A VIOLENCIA E 0 SAGRADO EM ROMEUEJULIETA DE...

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Luana Aris Stella Dal Pra A VIOLENCIA E 0 SAGRADO EM ROMEU E JULIETA DE WILLIAM SHAKESPEARE Trabalho de conclusao de curso apresentada ao curso de Lelras da Faculdade de Ci~ncias Humanas, Letras eArles, da Universidade Tuiuti do Parana, como requisite parcial para obtenr;:ao de grau em Licencialura da Lingua Portuguesa e In9lesa. Orientadora: Professora Ora. Cristiane Busalo Smith. CURITIBA 2009

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Luana Aris Stella Dal Pra

A VIOLENCIA E 0 SAGRADO EM ROMEU E JULIETA

DE WILLIAM SHAKESPEARE

Trabalho de conclusao de curso apresentada aocurso de Lelras da Faculdade de Ci~nciasHumanas, Letras eArles, da Universidade Tuiutido Parana, como requisite parcial para obtenr;:aode grau em Licencialura da Lingua Portuguesa eIn9lesa.Orientadora: Professora Ora. Cristiane BusaloSmith.

CURITIBA

2009

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RESUMO

o objeto desse trabalho e analisar a obra Romeu e Julieta de William Shakespeare,a luz das teorias do antrop6logo frances Rene Girard, referente a violencia e 0

sagrado, 0 desejo mimetico e 0 ritual do sacrificio. E relevante 0 estudo a medidaque, apesar de Shakespeare ter produzido suas obras no final do seculo XVI e iniciodo seculo XVII, elas pod em $8r analisadas de forma contemporanea e pas-mederna.Para tanto S8 utilizara vasto material critica, com enfase nos estudiosos: ReneGirard, Mail de Azevedo Marques, Barbara Heliodora, Northrop Frye, Harold Bloom eA. Alvarez.

Palavras-chave: Romeu e Julieta, viol~ncia e sagrado.

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SUMARIO

INTRODUr;:Ao 5

1 A VIOLENCIA E 0 SAGRADO 10

2 ANALISE DA OBRA 27

2.1 ORIGENS DA OBRA 27

2.2 RESUMO DA OBRA 30

2.3 A VIOLENCIA 37

2.40 SAGRADO 39

2.4.1 Os rituais 42

CONSIDERAr;:OES FINAIS 50

REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS 53

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INTRODUCAO

E se a passagem causar um certa tantode dar, que faya a fragil carne temer acnda violenta? Nao e bem-vinda a brevedar que traz alivio duradouro, e emtranqOila sepultura a alma intranquilaacalenta? Depois da lida, 0 sono; depoisdo mar revollo, 0 ancoradouro; depois daguerra, a paz; depois da vida, a martemuito contenta.(ALVAREZ, 1999, p. 157).

Alvarez, afirma que no saculo XVI, as maries para evitar a desonra e 0 suicidio

par amor tarnam-se um lugar comum entre poetas e dramaturgos, par mais que as

pregadores vociferassem contra a enormidade do crime.

o amor e a marte daD margem a urn vasto campo de pesquisas Iigadas a

literatura e tambem a outras express6es culturais, sao lemas frequentes de muitos

poetas, romancistas, fil6sofos e psic610gos que discutem e enriquecem tais assuntos

abordando pluralidade de caminhos, pontes de vista e modes de escrever.

Este estudo pretende enfocar a merte dos protagonistas da obra mais amada

de William Shakespeare, segundo Barbara Heliodora (HELIODORA, 2004, p. 13),

Romeu e Julieta, sob a luz da teeria de Rene Girard referente a viole!ncia e 0 sagrado.

o suicidio dos dois amantes foi de uma brutalidade tamanha que entristece e revolta

muitos leitores: a morte acontece porque os jovens nao acharam outro caminho para

serem felizes, ja que suas familias eram inimigas. Porem, para Shakespeare 0 que

importa e a dignidade do ato, morrer com elegancia e manter-se neutro ao fato, sem

condenar 0 suicidio como um crime.

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o estudo da obra se detera em analisar os motivos que acarretaram 0 fim

tragico da pe9a, na forma como a suicidio culminou e transformou os dois amantes em

sagrado. Tambem nos deteremos na vioh§ncia desenfreada entre as familias Capuletos

e Montequios que deixaram a cidade de Verona em situa9ao de guerra civil, partindo

sempre de estudos literarios como fonte das analises possiveis dos temas.

E importante que na introdu9~10 do trabalho analisemos a epoca em que

Shakespeare escreveu esta peya, final do seculo XVI e infcio do seculo XVII. Por isso, 0

conjunto de rela90es que a obra estabelece com 0 meio e a sociedade em que se

insere sao relevantes. A obra nao representa sua totalidade real, sendo importante

contextualiza-Ia, isto e, estudar as condi90es em que a pe9a foi escrita.

Os gostos e as ideias vigentes de cad a epoca refletem, de forma direta ou

indireta, todo 0 drama. Sendo assim, os acontecimentos do tempo de Shakespeare,

sejam eles importantes ou nao, sao natural mente parte de seu material dramatico. Por

isso, deve-se ter 0 conhecimento das n090es e dos assuntos correntes, como as

guerras, crises e revoluyoes da epoca, pois 0 drama e de todas as formas arUsticas, a

mais influenciada por circunstancias materiais e, alem disso, e necessaria tambem

averiguar as modas literorias. (HARRISON, NIC).

Shakespeare escrevia peyas que eram dirigidas a pequenos teatros, os quais °publico era extremamente variado, incluindo diversos estilos, entre eles, aristocratas,

estudiosos, aprendizes, letrados, "almofadinhas", gatunos, marinheiros e sold ados de

licen9a. Os espectadores esperavam reeeber 0 que queriam, e por isso 0 autor britanico

misturou a980 e sangue para as incullos, palhac;:ada escandalosa para as nao

refinados, humor suli1 para os refinados, bel as frases para as "almofadinhas", assuntos

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amorosos para as damas, canrrao e dan<;:a para todos, tudo para satisfazer esta

variedade de gostos e opr;oes. E 0 resultado desta brilhante versatilidade de

Shakespeare tornou-o um poeta nacional na lnglaterra e maior dramaturgo da literatura

universal. (HELIODORA, 2001)

Barbara Heliodora cita em seu livro Falando de Shakespeare, que na cultura

inglesa, a qual Shakespeare estava inserido, e no tempo em que ele escreveu a perra

em amWse, a familia, em seu senti do amplo, incluia todos aqueles unidos pelos la<;:os

do casamento e mais os servir;ais. Dela irradiavam os principios marais e materiais que

regiam a vida dos cidadaos na sociedade da epoca. 0 casamento nao visava

exclusivamente it procriar;ao e educar;aa da prole. Sexo, poder e dinheiro achavam-se

intimamente ligados. 0 lar era considerado 0 uviveiron da religiaa, que par sua vez era,

na visao do Estado, uma institui<;:ao pOlitica vital. Consequentemente, a corte e 0

casamento nao eram assunto puramente emocional au pessoal, mas assumiam uma

importancia publica. Essa relarr80 entre a sagrado e a terreno, a publico e 0 privado,

gerava tensao e conflitos entre as gera<;:6es, gemeros e classes. Em consequencia, 0

amor, seXQ e casamento tornaram-se temas recorrentes na obra de Shakespeare.

(HEllO DORA, 2001)

o corpus deste trabalho consiste no estudo da obra traduzida par Barbara

Heliodora, que buscou uma maior e melher equivalencia, ate mesma mantendo a forma

versificada das obras de William Shakespeare. Os estudos feitos por Rene Girard sobre

a violioncia e 0 sagrado, que sao 0 titulo de sua obra (1972), a analise desta obra feita

pela professora Mail de Azevedo Marques, que resultou na sua tese de doutorado

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(1999) e alguns criticos literarios, tambem, estao presentes no trabalho, tais como;

Barbara Heliodora, Harold Bloom, Northrop Frye, George Harrison e Nicholas Nowe.

Tenciona-se desenvolver a estudo fazendo referencias, mas, sem que seja uma

analise detalhada da obra, e slm que se possa perceber as temas em diferentes

momentos, de maneira satisfat6ria. A intentfao e que se realize uma exposic;ao clara, da

manifestac;ao da violencia e a sagrado, da vitima expiatoria e algumas caracteristicas

marcantes da pe<;:aque propiciam uma visao mais aprofundada dos assuntos.

William Shakespeare, 0 autor da obra em estudo, escreveu inumeras pe9as nos

mais variados generos. Ele utilizou nos seus emedos diversos temas cotidianos da vida

dos britanicos. Romeu e Julieta e uma obra na qual Shakespeare, fala sabre amor,

amizade, morte, 6dic, violE~ncia, incompreensao, alegria e sofrimento. Embora faya a

utilizayao do amor como um pane de fundo, na tn3gica historia dos dois jovens, 0 amor

e conflituoso e existem lutas entre 0 Amor e a Morte. 0 desfecho terri vel deixa 0 leitor

ou telespectadar, geralmente, triste, revoltado e perplexo com as ironias do destino.

Este trabalho sera dividido em dois capitulos assim distribuidos: 0 primeiro

capitulo trata da violencia e 0 sagrado, a luz das teorias desenvolvidas por Rene Girard,

que tinham par objetivo explicar de forma compreensiva os sacrificios nas sociedades

primitivas e a relayao de violencia que se estabelecia nestas comunidades. A violencia

perturba a paz e culmina em guerras e conflitos que se arrastavam par anos.

Reconheyo minha divida para com a professora Mail Marques de Azevedo que em seu

estudo para tese de doutorado, analisou a teo ria de Girard e iluminou esta monografia

especialmente no que diz respeito as caracteristicas das vitimas sacrificiais. 0 segundo

capitulo sera subdivido em itens, abordando a obra de Romeu e Julieta e analisando

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as caracteristicas existentes no texto e como a teoria de Rene Girard se insere na obra,

a violemcia, a sagrado e a vitima sacrificial.

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1 A VIOLENCIA E 0 SAGRADO

Este capitulo, em urn primeiro momento, discorre sabre a vioh§ncia e 0 sagrado,

baseado nos estudos feitos pelo antropologo Rene Girard que compos a obra A

viol'>ncia e 0 sagrado (1972) e na interpretagao desta obra feita pel a professora Mail

de Azevedo Marques para sua tese de doutorado The Nonessential Victim in a

Persecution Text: a Reading of Toni Morrison's The Bluest Eye (1999).

Rene Girard integra sua teo ria do desejo mimetico, desenvolvida

anteriormente, com seus estudos sabre 0 ritual do sacrificio existente nas sociedades

antigas, buscando desenvolver uma leoria compreensiva do sacriflcio humano em tais

sociedades.

A teoria de Girard quanta ao desejo mimetica observa que urn homem nao

deseja algo diretamente, mas sim atraves de urn mediador que aponta para esse

homem a objeto que deve ser desejado, au seja, a ser humano deseja a que e, ou 0

que a outro deseja, seu desejo nunca sera original, sera sempre dessa forma triangular.

Em seus estudos, 0 teorico constatou que a imitac;ao tem um paper decisivo no

desenvo!vimento dos seres humanos, como muito antes Aristoteles ja havia

reconhecido. Aristoteles observa em sua obra A poetica que toda atividade humana

inclui procedimentos mimeticos como, por exemplo, a dan9a, a aprendizagem de novas

linguas, os rituais religiosos, a pratica desportiva, 0 dominio de nova tecnologia, entre

outras.

A logica mimetica, imitativa e apropriativa lanC(a 0 ser humano em um cicIo de

vioh~ncia, no qual 0 desejo alcan9a somente uma satisfaC;ao momentanea, nao send a

nunca completamente saciado. Sendo assim, na medida em que a apropria9aO e

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identificava.o com 0 outro S8 realizam, a mimetismo desencadeia urn novo desejo,

perpetuando a sensac;:ao de falta de algo e do vazia.

Para 0 estudiosQ, as necessidades primordiais ao serem satisfeitas, au ate

mesma antes disso, 0 homem deseja intensamente, mas naD sabe a que exatamente,

porque e 0 "ser" que ele deseja, urn "ser" de que S8 sente privado e que os Qutros

parecem possuir. A ressalva "au ate mesmo antes disso" refere-s8 ao fata de que as

pr6prios apetites, que sao determinados e espontaneos, pod em ser contaminados pela

simples presenc;:a de urn modele.

Os grandes poetas e romancistas chegaram a essa mesma descoberta aD

longo de suas obras: 0 homem naD imita apenas comportamentos e nOyoes, ele imita

tambem as desejos de seus modelos.

Rene Girard, em seu primeiro livre, Mentira romantica e verdade romanesca,

analisa as obras de Cervantes, Stendhal, Dostoievski e Proust. Conforme as

observa<;:oes da professora Mail, e como 0 pr6prio titulo da obra ressalta, os estudos do

antrop610go examinam a mentira ou a auto-engana<;:c3o, a cren<;:a do romantico de que

seu desejo e original ou criativo, e quando na verdade 0 desejo vem de se apropriar, ter

algo que ja e desejado por outro. A mentira romantica contrasta com a verdade, e e isto

que mais tarde Girard chama de "desejo mimetico", urn desejo baseado em rivalidade,

apropria<;:ao e vioh§ncia. Rene mostra que a hist6ria do romance ocidental e tarnbem a

hist6ria da analise do desejo mimetico.

Sendo assim, 0 objeto do desejo nao tern sua origem na individualidade do ser

humano, pois senao seria fix~, seria 0 que chamam de instinto, uma tendemcia natural.

o desejo e essencialmente voluvel, e seus objetos decorrem da imita<;:3o de outro.

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Os estudos de Girard concluem que 0 sujeito espera que 0 Qutro Ihe dig a 0 que

deve ser desejado a fim de adquirir esse ser que Ihe falla. Se 0 modelo desejar alguma

caisa, 56 pade tratar-se de urn objeto capaz de conferir uma plenitude de ser ainda

mais total. Nao e atraves de palavras, mas por seu proprio desejo que 0 modele

designa ao sujeito 0 objeto supremamente desejavel.

Islo pade ser nolade em uma crianCfa que quando urn brinquedo denlre muitos

Quiros se lorna desejavel e, logo se lorna urn objeto de disputa assim que Dutra crianc;a

desejar apanha-Io. Rene Girard afirma que, com as adultos isla naD e diferente, apenas

pelo fata de que, devido ao contexto cultural, admitir que 0 sujeito naD possui

autonomia no seu desejo e, geralmente, revelar uma lalha ou lalta de personalidade. 0

autor ainda declara que a individuo adulto diz-se satisfeito consigo mesmo, apresenta-

se como modelo para as outros mentalizando: "Imita-me", a fim de dissimular sua

propria imita4Yao. E a seu desejo se direciona para mediadores que julga "completos",

sem confessar que se esta fazendo essa mediayao.

Quando ocorre a desejo mimetico, au seja, quando um sujeito deseja a mesmo

objeto que seu modele, isto resulta em uma de duas situa90es: au 0 sujeito que deseja,

se encontra no mesmo contexto que a seu modelo, au ele pertence a um contexto

diferente.

No segundo caso, podem-se ilustrar exemplos das rela4Yoes entre pais e filhos,

professores e alunos. Estas relayoes, Girard definiu como media4Yao externa, au seja,

existe hierarquia nas media4Yoes: discfpulo e mestre. Sao rela4Yoes positivas e nao ha,

partanto, rivalidade entre eles. Parem, a fato de desejar a mesmo que a outro e possuir

objetos analog as aos do mediad or externo nao satisfaz a compulsao par imita4Yao do

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ser humano. E e entaD que surge 0 que Girard chama de mediayao interna, a qual seria

o desejo de estar sempre em contato intima com 0 modele. Assim, tal mediavao se

transformara em uma necessidade de fundir-se com 0 outro. A impossibilidade de fusao

com 0 mediador externo do desejo causa desconforto interior e hostilidade em relayao

ao modele. 0 sujeito acredita que 0 outro "esconde" algo que 0 tornaria feliz como 0

modele e. Dai 0 sentimento de venerac;:ao e adio em relac;:ao ao Qutro e repulsa em

relac;:ao a si.

Como consequencia dessa proximidade fisica entre 0 5ujeito e 0 modele, a

mediac;:ao tende a tornar-se simetrica, isto e, conforme 0 imitador deseja 0 mesma

objeto desejado pelo seu modele, este tende a imitar 0 sujeito tambem, tomando-o

como modelo. Sendo assim, 0 imitador se transforma, ao mesmo tempo. modelo de seu

modelo e imitador de seu imitador. Em decorr~ncia desta situac;ao, Girard argumenta

que pelos indiv[duos irem se tornando mais e mais semelhantes, e 0 desejo de ser, em

ultima instancia, 0 proprio modelo do desejo, faz com que se torn em rivais na medida

em que passam a ser obstaculo para realizaC;ao do desejo um do outro. 0 conflito se

torna cada vez maior, ate chegar a um ponto em que 0 objeto desejado por ambos

simplesmente desaparece e resta somente a rivalidade. Segundo 0 texto virtual de Mary

R. G. Esperandio, Girard denomina este fenomeno como "desejo metafisico", que e

quando a deseja deixa de ter relaC;ao com a objeto acessivel e se centra cad a vez mais

no mediad or. 0 autor afirma que esse deseja metafisico se expande por "contagia

generalizado", au seja, a mediador e literalmente "nao importa quem", e pade surgir

"nao importa ande" Assim a rivalidade reciproca se propaga e causa um cisma na

sociedade, podendo este mecanismo mimetico expandir-se alem das franteiras.

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(GIRARD EO APRISIONAMENTO DO DESEJO. 2009)

A disputa pelo objeto 0 valoriza e provoca cobiya. Entretanto, quanta mais

cresce a disputa, mais a objeto sai do campo da consciemcia, desaparecendo par fim

dilacerado e destruido no conflito, formando 0 mecanisme mimetico, segundo as

estudos de Rene Girard. Devida ao aumento de vioh§ncia e rivalidade, desencadeia·se

urn jogo mimetico onde todos as membros da comunidade sao envolvidos,

desembocando no que 0 antrop61ogo denomina de "crise sacrificial": a luta de todos

contra todos. Toda uma sociedade envolvida em uma situa<;:<3ocaotica e indiferenciada,

causando 0 desaparecimento da ordem cultural. Quando a violl§ncia surge em urn ponto

qualquer da comunidade, tende a se alastrar e a ganhar a totalidade do corpo social,

ameagando desencadear uma verdadeira reac;:ao em cadeia, com conseqOencias

rapidamente fatais em uma sociedade de dimensoes reduzidas. A multiplicac;:ao das

represalias coloca em jogo a propria existencia da sociedade (GIRARD, 1972, p.

28).

Girard assinala que 0 paradoxo do cicio mim€otico €oque os homens quase

nunca podem partilhar pacifica mente um objeto que todos desejam, mas podem

sempre compartilhar um inimigo que lodos odeiam porque pod em unir-se para destrui-

10, e entao nao subsistem mais hostilidades prolongadas, pelo menos durante algum

tempo.

Ele afirma que €oimpossivel nao usar de violencia quando se quer liquida-Ia, e €o

justamente por isso que ela €ointerminavel. Isto €o,todos querem proferir a ultima palavra

e assim se da represalia a represalia, sem que nenhuma conclusao verdadeira jamais

intervenha. 0 desejo de violencia inato, quando despertado, €o mais dificil de ser

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apaziguado do que desencadeado (GIRARD, 1972 p. 14).

De acordo com Marques, alos de violencia sem motivQs contra uma minoria

que, alguns grupos, julgavam representar de maneira certa au errada e ameayavam a

hegemonia da sociedade, femete ao ritual de sacrificio dos pavos primitiv~s, as quais

sacrificavam pessoas ou animais para a purifica,ao da sua sociedade. (1999, p. 16)

Estes rituals de sacriffcio eram usados com 0 intuito de estabelecer a ordem

social, para prevenir a catastrofe de uma grande comunidade destruida pela hostilidade

e rivalidades internas. Segundo a interpretayao de Marques sabre as estudos de Rene

Girard, que ultrapassaram os limites da literatura e se estenderam aos campos da

psicologia com 0 desejo humano, a antropologia com a formaC(ao cultural, e a historia

das re1i9i6e5 que consagrou a violemcia e 0 sagrado, Girard poe em discussao a ideia

de que os hornens sao governados pelo desejo rnirnetico, ou seja, urn desejo de

apropria~ao, de ter algo que ja e do outro. Guiado por esse desejo instintivo, 0 ser

humano torna-se violento e coloca em crise a paz de sua sociedade. Para evitar isso,

as comunidades antigas desenvolveram 0 mecanismo do bode expiatorio, 0 que

originalmente era 0 assassinate de uma vitima inocente, transformada em sagrada.

(MARQUES, 1999, p 16)

o sacriffcio tern fun~ao social, sua primeira inten~ao e eliminar as desaven~as,

as rivalidades, os ciumes, as disputas entre proximos; e estabelecer a harmonia da

comunidade, e refor~ar a unidade social.

o Livro dos ritos, que registra os sistemas de governos das institui~oes marais

e religiosas das dinastias chinesas conforme os pensamentos dos filosofos dos seculos

VI ao IV a.C. contem regras de conduta especificas para todo tipo de situa,6es

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familiares e socia is, afirma que as sacrificios, a musica, as castigos e as leis tern uma

unica finalidade: unir as cora90es e estabelecer a ordem. Confucio, urn dos maiores

fi1650f05, pensadores, politicos e educadores chineses que viveu no seculo VI a.C.,

considerava que as ritos naD 56 indicavam as regras de conduta do homem, mas

tambem estabeleciam 0 sistema de administra9ao do Estado e que deviam ser

garantidos com a benevolemcia, au seja, "0 amor entre as homens", e que 56 unindo 0

poder de ferro ao poder benevolente seria passivel eliminar a rebeldia.

o objetivo do sacrificio seria entao, acabar com a violemcia e impedir que Qutros

conflilos se formassem. Uma forma de exorcizar a sociedade, par meio de uma vitima

sacrificial.

Na Grecia antiga, ate cerca do seculo VI antes da era Crista, afirmam os

historiadores, que era comum a pratica dos sacrificios humanos. Indivfduos que

pertenciam a esc6ria da sociedade eram sustentados e mantidos pelo governo e de

tempos em tempos eram sacrificados em homenagens aos de uses nas epocas de

festas e crises como a seca, fome e conflitos politicos. Este ritual tinha a inten<;:ao de

apaziguar os deuses e pedir-Ihes ajuda para solucionar os problemas e prote<;:ao para

toda a comunidade. Aqueles que eram destinados por diversas raz6es aos sacriflcios

eram chamados de Pharmak6s. Escolhidos aleatoriamente, como um cordeiro, por

exemplo, que era sacrificado, sem que tivesse feito alguma coisa ma. A palavra

Pharmak6s, ou Pharmak6i no plural, provem do gregG e significa ao mesmo tempo,

veneno e antidoto, ou seja, 0 mal e 0 remedio. Pois ao serem mortos, serviriam como

intermediarios entre deuses e homens, a fim de que as coisas melhorassem. Eram,

portanto, 0 remedio que os homens imaginavam que os seus deuses ali apreciariam.

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Segundo as estudos feitos pela professora Mail, 0 pharmak6s gregG era

considerado urn objeto poluido cuja marte expurgava da comunidade suas doenc;:as e

tambem restaurava a tranquilidade publica claramente testemunhada. Era par isso que

o pharmak6s era exibido pel a cidade. Ele era usado como urn tipo de esponja para tirar

as impurezas, e mais tarde era expulso da comunidade ou morto em uma cerimonia

que envoi via toda a popula,ao. (MARQUES, 1999, p.20)

Ainda conforme a tese da professora, as ritos sacrificiais que remetem a

tradic;:ao do pharmak6s gregG sao apontados pelo antrop61ogo James Frazer na sua

renomada obra 0 ramo de auro, que entre tribos africanas, em Onisha, no Niger, dais

seres humanos, adquiridos par subscriy2lo publica costumavam ser sacrificados

anualmente, para tirar os pecados da terra entre os Yorubas do oeste da Africa.

Marques afirma que 0 exemplo e ilustrativo e que para Rene a interpreta9ao de

Frazer sabre a func;ao do sacrificio como a expiac;ao de pecado e culpa e totalmente

inaceitavel. 0 ato de sacrificio e bastante direcionado para a "dissimulac;ao" e

apaziguamento de conflitos sociais, seja na antiguidade c1assica, comunidades

primitivas, ou na sociedade moderna.

A vitima humana escolhida para 0 sacrificio, e que poderia ser lanto umapessoa que nasce livre ou um escravo, uma pessoa da nobreza ou de linhagemrica ou um nascimento humilde e, depois de ter side escolhido e marcado parao prop6sito chamado de Oluwo.Ele e sempre bem alimenlado e nulrido efornecido com qualquer coisa que desejasse em seu periodo de confinamenloQuando 0 momento chegasse de ele ser sacrificado e oferecido, ele ecomumente conduzido e exibido pelas ruas da cidade do soberano que irasacrifica-Io para 0 bem-estar de seu governo e de toda familia e indivfduos, afimde que ele possa lirar a pecado, culpa, infortunio e morte de lodos semexcelYao. (FRAZER, 1974, p. 746-747.)

De acordo com a analise da pesquisadora, quanta aos comentarios do critico

literario canadense Northrop Frye sobre a figura do pharmak6s na tragedia grega e por

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extensao, na literatura ocidental, a posir;;:ao e a mesma que a de Rene Girard quanta ao

can!.tter da vitima sacrificial e a irrelevancia de sua culpa ou inocencia. Frye pontua que

pade-se encontrar a figura do pharmakos nos personagens Hester Prynne da obra A

letra escarlate de Nathaniel Hawthorne, no Billy Budd do conto escrito par Herman

Melville, na Tess de Thomas Hardy, no Septimus da obra Mrs. Dalioway escrito por

Virginia Woolf, nas historias de negros e judeus perseguidos principal mente na epoca

do nazis mo. Em historias de artistas cujo genic faz deles Ismaels da sociedade

burguesa.

Para ambos, Girard e Frye, a vitima nao e nem inocente, nem culpada. Ela e

inocente no senti do do que acontece com ela e muito maior do que qualquer coisa que

tenha feito. E e culpada, no senti do de que ela e membro de uma sociedade culpada,

ou de viver em um mundo onde tais injusti~as sao uma parte inevitavel da existencia.

No inicio da obra A viol€mcia e 0 sagrado, Girard argumenta que 0 Poder

Judiciario passui um carMer sacrificial. Na antiguidade, como nao havia este Poder,

existia os rituais de sacrificios com vilimas humanas e animais e ao sacrificarem sua

vilima, elas levariam consigo todas as mazelas e penurias da comunidade.

A substitui~ao como a base para a pratica do sacrificio, do ponto de vista de

Girard, tem 0 intuito de ludibriar a violencia, um meio de canalizar tal violencia que seria

dirigida para toda uma sociedade, a qual desencadearia uma grande catastrofe, para

uma vitima sacrificavel pura e inocente.

A vitima ao mesmo tempo substitui e e oferecida a todos as membros da

sociedade, por todos as membros da sociedade. E urna cornunidade inteira que 0

individuo sacrificavel ira proteger da violencia da propria sociedade. A viii rna polariza

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todo 0 mal do grupo e passa a ser fonte de todo 0 bern e teda a paz na comunidade.

Trata-se de urn processo de transferencia da violencia generalizada para uma vitima

expiatoria. Este e a genese do sagrado, afirma Rene Girard. (GIRARD, 1972, p. 19)

A escolha da vitima deveria levar em conta, principalmente, a sua

insignificancia para a sociedade, pais sua marte nao poderia resultar em vingan~a.

Girard ao considerar 0 [eque farmada pelas vitimas, analisando de urn panorama geral

do sacrificio humano durante a hist6ria, se deparou com uma lista bastante

heterogenea de vitimas: os prisioneiros de guerra, as escravos, individuos defeituosos,

a escoria da sociedade, como 0 pharmak6s grego, e ate crian~as e adolescentes

501teir05, pois estes, na maiaria das sociedades primitivas, nao pertenciam a

comunidade: seus direitos e deveres eram praticamente inexistentes. Em algumas

sociedades a figura do rei, tambem se torna vitima sacrificial, pais e justamente a sua

posic;:ao central e fundamental, que vai isola-Io dos outros homens, colocando-o fora de

qualquer casta (GIRARD, 1972, p.24).

o pesquisador observa que a violencia nao saciada procura e sempre acaba

par encontrar uma vftima alternativa. A criatura que excitava sua furia e repentinamente

substituida par outra, que nao passui caracteristica alguma que atraia sabre si a ira do

violento, a nao ser 0 fato de ser vulneravel e de estar passando ao seu alcance.

(GIRARD, 1972, p.13).

Poderia fazer tal substituic;:ao, direcionando a violencia para as anima is, porem,

segundo 0 apontamento que Girard faz da obra Eclaircissement sur h~s sacrifices do

escritor e fil6sofo Italiano Joseph de Maistre, as viti mas animais devem sempre

apresentar algo de humano, como se enganasse melhor a violemcia: "Escolhiam-se

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sempre entre as animais, os mais preciosos par sua utilidade, os mais docels, as mais

inocentes, as rnais pr6ximos do homem per seu instinto ou par seus habitos ..

Escolhiam-se, na especie animal, as viti mas rnais humanas, S8 assim posso me

exprimir". (MAISTRE, apud GIRARD, 1972, p.13)

o cordeiro, filhote da ovelha, e simbolo do ritual de sacrificio. Segundo

Biedermann, ele era escolhido para ser oferecido em sacrificio pela sua comovente

inocencia, por ser uma criatura pura e candida. (BIEDERMANN, 1993, p. 107). Para

complementar 0 conceito de Biedermann, 0 Dicionario de simbolos de Chevalier e

Gheerbrant, afirma que 0 cordeiro, em sua brancura imaculada e 910ri05a, encarna 0

triunfo da renovaC;ao da vida sabre a morte. Ele tern side a vitima sacrificial em

inumeras ocasioes para judeus, cristaos e muc;ulmanos. Assim, a sangue derramado

par Cristo na cruz esta relacionado com 0 sangue salvadar do cordeiro sacrificado.

~Joao Batista exc1ama ao ver Jesus: Eis 0 cordeiro de Deus que tira 0 pecado do

mundo (JOAO, 1:29)", este trecho retirado da Biblia refere-se certamente ao tema

sacrificial. (CHEVALIER, GHEERBRANT, 2005, P 287).

Maistre ve sempre na vftima ritual uma criatura inocente que pagara par algum

culpado. Mas Girard pro poe uma hip6tese que supre essa diferenc;a moral. A relagao

que existe entre a vitima potenCial e a vitima sacrificial nao deve ser definida em termos

de "culpado" au "inocente". A sociedade procura desviar para uma vitima, cuja morte

pouco ou nada importa, uma violencia que talvez atingisse outros membros, que sao

exatamente aqueles que ela pretende tanto proteger.

Rene Girard, em sua obra A violencia e 0 sagrado, destaca que, em

numerosos rituais, 0 sacrificio apresenta·se de duas maneiras apostas: au como ualgo

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muito sagrado", do qual nao seria passivel abster-se sem negligencia grave, QU, aD

contrario, como uma especie de crime, impassive I de ser cometido sem expor-se a

riscos igualmente graves. (GIRARD, 1972, p. 11).

Baseado em estudos mitol6gicos e na Literatura Comparada, Girard pontua que

este sistema e universal. Analisando pe<;:as Iiten3rias, mitos greg05 classicos, europeus

e ate a Biblia, estudancto Freud, 0 complexo de Edipo, Totem e Tabu, e a Levi Strauss

e seus estudos sobre parentesco, Rene Girard encontra urn denominactor Gomum:

evidencias da estrutura do bode expiat6rio.

Segundo 0 antrop6logo, existe equivocos sabre 0 usa do termo "bode

expiat6rio", Conforme ressaltou a professora Mail em sua tese, Girard afirma que 0 usa

do termo multiplica-se, pais ninguem se preacupa em determinar seu significado exata.

Para muitos a termo recorda a rita do bode expiatorio descrito no texto biblico

Leviticus, au autros ritos que sao descritas as vezes como peJiencente ao bode

expiatorio par lembrar vagamente a de Leviticus:

16:20 Quando Arao houver acabado de fazer expia9ao pelo lugar santo, pelatenda da revela<;:ao, e pelo altar, apresentara a bode vivo;16:21 e, pando asmaos sabre a cabe<;:a do bode vivo, confessara sabre ele todas as iniquidadesdos filhos de Israel, e todas as suas transgress6es, sim, lodos os seus pecados;e as para sabre a cabe9a do bode, e envia-lo-a para 0 deserto, pela mao de umhomem design ado para isso. 16:22 Assim aquele bode levara sabre si tadas asiniquidades deles para uma regiaa salitaria; e esse hamem saltara a bode nodeserto.

De acardo com Marques, esse usa nao tem conexaa direta com seu conceito

de vitima substitutiva que estrutura a mecanismo do bode expiat6ria. A propria Figura do

pharmakos grego pade ser cansiderada bode expiat6rio.

o autar vai alem em sua afirmac;:6es quanta a vitima substitutiva, ele afirma que

todas as mitas, indistintamente, par mais simples e aparentemente inacentes que

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sejam, tern a mesma fun<;:ao social: passar da indiferenciaryao para a diferenciaC;2Io e

regular 0 fen6meno da violE~ncia, sempre atraves do processo bode expiat6rio. Ele eita

que os contos de fada que mostram 0 lobo, 0 ogro ou 0 leaD engolindo gulosamente

uma grande pedra no lugar da crianrya que cobir;;:am, talvez possuam um carater

sacrificial. (GIRARD, 1972, p, 13),

Girard afirma que no Antigo Testamento enos mitos 9re905 os irmaos sao

quase sempre inimigos. A violenc;a que eles parecem estar fatalmente destinados a

exercer um sabre a Dutro 56 pade se dissipar quando aplicado a vitimas terceiras, ou

seja, as vitimas sacrificiais, (GIRARD, 1972, p,15)

E necessario destacar que os mitos sao narrados pelo ponto de vista dos

perseguidores, e naD das vitimas. Per issa a violemcia sacrificial e os mitos que a

relatam nao sao violentos em si, mas estao direGionados para que a paz seja

visualizada.

As viti mas quase sempre foram animais, como nos rituais que os judeus e a

sociedade da Antiguidade Classica faziam. Em outros sistemas, eram os seres

humanos que substituiam outros seres humanos nos atos de sacrifiGio. A forma do

pharmak6s, que a cidade sustentava para serem sacrificados em certas ocasioes,

especial mente nos periodos de calamidade, eo exemplo desta substitui9aO.

Mas 0 sacrificio e a assassinata nao poderiam ser postos como substitutos se

eles nao se assemelhassem. Girard, em sua obra Gita que Hubert e Mauss analisa 0

carater sagrado da vitima. E criminoso matar a vitima, po is ela e sagrada.. Mas a

vitima nao seria sagrada se nao fosse marta. Estas vitimas tornam-se divindades para

aquela sociedade que a sacrificou, par causa da sua virtude reconciliadara. Para

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identificar uma vitima, e preciso que ela seja marcada pelo destina como sendo de fora

da comunidade e, portanto nao merecedora da vinganva contra ela.

Mail de Azevedo Marques observa que a sacrificio e urn ato de violencia que

nao anula a risco de vinganc;:a ou represalia por seu carc~ter sagrado. as ritos de

sacrificio servem para polarizar as impulsos agressivos da comunidade e redireciona-

los as vitimas, que podem ser reais au figurativas, animadas ou inanimadas, mas que

sao sempre incapazes de propagar mais vingan,a. (MARQUES, 1999, p.17)

Conforme Girard argumentou quanta ao paradoxa revelado pela vinganya, ja

que as riscos de que ela ocorra sejam completamente nulos, Hubert e Mauss citam na

sua obra Essai sur la nature et la fanctian du sacrifice:

Eles se desculpavam pelo ate que seria cometido, lamentavam a morte doanimal, choravam par ele como se fosse urn parente. Pediam-Ihe perdao antesde abate-Io. Dirigiam-se ao resto de sua especie como urn vasto cia familiar,suplicando-Ihe que nao se vingasse pelo dana que Ihe seria infligido na pessoade urn de seus membros. As vezes, sob a influencia das mesmas ideias, punia-se a autor da morte: ele era surrado au exilado,(H. Hubert, M. Mauss, 1968, p.233-4)

A professora Mail, em seus estudos, afirma que 0 espfrito da vingan<,;:a

representa uma amea<,;:aintoleravel, que se nao for desviada para os canais do ritual do

sacrificio: sangue atrai sangue, e urn cicio interminavel de violencia prejudica a

existencia da sociedade. A vinganc;:a se lorna urn processo infinito e nao e dela que se

deve esperar uma contenc;:ao da violencia, mas sim ela que deve ser contida. Param,

Girard argumenta que nao basta convencer os homens de que a violencia e odiosa

para acabar com a vinganc;:a, da mesma maneira que em nossos dias istc nao a

suficiente para acabar com a guerra.

Atualmente pode-se dizer que nao existe mais 0 circulo vicioso da vinganc;:a

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como nas sociedades primitivas, e este privilegio se deve ao sistema judiciario que

afasta a amea~a de vinganc;:a. Na verdade, Girard diz que este sistema naD suprime a

violencia, mas consegue limita-Ia a uma represalia unica, au seja, uma autoridade

soberana e especializada tern 0 dominic das decisoes e a ultima palavra. Ele comenta

em sua obra A violencia e a sagrado, a ideia de Robert Lowie ([New York, 1947)1970),

segundo a qual a vinganc;:a livre substitui 0 sistema judicia rio na sua ausencia. Tal

afirmac;:ao e considerada errada pelo antrop61ogo Rene Girard, pois para ele naD e a

ausencia do principia de justic;:a abstrato que e importante, mas a fato da 8';210 dita

~Iegal" estar sempre nas maDS das pr6prias vitimas e seus pr6ximos. E preciso que

exista uma instituic;;ao soberana e independente que substitua a parte lesada e que

detenha a exciusividade de vinganc;;a. Os esforc;;os para limitar a vinganya ainda sao

precarios devido ao sentimento de conciliac;;aa que pade au nao estar presente, sendo

assim Girard cita 0 argumento de Bronislaw Malinowski, 0 qual afirma que para

restaurar um equilibria em uma sociedade s6 existem meio lentos e complicados. Diz

que ainda nao se descobriu nem um costume ou procedimento que remetesse a

administrac;;ao da justiya, que funcionasse segundo um c6digo e com regras e

imprescritivel. E neste ponto que se pode reafirmar que 0 sacrificio e um instrumento de

prevenc;;aa na luta contra a viol en cia e nao a cura para tal. Girard entao afirma que a

prevenc;;aa religiosa pode ter urn carater violento e sendo assim, a violencia e 0

sagrado sao inseparaveis.

o religioso sempre procura apaziguar a violencia e evitar que ela seja

desencadeada. As condutas religiasas e morais visam a nao-violencia de uma forma

imediata na vida cotidiana e, muitas vezes, de forma mediata na vida ritual,

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paradoxalmente por interm<idio da propria violencia (GIRARD, 1972, p.33).

Nos estudos do antrop61ogo constam informa~oes a respeito dos meios que as

homens ja utilizaram para proteger-se da violencia interminavel, e acabou par concluir

que sejam talvez todos aparentados. Ele agrupou estes meios em tres grupos: 1. as

meios preventiv~s, que podem todos ser definidos como desvios sacrificiais do espirito

de vinganya; 2. as reguJayoes e as obstaculos it vinganc;a, tais como as composiqoes,

as duelos judiciarios e etc. cuja ac;ao curativa e ainda precaria; 3. a sistema judiciario,

dotado de uma incomparavel eficacia curativa.

Estes meios passu em uma ordem crescente. Os primeiros meios curatives sao,

em todos as sentidos, intermediaries entre um estado puramente religioso e a extrema

eficacia de sistema judicia rio. Eles pr6prios apresentam urn carater ritual e sao

frequentemente associ ados ao sacrificio. Isto se deve ao fata de que a preacupavc3a

nao e com 0 culpado, mas sim com a vftima nao vingada. E preciso apaziguar 0 desejo

de vinganva nesta vftima sem desperta-Io em outra parte. Par issa a questao naa e

sobre 0 bem e 0 mal, nem fazer respeitar uma justiva, mas sim a preservavao da

seguranva de um grupo eliminando a vinganva por meio de uma reconciliavao. Casa

isto seja impassivel, a correto seria propor um confranto em campo fechado seguinda

regras e entre adversarios bern determinadas, resolvenda a problema de uma vez par

todas. Canclui-se que 0 sacrificio e a sistema judicia rio tern a mesma func;:ao, porem 0

sistema judicia rio e muito mais eficaz.

Girard afirma que somente a transcend€mcia do sistema efetivamente

reconhecida par todos, independentemente das institui<;:6es que a concretizam, pade

garantir sua eficacia preventiva ou curativa, distinguinda a vialencia santa, legitima, e

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impedindo que ela se torne alva de recriminalfoes au de contestac;6es, ou seja, que

recaia no circulo vicioso da vinganl'a (GIRARD, 1972, p.37).

A seguir, partimos para a analise da obra Romeu e Julieta, onde sera passive I

aplicar a teoria aqui expressa.

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2 ANALISE DA OBRA

2.10RIGENS

A pefYa foi esc rita par William Shakespeare na fase inicial da sua carreira

litera ria, entre os anos de 1592 e 1594. A obra canonica do autor inclui a anUtese entre

amor e odio, 0 correlativo usa da polaridade luz e escuridao, 0 tratamento do tempo em

simultaneo tema e elemento estrutural, e 0 estatuta proeminente do destino e sua

expressao nos sonhos, pressagios dos personagens principais e sinais que pressagiam

o tragico final da hist6ria.

Em Reflexoes Shakespearianas, (HELIODORA, 2004, p.121) a tradutora e

ensaista e tambem grande cfitica do teatro, Barbara Heliodora afirma que as tragedias

de Shakespeare sao diferentes das tragedias gregas devido as concep~6es diversas do

universe e do destino do homem. Enquanto no mundo gregG 0 conceito de

predestinac;ao dos primeiros classicos isentava uma parcela da responsabilidade do

her6i tragico, no tempo elisabetano 0 universo cristao e 0 principio do livre arbitrio, para

Shakespeare cad a homem e respons;3vel por todas as suas ac;oes. Na epoca

elisabetana, a Rainha empenhou-se para exercer a justic;a publica, evitando os duelos e

outras formas de vinganc;a. Porem, segundo a pesquisadora, a tragedia e,

essencialmente, um relato de sofrimento e calamidade que conduz a morte. Tal

sofrimento e essa calamidade, al8m do mais, sao excepcionais e recaem sobre uma

pessoa de certa importancia, mas nao 56 isso: esse individuo tera de ser, em si mesmo,

uma pessoa notavel, e seu sofrimento devera ser inesperado, contrastando-se

marcadamente com a felicidade au gl6ria anteriores. (HELIODORA, 2004, p.126). Tais

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apontamentos sao importantes para a compreensao da obra tragica escrita por William

Shakespeare.

Heliodora, ao introduzir 0 texto de Romeu e Julieta, teee importantes

considera(foes no que lange as origens da pec;a. Ela observa que a obra inspira-s8

primeiramente em uma historieta grega do seculo 111a qual pela primeira vez uma

mulher recorre a pOyao que simula a morie para escapar de urn casamento. Tal tema

S8 lorna popular em 1476 com II Novellino, de Marcuscio, e 0 veneno ja ministrado por

urn ffade. A ensaista afirma que e na Historia novellamente ritrovata di due nobili

amanti, de Luigi da Porto, publicada em 1530, que se apresenta consideravel

semelhanc;a com a obra de Shakespeare: os amantes sao nobres, a cena e em Verona

e as familias sao Montecchi e Cappelletti. A diferenc;a entre estas duas obras, e que na

de Porto, Julieta se apaixona primeiro e mostra-se mais oferecida, ja que naquela

epoca as mulheres eram mais recatadas, mas a obra desenvolve-se de maneira

semelhante. Entretanto, a linha que resulta em Shakespeare, segundo Barbara, e a

historia de Romeu e Julieta em Leo Novelle del Bandello(1554). Este romance tem a

intengao de advertir os jovens que eles devem governar seus desejos e nao cair em

paixoes furiosas. A versao escrita por Brooke e a que mais interessa, pois como sugere

Heliodora, e a que fornece mais subsidios para a versao de Shakespeare, entre eles,

informagoes sobre a Italia, Verona, habitos sociais e outros detalhes uteis para a

criac;ao da pega, alem de toda a trama Iragica. Barbara cila 0 que 0 proprio Brooke

escreveu no comes;o de sua obra, mostrando qual era 0 verdadeiro intuito do autor ao

redigir Romeus and Juliet:

"[ ...] E para lal fim (bom leilor) e escrita esla materia Iragica, para descreverpara Ii um casal de amanles infelizes. que se escravizaram ao desejodesoneslo. desrespeitando a auloridade e 0 conselho de pais e amigos,

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constituindo seus principais conselheiros alcoviteiras bebadas e fradessupersticiosos (as instrumentos pr6prios da falta de castidade), queexperimentam lodas as aventuras do perigo para atingir sua desejada luxuria,usanda a confissao auricular (chave para loda prostituic;;ao e traityao) parapropiciar seus objelivos, e desrespeitando 0 homado nome do casamento legalpara acobertar a vergonha dos encontros roubados, finalmente, por lodos asmeios da vida desonesta, apressando a mais infeliz das mortes_H (BROOKE,apud HEUODORA, 1997, p. 9)

Conforme a propria ensaista afirma, a transformaC;8o que William Shakespeare

opera ao campor sua tragedia de forma mais notavel que a de Brooke. As mudanc;as na

pec;a ficam a cargo da Ama que se lorna mais camica e a personagem de Mercucio que

e criayao do escritor ingles, porem a hist6ria e rigorosamente a mesma. A diferenya

esta no ponto de vista do autor em relayao aos personagens principais. Em vez da

moralizante condenayao da juventude par nao obedecer a seus pais e ouvir alcovileiras

e frades, a enfase da obra shakespereana se encontra no conflito entre as duas

familias, que perturba a ordem da comunidade, como fica claro no pr610go da peya:

CORD - Duas casas, iguais em seu valor,Em Verona, que a nossa cena oslenla,Brigam de novo, com velho rancor,Pondo guerra civil em mao sangrenta.Dos falais venires desses inimigosNasce, com rna eslrela, urn par de amantes,Cuja derrola em Iragicos perigosCom sua morle enlerra a lula de antes.A Irisle hisloria desse amor marcadoE de seus pais 0 odio permanente,So com a morte dos filhos terminado,Duas haras em cena esta presente.Se liverem paciencia para ouvir-nos,Havemos de lutar pra corrigir-nos.

Heliodora conclui dizendo que Shakespeare ao longo de toda sua carreira

dedicou sua mais profunda preocupac;:ao ao bern estar da comunidade, produto da paz

e do born governo. Romeu e Julieta e muito mais que uma narrativa romantica, e

tambi>m "um magistral sermao contra as males da guerra civil" (HELIODORA, 1997,

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p.13).

2.2 RESUMO DA OBRA

A peva narra a hist6ria de dais jovens, que dao nome a obra, se apaixonam

inexplicavelmente, mas devido as rivalidades estabelecidas hi! tempos entre as familias

do casal, Capuleto e Montequio, 0 amor entre os dois torna-se impassivel de ser

vivenciado. A hist6ria tern como cenario a cidade de Verona, as famllias Montequio e

Capuleto vivem em constante conflito perturbando a paz e a ordem da cidade.

Romeu passui urn amor plat6nico par Rosalina, uma linda jovem e sobrinha dos

Capuletos, 0 jovem safre entao pel os cantos per tal amor nao correspondido e carrega

consigo uma tristeza profunda. Shakespeare usa do exagero de ornata na fala de

Romeu para demonstrar seus sentimentos per Rosalina:

Romeu: A transgressao do amor e sempre assim.Meu peito ja carrega tanta dar,Que a seu enxerto s6 a faz maior,Levando a sua. A afei9ao que moslrouMais aumenta a Irisleza que hoje eu sou.o amor e fumo de um suspiro em chamaQue faz brilhar as olhos de quem ama;Conlrariado, e um mar feilo de lagrimas;E a que mais? Criteria na loucura,Trago fel que preserva a d09uraMeu primo, adeus.(1,1)

Este trecho retirado da obra revela Rorneu como urn ser humano profundo

quanto ao amor, com pensamentos sernpre voltados a depressao e ao suicidio,

referindo-se sempre a ele mesmo. Seu primo, Benvolio, a pedido do senhor Montequio,

conversa com Romeu procurando descobrir 0 porque de tanta tristeza e fica sabendo

que e por causa de Rosalina. Mercucio, amigo da familia Montequio decide entao ir ao

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baile de mascaras que acontecera a noite na casa dos Capuletos, para que Romeu veja

Rosalina. Ele aceita 0 convite e atraves da melancolia de Romeu e passivel nos

preparamos para os poss[veis desastres que poderao Dcorrer. 0 personagem preve

seu tn;gico tim. Na cena IV do ato I quando ele esta entrando na testa dos Capuletos,

inimigos da sua familia, Romeu recita em uma fala rep leta de metaforas e de profunda

significado tragico:

ROMEU: E muito cedo. A minha mente IerneAlga que, ainda presQ nas estrelas,Va come car urn dia malfadadoCom a festa desta noile, ever vencidoo lerma desta vida miseravelCom a pena vii da morte inesperada.Que aquele que me Quia em meu percursoMe oriente agora. Vamos, cavalheiros.

Durante a festa, ao encontrar Julieta apaixona-se a primeira vista, esquecenda

Rasalina. 0 amor entre as dais jovens acontece de maneira tao inesperada, em um

instante que nem Romeu e nem Julieta planejavarn e assirn este sentimento e tao

injustificado quanta a odio entre as farnilias. Heliodora analisa que para a aular

britanico, a amor entra pelos olhos e quando isla acontece nenhum dos dais jovens tern

duvidas quanta aos seus sentirnentos e se tornam rna is precipitados em suas a~oes.

Teobaldo, primo de Julieta, percebe a presen~a dos Montequios na festa e quer

tirar satisfacyoes, mas seu tio Capuleto impede que a sobrinho estrague a festa. Antes

que a confusao se arme as Montequios vao embora e assim as dais jovens descobrern

que seu amar e impossivel de ser vivid a, pais pertencem a farnilias inimigas. Romeu,

perdidamente apaixonado decide voltar a casa dos Capuletos e e neste momenta que

acontece a famosa cena da sacada.

A diferen9a transformada em guerra entre as familias nao permitia a

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possibilidade de amor entre sangues de seu sangue. A personagem de Julieta tambem

odeia os Montequios, como tada a sua familia. Porem, ao apaixonar-se a primeira vista

par Romeu, urn legitime Montequio, ela lamenta-se e reconhece que "nasee 0 amor

desse odic que arde".(I, 5). as opostos acabam par se atrair e transformar urn

sentimento que vinga ha anos no seu contrario. Na obra, Shakespeare revela que a

relac;ao com as names e tao forte que a jovem moC;a tenta separar 0 seu amado rapaz

de seu proprio nome:

Julieta: Romeu, Romeu, per que he} de ser Romeu?Negue 0 seu pai. recuse-5e esse nome;Ou se nao quer, jure 56 que me amaE eu nao serei rnais dos CapuletosE 56 seu nome que e meu inimigo:Mas voce e voce oao e Monh~quioQue e Monlequio? Nao e pe. nem mao,Nem bra90, nem fei9ao, nem parte algumaDe homem algum. Oh. chame-se Dutra coisa!Que e que ha num nome? 0 que ehamamos rosaTeria 0 mesmo cheiro com outro nome;E assim Romeu, chamado de outra coisa.Continuaria sempre a ser perfeito,Com outr~ nome. Mude-o, Romeu,E em troea dele, que nao e voce,Fique eomigo.(11,2)

Entretanto, nao ha como Romeu renegar suas arigens, ele e e sempre sera filho

de quem e, par mais que nao haja rna is Montequio em seu nome. Nesta cena, Julieta

pressiona Romeu para que se casem e possam fugir, a jovem diz que no dia seguinte

tudo estara arranjado e despede-se de sua amada.

Ao amanhecer, Romeu procura Frei Lourenyo para que ele possa oficializar

escondido a casamento dos dais. 0 Frei ace ita abenyoar a casamento na ingenua

esperanl):a de que a briga entre as familias cessem: "A uniao que acaba de propor pode

fazer do 6dio puro amor." (II, 3).

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33

A tarde 0 casamento S8 oficializa, e ao sair da cerimonia, Romeu S9 depara

com uma briga entre seus amigos 8envolio e Mercucio com Teobaldo, que estava a

procura de Romeu para tomar-Ihe satisfac;ao pela sua presem;a na festa do dia anterior.

Teobaldo desafia rudemente a Romeu que nao responde a provocaC;30, evitando a

confronto com um parente de sua esposa secreta. Mercucio naD entende a atitude de

Romeu, julgando tralar-S9 de covardia do amigo, e ace ita 0 desafio em seu lugar.

Benv61io e Romeu tentam apartar a brig a entre ele e Teobaldo, mas este fere Mercucio

de morte. Mercucio e urn dos personagens que ganha importancia na obra de

Shakespeare, ele representa a juventude alegre, brincalhona e mostra a vida feliz que

poderia existir em Verona sem a luta sangrenta e gratuita entre Montequios e

Capuletos. Mas 0 jovem tam bern e sacrificado pelo odio que perturba a comunidade e

no leito de sua morte diz:

MERCUCIO: Nao, nao 13tao fundo e nem taolargo quanta uma porta de igreja, mas 130 bastante;mas 13a baslante. Procurem-me amanha e me veraoserio como urn tumulo. Estou liquidado, eu garanto,para este mundo. Malditas as suas casas. Pelas chagasde Cristo, um cao, um gato, um rato, urncamundonga, matam um homern com um arranhaoUm fanfarraa, urn safado, um vilao, que luta parregras aritmelicas - por que raias veio meter-se entren6s? Fui ferido par baixo do seu bra~.(111,1),

Com a morte do amigo, Romeu fica indignado e mala Teobaldo. 0 Principe

Escalus, entao condena Romeu ao banimento e ele val embora para Mantua. Julieta,

triste com a partida de seu amor chora sem parar. Seu pai, venda seu sofrimento,

acredita que seja par causa da morte de seu primo Teobaldo e resolve casa-Ia com

Paris para alegra-la. Oesesperada com tal hipotese, ela recorre ao Frei Louren90 para

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evitar este acontecimento, 0 Frei arma um plano para que ela consiga fugir e encontrar-

se com seu amado. Ela ira tomar uma po~ao que a deixara em estado de letargia

durante vinte e quatro horas. A familia, certa de que a jovem estava moria, realiza seu

enterro. 0 jovem esposo fica sabendo da marie de Julieta atraves de Dutra fonte e,

desesperado, compra um veneno mortal e retorna a Verona. Vai ao tumulo dcs

Capuletos e encontra-se com Paris que havia ida levar flores para a noiva morta. Trava-

se uma luta violenta que termina com a morte de Paris. Romeu entra no mausoleu,

bebe 0 veneno e marre diante do que julga ser 0 cadaver da esposa. Julieta acorda

depois do efeito da poc;ao e ve horrorizada 0 corpo de Romeu; percebe caida ao chao a

adaga com a qual Romeu havia matado Paris, peg a 0 punhal e enterra em seu peito.

As familias chegam e Frei Lourenc;:o relata 0 sacrificio dos jovens apaixonados, cuja

causa e 0 6dio entre suas familias. Ao final da hist6ria tao violento e brutal, as familias

Capuleto e Montequio decidem estabelecer a paz, para que outros casos tristes como

este nao ocorram mais. A figura do Principe Escalus, representa 0 poder judiciario, que

se mostra total mente contra os conflitos e ao final tragico, lamenta nao ter sido mais

energico.

Barbara Heliodora observa que reduzir 0 tempo da hist6ria para quatro dias,

como fez Shakespeare, foi importante para que as emoc;:oes e 0 tempo curto fossem

motivos para impedir que houvesse algum esclarecimento das ac;:oes. (HELIODORA

1997, p. 10).

Shakespeare se utiliza muito de elementos reveladores influenciados por

Seneca, 0 fil6sofo italiano que inspirou 0 desenvolvimento da tragedia e dramaturgia

europeia. Como os pressagios que os protagonistas fazem de suas vidas, prevendo

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sempre um final tragico: ~Juljeta: Meu leito nupcial e minha lumba," (V, 1)

Ou ainda as mortes violentas de Mercucio e Teobaldo, 0 clima assustador do

monumenla dos Capuletos, OU 0 peso do acaso e da fatalidade, ou seja, 0 atraso do frei

Louren/.fO com a carta.

Heliodora afirma que a violencia existente na perra e banhada no lirismo do

dialogo, e a clima especial da obra, a amor entre as dais jovens transparece na imensa

quantidade de imagens de luz, a claridade contrastada com a escuro. Ela interpreta a

amor e a juventude como luz, a tristeza e a dar sao sombrias. Ha imagens do brilho do

sol, das estrelas, do luar, velas, tochas, da rapidez da luz do raia, da escuridao que

chega, de nuvens, sombra, noite. (HELIODORA, 1997, p. 12).

Porem, tudo e complexo, pois as grandes momentos de alegria, como 0

encontro dos dais, a cena da sacada e a despedida acontecem a noite. E na c1aridade,

ocorrem os conflitos, as mortes e 0 proprio banimento de Romeu. Assim a sol parece

ser a luz do odio e nao do amor.

Esse uso e uma tecnica estilistica encontrada na literatura para referir em

linguagem descritiva uma experiemcia sensorial, ou seja, a impressao da passagem do

tempo. De maneira resumida, podemos dizer que Romeu e Julieta veem-se como uma

luz na escuridao que as ronda, e e assim desde 0 momento que ele descreve a amada

logo que a ve pela primeira vez:

Romeu: Ela e que ensina as tochas a brilhar.E no rosto da noile tem um arDe j6ia rara em seu roslo de carvao. [.,(1,5)

Ate mesmo quando Julieta esta sob 0 efeito da po,ao entregue pelo boticario,

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aparentemente morta e Paris cal marta ao lado da amada, ele dlz: "Cova? Nao; junto a

urn esplendor de luz, pois jaz aqu; Julieta; e sua beleza faz desta tumba festa luminosa

[ ... J" (V, 3). Julieta, par sua vez, descreve Romeu como "dia em noite" e "mais branco

do que neve sabre urn corvo." (III, 2).

Esse contraste entre claro e escuro presente no dialogo de ambos pade-se

identificar como uma rnetafora para arnor e 6dio, juventude e maturidade. Tais trechos

metaf6ricos criam 0 que os estudiosos denominaram de ironia dramatica, jtt que a amor

de Romeu e Julieta e uma luz no meio do 6dio de seus familiares, que seria a

escuridao. E par rnais que as dais jovens vivenciem urn relacionamento amorosa na luz

da noite, seus familiares brigam em plena luz do dia. Com este paradoxa existente na

obra, Shakespeare cria urn clima de dilema moral que os amantes tiveram que

enfrentar: serem fie is as suas respectivas familias e honrando a briga que se estende

atraves de gera90es, ou entao, serem fieis aos seus sentimentos para viverem tal amor.

Como sabemos, os protagonistas optaram pel a segunda alternativa.

No final da tragedia, quando "urn a paz triste a manha traz consigo; e 0 sol de

luto, nem quer levantar", segundo as palavras do pr6prio Principe de Verona, a luz e a

escuridao retornam aos seus devidos lugares, e isto reflete a verdadeira escuridao

interior da luta entre as familias diante da tristeza pelos amantes. As familias Montequio

e Capuleto reconhecem seus erras sob a luz dos acontecimentos. Sendo assirn, tudo

volta a ordem natural, devido ao sacrificio dos dois am antes jovens.

Identificamos tambem conflitos nas falas dos persona gens principais, a

linguagem utilizada por Shakespeare demonstra muitas antiteses, como podemos

verificar na fala de Rorneu quando se refere a uma briga que ocorreu na pra9a de

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Verona entre alguns parentes das familias Montequio e Capuleto:

Romeu: [... J Entao amor odiendo, odic amoroso,Oh qualquer coisa que nasceu do nada!Densa teveza, vaidade lao seria,Caos deformado de bela aparencia!Pluma de chumbo, fuma9a brilhante,Fogo frio, saude doentia,Sana desperto que nega a que e!Esse amor sem amor e 0 que eu sinlo.(.(1,1)

E assim a obra apresenta varias formas de representar os opostos: Montequios

X Capuletos, amor X odic, 0 novo X 0 velho, luz X escuridao, sagrado X profano, 0 bern

x 0 mal, a paz X a guerra e a vida X a morte.

2.3 A VIOL~NCIA

Num primeiro momento da obra Romeu e Julieta, de Shakespeare, e passive1

notar a teo ria do desejo mimetico, 0 qual Rene Girard desenvolveu antes mesma da

teoria da violencia, que e 0 principio da forrnalYao das sociedades.

A teoria, desenvolvida no capitulo 1 desta rnonografia, remete ao desejo de ser

ou ter algo que 0 outro e ou tern. Isto e, ela reflete sobre a questao de que nossos

desejos nunca sao originais, eles sernpre serao de forma triangular por meio de um

mediad or. 0 sujeito deseja 0 que 0 seu modelo e ou tern, e que 0 sujeito acredita ser 0

motivo de felicidade e SenSalYao de completo de seu modelo.

Em Romeu e Julieta, as duas familias se tornaram rivais em algum tempo da

existemcia das gera90es passadas, por algurn motivo que nao e apontado na obra de

Shakespeare. Essa rivalidade e formada atraves do desejo mimetico, au seja, ha

tempos surgiu por parte de uma das familias 0 desejo de ter 0 que 0 outro tinha ou ate

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mesma desejava. Conforme a teo ria do desejo mimetico existe uma aproximac;ao entre

sujeito e modele, e a mediag2lo interna lorna-se simetrica. islo e, reciproca.

Esta 16gica mimetica, imitativa e ate apropriativa acaba per lanc;ar Capuletos e

Montequios em urn cicio de violencia, pois a satisfa9ao de ter au ser 0 que seu modele

e ou tern, e apenas mornentimea e entao as familias pass am a desejar Dutro objeto que

seu modele deseja. Em decorrencia dos individuos irem se ternando mais e mais

semelhantes, acabam par transformarem-se em obstaculos urn para 0 outro na

realizary<3o de tal desejo.

Na pec;a de Shakespeare em analise, observamos que os dois jovens morrem

per serem vitimas da brutal guerra entre suas familias, de urn odio cuja origem ja nao e

mais identificada, denominada por Girard de desejo metafisico, isto e, quando 0

desejo mimetico deixa de ter relayao com 0 objeto e se concentra cad a vez mais no

mediad or. Conforme foi descrito no capitulo 1, 0 desejo metafisico se expande por

"contagio generalizado", ou seja, ja nao importava mars quem era 0 modelo e 0 sujeito

entre as familias. A rivalidade tornou-se reciproca se propagando e causando urn cisma

na comunidade, Capuleto de um lado e Montequio de outro. Como a violemcia e a

rivalidade aumentavam gradativamente, Girard aponta este fenomeno como jogo

mimetico, no qual todos os membres da comunidade se envolveram e desencadearam

o que 0 estudioso chamou de ucrise sacrificial", ou seja, a luta de todos contra todos.

Rene Girard observa em seu livre A violencia e ° sagrado, que aqueles que

nao querem ser contaminados por uma doenya, nao deverao entrar em contato com

ela. Assim, aqueles que nao quiserem ser tornados pela furia homicida au, ate mesmo

mortos, nao devem entrar em cantata com ela tambem, pais no final das contas a

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primeira can sequencia quase sempre acarreta na segunda. Este fato pade ser

observado em Romeu e Julieta, quando Teobaldo mata Mercucio, Romeu esta em

cantato com a furia do primo de Julieta. Contaminado por tal sentimento 0 jovem rapaz

desafia seu inimigo e consequentemente 0 mala. Girard afirma que fazer violencia ao

violenlo significa deixar-se conlaminar por sua violencia. (GIRARD, 1972, p. 41).

Neste sentido de represalias e mais represalias, podemos analisar a questao da

violencia vingativa. Primeiramente e MerclIcio, amigo de Romeu, que e marta em praya

publica pelo primo de Julieta, Teobaldo. Romeu decide entaD vingar a marte do amigo e

acaba par desafiar Teobaldo a urn duelo. No fim, Romeu mata seu inimigo e entaD,

para por tim a essas rep res alias e acabar com 0 cicio de violemcia estabelecido ha

tempos entre essas familias, 0 Principe expulsa Romeu de Verona e caso ele nao va

embora a penitencia entao sera a merte.

A figura do menos detalhado, mas tambem significativo primo de Julieta,

Teobaldo, deixa claro 0 fato de que em cad a gerac;ao ira aparecer ao menos um

individuo cujo temperamento conduz a preservac;ao do odio entre as familias: uf ... ] Par

meu sangue que corre honrado, nao creio ser mata-Io algum pecado." (1,5).

o autor traz a questao da guerra civil para dentro da pec;:a, mostrando como a

violl§ncia desenfreada termina em tragedia e dor. A violencia tambem fica demarcada

por todas as oposic;oes existentes na obra que ja foram citadas, tais elementos

contrarios sao muito fortes e demonstram os extremos da oposiC;ao.

2.4 0 SAGRADO

A palavra 'sagrado' tem, segundo 0 Aurelio Eletr6nico, na forma adjetiva, seis

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acepc;oes, variando entre imanencia e transcendencia, entre profano e 0 sagrado

propriamente dite. 0 substantivo relaciona-se tambem as variac;6es acima, vista que

sagrar tern acepc;6es naD transcendentes tambem.

Sagrado: Que se sagrou ou que recebeu a consagragao. Concernente aseoisas divinas, a religiao, aos ritos ou ao cullO; sacro, santo. Inviolavel,purissimo, santo, sacrossanto - sagrado do amor.Profundamente respeilavel; veneravel, santo. Que nao deve ser locado,infringido, violado - as sagrados direitos do homem. (DICIONARIO Aurelio Elelr6nico).

As obras mais antigas, como 0 livro dos martos do antigo Egito, ou 0 Velho

Testamento, 5e apresentam como elementos fundamentals neste sentido, sagrado.

Vemos assim, como 0 sagrado em Romeu e Julieta se insere na defini<;ao do

dicionario Aurelio Eletr6nico. Uma vez que a amor repentino entre as dois e

"inviolavel"; "purissimo" e "sagrado do amor". A cena que retrata 0 primeiro encontro

entre os dois amantes na festa dos Capuletos, oscila entre dialogos profanos e

sag rados, ainda que prevale<;a 0 sagrado:

ROMEU: Se a minha mao profana esse sacrario,pagarei docemente 0 meu pecado:meu labio, peregrino temerario.o expiara com um beijo delicado.JULIETA: Bom peregrino, a mao que acusas tantoRevela-me um respeito delicado;Juntas, a mao do fiel e a mao do santoPalma com palma se terao beijadoROMEU: Os santos nao tem labios, maos, sentidos?JULIETA: Ai, tem labios apenas para a reza.ROMEU: Fiquem as labios, com as maos, unidas;Rezem tambem, que a fe nao as despreza.JULIETA: Im6veis, eles ouvem as que choram.ROMEU: Santa, que eu calha a que as meus ais imploram. (beijam-se)Seus labios meus pecados ja purgaram.JULIETA: Ficou nos meus a que Ihes foi tirado.ROMEU: Dos meus labios? Os seus e que as tentaram;Quero-os de volta. (beija-a)JULIETA: E tudo decorado!(1.5)

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o personagem de Romeu S8 coloca como urn peregrina, mas ao mesma tempo

profanando a propria mao par ter tocado as maos de Julieta. A expressao do "beijo-

delicado", na qual Romeu se refere, tambem indica algo carnal e profano ligado

diretamente ao pecado: lOse a minha mao profana esse sacrario, pagarei docemente

meu pecado: meu labia, peregrina temerario, a expiara com urn beijo delicado"

o amor intenso e apresentado como S8 os sentimentos carnais e espirituais S8

entrela.yassem e tornassem todos as momentos magicos, profanos e sagrados ao

mesmo tempo. Romeu, 0 peregrina pecador, purgando-se dos seus pecados atraves do

beijo dado na santa Julieta e, desta forma "santo" tambem se torna.

Para Rene Girard,

"0 sagrado e tudo 0 que domina 0 homem, e com tanta mais certeza quantomais 0 homem considere-se capaz de domina-Io. Inc1ui, portanto, entre outrascoisas, embora secundariamenle, as tempestades. os incendios das florestas eas epidemias que aniquilam uma populacao. Mas e tambem. e principalmente,ainda que de forma mais oculta, a violencia dos pr6prios homens, a violenciavista como exterior ao homem e confundida, desde entao, com todas as fon;:asque pesam de fora sobre ele. E a violencia que constitui 0 verdadeiro coracao ealma secreta do sagrado." (GIRARD, 1972. p. 45).

De acordo com a teoria de Girard, 0 amor entre os dois amantes e sagrado por

ser algo dominador, 0 qual nem Romeu e nem Julieta conseguem controlar. Ah~m de

significar uma violencia contra os dois e suas familias, ja que sao inimigos mortais como

e apontado na cena V do primeiro ato com as falas de Romeu e tambem de Julieta

quando descobrem por quem se apaixonaram:

Romeu: Entao ela e Capuleto?Entreguei minha vida ao inimigo.

Julieta: Nasce 0 amor desse 6dio que arde?Vi sem saber, ao saber era tarde.Louco parto de amor houve comigo,Tenho agora Que amar meu inimigo.

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Girard diz que a marte e a maior violencia que pade acerrer a um homem.

(GIRARD, 1972, p. 46). Sendo assim, a violenta morte dos jovens amanles foi decisiva

para liquidar de uma vez por tad as com a violencia que perturbava a paz da sociedade

de Verona.

Escalus, a Principe de Verona, e a mediador entre as famllias de Romeu e

Julieta, tentando estabelecer a ordem por meio de seu pader. Tern livre arb it rio para

decidir entre 0 bern e 0 mal, independente da opiniao alheia. 0 principe e uma Figura

que retrata a forg3 politica do rei na epoca Tudor. A pega mostra um perfil que, embora

pacificador, 0 principe passui autoridade suficiente para ditar as regras que vigoram em

Verona. Sua postura e distante do povo justamente para manter sua posig2lo superior

perante seus suditos; sua linguagem e semelhante a de um membra do clero, sempre

citando palavras ligadas a religiao, como "perdao", "sangue irmao", "paz", palavras

fortes e canvincentes que impoem contrale e obediemcia.

2.4.1 Os rituais

Dentra desta questao do sagrado, podemos abordar as rituais existentes em

Romeu e Julieta, que a apraximam da teoria desenvolvida par Rene Girard sabre a

sagrado e a violencia.

Conforme afirma Girard, as rituais visam regular aquila que foge a qualquer

regra.(GIRARD, 1972, p.132). 0 ala rilual pode ser definido como um conjunlo de

gestas, palavras e formalidades, geralmente imbuidos de um valor simb6lico, cuja

performance e, usualmente, prescrita e codificada par uma religiao au pel as tradi((oes

da comunidade. Os rituais eram habilos de anligas civilizayoes que, para viver melhor

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com seu pavo e com 0 mundo, criavam costumes considerados sag rados, que se

tornavam rituais par serern reitos como uma maneira de fortalecer as seus vinculos com

o universo. Tambem eram usados para a conquista de realizact0es materiais, no

fortalecimento do espirito, na colheita dos bons frutos, na saude e no amor, assim

como, hoje, seNem para lapidar enos ensinar algo superior.

o casamento e urn rita OU sacramento importante que requer alguma

preparag8:o. Ele tern como func;:ao afirmar 0 amor entre duas pessoas publicamente e

aben90ar essa uniao. Segundo 0 Dicionario ilustrado de simboios, Wo casamento e

urn simbolo bastante difundido, que exprime a uni2lo de elementos complementares

opostos, que naD se encontram rna is em concorrencia ou oposiy2lo, mas sim agem de

maneira complementar, e em sua complementa9ao reciproca tornam-se uma unidade

superior, que significa mais que a simples soma de cada um dos componentes".

(BIEDERMANN, 1993, p. 76).

Em Romeu e Julieta, os deis jovens, atraves do amor mutuo que sentem,

deixam de ser rivais e de lutarem em lados opostos e por meio do casamento tornam-se

uma unidade superior, complementando-se um ao outro.

Par tratar-se de ser um matrimonio, conforme Biedermann explica, geralmente

e uma comunica921o publica dirigida a todo um grupo social, do novo estado que

substitui 0 da virgindade e do celibato, levando a assun9ao, reconhecida pelo direito

publico, de novas direitos e deveres dos individuos em questao. Na obra de

Shakespeare, ate a morte dos dois jovens, 0 matrimonio deles e mantido em segredo

pelo fato das familias serem inimigas. Concluindo a defini9210 do casamento, ainda

pode-se dizer que, como Verona se determinava como uma sociedade monogamica, a

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casamento e considerado indissoluvel. Assim, explica-se 0 desespero de JUlieta ao

saber que seu pal queria que ela casasse com Paris.

Na peva, 0 Fre; celebra a cerimonia em 5igilo, abenvoando as neivas e neste

case nao ha testemunhas, nem padrinhos e nem convidados que deveriam estar

assistindo a celebrac;:ao. Em Romeu e Julieta a casamento e urn rita que traz grande

peso no sentido de ser algo que ja esta malfadado, pois suas familias sao rivals e as

dais jovens vao contra uma guerra que se estende par anos. a c!erigo fez de tude para

auxiliar 0 casal, rompeu as limites da obediencia e da santidade de seu ofieic,

contrariou as principios da Igreja, pois acreditava que esse amor era mais importante

que tudo e que estabeleceria a paz em Verona.

Outro ritual que aparece na obra, e que seja talvez, mais importante e

destacado que 0 casamento e 0 funeral. Este ritual tambem e urn meio simb6lico,

tradicional e publico. E uma forma de expressar os nossos pensamentos, sentimentos e

conviq;6es acerca da morte de uma pessoa que gostamos. A cerimonia funeraria e rica

em historia e abastada com simbolismo, ajuda-nos a reconhecer a realidade da morte,

da valor a vida da pessoa morta, encoraja a expressao da dor que esta consistente com

os valores Gulturais, promove apoio a quem sofre, permite aceitar a fe e as convic90es

sobre a vida e a morte, e oferece a continua9ao e esperan9a para viver.

Na pe9a de Shakespeare, devido a constante guerra entre as famflias, ha varias

mortes. E par isso, 0 funeral acaba par ser um ritual mais importante e constante na

abra. Os funerais, em Romeu e Julieta, faram meios de demonstrar 0 peso das

convic9oes e valores das duas famflias sabre a vida e sobre a marte como individuos, e

como comunidade.

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A morte dos amantes de Verona antes de negar a realidade para se proteger

contra algo que traria dar e sofrimento, ele confirma, primeiramente 0 amar que existia

entre ambos. A tragedia mostra que as dois lados que viviam em pendencias e

represalias estavam errados. Assim, as familias Capuleto e Montequio 56 puderam

perceber isse no enterro dos seus filhos.

No livro escrito par Alvarez, 0 Deus Selvagem, podemos constatar uma

explicac;:ao plausivel para 0 ata violento que as dois amantes cometeram contra 5i, pois

as suicidios nas sociedades antigas eram vistas como algo irreal, au seja, como se 0

crime contra si fosse cometido com a certeza de que 0 propria suicida naD iria morrer

realmente. Este pensamento magica, segundo Alvarez, seria 0 mesmo que persiste em

alguns suicidios politicos modernos, nos quais jovens creem na ideia de que nada,

ah~m da sua pr6pria imolayao poderia configurar uma maneira eficaz de protestar contra

algo. (ALVAREZ, 1999, p.63).

Um exemplo citado pelo autor em seu livre, que cabe a obra de Romeu e

Julieta e do estudante de Lille na Franc;:a de dezenove anos, que deixou um bilhete em

que dizia ser "contra a guerra, a violencia e a loucura destrutiva dos homens [ ...] Se eu

morrer, nao chorem. Fiz isso porque nao podia me adaptar a este mundo. Fiz isso como

protesto contra a violencia e para chamar a atenc;;ao do mundo, do qual s6 uma parte

muito pequena e tratada aqui. A morte e uma forma de protesto, desde que seja

desejada por um ser humano pra si mesmo. Pode-se muito bem recusa-Ia."( ALVAREZ,

1999, p. 63).

Os suicidios dos dois jovens foi tambem um protesto contra a guerra violenta

que se instaurou entre as familias hi! anos. Nao venda melhor soluc;;ao, uma vez que

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naD podiam viver 0 arnor que sentiam e naD tendo como enfrenta-Io, eles optam pel a

morte, como podemos identificar no ato V, cena I:

Romeu: Eis 0 seu curo, urn veneno pra almaQue mala muito mais par este mundoQue esle pO, que ninguem pede vender.Voce comprou veneno, nao vendeu;Adeus, compre com ida e ganhe peso.Eu nao comprei veneno, comprei cura;E bebo ao meu arner, na sepultura

Conforme as apontamentos de Alvarez, por tras dos horrores e da mistura de

altruismo e egoismo dos dais jovens, e passivel que exista a magia de se acreditar que

apesar de todas as evidencias em contra rio, eles acabariam conseguindo que suas

vontades valessem postumamente, desde que suas martes fassem consideradas

suficientemente terriveis. Per fim, na obra de Shakespeare, Romeu e Julieta

conseguiram que as rivalidades e a guerra entre Montequios e Capuletos se

extinguissem.

Para finalizar a questao do suicidio, Alvarez observa que "para que urn suicidio

seja reconhecido como tal e preciso que a suicida deixe um bilhete inequivoco ou um

cenario de tal forma inconfundivel que nao deixe outra alternativa para os

sobrevivenles."(ALVAREZ, 1999, p. 96). Em Romeu e Julieta, ao final da pe9a quando

os corpos dos dais jovens sao encontrados no jazigo da familia Capuleto, 0 Principe

Escalus pede uma explicavao para as acontecimentos e e entao que 0 Frei Lourenvo

conta toda a trama e para confirmar sua hist6ria 0 criado de Romeu entrega a carta que

deveria ser entregue ao senhor Montequio assim que 0 jovem cumprisse 0 ato de

violencia contra si, tomando 0 veneno que comprara do boticario:

Principe: 0 que 0 frade narrou esta na carta;

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o seu arnor, a naticia da marte,E diz que ia comprar certo venenoDe um pobre botieMo e que, com ele,Viria aqui, pra morrer com Julieta.(V,3)

Inumeros criticos liten:irios refletiram sabre 0 tema da marte dos amantes na

obra de Shakespeare e concluiram que 0 final tragico foi uma puni9ao justa para as

famillas que brigavam entre si.

Como urn dos objetivos principais desta monografia, iremos analisar a ritual do

sacrificio existente na obra. 0 sacrificio tern como significado no Dicionario de

simbolos, a ayao de tornar algo au alguem em sagrado. Quanta mais precioso a objeto

au 0 ser oferecido, mais a energia espiritual recebida em troca sera poderosa,

quaisquer que sejam as fins purificadores au propiciat6rios. (CHEVALIER E

GHEERBRANT, 2005, p. 794). Tal conceilo auxilia para enlendermos 0 senlido que

Rene Girard representa em seus estudos. Para ele, 0 ritual de sacrificio ira sempre

buscar uma renovaC;8o de uma paz tao grande que a comunidade ainda naD conheceu,

aquela que, apes a morte, resultara na unanimidade em torna da vitima expiat6ria.

(GIRARD, 1972, p. 133).

Na obra de William Shakespeare, 0 fato de Romeu e Julieta cometerem 0

suicidio, acabando com suas vidas em protesto par nao pocterem viver 0 amor que

sentiam devido a guerra civil em que permaneciam suas familias, pade ser considerado

urn mecanismo de bode expiatorio. 0 sacrificio tern func;ao social, sua primeira

intenC;80 e eliminar as desavenc;as, as rivalidades, os ciumes, as disputas entre

pr6ximos; e estabelecer a harmonia da comunidade, e refonrar a unidade social

Tal mecanismo era utilizado nas sociedades antigas para expurgar 0 mal e a

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viol€mcia que cercavam a comunidade, assim como tambem aconteciam em festas e

comemora90es para agradecer aDs deuses pela boa col he ita au pelo born tempo.

Nestas sociedades, existiam vitimas especificas para serem sacrificadas, que deveriam

abarcar certas caracteristicas. Como fai citado no capitulo 1, estas vitimas naD

poderiam ser escolhidas ao acasa, normalmente elas eram marginais a sociedade, pois

ap6s serem sacrificadas nao poderiam despertar 0 desejo de vinganya em quem quer

que seja, para que nac houvessem mais retalia(foes.

Os protagonistas da tragedia de Shakespeare se prestam adequadamente as

caracteristicas da vitima sacrificial: sao ambos muito jovens e puros, naD passu indo

"maculas" que os ligassem diretamente a violencia em questao, ou seja, a guerra civil

causada pel as suas familias, e isto podemos observar na fala do senhor Cap uleta

quando seu sobrinho Teobaldo percebe a presenc;:a intrusa de Romeu na festa e quer

tirar satisfac;:5es com os inimigos:

Capuleto: Fique mais calma, primo, eo deixe em paz.Ele age qual perfeita cavalheiro;Verona s6 a hanra, na verdade,Como alguem de virtude equilibrada.Nem par tada a riqueza da cidadeEu permito que 0 insulte em minha casa.(1,5)

Julieta e Romeu eram considerados marginais a comunidade, pOis nao

exerciam ainda suas respectivas func;:oes perante a sociedade. A jovem, pela sua idade

naD poderia procriar, func;:ao destinada as mulheres da epoca e Romeu nao poderia

constituir uma familia e trabalhar para sustenta-Ia, responsabilidade destinada aos

homens. Alem de que, seus direitos e deveres eram praticamente inexistentes. A brutal

violencia que Romeu e Julieta cometeram contra si mesmos tornou-se maior e mais

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violenta do que a briga entre as familias e e exatamente este 0 principia da vitima

sacrificial.

Como constatou Girard em seus estudos, "0 sacriflcio ritual baseia-s8 em uma

dupla substituigao; a primeira nunca percebida e a substituic;ao de todos as membros

da comunidade per urn unieo; ela S8 funda no mecanismo da vitima expiat6ria. A

segunda, propriamente ritual, superpoe-se a primeira; ela substitui a vitima original par

uma vitima pertencente a uma categoria sacrificavel." (GIRARD, 1972, p. 133). Assim,

Romeu e Julieta sao exemplos paradigmaticos de viti mas sacrificiais, S8 fundem com a

comunidade de Verona, especificamente, com as suas familias, as Montequios e as

Capuletos, responsaveis pela violencia. Nesta fusaa, eles simbolizariam tad a a violencia

que assola a paz da sociedade.

Harold Bloom Gita em seus estudos a conclusao que Molly Mahood chegou ao

analisar cento e setenta e cinco trocadilhos e jogos de palavras em Romeu e Julieta:

para ela, estes recursos foram utilizados, no seu entendimento, porque a pec;a e uma

charada, em que "a Morte e desde logo rival de Romeu e, finalmente, conquista Julieta".

Por tal razao 0 final tragico dos dois amantes e digno, ja que correram ao encontro de

tal desfecha. (MAHOOD, apud BLOOM, 1998, p. 131).

Bloom afirma que Shakespeare, "abstem-se de atribuir culpa, seja a beligerante

geraC;ao dos pais dos amantes, seja aos pr6prios amantes, seja ao destin~, seja ao

tempa, a sarle, aas astras"( BLOOM, 1998, p. 131). E ista e abservada tambem nos

estudos de Girard, que argumenta que para 0 mimetismo instintivo nao existem

culpados, e na violencia que se desencadeia nao e possivel apontar de qual dos lados

partiu 0 primeiro ataque.

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so

CONSIDERA<;:OES FINAlS

Esta monografia teve como objetivo 0 estudo da pec;a teatral Romeu e Julieta

a luz da teoria sabre a violencia e 0 sagrado de Rene Girard. Num primeiro momento,

me ocupei da fundamentac;ao teo rica e me baseei na teorizac;ao de Girard e tambem na

pesquisa da professora Mail de Azevedo Marques sabre 0 te6rico frances.

Depois, destaquei as origens da peya, focalizando as obras nas quais

Shakespeare se inspirou para escrever a obra em questao. Em seguida fiz um resume

da pec;:a para situar 0 leitor, analisando as caracteristicas marcantes do texto

shakespeariano. No entanto, a parte central do trabalho foi inserir a teoria de Girard na

pe~a Romeu e Julieia de Shakespeare.

Meu estudo, as analises e comparagOes da pec;a teatral; Romeu e Julieta de

William Shakespeare com as teorias desenvolvidas por Rene Girard me conduziram a

concluir que a morte por amor descrito por Shakespeare e, alem de tn3gico e terrivel,

um sacrificio que os dois amantes decidiram empreender para demonstrar as suas

familias 0 que a violencia desmedida e capaz de resultar.

Apesar de nao se saber a data exata de quando a pec;:a teatral estudada foi

escrita, os estudiosos acreditam que tenha sido entre 1592 e 1595, periodo do reinado

de Elisabeth I (1558-1603), onde a Inglaterra se eneontrava em um periodo de paz e

ascensao, conhecido como os anos de ouro. As obras de Shakespeare seguiam

praticamente a mesma tendencia literaria, elas retratam e criticam costumes sociais de

maneiras diversas. Pode-se dizer que atraves da arte teatral, Shakespeare, criticou leis

e conceitos que nao eram aceitos ou eram desprezados no seculo XVI, tais como 0

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preconceito feminino e 0 desprezo dos atores artesaos. Para amenizar 0 impacto que a

critica poderia causar no telespectador, a autor utiliza 0 amor como pano de fundo em

seus enredos, deixando as telespectactores curiosos com a resoluc;:ao dos enlaces

amorosos dos personagens. Muitos estudiosos concordam que a influencia dos

personagens shakespearianos exerce na vida cotidiana tern side quase tao imensa

quanta seu efella na literatura p6s-shakespeariana.

Os lemas em questao, a violemcia e 0 sagrado, talvez ainda nao sejam muito

vistas na literatura universal, por ser muito abrangentes, profundos e de rigor cientifico.

Nao podemos abler uma conclusao 6bvia para esses fenomenos que modificam tantas

comunidades e interferem na vida de milhares de pessoas. 0 importante da peya

estudada e que a sacrificio dos jovens apaziguou a violemcia e impediu a explosao de

maiores conflitos que decorriam das rivalidades entre as familias cad a vez mais

crescentes. 0 amor transformou a vida dos persona gens e as direcionou para muitos

caminhos. Os leitores e telespeetadores, contudo, fieam tristes com a drama final do

amor na tragedia.

A questao analisada por Girard abre espayo para uma diseussao polemica, pois

a ideia de que somos lodos governados pelo desejo mimetieo e islo deseneadeia

eomportamentos de apropria9ao mimetica que geram conflitos e rivalidades e por isso a

violencia seria um eomponente natural das soeiedades humanas que s6 pode ser

expurgada atraves do sacrificio de viti mas, conheeidas como bodes expiat6rios em

soeiedades que nao existe a Poder Judiciario.

Assim, eoneluo que a obra de Shakespeare, Romeu e Julieta, representa

as sociedades existentes nesle mundo. Primeiramenle, 0 amor que e a sentimento que

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sobrevive, at raves dos seculos, e transforma as pessoas. Somes entaD, nos seres

humanos, com nassas sentimentos e nossas ac;:6es representados diante das

consequencias da vida. A pecta tambem engloba a violencia existente nas sociedades

primitivas e 0 mecanismo do bode expiat6rio. que muitas vezes foi utilizado, quando as

leis naD existiam ou nao davam conta de estabelecer a paz dentro das comunidades.

Tais temas sao abordados e representados atraves do enredo de Shakespeare e

apresentac;oes teatrais.

o autor ingles tambem faz criticas atraves de suas obras, enos abre as olhos

para algumas realidades que fazem parte de nossas vidas e servem muitas vezes para

o nossa crescimento, como a uniao das familias que guerreavam em Romeu e Julieta,

ele transmite a ideia de que nao e necessario que uma tragedia ocorra na vida para

reconhecer 0 erro e entao dar valor ao que se perdeu por estar cege de 6dio e rancor.

Remeu e Julieta, a obra "romantica~ mais popular do grande dramaturgo,

William Shakespeare, reconstr6i 0 ambiente da violemcia e do sagrado enos possibilta

uma analise que desvenda seus mecanismos. Pede-se, entae, considerar que a obra

reflete aspectos importantes do desejo mimetico e da vitima sacrificial existentes nas

civilizayoes desde e cemeyo dos tempos.

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