[REVISTA - katyadelimbeuf.com · de Tondela, mais precisamente de uma aldeia pequenina chama- ......

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DANIEL KRIEGER 44 REVISTA 15/SET/12

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REVISTA 15/SET/12

Na cozinha do Aldea, que não terámais de 20 metros quadrados, mo-vem-se 13 pessoas. Pelo menos, tan-tas quantas consigo contar. Masnão há ponta de desordem nestaocupação repartida. Cada um sabeexatamente o que fazer — nem queseja não fazer nada (os estagiários,de toque preto na cabeça, apenasobservam, muito atentamente, tu-do o que se passa, não tocam emnada). George, esse, parece um pol-vo: está por cima do ombro de cadamembro da equipa, braseia as viei-

ras na chapa, emprata, corrige ostemperos, fala pessoalmente comos clientes sentados na barra, emfrente à sua cozinha aberta. Naementa, lá estão as marcas identitá-rias do chefe: o arroz de pato, asamêijoas, os croquetes de baca-lhau, os sonhos servidos com trêscaldas diferentes. A gastronomiaportuguesa reinventada. Quandolhe dizemos que somos portugue-ses, sorri, muda de língua, revela oforte sotaque. Aos 39 anos, GeorgeMendes é um homem realizado.

Cresceu em Connectinut, nosEUA, mas é filho de portuguesesde Tondela, mais precisamentede uma aldeia pequenina chama-da Ferreirós do Dão. Mudou-sehá já 16 anos para Nova Iorque.Costuma ir a Portugal?Vou duas a três vezes por ano, qua-se sempre para Lisboa. Adoro o tra-balho de José Avillez, de HenriqueMouro, do ‘Assinatura’, do Henri-que Sá Pessoa... Adoro andar em Be-lém, ir aos pastéis... Adoro as cerve-jarias em Lisboa — o Ramiro. Nun-ca lá vou sem ir comer três vezesao Ramiro, sem falta. A qualidadede peixes e mariscos é formidável.Para mim, é um amigo e uma pes-soa fantástica. Cada vez que saio delá, dou por mim a pensar: “Uau!Não se tem isto em Nova Iorque!”A gastronomia portuguesa fazparte da sua marca como chefe.Qual a influência que ela teve noseu percurso?Tudo começou quando eu era crian-ça, e via a minha mãe a cozinharpratos de arroz — arroz de tomate,arroz de coelho, arroz de feijão —,bacalhau, leitão... Sopas de nabo, cal-do verde... Pratos tipicamente

George Mendes é um chefe português em Nova Iorque.No seu restaurante, o Aldea, com uma estrela Michelin,pode jantar-se com vista para a azáfama da cozinha.Conversámos com o luso-americano que pôs o arrozde pato na ementa da alta gastronomia, na cidadeque nunca dorme. ENTREVISTA DE KATYA DELIMBEUF, EM NOVA IORQUE

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“SINTO-MEMAIS COZINHEIRODO QUE CHEFE”

ORIGENS NASCEU NOSEUA, MAS QUANDOVISITA LISBOA É SAGRA-DO IR PELO MENOSTRÊS VEZES À CERVEJA-RIA RAMIRO

ENTREVISTA

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portugueses. Sempre soube que que-ria fazer algo com as mãos, em quepudesse gastar energia — não gostode ficar parado. Quando fui para oCulinary Institute of America, aos 17,18 anos, percebi que esse era o regis-to. Cozinhar era algo em que eu po-dia ser criativo, e isso agradou-me.Depois, treinei muito a cozinha clás-sica francesa, em Espanha e e Fran-ça, que é a base de tudo.E como recuperou as heranças?A partir de 2005, comecei a acharque devia ter um estilo culináriopróprio. Pensei: “De que comida éque eu gosto?” E voltei às memóriasdos Natais, com a minha mãe e aminha tia a matarem coelhos, a fa-zer arroz, aos cabritos, ao bacalhaua demolhar... Concluí: o mais impor-tante num estilo é ter cultura, Histó-ria, identidade. Aí, as minhas raízesportuguesas vieram ao de cimo. En-tão, comecei a criar pratos com es-sência portuguesa, como o arroz depato, que quase não tem a ver como que comes em Portugal porque émuito refinado, mas tem os saboresrústicos. Reinvento.Quando percebeu que podiatransformar o seu amor pelacomida em profissão e ser chefe?Gosto mais de pensar em mim en-quanto cozinheiro do que chefe.Porque o mais importante é o tra-balho. A arte é outra coisa. Saberassar, grelhar, escalfar, coser, sãocoisas muito importantes, que faze-mos todos os dias. Adoro meter asmãos em tudo, adoro o stresse dacozinha, treinar os meus cozinhei-ros, motivá-los, ajudá-los a encon-trar o seu caminho. Para mim, che-fe é um líder e isso é motivador.A cozinha aberta é um pontoessencial do Aldea. Foi ideia sua?Sim. Gosto de ver as pessoas no res-taurante, as suas reações, se se es-tão a divertir... Gosto dessa intera-ção, de poder falar diretamentecom os clientes. Às vezes eu pró-prio levo os pratos à mesa.Vêm muitos clientes portugue-ses?Ocasionalmente... Mas temos umaboa clientela brasileira.Quem janta na bancada do Al-

dea, de frente para a cozinhaaberta, percebe que o George éum perfeccionista. É obsessivono modo como trabalha?Sim. Sou obsessivo, compulsivo,perfeccionista, até neurótico às ve-zes... Sabes, é uma questão de con-sistência, de ter tudo no sítio que ésuposto. Gosto de ter tudo limpo.Gosto de organização — acho im-portante para executar boa comi-da. Cozinhar é muito repetitivo,monótono, militar de certa forma— repetimos os mesmos procedi-mentos todos os dias, duranteduas horas ao almoço, seis horasao jantar. Tem que se afiar as facasa toda a hora, limpar alcachofrasda mesma maneira, cortar vege-tais. É preciso respeitar a arte.Como reagiram os seus paisquando lhes disse que ia fazer dacozinha a sua profissão?“És maluco??!” [risos] Avisaram--me logo: “Vais trabalhar muitashoras por dia, vais fazer muitos sa-crifícios, não vais ter muitos ami-gos, vais perder a tua namorada [ri-sos]. Mas se gostas...”Tinha noção que a vida de chefeera assim tão sacrificada?Tive muitos avisos, mas nunca pen-sei que fosse tão verdade. Só quan-do cheguei a Nova Iorque, em1994/1995, percebi o quanto estavaa deixar para trás: a minha família,os meus amigos, a minha namora-da foi-se embora... [risos] Foi difícil.Havia semanas em que tinha mui-tas saudades.Mas tinha mesmo que estar emNova Iorque para ser chefe?Acho que sim. Esta cidade temuma coisa que adoro: é supervi-brante. Tem uma energia, umstresse, é divertida... Adoro a diver-sidade, as pessoas, andar nas ruas.Quanto mais dou, mais tenho paradar. E em termos de gastronomia,é das melhores cidades do mundo.Pode comer-se comida de qual-quer país aqui... Um dia, quero termulher, filhos, um carro para sairdaqui, mas adoro estar aqui.Em maio de 2009, conseguiufinalmente realizar um sonho eabrir o seu restaurante, o Aldea.

Como é um dia seu ‘normal’?Quando vou ao mercado dos vege-tais, o meu dia começa às 9h da ma-nhã. Chego à cozinha por volta das11h, e decido o que vai ser a carta dodia. Abrimos para almoço às 11h30.Na cozinha, somos sete. Depois dealmoço, fechamos e começamos aplanear o jantar. Às vezes, à tarde,consigo fugir para o ginásio meiahora ou vou a casa ver as notícias,para limpar a cabeça. Regresso, abri-mos para jantar às 17h30 e fecha-mos às 23h ou meia-noite. Às vezes,ainda tenho energia para ir jantarcom amigos, beber uma cerveja, ou-vir música ao vivo. A minha vida so-cial existe entre as 23h e as 4h damanhã [risos].Com que regularidade troca ospratos na ementa?Em regra, mudamos um ou doispratos todos os dias, às vezes cadadois dias. Ou quando descubro no-vos ingredientes.

Em que se inspira para criarnovos pratos?Pode ser num livro, pode ser numacaso, uma ida ao mercado, um so-nho, filmes, algo fruto de um en-contro de amigos que cozinham...Tem muitos amigos chefes emNova Iorque?Tenho uma dúzia deles.Em casa, cozinha para si?Não tenho espaço. Tenho um frigo-rífico e uma máquina de café.Em outubro de 2010, um anodepois de abrir o Aldea, ganhouuma estrela Michelin. Sentiumuito o acréscimo de responsabi-lidade?Comecei a ouvir rumores uns tem-pos antes. Nessa manhã, às 9h15,recebi o telefonema do diretor a di-zer que o Aldea tinha recebidouma estrela. Vim para o restauran-te, dei os parabéns à minha equipa,abrimos uma garrafa de champa-nhe, fomos a uma festa à noite, e

Idade: 39 anos

Filho de pais portugueses

Restaurante: Aldea, em

Nova Iorque — 1 estrela

Michelin. Aberto em 2009

Percurso: Trabalhou nos

restaurantes Bouley (chefe

David Bouley); Arpege, em

Paris (chefe Alain Passard);

Lespinasse (3 estrelas

Michelin), em Washington

(chefe Sandro Gamba); Le

Moulin de Mougins (chefe

Roger Vergé); La Bastide de

Moustiers (chefe Alain

Ducasse); Restaurant (chefe

Martin Berasategui, 3

estrelas Michelin), em San

Sebastian, Espanha; e El

Bulli (chefe Ferran Adriá, 3

estrelas Michelin)

Prato-ícone: Arroz de pato

“with a twist”

Outras atividades: Foi

jurado na temporada 2 do

concurso de cozinha “Top

Chef”, o que lhe deu muita

visibilidade nos EUA

Quem éGeorgeMendes

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no dia seguinte estávamos cá demanhã, como de costume. O famo-so chefe Thomas Keller diz umacoisa muito sábia: “Os prémios sãopara ontem”, não para amanhã. Épreciso querer trabalhar com con-sistência. Agora, a responsabilida-de para manter essa consistência émaior. Recebemos comensais domundo inteiro, que vêm com oGuia debaixo do braço, e que espe-ram esse nível e essa qualidade. Te-nho de estar à altura.Isso não lhe retira prazer no atode cozinhar?Não. Até porque aprendi a não le-var as coisas demasiado a sério.Gosto de me divertir na cozinha.Uma boa equipa funciona quandotemos o mesmo objetivo e nos res-peitamos.Uma das coisas que vêm associa-das a uma estrela Michelin é omedo de a perder. Sente isso?Sinto, mas isso desafia-me. Esse

medo que me diz que eles [os ins-petores do Guia Michelin] vão vol-tar. Acho que todos os chefes sepreocupam em evoluir, em ga-nhar mais estrelas...Imagina-se a fazer isto o resto dasua vida?Enquanto conseguir pegar numafaca, usar sal e pimenta, estar depé... Sim.O que faz no seu tempo livre?Descomprimo bastante no ginásio.Mas também gosto de andar, chei-rar o ar, estar na natureza, olharpara as árvores, o céu... A belezadas paisagens, das flores, dos ingre-dientes no seu estado natural inspi-ram-me. Adoro o Madison SquarePark, é o meu preferido em NY.Também gosto de ir a Brooklyn,há ótimos restaurantes lá...Qual o seu prato preferido? Aque sítios vai quando janta fora?Gosto de bons bifes, boas pastas,boas pizzas, e de vez em quando,

de ir a um restaurante de 4 estre-las Michelin. Mas no meu dia defolga, como em sítios muito sim-ples. O meu prato português pre-ferido é carne de porco à alente-jana, com amêijoas. No verão,adoro um bom vinho verde. Noinverno, adoro vinhos do Alente-jo e do Douro.Os seus pais já cá vieram jantar?Sim, claro. Desde o início, a minhamãe e o meu pai têm sido os meusmais sinceros críticos. Dão-me con-selhos. As palavras mais famosasda minha mãe são: “Devias fazer co-mo eu faço em casa!” [risos]. Imita:“Assim não se faz o cabrito, assimnão se faz o leitão...” Mas ela adoraos sabores portugueses, como o domeu bacalhau à Brás “refinado”.Em fevereiro deste ano, o Presiden-te Cavaco Silva veio cá. Nesse dia, omeu pai meteu-se num avião naFlorida e voou até aqui. R

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AS PALAVRASMAIS FAMOSASDA MINHA MÃESÃO: “DEVIASFAZER ISSOCOMO EU FAÇOEM CASA!”

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