Adrià - katyadelimbeuf.com · Adrià omágico Nofim de junho, fecha o El Bulli, o templo da alta...

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Adrià o mágico No fim de junho, fecha o El Bulli, o templo da alta gastronomia. Numa entrevista exclusiva ao Expresso, o genial Ferran Adrià, eleito o melhor chefe do mundo, fala do seu novo projeto, da arte de criar paladares e do amor pela cozinha. ENTREVISTA DE KATYA DELIMBEUF FOTOGRAFIAS DE RUI DUARTE SILVA, EM GIRONA SABOR ENTREVISTA

Transcript of Adrià - katyadelimbeuf.com · Adrià omágico Nofim de junho, fecha o El Bulli, o templo da alta...

Adriào mágico

No fim de junho, fecha o El Bulli, o templo da altagastronomia. Numa entrevista exclusiva

ao Expresso, o genial Ferran Adrià, eleito o melhorchefe do mundo, fala do seu novo projeto,

da arte de criar paladares e do amorpela cozinha. ENTREVISTA DE KATYA DELIMBEUF

FOTOGRAFIAS DE RUI DUARTE SILVA, EM GIRONA

SABORENTREVISTA

INOVAÇÃO MUITO MAISQUE UM CHEFE, FERRANADRIÀ É UM GÉNIOCRIATIVO. PARA ELE,TUDO O QUE FOI INVEN-TADO É PASSADO.É POR ISSO QUE NÃOSENTE MÁGOA EMFECHAR O EL BULLI.VEM AÍ A FUNDAÇÃO

Na estrada serpenteanteque antecede a chegadaao El Bulli, o restaurantemais famoso do mundo,a paisagem e o silêncioparecem combinadas naantecipação do momen-to. Entrámos no Parque

Natural del Cabo de Creus, em Girona, e avegetação altera-se a cada quilómetro. Pri-meiro rasteira e agreste, como o nosso Sudes-te Alentejano, depois pejada de imponentespinheiros mansos e oliveiras. Para trás ficouRoses, uma estância balnear de veraneio,muito turística, a fazer lembrar o Algarve.Lá em baixo, do lado da estrada onde a mon-tanha cede lugar ao abismo, o mar.

Numa dessas enseadas sobre a praia, umportão e uma cerca modernas anunciam quechegámos. O portão está, contudo, fechado eo silêncio é sepulcral. Espreitamos e não sevê um carro nem se ouve outro som que nãoo das ondas. São 15h30 de uma segunda-fei-ra, hora da entrevista marcada com um mêsde antecedência na apertadíssima agenda deFerran Adrià, e por momentos os suoresfrios ameaçam invadir-nos. Seria possívelque se tivesse esquecido, entre centenas decompromissos? Quinze longos minutos maistarde, um funcionário surge à porta e man-da-nos entrar. Lá em baixo, junto à entradado restaurante, aguardam Juli Soler, sóciode Adrià desde 1992, e Pol, um dos chefes desala. Cumprimentam-nos com um aperto demão e dão-nos as boas-vindas ao El Bulli.

Lá dentro, a atividade é fervilhante — de-zenas de pessoas trabalham, apesar de nãose ouvir absolutamente nada cá fora. A cozi-nha está habitada pelos seus 45 ‘residentes’nas suas tarefas habituais para servir os 50jantares da noite, a partir das 19h30. Pelorestaurante há pessoas sentadas de computa-dor portátil à frente, ocupadas a pensar pro-jetos novos, duas jornalistas filmam um docu-mentário, empregados limpam copos.

Ferran anda lá no meio, de um lado parao outro, a dirigir, qual chefe de orquestra. Éum homem pouco alto, nervoso — com o cé-rebro em permanente ebulição.

Pol encaminha-nos para uma das salas.Passamos por uma banca cheia de livros so-bre o El Bulli — Ferran orgulha-se de ter to-

das as suas receitas publicadas. De resto,uma das razões que o levou a querer fechar orestaurante em julho de 2011 — para desgos-to dos inúmeros fãs de todo o mundo — eerguer uma Fundação, em 2014, foi para par-tilhar o seu conhecimento. A afirmação cau-sou um terramoto no mundo da alta gastro-nomia — ou não tivesse aquele homem sidoconsiderado o melhor chefe do mundo qua-tro anos consecutivos. Ferran surge então,de lápis atrás da orelha, qual merceeiro.Usa-o para as anotações que faz permanente-mente nos seus cadernos — tem centenas,desde que começou na profissão, aos 18 anos,como lavador de pratos num hotel de Ibiza.

Conheceu uma ascensão meteórica, masnem por isso ganhou vícios ou luxos. Não

tem carro, não liga a roupa de marca, vivenum apartamento de 50 m2 em Barcelona. Ohomem que faz 50 anos em 2012 não temqualquer meta por cumprir até lá. Nem viveobcecado por isso. Mergulhámos no univer-so fantástico de Ferran Adrià.Qual foi o seu primeiro contacto com a comi-da, recorda-se? Não. Tenho memória de aos6, 7 anos comer esparguete, mas nenhumarecordação muito viva...Ser chefe não era portanto um sonho? Não,de todo. Eu não queria ser o que sou. Estesítio [El Bulli] marca toda a minha trajetória.Eu queria ser futebolista.Se não fosse chefe, acha que poderia ser físi-co ou químico [atribui-se a Adrià a ‘paternida-de’ da comida molecular]? Sou daqueles que

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acham que não vale a pena preocupar-noscom o que não podemos mudar.Gosta muito de comer, suponho. Gosto maisde comer que de cozinhar, até!Consegue eleger um prato preferido? Nãosou absolutista. Mas adoro marisco. Uma pes-soa que se dedica a criar não pode ser funda-mentalista nem preocupar-se com o passado,tem que ser livre.Cozinha, em casa? Nunca estou em casa Éum mito que os chefes cozinhem em casa. Eucozinho aqui todos os dias da minha vida. Co-mo aqui.E o que come? Estamos a fazer um livro sobreisso, para explicar o que come a equipa, e asdiferenças entre fazer comida em casa ou norestaurante. Mostramos 31 menus a três euros

— uma coisa pragmática, para mostrar o quecomemos nós, não os clientes. No restaurante,perdemos imenso tempo com a mise en place(empratamento), algo que em casa não existe.Hoje, por exemplo, comemos frango assado eananás com lima e mel. Acho que se não cozi-nhares bem para ti, não cozinhas bem para osoutros. E se comeres bem, acordas feliz.Ferran Adrià também come esparguete à bo-lonhesa? Sim, claro... Uma coisa é a minhavida profissional, outra a minha vida pes-soal. E na vida pessoal, sou uma pessoamuito normal.Perdeu 15 quilos no último ano. Tomou essadecisão. O que alterou na sua dieta? Se tudocorrer bem, vamos viver muitos anos — e que-ro chegar muito bem aos 70... Não altereinada, apenas introduzi o exercício físico. Fa-ço uma hora de exercício de manhã: corro,ocupo-me do jardim...Descreva-me um dia ‘normal’ seu, durante ametade do ano em que o El Bulli está aberto.Acordo pelas 9h, faço uma hora de exercício,às 10h30 ponho-me a caminho e às 11h estouaqui. Reúno com a minha equipa de criativi-dade — o núcleo duro são 5, 6 pessoas —, voupara a cozinha, tenho entrevistas, reuniõesde negócios, e depois é cozinha, cozinha, cozi-nha... Às 19h30 chegam os clientes, cozinha,cozinha, cozinha até à 1h30 da manhã. Quan-do chego a casa, vou direto para a cama.E nessas horas todas de trabalho, não há tem-po para ir 5 minutos à praia ver o mar? Psico-logicamente, é muito difícil. Como estou con-centrado, não consigo relaxar. No novo for-mato [a Fundação El Bulli, que abrirá em2014], aí sim. Essa é uma das mudanças quetenciono introduzir.Ao fim de tantos anos na cozinha, consegueperceber porque é tão feliz aí? Eu continuofeliz a fazer o que faço. Não sei, é como noamor. Nunca sabes porque amas alguém. Oucomo nos clubes de futebol. Porque amo o Bar-ça [Clube de Futebol de Barcelona]? Não sei.Se for outro clube a jogar, não ligo nenhuma.Não sei porque amo a cozinha. Pergunto-metodos os dias porque faço o que faço. Sou cozi-nheiro porque gosto. Mas sem entrar em obses-sões. Isso já é entrar na paixão como doença. Eeu gosto de ser pragmático, frio — embora meagrade trabalhar com paixão. Além disso, nãofaço só cozinha — faço 100 coisas. Contacto

HOMEM SIMPLES NÃOTEM CARRO, NÃO LIGA AROUPA DE MARCA, VIVENUM APARTAMENTO DE50 M2 EM BARCELONA.PARA FERRAN ADRIÀ,LUXO É FAZER O QUELHE APETECE A CADAMOMENTO. O SEU MOTEÉ “CRIA E SÊ FELIZ”

“Não sei porqueamo a cozinha.É como no amor.Nunca sabesporque amasalguém”

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com muita gente, muitas disciplinas — por is-so, não sinto falta de mais. Aqui, estou em con-tacto com teatro, arte, desenho, arquitetura...Quando começou aos 18 anos, a lavar pratosnum hotel de Ibiza, alguma vez pensou quepoderia vir a ser um chefe reconhecido? Nun-ca. Este sítio marcou definitivamente a mi-nha trajetória. Poucas foram as pessoas quevenceram na vida e não queriam muito láchegar. Isso faz com que sejamos feitos deuma substância especial, que sejamos “estra-nhos”... Porque sonhámos com muito, e con-seguimos mil vezes aquilo que a maioria daspessoas consegue. O ego criativo, o ego dafama, tudo isso é descoberto. Hoje, um jo-vem cozinheiro o que almeja? Ser FerranAdrià. Isto significa o quê? Ser capa dos jor-nais, participar na Documenta [prestigiadoFestival de Arte na Alemanha, para o qual foiconvidado em 1997, como artista e não comocozinheiro], três Honoris Causa... Não podeser, é de loucos... Eu apenas queria ser cozi-nheiro. Hoje, se fores um grande chefe masnão tão bom como outro, sentes que ficasteaquém... É uma busca que não para. E assimandamos a criar monstros... Egos monstruo-sos. Eu não posso ser ator e querer ser o Ro-bert de Niro. Robert de Niro só há um...

E Ferran Adrià também? Há circunstânciasespecíficas da vida de cada um. Ferran sem oEl Bulli não seria Ferran Adrià.Alterou alguma coisa na sua personalidadecom a fama? Julgo que não. Mas é muito difí-cil resistir a certas coisas. Arriscas-te a acharque és incrível... A família é muito importan-te, porque é quem te mantém com os pés nochão. A minha mulher [Isabel], o meu irmão[Alberto, que trabalhou anos com ele, antesde abrir o seu próprio restaurante, Inopia, emBarcelona], os meus pais. E a minha equipa.Como é o seu processo criativo? Muito com-plexo. Há um filme muito interessante, cha-mado “El Bulli: Cooking in Progress”, do ale-mão Gereon Wetzel, que está agora ser exibi-do no MoMA de Nova Iorque, e que mostracomo isso pode ser muito complicado — oumuito simples.Tentemos a versão simples. Tens uma ideia,desenvolve-la e, se funcionar, tens um pratonovo. A questão é como tens a ideia.Claro... Mas isso não se explica. Tens a ideia.Mas isso acontece-lhe quando? Até em so-nhos? Há de tudo. Pode ser em sonhos, notrabalho, a viajar... Não há uma regra, hámuitas regras. Com a Universidade de Har-vard, por exemplo [onde foi professor convi-

“Sou capa dosjornais, tenhotrês Honoris Cau-sa... Não podeser, é de loucos...Eu apenas queriaser cozinheiro”

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10 pratos loucoscom assinaturaAdrià

dado num curso de Ciência e Cozinha, quedecorreu de setembro a janeiro], vamos pro-longar o curso para 5 anos. O anúncio vai serfeito aqui em Girona, a 22 deste mês. Serásobre “Criatividade e Processos Criativos”. Is-so vai servir também para mim, para organi-zar o meu processo criativo. Mas, na criativi-dade, acho que é preciso falar muito pouco efazer muito.Tem milhares de sabores memorizados. Co-mo se armazenam tantos paladares? Dedi-cas-te, estás treinado para isso... Tu não es-tás treinada para isso, mas também conse-guirias.Protege as suas papilas gustativas de algu-ma forma? Não.Fuma? Não. Não é preciso dramatizar...Quando começou a introduzir a física e a quí-mica na sua cozinha? Acho que se criou umgrande equívoco em torno desse discurso. Aúnica coisa que eu trouxe à cozinha foi o co-nhecimento — e um deles é a ciência. Masquando entras na minha cozinha, é uma cozi-nha normal. Depois, se precisares de especia-listas, consulta-los.Mas as espumas, as esferificações, as bolasde gelado feito com nitrogénio, são tudo téc-nicas que o Adrià introduziu na gastronomia.Nada disso é química. Ou tudo é química. Aágua é química: H2O. Um mil-folhas é maiscomplexo do que fazer caviar de azeite. A es-ferificação e um ovo estrelado são coisas mui-to parecidas. E o nitrogénio líquido é só umproduto, um gás.Porque acha que a cozinha molecular causoutanta celeuma? Porque foi uma forma que searranjou de atacar a vanguarda, através dotema da saúde. Dizer que a ciência era noci-va na comida. É o que faz a contra-vanguar-da — ataca. Eu lembro-me: as espumas, em1994, eram o “demónio”...Qual é o seu lema? Criar é não copiar. Me-lhor ainda: “Cria e sê feliz”!Essa procura incessante de coisas novas nun-ca se esgota? Não sei. Quando se esgotar,dir-te-ei...E o dia a dia no escritório em Barcelona (ondepassa metade do ano, a investigar novas téc-nicas), como é? Era. Com o encerramento dorestaurante, não faz sentido manter o taller. AFundação vai ser um grande escritório.Quantos trabalham lá? Poucos — seis, sete.

Na metade do ano que passa(va) em Barcelo-na, vive num apartamento de 50 m2. Não temcarro. Não liga a roupa de marca. Tem algumluxo? Adoro viajar e adoro comer. E não meimporto de pagar muito por isso. Mas paramim, luxo é ser feliz cada dia. É o que teapetece a cada momento.Como foi dar aulas em Harvard? Uma maravi-lha...! Não só é um sítio com imensa História,como tem apenas 5000 estudantes. E, des-ses, 700 inscreveram-se no meu curso. Foiinédito. E emocionante.Ainda se emociona com distinções, auditó-rios cheio para o ouvirem? Sim, claro. A par-tir do momento que deixares de te emocio-nar, estás morto. Quando leio uma boa repor-tagem ou recebo um prémio emociono-me.Mas não trabalho para isso. Se quero ir paraHarvard, é pelo desafio.Ensinar motiva-o? Em Harvard, não vou paraensinar, vou para divulgar. Harvard não é bemuma escola, é um lugar de reflexão e diálogo.É isso também que quer fazer na FundaçãoEl Bulli? Não. A Fundação não vai ter nadade ensino — é um centro de criatividade,pura. Quanto muito, podemos tentar ensi-nar a pensar.A pensar o quê? O que é comida? Tudo. Des-de a lógica, a perceber que não há comidaestranha, há gente estranha. O que é estra-nho? Nós é que tornamos as coisas estra-nhas... Um bacalhau seco é muito estranho.As coisas são o que são. A tua cultura é queas torna diferentes. Quando entendes isso,então podes começar a falar de cozinha.Isso quer dizer que a comida que se serve noEl Bulli é estranha? Sim.E as pessoas que vêm são estranhas? Quemvem aceita conhecer coisas novas [o menu doEl Bulli muda todos os anos]. E, então, o sen-timento de diferença transforma-se numa in-quietação.Interessante... E é isso que os faz voltar, noano seguinte? Têm uma elevada taxa de repe-tentes, não é verdade? Sim, cerca de 50% re-pete. Mas não acontece todos os anos. É im-portante ter feedback de habitués, mas tam-bém de gente nova...Qual o perfil dos clientes? Há de tudo. Nãohá muitas estrelas, por causa da antecedênciacom que é preciso reservar [cerca de um anoantes]. Há os clientes ‘normais’, os aficiona-

COZINHA NÃO HÁOUTRA IGUAL. A COZI-NHA DO EL BULLI FERVI-LHA DE ATIVIDADE: 45PESSOAS REPARTEMO ESPAÇO. SERINGAS,BALANÇAS DE PRECISÃO,NITROGÉNIO OU ALGINA-TOS SÃO INSTRUMEN-TOS DE TRABALHO

1. GIN FROZEN CALIENTE Cock-tail com espuma doce e quente porcima de gim fresco, originando umcontraste quente/frio.2. MÚMIA Espinha de cabeça depeixe frita, enrolada em algodãodoce, misturando-se o doce e osalgado; homenagem de Adrià àindústria conserveira da Catalunha,onde as espinhas de peixe fritas sãocomidas como petisco.3. GOLDEN EGG Ovo de codornizcom crosta de caramelo, perfumadocom sal, pimenta e noz moscada,para ser comido de uma só vez.4. ELECTRIC MILK Bolacha debaunilha crocante, encimada compimenta de Sichuan (China), quedeixa uma sensação de cócegas nalíngua durante vários minutos.5. RAVIOLI DE ERVILHAS Doisglobos líquidos de ervilhas, um acom-panhado com porco crocante e outrocom sal marinho e menta (na foto).6. CIGARRA UNILATERAL COMESPUMA DE CHÁ MATE Gambagigante servida quente, aberta aomeio e coberta com gelado deespuma por cima.7. ORELHA DE COELHO FRITACOM ERVAS SECAS AROMÁTI-CAS Orelha de coelho desidratada,estaladiça e crocante, servida em pé.8. SOPA DE FOIE GRAS Consomêde frango enriquecido com xaropede tamarindo e com pó de foie grasgelado por cima.9. CAIPIRINHA-NITRO COMCONCENTRADO DE ESTRAGÃOSorvete dentro da casca de umlimão inteiro e que é feito comnitrogénio líquido.10. TIERRA 2005 Foie gras geladoe gelatinoso, coberto por quatrofarofas de várias cores, inspirado nosvários tipos de solos de Espanha.

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Números & factosdo El Bulli

dos, os que estão interessados em conhecer...Há más reações? Muito poucas. Três ou qua-tro por ano. Há quem não goste.O que pode adiantar sobre a Fundação El Bul-li? É uma evolução natural do restaurante ede toda a nossa trajetória. Desde 1994 que anossa missão é criar. Depois, à volta, criámosum cenário... As pessoas vêm comer, etc.Mas nós, que fizemos muitas mudanças aolongo do nosso percurso, precisávamos deuma mudança radical. Senão, muito honesta-mente, não conseguiríamos continuar a criara este nível... É natural que muita gente nãoentenda esta mudança tão radical.O cansaço também é um motivo? Não. Mas éverdade que, quando começámos, o meu nú-cleo duro não tinha filhos, e o nosso modusvivendi não era possível de manter. Cada anocriamos 100, 120 pratos, que mudam todosos anos, que queremos que sejam uma refe-rência no mundo... É muito exigente.E financeiramente? Diz-se sempre que o ElBulli perde dinheiro. Nunca percebi essa afir-mação. O El Bulli custa dinheiro, não perde.Já há duas vertentes conhecidas da Funda-ção: Ecologia e Tecnologia. Porque quer queesteja permanentemente ligada à Internet?Para partilhar? A missão da Fundação é parti-lhar todo o conhecimento. Como se fazia antesatravés dos livros. E até 2014, a Internet vaimudar — não se sabe se será paga, se não se-rá... É isso que estamos a trabalhar com a Tele-fónica [a maior empresa de telecomunicaçõesespanhola]. Há vários caminhos possíveis. Pos-so dizer que haverá um jornal online com ví-deos e haverá estágios com jornais e televisões.Onde será a Fundação? Aqui mesmo. Cons-truir-se-á por cima donde estamos agora, noterreno do El Bulli. Não será uma coisa mui-to grande. Mas será mais que suficiente. Eterá 30 pessoas a trabalhar cá, de todo omundo. Gostava que isto fosse um pouco co-mo Harvard. De acesso muito difícil, muitoexigente, onde o amiguismo não entra.Como serão selecionados esses ‘eleitos’?Com exames na Internet, e depois com umexame prático, de criatividade, aqui.E as estrelas Michelin, o El Bulli que servejantares, acaba a 30 de junho deste ano? Sim.Sem dramas? Antes pelo contrário! Estamosmuito contentes porque temos um projeto tãoou mais bonito que o restaurante... Agora, fa-

zemos seis meses de criatividade e seis mesesde execução. [Na metade do ano em que o ElBulli está fechado, Adrià investiga novas técni-cas no seu escritório de Barcelona]. Na Funda-ção, vamos ser nós a marcar o timing. Eu direicomo, quando e onde. É isso que muda: a es-trutura mental e a liberdade. Isto nunca tinhaacontecido com um chefe. É outra etapa.Lembra-se do que sentiu quando recebeu asua primeira estrela Michelin? O que sintoem todos os prémios: muita emoção. Talvez omais especial tenha sido o da Documenta, por-que o desafio tinha que ver com criatividade enão com cozinha... Foi interessante e difícil.Também diversificou a sua atividade noutrasáreas: tem uma parceria com a Hacienda Be-nazuza, em Sevilha, com os Hotéis NH, paraquem criou o conceito fast good, de boa comi-da rápida, colabora com a Lavazza... Tudo is-so vai passar para baixo do guarda-chuva daFundação...Na sua cozinha, quantas pessoas estão, empermanência? 45. Há estagiários que estãoseis meses, outros um mês...E como se consegue selecionar — entre os8000 pedidos que recebem anualmente? Hámuita gente que nos telefona, entre os melho-res cozinheiros do mundo, a dar indicações:“Este miúdo é muito bom”...Há muitos chefes conhecidos hoje que esta-giaram no El Bulli... Sergi Arola, o nosso Jo-sé Avillez... Sim. Aliás, se se for ver a lista do“Restaurant Magazine” dos 10 melhores che-fes do mundo, sete estagiaram aqui... Passa-ram por cá 1300 estagiários — e eu pres-to-lhes uma homenagem, no livro “Aprendi-zes de Feiticeiro”, que será publicado emmarço, em Nova Iorque. Quando vês a listade quem por aqui passou, perguntas: “Quemé que não passou?” É bonito. O que se levadaqui é o espírito do El Bulli. E isso vai pas-sar para a Fundação. Isso não morre.Se tivesse que resumir o espírito do El Bullinuma palavra, qual seria? “Challenge”. É pre-ciso arriscar. A vida é para os que arriscam.É muito rígida a hierarquia numa cozinha,não é? Tem que ser, é um trabalho muitorigoroso.Na sua cozinha os estagiários usam a palavra“Queimo” de cada vez que se movem... Sim,para evitar acidentes. Em 25 anos, só umapessoa se queimou no El Bulli.

MIL PROJETOS HÁSEMPRE MUITA COISA AACONTECER AO MESMOTEMPO NO EL BULLI:DOCUMENTÁRIOS,ENTREVISTAS, CURSOS...AQUI, ADRIÀ CONVERSACOM DUAS JORNALISTASQUE FILMAM O EL BULLI.À MESA, OUTROPROJETO AGUARDA

350 euros é o preço domenu 2011, sem bebidas

35 pratos é a média do menude degustação, entre tapas, cocktails,entradas, pratos fortes e sobremesas

50 jantares são servidos pornoite, durante seis meses (8400 jantaresservidos por ano)

1.000.000de reservas feitas por ano

4 pessoas atendem os telefonessó para dizer que já não há lugares

45 pessoas trabalhamna cozinha ao mesmo tempo

8000 candidatosa 35 lugares de estagiários

2500 experiênciasfeitas no laboratório de Barcelona, duran-te os seis meses de criação, transfor-mam-se em 500 pratos, dos quais apenas25 a 50 figurarão na ementa do El Bulli

ENTREVISTA

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45 pessoas numa cozinha...sem qualquer vestígio de caos

Quando se entra na cozinha do ElBulli, a sensação é totalmente diferen-te da que se tem noutras cozinhas. Oelevado número de pessoas atarefa-das e em movimento é uma dasprimeiras marcas: 45 pessoas dividemo espaço, cada uma concentrada nosseus afazeres. Ninguém se move semdizer “Queimo”, a palavra-passe quegarante a segurança de todos. Em 25anos, só uma pessoa se queimou,orgulha-se Adrià. Uma fileira inteirade empregados, de seringa em riste,faz bolinhas de gelado de coco (“esfe-rificação de coco”), com as gotas quecaem no nitrogénio líquido. Um esta-giário ocupa-se a estender sishos,folhas japonesas liofilizadas queserão servidas numa seringa de soja,sésamo e wasabi... É uma cozinha, écerto, mas também pelos instrumen-tos dá ares de laboratório. Embora asostras e as conquilhas nos resgatem

ao nosso território conhecido... MariaFlorencia Ravioli é uma das quatromulheres entre os 45 estagiários doEl Bulli. Foi selecionada no seu país etem noção do privilégio que é estar ali— são 8000 os candidatos todos osanos. É argentina, tem 34 anos, e estáhá quatro meses no El Bulli. Desdeentão, já aprendeu a trabalhar todasas técnicas cunhadas de Adrià: “esferi-ficações, alginatos, nitrogénio...” “Éduro” trabalhar aqui, confessa. “Sãomuitas horas, e é preciso muita con-centração. Entramos às 12h — o quesignifica estar preparada uma horaantes, com a farda impecavelmentelimpa e passada a ferro e o cabeloirrepreensivelmente apanhado — esaímos à 1h da manhã, depois de acozinha estar absolutamente limpa.Não é para qualquer senhorita!”,graceja. Mas Maria Florencia estáconvencida que as portas que esta

experiência lhe vai abrir vão valer oempenho e o trabalho. Pol Perello éo chefe de sala mais novo do El Bulli.O seu ar de miúdo engana. Mas Poltem 33 anos e trabalha ali desde os18. “Os meus pais tinham um restau-rante em Roses, e o Juli [Soler] preci-sava de mais uma pessoa...” Começoucomo ajudante de empregado. Aqui,aprendeu “a trabalhar em equipa”,“sob muita pressão”. E “a viver umahistória muito linda”. Apesar do ritmointenso, “todos os verões, no fim dodia de trabalho, eu e os outros doischefes de sala vamos dar um mergu-lho à praia. É tradição”, partilha. Éuma das quatro pessoas que atendeos telefones na altura das reservas,para dizer que já não há lugares.“Nesses dias, não há um minuto semque o telefone toque”, conta. DeFerran, diz que “não é só um cozinhei-ro, é um comunicador.”

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É impressão minha ou a cozinha acaba porser um universo essencialmente masculino?A proporção de rapazes para raparigas naEuropa é de nove para um. Porque a partirdo momento em que elas têm filhos, é umavida muito difícil de conciliar com a profis-são. Nos EUA é diferente, porque há turnos eos horários são muito mais flexíveis.Continuará a viajar, depois do restaurante en-cerrar? Claro. Nestes últimos dois anos emeio, viajei muitíssimo. Estive em mais de70 países. Gosto muito da Ásia e da AméricaLatina, mas também dos EUA.Quando viaja, gosta de comer no restaurantegourmet, no tasco ou no mercado? Em todos.Tem boas recordações de Portugal, creio...Sim. A minha viagem de núpcias foi em Lis-boa. Cinco dias. Foram férias. Lembro-me devisitar a zona da Expo.O que o marcou mais no nosso país? O desco-nhecimento que as pessoas têm da qualidadedo peixe e do marisco em Portugal. E do malque Portugal vende estes produtos no mun-do. Diz-se que a Galiza tem o melhor mariscodo mundo... Para mim, Portugal tem o me-lhor marisco do mundo. É maravilhoso! Im-pressionou-me. Tenho pendente uma via-gem para ir conhecer a nova geração de che-fes que surgiu no vosso país.Acredita que os novos polos gastronómicosque vão surgir serão na América Latina —Amazónia, Chile e Peru —, e na China. Sãosítios que vão explodir... Mas a cozinha nãovai ser nacional, vai ser pessoal.A sua mulher, Isabel, também gosta de co-mer? Sim, muito. Senão, seria complicado...E qual o prato favorito dela feito por si? Jul-go que será a “mousse de milho”, uma sobre-mesa icónica...

Tem sido a sua companheira de vida. Conhe-ceram-se como? Aqui em Roses, enquantoveraneantes. Tínhamos 19 anos.No fundo, ela acompanhou toda a sua carrei-ra. Sim, ela conhece o Ferran, não o FerranAdrià.E convive bem com a sua ausência? Eu nãoacho a ausência algo mau para os casais...Tem pena de não ter tido filhos? Não. Na vi-da, não se pode ter tudo. Vi tantos amigosque destruíram os seus casamentos por que-rerem tudo... É muito difícil. Não digo impos-sível, mas uma vida como a minha, com onível de exigência que tenho, é muito difícilde conciliar com filhos... Provavelmente já es-taria divorciado...Continua a colecionar os lápis dos hotéis on-de fica hospedado? Devem ser centenas...Sim. Começou por brincadeira, mas acaba porser uma maneira muito fácil de guardares atua vida. Está tudo no taller, que funciona umpouco como uma casa onde recebo as pessoas.É lá que estão os livros. Há muito espaço.Tem ideia de quantos blocos de notas acumu-lou, ao longo da sua carreira? Não... Estãotodos no escritório e farão parte do arquivoda Fundação, com a história de El Bulli.No seu tempo livre, o que gosta de fazer?Não tenho esse conceito de tempo livre. Issosó existe quando o teu trabalho é uma carga.Quando estou aqui, gosto de estar aqui, quan-do viajo, gosto de estar lá...Para o ano festeja 50 anos. Há algo que gos-tasse de fazer para assinalar a data? Estespróximos dois anos e meio [de paragem, ousabática, entre 30 de junho de 2011 e 2014]são a melhor prenda que posso pedir. É osonho de qualquer pessoa.Está a preparar alguma ementa especial paradia 30 de junho? Não. É que não tenho a sen-sação de que isto acaba... É como um jornalem papel passar a jornal online. Um projetosucede o outro. Não há que ter pena.O que faz quando está aflito, quando tem pro-blemas? Na manhã em que acordar sem pro-blemas, tenho um problema muito grande...[risos] Cada dia tem problemas diferentes. Fazparte da minha vida ter problemas. É a vida.É católico, mas não praticante, certo? Sim.Só rezo em momentos de aflição. Sou muitopragmático. Um e um são dois. n

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“Não há comidaestranha, hágente estranha.As coisas são oque são. A tuacultura é que astorna diferentes”

ANINHADO NUMAENSEADA NO PARQUENATURAL DO CABO DECREUS, EM GIRONA, O ELBULLI É UM RESTAURAN-TE DISCRETO FRENTE AOMAR. A ARQUITETURA ÉMEDITERRÂNICA, DOMI-NADA PELAS PAREDESDE REBOCO BRANCO ECOM UM PÁTIO, PERFEI-TO PARA O VERÃO

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