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Sociologias, Porto Alegre, ano 16, n o 35, jan/abr 2014, p. 274-305 SOCIOLOGIAS 274 ARTIGO Das identidades aos processos identitários: repensando conexões entre cultura e poder Marcelo alario ennes * Frank Marcon ** * Universidade Federal de Sergipe, Itabaiana, Sergipe, Brasil. ** Universidade Federal de Sergipe, Aracaju, Sergipe, Brasil. Resumo Neste artigo, sugerimos uma reflexão crítica sobre os usos superficiais da noção de identidade nas Ciências Sociais e propomos tratá-la como um fenômeno social dinâmico e em processo, implicado fundamentalmente por relações de poder. Re- alizamos uma contextualização do tema nas últimas décadas e apontamos para um conjunto de ideias de autores clássicos dos quais nos aproximamos para pensar o tema. Também apontamos para o que entendemos ser um dos caminhos possíveis para a pesquisa sobre os processos identitários. A partir daí, destacamos e definimos quatro elementos, os atores, as disputas, as normas e os contextos, que consideramos constituintes deste fenômeno social, sugerindo como proceder com sua análise. Palavras-chave: Processos Identitários. Poder. Cultura. Identidade. Ciências Sociais.

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  • Sociologias, Porto Alegre, ano 16, no 35, jan/abr 2014, p. 274-305

    SOCIOLOGIAS274

    ARTIGO

    Das identidades aos processos identitrios: repensando conexes entre cultura e poder

    Marcelo alario ennes*Frank Marcon**

    * Universidade Federal de Sergipe, Itabaiana, Sergipe, Brasil. ** Universidade Federal de Sergipe, Aracaju, Sergipe, Brasil.

    Resumo

    Neste artigo, sugerimos uma reflexo crtica sobre os usos superficiais da noo de identidade nas Cincias Sociais e propomos trat-la como um fenmeno social dinmico e em processo, implicado fundamentalmente por relaes de poder. Re-alizamos uma contextualizao do tema nas ltimas dcadas e apontamos para um conjunto de ideias de autores clssicos dos quais nos aproximamos para pensar o tema. Tambm apontamos para o que entendemos ser um dos caminhos possveis para a pesquisa sobre os processos identitrios. A partir da, destacamos e definimos quatro elementos, os atores, as disputas, as normas e os contextos, que consideramos constituintes deste fenmeno social, sugerindo como proceder com sua anlise.

    Palavras-chave: Processos Identitrios. Poder. Cultura. Identidade. Cincias Sociais.

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    Identities and identity processes: rethinking connections between culture and power

    Abstract

    In this article, we suggest to reflect critically on the trivial usage of the con-cept of identity in the social sciences. We propose to take it as an ongoing social phenomenon primarily affected by power relations. The article presents a contex-tualization of the theme in recent decades and draws on ideas of classic authors. It also points out to one of the possible paths for research on identity processes. Then, four elements are emphasized: the actors, the disputes, the standards and the contexts which we believe are the constituents of this social phenomenon, suggesting how to proceed with their analysis.

    Keywords: Identity Processes. Power. Culture. Identity. Social Sciences.

    1 Introduo

    objetivo deste artigo consiste na reflexo sobre os pro-

    cessos identitrios como fenmeno social e suas possi-

    bilidades analticas. Parte da constatao de que se por

    um lado o debate sobre identidades apresenta sinais de

    esgotamento, por outro, muitas das questes suscitadas

    esto longe de serem resolvidas. O esgotamento se explica, ao menos em

    parte, pelo seu carter escorregadio e de difcil definio e, tambm, pela

    inflao de significados e usos atribudos ao termo. Porm, se estas difi-

    culdades so correntes e j foram intensamente trabalhadas, no justifica

    abandonarmos o conjunto de inquietaes tericas e polticas que consti-

    tuem este debate, por sua atualidade, pela dinmica, pela universalidade

    e pela ampla presena social e acadmica do fenmeno.

    Este artigo materializa o esforo no de construirmos um conceito

    ou uma teoria sobre identidades, mas de apontar caminhos para avan-

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    armos em uma anlise sempre reflexiva sobre os processos identitrios,

    como implicados por relaes de poder. Representa uma tentativa de

    superar um debate no qual tal dimenso nem sempre foi ou conside-

    rada de forma adequada, mesmo quando d visibilidade s culturas no

    dominantes em seus embates com as polticas oficiais e com a indstria

    cultural. Desse modo, frequente observamos abordagens sobre a iden-

    tidade que, ao invs de ressaltarem a anlise sobre sua dimenso poltica,

    aquela que possibilita a sua evidncia como fenmeno social e que est

    na prpria origem do debate sobre cultura, acabam por naturaliz-la.

    Nossa proposta de crtica aos usos essencializadores e naturaliza-

    dores do termo identidade e estabelecimento de parmetros analticos

    para compreendermos o que passamos a denominar neste texto de di-

    nmicas de hierarquizao e transgresso social. Dinmicas, estas, muitas

    vezes ofuscadas pelos usos do termo identidade associado s ideias de

    diversidade e pluralidade cultural, principalmente em seus sentidos es-

    tticos. Da a importncia da presente reflexo encontrar subsdios que

    contribuam para abordar as novas expresses das relaes de dominao

    e de poder que caracterizam a sociedade contempornea. Algumas ve-

    zes, tais expresses esto ocultas sob as ideias enfticas e aparentes de

    respeito s diferenas e, de tal modo, no capturam as dinmicas e as

    implicaes do pertencimento e alteridade como processos relacionais.

    De certo modo, temos a pretenso de retomar um ponto de bifurcao

    deste debate e seguir um caminho diferente do trilhado por abordagens

    que tem resultado, querendo ou no, na re-essencializao, naturalizao

    e despolitizao das noes de diferena e de identidade.

    Por seu carter interdisciplinar, o itinerrio sinuoso, passando por

    vrias correntes tericas na rea das Cincias Sociais, com incurses por

    outras reas das humanidades. Aqui, entendemos este aspecto como evi-

    dncia de um fenmeno de ampla abrangncia e consideramos as dife-

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    rentes vertentes, principalmente naqueles contextos em que se rompe-

    ram as barreiras exploratrias entre as disciplinas, no que diz respeito

    anlise social. Interessam-nos os enfoques que contriburam com posi-

    cionamentos crticos e que assumem que os fenmenos relacionados s

    identidades implicam na reflexo sobre o seu carter processual e dinmi-

    co, enquanto universal e particular, evidenciando suas dinmicas prprias

    e suas caractersticas mais gerais.

    No decorrer do artigo, chegamos definio de quatro parmetros

    a partir dos quais entendemos que os processos identitrios podem ser

    pensados e analisados. Eles envolvem a) os atores sociais de algum modo

    articulados a grupos, b) os motivos de disputas de pertencimento ou no

    a tais grupos, c) os elementos morais e normativos que regulam o meio

    pelos quais estes atores entram em interao pelo que disputam e d) os

    contextos histricos e sociais nos quais so produzidos e, ao mesmo, con-

    tribuem para sua produo.

    Desse modo, acreditamos que nossa proposta de reflexo sobre os

    processos identitrios esteja implicada pela abordagem, descrio e com-

    preenso das relaes de poder que envolvam marcadores sociais tornados

    relevantes como caracterizadores de distino. Procuramos assim, 1) evitar

    a re-essencializao das identidades e compreend-las fundamentalmente

    como relacionais; 2) analisar as ambiguidades e ambivalncias dos proces-

    sos sociais que criam e recriam formas de subordinao e hierarquizao,

    ao mesmo tempo em que expressam formas de contestao e transgresso

    social; 3) compreender os processos de emergncia e (re)insero social de

    atores em contextos sociais, polticos e culturais que so caracterizados pelo

    descentramento, pela fragmentao e pela efemeridade.

    Para tanto, dividimos o artigo em trs partes. Na primeira, Inven-

    es, usos e crises das identidades, procuramos repensar a trajetria do

    debate a partir dos Estudos Culturais, mais especificamente a partir dos

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    dilemas entre Edward Thompson e Louis Althusser a respeito do lugar e

    importncia do sujeito na histria. Isto porque vemos a discusso sobre

    identidades como um dos desdobramentos do debate mais amplo sobre

    a noo de sujeito. Ainda nesta parte, procuramos evidenciar a bifurca-

    o ocorrida nos estudos sobre identidades, no sentido do descolamen-

    to entre as dimenses culturais e polticas, de modo que as importantes

    contribuies dadas, por exemplo, por Edward P. Thompson, Raymond

    Williams e Stuart Hall acabaram se perdendo em abordagens culturalistas

    que tm despolitizado, naturalizado e ornamentalizado as diferenas.

    Na segunda parte, Das identidades aos processos identitrios, procu-

    ramos evidenciar como autores de diferentes linhas tericas e metodol-

    gicas contribuem com abordagens que consideramos apropriadas para a

    anlise das dimenses polticas das identidades. Nesta parte, retomamos

    o debate sobre as identidades, procurando indicar um caminho distinto

    daquele descrito na parte anterior, sem perder de vista a crtica de Stuart

    Hall e outros autores como Antony Giddens, Norbert Elias, Pierre Bour-

    dieu e Zygmunt Bauman sobre a sociedade contempornea, pensando

    as relaes de poder e a emergncia das identidades como referncia

    poltica dos sujeitos e dos grupos.

    Na terceira parte, propomos explicitar de modo mais claro o que

    consideramos os elementos constituintes do fenmeno social que de-

    nominamos de processos identitrios. Nesta ltima parte, pontuamos os

    aspectos que consideramos darem conta da apreenso, do estudo e da

    explicao dos processos relacionais que envolvem e constituem as assi-

    metrias de poder e de que modo as identidades podem ser objetivamente

    investigadas, apesar de sua caracterstica fluida e impondervel.

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    2 Invenes, usos e crises das identidades

    Nas ltimas dcadas, a dimenso produtiva deixou de ser a base

    exclusiva da origem dos conflitos sociais e as esferas simblicas e subjeti-

    vas ganharam maior espao e legitimidade na anlise social. Os embates

    passaram a ocorrer tambm no entorno da poltica de reconhecimento,

    da expresso, da visibilidade e da particularidade das demandas. No lugar

    das chamadas identidades de classes surgem o que passou a ser chamado

    de polticas de identidade, o que significa, de acordo com Hall, uma iden-

    tidade para cada movimento (Hall, 2002, p. 45). Assim, os conflitos e em-

    bates passaram oferecer uma nova base poltica para novas formulaes

    tericas em que a cultura e a subjetividade ganharam maior relevncia.

    Nesse contexto, emergem e fragmentam-se velhas e novas identidades

    que trazem consigo de modo inseparvel, velhas e novas alteridades.

    A partir de uma releitura do marxismo, que no se restringia s pers-

    pectivas economicistas e se estendia ao campo da cultura, os fundadores

    dos Center for Contemporary Cultural Studies (CCCS) passaram a estudar

    e a dar visibilidade acadmica e poltica s expresses literrias e artsticas

    da classe operria inglesa no perodo Ps-Guerras1. Surge da um amplo

    movimento por estudos voltados compreenso das relaes sociais, dos

    embates, dos conflitos e da dominao social, a partir das prticas, dos

    costumes e das produes culturais.

    As noes de costume e de produo cultural foram amplamen-

    te discutidas entre os precursores dos CCCS, como Raymond Williams

    (2000) e Edward P. Thompson (1998). Tomamos resumidamente duas

    contribuies consensuais entre eles. Primeiro, pensarmos a cultura sig-

    1 Atribudo ao pensamento de Raymond Williams, sobre o materialismo cultural, a cultura compreendida em suas relaes com o mundo econmico e poltico, mas ao contrrio do economicismo marxista o autor no a entende de modo unidirecional.

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    nifica pensarmos os costumes e a produo simblica na sociedade, bem

    como suas conexes com a moral, a economia e a poltica. Segundo, que

    a cultura enquanto produo e produto das relaes sociais manipulada

    cotidianamente pelas pessoas e est implicada por disputas, ambivaln-

    cias e contradies que nos remetem novamente moral, economia

    e poltica. Exclui-se aqui a ideia de cultura como caracterstica, como

    propriedade de um dado grupo e se aplica o entendimento de cultura ao

    movimento, s relaes e produo material e simblica.

    Em tal perspectiva, a noo de cultura no se descola das relaes

    sociais e o enfoque recai sobre as percepes e as prticas dos grupos,

    considerando-se que elas esto a todo instante em movimento e em dis-

    puta. Nessa linha de raciocnio, outra contribuio importante a de Eric

    Hobsbawm (2008), com aquilo que ele denomina de inveno das tradi-

    es, quando sugere que o processo de elaborao de sentido sobre o que

    vlido e perene do ponto de vista cultural para um dado grupo uma

    elaborao construda a partir de relaes de foras desiguais, negocia-

    das e imprevisveis. De certo modo, podemos aproximar tal considerao

    ao modo como Thompson (1998, p. 17) define cultura e sua conotao

    como uma arena de elementos conflitivos, um cenrio de ambivalncias,

    contradies e fraturas com aparncia de unidade ou de sistema social.

    As contribuies tericas e analticas de E. P. Thompson o colocaram

    em rota de coliso com uma importante e poderosa vertente do pensa-

    mento marxista das dcadas de 1950 e 1960, que tinha como uma das

    figuras mais expoentes o filsofo francs Louis Althusser. Esta polmica

    tornou-se paradigmtica entre aqueles que no romperiam com o marxis-

    mo, mas que desejavam olhar e compreender processos sociais de modo

    a no reduzi-los dimenso estrutural-econmica da sociedade e a um

    projeto revolucionrio imanente prpria histria. Nessa direo, a obra

    The making of the English Working Class (A formao da classe operria

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    inglesa) representou uma importante alternativa a respeito de temas cen-

    trais na tradio marxista como classe e lutas de classes, agora, abordadas

    a partir de uma perspectiva de histria concebida como experincia e no

    como um devir definido a partir das estruturas sociais.

    Nessa abordagem, as classes sociais, por exemplo, no eram fen-

    menos sociais dados, pr-definidos, mas compreendidas a partir da an-

    lise dos processos sociais em que os trabalhadores constituem-se ou no

    como classe social. Assim, verifica-se uma concepo centrada no que se

    chamou de prticas de resistncia das classes populares atravs da consci-

    ncia de uma, da condio da outra. A prpria ideia de classe social, ain-

    da central na anlise de Thompson, ganhou um novo entendimento se-

    gundo o qual ela no considerada como um fenmeno pr-existente e

    o proletariado no est imbudo de uma misso que lhe imanente, no

    podendo ser compreendida apenas com base na dimenso econmica.

    interessante notar que tanto Althusser (1985) quanto Thompson

    (1981) esto na base desta reflexo, mesmo que de modos diferentes (ou

    at opostos), ao que Stuart Hall (2002) denominou de descentramento

    do sujeito. Hoje, esta uma questo central no debate sobre identida-

    des, como veremos adiante. A diferena entre ambos est exatamente

    na polmica acerca das ideias que se sustentaram sobre o sujeito. Para

    Althusser, existe um sujeito coletivo, no caso, necessariamente a classe

    social, cuja autonomia e liberdade esto em agir conforme a ideologia,

    como dimenso estrutural do capitalismo (Althusser, 1985).

    V-se que a ideia de sujeito presente em Althusser significativa-

    mente diferente, quando no oposta, que orientar parte significativa

    dos estudos voltados para a discusso sobre identidades, embora parta de

    seus dilemas. Na crtica de Thompson, o sujeito em Althusser dissolvido,

    torna-se imaginrio por meio da interpelao pela ideologia:

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    E quanto experincia fomos levados a reexaminar todos esses sistemas densos, complexos e elaborados pelos quais a vida familiar e social estrutura e a conscincia social en-contra realizao e expresso [...]: parentesco, costumes, as regras visveis e invisveis da regulao social, hegemonia e deferncia, formas simblicas de dominao e resistncia, f religiosa e impulsos milenaristas, maneiras, leis, instituies e ideologias tudo o que, em sua totalidade, compreen-de a gentica de todo processo histrico, sistemas que se renem todos, num certo ponto, na experincia humana comum, que exerce ela prpria (como experincias de clas-se peculiares) sua presso sobre o conjunto. (Thompson, 1981, p. 188-189).

    Ao privilegiar a noo de experincia, expresso do fazer e no do

    devir histrico, Thompson volta-se ao terreno da vida cotidiana dos gru-

    pos populares na Inglaterra, no qual encontrou espao para a criao

    de homens e mulheres no apenas em sua vida produtiva, mas em sua

    expressividade cultural. Esta uma importante aproximao para a legi-

    timao da subjetividade como dimenso poltica da vida social, como

    ser trabalhada por Stuart Hall (2002), em que o sujeito est implicado,

    ao mesmo tempo, pela estrutura e pela experincia social.

    Hall (2002) se envolve em tal discusso de um modo mais espec-

    fico, quando aponta para o que considera terem sido as trs formas pre-

    dominantes de se idealizar o sujeito na sociedade moderna. A primeira

    seria o sujeito do iluminismo, cuja principal caracterstica o conjunto das ideias marcadas pela filosofia e pela constituio de reformas do Es-

    tado a partir do sculo XVIII, que fizeram predominar o humanismo, o

    antropocentrismo e o contrato social como referncias, snteses da auto-

    nomia, da vontade, dos direitos e dos deveres das pessoas (Hall, 2002).

    Nesse contexto, o sujeito representado como soberano, acima e alm

    das determinaes sociais. Isto , o sujeito um ente autnomo e inde-

    pendente. A sociedade, por sua vez, compreendida e vivenciada como

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    um aglomerado de indivduos livres e capazes de dar direo e significado

    s suas vidas.

    A segunda forma seria a do sujeito sociolgico, que surgira no con-texto da formao da sociedade de massas e a partir do pensamento so-

    ciolgico que se comeou a elaborar sobre esta. Tal concepo de sujeito

    emergiu no campo poltico pela forte influncia do pensamento marxista

    e com maior expresso no campo terico a partir de abordagens como a

    do interacionismo simblico. Neste caso, por algum tempo, predominou

    certo antagonismo terico entre sujeito e estrutura no pensamento socio-

    lgico, que procuramos exemplificar acima na crtica sobre o pensamento

    de Althusser e Thompson.

    Uma terceira concepo de sujeito, segundo Stuart Hall, seria a do

    sujeito ps-moderno, que ganhou evidncia a partir de transformaes histricas, polticas, ideolgicas e tericas ocorridas nas trs dcadas aps

    fim da Segunda Guerra Mundial. Demandas como as relacionadas ao femi-

    nismo, ao ecologismo e a vrias outras subjetividades, antes colocadas em

    segundo plano, passaram a compor a base de processos de mobilizao

    poltica, ou ainda, de politizao da identificao, no mais assentadas em

    argumentos de atributos fixos e estveis de classificao e de pertencimen-

    to dos sujeitos a determinados grupos pr-existentes, mas admitindo-se

    reordenaes de interesses e de sentidos, bem como experincias muito

    diversas e subjetivas que trouxeram consigo o que Hall (2002) denominou

    de a crise do sujeito e das identidades. Tais demandas, de sujeitos que no

    se sentem representados numa dada classe, nao ou etnia, por exemplo,

    deram origem a novos movimentos sociais e criaram uma nova dinmica de

    enfrentamentos com antigos e novos interlocutores.

    De certo modo, a emergncia de novos sujeitos sociais e o desenvol-

    vimento de uma renovada base conceitual, em parte pelas contribuies

    dos Estudos Culturais, arejou e deu flego s Cincias Sociais para com-

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    preenso da questo das identidades como fundadas numa teorizao

    sobre o sujeito. Isso quer dizer que as concepes predominantes sobre o

    sujeito estiveram e esto diretamente implicando e sendo implicadas pelo

    debate sobre identidades. A prpria recorrncia ao tema um fenmeno

    que o torna contemporneo e predominante a partir do surgimento das

    Cincias Humanas modernas e dos estados nacionais.

    Benedict Anderson (2008) e Anthony Smith (1997), ao estudarem

    a formao das naes, desmontaram a ideia artificiosa e predominante

    de que os povos, cada qual com uma dada origem, histria ou cultura

    especfica, precederam os estados nacionais. Os autores perceberam as

    implicaes que os processos de elaborao e idealizao sobre a nao

    tiveram sobre a constituio de sentimentos de unidade e identidades

    nacionais, ao mesmo tempo em que se erguiam fronteiras geopolticas

    atravs da diplomacia e da fora militar.

    Se a concepo predominante sobre as comunidades nacionais de

    que elas pr-existem e de que os indivduos esto inevitavelmente ligados

    a elas, para Anderson (2008) tais comunidades so imaginadas2, no senti-

    do de construdas simbolicamente pelas pessoas que se consideram parte

    delas. Mesmo reconhecendo este vnculo como socialmente e simbolica-

    mente construdo, precisamos ressaltar que nele se assenta tambm certa

    concepo de sujeito centrado e vinculado nao, a qual fez parte do

    pensamento hegemnico sustentado neste modelo de organizao polti-

    ca, dominante durante o ltimo sculo, apesar de no representar a nica

    forma de se pensar e existir dentro da nao.

    2 Procurando entender as dinmicas do fenmeno nacional no sculo XX, Anderson (2008) destaca que a objetividade da existncia da nao se constituiu atravs dos meios simblicos, pelos quais as lnguas denominadas como nacionais e o aparato burocrtico e tecnolgico - que possibilitou a comunicao impressa de notcias, de literatura, de conhecimento cientfico e de outras formas de discursos em larga escala - tiveram como efeito de agregar certa comu-nidade em torno de uma comunicao em que prevaleciam o idioma e os interesses coletivos, mesmo que diante dos conflituosos interesses das pessoas.

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    Num contexto de mltiplas concepes sobre o sujeito, as discus-

    ses sobre identidade estiveram em grande evidncia durante o sculo

    XX, movidas em grande parte pelos discursos polticos de pertencimento

    (de nao e de classe) e pelos discursos cientficos de classificao (grupos

    sociais, religiosos, lingusticos, sexuais, raciais, tnicos, etc). No entanto,

    as reivindicaes particularistas e ao mesmo tempo as contestaes sobre

    os rtulos por parte das pessoas demonstraram o carter eminentemente

    frgil das dimenses atributivas de identidades aos grupos. Isto contribuiu

    para o surgimento das disputas e da validade sobre a auto-atribuio. De

    certo modo, tal debate resultou na possibilidade de visibilidade poltica e

    terica de novos sujeitos sociais, de novas demandas, de novos direitos e

    desestabilizou uma forma ordenada e tangvel de vermos o mundo, pul-

    verizando interesses e multiplicando singularidades.

    A partir da, surgiram novos problemas. Tanto dentro quanto fora da

    academia, a palavra identidade passou a ser utilizada para nos referirmos

    aos aspectos e fenmenos que at ento eram denominados ou estuda-

    dos por outros termos como cultura, tradio, costume, folclore, entre ou-

    tros correlacionados. Alguns usos indiscriminados da ideia de identidade

    reduziram o fenmeno s caractersticas e aos atributos substantivos de

    grupo social ou grupo cultural. Assim, observamos que em muitas situa-

    es a identidade acabou reduzida a um carter descritivo, fixo estvel e

    determinista do que se define como grupo.

    Atualmente a palavra identidade empregada comumente como

    forma e justificativa de valorizao de culturas locais, de legitimao de

    grupos sociais e de valorizao de diferenas culturais e comportamentais.

    Nesses casos, podemos verificar que h uma confuso recorrente quanto

    ao uso da palavra identidade para nos referirmos a processos sociocul-

    turais que seriam descritos mais acertadamente se fossem empregados

    outros termos ou conceitos como, entre outros, costume, cultura ou grupo

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    social. Tudo passou ento a ser positivamente chamado de identidade, o

    que, na realidade, mais confunde do que informa ou explica, e pouco

    contribui para a anlise e compreenso de novas formas de coero e

    transgresso sociais como fenmenos culturais e polticos.

    Nos dias de hoje, tanto na mdia, quanto na academia, ainda que

    de modos diferentes, o emprego do termo identidade tem ressaltado a di-

    versidade, a pluralidade cultural e o descentramento dos sujeitos sociais.

    Nesse sentido, dissociada de sua dimenso analtica e de suas implicaes

    polticas, a identidade aparece como caracterstica da contemporaneida-

    de podendo levar a pensar que vivemos em um mundo no qual as dife-

    renas culturais no esto implicadas e perpassadas pelas desigualdades

    sociais, econmicas e polticas.

    Salientamos que o uso recorrente e, de certo modo, acrtico da pala-

    vra identidade, muitas vezes tem produzido um senso comum tanto fora

    quanto dentro da academia. Ao contrrio dessa tendncia dominante,

    quando pensamos em processos identitrios, pensamos no carter am-

    bivalente, dinmico, fludo, inacabado e impondervel do fenmeno.

    Cabe-nos, ento, entender a dinmica desse movimento a partir das ex-

    perincias sociais. Da a proposta de se pensar os processos identitrios

    a partir de uma perspectiva situacional, relacional e contrastiva na qual

    as disputas sociais ocupam um lugar central na constituio da ideia de

    diferenas e dos sentimentos de pertena.

    3 Das identidades aos processos identitrios

    Defendemos a ideia de que os processos identitrios precisam ser analisados, sobretudo, como expresso de relaes de poder geradoras de estratificao, hierarquizao e localizao, mas tambm, por vezes, de transgresso social. Tal perspectiva se ope s anlises pautadas exclu-

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    sivamente na identificao de atributos e elementos que caracterizariam determinados grupos e expressariam suas identidades (como gnero, cor de pele, nacionalidade, tradies culturais, entre outros). Tais atributos seriam mais bem empregados na anlise social se os considerssemos como marcadores produzidos ou construdos atravs das relaes sociais, tal como buscaremos destacar.

    Entendemos como a principal caracterstica da contribuio dos di-ferentes autores trazidos para esse debate o fato de, embora guardarem distines tericas e analticas, serem convergentes quando ressaltam a dimenso relacional e poltica das identidades.

    Na linha dos Estudos Culturais, para Woodward:

    Todas as prticas de significao que produzem significados envolvem relaes de poder, incluindo o poder para defi-nir quem includo e quem excludo. A cultura molda a identidade ao dar sentido experincia e ao tornar possvel optar, entre as vrias identidades possveis, por um modo especfico de subjetividade. [...] Somos constrangidos, en-tretanto, no apenas pela gama de possibilidades que a cul-tura oferece, isto , pela variedade de representaes sim-blicas, mas tambm pelas relaes sociais. (Woodward, 2000, p. 18-19).

    Com base na ideia acima, possvel dizer que o pertencimento e a

    alteridade so produzidos por meio de relaes de poder e que nossas es-

    colhas e sensos de identificao resultam da maneira de nos pensarmos e

    de nos imaginarmos no mundo, a partir do contexto e das relaes sociais

    nos quais estamos envolvidos. Se, por um lado, o pertencimento reflete

    certa particularizao da existncia social, por outro, coloca em dvida

    tambm qualquer amplitude generalista da mesma.

    Ao discutir as tenses e contradies do universal e do particular,

    Laclau (2001) parte do pressuposto de que o universalismo sempre um

    particularismo imposto a outros particularismos. Nesse processo, o aspec-

    to diferencial entre os vrios particularismos destacado por ele:

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    SOCIOLOGIAS288

    Agora, se a particularidade se afirma como mera particula-ridade, em uma relao meramente diferencial com outras particularidades, est sancionando o status quo na relao de poder entre grupos. Essa exatamente a noo de de-senvolvimentos separados, tal como foi formulado durante o apartheid: s o aspecto diferencial destacado, enquanto as relaes de poder nas quais o ltimo se baseia so siste-maticamente ignoradas (Laclau, 2001, p. 238).

    O particular e o universal colocam em questo os limites e o respeito

    entre grupos distintos quando o desenvolvimento separado questionado

    por relaes multi/interculturais, como fica latente nos processos de insti-

    tucionalizao poltica de estados nacionais e seus modelos de desenvol-

    vimento, por exemplo. Desse modo, uma vez inviabilizado o desenvolvi-

    mento separado, resta definir quais particularidades iro prevalecer sobre

    outras particularidades, tornando-se, assim, universais. Questo que nos

    remete novamente s relaes de poder.

    Por exemplo, em suas anlises sobre o universo escolar e a inevi-

    tvel questo das diferenas culturais nele contidos, Silva (2000, p. 97)

    prope uma teorizao que leve em considerao a identidade e a dife-

    rena como processos de produo social, como processos de relaes de

    poder. Isso significa que entendermos e discorrermos sobre identidade

    e diferena no suficiente para compreendermos a realidade social na

    qual se produz o contexto de desigualdades nela imbricadas pela identi-

    ficao e pela diferenciao; antes, necessrio nos debruarmos sobre

    os processos sob os quais elas se constituem.

    Assim, entendemos que a anlise dos processos identitrios no

    pode prescindir de sua dimenso poltica, pois esses, ao mesmo tempo,

    produzem diferena como expresso de direito, mas tambm (re)criam

    desigualdades e relaes de subordinao e dominao. Portanto, as an-

    lises sobre identidades nos remetem a um processo de localizao social,

    fruto de coeres e facilitador da ao social, o qual deve ser compreendi-

  • Sociologias, Porto Alegre, ano 16, no 35, jan/abr 2014, p. 274-305

    SOCIOLOGIAS 289

    do com base em contextos histricos e sociais, o que, para ns, depende

    da distribuio de poder entre os indivduos e grupos, bem como das

    regras ou da moral e dos costumes que neles se fazem presentes.

    Os processos de localizao social caracterizam-se, tambm, pela

    produo da diferena e do sentimento de pertencimento, de indivduos

    e de grupos sociais, dando origem, em suas relaes, s identificaes.

    Essas relaes so mediadas por fronteiras materiais ou simblicas que

    funcionam como elementos definidores e demarcadores do eu/ns e do

    ns/outros. Tais fronteiras so socialmente construdas e so ressignifica-

    das em razo das mudanas dos contextos sociais e histricos que, ora

    se configuram de modo centralizado e unificado, ora descentrado e frag-

    mentado, como demonstrou Stuart Hall (2002). Se o sujeito centrado no

    desapareceu com o advento do sujeito descentrado, significa dizer que

    vivemos um movimento dialtico entre concepes de identidade est-

    veis, fixas e slidas, por um lado, e de identidades dinmicas, fludas e

    ambivalentes, por outro.

    Compreendidas a partir dessas premissas, as relaes sociais e de

    poder, produtoras de localizao e transgresso social, no obedecem a

    uma lgica imanente e tampouco se reduzem aos seus fatores externos.

    Isso quer dizer que os processos identitrios no se explicam apenas a

    partir dos atores sociais que mantm relaes do tipo face a face ou ape-

    nas por sobredeterminaes que agem sobre eles a partir do exterior, mas

    esto implicados por ambos os fatores, bem como so experimentados e

    significados de diferentes modos pelos sujeitos.

    Com esta reflexo, pretendemos converter analiticamente o par iden-

    tidade/alteridade na trade pertencimento/alteridade/desigualdade. Esta tr-

    ade formada a partir da incorporao da noo de interculturalidade,

    em especial a desenvolvida por Canclini (2007). De acordo com autor, a

    interculturalidade, como categoria poltica e analtica, avana em relao

  • Sociologias, Porto Alegre, ano 16, no 35, jan/abr 2014, p. 274-305

    SOCIOLOGIAS290

    multiculturalidade. Isso porque a multiculturalidade nos remete com fre-

    quncia celebrao da diferena, a qual, quando ocorre por meio de sua

    naturalizao e despolitizao, produz a re-essencializao das identida-

    des, bem como, a guetizao de grupos tnicos e culturais. Isto , a ideia de

    multiculturalidade tende a manter a diversidade e a diferena cultural de

    modo estanque e no consegue avanar quanto s desigualdades que per-

    meiam as relaes entre diferentes, enquanto a noo de interculturalidade

    se prope dinmica e desprovida de substancializaes.

    Por sua vez, a noo de interculturalidade procura dar visibilidade

    e inteligibilidade s relaes culturais e de poder, marcadas simultane-

    amente pela diferena e pela desigualdade. Permite, tambm, compre-

    endermos como as relaes de dominao so portadoras de formas de

    resistncia e autonomia. A interculturalidade tem como pressuposto o

    reconhecimento de que as culturas so inacabadas, incompletas e intan-

    gveis, como produtos de comunicao mtua e permanente, como no

    sentido que Homi Bhabha (1998) d noo de traduo cultural. Em tal

    perspectiva, a traduo, a interseo e o hibridismo cultural no descar-

    tam a compreenso sobre as relaes de poder, sobre os processos de hie-

    rarquizao e de subordinao social. Isto , a produo do pertencimen-

    to, da alteridade e da desigualdade no so processos excludentes, nem

    acabados, ao contrrio, so interdependentes, construdos mutuamente e

    de modo contnuo, implicados pelas experincias individuais e coletivas.

    Se os processos identitrios expressam relaes de poder, localiza-

    o, classificao e hierarquizao social, eles so, tambm, produtores de

    transgresso, de contestao social, de ambivalncias e de fronteiras per-

    meveis. Isto j foi indicado por muitos como um trao caracterstico da

    sociedade contempornea, mas quem sabe possa tambm ser considerado

    em maior ou menor grau como uma caracterstica universal do comporta-

    mento social e aplicado ao estudo de outros contextos histricos.

  • Sociologias, Porto Alegre, ano 16, no 35, jan/abr 2014, p. 274-305

    SOCIOLOGIAS 291

    Como caracterstica das ltimas dcadas, concordamos com Bauman

    (2005) quando afirma estamos marcados pela individualizao em excesso.

    Nesse caso, esta marca nos faz oscilar entre o sonho e o pesadelo, o confor-

    to e o desespero, a segurana e o perigo, caracterizados pelo sentido ambi-

    valente da nfase no arbtrio. Diante da profuso de identidades emergindo

    a todo instante e da necessidade percebida de nos localizarmos, ao mes-

    mo tempo em que proclamamos a particularidade, nos colocamos diante

    de uma das conseqncias mais avassaladoras da individualizao: so as

    encarnaes mais comuns, mais aguadas, mais profundamente sentidas e

    perturbadoras da ambivalncia (Bauman, 2005, p. 52).

    A identidade emerge da como idealizao de um processo de vin-

    culao a partir de uma ideia de diferena, construda por oposies sim-

    blicas. Nessa direo, parece ser acertada a opo de Cuche (2002) ao

    eleger o processo de identificao como categoria de anlise no lugar do

    uso da palavra identidade. Cuche (2002) recorre aos contextos de inte-

    rao social no apenas para compreender os lugares sociais nos quais

    se localizam os atores em interao, mas tambm, e talvez o mais im-

    portante, para fundamentar o que denomina de estratgias identitrias.

    As estratgias identitrias so desenvolvidas pelos sujeitos como meio de

    encontrar o melhor posicionamento nas interaes sociais.

    Trata-se de uma dinmica semelhante evidenciada por Goffman

    (2008) ao estudar a produo do estigma e de como este absorvido

    ou rechaado pelos grupos e indivduos. Tambm se assemelha ao que

    Bourdieu (1989) chamou de converso do estigma em emblema, para o

    mesmo fim de Goffman. Isto quer dizer que os contextos sociais so im-

    portantes, tanto para produo da autoidentidade e da heteroidentidade,

    quanto para se entender a correlao de foras entre ambas. Isto , a

    prevalncia da autoidentidade sobre a heteroidentidade depende da dis-

    tribuio de poder entre os atores sociais em interao. De certo modo,

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    SOCIOLOGIAS292

    com base nesta perspectiva, falar em identidades negociadas parece ser

    uma redundncia, uma vez que as identidades sempre esto em movi-

    mento em razo das relaes de poder travadas entre indivduos e gru-

    pos. As pessoas entram e saem dos grupos de pertencimento ou aderem

    e afastam-se deles, embora a intensidade e a permanncia mobilizadoras

    no sejam a mesma em todos os casos.

    De algum modo, a anlise social sobre os processos identitrios s

    se torna possvel atravs da observao das dinmicas demarcatrias da

    diferena, ou seja, do olhar sobre um dado contexto das relaes sociais,

    que nos permita caracterizar as diversas maneiras pelas quais os indivdu-

    os e grupos sociais em interao constroem as fronteiras sociais. Fredrik

    Barth (1998, p. 195), no texto Grupos tnicos e suas fronteiras, revigorou

    os estudos sobre identidades desde os anos setenta, ao sugerir que o pon-

    to central da pesquisa sobre a identidade tnica a fronteira tnica. To-

    mando de emprstimo a noo de Barth, podemos dizer que o objeto de

    anlise dos estudos sobre os processos de identificao so as fronteiras,

    ou aquilo que os sujeitos constroem como fronteiras entre eles, fazendo

    prevalecer certo entendimento sobre quem compe o ns e quem so os

    outros, implicados a por consensos, sentimentos e interesses.

    O sentido de fronteira est mais para metfora, mas uma metfora

    consistente para anlise, pois s existe quando h uma ideia de outro

    (indivduo, grupo, regio, nao etc.) do qual se supe a diferena. Por-

    tanto, a fronteira decorre do indicativo simblico de tal diferena. Tais

    fronteiras, cabe ressaltar ainda, no so necessariamente estveis ou es-

    tticas, mas fluidas e mveis. Isso significa que os indivduos as cruzam e

    as ressignificam constantemente. Com isto, refora-se nosso argumento:

    o que para o senso comum identidade, na verdade um conjunto de

    marcadores, os quais possibilitam identificar no outro aquilo que se cons-

    tri como sendo o sentido da diferena (comportamentos, indumentrias,

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    lnguas, parentescos, territrios, traos fenotpicos, entre outros), e so

    acionados como referncias de demarcao das fronteiras quando algo

    est socialmente em jogo.

    4 Processos identitrios como objeto da anlise

    A ampla discusso sobre identidades surgiu associada ao debate so-

    bre maior visibilidade e compreenso sobre a emergncia de novos sujei-

    tos sociais e suas demandas no perodo Ps-Guerras. No entanto, se por

    um lado a emergncia de novos direitos entrou nas agendas das polticas

    nacionais e internacionais, principalmente por sua nfase valorizao

    da diferena e das particularidades; por outro lado, certo princpio da

    diferena e da particularizao tornou-se uma referncia hegemnica de

    pensamento, muitas vezes dissociada da problemtica das desigualdades

    e das anlises sobre hierarquias sociais. Isso acabou, em muitos casos, por

    re-essencializar e naturalizar a diferena em outras escalas.

    Esta situao ambgua e contraditria foi gestada em um contexto

    marcado pela crise do estado nacional, do socialismo real e pelas trans-

    formaes culturais favorecidas pela comunicao global atravs do de-

    senvolvimento da microeletrnica e do advento da internet (Appadurai,

    2004). Tais transformaes favoreceram o surgimento de foras centrfu-

    gas que agem descentrando, liquefazendo, efemerizando e volatizando

    as referncias identitrias (Hall, 2002), outrora aparentemente estabele-

    cidas. Esse contexto de sobreposies que nos coloca diante do carter

    ambguo das identidades simultaneamente por sua objetividade e por

    sua subjetividade aponta para um fenmeno social da ordem do impon-

    dervel, mas nem por isto impossvel de ser analisado.

    Tendo em vista o carter ambivalente e movedio das identidades,

    quando se trata de uma definio conceitual do fenmeno, o desafio

  • Sociologias, Porto Alegre, ano 16, no 35, jan/abr 2014, p. 274-305

    SOCIOLOGIAS294

    como apreender e explicar os processos relacionais envolvidos no que

    tem sido a nfase diferena entre grupos, e por consequncia, esto

    implicados por assimetrias de poder diante do carter no palpvel da

    identidade. Nossa proposta de voltar a ateno s dinmicas ou aos

    processos em si mesmos e, principalmente: a) aos atores sociais e como ocorrem as demarcaes da diferena entre eles; b) ao que est em dis-puta quando se ressalta a identidade e a diferena; c) as normas e os princpios sociais que fundamentam e regulam sua existncia; e d) os

    contextos histricos e sociais, j que entendemos os processos identitrios

    como relacionais e situacionais. Tal enfoque nos aproxima dos sujeitos e

    de como eles se veem e so vistos socialmente, das questes que tornam

    relevantes os sentidos de identificao e diferenciao, bem como das

    instituies e dos argumentos explcitos ou implcitos que sustentam as

    fronteiras sociais fsicas e imaginrias entre os grupos.

    4.1 Os atores

    Os marcadores sociais so elementos simblicos e esto associados

    ao processo de produo da ideia de pertencimento ou de alteridade

    com relao a um outro. Isto, se considerarmos os marcadores como os

    significantes das fronteiras. Tais marcadores so os sinais corporais, as for-

    mas de agir, de falar, de vestir, entre outras, evidenciadas pelos prprios

    sujeitos como substncias particulares dos grupos sociais no momento em

    que so ressaltados os seus significados.

    Normalmente, estes marcadores so confundidos com a identidade.

    Como se, ao portar determinada caracterstica ou ao se agir de determi-

    nada forma, criasse uma correlao direta de associao dos indivduos

    a um pertencimento social e cultural. Acrescentamos que os significados

    sobre os marcadores sociais so produzidos pelos sujeitos e resultam de

    relaes de foras entre eles, implicados por costumes, normas sociais e

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    SOCIOLOGIAS 295

    contextos que expressam significados morais. Tal caracterstica nos leva

    novamente dimenso eminentemente relacional, na qual os limites do

    ns e do eles so produzidos. Por exemplo, para Woodward (2000), ban-

    deiras, uniformes e marcas de cigarro, assim como a religio, os estilos de

    msicas e os traos fenotpicos podem ser marcadores simblicos igual-

    mente significativos.

    A marcao social/simblica a forma elementar de expresso das

    relaes sociais de poder e de disputa. Esta ideia nos remete a um segun-

    do componente a ser considerado na anlise dos processos identitrios,

    o qual envolve o algo que pode estar em disputa. Tal dimenso j foi

    observada por vrios autores de diversas orientaes tericas que estuda-

    ram as identidades. Entre os interacionistas simblicos, como para Strauss

    (1999), as interaes sociais produtoras de identidades so, ao mesmo

    tempo, classificatrias e indeterminveis, j que sua produo depende

    do contexto social, este, por sua vez, em permanente transformao.

    Strauss destaca alguns aspectos desta relao a serem analisados:

    a) o poder de nomear como um ato de colocao ou de classificao do eu e dos outros; b) [...] a perptua in-terdeterminao das identidades na contnua mudana dos contextos sociais [...]; c) o [...] carter simblico e do tipo de desenvolvimento dos contextos sociais; d) [...] as mudanas no comportamento e na identidade dos adultos [...] e; e) [...] o carter simblico da afiliao a grupos [...] (Strauss, 1999, p. 31 e 32).

    De uma outra perspectiva, ainda ressaltando a dimenso poltica do

    que aqui estamos chamando de processos identitrios, Norbert Elias (2005)

    nos oferece a noo de configurao como aporte conceitual para apreen-

    dermos sobre os atores sociais em suas relaes de interdependncia, ao

    criticar concepes de que as estruturas sociais so exteriores aos indivduos

    Para Elias, as configuraes e a interdependncia so constitudas

    por tramas de poder, cujo equilbrio sempre instvel e varia de acordo

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    com o nmero e nvel de fora dos participantes e os diferentes nveis

    de intensidade com que eles se envolvem (Elias, 2000, p. 24). Para ns,

    em tais contextos que o fenmeno das identidades pode emergir, sem

    ignorarmos o carter simblico e relacional da afiliao a grupos, como

    diz Strauss (1999).

    A distribuio de poder entre sujeitos e as tramas de interdepen-

    dncias dela decorrentes destacada por Elias (2005, p. 88) pelo carter

    processual das relaes entre pessoas interdependentes. A dinmica des-

    tas relaes caracterizada pelo fato de que elas se modificam quando

    muda a distribuio de poder (Elias, 2005, p. 88). Em tais contextos, as

    identidades se tornam expressivas e, nesse sentido, nos interessa destacar

    o lugar central da abordagem relacional da sociedade a partir da noo

    de configuraes e de interdependncia, fundamentalmente pelo lugar

    central que a noo de poder deve ocupar nestas anlises.

    4.2 As disputas

    Assim como nas configuraes, nos processos identitrios os atores

    estabelecem relaes de disputa por um bem ou objeto material ou sim-

    blico. No caso das identidades, tambm est em disputa o poder de no-

    mear, autonomear-se e aceitar ou resistir nomeao imposta pelo outro.

    Nessa mesma linha de argumento, Cuche (2002) defende que a relao

    de fora entre os envolvidos na disputa por algo implica, para alm de

    bens materiais, todo e qualquer bem simblico, inclusive os processos de

    nomeao, por implicarem em classificao, hierarquizao e significao

    moral e poltica no mbito das relaes sociais.

    O que pode estar em disputa nos contextos de identificao faz

    parte do entendimento coletivo sobre desigualdades no acesso a recursos

    ecolgicos e econmicos, a honra, os meios de produo, as memrias

    sociais, os objetos de valor moral ou religioso, os prestgios, os territrios,

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    SOCIOLOGIAS 297

    os ttulos sociais, entre outros. Tais disputas no so necessariamente ca-

    racterizadas pelas relaes produtivas, mas envolvem questes de valores

    e crenas construdas coletivamente. Para Stuart Hall (2003), citando Ro-

    land Barthes, para alm dos bens, os grupos que se fortalecem em torno

    das identidades esto em disputa pelo manuseio e pelo controle sobre os

    signos, mais especificamente sobre o que e como os bens e outros signifi-

    cantes podem significar socialmente.

    Embora saibamos que os processos identitrios no so apenas for-

    mas de nomeao, isto , de classificao e de hierarquizao social,

    mas tambm estratgias e expresses de transgresso e contestao que

    indivduos e grupos sociais considerados subordinados possuem frente

    aos considerados hegemnicos, o enfoque sobre as denominaes e sua

    contextualizao sempre revelador, principalmente quando percebe-

    mos como se estabelece sua relao com o que est em disputa. Em sua

    inerente ambiguidade, as identidades expem as dinmicas sociais das

    foras de classificao e de hierarquizao social como sendo constitudas

    tambm por aqueles que as resistem e as transgridem, so as situaes de

    evidncia das fronteiras que tornam ao mesmo tempo visveis os elemen-

    tos, as dinmicas e os sentidos da disputa.

    4.3 As normas

    As normas que norteiam as relaes sociais podem ser expressas na

    forma de costumes, tradies, leis ou discursos. Nesse caso, a questo do

    poder reaparece numa condio em que as prticas e as normas se repro-

    duzem e esto mutuamente implicadas. Aqui, no estamos considerando

    que os atores sociais simplesmente se adquam a regras. Ao contrrio, par-

    timos do pressuposto de que as normas e os discursos bem como as institui-

    es que as sustentam, so produzidas nas e a partir das relaes de poder.

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    SOCIOLOGIAS298

    A chave para entendermos tal concepo est na ideia de que o

    carter estrutural das aes sociais produto do modo como a coero

    social filtrada pela cognoscibilidade dos agentes (Giddens, 2003). A

    ao dos sujeitos ocorre considerando determinadas condies, mas ao

    atuarem socialmente eles as (re)criam continuamente. No h um ponto

    de partida com base no qual se poderia dizer que as regras so anteriores

    aos atores ou vice-versa. Para ns, as relaes entre as normas e os atores

    sociais nos processos identitrios so capturadas pelo monitoramento re-

    flexivo, pois, de acordo com Giddens (2003), por meio da continuidade

    entre ambos que se processa a produo da vida social.

    Para estudarmos os processos identitrios, pertinente entendermos

    que os elementos estruturais so, ao mesmo tempo, coercitivos e facilitadores

    da ao social. Nesse sentido, para Giddens, h trs sentidos de coero:

    a) Coero social: Coero resultante do carter do mundo material e das qualidades fsicas do corpo; b) Sano (nega-tiva): Coero resultante de respostas punitivas por parte de alguns agentes em relao a outros e c) Coero resultante da contextualidade da ao, isto , do carter dado de pro-priedades estruturais vis--vis com atores situados (Giddens, 2003, p. 208).

    Alm do mais, as formas de coero so variveis de acordo com os

    contextos, nos quais pesam tanto aspectos materiais e institucionais, quanto

    formas de cognoscibilidade dos agentes (2003, p. 211). Desses contextos

    negociados entre estrutura e agncia, surgem as possibilidades e os funda-

    mentos balizadores da disputa e dos sentidos da identificao. Portanto, o

    senso coletivo de afinidade, como amlgama das identidades, constitudo

    de vontade, de interesse, de possibilidade e de representao.

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    SOCIOLOGIAS 299

    4.4 Os Contextos

    Como j dito, entendemos os processos identitrios como relacio-

    nais e situacionais e, por isto, como produtos e produtores de contextos

    histrico-sociais. Isto , os contextos so produzidos pela dinmica de

    distribuio de poder entre os indivduos e grupos sociais e pelas normas

    que a norteiam. A construo da identidade se faz no interior de contextos

    sociais que determinam a posio dos agentes e por isso mesmo orientam

    suas representaes e suas escolhas (Cuche, 2002, p. 192).

    Os contextos e situaes sociais so, tambm, elementos que par-

    ticipam da construo e redefinio das fronteiras e marcadores sociais/

    simblicos. Estas fronteiras so socialmente construdas e so permanen-

    temente ressignificadas. Muda-se o contexto, mudam-se as identidades, e

    vice-versa, mudam-se as identidades, muda-se o contexto.

    A diferena e o sentimento de pertencimento seriam, pois, produ-

    zidos em situaes ou contextos em que indivduos orientam suas aes

    a partir de outros indivduos com os quais mantm relaes de disputas

    mediadas por normas. So estas relaes produzidas na e por meio das

    situaes ou contextos que nos ajudam a pensar os processos identitrios

    como relaes de poder, porque nos permitem perceber as circunstncias

    em que ocorrem s interaes, tanto no que diz respeito liberdade e

    autonomia dos participantes quanto s formas de coero social.

    No mundo da ambivalncia, fluidez e descentramento, os contextos

    esto intimamente relacionados produo de mltiplos e, muitas vezes,

    simultneos vnculos sociais. Da que o fato de existirem vrios pertenci-

    mentos socialmente legitimados uma marca do mundo contempor-

    neo. Esta dinmica bastante clara nos fluxos migratrios. Nesses casos,

    o pertencimento altera-se de acordo com o contexto. Para ser eleito, um

    filho de imigrante necessitar de mais votos do que possivelmente pode-

    ria receber dentro de sua prpria colnia. Assim, dever acionar outros

  • Sociologias, Porto Alegre, ano 16, no 35, jan/abr 2014, p. 274-305

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    vnculos sociais: ser comerciante, professor, atleta, mulher, homossexual,

    ambientalista etc. Por sua vez, para se afirmar dentro do prprio grupo

    dever acionar principalmente marcadores tnicos que o diferenciam da

    sociedade receptora. (Lesser, 2001, Seyferth, 1999, Ennes, 2001).

    O conjunto das questes descritas acima nos permite indicar que

    as identidades so passveis de serem estudadas quando percebemos um

    dado processo social, a partir da evidncia dos quatro componentes inter-

    relacionados: os atores sociais, as disputas, as normas e os contextos.

    Consideraes Finais

    As questes sobre identidade ganharam visibilidade e expresso

    com as mudanas polticas e culturais observadas nas ltimas cinco dca-

    das. Essas mudanas foram produzidas pelas transformaes do chamado

    mundo moderno, que inclui a crise das metareferncias, a emergncia

    de novos sujeitos que passaram a formular e lutar por uma nova agenda

    poltica e o desenvolvimento de teorias sociais explicativas sobre a cons-

    tituio dos grupos sociais e das diferenas entre eles. O resultado desse

    processo foi a ampliao da noo de direitos, a qual conferiu visibilidade

    a segmentos sociais e regies do planeta, antes menosprezados.

    O conjunto das mudanas aqui expostas, tanto no campo histrico

    quanto no terico, est relacionado a uma tradio do pensamento social

    envolvendo a contribuio de autores como E. P. Thompson e Raymond

    Williams e, mais tarde, Stuart Hall e Eric Hobsbawn, os quais estabeleceram

    parmetros robustos para pensarmos as interfaces entre cultura e poder de

    modo a reconhecer as relaes sociais, em particular, as relaes de poder

    e suas implicaes em distintas circunstncias. Como vimos, pensar a cultu-

    ra por meio dos processos identitrios implica considerar as conexes entre

    a moral, a economia e a poltica, nas quais os atores sociais experimentam

  • Sociologias, Porto Alegre, ano 16, no 35, jan/abr 2014, p. 274-305

    SOCIOLOGIAS 301

    a coero e a transgresso social em propores diferentes e de acordo

    com cada contexto social. Apesar dos autores citados no serem os nicos

    a contriburem com tal discusso, eles formaram a base de nosso ponto de

    partida, pelo modo que concebem as disputas sociais e as mltiplas possi-

    bilidades de sentido que os sujeitos podem dar s mesmas.

    A anlise sob a nfase dos processos identitrios pode, assim, avan-

    ar criticamente em relao a algumas concepes do multiculturalismo,

    o qual, no obstante o seu triunfo idealizado como celebrao normativa

    do direito diferena, criou algumas armadilhas que mascaram relaes

    desiguais de poder. Como essas conquistas no ocorreram no vazio so-

    cial e poltico, sendo por isso reapropriadas e ressignificadas no contexto

    da sociedade contempornea, cabe-nos compreender as nuanas cons-

    titutivas desses processos, por meio dos embates cotidianos entre as re-

    ferncias normativas e legitimadoras das concepes de diferena, que

    argumentam pela reduo das desigualdades sociais em contraste com

    as formas de ao social e os modos de expresso reativos produzidos

    por aqueles que vivenciam a experincia, mesmo que fluda e provisria,

    de se construrem como sujeitos de identificao coletiva. Desse modo,

    nos esforamos por apontar alternativas s incongruncias postas pelo

    debate sobre identidades que tm seguido a direo da naturalizao e

    da despolitizao do fenmeno, supervalorizando solues denominadas

    multiculturais e consideradas definitivas, como se a tudo se resolvesse e

    apaziguasse quando o tema a convivncia com as diferenas e as de-

    sigualdades. Pelo contrrio, a idealizao do multiculturalismo tambm

    marca o cenrio intenso das relaes de poder quando a identidade est

    em questo, quase sempre como um elemento argumentativo de legi-

    timao das diferenas e das hierarquias entre elas. As polticas multi-

    culturais de governo procuram ordenar e controlar um processo que

    dinmico e instvel: a identificao.

  • Sociologias, Porto Alegre, ano 16, no 35, jan/abr 2014, p. 274-305

    SOCIOLOGIAS302

    Procuramos evidenciar que o interesse nos processos identitrios

    no se restringe s caractersticas e identificao dos marcadores, como

    fazem crer, muitas vezes, os estudos substancialistas. Antes, sua complexi-

    dade compreende a anlise das mudanas sociais, polticas e culturais que

    alteram significativamente a realidade social, tanto no que diz respeito s

    novas demandas e conquistas de novos direitos, quanto emergncia de

    novos atores sociais, os quais se inventam e inventam os outros constan-

    temente. Esta continua sendo uma questo de fundamental importncia

    no cenrio contemporneo, a qual no pode ou no deve ser observada

    com as lentes distorcidas da celebrao ou da negao das diferenas.

    Nesse sentido, propomos que os estudos sobre processos identit-

    rios levem em considerao nas suas anlises: os atores sociais, o que

    est em disputa, quais as normas, os discursos que mediam as relaes

    de poder, e os contextos sociais nos quais se inserem. Estes elementos

    devem dar conta das relaes por meio das quais se produz o pertenci-

    mento e a alteridade, a hierarquizao e a transgresso social, alm dos

    processos tensos, dinmicos, ambguos e ambivalentes de classificao.

    Ou seja, sugerimos que as questes colocadas pela anlise social levem

    em considerao os sujeitos, as formas e os embates atravs dos quais

    eles elaboram seus entendimentos sobre si prprios e sobre os outros em

    condies especficas.

    Esperamos que esta proposta de compreender os processos iden-

    titrios como fenmeno social seja til para a anlise, a abordagem e a

    explicao sobre as relaes sociais e de poder como argumentamos at

    aqui, de modo: 1) a evitarmos a (re)essencializao das identidades e

    compreend-las como relao (outro, diferente), em especial uma relao

    de poder (desigual); 2) compreendermos os processos de emergncia e

    de (re)insero social de atores em contextos caracterizados pelo descen-

    tramento, pela fragmentao e pela efemeridade; 3) estarmos atentos

  • Sociologias, Porto Alegre, ano 16, no 35, jan/abr 2014, p. 274-305

    SOCIOLOGIAS 303

    anlise das ambiguidades e ambivalncias de processos sociais que criam

    e recriam formas de subordinao e hierarquizao, ao mesmo tempo

    que expressam formas de contestao e transgresso social.

    Por fim, diante da insistente emergncia de agendas efmeras ou

    perenes pelo reconhecimento da alteridade e da particularidade como

    contraponto ao homogneo, bem como das respostas das polticas insti-

    tucionais que as acolhem em projetos englobantes e consequentemente

    intencionalmente reguladores, insistimos na necessidade de referncias

    conceituais que nos permitam captar e instrumentalizar reflexivamente a

    anlise sobre o curso de tais processos e suas ambivalncias e contradies.

    Marcelo Alario Ennes. Docente do Departamento de Educao/UFS/Campus de Itabaiana, do Programa de Ps- graduao em Sociologia - PPGS/UFS e lder do Grupo de Estudos e Pesquisas Processos Identitrios e Poder GEPPIP. [email protected]

    Frank Marcon. Docente do Departamento de Cincias Sociais e dos Programas de Ps-Graduao em Sociologia e em Antropologia, (PPGS/UFS e PPGA/UFS). Lder do Grupo de Estudos Culturais, Identidades e Relaes Intertnicas. [email protected]

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    Recebido em: 02/05/2013

    Aceite final: 16/09/2013