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1 AGOSTINHO E A IGREJA COMO ESPAÇO DE FORMAÇÃO NO FIM DA ANTIGUIDADE doi: 10.4025/XIIjeam2013.pirateli.pereiramelo42 PIRATELI, Marcos Roberto 1 PEREIRA MELO, José Joaquim 2 Introdução Nos últimos anos centralizamos nossa pesquisa no pensamento de Santo Agostinho (354-430) 1 e sobre a Antiguidade cristã 2 , o que possibilitou estudar como o Bispo de Hipona construiu o seu conceito de Igreja, tão caro ao cristianismo no mundo antigo, sobretudo no momento em que este assumiu o controle e formação dos homens no ocaso do Império Romano. Portanto, o presente texto tem como objetivo analisar como Agostinho definiu a Igreja como “Cidade de Deus”, ligando-a a uma proposta educativa, isto é, como local privilegiado de tal processo. * * * O estudo sobre o conceito de Igreja em Santo Agostinho justifica-se no interesse de investigar o papel desse pensador, que foi um dos primeiros grandes filósofos do cristianismo, e um dos mais importantes Padres da Igreja 3 na conjuntura da decadência do Império romano, o que possibilitou, de sua parte, uma ação idealizadora para a formação dos homens de sua época. A importância e vigor do seu legado teológico-filosófico e educacional cruzaram o limiar de seu tempo, invadindo o medievo para fluir como seu mentor espiritual e fundamento de sua cultura, concluindo assim um período, a Antiguidade, e iniciando outro, a Idade Média (HAMMAN, 1990). É adequado considerar que a influência de Santo Agostinho continua presente na história do cristianismo (ARENDT, 1997), principalmente por ainda marcar presença no magistério da Igreja 4 , por extensão, na sociedade, a exemplo de princípios morais e de virtude. 1 UNESPAR/Fundação Araucária/SETI. 2 DFE/PPE/UEM.

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AGOSTINHO E A IGREJA COMO ESPAÇO DE FORMAÇÃO NO

FIM DA ANTIGUIDADE doi: 10.4025/XIIjeam2013.pirateli.pereiramelo42

PIRATELI, Marcos Roberto1

PEREIRA MELO, José Joaquim2

Introdução

Nos últimos anos centralizamos nossa pesquisa no pensamento de Santo Agostinho

(354-430)1 e sobre a Antiguidade cristã2, o que possibilitou estudar como o Bispo de Hipona

construiu o seu conceito de Igreja, tão caro ao cristianismo no mundo antigo, sobretudo no

momento em que este assumiu o controle e formação dos homens no ocaso do Império

Romano.

Portanto, o presente texto tem como objetivo analisar como Agostinho definiu a

Igreja como “Cidade de Deus”, ligando-a a uma proposta educativa, isto é, como local

privilegiado de tal processo.

* * *

O estudo sobre o conceito de Igreja em Santo Agostinho justifica-se no interesse de

investigar o papel desse pensador, que foi um dos primeiros grandes filósofos do cristianismo,

e um dos mais importantes Padres da Igreja3 na conjuntura da decadência do Império romano,

o que possibilitou, de sua parte, uma ação idealizadora para a formação dos homens de sua

época. A importância e vigor do seu legado teológico-filosófico e educacional cruzaram o

limiar de seu tempo, invadindo o medievo para fluir como seu mentor espiritual e fundamento

de sua cultura, concluindo assim um período, a Antiguidade, e iniciando outro, a Idade Média

(HAMMAN, 1990). É adequado considerar que a influência de Santo Agostinho continua

presente na história do cristianismo (ARENDT, 1997), principalmente por ainda marcar

presença no magistério da Igreja4, por extensão, na sociedade, a exemplo de princípios morais

e de virtude.

1 UNESPAR/Fundação Araucária/SETI. 2 DFE/PPE/UEM.

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Não só isso: as teses agostinianas, para além da Teologia e da Filosofia, deixaram

marcas em várias áreas do conhecimento, tais como a Psicologia, a Literatura e a Ciência, e,

particularmente, na Educação.

Segundo Adalbert Hamman (2002), o campo da pesquisa sobre Patrística – estudo dos

Padres da Igreja – cresceu imensamente, seja em publicações de livros e artigos seja em

monografias (teses e dissertações). Esses estudos cresceram sobretudo após a sua laicização,

isto é, quando os textos deixaram de ser investigados somente à luz da história antiga dos

dogmas (pelo clero), e passaram a ser analisados também por outras áreas do conhecimento,

por exemplo, a Educação. Isto posto, ao apresentar aquilo que Agostinho entendeu como local

de educação pode vir a colaborar para a História e a Historiografia da Educação, assim como

propor novas perspectivas para o estudo e a pesquisa do pensamento cristão na Antiguidade ao

dar enfoque na analise do direcionamento educacional que ele construiu, qual seja, de um

espaço específico e universal de formação dos homens, a Igreja.

Fontes

Apesar de apreciar pelo menos seis tratados agostinianos5, a investigação privilegiou

dois em especial, a saber, A Instrução aos Catecúmenos e A Cidade de Deus.

A Instrução aos Catecúmenos [De catechizandis rudibus] foi escrita aproximadamente

em 405 a pedido do diácono Deogratias de Cartago, e versa sobre o que e de que modo se

deveriam ensinar os conversos. Com o objetivo de atender as necessidades pastorais da Igreja

quanto à formação daqueles que se convertiam ao cristianismo, esta obra, catequética e

kerygmática, tornou-se o modelo completo para quem queria fazer-se cristão (DOMÍNGUEZ,

2005); para Henri-Irénée Marrou (1990, p. 481): “... uma teoria da catequese cujo valor

propriamente pedagógico iria, por muitos séculos, assegurar-lhe sucesso”. Daí ser considerada

obra-prima da pedagogia catequética. É válido explicitar que o catecumenato era o estágio de

preparação para se conhecer a doutrina cristã e se tornar um membro da Igreja. Para tal,

implicava tanto a instrução da fé (aulas teóricas) como a reforma dos costumes (práticas

ascéticas), portanto, é um ponto importante para a história da educação, visto ser a principal

criação educativa dos primeiros séculos do cristianismo. Ao educar os homens pelo

catecumenato, Santo Agostinho salientou sua proposta de formação ideal para a humanidade, e

num espaço específico: a Igreja; o que inspirou sua obra magna, A Cidade de Deus.

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A Cidade de Deus [De Civitate Dei] foi escrita entre os anos 413 e 427, sendo

composta por 22 livros. Iniciada após o saque de Roma, em 410 – pelos visigodos liderados

por Alarico –, vinha de encontro à reação pagã, ainda viva nos meios intelectuais, que

creditavam aquele flagelo ao desejo dos deuses, ofendidos pela nova religião: o cristianismo.

Ao revisar este seu tratado em suas Retratctationes, Santo Agostinho destacou como essencial

sau análise sobre a “nascita delle due città, quella di Dio e quella di questo mondo, i quattro

successivi della loro evoluzione e del loro sviluppo, gli altri quattro, che sono anche gli

ultimi, dei dovuti fini di ciascuna di esse. Tutti i ventidue libri, pertanto, pur trattando di

entrambe le città, hanno mutuato il titolo dalla migliore, la Città di Dio” (Le Ritrattazioni,

II, 43, 2). Com base nisso, promoveu uma crítica histórica da humanidade, objetivando

compreender sua dinâmica; assim, sua filosofia da história não poderia resultar em outra coisa

senão numa teologia da história, haja vista sua preocupação em aceitar o encontro entre a fé e a

história não somente como espaço vital, mas também como questão de sentido. Para a proposta

agostiniana, a maior característica da história era o seu caráter dualista, ao apresentar o

confronto de duas formações humanas, duas sociedades, o povo de Deus (cidade celeste) e os

ímpios (cidade terrestre), resumindo a história em duas cidades que no fim dos tempos (Juízo

Final) serão devidamente separadas, e, cujo final feliz somente seria alcançado para aqueles

que estivessem ligados à primeira delas: “a Cidade de Deus, quer dizer, a Igreja” (A Cidade de

Deus, XIII, 16, 1), como sentenciou. Em suma, Santo Agostinho legou ao cristianismo a idéia

de uma sociedade religiosa de essência sobrenatural, que peregrinava na busca de Deus, mas,

em um espaço específico.

Metodologia

A investigação das transformações sociais ocorridas no fim da Antiguidade tendo

como objetivo Santo Agostinho a Igreja como lócus educativo em seu pensamento, implica

uma metodologia que contemple a necessidade de desvendar a organização da sociedade

romana em meio à decadência do Império Romano (séculos IV e V) e sua integração com o

cristianismo; e a partir daí especificar e compreender como esta religião ao elaborar uma visão

de mundo, discursos, mitos, entre outros, construiu meios para organizar a sociedade: que se

configurou em um processo modelador de comportamentos, hábitos e atitudes, por extensão,

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na ordenação de uma relação de dominação sobre a qual foi possível à Igreja ser a única

instituição formadora da sociedade.

A investigação, mesmo que seu foco seja um tema educacional, privilegiou como

pressupostos os fundamentos historiográficos, isto é: uma pesquisa respaldada por uma lógica

histórica.

Os historiadores serão tentados, a meu ver acertadamente, a escolher uma determinada relação ou complexo de relações como central e específico da sociedade (ou tipo de sociedade) em questão, e a agrupar o resto da abordagem ao seu redor [...]. Uma vez estabelecida a estrutura, ela deve ser vista em seu movimento histórico. Na dicção francesa, a “estrutura” deve ser vista na “conjuntura”, embora este termo não deva ser considerado como excluindo outras formas e padrões de mudança histórica, talvez mais relevantes. [...] As tensões às quais a sociedade está exposta no processo de mudança histórica e transformação permitem então que o historiador exponha, em primeiro lugar, o mecanismo geral pelo qual as estruturas da sociedade tendem simultaneamente a perder e restabelecer seus equilíbrios e, em segundo lugar, os fenômenos que tradicionalmente são o tema de interesse dos historiadores sociais, como, por exemplo, consciência coletiva, movimentos sociais e a dimensão social das mudanças intelectuais e culturais (HOBSBAWM, 2005, p. 94).

O conceito de Igreja agostiniano foi tomado como histórico, elaborado para responder

aos problemas de seu tempo; seu vigor depende da subsistência das relações sociais que o

moldaram. Compreende-se a base da história intelectual ou pedagógica como decorrente da

estrutura social, e não como simples sistema de idéias.

Segundo Ciro Flamarion Cardoso (2005) não se pode aplicar uma separação entre o

material e o ideal, ou seja, o discurso ideológico enquanto comunicação e/ou produção de

idéias não é somente ideal, assim como a produção econômica não é puramente material: tudo

isto simplesmente é social; por isso o pensamento de Santo Agostinho é fruto de relações

historicamente específicas, debatidas entre indivíduos reais, que no fim da Antiguidade

estavam lutando para definirem sua própria orientação religiosa-educativa, fosse

institucionalizada ou não, em forma de Igreja universal (ou outra forma qualquer).

O pensamento pedagógico, e eclesiástico, é entendido enquanto produto humano que,

em uma investigação histórica a partir do movimento social em sua totalidade, desencadeado

por uma transformação, traz consigo um novo tipo de sociedade e de homem, identificados

como “mais adequados”, e que devem ser formados em um espaço “mais adequado”.

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Nessa conjuntura o emergir do pensamento agostiniano configurou-se em uma nova

proposta ao elaborar o seu conceito de universalidade da Igreja, fundamental para o

cristianismo em seu processo de consolidação no fim do mundo antigo e início da Idade

Média, sobretudo, no momento em que essa religião assumiu o controle dos homens no ocaso

do Império Romano.

Para tanto, o diálogo com os tratados (fontes) de Santo Agostinho, lidos em sua

historicidade, revelam as ideologias e as práticas que viabilizaram a apresentação da sua tese

eclesiástica em sua forma mais bem-acabada que, em linhas gerais, mostrou aos homens uma

instituição formativa ideal (e/ou idealizada): a Igreja, definida em sua universalidade: ou

“Cidade de Deus” como argumentou (cf. A Cidade de Deus, VIII, 24, 2).

É válido destacar que “ideologia” aqui, enquanto enfoque metodológico de análise

historiográfica da educação, não é aquele tal como apareceu no século XIX (como “falsa

consciência”), mas o desenvolvido segundo a concepção gramsciana identificada como

“ideologia historicamente orgânica”, a rigor, uma ideologia vista como necessária a uma dada

estrutura – isto é, não como algo desejado –, portanto respaldada por uma validade psicológica

enquanto organizadoras das massas humanas (GRAMSCI, 1966). Neste sentido, a

argumentação cristã pôde alentar os homens em suas incertezas, tal como aconteceu na

transição da Antiguidade à Idade Média.

Mesmo que a maioria dos interpretes optam por uma distinção entre Igreja e Cidade de

Deus em Agostinho, Étienne Gilson (1982) por exemplo, Emilien Lamirande (1994) ao

abordar esta questão no Augustinus-Lexikon, assinalou como difícil uma resposta para essa

problemática, deixando o debate em aberto. Ao centrar-se nessa discussão, e com uma leitura

histórica das fontes, portanto, pode-se defender a hipótese de que a Igreja é definida como

“Cidade de Deus” no pensamento agostiniano; conforme seu próprio testemunho: “... está claro

ser Sião a cidade de Deus, qual é a cidade de Deus, senão a santa Igreja? Os homens que se

amam mutuamente e que amam Deus, que neles habita, constituem a cidade de Deus”

(Comentário aos Salmos, 98, 4).

Daí sua proposta de que a educação cristã, tendo em vista o Homem santificado, o

santo, somente poderia ser ministrada na e pela Igreja:

No meio de muitos e variados sinais das coisas futuras – que seria longo enumerar e que vemos agora cumprir-se na Igreja, o povo eleito foi conduzido à Terra da Promissão [...]. Seus cidadãos são todos os homens

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santificados no passado, no presente e no futuro e todos os espíritos santificados (A Instrução aos Catecúmenos, 20, 36).

Considerações Finais

Concomitante ao desmantelamento de seu Estado (séculos IV e V), o Império Romano

presenciou o emergir de uma religião que havia nascido logo após a sua instauração em 27

a.C.: o cristianismo, que em pouco tempo ganhou aceitação significativa no Ocidente Europeu.

Na medida em que o cristianismo foi se organizando e consolidando, sua Igreja – o

“corpo” reunido dos cristãos, corpus fidelium – conquistou espaço legal com a conversão do

imperador Constantino, no início do século IV, e, posteriormente, alcançou seu triunfo com o

imperador Teodósio, ao tornar-se religião oficial do Império em 380.

Em virtude dessa condição, a Igreja, como instituição triunfante, assumiu o poder civil

no fim da Antiguidade, de fato e de direito, e o poder passou a ser interesse dos seus dirigentes.

Importa lembrar que mesmo antes do fim do Império, os bispos – ocupantes de posição de

liderança na hierarquia do clero – assumiram a magistratura das cidades. Dessa forma, o poder

do Estado, outrora a serviço do “paganismo”, passava ao serviço da Igreja, que assumiu o

status de instituição que orientou os homens na transição da Antiguidade para a Idade Média.

Nesse ambiente propício, os líderes do cristianismo assumiram a condução da nova ordem

social, assim como a direção educacional dos homens: cite-se como exemplo o catecumenato,

processo formativo (teórico e prático) peculiar para a admissão na Igreja (NUNES, 1978) e que

teve em Santo Agostinho um de seus principais teóricos em seu tratado A Instrução aos

Catecúmenos.

Com a dissolução do mundo antigo e a ascensão da Igreja, esta não limitou seu papel

ao campo espiritual, mas, como nova condutora do orbis – pelo menos na parte ocidental – não

pôde se ausentar das questões civis, de tal modo que sua política de moralização da vida

pública contribuiu para a consolidação da vida servil.

A justificativa para essa nova orientação foi encontrada na sua essência tida como

sobrenatural, para além da história, para cristãos vista como superior ao Estado romano. Para

além, a sua condição de sociedade autônoma, organizada sob suas diretrizes específicas que

respondiam às necessidades daquele momento histórico, garantiram a sua expansão pelo orbis

romano, acrescido da cristianização do Império, que, em certa medida acabou confundindo-a

com a própria sociedade romana.

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Vale destacar que a fragmentação do mundo romano favoreceu a Igreja, que era

constituída por uma estrutura fragmentada, um somatório (como que uma “federação”) de

igrejas particulares dispersas pelo orbis. A igreja particular, ou diocese, era a comunidade

cristã liderada pelo seu bispo, segundo a tradição, herdeiros da sucessão apostólica.

Na medida em que a Igreja se expandia ao se organizar, a sucessão apostólica adquiriu

um significado mais técnico ao tomar uniformidade pela sucessão dos bispos católicos, o que

levou ao convencimento de que os bispos eram os guardiões “infalíveis” da pregação

apostólica. Em face disso, somente a hierarquia da Igreja, ao se autoproclamar como sendo

auxiliada pelo Espírito Santo, era a depositária dos ensinamentos da verdadeira fé. Daí, a

indispensabilidade posta aos cristãos de se unirem àqueles que não se separaram da sucessão

original. Assim sendo, o bispo garantia à igreja particular o seu caráter de apostolicidade e a

sua relação com a totalidade da Igreja. O que explica no Ocidente a consolidação do respeito

comum pela sede de Roma como a primaz, e da sucessão petrina nessa cidade (TREVIJANO,

2002; DENZINGER, 2007).

Na necessidade de legitimar essa organização hierárquica, geopolítica e teológica da

universalidade da Igreja, destaque teve a eclesiologia de Santo Agostinho que definiu a Igreja

como sendo a “Cidade de Deus”, e deveria ser constituída por homens santificados (A

Instrução aos Catecúmenos, 16, 25; 20,36). Essa conquista, para Santo Agostinho, passava por

uma proposta educacional universal, em que a Igreja era o espaço privilegiado para esse fim,

ou seja, à reforma dos costumes, a partir de uma formação moral:

Esta Igreja católica – vigorosa e extensivamente espalhada por todo o orbe da terra – serve-se de todos os que erram, para o seu próprio proveito e também para a correção deles – uma vez que se resolvam a despertar de seus erros. Aproveita-se dos pagãos, para campo de sua transformação; dos hereges, para prova de sua doutrina; dos cismáticos, para documento de sua estabilidade; dos judeus para realce de sua formosura. [...] Contudo, a todos dá a possibilidade de receber a sua graça, quer tenham de ser formados, reformados, reunidos ou admitidos” (A Verdadeira Religião, prol., 6, 10).

Essa universalidade da Igreja foi traduzida por ele como “Cidade de Deus”:

A casa do Senhor, a Cidade de Deus, a saber, a Igreja... (A Cidade de Deus, VIII, 24, 2). A Cidade de Deus, quer dizer, a Igreja... (A Cidade de Deus, XIII, 16, 1).

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Viemos também a conhecer outra mãe, a Jerusalém celeste, a santa Igreja. Uma porção dela peregrina na terra (Comentário aos Salmos, 26, II, 18). Uma vez, porém, que está claro ser Sião a cidade de Deus, qual é a cidade de Deus, senão a santa Igreja? Os homens que se amam mutuamente e que amam Deus, que neles habita, constituem a cidade de Deus (Comentário aos Salmos, 98, 4).

Assim definida, a Igreja era o espaço qualificado onde os homens poderiam encontrar

com segurança o conhecimento da verdade, necessária para a obtenção da “cidadania celeste”,

posto que, se a purificação constituía-se em uma dificuldade, cabia à ela ser o ambiente

propício para facilitar esse processo. Desse modo, a perfeição não estaria circunscrita a círculos

intelectuais, mas se situava em um espaço místico, tal qual o dos “heróis” do cristianismo, os

Apóstolos (A Instrução aos Catecúmenos, 23, 42).

Com essa argumentação Santo Agostinho atribuiu à Igreja o status de ser o único locus

educativo:

… dos nos engendraron para la muerte, dos nos engendraron para la vida. Los padres que nos engendraran para la muerte son Adán y Eva; los padres que nos engendraron para la vida son Cristo y la Iglesia… (Sermones, 22,10).

... no sólido alicerce da fé simbolizado pela pedra, isto é, a Igreja católica, da qual está escrito: e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja (Mt 16, 18) [...] Os que crêem na ressurreição, mas não estão na Igreja católica, e sim em alguma heresia ou cisma, vêem as costas de Cristo, porém, não de um lugar junto dele (A Trindade, II, 17, 28.30).

Em suma, conclui-se que, ao tempo em que Santo Agostinho relata as transformações

por que passava a sociedade “pagã”, aponta o encaminhamento para organização de uma

sociedade cristã. Mas isto somente era possível por meio de um novo espaço educativo, a

saber, a “Cidade de Deus”, ou seja, a “Igreja”. Motivo de ter exortado que o afastamento desse

magistério, teria como resultado o homem negado, inapto à “cidadania celeste”, isto é, não

seria “perfeitamente” formado, portanto, não qualificado à santificação.

Nesse momento de profundas transformações sociais, Santo Agostinho concebeu

novos valores formativos o que lhe conferiu o papel de pedagogo da cristandade.

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Notas

(1) Antes de sua conversão, Santo Agostinho foi professor de retórica em sua cidade natal,

Tagaste (na província romana da Numídia, África) e com sua ascensão profissional lecionou

em cidades mais significativas do Império: Cartago, Roma e, por fim, Milão, em 384, onde

assumiu a Cátedra Municipal de Retor. Em sua formação sentiu-se atraído pela filosofia após a

leitura de Cícero. Posteriormente, deixou-se envolver pelo maniqueísmo, e mais tarde, pelo

neoplatonismo. Sua conversão ocorreu em Milão, após seus contatos e amizade – motivados

por disputas retóricas – com o bispo da cidade, Ambrósio (333?-397), cuja eloqüência

evangelizadora o conquistara. Com isso, sua ação no cristianismo, sustentada em sua

notoriedade intelectual, o levou à sua sagração como bispo de Hipona, em 395. Além de sua

autobiografia, as Confissões, vale a pena conferir a Vida de Santo Agostinho (Vita Augustini)

que traz o relato de sua vida na versão de Possídio – que foi seu aluno. Para uma biografia mais

detalha ver: Peter Brown, Santo Agostinho: uma biografia, Rio de Janeiro: Record, 2005.

(2) Cf. PIRATELI, Marcos Roberto. A Humanitas em Santo Agostinho, ou como santificar o

Homem nas ruínas do Império Romano. 226 f. Dissertação (Mestrado em Educação) –

Universidade Estadual de Maringá. Orientador: José Joaquim Pereira Melo. Maringá, 2006;

PEREIRA MELO, José Joaquim; PIRATELI, Marcos Roberto (orgs.). Ensaios sobre o

Cristianismo na Antigüidade: História, Filosofia e Educação. Maringá,PR: Eduem, 2006.

(3) O termo “Padre” era um título atribuído aos mestres que iniciavam e educavam um

discípulo em filosofia ou religião, até mesmo antes da era cristã, e que, com o

desenvolvimento da hierarquia eclesiástica acabou por ser aplicado aos bispos ou

sacerdotes, superiores monásticos e leigos intelectuais; a partir daí, por Padres da Igreja

entendem-se escritores eclesiásticos da Antiguidade cristã que foram tidos pelo

cristianismo como as testemunhas “autorizadas” da fé, cuja particularidade se dava em sua

ortodoxia, santidade de vida e aprovação da Igreja e antigüidade (QUASTEN, 2004).

(4) Cite-se, por exemplo, questões eclesiológicas defendidas pelo Papa Bento XVI quando

esteve no Brasil (2007, p. 48): “Mas tende confiança: a Igreja é santa e incorruptível. Dizia

santo Agostinho: ‘Vacilará a Igreja se vacila o seu fundamento, mas poderá talvez Cristo

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vacilar? Visto que Cristo não vacila, a Igreja permanecerá intacta até o fim dos tempos’ (En. in

Psal., 103,2,5)”; ou ainda: “Uma Igreja inteiramente animada e mobilizada pela caridade de

Cristo, Cordeiro imolado por amor, é a imagem histórica da Jerusalém celeste, antecipação da

Cidade Santa, resplandecente da glória de Deus” (Ibid., p. 93-94). Cf. também o texto

Istruzione sullo studio dei Padri della Chiesa nella formazione sacerdotale da Congregazione

per l'Educazione Cattolica.

(5) A característica fundamental de sua escrita estava em seu método ser produto da retórica,

arte da qual foi mestre por mais de dez anos como professor em ambientes “pagãos” e que,

sem dúvida, também esteve presente quando se lançou na construção de uma cultura cristã.

“No sólo poseía Agustín plenamente la cultura literaria propria de los hombres cultos de su

tiempo, sino que además dominaba magistralmente la palabra y la pluma, y de un modo

absoluto los resortes de la retórica, como la antítesis, la metáfora, los juegos de palabras y de

ideas” (ALTANER, 1962, p. 403). Vale destacar que sua obra assumiu proporção quantitativa

e qualitativa, composta de diálogos, comentários, epístolas, sermões e tratados (TRAPÈ,

2007).

Referências

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