Adoreiasalma

13
“Adorei as almas”: Umbanda, Preto-velho e escravidão. LOURIVAL ANDRADE JÚN IOR * Penetrar no universo religioso das manifestações de matriz africana no Brasil requer atenção e parâmetros mais flexíveis de análise, visto a dinâmica dos cultos e as hibridações que se constituíram em território nacional. Ao tentar buscar uma homogeneidade nestes rituais no Brasil corre-se o risco de cometer erros analíticos graves, pois a própria diversidade ritualística é uma das mais importantes marcas desta formação religiosa. A Umbanda, entre outras, está neste campo de múltiplas interpretações. Seu ritual se altera de tempos em tempos e mesmo num mesmo espaço religioso (terreiro, centro espírita, entre outras designações) existem enormes possibilidades de percepção das mediunidades e das formas de se dedicar aos Orixás e entidades. Cada casa de Umbanda possui sua própria roupagem e estímulos. Negar esta heterogeneidade e tentar formatar os ritos é ir contra a própria dinâmica umbandista. Inicialmente a Umbanda, etimologicamente, se define como derivação de m'banda, que em quimbundo significa "sacerdote" ou "curandeiro". Ou seja, esta religião se apresenta como aquela que se dedica a cura. Neste caso cura tanto física quanto espiritual. As origens da Umbanda no Brasil são polêmicas e as possibilidades também são imensas. Mas, oficialmente o dia 15 de novembro de 1908 dá-se como o nascimento de uma religião, dita brasileira. Zélio de Moraes, que já havia sido consultado por psiquiatras, pois dizia se comunicar com espíritos desencarnados, foi levado a Federação Espírita de Niterói que praticava o kardecismo e, ao participar da sessão, incorporou o Caboclo das Sete Encruzilhadas, mas não encontrou espaço dentro do ritual de Alan Kardec para se manifestar, já que estes, forjados nos conceitos europeus do século XIX buscavam através da ciência dar notoriedade e respeitabilidade as suas práticas de ver, falar, sentir e se comunicar com espíritos, e assim, consideravam estas manifestações como emanações de espíritos atrasados. No momento em que estes espíritos, os caboclos, não encontravam espaço no kardecismo, Zélio foi impelido a * UFRN-CERES-DHC - Doutor

description

fsghs

Transcript of Adoreiasalma

  • Adorei as almas: Umbanda, Preto-velho e escravido.

    LOURIVAL ANDRADE JN IOR*

    Penetrar no universo religioso das manifestaes de matriz africana no Brasil requer ateno e parmetros mais flexveis de anlise, visto a dinmica dos cultos e as hibridaes que se constituram em territrio nacional. Ao tentar buscar uma homogeneidade nestes rituais no Brasil corre-se o risco de cometer erros analticos graves, pois a prpria diversidade ritualstica uma das mais importantes marcas desta formao religiosa. A Umbanda, entre outras, est neste campo de mltiplas interpretaes. Seu ritual se altera de tempos em tempos e mesmo num mesmo espao religioso (terreiro, centro esprita, entre outras designaes) existem enormes possibilidades de percepo das mediunidades e das formas de se dedicar aos Orixs e entidades. Cada casa de Umbanda possui sua prpria roupagem e estmulos. Negar esta heterogeneidade e tentar formatar os ritos ir contra a prpria dinmica umbandista. Inicialmente a Umbanda, etimologicamente, se define como derivao de m'banda, que em quimbundo significa "sacerdote" ou "curandeiro". Ou seja, esta religio se apresenta como aquela que se dedica a cura. Neste caso cura tanto fsica quanto espiritual. As origens da Umbanda no Brasil so polmicas e as possibilidades tambm so imensas. Mas, oficialmente o dia 15 de novembro de 1908 d-se como o nascimento de uma religio, dita brasileira. Zlio de Moraes, que j havia sido consultado por psiquiatras, pois dizia se comunicar com espritos desencarnados, foi levado a Federao Esprita de Niteri que praticava o kardecismo e, ao participar da sesso, incorporou o Caboclo das Sete Encruzilhadas, mas no encontrou espao dentro do ritual de Alan Kardec para se manifestar, j que estes, forjados nos conceitos europeus do sculo XIX buscavam atravs da cincia dar notoriedade e respeitabilidade as suas prticas de ver, falar, sentir e se comunicar com espritos, e assim, consideravam estas manifestaes como emanaes de espritos atrasados. No momento em que estes espritos, os caboclos, no encontravam espao no kardecismo, Zlio foi impelido a * UFRN-CERES-DHC - Doutor

  • 2

    criar um novo espao para as manifestaes espirituais. Oficialmente nasceu a Umbanda. Sabemos que esta data apenas demarcatria, visto que as manifestaes medinicas j eram relatadas em todos os cantos do pas desde o sculo XVII, ampliando-se estas descries com a entrada no Brasil dos negros vindos da frica para servirem como escravos. Podemos neste relato inicial inferir que a Umbanda uma religio que coaduna vrias manifestaes da religio e da religiosidade, fazendo dela um enorme laboratrio de pesquisa. Podemos perceber que ela possui elementos do kardecismo, do catolicismo (santos e oraes), da pajelana (rituais indgenas) e das prticas dos negros que comporo a nossa gentica cultural (principalmente o culto aos Orixs iorubanos). No farei uma discusso dos Orixs que daro suporte ao nascimento do Candombl no Brasil, mas obviamente que da mesma forma que o Candombl uma adaptao do culto dos Orixs que ocorriam em territrio africano, principalmente no Daom (atual Benin) e na Nigria (territrios de maioria Iorub), no Brasil ele ganha contornos de abrasileiramento e de flexibilidade, juntando num mesmo espao Orixs que na frica jamais poderiam estar juntos e no caso do Candombl de Caboclo a presena de um esprito indgena brasileiro que em nada se refere africanidade. Muitos admitem que neste caso dos caboclos, houve uma umbandizao no ritual candomblecista. Ao analisar as mudanas e introdues nos cultos medinicos e a relao entre magia-religio, o Professor Lsias Nogueira Negro, produziu um trabalho memorvel e indispensvel para a compreenso da Umbanda em So Paulo, mas que pode ser utilizado para compreender esta religio em todo o pas. Ao rever autores que discutiram a Umbanda nos coloca diante de algumas notas que precisamos reproduzir. Iniciando por Roger Bastide, informa que este, interpreta a Umbanda

    Como sendo o resultado, no plano ideolgico, da integrao do negro proletarizado sociedade de classes brasileira do incio do sculo. Em consequncia, seguem-se os inevitveis processos de moralizao e racionalizao de seus mitos e ritos e o surgimento de um corpo tico-doutrinrio compatvel com as vigncias religiosas e morais. Esquecendo-se de que a Umbanda seria antes ideologia do que religio para este autor, o processo de passagem da Macumba Umbanda seria homlogo ao da passagem da magia religio, tal como o concebe Max Weber. Mais prximo ainda da perspectiva weberiana est Renato Ortiz que interpreta a Umbanda como simbolicamente representada na morte branca do feiticeiro negro, em que a sua legitimao social e os correlatos processos de moralizao e racionalizao significam a inelutvel perda de seus contedos negros e mgicos, substitudos por prticas rituais e contedos tico-doutrinrios brancos e cristos. (NEGRO, 1996: 22)

    O processo de hibridao e acomodao da Umbanda gerou novas prticas, inclusive a cristianizao de algumas das antigas tradies africanas. Isto no pode ser entendido como

  • 3

    uma perda, mas sim como uma aglutinao de novos elementos. Ao mesmo tempo em que parece uma descaracterizao de cultos milenares, a prpria dinmica da Umbanda e de suas entidades permitem estas novas formas de apropriao, no deixando que a essncia medinica seja perdida. Tentar fossilizar estas manifestaes ir contra o caminho percorrido pelas religies de matriz africana no Brasil, que por resistncia ou necessidade, foram se ajustando e se mesclando a todas as outras religies e religiosidades que tinham minimamente aproximaes com seus cultos e deidades. importante notar que a Umbanda sempre foi uma religio perifrica, ou seja, seus espaos de ritual ocupam as periferias das cidades, a periferia dos estudos acadmicos e a periferia das polticas pblicas em relao s religies de matriz africana. Em muitos momentos o Estado foi absolutamente repressor das manifestaes umbandistas e de suas prticas. Podemos aqui relembrar dois momentos. O governo Vargas, principalmente no Estado Novo, atuou de forma dbia. Por um lado reprimia o culto por considerar uma manifestao rstica demais para os desejos desenvolvimentistas de Vargas chegando a criar em 1937 a Delegacia de Txicos e Mistificaes, que tinha a finalidade de reprimir os cultos considerados de feiticeiros. Por outro lado, os assessores de Vargas em vrios relatrios indicavam ao presidente que fosse mais condescendente com os umbandistas, principalmente com os pais-de-santo, pois eles possuam um enorme squito de seguidores que ouviam muito os seus conselhos e seguiam seus passos. O populismo varguista viu no pai-de-santo um excelente interlocutor para com as categorias sociais ainda no atingidas por suas polticas. Isto pode ser percebido em dois acontecimentos que marcam a histria da Umbanda. Em pleno Estado Novo, 1939, cria-se a Federao Esprita de Umbanda (que buscava negociar com o estado o fim da represso) e em 1941 realizou-se o 1 Congresso Brasileiro de Umbanda, que tentava dar visibilidade e divulgao a religio e, numa tentativa infrutfera, dar uma homogeneidade aos rituais no pas. Uma das caractersticas da Umbanda sua diversidade, visto que cada terreiro estabelece seu ritual conforme as determinaes do chefe da casa, ou seja, a entidade espiritual que recebida pelo pai ou me de santo. O segundo momento de represso a ditadura militar em que membros da Umbanda e de outras religies medinicas foram presos e assassinados pelo regime militar. A represso a estas prticas foi dura e muitos terreiros foram fechados. A liderana dos e das babalas (pais e mes-de-santo) incomodava os golpistas de 1964. Mas, tambm no podemos deixar de assinalar que muitos membros de terreiros eram ligados aos militares, inclusive mdiuns pertenciam s foras armadas (na maioria dos casos constatados como filhos de Ogum, deus

  • 4

    guerreiro Iorub e que no Brasil, em muitas regies, foi associado a So Jorge). Neste caso, os terreiros que possuam esta ligao direta ou indireta foram beneficiados por estas relaes e at foram ampliados. Como vimos no Governo Vargas, posies dbias. Parece-nos indiscutvel que a Umbanda uma religio inclusiva, na medida em que no descarta nenhuma das manifestaes espirituais negadas por outras religies medinicas. Alm do panteo apreendido dos negros africanos, incorporou personagens autctones como os ndios (caboclos), da rua (exus, pombagiras, ciganos, entre outros) e negros que sofreram nas senzalas do pas (pretos-velhos). Corroborando com esta anlise, Concone ao estudar alguns dos tipos presentes nos rituais de Umbanda (caboclos, pretos-velhos, baianos, boiadeiros, ciganos, Z Pelintras, cangaceiros, pombagiras, exus) conclui que

    exatamente aqui que est o grande interesse da religio umbandista: o fato de mergulhar to profundamente na realidade brasileira, de buscar a sua fonte de inspirao, transformando em smbolo figuras do cotidiano popular e buscando a seu modo o seu significado mais profundo. (CONCONE, 2004: 282)

    Tanto o preto-velho quanto o caboclo, cumprem um papel bastante relevante nos rituais umbandistas. As suas gestualidades e posturas fsicas nos trabalhos medinicos, so muito diferentes. O primeiro, normalmente curvado para frente, andar lento e pesado, fala baixo, usa alguns objetos (rosrios ou teros, cruzes ou crucifixos, cachimbo ou cigarro de palha, bengala, entre outros). J o segundo, apresenta-se ereto, anda e dana com agilidade, emite brados e fala mais alto, e pode ser visto utilizando alguns objetos como arco e flecha e cocares.

    Os dois tem em comum a especialidade de ajudar os consulentes nos casos de sade. O preto-velho ainda procurado para dar conselhos e ajudar na resoluo de conflitos, nunca acusando, mas sim buscando o entendimento entre as partes. O prprio nome j os identifica. Os pretos e pretas-velhas (os cacurucaios - ancio em quimbundo) so os homens ou mulheres africanos ou afro-brasileiros que ao viverem nas senzalas as mazelas da empresa escravocrata eram os conselheiros e curandeiros de seu grupo social. Neste caso a assimilao destes negros ao novo pas foi determinante para sua sobrevivncia, mesmo que em condies precrias. Negros que na frica no possuam contato, inclusive religioso, nos tumbeiros e no cativeiro forado no Brasil, foram obrigados a se encontrar e se compreender.

  • 5

    Vale lembrar que a ancestralidade um elemento fundamental para compreender os povos africanos e quando utilizamos os conceitos de sociedades gerontocrticas constatamos que os ancios ocupam um lugar de destaque na hierarquia social africana, obviamente no impedindo a disputa de espaos pelos mais jovens. O ancio aquele mais prximo das divindades, o que se comunica com o transcendente atravs dos orculos e comunica a todos os seus pressgios. Outro fator determinante na cultura africana o tempo mtico, onde o passado e o presente andam juntos. No campo religioso catlico, os negros tem um papel determinante na compreenso da hibridao forjada no Brasil colonial. Aceitaes e proibies tinham carter dbio, principalmente para os negros que se viam obrigados a abandonar suas crenas e rituais e ao mesmo tempo se integrar ao mundo catlico que se impunha na colnia portuguesa. notrio o comportamento da Igreja Catlica no tocante a escravido indgena. A oposio e o trabalho dos jesutas de alguma forma desmobilizou a escravido indgena e na mesma direo fortaleceu a escravizao de negros africano. No havia por parte do clero qualquer interesse em impedir a escravido negra, visto os prprios espaos de propriedade da igreja estarem cheios de escravos vindos da frica. Os jesutas mantinham os aldeamentos indgenas com a produo de suas fazendas onde o trabalho escravo era utilizado em larga escala.

    Nos discursos proferidos pelos clrigos em apoio escravido negra, era constante a alegao que no Brasil os negros seriam libertados do paganismo. Ficar na frica cultuando seus deuses ou os deuses dos povos que os escravizavam em territrio africano, os levaria indubitavelmente ao inferno e que o batismo os salvaria da perdio eterna. Da mesma forma, o sofrimento que passavam os negros escravos nas lavouras,

    engenhos e senzalas, era a forma de purgar todos os seus pecados anteriores ao batismo cristo. A morte de um negro batizado faria com que sua alma seguisse os mesmos passos que as almas dos brancos batizados percorreriam, inclusive com direito a purgatrio e o paraso, sendo este ltimo, muito mais medido pela obedincia ao senhor (dono) em vida do que pela sua f resignada. O conformismo era um dos procedimentos mais destacados para se alcanar a salvao da alma deste negro que por imposio foi retirado de sua cultura e de suas prticas religiosas.

    Esta relao entre batismo (religioso) e o conformismo (poltico-social) j se observava na vinda destes negros ao Brasil. No embarque no continente africano, principalmente na frica Atlntica, os negros eram batizados antes de adentrarem ao tumbeiro, ainda em terra, eram marcados a ferro com a marca da coroa portuguesa. Este

  • 6

    marcar a ferro em brasa, como gado, continha duas informaes. A primeira era que o negro efetivamente j havia sido batizado. A segunda se referia que o pagamento do imposto a coroa por negro embarcado j havia sido realizado. Ou seja, o negro que chegava ao Brasil sem a marca, necessitaria de batismo na chegada e ao mesmo tempo poderia indicar um negro contrabandeado, que no tinha passado pelos trmites legais estabelecidos pela coroa portuguesa ao comrcio escravocrata.

    No Brasil os negros de diversas etnias foram colocados no mesmo local de trabalho e moradia. Diferentes culturas, deuses diversos tiveram que conviver num mesmo espao, que se tornava por imposio, hbrido. Os terreiros que estavam ligados s senzalas passaram a ser os espaos de encontros e sociabilidades, onde os escravos em alguns poucos momentos durante sua vida de trabalho podiam se relacionar e falar de seu passado na frica. Sem dvida estes espaos se tornaram locais de resistncia, visto que o negro percebeu que no poderiam manter aqui no Brasil as mesmas disputas e conflitos que mantinham na frica durante sculos. Aqui o inimigo era comum. Nestes terreiros fugas foram arquitetadas, quilombos foram desejados, motins contra capites-do-mato se concretizaram, a capoeira se estruturou com luta e no apenas como dana, os ritos se fundiram, os Orixs se encontraram e um catolicismo popular brasileiro se tornou vivo entre os negros. Mesmo diante desta unio dos negros nestes espaos, a coroa portuguesa e por extenso os senhores de escravos, buscavam incentivar as desunies e

    Embora obrigassem os escravos aparecerem catlicos, fechavam os olhos, quando os escravos de cada tribo faziam, escondidos, seus cultos e batuques africanos. Permitindo que cada grupo de escravos conservasse uma parte de seus costumes e de suas religies africanas, faziam com que eles no esquecessem as divises e inimizades entre as tribos. A Igreja protestava contra essa permisso, no porque quisesse ver os cativos unidos contra os senhores, mas porque queria que a religio catlica fosse a nica. Quando a Igreja fazia isso, sem saber, podia estar ajudando os negros a esquecer suas desavenas e a reconhecerem que eram todos irmos no mesmo cativeiro. (REZENDE, 1987: 124)

    O que podemos contatar que esta necessidade de unio de diferentes negros e de suas culturas, colaboraram para termos no Brasil uma das mais complexas formas de religio e de religiosidade de todo o mundo. Nossa diversidade de cultos e ritos, at mesmo dentro do catolicismo, nos coloca diante de prticas que no podem apenas sugerir, mas que necessitam de estudos que aprofundem estas hibridaes e suas consequncias no campo religioso nacional.

  • 7

    Da mesma forma que os negros mantiveram suas prticas atravs do culto dos Orixs iorubanos, tambm viram nas aproximaes, inicialmente imagticas, dos santos catlicos uma forma de diminuir a perseguio que sofriam e que de alguma forma dava a eles uma liberdade de ir e vir, como por exemplo, as missas dominicais e descanso nos dias santificados e nas festas catlicas. Por conta das flechas So Sebastio se aproximou de Oxssi (deus da caa), Santa Brbara por possuir uma espada em sua imagem (espada de seu martrio) foi associada a Ians (deusa guerreira e dona dos raios e ventanias), So Cosme e Damio por serem gmeos e uma aparncia infantilizada foram associados a Ebejis (deuses crianas e irmos) e assim muitos outros, como apontam os estudos de Pierre Fatumbi Verger, no clssico trabalho Orixs: deuses Iorubs na frica e no Novo Mundo. Outros santos catlicos foram apreendidos pelos escravos como prximos a eles e que ajudavam a superar as vicissitudes do cativeiro, entre eles podemos citar So Benedito e Nossa Senhora do Rosrio. Desta falaremos mais a frente. J So Benedito est diretamente ligado a sua cor negra. Neste ponto novamente insisto que as relaes estabelecidas entre os negros no Brasil e as divindades se deu primeiramente pela observao de caractersticas nas imagens que lhes eram familiares. No conheciam a histria de So Benedito, mas sua cor j era suficiente para que fosse respeitado e cultuado entre os escravos. Nestes espaos de disputas e de resistncias, o respeito a ancestralidade era determinante para a vida dos cativos. Mesmo que os guerreiros estivessem sempre elaborando planos de fuga, o conselho dos mais velhos era sempre o ponto chave para se tomar a deciso final. Tornar-se um negro velho vivendo nas condies inspitas, tanto na frica como no Brasil escravista, no mnimo deveria ser festejada. Estes ancios tinham um poder significativo, aconselhando o no conflito, como incitando a fuga quando considerava a melhor alternativa. Ao morrerem continuavam sendo cultuados da mesma forma que na frica se faziam com os mortos. O mundo dos vivos e o dos mortos faziam parte do mesmo universo.

    nesse contexto que o preto-velho vai ocupar um lugar de destaque na hierarquia umbandista. Segundo a crena os pretos velhos evoluram atravs da dor, do sofrimento e do trabalho forado. Ao mesmo tempo em que sofria, resignava-se, e assim, dizem os seguidores da Umbanda, alcanou em sabedoria e generosidade o que outras entidades no conseguiram. Ao mesmo tempo em que com sua dolorosa vivncia na senzala o fez evoluir, tambm aparecem nas letras dos pontos cantados (cantos destinados a salvar, homenagear e identificar as entidades de Umbanda), certo conformismo em relao a escravido, como se os problemas

  • 8

    fossem resolvidos com a ajuda do sagrado e no pelas lutas de libertao empreendidas pelos prprios negros. Podemos citar este ponto:

    Preto velho na senzala Padeceu, padeceu Preto velho no chorava S dizia: a meu Deus A meu Deus. (EDITORA ECO, 1974: 103)

    Para este artigo, analisei 301 pontos cantados e 396 pontos riscados (smbolos que identificam a entidade, como se fosse sua assinatura) de pretos e pretas velhas. a partir destes textos escritos e visuais que pretendo entender como os pretos velhos se mostram aos adeptos da Umbanda e ao pblico em geral. Os pretos e pretas velhas so conhecidos principalmente por pai (Pai Tom de Luanda) /me (Me Maria), vov (Vov Z Baiano) /vov (Vov Maria Rosrio) e at tio (Tio Antnio) /tia (Tia Alexandrina). Isto d a eles um lugar privilegiado na famlia de santo, como so chamados os membros dos rituais umbandistas, ou seja, aqueles que nos prprios nomes demonstram experincia e por isso devem ser respeitados. Neste sentido o nome tambm vai designar que estes pretos e pretas velhas possuem uma sabedoria construda pelo tempo e pela experincia. Outro fator que determina as designaes nominalistas so as condies e atuaes que estes negros e negras possuam na senzala. O pai (reprodutor), me (reprodutora), vov e vov (os mais experientes, os sbios, que detm o conhecimento das magias e da manipulao de ervas) e tios e tias (como muitos filhos eram separados das mes e pais, muitas crianas tornavam-se rfos de pais vivos, e cabia a outros negros e negras criarem estas crianas e eram conhecidos como tios e tias). O mundo da senzala invadiu a Umbanda e suas sensibilidades.

    Normalmente so nomes de santos catlicos, acrescido de designaes de lugar, fazenda, regio, ou dos elementos que o identificam, como Pai Joaquim de Angola, Pai Joo de Aruanda, Vov Maria Conga, Pai Andr do Cruzeiro, Vov Maria Bahiana, Tia Maria Calunga, Vov Z da Pemba, entre muitos outros.

    Estas entidades baixam (incorporam nos mdiuns) nos terreiros sob a vibrao principalmente de dois Orixs (Oxal e Omul), mas podem se manifestar na vibrao de todos os Orixs, com exceo de Exu e Ebeji (crianas).

    Voltando aos pontos cantados, percebe-se em muitos deles realmente o apagamento das lutas dos negros pela liberdade, retomando as prprias vivncias africanas que mesmo em atos humanos de descobrimento e reelaborao de prticas de evoluo tcnica, nomeavam os

  • 9

    deuses e/ou os Orixs como os responsveis diretos por estas melhorias estruturais. Num dos pontos analisados isto fica claro em relao a libertao dos escravos:

    Estava na beira da praia L no cu deu um claro A ordem era de Aruanda Livrando preto da escravido Foi de Oxal a ordem suprema, Me Yemanj quem mandou Meu Pai Xang escreveu l na pedreira Pai Ogum cumpriu a ordem, Pai Oxssi confirmou. Hoje eu tenho alegria Preto Velho hoje sinh (EDITORA ECO, 1974: 104)

    A ancestralidade aqui novamente aparece de forma contundente e o culto aos Orixs como detentor de uma africanidade no Brasil.

    Uma das discusses mais atuais nas rodas de intelectuais de Umbanda e de militantes umbandistas a mudana da data em que se comemora o Dia de Preto Velho. Atualmente dia 13 de maio, mas estes militantes prope a mudana para 20 de novembro, dia da morte de Zumbi dos Palmares que ocorreu em 1695. Independente das datas os pontos cantados no mudaro, ou seja, Zumbi no aparece como o libertador, e sim os Orixs.

    Outro trao que os pretos-velhos carregam da ancestralidade africana so os cdigos dos pressgios e a sabedoria em prever o futuro de maneira que os coloca como detentores de poderes que os brancos escravocratas jamais teriam:

    Seu doutorzinho, Quer que chame de doutor. desaforo, Cativeiro j acabou. Branco sabe ler, Branco sabe escrever, Mas no sabe o dia em que morre, O preto quem vai dizer. (EDITORA ECO, 1974: 104)

    Estes pretos velhos so recebidos nos terreiros de Umbanda como aqueles que detm maiores condies de dar conselhos e de resolver problemas de sade e emocionais. Sua experincia em vida o credencia. Isto fica claro em dois pontos. O primeiro o Ponto de Pai Andr do Cruzeiro:

    No Cruzeiro do Campo Santo, Um velhinho trabalhava Chorando com contrio Se do cativeiro lembrava. Pai Andr foi sofredor, Na mo do branco senhor, Hoje em dia na Umbanda o nosso salvador. (EDITORA ECO, 1974: 105)

  • 10

    E o Ponto de Pai Carlos do Rosrio: As almas benditas e santas Deram a sua bno Pai Carlos do Rosrio Trazei-nos a salvao. (EDITORA ECO, 1974: 107)

    Os pretos e pretas-velhas no se propem a vingana. Aos seus algozes do passado recomendado a caridade. Sem dvida, a entidade de Umbanda mais conhecida de sul a norte do pas, e tambm a mais procurada nos terreiros umbandistas. Sua postura curvada, passos lentos, utilizao do cachimbo e de bebidas doces (cachaa com mel ou melado, vinho suave), uso de alguns utenslios que os auxiliam em suas prticas, compe a visualidade e as sensibilidades inerentes a estas entidades. Sentados em seus banquinhos ou troncos de rvores, recebem a todos com humildade e no se recusam a dar conselhos e a receitar remdios caseiros. Sua festa sempre uma das mais concorridas, onde aps o ritual so distribudos aos presentes feijoada com farofa e outras iguarias, e assim busca-se manter a tradio onde o alimento se torna o Ax do Orix, neste caso o Ax de Preto Velho.

    Analisando os pontos riscados (396), pudemos observar que alguns signos so muito recorrentes e que remetem as prprias caractersticas dos pretos-velhos.

    O primeiro elemento bastante presente a cruz. Dos 396 pontos analisados a cruz aparece em 310. Em muitos pontos elas aparecem vrias vezes, e de formas diferentes. As vezes bem elaboradas e em outros apenas um trao vertical e outro horizontal, sem mais nada. A cruz simboliza o sofrimento que passaram, sendo que na frica lutando contra um territrio inspito e no Brasil no padecimento na senzala. Ao mesmo tempo a cruz um smbolo clssico do cristianismo, reforando que os pretos-velhos so absolutamente hbridos em suas prticas e crenas. Ancestralidade africana e cristandade ocidental fazem parte de sua existncia e de sua textura cultural.

    Imagem 1: Ponto Riscado de Vov Domcio de Aruanda Imagem 2: Ponto Riscado de Pai Feliciano

    A visibilizao da elevao espiritual dos pretos e pretas velhas fica evidente nos pontos riscados. A estrela, marca de elevao e de designao especial, est presente em 215 pontos dos 396 analisados. No h outro Orix em que estrela aparea mais repetidamente do

  • 11

    que nos pontos de pretos-velhos. Estrela da sabedoria, do que sabe o seu lugar e ocupa de forma singela, ela sempre est l, mesmo deixando de aparecer durante o dia. Os pretos-velhos sempre esto presentes, mesmo que no sejam vistos, assim que a estrela passa a compor a assinatura destas entidades.

    Imagem 3: Ponto Riscado de Pai Jos Imagem 4: Ponto Riscado de Pai Feliciano

    A sada da frica e a passagem pelo Atlntico tambm so destacadas em seus pontos. As ondulaes que representam este mar, e em alguns casos at mesmo as grandes ondas, foram percebidos em 53 pontos riscados. A permanncia destes sinais mantm em constante rememorao de onde vieram e por onde passaram. O mar que leva e que purga, tambm o mesmo que conduz ao cativeiro. O mar da morte e do renascimento.

    Ainda em relao ao mar, os negros da frica Atlntica tinham respeito e temor em relao a ele. Da mesma forma que trazia comida, tambm era o grande cemitrio (Kalunga nome dado nos rituais umbandistas para o cemitrio. Kalunga Grande na Umbanda significa mar), era o local onde muitos ancestrais estavam enterrados. Esta identificao do mar com o cemitrio se ampliou quando das notcias de que os negros que morriam durante a travessia do Oceano Atlntico eram atirados ao mar. E no eram poucos que morriam antes de chegar ao Novo Mundo.

    Imagem 5: Ponto Riscado de Pai Jose de Angola Imagem 6: Ponto Riscado de Tia Sarita

  • 12

    Imagem 7: Ponto Riscado de Vov Mariano

    O ltimo smbolo que quero destacar o rosrio ou as contas. Eles aparecem em 51 pontos. O rosrio cristo se confunde com as contas do pel-If ou Rosrio de If, que um instrumento divinatrio dos tradicionais sacerdotes de If (If o porta-voz de Orumil e de outros Orixs). Vale lembrar que o culto dos negros a Nossa Senhora do Rosrio, se deve tambm ao paralelismo estabelecido entre o rosrio desta Nossa Senhora e o Rosrio de If, obviamente j conhecido por muitos negros. Por isso, sempre insisto que o culto dos negros a Nossa Senhora do Rosrio ao mesmo tempo adaptao e resistncia.

    Imagem 8: Ponto Riscado de Vov Manuel Imagem 9: Ponto Riscado de Pai Frederico

    Imagem 10: Ponto Riscado de Pai Otvio

    A Umbanda e seus pretos velhos nos possibilitam entender a diversidade da cultura brasileira e como as hibridaes e, para muitos mestiagens, compe as sensibilidades que esto presentes nas prticas dos umbandistas, mas muito mais nos auxiliam a pensar os discursos que se forjam nos terreiros e na historicidade destas prticas que so sociais e que so apropriadas como campo de estudo da cultura.

  • 13

    So nos terreiros de fundo de quintal que me debruo e no nos grandes espetculos que as religies de matrizes africanas em muitos lugares se transformaram. Buscar nos pontos cantados e riscados, nos gestos, nos objetos, nos cheiros, nas imagens, nas texturas do espao e dos corpos, nas composies dos congs, nas danas e posturas e nas relaes de cumplicidade das famlias de santos que busco penetrar no universo da cultura e dos lugares opacos e teimosos (CERTEAU, 1996: 309). Atravs de suas sensibilidades e dos documentos no tradicionais, como os pontos riscados e cantados, e com a contribuio da Histria Oral podemos penetrar neste universo de religiosidade e expectativas, onde o passado e o presente se tornam a mesma coisa e so vivenciados no mesmo espao e no mesmo tempo.

    E termino com a saudao aos pretos velhos proferida na maioria dos terreiros de Umbanda no Brasil e que demostra a multiplicidade do culto e suas referncias: Salve Jesus Cristo e Nossa Senhora... Salve os Orixs... Sarav o Preto Velho... Adorei as almas.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS CERTEAU, Michel de. A inveno do cotidiano: artes de fazer. Petrpolis: Vozes, 1996. CONCONE, MARIA HELENA Villas Bas. Caboclos e Pretos-velhos na Umbanda. In: PRANDI, Reginaldo (org.). Encantaria Brasileira: o livro dos mestres, caboclos e encantados. Rio de Janeiro: Pallas, 2004, p. 281-303. EDITORA ECO. 3000 pontos riscados e cantados na Umbanda e no Candombl. Rio de Janeiro: Eco, 1974. NEGRO, Lsias Nogueira. Entre a cruz e a encruzilhada. So Paulo: Edusp, 1996. REZENDE, Maria Valria. No se pode servir a dois senhores: histria da Igreja no Brasil perodo colonial. So Paulo: Paulinas, 1987. VERGER, Pierre Fatumbi. Orixs: deuses iorubs na frica e no Novo Mundo. So Paulo: Corrupio, 1981.