo irrompe com o serviço do

espírito da justiça, da reconciliação (2Cor 3, 8.9). Neste sentido o termo diάkonoς se converte

em expressão específica do trabalho evangélico (cf. Rm 11,13; 2Cor 4,1). A comunidade,

segundo Paulo, é convidada a ser no mundo um organismo de serviço (Ef 4,1-16) que se

edifica a partir de seus membros, os “servidores” e se orienta em direção do Senhor que

vem51.

O NT apresenta Jesus como paradigma de servidor. Ele se coloca no meio da

comunidade dos discípulos como aquele que serve (cf. Lc 22,27). Servir, para Jesus, não é

uma simples metáfora; é, antes de tudo, uma exigência para o caminho do discipulado. Jesus

veio para servir e dar sua vida em resgate de muitos (cf. Mc 10,45). A essência da vida de

Jesus é servir, ato de “existir-ser” para os outros. Nesta perspectiva o termo serviço adquire

grande profundidade teológica, pois é Jesus o modelo de serviço para os discípulos e

discípulas da comunidade cristã. Servir, de acordo com Tepedino, deve ser uma atitude

51 HESS, in. DTNT,. p. 214.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

84

voluntária do discípulo que ama e que é chamado a doar a vida pelos irmãos, assim como fez

o mestre Jesus52.

A diakonia de Jesus consiste em inaugurar e anunciar o Reinado de Deus. O núcleo da

mensagem de Jesus é o euangelion com seu conteúdo: “o Reinado de Deus está próximo”. Tal

expressão está presente nove vezes no Evangelho de Marcos (cf. 1,15; 4,11; 4,26; 9,1. 47;

10,14; 12,34; 14,25; 15,43)53. O anúncio do Reinado de Deus é o serviço de Jesus. Sua missão

é servir aos homens a Boa-Nova da salvação: a soberania, o poder e o amor de Deus. A

relação de Jesus com o discípulo é marcada pela presença deste anúncio.

Destarte o discípulo é chamado a continuar o anúncio do mestre Jesus. A amizade

discípulo-mestre não consiste em mera contemplação estática, mas na dinâmica do anúncio do

Reinado que está próximo. A participação dos discípulos na diakonia de Jesus encontra sua

máxima expressão no termo avposte,llw, ou seja, o “enviado” para anunciar o Reino.

Jesus envia os Doze discípulos, dois a dois (Mc 6,7), de acordo com a forma judaica

(prescrita na Tora), que pede duas testemunhas, pois uma só não é acreditada (cf. Dt 17,6;

19,15). Os Doze serão chamados de apóstolos ou “enviados” uma vez só (6,30). Este termo

poderia se referir à missão (“os que foram enviados”) e não somente ao nome de um

ministério. Para a narrativa marcana, os Doze têm sentido em si mesmo. Podendo considerá-

los o fundamento do Novo Israel: os patriarcas do novo Povo de Deus. Segundo Gnilka, o

novo povo deve congregar-se em torno dos Doze54.

Aos Doze, Jesus confia-lhes a missão de proclamar o Reinado de Deus (Mc 3,14 i[na

avposte,llh| auvtou.j khru,ssein). Esta convocação é claramente um convite ao serviço, para

Marcos. Aí está a gênese do serviço ao Reino, proclamado e inaugurado por Jesus. Os Doze e

os demais “discípulos”55 são chamados a continuar o serviço de Jesus, mesmo após sua

morte-ressurreição. Quanto ao anúncio de Jesus vivente e ressuscitado na comunidade,

certeza é que o anúncio do Reinado de Deus não está fadado ao fracasso, mas que pode ser

continuado pelos discípulos na comunidade eclesial.

À guisa de conclusão, pode-se afirmar que os dois primeiros eixos, akolouthia e

diakonia não se entendem sem o eixo articulador mathētēs. Haja visto que o chamado que

52 TEPEDINO, p. 44. 53 SCHILLEBEECKX, E. Jesus: la historia de um viviente. Madrid: Cristandad, 1981. p. 128. 54 Cf. GNILKA, J. Teologia del nuevo testamento. Madri: Trotta, 1998. p. 183. 55 Para uma maior compreensão dos termos Doze e “discípulos” Cf. MATEOS, p. 26. O autor discute a possibilidade de passagens onde os “discípulos” podem ser identificados com “os doze”.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

85

Jesus realiza está direcionado a alguém ou a alguns, os “discípulos” e as “discípulas”. O

chamado ao seguimento e ao serviço pode ser entendido na perspectiva da alteridade, há

sempre um outro face ao eu que chama a seguir e a servir. Jesus é aquele que chama; ele

chama à experiência de servir e seguir. A resposta ao convite vem da parte daqueles que são

chamados. A resposta é dada no caminho e na práxis do servir.

3.3 Análise narrativa de Mc 15,40-16,8

Passamos agora à análise narrativa56 da perícope de Mc 15,40-16,8. Esta se presta bem

para a finalidade por se tratar de uma narrativa57 breve e, concomitantemente, como se

observará, portadora de grande riqueza literária58.

Seguimos os seis passos de análise narrativa indicados por Daniel Marguerat59. Será

necessário também revisitar a exegese histórico-literária de Mc 15,40-16,8, retomando a

estrutura composicional da perícope em três cenas, que observadas em conjunto, formam uma

“intriga unificada”60 e constituem o clímax61 narrativo da obra marcana.

A análise narrativa, incluindo uma dimensão pragmática62, considera os recursos

utilizados pelo narrador do Evangelho e observa também os efeitos produzidos pelo texto

56 “A análise narrativa se poderia definir também ‘semântica do texto’, pois estuda principalmente dois eixos semânticos: as ações (eixos semânticos das palavras de ‘agir’) e os agentes” (EGGER, p. 116). 57 Fazemos nossa a observação de Pesch: a perícope de Mc 16,1-8 “é um texto narrativo não-autônomo, orientado para um contexto, que não pode ter sido uma unidade tradicional isolada (como supõe a maioria dos estudiosos); evidentemente esta perícope se encontra conexa com o precedente contexto narrativo da história da paixão e está afixada à história da sepultura (15,42-47) constituída por esta história” (PESCH, p. 757). Cf. Também AZEVEDO, W. O. Comunidade e missão no Evangelho de Marcos. São Paulo: Loyola, 2002. p. 19. 58 Na “intriga” ou na arte de tecer e narrar o Evangelho, o autor apresenta algumas terminologias que dão sentido a obra em sua totalidade. As palavras não são apenas somas de letras, mas mundos de possibilidades. Poderia se afirmar que tais palavras associadas formam as intrigas, que se constituem episódios e formam, por fim, a intriga total. No episódio seria possível ver o todo da narrativa e no todo da narrativa ver os episódios que a formam. O mundo do texto é o mundo da narração proposto pelo narrador. O mundo da intriga é constituído por sistemas de valores e códigos de comunicação (cf. MARGUERAT, p. 4). 59 A análise narrativa pode se estruturar em seis etapas: 1) a intriga: como se articula o conjunto da narração; 2) gestão dos personagens: quem são e como são identificados? 3) focalização do narrador: como fatos e personagens entram na mira do narrador? 4) a temporalidade: que indicações são oferecidas para situar a narração no tempo? 5) o contexto: pano de fundo onde a narração é projetada; 6) o ponto de vista do narrador (MARGUERAT, p. 6). Estes passos são adotados para a análise da narratividade de outros livros bíblicos (cf. VITÓRIO, p. 85-106). 60 Há que se distinguir uma intriga episódica (micro-relato) de uma intriga unificada (seqüência ou macro-relato) Uma trama unificada engloba tramas menores, ou seja, micro-relatos. Há a colcha de retalhos que é formada pelos micro-retalhos. Sem os micro-retalhos não há a colcha, que pode ser o macro-retalho. Cf. MARGUERAT, D.; BOURQUIN, Y. p. 90. 61 Este relato se constitui o núcleo fundamental da exposição marcana. Cf. PESCH, p. 129. 62 Chamam-se pragmáticas, as leituras que pretendem buscar o efeito do texto no leitor, dotando-se de instrumental adequado para localizar no texto indícios pragmáticos, instruções de interpretação. Cf. MARGUERAT, D.; BOURQUIN, Y. p. 17.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

86

sobre o leitor. Analisaremos os recursos utilizados para costurar a trama que permitem ao

leitor entrar no mundo da narração63, na obra de arte produzida pelo autor. Estudaremos

também os textos no aspecto das ações/seqüências de ações narradas, dos agentes

introduzidos e das relações existentes entre eles64.

Quais são as intrigas episódicas, personagens, tempo narrativo, espaço vital e, por fim,

ponto de vista do narrador, encontrados na perícope de Mc 15,40-16,8? A intriga presente na

perícope segue uma clara construção narrativa. Pode-se observar que Marcos respeita a ação

transformadora da narrativa65.

Marcos elabora a intriga total com a soma de intrigas episódicas, ou seja, dos micro-

relatos associados ele forma o conjunto final da perícope. A redação final pode ser comparada

a uma obra teatral, entendida e estudada a partir das cenas sucessivas, que conduzem o leitor

ao clímax narrativo, finalidade da obra.

3.3.1 O texto

Reproduzimos aqui em forma sequencial a tradução instrumental66.

40 Havia também mulheres de longe observando, entre as quais Maria a Madalena, Maria, mãe de Tiago o Menor e de Joses e Salomé, 41 as quais, quando ele estava na Galiléia, o seguiam e o serviam, e outras muitas que com ele tinham subido a Jerusalém. 42 E já ao cair da tarde, como era dia de preparação, isto é, véspera do sábado, 43 tendo vindo José de Arimatéia, conselheiro respeitável, que também estava aguardando o Reino de Deus, cheio de coragem entrou junto a Pilatos e pediu o corpo de Jesus. 44 Pilatos admirou-se de que já estava morto e, convocando o centurião perguntou a ele se tinha morrido há muito tempo. 45 e, conhecendo do centurião, concedeu o cadáver a José. 46 E tendo comprado um lençol, tendo descido ele, envolveu-o no lençol e o colocou num sepulcro, que estava escavado na rocha, e rolou uma pedra diante da entrada do sepulcro. 47 E Maria a Madalena e Maria, de Joses, observavam onde ele era colocado. 1 E, transcorrido o sábado, Maria a Madalena e Maria, a <mãe> de Tiago, e Salomé compraram aromas a fim de ir embalsamá-lo. 2 E, muito cedo, no primeiro dia da semana, vão ao sepulcro, ao

63 Para Marguerat, entre a narrativa e o mundo da narrativa se interpõe a operação de leitura, pela qual o leitor constrói e habita o universo que lhe propõe o texto. Algumas questões são pertinentes para a análise narrativa: sobre quais elementos trabalha a leitura? Qual estratégia o narrador haveria construído para orientar a leitura? Qual a importância entre ditos e os não ditos do texto? Como o narrador faz conhecer seu sistema de valores? Por quais meios o narrador declara a adesão ou repulsão para com seus personagens. Cf. MARGUERAT, p. 1. 64 Egger distingue narrativa, história e descrição. Para ele, narrativa pode ser entendida como um texto que tem como elementos ações e agentes. A narrativa não considera a relação com a realidade (nem com a questão da historicidade). Para uma maior compreensão deste método, EGGER, p. 116-130. 65 Esta ação consiste na arte de descrever os fatos, conjugando-os ou subtraindo-os na narrativa, visando a formar a intriga, ou seja, a arte de narrar os fatos que configuram o mundo do texto. Cf. MARGUERAT, D.; BOURQUIN, Y., p. 73. 66 Esta tradução é encontrada no item 2.2.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

87

surgir o sol, 3 e diziam umas às outras: Quem removerá para nós a pedra da entrada do sepulcro? 4 E, ao levantar a vista, observaram que a pedra tinha sido removida, pois era muito grande. 5 E, entrando no sepulcro, viram um jovem sentado do lado direito, revestido de uma túnica branca, e ficaram cheias de espanto. 6 Ele porém disse-lhes: não vos espanteis. Buscais Jesus, o Nazareno, o crucificado? Ressuscitou, não está aqui. Vede o lugar onde o colocaram. 7 Mas ide dizer aos discípulos dele e a Pedro <que>: Ele vos precede à Galiléia. Lá o vereis, como ele vos disse. 8 E, saindo, fugiram do sepulcro, pois estavam tomadas de temor e de assombro. E nada disseram a ninguém, pois temiam.

O relato acima, que pode ser considerado o clímax narrativo de Marcos67. Trata-se do

desfecho da obra marcana (15,40-16,8). Este relato apresenta interessantes pontos de vista e

focalização.

3.3.2. A intriga

Aqui estudamos como se articula o conjunto da narração. Evidentemente o narrador é

onipresente. Ele opera a trama68, perpassando os fios narrativos visando a responder às

questões dos leitores. Ele está situado em todas as cenas, sua câmera fotográfica registra todas

as poses no cenário narrativo. Sua pena não pára no belo labor de escrever. Como onipotente,

o narrador “cria tudo quanto deseja, em função do projeto literário”, oferece aos leitores a

intriga, a arte de tramar as palavras; sua intenção é introduzir o leitor ao mundo do texto, para

que este, vislumbrando as belezas da comunicação, se sinta mais e mais atraído. Ele é, por

fim, onisciente, “conhece tudo e nenhuma informação necessária para o projeto lhe escapa”69.

A intriga se articula a partir do ponto de vista do narrador. Ele conta os fatos, preside a

comunicação70, organiza os códigos midiáticos e visa elaborar respostas aos anseios do

destinatário. Com a arte da significação, o narrador conduz o leitor pelas mãos ao mundo

encantado da narrativa.

A narração da presente perícope se constitui a partir da memória do narrador descrita

em palavras articuladas, com a ajuda da criatividade e inventividade. Trata-se de uma intriga,

com eixos condutores, que visa a culminar no clímax ou desenlace da obra.

67 “O texto de Mc 16,7 é o ponto de partida. Nele se verifica a realização da promessa feita pro Jesus em Mc 14, 27-28, no contexto da última ceia”. Cf. AZEVEDO, p.19. 68 Para que exista relato, faz-se necessária uma história. A estrutura da história é sua trama, ou seja, a intriga. Cf. MARGUERAT, D.; BORQUIN, Y., p. 67. 69 VITÓRIO, p. 86. 70 A comunicação verbal consiste no envio de uma mensagem por parte de um emissor a um destinatário. Toda mensagem inclui dois aspectos contexto e código. Este esquema também se aplica a comunicação escrita. Todo narrador respeita este esquema. Cf. JAKOBSON, R. Essais de linguistique génerale. Arguments 14. Paris: Minuit. 1963. p. 216.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

88

O narrador desta perícope elabora a intriga total a partir de três cenas episódicas.

A 1ª cena (15,40-41) elucida a situação inicial ou exposição (a morte de Jesus), na

qual o narrador apresenta o nome das personagens que observam o que está acontecendo com

Jesus. Este motivo (v. 40-41) constitui um micro-relato dentro de um relato maior71. No

cenário global da morte de Jesus, havia espectadoras: mulheres que o acompanhavam e o

serviam, que vinham com ele na caravana para Jerusalém, desde a Galiléia.

A 2ª cena (15,42-46), um sanduíche narrativo, apresenta a micro-trama enxertada na

trama total. Esta trama introduz um ponto nodal72, ou melhor, uma tensão narrativa. Nela são

apresentas novas personagens – Pilatos, José de Arimatéia, o centurião – e novo tempo

narrativo. Trata-se da véspera do shabat. A câmera do narrador usa o zoom de aproximação.

O local é outro. Esta micro-intriga se estabelece dentro do quadro geral e revela uma tensão

dramática. Os personagens José de Arimatéia e Pilatos têm características psicológicas

marcantes. Pilatos é irônico e Arimatéia destemido. A discussão tem por centro o corpo de

Jesus. O cadáver será depositado em que túmulo? Um dos personagens será o responsável

pelo enterro de Jesus. O v. 46 evidencia a ação transformadora – a pretensão de eliminar da

trama a tensão, ou seja, o ponto nodal, aquela perturbação enunciada pelo relato73 – pois, José

de Arimatéia leva74 o corpo de Jesus para o sepulcro.

No v. 47, o narrador volta a falar sobre as mulheres espectadoras, que agora estão

situadas junto ao túmulo de Jesus. Este versículo está relacionado diretamente ao v. 41, pois

aquelas que seguiam e serviam a Jesus na Galiléia agora estão diante do sepulcro, como já

estiveram diante da cruz. O zoom aproxima-se enfocando o leitor junto ao sepulcro com as

mulheres. Por que elas estão aqui, do mesmo modo como já estiveram no cenário da morte?

A 3ª cena (16, 1-8) estipula o desenlace – a superação da tensão narrativa mediante a

aplicação da ação transformadora – e se forma a partir de um novo tempo e um novo espaço.

As personagens são novamente situadas na intriga, que agora introduz um novo personagem:

71 Tramas episódicas são tramas cujos limites coincidem com o micro-relato. É possível encontrar em textos bíblicos micro-relatos dentro de um macro-relatos.. O sanduíche que Marcos cria pode ser comparado a um micro-relato inserido numa trama narrativa unificada Cf. Mc 4,1-20 (vv.10-13); 5,21-43 (vv.25-34); 6,7-30 (vv.14,-29) 15,40-16,8 (vv. 42-46). Cf. MARGUERAT, D.; BORQUIN, Y., p. 92. 72 O ponto nodal indica o elemento desencadeante do relato, que introduz a tensão narrativa (um certo desequilíbrio do estado inicial ou complicação). Cf. MARGUERAT, D.; BOURQUIN, Y., p. 72. Egger diz que em cada narrativa há pontos nodais (de tensão) a partir dos quais se abrem desenvolvimentos alternativos. Para compreender a narrativa, estes pontos são fundamentais e decisivos. Cf. EGGER, p. 118 73 MARGUERAT, D.; BOURQUIN, Y., p. 73. 74 Pilatos condede o corpo de Jesus a José de Arimatéia, em grego dwreo.mai. Cf. TAYLOR, p. 728. Cf. item 2.11.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

89

o jovem. Aparentemente o narrador aproxima o zoom da imagem para as mulheres que vão

embalsamar o defunto. Elas, ao se depararem com o anúncio do jovem que afirma que Jesus

ressuscitou, são convidadas a narrar: “ide dizer...”75 aos discípulos e a Pedro que Jesus os

precede na Galiléia e lá o verão (16,7)76. Mas aparentemente a intriga finda com um anúncio

não realizado. As mulheres, que deveriam testemunhar o acontecido com Jesus, estão

aterrorizadas e silenciam. O narrador parece finalizar a intriga com um suspense. Por que elas

não dizem nada a ninguém? No momento ápice, de aspecto truncado, o narrador trabalha com

a tensão narrativa intensificando a emoção do relato. O desenlace e a situação final da intriga

parecem interrompidas77. Este é um recurso bastante conhecido na literatura. Trata-se da

astúcia do narrador, que lança ao leitor o questionamento78: “e agora, Zé?”.

A situação final da narrativa, de aspecto um tanto “apressado”, tem como intenção

levar o leitor-hermeneuta a dar uma resposta à intriga. Mas, por que esta perícope

aparentemente está incompleta? Quando ela deveria “encontrar um ponto de fechamento,

onde o conjunto da narração se configura”79. Mas não encontra. Para Marcos, tal configuração

se realiza de forma implícita, ou seja, é o leitor que deve interpretar e dar respostas à pergunta

que ficou no ar: por que este final e não um outro?

É neste ponto da trama que se encontra o sentido do método de análise narrativa, que

não visa a dar respostas, mas deixar que o leitor as encontre. A análise narrativa é abertura de

possibilidades.

Observa-se, não só nesta perícope, mas também em outros episódios narrativos, que

Marcos deixa lacunas e perguntas, e a narração de alguns fatos parece truncada80. Isso pode

ser constatado na narrativa de Mc 2, 1-12, na qual o paralítico que é levado a Jesus busca a

cura para a enfermidade e recebe, quando se esperava a cura, o perdão dos pecados. A

narrativa é, aparentemente concluída no v. 9, no qual Jesus diz: “O que é mais fácil dizer ao

paralítico: ‘os teus pecados estão perdoados’ ou dizer: ‘levanta-te, toma o teu leito e anda’?”.

75 A cena “tem traços das narrações de epifania, sobretudo pela tarefa de passar uma mensagem a alguém” (cf. AZEVEDO, p. 26). A expressão “ir dizer” é observada também em Mc 1,44, no qual o leproso é despedido para ir apresentar-se ao sacerdote como testemunho da cura realizada. Cf. PESCH, p. 245. 76 A questão interessa, em primeira mão, aos discípulos e a Pedro, evocando, naturalmente aqueles que acompanharam e seguiram Jesus no caminho de sua paixão, de seu ministério e foram educados por ele. Para uma maior compreensão de 16,7 (cf. AZEVEDO, p. 25-42). 77 Cf. PESCH, p. 90. 78 MARGUERAT, D.; BOURQUIN, Y. p. 78. 79 VITÓRIO, p. 85. 80 As construções truncadas ou incompletas, também conhecidas como anacolutos, são características do estilo de Marcos. Cf. TAYLOR, p. 72.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

90

Marcos, porém, retoma o motivo da cura com sentido modificado, não mais como mera cura

mas como sinal de autoridade, na resposta categórica quando Jesus cura o paralítico diante da

multidão e dos fariseus que lá estavam (v.10).

Pode-se concluir que a narrativa marcana leva sempre em consideração o leitor, pois, a

leitura é fundamentalmente uma hermenêutica, ou seja, modo e meio para se encontrar

respostas às questões pertinentes.

3.3.3 Gestão dos personagens

O narrador cria seus personagens e estes, por sua vez, dão vida, “porte e cor”81 ao

relato. O narrador os nomeia e lhes dá identidade. Os personagens estão a serviço do relato

pensado pelo narrador82. Quem são? Como são identificados?

É possível observar na intriga elaborada por Marcos alguns personagens: as mulheres

que de longe observavam, (dentre elas, Maria Madalena, Maria, mãe de Tiago Menor e Joses,

Salomé), José de Arimatéia, Pilatos, o centurião e o jovem junto ao sepulcro. No elenco estão

situados homens e mulheres. Os personagens são oriundos de classes sociais diversas. Há

mulheres que caminhavam com Jesus, certamente oriundas do povo judeu, dadas as suas

tarefas domésticas, e que disponibilizaram tempo e até dinheiro para seguir e servir Jesus

como discípulas. Algumas são mencionadas somente pelo nome: Maria Madalena, ou seja,

Maria da cidade de Mágdala. Maria, mãe de Tiago e Joses. O nome desta mulher está

associado ao de seus filhos, Tiago Menor, o “irmão do Senhor”, discípulo de Jesus e de Joses,

não muito conhecido83. A outra mulher era Salomé, a cujo nome nada se acrescenta. Há

também, na narrativa, personagens de importância política e religiosa: Pilatos, José de

Arimatéia e o centurião, este último, representando o exército romano. Há outro personagem

enigmático ou que parece revelar o aspecto misterioso do final da narrativa: o jovem, que

poderia significar um mensageiro, um certo anjo-diácono, que tem como missão anunciar a

ressurreição de Jesus.

Um personagem em destaque na narrativa é José de Arimatéia, importante conselheiro

do Sinédrio. O narrador o considera audacioso, pois a narrativa afirma que ele corajosamente

se dirigiu ao governador e reivindicou o corpo de um condenado à morte, chamado Jesus,

81 MARGUERAT, D.; BORQUIN, Y., p. 95. 82 “Encarnam a intriga num processo de interação com proximidade-distância de variados tipos: amizade-inimizade, benevolência-malevolência, confiança-desconfiança, intimidade-indiferença” (VITÓRIO, p. 89). 83 Para um maior esclarecimento sobre a personagem Maria, mãe de Tiago, cf. Excurso do item 2.12.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

91

(v.43). José, aparentemente um notável membro do Sinédrio, é descrito com simpatia pelo

narrador84.

Em contrapartida, Pilatos se identifica no v.44 a um cínico que se admira com o fato

de Jesus já estar morto85. Não havia de que ele se admirar, pois já pressupunha que Jesus, de

qualquer forma iria morrer. Com efeito, fora ele quem havia, deliberadamente, contribuído

com a morte de Jesus. Todavia, Pilatos, admirado, chama o centurião para lhe perguntar se

Jesus estava morto. Isto indica que, para os romanos e para o governador, o sepultamento dos

condenados não era uma preocupação86.

Outro personagem que agora volta à cena é o centurião, que apareceu em 15,39 e

agora, no v.44, é responsável por certificar que Jesus estava morto. Se em 15,39, diante de

Jesus, morto na cruz, ele afirma: “Verdadeiramente, este homem era Filho de Deus”87; agora,

diante de Pilatos, ele apenas oficializa que Jesus havia morrido de fato. Ora, pode-se dizer que

se trata da mesma pessoa nos dois relatos? Parece que sim. O centurião em 15,44 corrobora

que Jesus já havia morrido. Não há, porém, aqui, nenhuma intenção querigmática específica

como 15,3988. É apenas uma continuação narrativa.

O querigma se faz evidente na boca do último personagem da intriga: o jovem homem

no sepulcro. Ele aparece no momento final, mas não com menor importância. Ele estava

sentado à direita, trajando uma túnica branca, dois elementos de dignidade89. Para as

mulheres, quando chegam à porta do sepulcro, ele parece um personagem enigmático. Ao ser

84 Cf. item 2.11. 85 Embora, Taylor afirme que havia sentido tanto para a surpresa quando para a pergunta, pois havia crucificados que suportavam até três dias sofrendo os tormentos, Cf. item 2.11. 86 No mundo romano, o suplício da cruz era infligido aos escravos e aos indivíduos rebeldes. Os cidadãos romanos estavam, por direito, dispensados da crucifixão. Segundo as leis rabínicas da época do segundo Templo, os condenados eram apedrejados e depois seus corpos suspensos numa forca até o cair da tarde. A descoberta, em Jerusalém, em 1969, da ossada de um crucificado, permitiu precisar que o condenado era pregado pelos punhos. A família podia pedir o corpo, pelo menos em país judaico. Os pobres, contudo, eram deixados na cruz, seus cadáveres serviam de alimento para os animais. Cf. MONLOBOU, L.; BUIT, F. M. Cruz. In. MONLOBOU, L.; BUIT, F. M. Dicionário bíblico universal. Petrópolis: Vozes; Aparecida: Santuário, 1997. p. 169.; Cf. FRAINE, J. Crucifixão. In: BORN, A. van. den. (red.). Dicionário Enciclopédico da bíblia. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1977. p. 336. 87 Esta afirmação do centurião constitui a última declaração, por voz humana, relativa à verdadeira identidade de Jesus; o relato marcano é assim orientado por duas afirmações: aquela de Pedro e a do centurião, concluindo, um e outro, a parte do itinerário do reconhecimento de Jesus (cf. ALETTI, J-N. La constrution du personage. p. 35). 88 As palavras do centurião correspondem à exclamação querigmática. A narração da crucificação de Jesus alcança seu cume na declaração do centurião. Cf. GNILKA, p. 724. 89 Pode-se perguntar: a direita de quem ou de que o jovem está assentado? Trata-se simplesmente de uma posição a direita do sepulcro como um “lado favorável”? Nos escritos cristãos que dão uma descrição simbólica do Cristo Ressuscitado, a imagem à direita de Deus, inspirada do Sl 110,1 (cf. também 1Pe 3,22) é frequentemente utilizada. Ela é notada em Mc 14,62. Trata-se de uma confirmação de caráter simbólico, no qual este jovem homem deve estar com Cristo Ressuscitado. Cf. FOCANT, p. 596.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

92

visto por aquelas mulheres e elas ficarem atemorizadas, ele anuncia: “Não vos assusteis”

(16,6). Há, na narrativa, uma espécie de contraste quanto à realidade das personagens. Por um

lado, as mulheres que estão atemorizadas, por outro lado, o jovem que tranquilamente

pergunta se elas procuram Jesus de Nazaré, o crucificado. A realidade de dúvida das mulheres

se dissipa com a afirmativa segura do jovem: “Ele ressuscitou, não está aqui”.

O misterioso jovem, que tem como missão anunciar Jesus ressuscitado, inaugura na

narrativa um colóquio. A narrativa descritiva dos fatos ganha agora, com o advento do

personagem intitulado jovem, um sentido mais dialógico. Dois mundos estão em relação.

A realidade do medo dá lugar à realidade da missão: “Ide dizer”. O silêncio das

personagens deve dar lugar à palavra. As mulheres devem ir ao encontro dos discípulos e de

Pedro. As palavras a serem anunciadas são: “Ele vos precede à Galiléia, lá o vereis, como vos

disse”. As mulheres que seguiam, andavam com Jesus, subiam com ele para Jerusalém,

devem agora descer para a Galiléia e no coração da comunidade galilaica dizer ao chefe dos

discípulos que Jesus os precede.

A narrativa, no entanto, termina com a descrição do narrador que afirma: “Elas saíram

e fugiram para longe do túmulo, pois estavam tomadas de temor e assombro”. E nada

disseram a ninguém, pois temiam” (16,8).

Aparentemente, a missão querigmática do jovem no sepulcro está fadada ao fracasso

diante da realidade de medo das mulheres. O personagem que fielmente anuncia a

ressurreição se vê diante do assombro das mulheres que foram visitar o cadáver para

embalsamá-lo. A realidade dinâmica de ir anunciar, proposta pelo jovem homem, está agora

estagnada por causa do medo das mulheres.

Evidentemente, o narrador da intriga não está preocupado com os personagens em si,

mas com aquilo que simbolizam para a narrativa. O importante, para Marcos, não é o que

realizam, mas é o que deixam de executar, explicitamente, na narrativa. O fato de os

personagens deixarem em suspense algumas ações possibilita a seguinte pergunta ao leitor: o

que se dá a entender com o não-dito? O importante são as lacunas e perguntas suspensas no ar

da narrativa. Tais lacunas e perguntas devem ser preenchidas e respondidas pelo leitor, o

hermeneuta da narrativa.

Por fim, pode-se afirmar que o narrador chama ao palco, no desenlace de sua trama, os

personagens que formam o projeto narrativo (Mc 15,40-16,8). Tais personagens se

entrecruzam e trazem à tona problemáticas e questões que o narrador quer elucidar. O

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

93

personagem, como criação do narrador, contribui na formação da intriga, na construção da

rede de comunicações e valores que a obra quer apresentar. A identidade do personagem

configura e viabiliza os matizes da trama, a variedade de personagens forma o colorido da

colcha de retalhos chamada narratividade.

3.3.4 Focalização do narrador

Na seqüência da intriga, o narrador focaliza as cenas de diversas maneiras,

determinando o modo como o leitor deverá posicionar-se em relação aos personagens e aos

fatos narrados90. O leitor é responsável por construir na idéia a cena narrada em função do

foco indicado pelo narrador. Perguntamos como os fatos e os personagens entram na mira do

narrador.

O leitor necessita de sensibilidade para se deixar guiar neste processo. Deve captar

com exatidão o que o narrador quis expressar. Se o leitor não for capaz de adentrar nos

meandros da narrativa, a leitura será parcial e o leitor será incapaz de encontrar o foco

principal da narração. A narrativa se constrói a partir da focalização do narrador, tal como um

fotógrafo que procura a luz ideal e o ângulo perfeito, para a fotografia de qualidade. O

narrador, com sua arte inventiva, descreve os fatos e os personagens criando a obra de arte, a

trama, a intriga perfeita. No entanto, o olhar a visão crítica do leitor é que determinará a

profundidade ou a superficialidade da narrativa. Um leitor apático não será capaz de encontrar

beleza na focalização do narrador, a leitura será enfadonha e o resultado será desastroso.

A narração da perícope de Mc 15,40-16,8 demonstra uma focalização externa,

correspondendo ao que o leitor “vê” na narração. Marcos descreve certos detalhes, que podem

ser projetados no horizonte do leitor. A narração mostra alguns closes. Marcos

simbolicamente parece estar na parte externa tal como um espectador. A questão

imprescindível, para a focalização é: o que se pode observar na narrativa?91

O exórdio da trama, Mc 15,40-41, equivale à primeira focalização do narrador. A cena

é inaugurada com a presença de algumas mulheres no Calvário. Era tarde de um dia. As

mulheres observam de longe. Segundo o narrador, aquelas mulheres seguiam e serviam Jesus

desde a Galiléia (v.41).

90 Cf. VITÓRIO, p. 96. 91 MARGUERAT, p. 6.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

94

Nos versículos seguintes, a focalização de Mc 15,42-43 se desloca para um novo

tempo e um novo espaço. O tempo é outro: véspera de sábado. Os personagens incluídos, José

de Arimatéia e Pilatos, indicam um lugar diferente. Já não mais o Calvário, mas o palácio de

Pilatos, lugar aonde se dirige José de Arimatéia para reivindicar o cadáver de Jesus. José de

Arimatéia está no close da lente de Marcos. Este o descreve como conselheiro respeitável,

uma autoridade que cria no Reino de Deus e o esperava. Não se trata de um homem qualquer,

se trata antes de um homem corajoso que vai à casa de Pilatos; um homem que não precisa

marcar horários na agenda. Ele tem acesso direto, pois está em pé de igualdade. A focalização

do v. 43 permite ao leitor captar a profundidade da cena, como se lá estivesse presente. Outro

close pode ser percebido em 15,44: o da indiferença de Pilatos. Esta fotografia tirada por

Marcos exprime o sentimento de surpresa (“admirou-se”) de Pilatos em relação à morte de

Jesus. Tal surpresa leva Pilatos a perguntar ao centurião se Jesus havia de fato morrido. Este

close-up faz o leitor indagar o sentido da admiração de Pilatos. Será que ele se surpreendeu

com a morte rápida de Jesus ou com o fato de José estar pedindo algo tão insignificante como

um cadáver? Esta focalização quase interna possibilita ao leitor captar elementos da

interioridade do personagem. Evidentemente não se sabe o que Marcos desejava transmitir

com a expressão “admirou-se”, quando se referiu a Pilatos.

O narrador de Marcos possibilita outra focalização em 16,3. O close flagra as

mulheres que se questionam: “Quem removerá para nós a pedra do sepulcro?”. Isto permite ao

leitor perceber que o desejo de elas embalsamarem o corpo de Jesus esbarra na grandeza da

pedra que envolve o sepulcro. O medo está referido à impossibilidade de realizarem a missão

de que foram incumbidas na narrativa. A focalização de Marcos se concentra nos sentimentos

que envolvem as mulheres. No entanto, a pedra do sepulcro já havia sido removida. Mas o

espanto maior se dá em 16,5, no momento em que se deparam com o jovem vestido de uma

túnica branca. O narrador oferece ao leitor a ambivalência de sentidos: o medo é fruto do

encontro com aquele misterioso jovem na escura madrugada ou é expressão da decepção por

não encontrar mais o corpo naquele lugar?

Uma última focalização observada em 16,8, com um final abrupto, diz respeito ao

temor e ao assombro que faz com que as mulheres fujam do sepulcro. O leitor pode perceber

que a realidade do medo está ligada à missão que tais mulheres são designadas a vivenciar. O

jovem ordena que vão dizer aos discípulos que Jesus não está morto, mas que os precede à

Galiléia, onde o verão. O último close-up do narrador focaliza o sentimento de temor ou

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

95

medo92 que explica o silêncio, pelo menos momentâneo das mulheres. O leitor é chamado a

observar que a focalização de Marcos não pretende depreciar a atitude das mulheres, mas

introduzir a temática da responsabilidade de anunciar, que é agora confiada aos leitores da

Boa Nova de Marcos. Portanto, o leitor é chamado a recontar um fim à narrativa, a construir

seu desfecho.

O fato de as mulheres não dizerem nada a ninguém corresponde a uma reação à

revelação epifânica do relato (cf. Dn 7,28) e não, propriamente, a uma desvalorização do

discipulado das mulheres. Na narrativa marcana, as mulheres assumem a função de

discípulas-mensageiras da ressurreição de Jesus. O fim enigmático, que situa o medo, seguido

da fuga das mulheres, sublinha, por outro lado, o mistério do anúncio da ressurreição a que

são incumbidas a realizar na comunidade dos discípulos de Jesus93.

3.3.5 A temporalidade

A narrativa é constituída em sua textura pelos conceitos de tempo e espaço, que

permitem o desenrolar da intriga. Sem as dimensões de espaço e tempo não existe

possibilidade de se tecer a narrativa. Os personagens vivem em um tempo e estão inseridos

em um espaço. “Fora do tempo não existe ação humana”94. Aqui peguntamos: que indicações

são oferecidas para situar a narração no tempo?

Há, na narrativa, duas formas de temporalidade: a) o tempo da história narrada; b) o

tempo da narração. A primeira forma, da história narrada, trata das unidades de tempo:

minutos, horas, dias, anos. O narrador oferece no desenrolar da intriga indicações

cronológicas para situar os personagens no tempo95. Sem o tempo a história narrada se torna

abstrata e emblemática. A segunda forma de temporalidade, ou seja, a da narração,

corresponde ao tempo utilizado para descrever as cenas. Este tempo é evocado pela

quantidade de frases, páginas e expressões utilizadas para narrar96.

O narrador do Segundo Evangelho situa sua narrativa na temporalidade e no espaço. O

narrador “mostra predileção pelos ‘dias’, enuncia os dados cronológicos em dias, mais que em

92 O temor e o assombro assinalam a reação dos destinatários da epifania e da mensagem do mysterium tremendum da revelação divina. As mulheres que foram embalsamar Jesus crucificado estão agora frente ao anúncio da ressurreição e são responsáveis que este anúncio aconteça. Cf. PESCH, p. 780. 93 Cf. PESCH, p. 780. 94 VITÓRIO, p. 97. 95 “Quando o narrador diz: ‘passaram três anos’, está assinalando um período suscetível de ser medido com a ajuda de um calendário. Este é o tempo da história narrada”. Cf. MARGUERAT, D.; BORQUIN, Y., p. 141. 96 Cf. VITÓRIO, p. 98.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

96

semanas, meses ou anos. Mc 1,13 afirma que Jesus ‘permaneceu no deserto quarenta dias’;

Mc 2,1: ‘alguns dias depois’”97. Este procedimento marca todo relato da Paixão. Na perícope

de Mc 15,40-16,8 é possível observar que o narrador pensa a temporalidade a partir da tarde

do primeiro dia, da noite e um novo dia, o sábado, e ainda a madrugada do primeiro dia da

semana.

No exórdio da intriga (15,40), Marcos não menciona a dimensão temporal. Mas a

dimensão espacial está clara: se trata do Gólgota. Para saber sobre a temporalidade, faz-se

necessário remeter a 15,35, onde se menciona que são três horas da tarde. A narrativa segue

até o v. 42, que inaugura um novo tempo: “o cair da tarde”, a véspera do sábado. Em Mc 16,1

o narrador introduz um novo tempo: “transcorrido o sábado”. Mc 16,2 afirma que bem cedo,

no primeiro dia da semana, as mulheres se dirigem ao sepulcro.

No que se refere à temporalidade da narração, concernente ao tempo empregado para

descrever as cenas, pode-se dizer que o narrador é preciso e conciso. Ele descreve as cenas

com rapidez, de forma que, o leitor, ao se deparar com o texto, percebe a capacidade de

síntese narrativa.

Contudo, a narração da perícope abre um leque de possibilidades. Primeiro, identifica

alguns personagens da intriga e evoca sua atuação: as mulheres que seguiram e o serviram e

agora estavam observando o acontecido. José de Arimatéia, descrito como alguém corajoso e

o jovem que protagoniza juntamente com as mulheres o querigma da ressurreição. Como

segunda possibilidade, registra a ordem cronológica: três dias, do dia da morte de Jesus até à

madrugada do primeiro dia da semana. O narrador não volta ao passado na trama, nem projeta

algo para o futuro, haja vista, a hermenêutica que o leitor deverá fazer. Em terceiro lugar,

observa-se que Marcos espraia sua narrativa moderadamente, não sendo nem conciso demais,

nem prolixo ao extremo.

Destarte faz-se oportuno afirmar que a compreensão dos últimos acontecimentos com

Jesus, relativos à morte e à ressurreição, apresentados pela narrativa marcana serviram de base

teológico-narrativa para a compreensão dos outros evangelistas em suas obras narrativas. Não

se trata apenas da dimensão cronológica elaborada por Marcos, mas da teologia que está por

trás das cenas no Calvário e no sepulcro vazio. Esta narrativa inaugurada por Marcos

favoreceu o imaginário literário-narrativo dos outros escritores.

97 MARGUERAT, D.; BORQUIN, Y. p. 130.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

97

3.3.6 O contexto

Em que pano de fundo a narração é projetada? A narração insere-se em contextos

preparados pelo narrador, a serem detectados pelo leitor. Correspondem às circunstâncias de

tempo, lugar e ambiente social, onde a intriga se desenrola”98. A ação dos personagens, no

interno da história narrada, se desenvolve dentro de um marco determinado: em um tempo,

um lugar e um entorno social concreto99. O pano de fundo ou contexto pode ter valor de fato

ou valor metafórico. O primeiro contexto é identificado por um dado objetivo: onde acontece

a ação, quando e qual a condição social dos personagens envolvidos na intriga. O segundo

contexto, o metafórico, se dá para além das dimensões espaço-temporal e social.

O narrador pode se ater mais à dimensão espacial e deixar de lado a temporal e vice-

versa. Os contextos cronológicos e geográficos são de fácil identificação na narrativa, no

entanto, o contexto social exige mais esforço para ser analisado e entendido.

O narrador de Marcos construiu o contexto da perícope em termos de tempo, com os

seguintes elementos: “ao cair da tarde” (15,42), “transcorrido o sábado” (16,1) e “muito cedo,

no primeiro dia da semana” (16,2).

Em termos de espaço temos o Calvário (15,40), “junto de Pilatos” (15,43), “num

sepulcro” (15,46) e “entrando no sepulcro” (16,5).

Quanto ao contexto social, o narrador tece-o a partir de dois eixos:

A) O eixo feminino: A presença das mulheres é uma forma de compreender a intriga.

Há na trama também personagens homens. Alguns parecem protagonizar a intriga, observe-se

José de Arimatéia e o jovem. Mas a narrativa é protagonizada predominantemente pelas

mulheres. Elas fornecem subsídios suficientes para a narrativa se desenvolver. No exórdio da

intriga (15, 40), Marcos as insere como observadoras da crucificação de Jesus. Ali faz um

adendo para explicar quem eram tais mulheres. Elas, certamente não eram espectadoras

curiosas, mas seguidoras e servidoras de Jesus. Elas o seguem e o servem há um bom tempo,

desde o começo de seu ministério na Galiléia (15,41). São elas: Maria Madalena, Maria, mãe

de Tiago Menor e de Joses, e Salomé. Elas são nomeadas, têm identidade, dando a entender

que são conhecidas na comunidade marcana e que, possivelmente, exercem alguma influência

sobre o narrador.

98 VITÓRIO, p. 100. 99 Cf. MARGUERAT, D.; BOURQUIN, Y., p. 127.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

98

O narrador se refere, na intriga, três vezes às mulheres. Elas não estão apenas

presentes na cena da morte, mas são também espectadoras dos acontecimentos no sepulcro.

As mulheres observam (15,47) o lugar onde o corpo de Jesus foi depositado. E, por fim, no

limiar do sábado vão comprar os ungüentos para embalsamar o corpo de Jesus. Ali novamente

são nomeadas na intriga: Maria Madalena, Maria, a mãe de Tiago e Salomé.

Marcos insiste em referir-se às mulheres100. Elas estão associadas na narrativa ora a

uma região, como no caso de Maria de Mágdala, ora a alguém, como no caso da outra Maria,

mãe de Tiago, associada ao discípulo (Tiago) e a Joses, o outro filho (cf. em 15,40 ela é

associada a Tiago e Joses, em 15,47 somente a Joses e em 16,1 somente a Tiago Menor). A

insistência em associar triplamente estas mulheres ou, à terra ou a alguém especificamente,

indica a importância destas associações. Este recurso é muito usado nas narrativas bíblicas.

Por exemplo, no livro de Rute o narrador a cognomina “a moabita”, subentendendo o sentido

étnico-religioso: para dizer que ela era estrangeira e pagã.101 Também José de Arimatéia

(15,43) pode ser entendido como um homem originário de Arimatéia, cidade de Judá a

nordeste de Lida (Lod)102. Neste sentido, quando o narrador se refere à Maria (a) Madalena

ele quer dizer que esta mulher é originária de Mágdala ou Magdan (cf. Mt 15,39)103.

O autor da narração re-inaugura em 16,1-8 o protagonismo das mulheres. Elas se

dirigem ao túmulo de Jesus na intenção de embalsamá-lo. Uma iniciativa que, além de

sinalizar o eixo da diakonia, do “serviço”, quer indicar a responsabilidade de manter viva a

chama do enamoramento por Jesus. Tais mulheres receberam o chamado e atenderam; cada

uma a seu modo põe-se a seguir e a servir. A experiência de retorno ao sepulcro é necessária e

avassaladora. É preciso, por parte das mulheres, re-fazer o itinerário da memória. Ao refazer o

caminho até o sepulcro é possível manter vivo o sublime dom de amar.

O narrador não afirma que aquelas mulheres executaram no sepulcro a missão que

desejavam, porém apresenta o belo diálogo das mesmas com o jovem que lá estava (16,5). O

diálogo é fruto da liberdade criativa do narrador. Os personagens estão em cena, ora se

completam ora se antepõem. A intriga retrata o contexto de medo. As mulheres revelam o

100 As referências às mulheres de 15,40s. 47 e 16,1, refletem o desejo de relacionar a morte, o sepultamento e a ressurreição de Jesus com os testemunhos acreditados. Cf. TAYLOR, p. 776. 101 Cf. VITÓRIO, p. 101. 102 Cf. BÍBLIA Tradução Ecumênica. São Paulo: Loyola, 1994 (nota referente a Mt 27,57). 103 Lucas, ao referir-se Maria Madalena, afirma que ela havia sido curada por Jesus, que a libertou de sete demônios. Mágdala ou el-Mejdel era uma cidade situada a oeste do lago. Cf. GNILKA, p. 724.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

99

primeiro medo: “quem removerá a pedra da entrada” (16,3). Num segundo momento, elas se

apavoram quando se deparam com o misterioso personagem, o jovem (16,4). Num terceiro

momento, o espanto e admiração as fazem fugir (16,8) e nada contar a ninguém.

O jovem aparece na intriga como coadjuvante, mas ele rouba a cena. O querigma que

sai de sua boca produz assombro nas mulheres (16,7). Anuncia que Jesus, aquele que elas

procuram, não está mais lá. Ressuscitou! (16,6). Contudo, o protagonismo de transmitir

aquele anúncio é dado a elas: “ide dizer” (16,7).

B) O eixo do serviço: Este eixo perpassa toda intriga. Em primeiro lugar a expressão

diakonia se encontra explícita em 15,41, no qual o narrador afirma que as mulheres seguiam e

serviam Jesus quando ele estava na Galiléia. Não há dúvidas de que o narrador apresenta

aquelas mulheres como discípulas que seguem e servem o mestre. Não há, contudo,

necessidade de se esclarecer o sentido desta diakonia.

Pode-se, no entanto, investigar o motivo de aquelas mulheres estarem naquele

cenário? Elas subiram com Jesus para Jerusalém para fazer o quê? Segundo a tradição, em

Jerusalém havia algumas mulheres que serviam os condenados no caminho até o Calvário.

Elas eram responsáveis pela limpeza do cenário de morte. Mas as mulheres que seguem Jesus

não eram da capital Jerusalém, mas da Galiléia. O que elas faziam lá? Certamente estavam lá

no intuito de servir, assim como o fizeram na Galiléia durante a vida ministerial de Jesus.

O narrador, ao aproximar o zoom de sua câmera, focaliza outro personagem que se

destaca no serviço a Jesus. Trata-se de José de Arimatéia. Ele presta um serviço póstumo,

concedendo a Jesus a dignidade de ser sepultado em um jazigo novo (15,43). Dispõe para o

morto um sepulcro. Oferece ao Filho do Homem o direito de ser sepultado como os outros

homens, compra-lhe lençóis mortuários; desce o corpo da cruz, envolve-o com o lençol e o

coloca no sepulcro que estava cavado na rocha (15,46).

Na mira do narrador estão novamente as mulheres que se dirigem ao sepulcro a fim de

embalsamar o corpo de Jesus (16,1). Este era um ofício das mulheres judias. Em Mc 14,3-9,

Jesus é ungido em Betânia por uma mulher, na casa de Simão o leproso. Esta narrativa pode

ser entendida como a unção de Jesus para a morte. Em Jo 12,7 Jesus diz que Maria, irmã de

Marta e Lázaro, unge Jesus em vista de seu sepultamento. Esta prática, portanto, parecer ser

comum por parte das mulheres.

Na focalização, o narrador afirma que as mulheres foram ao sepulcro, levando os

aromas para embalsamar o morto. Este serviço póstumo parece estranho, haja vista que na

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

100

Palestina, assim como no Egito, as especiarias e perfumes eram usados no momento da

preparação dos cadáveres antes da sepultura104. Vale observar que em Mc 16,1 e Lc 23,56;

24,1, as mulheres voltam ao túmulo para completar o sepultamento de Jesus com a unção.

O eixo narrativo do serviço perpassa a última parte da intriga, no diálogo entre as

mulheres e o jovem que as anuncia a ressurreição de Jesus. Ele é um mensageiro e tem como

missão anunciar que Jesus não está mais preso à morte sepulcral, mas que está vivo na

comunidade reunida na Galiléia. O jovem mensageiro incumbe as mulheres de viverem a

diakonia do anúncio. Elas, por sua vez, estarrecidas, fogem e não falam nada a ninguém105.

Agora, dois outros eixos podem ser observados: o teológico e o epifânico:

A) No eixo teológico destacam-se os temas do Reino de Deus e da Ressurreição. O

narrador afirma (em 15,43) que José de Arimatéia aguardava o Reino de Deus. A categoria

Reino de Deus pode ser considerada um eixo teológico explícito. Esta categoria é associada

ao nome de um personagem da alta estirpe judaica José de Arimatéia, membro do Sinédrio,

que está preocupado com o corpo de Jesus. Ele acreditava na pregação de Jesus106. Em Mt

27,58, afirma-se que “ele também se tornara discípulo de Jesus”. De qualquer forma, é

possível entender que José de Arimatéia tenha ouvido os ensinamentos de Jesus. Para Lc

23,50-51, José, membro do conselho, não concordava nem com o projeto dos conselheiros do

Sinédrio, nem com seus atos. De toda sorte pode-se considerar este homem um seguidor

diferente de Jesus um discípulo anônimo, que ao mesmo tempo ocupava um status elevado

junto aos poderosos de Jerusalém.

B) O eixo epifânico pode ser identificado em 16,5, no qual as mulheres, ao entrarem

no sepulcro e verem um jovem vestido de branco sentado à direita, se espantam. Tal

personagem evoca as figuras angélicas do AT (cf. 2Mac 3,26.33 e Tb 5,5-9). Este

personagem, agora na cena da ressurreição, “manifesta-se como símbolo do discípulo

modelo”107 portador da revelação108. O personagem do sepulcro pode evocar aquele outro do

104 FRAINE, J. Unção. In: BORN, A. van den. (red.) Dicionário enciclopédico da bíblia. Petrópolis: Vozes, 1971. p. 1539-1540. 105 Em Lucas, contrariamente ao relato de Marcos, as mulheres narram aos apóstolos a sua descoberta. Mas eles não dão crédito às palavras delas (Lc 24,9-12). 106 “Desde o início de seu ministério, Jesus anuncia o Reino de Deus”. Cf. SESBOÜE, B. Pedagogia do Cristo: elementos de cristologia fundamental. São Paulo: Paulinas, 1997. p. 25; o Reino de Deus é ao mesmo tempo “a autoridade de Deus, a manifestação de sua glória, o ser-Deus de Deus”. KASPER, W. Jésus, le Christ. Paris: Cerf, 1976, p. 112. “É impossível, portanto, separar Jesus de Nazaré sua pessoa e sua ‘atividade’, ele é sua atividade em pessoa”, escreve Kasper. Por isso, o Reino de Deus é o tema central da pregação de Jesus. Trata-se de uma iniciativa de Deus com o estabelecimento de seu Senhorio. Cf. AZEVEDO, p. 49. 107 FOCANT, p. 596.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

101

relato de Mc 14,51-52, no qual se diz que um jovem o seguia, tendo sobre o corpo apenas um

lençol e ao ser preso, fugiu nu. Esta manifestação, junto ao sepulcro não deve ser entendida

apenas como a de um anjo, enviado unicamente às mulheres para lhes transmitir a mensagem

da ressurreição, mas pode ser entendida que a novidade da ressurreição deve ser comunicada

por todos os batizados109.

Somando os dois anteriores, outro eixo teológico-epifânico remete à Galiléia. Trata-se

de 16,7, no qual se refere à aparição do Ressuscitado na Galiléia “Lá o vereis como ele vos

disse”. A referência à Galiléia se explica adequadamente pela opinião, comumente aceita, de

que Mc e Mt (diferentes de Lc 24 e Jo 20) só conhecem as aparições na Galiléia; por outro

lado, a preeminência da Galiléia em Marcos é o único ponto de apoio da afirmação de que a

Galiléia é a terra da plenitude escatológica110.

A intriga se conclui com outro termo teológico bastante importante para o NT, a

ressurreição. O jovem vestido de branco anuncia às mulheres que Jesus ressuscitou e que não

está presente no sepulcro, que agora permanece vazio. Concomitantemente, o relato apresenta

outro recurso teológico, não mais importante e muito discutido hoje, para falar da

ressurreição: o sepulcro vazio111. Este recurso muitas vezes foi utilizado como uma possível

prova da ressurreição de Jesus.

3.3.7 O ponto de vista

Perguntamos, enfim, quais são os sistemas de valores subjacentes. Todo texto tem

necessidade de um leitor que coopere, quer dizer, de um leitor capaz de atualizá-lo. O talento

de parir um texto exige simetricamente um talento de parteiro, e este é o papel do leitor112. O

texto e o leitor não se entendem separadamente. Não há interpretação sem leitor, nem há leitor

sem texto para interpretar. “Há um narrador que escreve um ‘texto narrativo’ para influenciar

de alguma maneira o leitor-ouvinte”113. É preciso, contudo, que o leitor procure observar o

ponto de vista do narrador, ou seja, os aspectos ideológicos e os valores subjacentes

108 Cf. PESCH, p. 775. 109 Cf. FOCANT, p. 596. 110 Cf. TAYLOR, p. 737. 111 O sepulcro vazio pode ser interpretado como um paralelo ao Templo desvelado (15,38). O Templo é vazio da presença divina, pois o véu se rasga de alto a baixo 15,38, o sepulcro está vazio da presença do Filho de Deus que “não está mais aqui” Mc 16,6. Cf. FOCANT, p. 598. Para uma maior compreensão desta temática Cf. DUQUOC, Ch. Cristologia: Ensaio dogmático II. O Messias. São Paulo: Loyola, 1980. p. 78-83. 112 MARGUERAT, D.; BOURQUIN, Y., p. 201. 113 EGGER, p. 118.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

102

empregados na narrativa. O ponto de vista – os valores projetados pelo narrador na construção

do texto – pode ser percebido a partir dos comentários explícitos ou implícitos na narrativa114.

No caso exemplar de Mc 15,40-16,8, o narrador parece descrever o necessário. Não há

exagero, nem escassez narrativa. O autor trabalha a intriga de forma explícita. Parece não

guardar segredos, nem demonstrar opacidade. Pelo contrário, demonstra simplicidade ao

narrar as ações e os agentes, seus personagens. Marcos evoca as seguintes cenas: as mulheres

aos pés da cruz de Jesus, o diálogo de Pilatos e José de Arimatéia, as mulheres que vão ao

sepulcro para embalsamar o corpo de Jesus e, por fim, o diálogo das mulheres com o jovem.

Certamente, ao focalizar as cenas sucessivas Marcos quer garantir a elaboração dos fatos que

compõem a intriga, fruto de sua experiência de narrador. Ele não está preocupado com a

historicidade, mas com aquilo que o leitor decifrará na leitura hermenêutica da narrativa.

Na primeira cena da intriga, na qual as mulheres ao se dirigem ao local da cena da

morte de Jesus, observam de longe (15,40), o leitor pode decifrar o ponto de vista do narrador:

o serviço e o seguimento, ou seja, a diakonia aos necessitados e o seguimento do mestre até o

momento derradeiro. É fundamental, para as mulheres, estarem com ele (15,41). O

seguimento é levado às últimas conseqüências. Viver a akolouthia é acompanhar o mestre

aonde ele for. O narrador ao inserir tais mulheres no cenário da morte quer levar o leitor a

compreender o verdadeiro sentido do discipulado: tomar a cruz e seguir.

O narrador envolve na trama um outro personagem. Trata-se de José de Arimatéia, que

elucida com sua atitude no interior da intriga o ponto de vista da perfeita diakonia. José,

homem nobre e de status, é capaz de colocar-se ao serviço de Jesus (15,43). Ele, com sua

influência, consegue a permissão de sepultar o homem assassinado na cruz (15,46). O homem

de Arimatéia parece justificar sua diakonia com a profunda experiência do discipulado. Um

discipulado provavelmente não vivenciado de forma explícita, haja vista que ele ocupava um

cargo de destaque no Conselho do Sinédrio. Se aquele homem se colocasse no caminho de

Jesus teria se tornado motivo de escândalo para muitos. Ninguém compreenderia o porquê de

um notável homem da religião judaica estar no seguimento de Jesus, simples homem da

Galiléia dos pagãos.

114 A primeira forma de comentários, a explícita, se trata daquela que há intervenção do narrador, seja com um comentário da história contada (interpretação, explicação ou juízo), seja com uma comunicação direta ao leitor. A segunda forma de comentários, implícita, se trata daquele efeito de sentido imputável ao narrador, não explícito. É perceptível apenas no manejo da trama ou na descrição da ação os personagens. Cf. MARGUERAT, D.; BOURQUIN, Y., p. 174-195.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

103

Em contrapartida, a focalização do narrador surpreendentemente explicita a

indiferença de Pilatos. Ele é observado pelo narrador como um personagem irônico. Uma

ironia própria de quem exerce o poder (15,44-45). A ação realizada por ele (de conceder o

corpo) se revela condicionada pelo testemunho do centurião, que afirma que Jesus de fato já

estava morto (15,45). A análise narrativa preocupa-se em investigar na intriga as ações e os

agentes. Os agentes são José de Arimatéia e Pilatos, as ações são: da parte de José, pedir a

Pilatos o corpo de Jesus para ser sepultado e, da parte de Pilatos, conceder o corpo a José para

o sepultamento.

Aqui estão os pontos nodais, ou seja, pontos fundamentais que alicerçam o eixo

semântico da diakonia. A intriga de Mc 15,40-16,8 é um modelo claro de narrativa, pois

identificam-se nela vetores ação-agente, o genérico de comunicação-interação115. É comum

nas narrativas perceber a relação entre as pessoas, não há narrativa sem conflitos nem agentes

para o mesmo.

Em 16,1, o narrador retoma a temática do serviço, que agora será presidido pelas

mulheres. O eixo semântico diakonia está fundamentado pelo eixo akolouthia. As mulheres se

colocam a serviço, pois fizeram a priori a experiência do seguimento. Maria Madalena e

Maria, de Tiago e Salomé se dirigem ao sepulcro para o embalsamamento do corpo de Jesus

(16,2). O serviço não chega a ser concretizado, pois o corpo não está no sepulcro. A ação não

chega a ser executada, mas as agentes estão inseridas na cena. A intenção era pertinente, mas

não chega à execução.

Em contrapartida, um outro agente-personagem executa a função diaconal. O jovem

de veste branca anuncia às mulheres que Jesus ressuscitou. Seu anúncio, ao tocar os ouvidos

das discípulas as deixa espantadas. É preciso que elas vejam, fitem o olhar na direção do

sepulcro e sejam capazes de compreender que, aquele que morreu e lá foi sepultado, agora

vive. O jovem junto ao sepulcro tem, como todo batizado, “participação simbólica na morte e

ressurreição de Jesus”116. Ele agora se converte em diácono que anuncia que o morto já não

jaz no sepulcro, mas que está vivo e glorioso na comunidade.

Nota-se, em 16,7, que a missão querigmática das mulheres é uma práxis

imprescindível para a comunidade dos discípulos. A tensão narrativa da intriga se volta

novamente para as agentes (mulheres) que têm agora a missão de anunciar (como

115 EGGER, p. 124. 116 FOCANT, p. 596.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

104

mensageiras) que Jesus precede Pedro e os discípulos na Galiléia. Objetivamente o jovem-

diácono não encarrega às mulheres o anúncio do Ressuscitado, mas as incumbe de dizer que

Jesus, aquele que estava morto no sepulcro, agora precede (vai à frente) a comunidade dos

discípulos à Galiléia117.

O narrador busca o desenlace da trama com o imperativo “ide dizer”. A missão das

mulheres é anunciar, narrar aos discípulos e a Pedro, que Jesus os precede à Galiléia e que lá

serão capazes de vê-lo (16,7). A trama inconclusa, por sua vez, tem seu desfecho com a frase

enigmática: “e nada disseram a ninguém, pois temiam”. Neste ponto da intriga é possível

notar que o narrador mantém aquele modelo ação-agente. O agente jovem transmite a missão

(ação) de anunciar às mulheres (agentes). A ação não é executada, mas as agentes estão bem

evidenciadas na cena. A trama ganha outra tensão narrativa na relação ação-agente. As

agentes, ao não executarem a ação, concedem à narrativa outras vias e possibilidades de

interpretação.

Terminar uma narrativa com uma resposta em branco118 (16,8) é particularmente um

recurso literário bastante estimulante. A singularidade da conclusão de Marcos, afirma Pesch,

“estimula a interpretação e não à reconstrução conjetural de suposições”119. Significa que o

leitor é provocado a dizer, coerentemente, o não-dito. Marcos, não supõe uma resposta final

para a intriga (Mc 15,40-16,8), mas deixa a possibilidade de um final ao leitor em sua

liberdade interpretativa. O silêncio marcano indica o convite ao leitor a terminar a narrativa,

buscando um desfecho que esteja em consonância com os últimos relatos narrados por

Marcos120.

A análise narrativa, portanto, possibilita ao leitor o acesso às chaves da interpretação, a

fim de entrar em sintonia com o texto. Evidentemente é mister abrir a Escritura e perscrutá-la,

não deixando morrer os inúmeros sentidos que ela possibilita ao leitor-ouvinte.

117 Cf. PESCH, p. 779. 118 Pesch observa que do ponto de vista estilístico não é impossível, que em grego, uma frase ou um relato ou mesmo um tratado ou livro terminarem com a expressão ga,ρ, o 32º tratado de Plotino também tem seu desfecho com as expressões τελειότερον ga,r. Cf. PESCH, p. 99. 119 PESCH, p. 100, 120 Cf. FOCANT, p. 599.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

105

3.4 Como confluem os eixos akolouthein e diakonein na narrativa

de Mc 15,40-16,8?

Os termos axiais akolouthein e diakonein perpassam, tal como os fios de um tecido, a

intriga narrativa de Mc 15,40-16,8. Estes eixos equivalem a fios condutores do relato

narrativo. Sem estes fios não existiria a denominada trama, o relato como pode ser observado.

A confluência dos eixos na narrativa é uma sutileza artística do narrador. A arte de

confluir os eixos narrativos pode ser comparada àquela de tramar os fios na confecção do

tecido. Os fios axiais perpassam o emaranhado dos fios subjacentes e juntos formam a

moldura do tecido. Para a criação de um tecido, há a necessidade dos fios principais que ligam

e sustentam as tramas dos fios secundários. Os fios axiais são mais resistentes e servem de

fundamentação para a trama, eles ajudam a suportar a pressão exercida pelos fios secundários

que os perpassam. Estes são, de modo geral, mais finos e delicados e não suportam a mesma

tensão que os fios axiais. Mesmo presentes com maior freqüência, na elaboração das tramas,

não são considerados axiais. Em contrapartida, os axiais, em menor freqüência na confecção

trama, são considerados fundamentais, pois comportam a tensão maior dos entrelaçamentos.

A metáfora da confecção de um tecido e da intriga narrativa de Mc 15,40-16,8, nos

permite observar que os fios axiais, akolouthein e diakonein, perpassam a moldura do texto.

Estes fios sustentam a narrativa e exercem uma dinâmica sobre a textura. Os fios secundários

são todos os demais que perpassam o emaranhado dos fios principais. Os fios subjacentes

adquirem sentido a partir dos fios fundamentais do tecido narrativo. Os personagens-agentes e

as ações elaboradas na obra final de Marcos se fazem visíveis a partir dos eixos expostos no

início da trama. Ao mencionar as ações (akolouthia e diakonia) das mulheres em 15,40,

Marcos projeta nos demais agentes (da perícope) as perspectivas do seguimento e do serviço.

Há que se lembrar que os agentes estão a serviço do projeto narrativo daquele que escreve.

Portanto, é notório que Marcos veja os agentes da trama a partir das lentes akolouthein e

diakonein.

Para entender o projeto narrativo de Marcos, vale lembrar que a trama tem seu início

com o testemunho das mulheres junto à cruz de Jesus. Elas, diante da cruz exercem o serviço

do testemunho. A trama corrobora a questão do serviço com a introdução explícita dos eixos

semânticos fundamentais, akolouthein e diakonein, que ser referem àquelas que observavam

de longe o que acontece com Jesus de Nazaré. Elas o seguiam e o serviam quando ele estava

na Galiléia (15,41) e, agora em Jerusalém, se deparam com trágica morte do mestre.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

106

Os demais agentes entram na trama que encena o sepultamento de Jesus com o

propósito do serviço, que é fruto do seguimento. A este propósito José de Arimatéia se coloca

quando, diante de Pilatos, pede o corpo de Jesus. O serviço prestado por José, de caráter

cultual pode ter sido também expressão de um discipulado às escondidas. O último agente a

entrar em cena, o jovem no sepulcro vazio, projeta a diakonia do querigma para as mulheres

testemunhas. O jovem que aparentemente exerce o ministério querigmático, anunciando que

Jesus não está mais no interior do sepulcro, mas que vai à frente da comunidade dos

discípulos à Galiléia. O querigma deve ser continuado pelas mulheres testemunhas. O serviço

e o seguimento tornam-se, portanto, eixos que fundamentam a trama elaborada por Marcos.

É possível, portanto, perceber que os termos axiais akolouthia e diakonia são

indispensáveis para a compreensão da intriga de Mc 15,40-16,8. O serviço prestado pelas

mulheres-discípulas na comunidade marcana transforma-se em paradigma tanto para a

elaboração dos demais agentes que formam a trama narrativa, bem como para os leitores-

hermeneutas das comunidades cristãs de todos os tempos. O testemunho das mulheres adquire

sentido não apenas no ato de anunciarem que Jesus caminha à frente dos seus, mas no fato

ímpar narrado por Marcos, que diz que elas observavam de longe o que acontecia com Jesus,

pois eram suas discípulas e servidoras, desde à Galiléia.

Portanto, a confluência dos eixos semânticos akolouthia e diakonia, na narrativa,

permite ao leitor-intérprete da Palavra, deduzir que ele também é convidado à prática do

discipulado e do serviço. Ao atualizar o seguimento e o serviço proposto pela narrativa, o

leitor converte-se em personagem-agente e possibilita que a Palavra de Deus atinja o seu

verdadeiro significado de Boa Nova.

3.5 Considerações sobre a pragmática e a hermenêutica

Embora não podendo aqui aprofundar este assunto, consideramos brevemente os

aspectos pragmáticos referentes aos temas akolouthia e diakonia, abrindo-os em direção à

hermenêutica.

De modo geral, citamos alguns efeitos importantes constatados na narrativa da

perícope de Mc 15,40-16,8. Em primeiro lugar, ao inserir na trama final algumas mulheres

(15,40-41), o texto sugere que a Boa Notícia não é apenas uma missão para os discípulos

homens, mas para todo o gênero humano. Em segundo lugar, transforma-se a concepção e a

maneira de seguir a Jesus: não ir atrás de um corpo morto, como pensavam as mulheres diante

do sepulcro, mas seguir agora o ressuscitado; ele não “dorme no solo poeirento” (Dn 12,2),

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

107

mas precede os seus na Galiléia, na Comunidade na qual desempenhou seu ministério com os

discípulos. É na Galiléia que Jesus, o Vivente, estará a fim de se encontrar novamente com os

discípulos. Em terceiro lugar, o sepulcro não é um ponto de chegada, mas um ponto de partida

para o anúncio da ressurreição.

Deixar o sepulcro (mnēmeion) e ir comunicar aos discípulos e a Pedro – “Ele vos

precede à Galiléia. Lá o vereis, como ele vos disse” (v. 7), – significa que o “lugar da

manifestação do Ressuscitado não é o sepulcro, mas a comunidade dos discípulos”121. Tal

acontecimento realiza a profecia de Jesus no caminho do Monte das Oliveiras: “Todos vos

escandalizareis, porque está escrito: Ferirei o pastor e as ovelhas se dispersarão. Mas, depois

que eu ressurgir, preceder-vos-ei na Galiléia” (14,27-28).

O verbo “preceder” (proa,gein, presente também no relato tradicional da subida a

Jerusalém 10,32), quer significa que no caminho para Jerusalém Jesus “precede”, ele vai à

frente dos discípulos e dos peregrinos que o seguem “cheios de assombro”. Em Mc 16,7,

proa,gei indica também que Jesus precede os discípulos à Galiléia, no caminho da

comunidade apostólica.

O Ressuscitado, na companhia do Pai, vive também na comunidade. A relação com ele

não foi fadada pela morte. O tempo do Jesus histórico na Galiléia é tempo paradigmático, que

sinaliza a ação de Jesus que guia e envia os seus discípulos para anunciarem o Evangelho de

Deus (cf. 1,14-15). Jesus, pastor que vai à frente de seu rebanho, é realização da promessa

messiânica.

O Ressuscitado se faz ver na comunidade. “Lá o vereis, como ele vos disse”. Aponta-

se para causa última da experiência pascal dos discípulos: a ação divina. “A narrativa pascal

de Marcos nada diz a respeito do tipo de experiência dos discípulos que dá origem à sua fé na

Ressurreição: visões extáticas? Aparições do Ressuscitado? Iluminação interior? Ele diz, isto

sim, que na base da fé pascal, no seu centro, está a “compreensão”, causada pelo próprio

Senhor ressuscitado, do caminho do crucificado como “caminho de Deus”, como o caminho

do Messias que se revela como “Filho de Deus”122.

Deste modo, poder-se-ia afirmar que o Evangelho de Marcos apresenta uma catequese

narrativa para o dia de hoje. Uma catequese que revela o crescendo divino na vida dos

121 GOPEGUI, J. A. R. Para uma volta à catequese narrativa. Fé pascal e “história de Jesus” em Mc 16,1-8. Perspectiva Teológica. 16 (1984), p. 314. 122 GOPEGUI, p. 12.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

108

homens. Jesus, o Filho de Deus, é apresentado por Marcos como Messias a partir da relação

com os homens e mulheres de seu tempo.

Marcos revela um Messias que convida os homens ao discipulado, à pesca, ao

pastoreio, à companhia. Acompanhar Jesus significa, antes de tudo, abrir-se para a realização

do Espírito, configurando a própria existência à de Jesus, desejando, acima de tudo, trilhar o

caminho que leva ao Pai, caminhando na graça, no perdão, e na dinâmica do compromisso

fraterno.

De modo específico, a perícope de Mc 15,40-16,8 revela alguns efeitos importantes,

observáveis pela Wirkungsgeschichte123, que se preocupa com a hermenêutica, a atualização

na história da potencialidade contida no interior do texto. Os efeitos da narrativa contribuem

para a interpretação e atualização do texto na vida do leitor. Os efeitos do texto podem ser

constatados no agir daqueles que lêem o texto. O leitor é impelido a dar uma resposta, seja

positiva ou negativa, frente ao texto. A preocupação está ligada à teleologia, o sentido que o

texto ganhará ao ser lido. O interesse está voltado para o efeito para a ação do texto na vida

dos leitores ou daqueles que escutam sua proclamação.

Observa-se, portanto, que a perícope traz efeitos que servem de indícios concretos e

razoáveis para uma atualização.

Primeiramente, o relato afirma o serviço e o seguimento de Jesus por parte de algumas

mulheres. Elas o serviam e o seguiam quando ele estava na Galiléia. O serviço e o seguimento

não têm barreiras. Homem e mulher podem servir e seguir a Jesus. Para o seguimento não há

restrições. Basta o desejo de seguir, vivendo intensamente o convite feito por Jesus: o

seguimento da cruz.

O gênero feminino, nas comunidades cristãs de todos os tempos, foi chamado por

Jesus ao serviço e ao seguimento no caminho do discipulado. No convite ao discipulado não

pode haver sexismo. Nos tempos hodiernos, constata-se que em igrejas e comunidades

eclesiais de base as mulheres se encontram engajadas, ativas e presentes. Elas servem e

seguem Jesus, colocando-se à disposição para ajudar os irmãos e irmãs na fé. Jesus não põe

balizas para o seu seguimento. O seguimento não é um específico para o masculino, mas um

convite a todos, indistintamente, mulheres e homens. Servir e seguir a Jesus implica em uma

123 A história da interpretação e do efeito produzido orienta a atenção para a riqueza de sentido potencial escondida nos textos bíblicos. Cf. EGGER, W. Metodologia do Novo Testamento. Introdução aos métodos lingüísticos e histórico-críticos. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2005. p. 210.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

109

abertura irrestrita do coração. Para o chamado de Jesus, não há gênero que se imponha como

melhor ou superior. Na comunidade dos discípulos não deve existir um gênero com primazia,

que possa manipular e determinar as normas do agir dos discípulos. O mestre Jesus não faz

acepção de gênero. Ao contrário, convida a todos para o seguimento e para a profunda

experiência do serviço.

Portanto, faz-se mister resgatar na comunidade cristã de hoje o anúncio genuíno de

Jesus. Um convite que não discrimina o feminino em detrimento do masculino. O anúncio de

Jesus destrói qualquer possibilidade de demonização do feminino. É preciso lembrar que, as

companhias na última viajem de Jesus foram mulheres: “elas os seguiam e o serviam”. Este

“fato excepcional”, a presença das mulheres ao lado de Jesus, só podia aparecer como

revolucionário, insólito, tanto para os romanos como para os judeus patriarcas, e desagradar-

lhes. A atitude de Jesus, espontaneamente aberta e amiga diante das mulheres, desagradava a

muitos, como mostram diversas passagens dos Evangelhos. É o caso, por exemplo, do

espisódio da mulher cananéia, relatado por Marcos (7,24-30), no qual Jesus, no que se refere

à justiça e a salvação, supera os preconceitos contra as mulheres. A superação do preconceito

contra as mulheres pode ser observado também no relato da unção em Betânia (Mc 14,3-11),

no qual Jesus, ao ser ungido pela mulher antes da morte, afirma que ela fez-lhe uma boa obra

(14,6), antecipando a unção do corpo para a sepultura (14,8). Jesus diz ainda que em toda a

parte, onde este relato for narrado, também o que aquela mulher realizou será lembrado. O

serviço prestado pela mulher em Betânia torna-se sinal de oferta ao serviço de Jesus e da

comunidade cristã.

Por fim, a comunidade cristã de hoje é chamada a rever os conceitos que fundamentam

o discipulado e o serviço. A teleologia do texto do Evangelho só será atingida a partir do

momento em que o ouvinte da palavra se comprometer com aquilo que o texto apresenta. A

intenção do efeito do texto é, certamente, abrir a consciência humana para a magnitude do

discipulado de Jesus, não restrito apenas ao gênero masculino, mas destinado a todo ser

humano que se abre à escuta e vivência da Palavra. É mister, portanto, que a comunidade

cristã de hoje abra-se ao influxo da ruah, a fim de compreender que para o discipulado não há

restrições de gênero e, que as mulheres podem evidentemente participar da Igreja não apenas

como testemunhas do Ressuscitado, mas como discípulas que vivem a alegria da

Ressurreição.

Assim, a Igreja, convocada a viver com fidelidade a Palavra do mestre Jesus, deve

sempre se empenhar por viver a coerência e a solicitude para com os diferentes e para com o

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

110

gênero feminino, muitas vezes excluído e rechaçado pela estrutura androcêntrica patriarcal. Se

Jesus, vivendo numa cultura desse tipo, a superou, quanto mais hoje! Faz-se mister e urgente

acolher as diferenças e com elas somar as iniciativas de construir uma Igreja mais humana e

mais santa.

3.6 Conclusão A análise dos eixos semânticos akolouthein e diakonein nos ajuda a compreender a

relação entre a fé do discípulo ou mathētēs, e a práxis do seguimento e do serviço. A fé é o

motor que impulsiona o discípulo à ação de servir e seguir o mestre. Sem a práxis de vida a fé

do mathētēs de Jesus seria apenas um dado aleatório na experiência do discipulado. A práxis

cristã sem a fé é um mero agir, desorientado e desprovido de sentido. Por outro lado, a fé sem

a práxis é morta.

Percebe-se que os termos axiais akolouthein e diakonein, sutilmente inseridos na trama

narrativa de Mc 15,40-16,8, revelam que as discípulas de Jesus (cf. 15,40; 47; 16,1) agem

conforme acreditam. Portanto, a leitura desta perícope, além de nos permitir compreender a

importância do discipulado e do serviço das mulheres na comunidade cristã primitiva, sob a

luz do Ressuscitado, nos ajuda ainda a perceber que testemunho (querigmático) destas

discípulas está conectado à práxis, ao agir segundo a fé: “lex credendi - lex agendi”...

A leitura da perícope, sob a gestão do método de análise narrativa, possibilita-nos

verificar a dinâmica existente no coração do (a) discípulo (a) que se coloca a caminhar com o

mestre. A perícope marcana (15,40-16,8), meditada à luz da fé Pascal, é bastante significante,

pois abre possibilidades de re-pensar o sentido do discipulado (akolouthein) e do serviço

(diakonein) na comunidade cristã dos tempos de hoje.

É mister observar que a análise narrativa não tem a pretensão de dizer tudo, nem

mesmo dizer a verdade sobre tudo, mas tem como intenção conduzir o leitor à verdade sempre

nova extraída do Evangelho. É preciso, antes de tudo, que o leitor abra-se a força do Espírito,

a fim de perscrutar os sentidos que ela apresenta como Boa Notícia.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

111

CONCLUSÃO GERAL Valeu a pena? Tudo vale a pena,

Se a alma não é pequena. (Fernando Pessoa).

Após o caminho percorrido, nota-se que o seguimento e o serviço revelam-se forças

motrizes que impulsionam a vida e a evangelização da Igreja. O seguimento e o serviço

coexistem como expressões do testemunho, como características essenciais daqueles que

ouvem a voz do mestre Jesus e se dispõem a segui-lo. O seguimento pressupõe o serviço e

este se evidencia no seguimento. Na esteira do caminho do mestre, o discípulo é chamado a

servir aos irmãos como o mestre Jesus. Ele é o paradigma do servo para toda a Igreja e para os

cristãos. Jesus está a serviço do projeto salvífico do Pai. Ele o realiza tomando sua cruz e se

dirigindo-se para Jerusalém a fim de realizar a vontade de Deus. Ao morrer e ressuscitar,

Jesus possibilita que Deus se faça tudo em todos, cumprindo-se o plano salvífico, isto é, a

realização da história humana, elevada à dignidade da filiação divina. A paixão-morte-

ressurreição de Jesus é expressão ímpar e sublime do serviço ao Pai que aceita a vida do Filho

como dom, perfeita oblação. O Filho, por sua vez, assume a história da salvação e a

protagoniza como servo fiel, que se doa ilimitadamente na certeza do amor responsável

daquele que o chamou e o enviou à missão, o Pai. Jesus, o Filho, concretiza a promessa do Pai

impulsionado pela força do Espírito, que o leva para o deserto e depois o conduz à missão de

anunciar, curar, libertar os corações humanos da morte. O influxo pneumático é o que acende

na Igreja o desejo do serviço e do discipulado. A ação da ruah impele o cristão de ontem e de

hoje a seguir diligentemente os passos do mestre Jesus de Nazaré. O Espírito suscita na

comunidade dos discípulos, a Igreja, o desejo do discipulado e do serviço. Homens e

mulheres são inspirados a partilhar suas vidas e seus dons. É sob o influxo do Espírito que os

discípulos e discípulas deixam suas casas para anunciar Cristo Ressuscitado nas ruas, no

mundo, na cidade, nos campos, nas fábricas, nas escolas e em todos os rincões. É o hálito

feminino do Criador que suscita vida nova na Igreja em todos os tempos e lugares. Aos

chamados ao discipulado e ao serviço, o Espírito alimenta e encoraja para a missão de

profetizar e continuar a obra redentora do Filho. Deste modo, no discipulado e no serviço

evidenciam-se marcas indeléveis da ação trinitária. O Pai é quem chama a comunhão, o Filho

é quem dá exemplos com sua missão, o Espírito é quem anima e suscita o desejo de servir e

de seguir. Portanto, o discípulo é convidado por Jesus, o Filho, a seguir o caminho na busca

da realização da vontade de Deus, o Pai. No Filho Jesus, encontramos o sentido para o

discipulado, pois ele é o enviado do Pai para realizar a missão de salvar. O Filho expressa a

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

112

alegria em servir nas palavras do Evangelho: “Eu vim para servir e não para ser servido”. O

Espírito é quem credita o testemunho do Filho Jesus que deseja cumprir a vontade do Pai:

“Que todos tenham vida”.

Ao final do estudo, algumas conclusões parecem pertinentes:

a) O Evangelho de Marcos, como catequese narrativa, procurou sintetizar de maneira

fluida e nova a tradição proto-eclesial de Jesus. A narratividade da obra marcana permite-nos

o acesso à cristologia narrada, ou seja, às palavras e às ações do mestre Jesus na vida dos

discípulos do caminho. Marcos, ao escrever seu evangelho, deseja explicitar a mensagem de

Jesus, o anúncio do Reinado de Deus e a ação salvífica do Pai no Filho, Jesus Cristo. A

mensagem do Evangelho de Marcos, que tem como epicentro a pergunta “Quem é Jesus?”, é

ao mesmo tempo um convite explícito ao discipulado, à experiência profunda de acompanhar

Jesus até Jerusalém e, depois de sua morte, encontrar-se com ele Ressuscitado, na

comunidade dos discípulos, na Galiléia. O Evangelho de Marcos é, antes de tudo, um convite

a conhecer Jesus e fazer experiência com ele, descobrindo-o na comunidade dos seguidores e

seguidoras.

b) A perícope de Mc 15,40-16,8, clímax narrativo do Evangelho, constitui-se a espinha

dorsal da narrativa elaborada por Marcos. Esta perícope evidencia o anúncio da ressurreição

de Jesus, precedido pelo testemunho das mulheres no Calvário, diante da cruz (15,40) e no

sepultamento (15,47), bem como no querigma sobre o Ressuscitado proferido pelo jovem no

sepulcro (16,6). Jesus, na narrativa marcana, convida os discípulos ao seguimento. Faz-se

mister acolher o convite do mestre que chama à experiência do discipulado e do serviço. Com

isso, o leitor é impulsionado a repensar a fé em Jesus que convida a dinâmica do caminho,

evidenciando que é preciso entrar em movimento para seguir o mestre em sua trajetória. O

convite de Jesus é também convite para o serviço, que pode ser evidenciado na ação salvífica

e taumatúrgica de Jesus e na prática de libertar os homens do egocentrismo exacerbado. As

mulheres que participam o discipulado são também ícones do serviço. A perícope do

testemunho da cruz e do sepulcro, na qual elas são protagonistas, revela que o testemunho fiel

das mulheres se configura na íntima relação de seguir e servir. As mulheres que seguem Jesus

também o servem. Estas duas realidades do testemunho se completam e não podem ser

entendidas isoladamente. O discípulo que é chamado a seguir Jesus é também convocado a

evidenciar a fidelidade ao discipulado na práxis do serviço aos irmãos e irmãs.

c) O coração da perícope se revela no desenlace, com o imperativo ide dizer. As

mulheres que testemunham Jesus, ao largo da cruz, no sepultamento e no sepulcro vazio, são

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

113

chamadas agora a anunciar que ele não está morto, mas que vive ressuscitado e pode ser

encontrado na Galiléia, na comunidade dos seguidores. Destarte, a Igreja também é chamada

à missão de anunciar o Ressuscitado, a nova realidade de Cristo que vive no íntimo dos

discípulos e na experiência da vida comunitária. A comunidade dos discípulos, precedida por

Pedro, é sacramento do Vivente e é chamada a anunciá-lo. O anúncio do Ressuscitado é

acompanhado da práxis dos discípulos que anunciam. Em Marcos, a profissão de fé do

centurião (Mc 15,39) é corroborada pela práxis fiel do seguimento e do serviço por parte das

mulheres (15,40). A ação das mulheres deixa claro que o seguimento e o serviço são atitudes

testemunhais. O testemunho não se qualifica apenas por palavras, mas está associado à ação, à

práxis fiel. A humanidade só será capaz de perceber que Cristo vive se, de fato, a práxis dos

cristãos estiver em consonância com o que acreditam. Portanto, o discipulado só encontra seu

sentido nas práticas do serviço e do amor.

d) Nota-se que no discipulado não há razões para a exclusão do gênero feminino. Este

gênero, muitas vezes depreciado, também é chamado por Jesus à práxis do discipulado. Para

Marcos, é clarividente que as mulheres participam do discipulado de Jesus de Nazaré, vivendo

a práxis do serviço. As mulheres, mesmo que não convocadas com a mesma solenidade que

os homens na narrativa marcana, agem em conformidade com o significado do discipulado.

Elas acompanham Jesus até os momentos derradeiros, levando às últimas conseqüências o

seguimento e o serviço. O convite de Jesus, primeiramente direcionado aos homens, ganha

concretude na práxis das mulheres que o acompanham e o servem, desde o início de seu

ministério na Galiléia. A especificidade do discípulo é testemunhar com vida que o chamado

do mestre é importante e que tem sentido.

e) O drama elaborado por Marcos ganha edificação através dos termos axiais,

akolouthein e diakonein. Estes coexistem em confluência na narrativa, perpassando toda

estrutura literária da perícope. Evidentemente, estes axiomas fornecem sentido à trama e à

mensagem que o autor do Segundo Evangelho deseja passar. Significa que, para Marcos em

sua arte narrativa, os eixos semânticos akolouthein e diakonein exercem força inspiradora e

norteadora. Os agentes (personagens) desempenham ações pautadas nos eixos discipulado e

serviço, isto é, fornecem ao projeto narrativo do autor Marcos uma importância vital,

tornando a perícope um relato exemplar. De um modo geral, os personagens, ao

desempenharem as funções de discípulos e servidores na trama narrativa, corroboram que

estes termos axiais são imprescindíveis para a formalização do testemunho na comunidade de

fé. Para Marcos, os termos axiais akolouthein e diakonein, que fundamentam e alicerçam a

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

114

vida da proto-comunidade, devem ser vividos como paradigmas para as comunidades cristãs

dos tempos ulteriores e atuais.

f) Depreende-se, por fim, que a narrativa marcana obtém seu verdadeiro sentido

quando instaura o processo de dúvida no leitor que perscruta com curiosidade seus meandros

narrativos. O leitor, portanto, é convidado a encontrar a resposta que o texto deixou aberta. O

drama por mais perfeitamente elaborado deixa margem a perguntas, questões e respostas.

Estas últimas, as respostas, devem condizer em tudo com a totalidade narrativa de Marcos.

Não se trata de o leitor criar conjecturas e hipóteses aleatórias, mas de encontrar sentido novo

para a narrativa especificamente. Não se trata tão pouco de condicionar a leitura a uma

resposta, nem sequer sugerir respostas prontas e acabadas. O texto, por sua vez, permite que o

leitor execute de forma livre a resposta mais coerente com o projeto idealizado pelo autor.

Evidentemente a beleza e a profundidade da narrativa bíblica estão configuradas no leque de

possibilidades que ela oferece ao leitor. O texto bíblico, como qualquer texto literário,

considerado um outro na relação com o leitor não pode ser esvaziado, nem deturpado. Ele

deve ser sempre um outro (alter), que se dá a conhecer e que nunca pode ser aprisionado ou

esgotado em seu mistério narrativo-teológico.

Deste modo, percebe-se que a leitura e o estudo do Evangelho de Marcos são

imprescindíveis para o advento de uma nova consciência sobre o discipulado e o serviço das

mulheres na Igreja. A partir do estudo do Segundo Evangelho, evidencia-se que o testemunho

das mulheres é também qualificado, pois soma a palavra à ação, resultando o importante

querigma da Igreja primitiva que pode ser observado até os dias de hoje em nossas

comunidades de fé.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

115

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

1. Instrumentos

A BÍBLIA de Jerusalém. Nova Edição Revista. São Paulo: Paulus, 2000. A BÍBLIA Sagrada: O Velho e Novo Testamento. Trad. João Ferreira de Almeida. Ed. Corrigida e Revisada Fiel ao Texto original. São Paulo: Sociedade Bíblica Trinitariana do Brasil, 2005.

ALAND, Barbara. et al. The Greek New Testament. 4. ed. revis. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft; USA: United Bible Societies, 1994.

BÍBLIA Sagrada: Tradução da CNBB. 6. ed. Com Introduções e notas. Brasília: CNBB; São Paulo: Canção Nova, 2007.

BÍBLIA Tradução Ecumênica. São Paulo: Loyola, 1994. DENZINGER, Heinrich. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral. São Paulo: Paulinas/Loyola, 2007. KOHLENBERGER, John R. et. al. The exhaustive Concordance to the Greek New Testament. Grand Rapids: Zodervan, 1995. KONINGS, Johan. Sinopse dos Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas e da “Fonte Q”. São Paulo: Loyola, 2005. METZGER, Bruce Manning. A textual commentary on the Greek New Testament. 2. ed. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 1994. NESTLE-ALAND. Novum Testamentum Graece, post Eberhard et Ervin Nestlé ed. 27. revis. communiter ediderunt Bárbara et Kurt Aland, Johannes Karavidopoulos, Carlo M. Martini, Bruce M. Metzger. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 1993.

2. Bibliografia básica

ALDANA, Hugo O. Martinez. O discipulado no Evangelho de Marcos. São Paulo: Paulinas/Paulus, 2005. AZEVEDO, Walmor Oliveira. Comunidade e missão no Evangelho de Marcos. São Paulo: Loyola, 2002. BABUT, Jean-Marie. Actualite de Marc. Paris: Cerf, 2002.

BEYER, H. W. Diakonέw. In: KITTEL, Gerhard.; FRIEDRICH, Gerhard. Grande Lessico del Nuovo Testamento. Vol. II. Brescia: Paideia, 1966. p. 956-969.

BLENDINGER, Ch. vakolouqe,w. In: COENEN, L.; BROWN, C. Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento.Vol 1. São Paulo: Vida Nova, 2000. p. 578-581.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

116

BOMBONATTO, Ivanise. Seguimento de Jesus: Uma abordagem a partir da cristologia de Jon Sobrino. São Paulo: Assunção (Tese de Doutorado), 2001. CUVILLIER, Elian. L’ Evangile de Marc. Geneve: Labor et fides, 2002.

FABRIS, Rinaldo. Marcos. In: BARBAGLIO, Giuseppe.; FABRIS, Rinaldo.; MAGGIONI, Bruno. Os evangelhos (I). São Paulo: Loyola, 1990.

FOCANT, Camile. L’ evangile selon Marc. Paris: Cerf, 2004. FUMAGALLI, Aristide. Fatica e gioia della sequella: la formazione dei discepoli nel Vangelo di Marco. Milano: Ancora, 2002 GNILKA, Joachim. El Evangelio según san Marcos: Mc 1-8,26. Salamanca: Sígueme, 1986. _____. El Evangelio según san Marcos: Mc 8,27-16,20. Salamanca: Sígueme, 1986. HARRINGTON, Daniel. Il vangelo secondo Marco. In: BROWN, Raymond E.; FITZMEYER, Josepth A.; MURPHY, Roland E. (ed. interamente rinnovata). Nuovo Grande Commentario Biblico. Brescia: Queriniana, 1997. p. 776-820.

HERRERO, Pérez. Evangelio según san Marcos. In: OPORTO, Guijarro S.; SALVADOR GARCIA, M. et. al. Comentario al Nuevo Testamento. 2. ed. Madrid/Atenas, Madrid/PPC, Salamanca/Sígueme, Navarra/Verbo Divino, 1995. p.125-184. (La casa de la Biblia). HESS, Karl. servicio. In: COENEN. Lothar.; BEYREUTHER, Erich.; BIETENHARD, Hans. Diccionario teológico del Nuevo Testamento. Vol IV. Salamanca: Sígueme, 1990. p. 212-216. KITTEL, Gerhard. avkolouqe,w. In: KITTEL, Gerhard. (ed.) Theological dictionary of the new testament. Vol. 1. Michigan: Eerdmans, 1977. p. 210-216. KONINGS, Johan. Marcos. São Paulo: Loyola, 1994.

LAGRANGE, Marie-Joseph. Evangile selon s. Marc. Paris: Gabalda, 1947. LENTZEN-DEIS, Fritzleo. Comentário ao Evangelho de Marcos. São Paulo: Ave Maria, 2003 MARGUERAT, Daniel; BORQUIN, Yvan. Como leer los relatos bíblicos. Iniciación al análisis narrativo. Bilbao: Sal Terrae, 2000. MATEOS, Juan. Los “doce” y otros seguidores de Jesus en el evangelio de Marcos. Madri: Cristandad, 1982. MATEOS, Juan; CAMACHO, Fernando. Marcos: texto y comentario. Madri: Almendro, 1994. MÜLLER, Daniel. maqhtής. In: COENEN, Lothar; BROWN, Colin. Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento.Vol 1. São Paulo: Vida Nova, 2000. p. 581-587. MÜLLER, Otto. seguimiento. In: COENEN, Lothar; BEYREUTHER, Erich; BIETENHARD, Hans. Diccionario teológico del Nuevo Testamento. Vol. IV. Salamanca: Sígueme, 1990. p. 175-180.

PESCH, Rudolf. Il vangelo di Marco: Introduzione e commento ai capp. 1,1-8,26. Brescia: Paideia, 1980.

_____. Il vangelo di Marco: commento ai capp. 8, 27-16, 20. Brescia: Paideia, 1982. RADERMAKERS, Jean. La bonne nouvelle de Jésus: selon saint Marc. Bruxelles: Institut d’études théologiques, 1974.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

117

RENGSTORF, Karl Henrich. maqhtής. In: KITTEL, G. Theological dictionary of the new testament. Vol. IV. Michigan: Eerdmans, 1977. p. 415-461. SCHNACKENBURG, Rudolf. The gospel according to St. Mark. New York: Crossroad, 1981. SCHNEIDER, Gerhard. avkolouqe,w in: BALZ, Horst; SCHNEIDER, Gerhard. Diccionario Exegetico del Nuevo testamento. Vol. I. Salamanca: Sígueme, 1996. p. 145-155. SCHULZ, Anselm. Discípulos do Senhor. São Paulo: Paulinas, 1969.

SCHWEIZER, Edward. Il vangelo secondo Marco. Brescia: Paideia, 1971.

_____. L’Evangelo della comunita primitiva. Brescia: Paideia, 1984.

STANDAERT, Benoît. L’Evangile selon saint Marc: commentaire. Paris: Cerf. 1983. TAYLOR, Vincent. Evangelio según san Marcos. Madrid: Cristandad, 1979.

TEPEDINO, Ana Maria de Azeredo Lopes. Discipulado de iguais: um estudo sistemático-pastoral sobre o discipulado das mulheres nos evangelhos. Rio de Janeiro: PUC-Rio (Dissertação de Mestrado), 1986. TUYA, Manuel de. Biblia comentada: evangelios. BAC: Madrid, 1963.

WEISER, Alfons. diakonέw. In: BALZ, Horst; SCHNEIDER, Gerhard. Diccionario Exegetico del Nuevo testamento. Vol. I. Salamanca: Sígueme, 1996. p. 911-920.

3. Bibliografia complementar

ALETTI, Jean-Noël. L’art de raconter Jésus-Christ, Paris: Seuil, 1989.

_____. La construction du personage Jésus dans les récits évangéliques: Le cas de Marc. In: FOCANT, Camile.; WÉNIN, Andre. (Ed.) Analyse narrative et bible. Deuxième colloque international du RRENAB. Leuven: University. 2005.

ARENS, E; ASCENSIO, L. A.; DIAZ MATEOS, M. El que quiera venir conmigo: discípulos según los evangelios. Lima: CEP, 2007.

BARTH, Karl. Chamado ao discipulado. São Paulo: Fonte editorial, 2006. BENÍCIO, Paulo José. A língua do Evangelho segundo Marcos no códice grego da Biblioteca nacional do Rio de Janeiro. Fides reformata X 1 (2005), p.101-113. BONHOEFFER, Dietrich. Discipulado. 9. ed. São Leopoldo: Sinodal, 2004.

BORNKAMM, Günther. Jesus de Nazaré. Petrópolis: Vozes, 1976. BULTMANN, Rudolf. L’ histoire de la tradition synoptique, suive du complément de 1971. Paris: A. Malet, 1973. CONZELMANN, Hans. Teologia del nuovo testamento. Brescia: Paideia, 1972.

DREWERMANN, Eugen. El mensaje de las mujeres: la ciencia del amor. Barcelona: Herder, 1996.

DUQUOC, Christian. Cristologia: ensaio dogmático I. São Paulo: Loyola, 1992. _____. Cristologia: ensaio dogmático II. São Paulo: Loyola, 1980.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

118

EGGER, Wilhelm. Metodologia do novo testamento. Introdução aos métodos lingüísticos e histórico-críticos. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2005. FAUSTI, Silvano. Ricorda e raconta il vangelo: la catechesi narrativa di Marco. Milano: Ancora, 1998. FIORENZA, Elisabeth Schüssler. Discipulado de iguais. uma ekklesia-logia feminista crítica da libertação. Petrópolis: Vozes, 1995. FRAINE, Jean. Crucifixão. In: BORN, A. van den. (red.) Dicionário Enciclopédico da bíblia 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1977. p. 336-338. FRAINE, Jean. Unção. In: BORN, A. van den. (red.) Dicionário Enciclopédico da bíblia. Petrópolis: Vozes, 1971. p. 1539-1541. GABEL, John. B.; WHEELER, Charles. B. A bíblia como literatura: uma introdução. São Paulo: Loyola, 1993. GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método. Fundamentos para una hermenéutica filosófica. Salamanca: Sígueme, 1977. GALLARDO, Carolos Bravo. Jesus homem em conflito: o relato de Marcos na América Latina. São Paulo: Paulinas, 1997. GENEST, Olivet. Le Christ de la passion : perspective structurale: analyse de Marc 14,53 - 15,47, des paralleles bibliques et extra-bibliques. Montreal : Bellarmin, 1978. GNILKA, Joachim. Teologia del Nuevo Testamento. Madri: Trotta, 1998

GONZÁLES, Carlos Ignacio. Ele é a nossa salvação. São Paulo: Loyola, 1992.

GOPEGUI, Juan A. R. Para uma volta à catequese narrativa. Fé pascal e “história de Jesus” em Mc 16,1-8. Perspectiva Teológica 16 (1984), p. 313-331. GOURGUES, Michel. Jesus diante de sua paixão e morte. São Paulo: Paulinas, 1985.

HENDRICKX, Herman. Los relatos de la pasión. Madrid: Paulinas, 1986.

GRÜN, Anselm. Jesus caminho para liberdade: O Evangelho de Marcos. São Paulo: Loyola, 2006.

JAKOBSON, Roman. Essais de linguistique génerale. Arguments 14. Paris: Minuit, 1963. KASPER, Walter. Jésus, le Christ. Paris: Cerf, 1976.

KONINGS, Johan. Evangelho segundo João: amor e fidelidade. São Paulo: Loyola, 2005. MANICARDI, Ermenegildo. Il camino di Gesù nel vangelo di Marco. Rome: Biblical Institue press, 1981. MANNS, Frédéric. Le milieu sémitique de l’Évangile de Marc. Liber Annuus 48 (1998), p. 125-142. MARGUERAT, Daniel. Entrer dans le monde du récit. Une présentation de l’analyse narrative. Transversitalités 59 (1996), p. 1-17.

MARTINI, Carlo Maria. O Itinerário espiritual dos doze no Evangelho de Marcos. 3. ed. São Paulo: Loyola, 1997 MAZZAROLO, Izidoro. Evangelho de Marcos: estar ou não com Jesus. São Paulo: Mazzarolo, 2004

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)

119

METZGER, Bruce Manning. The text of the New Testament: its transmission, corruption, and restoration. 2. ed. Oxford: Clarendon, 1979. MOINGT, Joseph. O homem que vinha de Deus. São Paulo: Loyola, 2008.

MONLOBOU, Louis; BUIT, F. M. “Cruz”. In. MONLOBOU, L.; BUIT, F. M. Dicionário bíblico universal. Petrópolis: Vozes; Aparecida: Santuário, 1997. p. 168-169.

MUNDLE, W. e,kstasiς. In: COENEN, Lothar; BROWN, Colin. Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento. Vol. III. São Paulo: Vida Nova, 2000. p. 783-784.

NOLLI, Guiseppe. Evangelo secondo Marco. Roma: Agencia libro cattolico, 1978. PALÁCIO, Carlos. Jesus Cristo história e interpretação. São Paulo: Loyola, 1979

RICOEUR, Paul. A hermenêutica bíblica. São Paulo: Loyola, 2006. ROBERT, Andre; FEUILLET, Andre. Introduction a la Bible: Nouveau Testament. Vol 2. Paris : Desclée, 1959. ROBERTSON, Archibald Thomas. Imágenes verbales en el Nuevo Testamento. Mateo y Marcos. Vol. 1. Barcelona: Talheres gráficos, 1998. SCHILLEBEECKX, Edward. Jesus: la historia de um Viviente. Madrid: Cristandad, 1981.

SCHNELLE, Udo. Introdução à exegese do novo testamento. São Paulo: Loyola, 2004. SESBOÜE, Bernard. Pedagogia do Cristo: elementos de cristologia fundamental. São Paulo: Paulinas, 1997. SILVA, Cássio Murilo Dias da. Aprenda a enxergar com o cego Bartimeu, ou... Por que é necessário um método para ler a Bíblia. Estudos Bíblicos 98 (2008), p. 33-45. SOBRINO, John. Jesus, o libertador. A história de Jesus de Nazaré. São Paulo: Vozes, 1994.

STEGEMANN, Ekkehard; STEGEMANN, Wolfgang. História social do protocristianismo: os primórdios no judaismo e as comunidades de Cristo no mundo mediterrâneo. São Paulo: Paulus, 2004.

TILLESSE, Gaetan Minette de. Le secret messianique dans l'Evangile de Marc. Paris: Cerf, 1968. VANHOYE, Albert. La passion selon les quatres evangiles. Paris: Cerf, 1981.

VIELHAUER, Phillip. Historia de la literatura cristã primitiva: introduccion al Nuevo Testamento, los apocrifos y los padres apostólicos. Salamanca: Sígueme, 1991.

VITÓRIO, Jaldemir. Narratividade do livro de Rute. Estudos Bíblicos 98 (2008), p. 85-106. WEGNER, Uwe. Exegese do Novo Testamento: manual de metodologia. 3. ed. São Leopoldo: Sinodal, São Paulo: Paulus, 1998. WÉNIN, Andre. De l’ analyse narrative à la théologie des recits bibliques. Revue théologique de Louvain 39 (2008), p. 369-396. WILLIAMS, Joel F. Discipleship and Minor Characters in Mark’s Gospel. Bibliotheca Sacra. 153 (1996), p. 332-343.

Create PDF files without this message by purchasing novaPDF printer (http://www.novapdf.com)