Aedf06

19
AS AÇÕES AFIRMATIVAS SOB O ENFOQUE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS Paula Prux 1 Bacharel em Direito pela FACNOPAR (Apucarana – Paraná). Especialista em Ministério Público pela Fundação Escola do Ministério Público –– UNOPAR, Londrina. Membro do Centro de Pesquisas Estratégicas “Paulino Soares de Sousa”, da UFJF. [email protected] RESUMO: Inicialmente, este artigo científico apresenta um estudo sobre o princípio da igualdade, abrangendo os conceitos de igualdade formal e material, bem como a inserção do aludido princípio na Constituição Federal de 1988. Em seguida, estuda a relação entre as ações afirmativas e o direito internacional dos direitos humanos, abrangendo o conceito e desenvolvimento histórico deste ramo do direito, bem como a importância dos Tratados e Convenções Internacionais, que versam sobre direitos humanos, à proteção dos grupos mais vulneráveis da sociedade. Ainda, aborda a efetividade das políticas de ações afirmativas na promoção do valor igualdade, referindo-se à legislação nacional e internacional que fundamenta a promoção das referidas ações. Por fim, analisa, sucintamente, o processo de incorporação das normas internacionais de proteção dos direitos humanos no ordenamento jurídico brasileiro. Palavras-chave: igualdade; ações afirmativas; direitos humanos; Constituição. SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO; 2. O PRINCÍPIO DA IGUALDADE; 2.1 IGUALDADE FORMAL E IGUALDADE MATERIAL; 2.2 O PRINCÍPIO DA IGUALDADE NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988; 3. AS AÇÕES AFIRMATIVAS E O DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS; 4. AS AÇÕES AFIRMATIVAS COMO PROMOÇÃO DA IGUALDADE; 5. A INCORPORAÇÃO DAS NORMAS INTERNACIONAIS DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS AO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO; 6. CONCLUSÃO. 1 Especialista em Ministério Público – Estado Democrático de Direito, pela Fundação Escola do Ministério Público – FEMPAR, Universidade Norte do Paraná – UNOPAR, Londrina.

Transcript of Aedf06

Page 1: Aedf06

AS AÇÕES AFIRMATIVAS SOB O ENFOQUE DOS DIREITOS

FUNDAMENTAIS

Paula Prux1 Bacharel em Direito pela FACNOPAR (Apucarana – Paraná).

Especialista em Ministério Público pela Fundação Escola do Ministério Público –– UNOPAR, Londrina. Membro do Centro de Pesquisas Estratégicas “Paulino Soares de Sousa”, da UFJF.

[email protected]

RESUMO: Inicialmente, este artigo científico apresenta um estudo sobre o princípio da igualdade, abrangendo os conceitos de igualdade formal e material, bem como a inserção do aludido princípio na Constituição Federal de 1988. Em seguida, estuda a relação entre as ações afirmativas e o direito internacional dos direitos humanos, abrangendo o conceito e desenvolvimento histórico deste ramo do direito, bem como a importância dos Tratados e Convenções Internacionais, que versam sobre direitos humanos, à proteção dos grupos mais vulneráveis da sociedade. Ainda, aborda a efetividade das políticas de ações afirmativas na promoção do valor igualdade, referindo-se à legislação nacional e internacional que fundamenta a promoção das referidas ações. Por fim, analisa, sucintamente, o processo de incorporação das normas internacionais de proteção dos direitos humanos no ordenamento jurídico brasileiro. Palavras-chave: igualdade; ações afirmativas; direitos humanos; Constituição. SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO; 2. O PRINCÍPIO DA IGUALDADE; 2.1 IGUALDADE FORMAL E IGUALDADE MATERIAL; 2.2 O PRINCÍPIO DA IGUALDADE NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988; 3. AS AÇÕES AFIRMATIVAS E O DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS; 4. AS AÇÕES AFIRMATIVAS COMO PROMOÇÃO DA IGUALDADE; 5. A INCORPORAÇÃO DAS NORMAS INTERNACIONAIS DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS AO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO; 6. CONCLUSÃO.

1 Especialista em Ministério Público – Estado Democrático de Direito, pela Fundação Escola do Ministério Público – FEMPAR, Universidade Norte do Paraná – UNOPAR, Londrina.

Page 2: Aedf06

1

1. INTRODUÇÃO

As ações afirmativas surgiram, originariamente, nos Estados Unidos, a partir da

década de 1960, com o desenvolvimento dos Direitos Civis. Com o tempo, estenderam-se a

diversos países e, no Brasil, ganharam força com a promulgação da Constituição Federal de

1988. Desde então, têm se tornado cada vez mais presentes e importantes na luta contra o

preconceito e a discriminação.

As ações afirmativas podem ser entendidas como medidas especiais que buscam

remediar um passado de discriminações, de injustiças, e almejam acelerar o processo de

alcance à igualdade por parte dos grupos socialmente vulneráveis, como as minorias étnicas,

raciais, os portadores de necessidades especiais, dentre outros grupos.

Encontram amparo na Constituição Federal de 1988, numa vasta legislação

infraconstitucional, bem como nos tratados e convenções internacionais ratificados pelo Brasil

e incorporados ao ordenamento jurídico interno, principalmente nos que versam sobre a

proteção dos direitos fundamentais.

Tema que se justifica pela própria realidade social em que se vive atualmente, as

políticas de ações afirmativas são um importante mecanismo de construção de uma sociedade

mais justa, solidária, igualitária, em que cada um é respeitado tendo em vista suas

peculiaridades. A princípio, um ideal distante, mas possível, e amparado pelo nosso

ordenamento jurídico.

2. O PRINCÍPIO DA IGUALDADE

A Constituição Federal de 1988 faz alusão ao princípio da igualdade em inúmeras

passagens. No preâmbulo, dentre os objetivos da República Federativa do Brasil e os

princípios que a regem, como premissa dos direitos e garantias fundamentais, permeando todo

o texto constitucional, lá está o princípio da igualdade; previsto tanto de maneira explícita,

quanto implícita e, por vezes, até aparentemente repetitiva, ele constitui importante

fundamento do Estado Democrático de Direito.

Mas o que significa o princípio da igualdade? A maioria dos estudiosos do Direito,

aprende, nos bancos acadêmicos, que igualdade significa tratar aos iguais igualmente e aos

desiguais desigualmente, na medida de sua desigualdade, e repetem essa afirmação feita por

Aristóteles sem realmente questionarem os limites que a norteiam, os parâmetros em que se

aplica e os efeitos que dela advém. Para se entender o âmago da questão, é preciso perguntar-

Page 3: Aedf06

2

se: Quem são os iguais e quem são os desiguais? Qual a medida da desigualdade entre eles? E

qual o critério legítimo capaz de distinguir as pessoas, separá-las em grupos e conceder-lhes

um tratamento jurídico diferenciado, conforme o grupo em que se encaixem, sem ferir o valor

da isonomia? Somente a busca por essas respostas é que conduzirá uma reflexão sobre o que

significa igualdade no Estado Democrático de Direito em que vivemos.

Para alcançar a efetividade do princípio da igualdade, a própria lei dispensa

tratamento desigual às pessoas. Esse tratamento jurídico desigual pauta-se em alguns critérios

de discriminação estabelecidos, também, por lei. Assim, cada pessoa é única e diferente de

todas as demais, sendo que uns são altos, outros baixos; uns têm a pele escura, outros têm a

pele clara; uns possuem escolaridade, outros não; enfim, existem milhares de critérios pelos

quais se pode diferenciar as pessoas, inclusive legalmente, mas há limites para tanto.

De acordo com Celso Antônio Bandeira de Mello2,

[...] o reconhecimento das diferenciações que não podem ser feitas sem quebra da isonomia se divide em três questões: a) a primeira diz com o elemento tomado como fator de desigualação; b) a segunda reporta-se à correlação lógica abstrata existente entre o fator erigido em critério de discrímen e a disparidade estabelecida no tratamento jurídico diversificado; c) a terceira atina à consonância desta correlação lógica com os interesses absorvidos no sistema constitucional e destarte juridicizados.

Desta forma, o autor explica que, para que não haja desrespeito à isonomia, é

necessário examinar com cautela o critério discriminatório adotado, buscar as justificativas

para a adoção deste critério no caso específico e examinar se tais justificativas são ou não

relevantes e aceitas pelo nosso sistema jurídico constitucional, tendo em vista os valores

zelados pelo mesmo. 3

De fato, a imposição de tratamento desigual em determinadas situações, deve ser

feita levando-se em consideração o nosso ordenamento jurídico como um todo, a análise dos

fins a que se presta a norma, e tendo como premissa básica o respeito ao ser humano, e a

efetivação de seus direitos e garantias fundamentais. Somente com uma visão solidária, livre

de preconceitos, desprendida de interesses pessoais, é que se pode desigualar para alcançar a

igualdade.

2.1 IGUALDADE FORMAL E IGUALDADE MATERIAL

2 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 21-20. 3 Idem.

Page 4: Aedf06

3

São vários os conceitos apresentados para a igualdade formal e material, mas buscar-

se-á compreender, de maneira simplista, o significado destes termos.

A igualdade formal pode ser sintetizada na fórmula: “todos são iguais perante a lei”.

Refere-se, portanto, a uma enunciação abstrata, geral, dirigida a todos indistintamente. Este

conceito de igualdade surgiu num período de regime absolutista dos séculos XVIII e XIX,

como resultado de movimentos que buscavam um novo regime e o desenvolvimento de um

rol mínimo de direitos que pudessem oferecer proteção contra as arbitrariedades do Estado.

Assim, a igualdade formal foi, inicialmente, revelada pela Declaração de Direitos do Bom

Povo da Virgínia, em 1776; e, posteriormente, pela Declaração dos Direitos do Homem e do

Cidadão, em 1789. A partir de então, passou a ser reconhecida mundialmente. Apesar de

crucial para a abolição gradativa de privilégios, esta idéia de igualdade não é suficiente para a

efetivação dos valores a que se preza.

Segundo o Walter Claudius Rothenburg4, “nessa diferenciação entre igualdade

formal (de direito) e material (de fato), reproduz-se a distância entre o esperado (no plano

normativo) e o acontecido (no plano da realidade), e a distinção corresponde a uma suposta

diferença entre teoria (igualdade formal) e prática (igualdade material)”.

De fato, tanto a igualdade formal quanto a igualdade material possuem aspectos

fundamentais na construção do valor igualdade. A igualdade formal, apesar de não ser, por si

só, suficiente, representa uma conquista, um primeiro passo em direção à implementação

efetiva do Direito, dentro do Estado Democrático. Já a igualdade material significa a efetiva

realização da igualdade, a partir da concretização dos direitos humanos, e levando em

consideração as desigualdades presentes na sociedade.

2.2 O PRINCÍPIO DA IGUALDADE NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

Uma simples olhadela às Constituições brasileiras anteriores demonstra que, em

todas, o princípio da igualdade se fez presente. Isso não significa dizer, é claro, que a

igualdade se fez presente na sociedade brasileira desde a primeira Constituição, pois a

efetivação deste direito assegurado é, até hoje, um grande desafio.

A Constituição de 1824, em seu artigo 179, inciso XIII, previu: “A Lei será igual

para todos, quer proteja, quer castigue, e recompensará em proporção dos mecanismos de

4 ROTHENBURG, Walter Claudius. Igualdade Material e Discriminação Positiva: o Princípio da Isonomia. Disponível em: <http://www.buscalegis.ufsc.br/revistas/files/journals/2/articles/32745/public/32745-40386-1-PB.pdf> Acesso em: 22 nov. 2009.

Page 5: Aedf06

4

cada um”. Paradoxalmente, esta mesma Constituição tolerava a escravidão. A Constituição de

1891 estabeleceu, em seu artigo 72, parágrafo 2º: “A República não admite privilégio de

nascimento, desconhece foros de nobreza e extingue as ordens honoríficas existentes e todas

as sua prerrogativas e regalias, bem como os títulos nobiliários e de conselho”. E assim por

diante, todas as demais constituições brasileiras previram em seus textos a igualdade de

direitos e deveres entre todos.

A Constituição brasileira de 1988, já em seu preâmbulo, eleva a igualdade a um valor

supremo, insere-a dentre os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil,

estabelece, em seu artigo 5º, caput, que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de

qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a

inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade” (...), e reforçando, no inciso I do

mesmo artigo, prevê que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações”. Essas são

apenas as primeiras menções que a atual Constituição faz ao princípio da igualdade, que pode

ser encontrado em inúmeros outros artigos do texto constitucional.

Aparentemente repetitivo, o legislador da Constituição de 1988 quis dar um enfoque

especial ao princípio da igualdade, elevando-o a um patamar superior àquele que ocupava nas

constituições anteriores. A atual Constituição busca assegurar não só a igualdade em seu

sentido formal, afirmando que todos são iguais perante a lei, mas também a igualdade

material, mais especificamente, prevendo tratamentos diferenciados àqueles que deles

necessitam para igualarem-se, em direitos, aos demais.

Importante mencionar, nesse contexto, que Constituição de 1988, ao trazer capítulos

específicos sobre os trabalhadores, as crianças, os idosos, os indígenas, bem como artigos

específicos voltados à proteção das mulheres, dos portadores de necessidades especiais etc.,

ampliou o conceito de sujeito de direitos. Foi, deste modo, criado um aparato normativo

destinado a grupos específicos e o ser humano destinatário da norma deixou de ser genérica e

abstrativamente considerado para receber tratamento especial conforme sua especial

condição.

Sob essa perspectiva, a igualdade significa não apenas a vedação à discriminação

indevida, mas, também, o estabelecimento de discriminações devidas, o que se dá por meio de

ações afirmativas.

As ações afirmativas são um instrumento na luta pela conquista da igualdade

material; são de fundamental importância para o progresso do Estado Democrático de Direito,

cuja tarefa fundamental, segundo José Afonso da Silva5, “consiste em superar as

5 SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros. 2005. p.122.

Page 6: Aedf06

5

desigualdades sociais e regionais e instaurar um regime que realize a justiça social”.

Assim, à luz da Constituição Federal, as discriminações que tendem a abolir direitos

(discriminações negativas, indevidas) não podem ser aceitas. Já, aquelas que buscam a

efetivação dos direitos e garantias das pessoas e a concretização da igualdade material

(discriminações positivas, devidas), estão em perfeita harmonia com o sistema constitucional.

3. AS AÇÕES AFIRMATIVAS E O DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS

HUMANOS

O Direito Internacional dos Direitos Humanos surgiu, basicamente, em decorrência

da Segunda Guerra Mundial, no século XX, e teve como impulso inicial para o seu

desenvolvimento as alarmantes atrocidades cometidas no período de Hitler e a certeza de que

muitas dessas atrocidades poderiam ter sido evitadas, se existisse, no momento, uma

legislação internacional de direitos humanos e formas efetivas de se proteger tais direitos.

O fundamento do Direito Internacional dos Direitos Humanos está na obrigação que

todos os Estados possuem de respeitar os direitos humanos e de protestar, caso estes estejam

sendo violados. A competência para legislar e decidir em matéria de direitos humanos não

pode ser, exclusivamente, da jurisdição interna de cada nação, até porque o interesse pela

causa dos direitos humanos é mundial.

De acordo com a doutrinadora Flávia Piovesan6:

[...] fortalece-se a idéia de que a proteção dos direitos humanos não se deve reduzir ao domínio reservado do Estado, isto é, não deve se restringir à competência nacional exclusiva ou à jurisdição doméstica exclusiva, porque revela tema de legítimo interesse internacional. Por sua vez, esta concepção inovadora aponta para duas importantes conseqüências; 1) a revisão da noção tradicional de soberania absoluta do Estado, que passa a sofrer um processo de relativização, na medida em que são admitidas intervenções no plano nacional, em prol da proteção dos direitos humanos; isto é, permitem-se formas de monitoramento e responsabilização internacional, quando os direitos humanos forem violados; 2) a cristalização da idéia de que o indivíduo deve ter direitos protegidos na esfera internacional, na condição de sujeito de Direito”.

Neste contexto do pós-guerra, em 1945, foi criada a Organização das Nações Unidas

e, em 1948, foi aprovada a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que trouxe uma visão

contemporânea dos direitos humanos ao valorizar a universalidade e indivisibilidade dos

mesmos. Tanto a universalidade quanto a indivisibilidade são características lógicas de

6 PIOVESAN, Flávia. Temas de Direitos Humanos. 2. ed. atual. São Paulo: Max Limonad, 2003. p. 32.

Page 7: Aedf06

6

direitos que são comuns a todo ser humano. Assim, os direitos humanos são universais,

porque se aplicam a todas as pessoas e são indivisíveis, porque estão, inevitavelmente,

relacionados a outros direitos, como aos direitos sociais e econômicos.

A Declaração Universal de 1948, além de ter delimitado uma nova concepção dos

direitos humanos, foi a alavanca inicial para o desenvolvimento do Direito Internacional dos

Direitos Humanos, pois, a partir dela, surgiram inúmeros tratados internacionais visando à

proteção dos direitos fundamentais.

Atualmente, existem dois sistemas paralelos de proteção dos direitos humanos: o

sistema normativo regional, que visa à internacionalização dos direitos humanos no âmbito

regional, principalmente na África, América e Europa e o sistema global. Este último é

composto por instrumentos de cunho geral, como os Pactos Internacionais de Direitos Civis e

Políticos e de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966, e por instrumentos que

possuem um cunho específico, como as Convenções internacionais que visam à proteção dos

direitos da mulher, do negro, do idoso, etc.

Os sistemas global e regional são complementares, interagem, e formam o universo

jurídico de proteção aos direitos humanos. Diante de uma violação dos direitos humanos, cabe

ao indivíduo lesado encontrar, dentro dos sistemas existentes, a proteção mais adequada ao

direito violado e, provavelmente, encontrará garantias dentro do sistema de alcance global, de

alcance regional, referente à matéria geral e específica7.

O Direito Internacional dos Direitos Humanos é um ramo do Direito Internacional

que, indubitavelmente, vem conquistando considerável espaço na ordem jurídica global,

principalmente, após a segunda metade do século XX, momento da História em que a pessoa

humana tem ganhado maior importância como sujeito de Direito Internacional.

Até a Segunda Guerra Mundial, apesar de terem sido elaborados documentos

importantes para o desenvolvimento do estudo dos direitos humanos, não existiam

documentos que, realmente, consagrassem a dignidade e a igualdade, em todas as suas

formas, protegendo o ser humano por meio da consolidação e efetivação de seus direitos.

As inúmeras atrocidades do período nazista e da Segunda Guerra Mundial deixaram

claro que os direitos humanos deveriam ter proteção no âmbito internacional. A idéia de

soberania, quando significar absoluta liberdade e autonomia jurídica para um Estado, deve ser

descartada em prol da valorização do ser humano. Para que haja evolução de pensamento e

7 PIOVESAN, Flávia. Temas de Direitos Humanos. 2. ed. atual. São Paulo: Max Limonad, 2003. p. 39-41.

Page 8: Aedf06

7

progresso da Humanidade, deve haver, primeiramente, a relativização das idéias, uma vez que

o absolutismo, via de regra, gera injustiças.

Em 1945, a estruturação da Organização das Nações Unidas abriu as portas à criação

de um dos mais importantes, se não o mais importante, documento da história dos direitos

humanos, que é a Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada em dezembro de

1948, em Paris. A Declaração tem um texto bastante amplo que contém, seja de forma

expressa, seja implicitamente, os princípios substanciais dos direitos humanos. A Declaração

não representa, no entanto, uma obrigação para os Estados que a adotaram, visto que constitui

uma resolução da Assembléia da Organização das Nações Unidas.

Essa fase de proteção aos direitos humanos, desenvolvida num contexto pós guerra,

tem cunho generalíssimo, abstrato, e consagra a idéia de igualdade formal. O ser humano,

destinatário dos inúmeros tratados e convenções internacionais que se realizavam, era

protegido de forma geral, abstrata, sem atenção maior às suas peculiaridades.

Com o tempo, contudo, viu-se que era preciso ir além do que já se havia conquistado,

ampliando a proteção dos sujeitos de direitos às suas reais necessidades, abrangendo sua

particularidades, suas características singulares, para a promoção da igualdade, agora não

mais apenas formal, e sim, material. Nas palavras de Flávia Piovesan8,

[...] vale dizer, na esfera internacional, se uma primeira vertente de instrumentos internacionais nasce com a vocação de proporcionar uma proteção geral, genérica e abstrata, refletindo o próprio temor da diferença, percebe-se, posteriormente, a necessidade de conferir a determinados grupos uma proteção especial e particularizada, em face de sua própria vulnerabilidade. Isso significa que a diferença não mais seria utilizada para a aniquilação de direitos, mas, ao revés, para a sua promoção.

Assim, passaram a ter uma tutela especial, por exemplo, as crianças e adolescentes,

os idosos, os indígenas, os afro-descendentes, as mulheres, os trabalhadores rurais, bem como

vários outros grupos vulneráveis e carentes de uma proteção singular. O direito à diferença

tornou-se uma vertente do direito à igualdade, pois este não se realiza sem que as diferenças

sejam, de fato, respeitadas.

Nessa ótica, trazendo à tona uma nova fase de proteção aos direitos humanos, foi

aprovada, em 1965, pelas Nações Unidas, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as

Formas de Discriminação Racial, ratificada pelo Brasil desde 1968. Essa Convenção tornou-

8 PIOVESAN, Flávia. Ações Afirmativas da perspectiva dos direitos humanos, publicado em: Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 35, n. 124, jan/abril.2005, pg. 46. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-15742005000100004> Acesso em: 14 out. 2009.

Page 9: Aedf06

8

se solo fértil para a criação e execução de políticas de ações afirmativas que visem combater

doutrinas e práticas racistas. Em 1979, sob o mesmo enfoque de promoção da igualdade

material, eliminação de quaisquer formas de discriminação e elevação da dignidade da pessoa

humana, foi adotada, pela ONU, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de

Discriminação contra a Mulher, ratificada pelo Brasil desde 1984. Tanto uma quanto a outra

fazem parte do nosso ordenamento jurídico, posto que ratificadas pelo Brasil, e evidenciam a

necessidade de punir discriminações, bem como promover ações afirmativas no sentido de

fomentar a igualdade. Além destas Convenções, outras foram elaboradas para a proteção de

sujeitos específicos, como, por exemplo, a Convenção sobre os Direitos da Criança e a

Convenção Internacional contra a Tortura, que merecem destaque por terem marcado essa

nova era de tutela especial dos direitos humanos, voltada a grupos pormenorizados, bem como

por incentivar as políticas de ações afirmativas e promover a igualdade material a partir da

discriminação positiva.

Por fim, importante mencionar que o sistema geral (que alcança a todos,

indistintamente) e o especial (que visa a grupos determinados), ambos norteados pelo

princípio da primazia da pessoa humana, complementam-se na defesa dos direitos

fundamentais. Assim, quando uma pessoa é específica destinatária de um documento

internacional, seja por sua cor, sua idade, sua origem, seu sexo, ou qualquer outro fator que

demande proteção especial, ainda pode utilizar-se dos princípios gerais contidos em

documentos como A Declaração Universal dos Direitos Humanos; o Pacto Internacional dos

Direitos Civis e Políticos; e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e

Culturais.

4. AS AÇÕES AFIRMATIVAS COMO PROMOÇÃO DA IGUALDADE

As ações afirmativas essenciais na busca pela igualdade efetiva e, para uma melhor

compreensão do tema, não se pode deixar de conhecer, em princípio, alguns conceitos

apresentados pela doutrina.

Na lição da Dra. Flávia Piovesan9, as ações afirmativas “constituem medidas

especiais e temporárias que, buscando remediar um passado discriminatório, objetivam

acelerar o processo de igualdade, com o alcance da igualdade substantiva por parte de grupos

vulneráveis, como as minorias étnicas e raciais, as mulheres, dentre outros grupos”.

A doutrinadora afirma, também, que:

9 PIOVESAN, Flávia. Temas de Direitos Humanos. São Paulo: Max Limonad, 2003. p. 199/200.

Page 10: Aedf06

9

As ações afirmativas, enquanto políticas compensatórias adotadas para aliviar e remediar as condições resultantes de um passado discriminatório, cumprem uma finalidade pública decisiva ao projeto democrático, que é a de assegurar a diversidade e a pluralidade social. Trata-se de medidas concretas que viabilizam o direito à igualdade, com a crença de que a igualdade deve se moldar no respeito à diferença e à diversidade. Através delas transita-se da igualdade formal para a igualdade material e substantiva.10

Ainda, seguindo a mesma linha de raciocínio, no entanto, com um enfoque um pouco

diferenciado, de acordo com Joaquim Barbosa Gomes11, as ações afirmativas são “um

conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsório, facultativo ou voluntário,

concebidas com vistas ao combate à discriminação racial, de gênero e de origem nacional,

bem como para corrigir os efeitos presentes da discriminação praticada no passado, tendo por

objetivo a concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais como a

educação e o emprego”.

Esmiuçando o conceito de ações afirmativas, pode-se dizer que são políticas (tanto

públicas quanto privadas); de caráter temporário ou definitivo, concebidas de forma

voluntária ou compulsória, direcionadas a grupos vulneráveis e minoritários, e que têm por

objetivos corrigir um passado de injustiças (feição compensatória), bem como prevenir as

discriminações na realidade atual (feição preventiva), por meio da concretização do valor da

isonomia.

As ações afirmativas podem advir tanto do poder público quanto da iniciativa

privada. Existem vários projetos, de iniciativa privada, que se tornaram exemplos a serem

seguidos, como o Projeto Geração XXI, que busca contribuir para com o desenvolvimento

educacional e cultural de jovens negros na cidade de São Paulo (Projeto Geração XXI)12; a

ONG Geledés - Instituto da Mulher Negra13, “que tem por missão institucional a luta contra o

racismo e o sexismo, a valorização e promoção das mulheres negras, em particular, e da

comunidade negra em geral”; e a ONG Pró-Yanomami14, que tem como principal objetivo

lutar pela demarcação de terras em favor dos índios yanomami; dentre vários outros projetos

que merecem especial reconhecimento por sua atuação no meio em que se inserem.

10 PIOVESAN, Flávia. Temas de Direitos Humanos. São Paulo: Max Limonad, 2003. p. 199/200. 11 GOMES, Joaquim Barbosa. Ação Afirmativa: princípio constitucional da igualdade. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 40. 12 Projeto Geração XXI. Projeto Geração XXI ganha prêmio da ADVB. Disponível em: <http://integracao.fgvsp.br/projetos24.htm> Acesso em: 25 jan. 2010. 13 GELEDÉS – Instituto da Mulher Negra. Disponível em: <http://www.geledes.org.br/institucional/geledes-instituto-da-mulher-negra.html> Acesso em: 26 jan. 2010. 14 ONG – Comissão Pró-Yanomami. Disponível em: <http://www.proyanomami.org.br/v0904/index.asp> Acesso em: 26 jan. 2010.

Page 11: Aedf06

10

De fato, na implementação das ações afirmativas, não se pode esperar que o Poder

Público seja o único responsável. Cada pessoa tem uma parcela de responsabilidade na

efetivação do valor igualdade, seja por meio da criação de projetos, ou simplesmente por meio

do efetivo exercício da cidadania, de forma individual, incentivando, e praticando a

solidariedade.

Seguindo no conceito acima exposto, não se pode dizer que todas as ações

afirmativas têm caráter temporário. Algumas, precisam de um longo período de

implementação para alcançar seus objetivos; outras precisam tornar-se definitivas a fim de

produzirem os resultados almejados. Exemplo de ações de caráter definitivo são aquelas que

buscam assegurar os direitos das populações indígenas, quilombolas e ciganas. A

implementação de uma política por tempo determinado, nesses casos, certamente não bastaria,

sendo necessária uma atuação constante do Estado em torno desses grupos minoritários.

Ainda, as ações afirmativas podem se apresentar de maneira compulsória ou

voluntária. Um exemplo de ação compulsória encontra-se na Portaria nº 115615, de 20 de

dezembro de 2001, do Ministério da Justiça, a qual dispõe, em seu artigo 2º, inciso IV, que

nas contratações de empresas prestadoras de serviços, bem como de técnicos e consultores no

âmbito dos projetos desenvolvidos em parceria com organismos internacionais, será exigida a

observância da presença de afrodescendentes, mulheres e portadores de deficiência, em

percentagem ali estabelecida.

Por sua vez, como exemplo de ação voluntária, cumpre mencionar a Lei

11.096/200516 (conversão da Medida Provisória nº 213, de 10 de setembro de 2004, editada

pelo Governo Federal), que instituiu o Programa Universidade Para Todos (PROUNI),

prevendo a concessão de bolsas de estudo, pelas instituições privadas de ensino superior, a

alunos que cursaram todo o ensino médio em escola da rede pública ou em instituições

privadas na condição de bolsista integral, a estudantes portadores de necessidades especiais e

a professores da rede de ensino pública, mediante a isenção de impostos e contribuições aos

que aderirem ao referido Programa.

Dando continuidade à análise do tema, importante fazer alguns breves comentários

acerca de como se desenvolveu o conceito de ações afirmativas, no mundo e, posteriormente,

no Brasil.

15 Portaria n. 1156 do MJ, de 20 de dezembro de 2001. Disponível em: <http://www.mp.ba.gov.br/atuacao/cidadania/gedef/legislacao/portaria_1156_01.asp> Acesso em: 26 jan. 2010. 16 LEI No 11.096, DE 13 DE JANEIRO DE 2005. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2005/LEI/L11096.htm> Acesso em: 16 dez. 2009.

Page 12: Aedf06

11

A expressão affirmative action foi, pela primeira vez, empregada durante o governo

do Presidente dos Estados Unidos, Jhon F. Kennedy, por meio da Executive Order nº 10.925,

de 06 de março de 1961, que proibia a discriminação de candidato a emprego, ou de

trabalhador, em razão de sua raça, credo, cor ou nacionalidade. Logo depois, em 1963, no

governo do mesmo presidente, foi aprovado o Equal Pay Act, que impunha a não

discriminação, por parte do empregador, em matéria de contraprestação salarial, com base

unicamente no sexo do empregado.

Em seguida, no dia 02 de julho de 1964, no governo de Lyndon B. Johnson, foi

promulgada a Lei dos Direitos Civis (Civil Right Act), que novamente tratou sobre a

necessidade de promoção da igualdade nas relações trabalhistas.

Interessante transcrever um pequeno trecho do discurso proferido por Lyndon B.

Johnson, em 1965, na Howard University, pois registra um momento histórico em que aquele

presidente dos Estados Unidos reconhece a necessidade de se promover ações afirmativas

para a efetivação dos direitos humanos, posto que apenas a previsão dos aludidos direitos não

era mais suficiente:

Mas liberdade não é suficiente. Não se apagam as cicatrizes de séculos dizendo: Agora você é livre para ir aonde você quiser, e fazer o que desejar, e escolher os líderes que lhe agradem. Você não pode pegar uma pessoa que, por anos, esteve acorrentada, e liberá-la, levá-la para o início de uma linha de partida de corrida e então dizer, “você está livre para competir com todos os demais”, e ainda acreditar que você foi completamente justo. Assim, não é suficiente apenas abrir os portões da oportunidade. Todos os cidadãos devem ter a habilidade para atravessar esses portões17 (tradução nossa).

Ainda no ano de 1965, um importante passo, em sede de ações afirmativas, foi dado

com a adoção, pela Resolução nº 2.106-A, da Assembléia das Nações Unidas, da Convenção

Internacional sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial, que excluiu do

âmbito da discriminação todas as medidas especiais voltadas à concretização do princípio da

igualdade. A Convenção, ratificada pelo Brasil no dia 27 de março de 1968, dispõe em seu

artigo 1º, parágrafo 4º, que:

17 No texto original: “But freedom is not enough. You do not wipe away the scars of centuries by saying, "Now you are free to go where you want, and do as you desire, and choose the leaders you please." You do not take a person who, for years, has been hobbled by chains and liberate him, bring him up to the starting line of a race and then say, "You are free to compete with all the others," and still justly believe that you have been completely fair. Thus it is not enough just to open the gates of opportunity. All our citizens must have the ability to walk through those gates”. (AMERICAN EXPERIENCE. Disponível em: http://www.pbs.org/wgbh/amex/eyesontheprize/sources/ps_bakke.html Acesso em: 06 jan. 2010.

Page 13: Aedf06

12

Não serão consideradas discriminação racial as medidas especiais tomadas com o único objetivo de assegurar o progresso adequado de certos grupos raciais ou étnicos ou de indivíduos que necessitem da proteção que possa ser necessária para proporcionar a tais grupos ou indivíduos igual gozo ou exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais, contanto que tais medidas não conduzam, em consequência, à manutenção de direitos separados para diferentes grupos raciais e não prossigam após terem sido alcançados os seus objetivos.18

Seguindo a mesma linha, a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de

Discriminação contra a Mulher, adotada pela Resolução 34/180 da Assembléia Geral das

Nações Unidas, em 18 de dezembro de 1979, e ratificada pelo Brasil em 01 de fevereiro de

1984, permite a “discriminação positiva”, quando prevê a adoção de medidas especiais de

proteção às mulheres.

Tanto a Convenção da ONU sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação

Racial quanto a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a

Mulher foram ratificadas pelo Brasil, que, portanto, obrigou-se, no plano internacional, a

eliminar todas as formas de discriminação, bem como garantir a efetiva igualdade material.

No âmbito do ordenamento jurídico brasileiro, pode-se afirmar que o atual

documento de maior importância para a legitimação das ações afirmativas é a Constituição

Federal de 1988. Após vinte anos de autoritarismo militar, que se estendeu de 1964 a 1985, a

Constituição marcou o início do processo de democratização do Estado brasileiro, e significou

um enorme avanço para a sociedade. Dentre outros progressos, a referida Carta positivou

uma série de direitos e garantias fundamentais, e inovou na proteção de grupos vulneráveis

como, por exemplo, as crianças e adolescentes, os indígenas e os idosos. Desta forma, abriu

espaço, ainda que indiretamente, à criação e consecução de programas e políticas afirmativas,

instrumentos de promoção da igualdade material.

Cumpre, para uma melhor compreensão do tema, citar alguns dispositivos, da

Constituição Federal, que fundamentam as políticas de ações afirmativas implantadas no

Brasil. Assim, logo no artigo 3º, está disposto:

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

18 Convenção Internacional sobre a eliminação de todas as formas de discriminação racial. Disponível em: <http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/instrumentos/discriraci.htm> Acesso em: 27 jan. 2010.

Page 14: Aedf06

13

IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Ao estabelecer como objetivos fundamentais do Estado brasileiro a construção de

uma sociedade livre, justa e solidária; a garantia do desenvolvimento nacional; a erradicação

da pobreza, da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais; e a

promoção do bem de todos, sem quaisquer preconceitos ou discriminações, a Constituição

determinou a necessidade de se alcançar fins, para o que um dos caminhos possíveis é a

execução de políticas de ações afirmativas. Os objetivos elucidados no artigo 3º denotam uma

visão construtivista da Constituição, que busca mudar a realidade social em favor do

desenvolvimento de um verdadeiro Estado Democrático de Direito.

Nesse contexto, importante mencionar o entendimento do Ministro do Supremo

Tribunal Federal, Marco Aurélio Mello19, em palestra proferida em 20 de novembro de 2001,

no seminário “Discriminação e Sistema Legal Brasileiro”:

Do artigo 3º vem-nos luz suficiente ao agasalho de uma ação afirmativa, a percepção de que o único modo de se corrigir desigualdades é colocar o peso da lei, com a imperatividade que ela deve ter em mercado desequilibrado, a favor daquele que é discriminado, que é tratado de forma desigual. Nesse preceito são considerados como objetivos fundamentais de nossa República: primeiro, construir – preste-se atenção a esse verbo – uma sociedade livre, justa e solidária; segundo, garantir o desenvolvimento nacional – novamente temos aqui o verbo a conduzir, não a uma atitude simplesmente estática, mas a uma posição ativa; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; e, por último, o que nos interessa, promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça e sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Pode-se afirmar, sem receio de equívoco, que se passou de uma igualização estática, meramente negativa, no que se proíbe a discriminação, para uma igualização eficaz, dinâmica, já que os verbos “construir”, “garantir”, “erradicar” e “promover” implicam em si, mudanças de ótica, ao denotar `ação´. Não basta não discriminar. É preciso viabilizar e encontrar, na Carta da República, base para fazê-lo – as mesmas oportunidades. Há de ter-se como página virada o sistema simplesmente principiológico. A postura deve ser, acima de tudo, afirmativa.

Outros dispositivos evidenciam a tutela estatal às ações afirmativas, como, por

exemplo, o artigo 5º, inciso LXXIV, que garante assistência jurídica integral e gratuita

àqueles que comprovarem insuficiência de recursos; o artigo 7º, incisos XX, XXX, e XXXI,

que tratam da igualdade no âmbito do trabalho; o artigo 37, inciso VIII, que garante uma

19 MELLO, Marco Aurélio. Ótica Constitucional: A Igualdade e as Ações Afirmativas. In: MARTINS, Ives Gandra Silva (Coord.). As vertentes do Direito Constitucional Contemporâneo. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2002. p. 39.

Page 15: Aedf06

14

reserva de cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência; o artigo 230,

§ 2°, que assegura aos maiores de sessenta e cinco anos a gratuidade dos transportes coletivos

urbanos, bem como inúmeros outros.

Estes são apenas alguns exemplos de dispositivos que embasam as ações afirmativas,

no entanto, vários outros preceitos constitucionais voltam-se à promoção da igualdade

material e, fundamentalmente, levam à valorização da dignidade da pessoa humana. É obvio

que a Constituição Federal, por mais minuciosa que seja, não pode contemplar a proteção de

todos os grupos vulneráveis da sociedade, no entanto, ampara quaisquer políticas de ações

condizentes com seus princípios.

Além da Constituição Federal, que merece destaque por ser a base de todo o

ordenamento jurídico, existe, no Brasil, uma vasta legislação extravagante que prevê a

execução de ações afirmativas e, de forma mais ampla, a proteção de grupos vulneráveis,

como homens e mulheres afro descendentes, pessoas portadoras de necessidades especiais,

mulheres trabalhadoras, indígenas, crianças, idosos etc.

Por fim, concluí-se que as ações afirmativas contam com o um sólido aparato

jurídico, formado por tratados e convenções internacionais ratificados pelo Brasil, pela

Constituição Federal de 1988 e, ainda, por uma série de normas que integram o ordenamento

interno.

5. A INCORPORAÇÃO DAS NORMAS INTERNACIONAIS DE PROTEÇÃO DOS

DIREITOS HUMANOS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

A incorporação das normas internacionais que protegem os direitos humanos no

ordenamento jurídico brasileiro é assunto polêmico e que enseja discussões desde a

promulgação da Constituição Federal de 1988.

O artigo 5º, em seus parágrafos 2º e 3º, dispõe o seguinte:

§ 2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. § 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.

Apesar de disposição expressa acerca do tema, a incorporação dos tratados

internacionais que versem sobre direitos humanos no ordenamento jurídico interno deve ser

Page 16: Aedf06

15

vista com cautela, visto que uma mera interpretação gramatical da lei, neste caso, não resolve

as questões práticas atinentes à matéria.

O parágrafo 2º do artigo 5º da Constituição Federal assegura que os direitos e

garantias nela expressos não excluem outros decorrentes de tratados internacionais em que a

República Federativa do Brasil seja parte. Dizer que os direitos e garantias assegurados por

tratados internacionais não são excluídos pela Constituição Federal significa dizer que estão

inclusos em seu rol de direitos fundamentais, o que confere aos tratados internacionais de

direitos humanos status constitucional. Valério de Oliveira Mazzuoli20 ensina:

Tecnicamente, os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos ratificados pelo Brasil já têm status de norma constitucional, em virtude do disposto no § 2º do art. 5º da Constituição (…), pois na medida em que a Constituição não exclui os direitos humanos provenientes de tratados, é porque ela própria os inclui no seu catálogo de direitos protegidos, ampliando o seu ‘bloco de constitucionalidade’ e atribuindo-lhes hierarquia de norma constitucional, como já assentamos anteriormente. Portanto, já se exclui, desde logo, o entendimento de que os tratados de direitos humanos não aprovados pela maioria qualificada do § 3º do art. 5º equivaleriam hierarquicamente à lei ordinária federal, uma vez que os mesmos teriam sido aprovados apenas por maioria simples (nos termos do art. 49, inc. I, da Constituição) e não pelo quorum que lhes impõe o referido parágrafo. (…) O que se deve entender é que o quorum que o § 3º do art. 5º estabelece serve tão-somente para atribuir eficácia formal a esses tratados no nosso ordenamento jurídico interno, e não para atribuir-lhes a índole e o nível materialmente constitucionais que eles já têm em virtude do § 2º do art. 5º da Constituição.

O autor também explica que o parágrafo 3º do artigo 5º da Constituição Federal,

(acrescentado pela emenda 45/2004) veio apenas trazer imperfeições ao sistema, pois uma

leitura desavisada do mesmo pode levar à conclusão de que os tratados de direitos humanos

não aprovados pela maioria qualificada (em cada Casa do Congresso Nacional, em dois

turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros) equivaleriam a lei ordinária

federal. No entanto, é essencial entender que o quorum a que se refere o parágrafo 3º apenas

atribui eficácia formal aos tratados que versam sobre direitos humanos, no ordenamento

jurídico interno. O status de norma constitucional, que equivale à eficácia material, já foi

atribuído a esses tratados pelo parágrafo § 2º do artigo 5º da Carta de 1988. 21

Cumpre mencionar o julgamento do Supremo Tribunal Federal, no dia 03 de

20 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de direito internacional público. 3ª ed., rev., atual. e ampl., São Paulo: RT, 2009. p. 764. 21 MAZZUOLLI, Valério de Oliveira. Reforma do Judiciário e os Tratados de Direitos Humanos. Revista Jurídica Eletrônica UNICOC. Disponível em: <http://www.revistajuridicaunicoc.com.br/midia/arquivos/ArquivoID_63.pdf> Acesso em: 26 jan. 2010.

Page 17: Aedf06

16

dezembro de 2008, (no Recurso Especial 466.343-SP), em que o Ministro Celso de Mello

aceitou a tese acima exposta, segundo a qual os tratados de direitos humanos têm status de

norma constitucional independentemente do seu quorum de aprovação no Brasil. A maioria

dos Ministros, no entanto, acompanhou o voto do Ministro Gilmar Mendes, que decidiu que

os tratados de direitos humanos não aprovados pelo quorum qualificado a que se refere o

parágrafo 3º do artigo 5º da Constituição, ingressam no ordenamento jurídico interno em nível

supralegal e infraconstitucional. Ao menos, após esse julgamento histórico, o Supremo

Tribunal Federal deixou de equiparar os tratados internacionais de direitos humanos às leis

ordinárias, para colocá-los em posição supralegal.

Apesar de ainda não ter sido aceita pela Suprema Corte (posto que vencido o voto do

Ministro Celso de Mello), a tese que eleva os tratados de direitos humanos ao nível

constitucional, tendo ou não sido aprovados pelo quorum qualificado de que trata o parágrafo

3º do artigo 5º é, com toda a certeza, a mais condizente com a sistemática internacional de

proteção dos direitos humanos.

Toda essa discussão acerca da hierarquia dos tratados internacionais de direitos

humanos, no ordenamento jurídico interno, ganha relevo quando se pensa nos tratados

ratificados pelo Brasil. Ao aceitar-se que os tratados que vêm ampliar os direitos

fundamentais integram o ordenamento jurídico brasileiro com patamar de norma

constitucional, entende-se que eles devem ser respeitados e cumpridos como se estivessem

escritos na Carta de 1988.

Atualmente, com o desenvolvimento cada vez maior do direito internacional dos

direitos humanos, em que os sujeitos de direitos são identificados por suas peculiaridades,

inúmeros são os documentos ratificados pelo Brasil e ampliadores dos direitos fundamentais.

Esses documentos não podem ser engavetados, ignorados, não servem para “florear” nossa

legislação, mas muito pelo contrário, são vigentes, eficazes, e vêm acrescentar ao nosso

ordenamento jurídico novas metas a serem executadas, ideais a serem seguidos e princípios a

serem observados.

As ações afirmativas vêm expressamente previstas em vários desses documentos,

como, por exemplo, na Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação

Racial, na Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a

Mulher, na Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, na Convenção sobre os

Direitos das Pessoas com Deficiência, etc. Isso se dá pela necessidade e urgência, em muitos

países do mundo, assim como no Brasil, de se regatar o valor da igualdade, desfigurado por

um passado de preconceitos e discriminações.

Page 18: Aedf06

17

As ações afirmativas, portanto, contam com a Constituição Federal de 1988, com

uma vasta legislação infraconstitucional e, ainda, com o sólido aparato dos tratados e

convenções de direitos humanos ratificados pelo Brasil (e que agregam ao ordenamento

jurídico brasileiro com status de norma constitucional). São instrumento eficaz na promoção

da igualdade material e, consequentemente, da dignidade da pessoa humana, foco central e

razão de ser de todo o ordenamento jurídico.

6. CONCLUSÃO

Para se alcançar o real sentido da igualdade, muitas vezes, é necessária a imposição

de um tratamento desigual, em favor dos grupos mais vulneráveis da sociedade. Assim, a

caminhada pela conquista dos direitos humanos desembocou no direito fundamental à

desigualdade. Este direito evidencia um outro lado da igualdade, possível apenas com o

respeito às diferenças.

As ações afirmativas são importante ferramenta na luta pela conquista da igualdade

material e, portanto, estão intimamente ligadas à causa dos direitos humanos. Estão

amparadas pela Constituição Federal de 1988, por uma vasta legislação extravagante e, ainda,

por uma gama de tratados e convenções internacionais ratificados pelo Brasil e incorporados

ao ordenamento jurídico interno.

Finalmente, concluí-se que a realização do valor da igualdade compreende os

objetivos do nosso Estado Democrático de Direito e funda-se no princípio da primazia da

pessoa humana, sendo as ações afirmativas de suma importância para a construção de uma

sociedade mais justa, mais solidária e apta a promover a efetivação dos direitos e garantias

fundamentais.

REFERÊNCIAS

AMERICAN EXPERIENCE. Disponível em: <http://www.pbs.org/wgbh/amex/eyesontheprize/sources/ps_bakke.html> Acesso em: 06 jan. 2010.

ARAÚJO, José Carlos Evangelista de. Ações Afirmativas e Estado Democrático Social de Direito. São Paulo: Editora Letras, 2009.

Page 19: Aedf06

18

BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e Interpretação Constitucional. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002. FACHIN, Zulmar. 20 anos da Constituição Cidadã. São Paulo: Método, 2008.

GOMES, Joaquim Barbosa. Ação Afirmativa: princípio constitucional da igualdade. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.

KAUFFMAN, Roberta Fragoso Meneses. Ações Afirmativas à Brasileira: Necessidade ou Mito. São Paulo: Livraria do Advogado, 2007.

MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de direito internacional público. 3ª ed., rev., atual. e ampl., São Paulo: RT, 2009.

MAZZUOLLI, Valério de Oliveira. Reforma do Judiciário e os Tratados de Direitos Humanos. Revista Jurídica Eletrônica UNICOC. Disponível em: <http://www.revistajuridicaunicoc.com.br/midia/arquivos/ArquivoID_63.pdf> Acesso em: 26 jan. 2010.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 3ª ed., 2000.

MELLO, Marco Aurélio. Ótica Constitucional: A Igualdade e as Ações Afirmativas. In: MARTINS, Ives Gandra Silva (Coord.). As vertentes do Direito Constitucional Contemporâneo. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2002.

PIOVESAN, Flávia. Temas de Direitos Humanos. 2. ed. atual. São Paulo: Max Limonad, 2003.

PIOVESAN, Flávia. Ações Afirmativas da perspectiva dos direitos humanos, publicado em: Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 35, n. 124, jan/abril.2005, pg. 46. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-15742005000100004> Acesso em: 14 out. 2009.

ROTHENBURG, Walter Claudius. Igualdade Material e Discriminação Positiva: o Princípio da Isonomia. Disponível em: <http://www.buscalegis.ufsc.br/revistas/files/journals/2/articles/32745/public/32745-40386-1-PB.pdf> Acesso em: 22 nov. 2009.

SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros, 2005.

SOUZA, Osiel Francisco de. Ações Afirmativas como Instrumento de Concretização da Igualdade Material. São Paulo: All Print, 2008.