ADALGISA NERY OS DESDOBRAMENTOS DO NADA … · na obra de Nietzsche e organizadas por Deleuze ......
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Edição 21 – 1º Semestre de 2016
Artigo recebido até 20/06/2016
Artigo aprovado até 15/06/2016
ADALGISA NERY – OS DESDOBRAMENTOS DO NADA
Ronaldo Vinagre Franjotti (CPTL/UFMS)
RESUMO: Esposa de um aclamado pintor modernista e figura consagrada até em poema
de Drummond, Adalgisa Nery permanece como uma desconhecida do grande público.
Essa invisibilidade aumenta no que toca a sua contística, composta de apenas dois
volumes, visto que a autora é reconhecida mais por seus poemas e pelo romance A
imaginária. Por isso o objetivo principal dessa comunicação é apresentar os contos da
escritora, especificamente, aqueles que constam do volume 22 menos 1. Dona de uma
miríade de textos singulares e de uma profundidade filosófica e crítica notável, Adalgisa
continua ignota nas livrarias e mesmo nos centros acadêmicos, não há reedições de seus
volumes e os volumes publicados se esgotaram há tempos. Dentre as marcas mais visíveis
de sua escrita, figuram a abordagem niilista da realidade e o protagonismo feminino.
Publicado em uma época terrível de nossa história, os anos de ferro da ditadura, a
coletânea escolhida oscila entre a denúncia direta e indireta das mazelas que esvaziavam
o sentido da vida nesse país tropical. Para basear as reflexões sobre a escrita niilista da
autora será utilizada a teoria do absurdo, de Camus e as definições de niilista encontradas
na obra de Nietzsche e organizadas por Deleuze. É também intento da comunicação lançar
uma reflexão sobre a representação e a representatividade feminina na contística brasileira
dos anos 70.
PALAVRAS-CHAVE: Adalgisa Nery; Albert Camus; Friedrich Nietzsche;
Representação Feminina; Representatividade Feminina.
Introdução
Reconhecida quase sempre apenas como poetisa e pelo romance A imaginária,
Adalgisa Nery é uma das muitas escritoras que, apesar de possuir uma obra variada e de
muita qualidade técnica e relevância temática, permanece como desconhecida completa
do público. Mesmo em ambientes acadêmicos e na crítica literária profissional, ela é uma
estranha que merece apenas uma linha: “Adalgisa Nery (1905-1980), jornalista de pulso
e poeta temperamental (Poemas, 1937; A mulher ausente, 1940; Erosão, 1973).”
(STEGAGNOPICHIO, 2004, p.567). Segundo Acízelo de Souza (2011, p.34), o papel da
crítica literária acadêmica é propor análises das obras literárias, bem como aferir a
qualidade delas. É por concordar com essa visão da crítica literária que se busca, nessa
comunicação, apresentar essa autora tão pouco lida, apresentar a qualidade de seus
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escritos e propor uma leitura para eles. A tarefa não é fácil por vários problemas, além da
dificuldade do texto de Adalgisa, e o principal é o acesso as
suas obras.
Por serem pouco lidas e pertencerem a uma autora quase desconhecida, tais obras
não possuem novas edições ou relançamentos, nem mesmo os livros mais conhecidos
como os volumes de poemas e o romance supracitado. Mesmo recorrendo a sebos do país
todo, é difícil encontrar alguma de suas obras à venda e é comum ver preços exorbitantes
nos raros volumes disponíveis (alguns na casa de centenas de reais). Apesar de toda esta
dificuldade, o primeiro impulso desta pesquisa foi o de encontrar uma obra em prosa, em
vez dos volumes de poemas que são mais comuns, visto que o pesquisador analisa a prosa
contemporânea. Assim foi adquirido o volume 22 menos 1, o segundo de apenas dois
livros de contos da autora, o primeiro foi OG, lançado em 1943, o outro saiu apenas em
1972, quase trinta anos depois. Como proposta de análise, buscou-se uma ferramenta que
auxiliasse na racionalização dos textos escolhidos e, por sua profundidade reflexiva
acerca de questões fundamentais, chegou-se à filosofia. As narrativas do volume
escolhido mostram, desde o conto de abertura, uma intensa carga de niilismo, logo,
percebeu-se a importância de ligar análise de tais textos aos filósofos que discutem e
iluminam o termo. Foi assim que se chegou à obra de Nietzsche e de Camus, este ajudará
a pensar a presença do absurdo e aquele como se configuram os niilismos nas narrativas
de Adalgisa.
Desenvolvimento
Logo na primeira impressão, no conto que abre o volume, “Duas mulheres e
Ágata”, a escrita de Adalgisa chama a atenção pela frieza das mulheres postas em cena e
por seu caráter reflexivo. Duas colegas de uma república se preparam para o baile de
carnaval. Uma delas se apronta, já fantasiada e toda animada, enquanto a outra se mostra
reticente e questiona a colega se acaso ela não pensa em Ágata, outra colega que dividia
o quarto mas que se suicidara no mês anterior. O conto é constituído em sua quase
totalidade por esse diálogo tenso e estranho para um dia de festa. Finalmente, a colega
introspectiva é convencia a ir se divertir no baile de carnaval, ela se arruma (usa uma
fantasia masculinizada) e sai, ainda antes da colega. Esta, ao se ver sozinha no quarto,
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começa a refletir sobre o absurdo da existência que a outra mencionara e a recordar Ágata.
Ela entra em frenesi, ouve vozes, acha um revólver e se suicida.
O niilismo presente no conto é calcado no conceito de que a vida é absurda, vazia
e sem sentido. Coincidentemente, há um filósofo e escritor que se ocupou da relação entre
o absurdo da vida humana frente a morte da metafísica e sua relação com o suicídio:
Albert Camus. Na obra O mito de Sísifo, Camus (1942, p. 10) afirma que só há um
problema filosófico realmente sério, o do suicídio. Decidir se a vida vale ou não a pena
ser vivida é o grande anseio e finalidade da filosofia. É também esse o grande projeto
filosófico de Camus.
Segundo Camus (1942, p. 12), pensar é ser minado, o homem que se questiona
é confrontado com o absurdo da vida e sente inevitável tendência ao suicídio, pois não há
Deus, alma ou transcendência, todos somos fadados à morte e ao desaparecimento. É
justamente esse o percurso apresentado no conto de Adalgisa. Enquanto se prepara para
o baile, Susana está entretida pela vida e pelo prazer que se anuncia. No entanto, quando
Lídia começa a questioná-la e, principalmente mais tarde, quando ela fica a sós com sua
mente, o horror do absurdo chega de modo pungente e vai, aos poucos, minando sua força
de vontade.
Pode-se fazer também uma ligação com a filosofia de Nietzsche que nos ajuda a
pensar a postura de Susana. Segundo Deleuze (2001, p. 170), que categorizou quatro
modalidades de niilismo a partir da obra de Nietzsche, ela poderia ser enquadrada como
uma niilista passiva. O niilismo passivo é aquele em que a vontade de potência (ou o
tesão, para usar uma expressão do filósofo Clóvis de Barros Filho) se esgotou. Não há
mais nada do sujeito, ele se rende ao vazio da vida e de sua existência, por isso, assim
como Camus sugere, ele é uma presa fácil para o instinto suicida. Essa crise se origina da
percepção, segundo Nietzsche, de que “O homem é quem pôs valores nas coisas com a
intenção de se conservar; foi ele quem deu um sentido às coisas, um sentido
humano”(2007a, p. 48). Ao confrontar essa ausência de essência nos valores
fundamentais da sociedade, o pensador é convidado a questionar a própria finalidade
dessa sociedade e da vida humana, ele está entregue ao absurdo e, caso não consiga reagir,
convidado a flertar com a morte.
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Susana, após o confronto com o absurdo que se dá não só pela fala de Lídia mas
por sua ausência e pela solidão, se esvazia de sentido e de vontade, esse vazio é
personificado pelo fantasma de Ágata:
Quando ficou inteiramente só, começou a sentir uma espécie de
presença e domínio da morta. Ouviu nitidamente sua voz repetindo os
argumentos de Lídia. O desenho do corpo de Ágata plasmava-se nas
paredes, na cama, no chão e, quando Susana olhou para o espaço através
da janela aberta, em vez de reparar no céu estrelado, percebeu Ágata,
deitada, com a cabeça esfacelada e as pernas nuas. (NERY, 1972, p. 16)
Nesse momento, o conto, que até então apresentava uma narrativa seca e
verossimilhante, flerta com o fantástico, daí em diante é a própria Ágata que atormentará
Susana, sussurrando e sugerindo o absurdo, minando a vontade de Susana e, por fim,
levando a ao suicídio. A surrealidade do suicídio se encontra diminui frente ao absurdo
da existência, Susana cede e, ao encontrar um revólver entre suas coisas, escolhe acabar
com a dor.
O próximo conto, que, coincidentemente, é o segundo do volume, intitula-se “A
gargalhada” e trata do que hoje chamaríamos de feminicídio. É importante marcar a
vanguarda da escritora ao descrever tal caso em uma época em que a violência contra a
mulher era tão comum na cultura nacional que sequer era nomeada. A estória apresenta
um grupo de amigos, todos homens, que se encontram conversando em um bar. Esse
cenário e situação é muito comum nos contos e textos da época, Luiz Vilela, por exemplo,
escreveu vários contos que partem dessa moldura, um romance, Entre amigos (1982), e
uma novela, Choro no travesseiro (1979). Gaspar, André e Maurício estão conversando
animadamente, tanto que Gaspar se incomoda:
— Não grita, por favor.
— Não estou gritando. Estou rindo.
— Falar alto ou gargalhar é a mesma coisa. É manifestação de
animalidade que a minha natureza não suporta. Vocês conhecem a
minha fascinação pelas mulheres. Nada para mim tem um poder de
atração maior do que uma mulher. Porém a mulher mais linda, a mais
perfeita, a mais fascinante, falando alto ou gargalhando, faz crescer em
mim um ímpeto monstruoso e sinto que sou capaz de abrir com as mãos
o seu pescoço. Fico desvairado; é uma repulsa incontida. Só os animais
se expressam com alarido, só as criaturas desclassificadas, moral e
espiritualmente, falam aos gritos e riem com a garganta. (NERY, 1972,
p. 19)
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O que se esconde por detrás do discurso de Gaspar, que não tolera barulho, é
claramente um sentimento misógino. Note que ele não fala dos homens, como se um
macho não fosse capaz de gargalhar, mesmo tendo iniciado sua elocução por conta do
comportamento exagerado de André. Em uma sociedade em que o tratamento dado às
mulheres é tão desigual e preconceituoso fica fácil perceber o absurdo da existência
humana. A conversa procede a partir dessa fala de Gaspar como se o que dissera fosse
algo comum, trivial. Maurício, aparentemente o intelectual do grupo, começa então sua
fala.
Enquanto conversam, os três agem como flaneurs. Walter Benjamin, a partir da
poesia de Baudelaire, formula esse conceito, para ele, o flaneur seria aquele sujeito que
se sente completamente à vontade na rua e nos lugares públicos pois considera a vida e o
comportamento humano sua fonte maior de curiosidade e de prazer (BENJAMIN, 1989,
p.35). Maurício, especialmente, é quem se enquadra melhor nessa descrição, usando a
fala de Gaspar como gancho, ele demonstra seu método de análise das pessoas: observar
as mãos e a nuca. Ele examina um casal e traça um perfil psicológico de ambos pelos
aspectos de suas mãos e nucas. A mulher é subserviente e o homem, que aparentemente
abusa dela, é um explorador. Note que a personagem ser descrita como inferior ao
companheiro e infeliz não pode ser mera coincidência, é, antes disso, marca de uma
sociedade opressora e patriarcal.
A aparente elegância e o refinamento dos argumentos de Maurício e seus colegas
reflete, de modo irônico, o preconceito arraigado contra a mulher na sociedade de então,
tanto que o intelectual “justifica” a postura de Gaspar:
— Por exemplo, o descontrole de Gaspar ao ouvir alguém gritar ou dar
gargalhadas, parece-me uma reação intimamente ligada à sua
sensibilidade. As suas impressões, as suas visões ou os seus ímpetos
inesperados devem variar dependendo da sua receptividade brutalizada
por risos estridentes e barulhos fortes. A reação da sensibilidade de cada
pessoa pode encaminharse para o estoicismo ou para o crime. (NERY,
1972, p. 22).
O discurso pomposo de Maurício serve apenas para tentar produzir uma fala que
legitime a barbárie de Gaspar. Anunciado desde o início do conto, e confirmando o que
Poe dizia sobre se ter em mente, desde a primeira frase, o desfecho da narrativa, o
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feminicídio acontece na sequência. Após essa última fala, os três silenciam e surge uma
mulher jovem:
Não era bela nem feia. Era uma mulher de bar. Gaspar segurou-lhe o
braço e indagou se estava sozinha. A mulher respondeu
afirmativamente.
— Para onde vai?
— Para casa.
— Espere, vou com você.
Saíram os dois.
Num hotel barato, os hóspedes ouviram a porta de um quarto fecharse.
Depois o murmúrio de vozes do casal. De repente, uma gargalhada
inundou o corredor do hotel. Outra gargalhada. Depois o silêncio
absoluto. (NERY, 1972, p. 24)
A despersonificação da mulher ocorre desde a primeira menção a ela, uma jovem
que nem é bela nem feia, é uma mulher de bar. Classificar as mulheres e valorizá-las pela
etiqueta imposta é uma marca do patriarcado, moças que se conhece na igreja “são para
casar”, moças que se encontra no bar, “para o prazer”. A própria personagem aceita esse
papel que lhe é imposto ao topar sair com Gaspar mesmo após essa rude abordagem.
Decisão fatal que culminará com sua morte. Todo o conto parece ser construído para que
se justifique a atitude de Gaspar e se culpabilize a vítima, Adalgisa apela para o absurdo
justamente como forma de compor um argumento por oposição, visto que, mesmo com
os diálogos intrincados e reflexivos, a brutalidade do assassinato se sobressai.
Quanto ao niilismo presente no conto, os amigos no bar devem ser vistos como
reativos, para eles a vida é só existência, sem essência ou subjetividade. A própria visão
que Maurício compõe sobre os estranhos no bar e sobre Gaspar é um indício disso. Eles
não creem em Deus mas elegeram a si mesmos como substitutos dessa divindade,
colocando-se acima do bem e do mal, juízes da vida que trazem consigo e da vida alheia.
Essa visão maniqueísta da realidade que coloca o homem como centro e finalidade de sua
vida não passa de uma nova corrente e, como disse Nietzsche, “livre, não quer dizer
propriamente outra coisa senão o fato de não sentir novas correntes” (2007b, p. 22),
mesmo presos, os três se julgam livres, talvez até, numa expressão popular hoje,
libertários.
O terceiro conto escolhido para análise é, talvez, o mais reflexivo do volume e
ele põe em discussão vários aspectos interessantes, seu título é “O sentimento da morte”
e ele é narrado em primeira pessoa por uma mulher, Camila. Essa narradora autodiegética
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principia falando de uma notícia de jornal que comunicava a morte de um conhecido dela
cujo nome era Tiago. O absurdo da morte e, por consequência, da vida que se esgota
repentinamente é o mote inicial do texto. O conto coloca em perspectiva a visão que se
tem da mulher na sociedade brasileira:
Conversávamos, sem a menor restrição de assuntos, e por mais
escabrosos que eles se apresentassem – era interessante – nunca se
tornavam imorais. Durante as nossas conversas, jamais recordávamos
que éramos de sexos diferentes. Havia uma tal unidade que o detalhe
sexual não nos trazia nenhuma preocupação. (NERY, 1972, p. 42)
Camila deixa claro que, para a sociedade purista e patriarcal de então, era
completamente inusual uma mulher e um homem se reunirem para conversar, a não ser
que essa conversa tivesse como fundo algum tipo de interesse sexual ou romântico. Uma
das coisas que se pode depreender dessa cena é que ver uma mulher como pensadora e
interlocutora capaz de articular os mais variados temas era também uma coisa fora do
padrão da época. Outra coisa que chama a atenção é que, nessa relação de Camila e Tiago,
é ela quem se destaca intelectualmente e o personagem tem a narradora como uma espécie
de símbolo, exemplo moral e intelectual a ser seguido. Ao ler o obituário, Camila recorda
a última conversa que teve com o falecido em um restaurante barato. O início do diálogo
é revelador da postura intelectual de ambos:
— Então, o que há de novo? O que tem feito dos seus dias? Da sua
vida?
—perguntei.
— Nada — respondeu. — O que mais importante estou fazendo agora
é a minha desumanização. Todos cultiva a própria humanidade e
aproveitam as migalhas de bem que conservam no seu interior, para se
levantarem diante dos seus semelhantes e diante de si próprios. Eu estou
justamente fazendo o contrário. Quero ver se, ficando cada vez mais
desumano, absolutamente desumano, consigo a paz e a comodidade e
me levanto diante de mim mesmo. Esta história de não fazer o mal é
muito incômoda e, afinal, sempre por mais esforço que se faça, acha-se
fazendo o mal pela metade, o que é ridículo. Ora, ser humano, procurar
amparar os outros é fazer um mal medíocre e ficar num incômodo
constante. Afinal, por que é que só havemos de fazer o bem? Por que é
que eu não devo fazer o mal se o aceitam e muitas vezes dá até prazer
a quem o recebe?
— Bem, pelo que vejo, você está em ebulição, e é justamente por este
motivo que vim conversar com você. Não porque pretenda fazer o bem,
aconselhando-lhe paciência ou adaptação, mas porque estou
necessitada de ouvir coisas fora do normal. Você é a única pessoa com
quem consigo passar horas conversando, sem me fatigar. Foi por esta
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razão que eu telefonei para que viesse almoçar comigo. Vê que eu
também estou sendo desumana e concordo que é bem interessante. Pelo
menos dá a impressão de força. Mas você não acha que a desumanidade
é mais incômoda que a humanidade? Porque, finalmente, o poder
também é incômodo! (NERY, 1972, p. 43-44)
A fala de Tiago começa com o vocábulo nada. Esse ímpeto niilista pode ser
percebido na fala de ambos, no entanto, podemos dizer também que eles professam
vertentes distintas de niilismo. Ele é um niilista reativo, tanto Tiago quanto Camila partem
do pressuposto que as verdades postas na sociedade são arbitrárias e que o se
convencionou chamar de humanidade, nada mais é que um ponto de vista que esconde
uma relação de poder. É incrível como um texto publicado no início dos anos 70 do século
XX possa dizer tanto da sociedade quase cinquenta anos depois, é fácil perceber hoje a
ânsia do politicamente correto, só quem defende o bem e os valores, sejam quais forem,
é humano. Acontece que no século XX, após a ascensão da ciência e as várias revoluções
tecnológicas pelas quais a humanidade passou, não há uma verdade inquestionável.
Diante desse quadro, Tiago reagem reativamente, ou seja, ele se coloca como o novo
totem a ser adorado, tudo deve convergir para ele, a desumanização que propõe nada mais
é que um processo de megalomania. Sua atitude egoísta não é melhor ou mais lógica do
que a antiga moral que ainda é vigente na sociedade.
Camila, no entanto, está além dessa atitude, ela é uma niilista ativa. Ela
ressignificou todas as posturas, incluindo a sua, ela percebeu que, se repetir o padrão de
“bondade” proposto pela sociedade é uma falácia, transformar o oposto em um novo
padrão, automático, é a mesma coisa. Em suma, o niilista que escolhe, ideologicamente,
um caminho qualquer, torna-se escravo desse caminho como qualquer outro ser em
qualquer outro molde. De pronto, ela assume um papel de superioridade lembrando a
Tiago que o convocara e ressalta que o fez para seu bel prazer — essa declaração deve
ser vista, aliás, como uma clara provocação à moral vigente, segundo a qual a mulher é
sempre dona de um papel secundário e submisso. É só a partir dessa fala inicial que então
ela lança a dúvida mortal sobre Tiago: o poder não é mais incômodo? Ou seja, como diria
Camus, como você suporta o fardo de ser livre? Camila consegue fugir a esse fardo, ela
segue, como Camus descreve, o rito de Sísifo:
Nesse instante sutil em que o homem se volta sobre sua vida, Sísifo,
vindo de novo para seu rochedo, contempla essa sequência de atos sem
nexo que se torna seu destino, criado por ele, unificado sob o olhar de
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sua memória e em breve selado por sua morte. Assim, convencido da
origem toda humana de tudo o que é humano, cego que quer ver e que
sabe que a noite não tem fim, ele está sempre caminhando. O rochedo
continua a rolar. (CAMUS, 1942, p.72)
Ao aceitar seu julgo, sem ódio e sem medo, Camila encontra o caminho que a
liberta, a liberdade total não reside em negar o absurdo mas em abraçá-lo e procurar, nos
poucos momentos em que se é realmente livre (como no diálogo com Tiago), viver com
intensidade e alegria essa vida sem sentido. A superioridade intelectual e niilista da
narradora acaba por oprimir Tiago que, consternado, encerra o diálogo afirmando que ela
conseguira aquilo que ele se propunha a fazer: desumanizar-se a ponto de não perceber
ou se importar com a destruição que impunha aos outros. Camila, por sua vez, encerra a
narrativa se perguntando de modo impessoal sobre as últimas ações do falecido e qual
seria sua aparência na urna funerária, ou seja, ela, mesmo nesse instante final de reflexão,
se recusa a ser sentimentalista e dar à vida ou à morte mais sentido do que elas têm,
nenhum.
O último conto analisado neste trabalho se intitula “O homem sem mundos” e,
como se verá, ele representa um choque entre o niilismo reativo e o ativo em face do
absurdo da vida e do cotidiano. Narrada em terceira pessoa, a narrativa é centrada na
figura de Macário, um pacato funcionário público que vive num pacato subúrbio e leva
uma vida pacata:
Macário chegara aos cinquenta anos de idade e até aquele momento
vivera uma existência pacata, tímida e retraída. Sóbrio, incapaz de um
gesto ou uma palavra de rebeldia contra a vida ou contra alguém, tinha
feito do cotidiano uma forma de gastar os dias sem emoções dentro dos
mais rigorosos e monótonos preconceitos. Casara-se com Ana depois
dos trinta e cinco anos, mais pela necessidade de ter que lhe pregasse
os botões na roupa, quem lhe preparasse os alimentos com cuidado, do
que propriamente pela necessidade de ter uma companheira, uma amiga
ou uma ternura para seu coração. Para Macário, a vida era como um
emprego público, no qual o funcionário não deve chegar atrasado na
hora do ponto, não deve levantar os olhos para o chefe da repartição e
não permitir que uma enfermidade manche, com a ausência de um dia,
a folha de serviço. (NERY, 1972, p. 67-68)
Ao contrário do famoso personagem homônimo da peça de Álvares de Azevedo,
esse Macário é um sujeito adaptado ao modo de vida capitalista. Ele vive para o trabalho
e não almeja nada mais, não sonha, como sugere o título, não possui outros mundos ou
realidades. O niilista negativo, segundo Nietzsche, é aquele que nega essa vida e essa
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realidade em prol de um outro mundo, o paraíso cristão, por exemplo. Macário não é
assim, ele, no entanto, também não é capaz de erigir para si valores que norteiem e deem
sentido à vida que leva, todo o sentido de sua existência decorre do mundo do trabalho,
ele é como um relógio. Macário é um niilista reativo, elegeu o escritório como seu novo
Deus e vive para cultuá-lo, dessa forma, ele consegue negar ou ignorar o absurdo.
Uma primeira reviravolta, no entanto, quebra essa estrutura de paz e
tranquilidade do protagonista, Ana adoece e morre. Em vez de sentir saudades ou
lastimar-se pela perda da
esposa, Macário fica contrariado por não ter mais quem lhe costurasse as roupas, pregasse
botões ou cozinhasse para ele, precisou mudar e se adaptar. Fez de modo a mudar o
mínimo possível, claro, a única mudança visível era que agora tomaria as refeições
noturnas em um restaurante no final da rua, é nesse espaço que se dará o grande evento
do conto:
Alguns dias depois de frequentá-lo às mesmas horas, sentar-se na
mesma mesa de canto e pedir a mesma qualidade de alimento, alguém
derrubou uma pilha de pratos. O barulho fez com que Macário
levantasse os olhos na direção do ruído e, ao fazê-lo, deu de frente com
o rosto jovem, risonho e quase belo de Lina, a empregada que atendia
aos pagamentos na caixa registradora.
Macário sentiu uma inesperada perturbação diante daquele rosto
alegre. Habituado a não viver nenhuma vida, nem a própria, tornou a
baixar os olhos para o prato de sopa. Porém constatou que as suas
pupilas haviam trazido impressas a candura e juventude da moça. Lina
boiava na fumegante sopa. (NERY, 1972, p. 71)
Como se pode adivinhar no trecho acima, Macário se apaixona de pronto por
Lina. Porém o cerne da narrativa não é essa atração mas o contraponto entre as
personalidades de Lina e Macário. Apaixonado e sem conseguir ignorar esse novo
sentimento, ele vence a si mesmo, muda sua rotina e aparência, deixa de lado o rigor com
o escritório e, dias depois, oferece-se para acompanhar Lina até em casa, após o
expediente. Ocorre então a última
grande virada do texto, Lina colhe no ar algo e finge comer, inquirida sobre o que mastiga,
ela diz se tratar de uma estrela madura que estava no galho de uma árvore. Macário fica
atônito, Lina é louca. Na sequência, ela vai dizer mais uma série de coisas inverossímeis
e desconexas, afirma que precisa chegar cedo em casa pois receberá a visita de um rio,
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que Macário lhe lembra o pai falecido, José (passa a tratá-lo assim, aliás), e que deseja
apenas dormir um sono contínuo para descansar do imenso trabalho no restaurante.
Após Lina tomar o bonde, Macário fica a refletir e conclui que não pode julgá-
la louca ou normal, afinal, ele nada conheceu e sempre se esforçara por sepultar todo
sentimento e desejo que pudesse desviá-lo daquele caminho a que se propusera. Lina
representa o niilismo ativo, ela não vive a mesma realidade dos outros, ela cria sua própria
realidade, como diria Schopenhauer, ela representa seu próprio mundo a partir de sua
vontade (2001, p. 288), Lina cumpre perfeitamente o processo que Nietzsche sugere
frente ao niilismo: a transvaloração.
Macário, após essa tormenta que é a paixão por Lina e a percepção de sua
inacessibilidade por conta de sua aparente loucura, fica tresloucado e melancólico, é
apresentando esse quadro que o narrador encerra o conto:
Ao entrar em casa, Macário teve a sensação exata de que voltava à
tumba. Mas pela primeira vez revoltado consigo mesmo. Revoltado
por não haver deixado a sua natureza frequentar todos os ambientes
da vida, todos os sentimentos da sua alma. Revoltado por haver
deliberadamente sepultado inutilmente todas as grandezas humanas
sob o egoísmo estéril. Tão estéril que nem ao menos lhe havia deixado
um pensamento bom diante da ideia da morte. (NERY, 1972, p. 77)
O niilismo reativo, em confronto com o absurdo da existência e com o brilho
ofuscante do niilismo ativo, perde seu referencial, se esvazia e se deprime, perde sua
vontade e se torna passivo, flerta com o suicídio. Enquanto a mulher vivia e ele era
absorvido/absolvido pela rotina que era seu ídolo mas a perda da esposa modifica sua
rotina e ele é convidado a pensar e pensar, como afirma Camus, é “começar a ser minado”
(1942, p.8). Pensando, Macário encontra o desejo, a paixão, cede a ela e, para seu espanto,
a vê ser repelida da pior forma possível, percebe que ele e Lina pertence a mundos
distintos que não se interligam pois nascem de vontades opostas e que agora é tarde.
Deprimido e acabrunhado, Macário assume uma postura de passividade e inação.
Conclusão
Revendo o percurso analisado, pode-se dizer com segurança que outros contos
do volume de Adalgisa Nery poderiam configurar o corpus deste artigo, o que foi decisivo
para a escolha de apenas quatro de um volume de vinte e um foi a extensão a que se
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propunha este texto. Como se viu até aqui, “num universo subitamente privado de luzes
ou ilusões, o homem se sente um estrangeiro” (CAMUS, 1942, p. 9) e do confronto com
esse nada ele deve assumir uma postura. Valendo-se da análise que Deleuze fez da obra
de Nietzsche, dividiu-se as posturas das personagens nos contos analisados em quatro
categorias de niilismo: ativo, negativo, passivo e reativo.
Percebe-se que não há niilismo negativo em nenhum personagem descrito na
obra, isso mostra que, na época em que a obra foi produzida, a religião já perdera muito
de sua influência social no Brasil, tanto que permitiu a produção de vinte e uma narrativas
que não a mencionam. No entanto, é um erro achar que os personagens descritos são mais
livres ou que eles resolveram o problema do absurdo. A maioria deles oscila entre o
niilismo reativo, erigindo para si novos ídolos, seja o hedonismo ou o mundo do trabalho,
como se viu, respectivamente, nos personagens Susana e Macário (“Duas mulheres e
Ágata” e “O homem sem mundos”, respectivamente. Outra coisa muito interessante a ser
observada é que os personagens supracitados, mesmo pertencendo a contos distintos e
sendo de variadas formas muito diferentes entre si, fazem o mesmo percurso niilista: do
reativo para o passivo. Susana, ao ser confrontada com o absurdo da própria vida frente
ao suicídio de Ágata, perde a vontade de potência, como diria Nietzsche, e se mata.
Macário, após se abrir a um processo novo e ensejar uma transvaloração, recua e percebe
a impossibilidade de assumir uma nova perspectiva em sua vida, ou seja, perde também
toda a vontade de potência e é deixado pensando no suicídio.
Talvez a presença mórbida desse niilismo passivo que aponta para a dissolução
da própria vida seja uma marca da época em que o Brasil se encontrava, o início dos anos
de chumbo da ditadura de 64, talvez seja uma marca biográfica de Adalgisa Nery que teve
uma vida conturbada, mesmo ao lado do famoso pintor Ismael Nery, foi cassada pela
ditadura e terminou praticamente na miséria. Enfim, o que mais vale na leitura do volume
22 menos 1 é o prazer e a reflexão que ele suscita, seja por suas qualidades narrativas,
seja por sua densidade psicológica e filosófica, esse é um livro memorável que deveria
figurar entre os mais populares numa época, como a nossa ainda o é, tão carente de
sensibilidade e tão brutalista.
Bibliografia
ACÍZELO DE SOUZA, Roberto. Crítica Literária: seu percurso e seu papel na atualidade.
Edição 21 – 1º Semestre de 2016
Artigo recebido até 20/06/2016
Artigo aprovado até 15/06/2016
Floema – Ano VII, n. 8, p. 29-38, jan./jun. 2011. Disponível em:
<http://periodicos.uesb.br/index.php/floema/article/viewFile/443/468>. Acesso em: 22
set
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