A sociedade humana

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5/10/2018 Asociedadehumana-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/a-sociedade-humana 1/18 Todos os dias, desde o momento em que desperta pela manhã até o instante em que, à noite, volta a adormecer, você convive com outras pessoas. Seja em casa, com sua família, seja no trabalho, numa roda de amigos, no "bate-papo" infor- mal, nos momentos de lazer. no cinema, no campo de futebol, na igreja, você está sempre rodeado de outros seres humanos. Mesmo estando sozinho, o sim ples ato de escovar os dentes en- volve muitas outras pessoas: os químicos que elaboraram o cre- me dental, os operários que fabricaram a escova de dentes, os que fizeram a embalagem e assim por diante. Você nunca está inteiramente só. Você vive em sociedade, participa de grupos sociais e convive com muitas pessoas. Em uma palavra, você é um ser social. 7

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Todos os dias, desde o momento em que desperta pela

m anhã até o instante em que, à noite , v olta a ado rm e ce r, v oc ê

convive com outras pessoas. Seja em casa, com sua fam ília ,

seja no trabalho, numa roda de am igos, no "bate-papo" infor-

mal, nos momentos de lazer. no cinema, no campo de futebol,

na igreja , você está sem pre rodeado de outros seres humanos.

M esm o esta nd o so zinh o, o sim ples ato de escovar os dentes en-

volve m uitas outras pessoas: os quím icos que elaboraram o cre-

me dental, os operários que fabricaram a escova de dentes, os

que fizeram a em balagem e assim por diante . Você nunca estáinteiram ente só. V ocê vive em sociedade, partic ipa de grupos

sociais e convive com muitas pessoas. Em um a palavra, você é

um ser social.

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CAP ÍTULO 1 A so cie dad e h um an a

. ~ . t.· ••.

Observe e responda:

1. Observe a foto. Quem são as pessoas que aparecem nela?

2. O que elas estão fazendo?

3. Otema deste capítulo é a sociedade humana. Que relação pode ser estabelecida entre essacena e o estudo da sociedade?

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1ISomos todos seres sociais

Desde as suas origens, há cerca de 190 mil anos,

o h omo sa pie ns sa pie ns, ou h omo sa pie ns m od ern o,

espécie à qual pertencemos, se constituiu por meio

do grupo. Assim. como outros animais que vivem

agrupados, os primeiros seres humanos só conse-

guiram sobreviver nas difíceis condições do mundo

que os cercava porque contaram com o apoio e a

solidariedade do grupo a que pertenciam.

Essa dependência do indivíduo em relação ao

grupo teve início, assim, no momento mesmo em

que surgiram os primeiros seres humanos, e conti-

nua até hoje. Uma de suas características é a co-

municabilidade humana, ou seja, a capacidade de

o indivíduo se comunicar com seus semelhantes

de forma a transmitir id éias, sentimentos, vonta-

des, interesses, emoções. Essa capacidade evoluiu

ao longo do tempo, passando de gestos e sinais à

articulação de sons, ao desenvolvimento da lingua-

gem, às primeiras manifestações artísticas - ainda

no Período Paleolítico (190000 a.C.-8000 a.C.) - e àescrita, criada em diferentes épocas em diversas re-

CAP ÍTULO 1 A so cied ad e h um an a

giões do planeta, como a Mesopotâmia (4000 a.C.),

o Egito (3000 a.C.), a China (1700 a.C.) e a América

Central, (900 a.C.) - datas aproximadas.

Hoje, utilizamos também novas formas de co-

municação (a internet. por exemplo), mas algu-

mas das que foram criadas por nossos ancestrais

mais remotos, como a linguagem, ainda continuamem vigor.

A tendência do ser humano a viver em grupo

pode ser comprovada de forma positiva pela ex-

periência empírica, cotidiana: seja na escola, na

família ou no país, fazemos parte de um conjunto

mais amplo de pessoas, de um grupo social, ligado

a um conjunto ainda maior, a sociedade em que

vivemos (veja os capítulos 3 e 4). Mas há também

outras formas de comprovar a necessidade da vida

em grupo para o desenvolvimento do ser humano.

Uma delas é a experiência de crianças que vivem

entre animais e em situação de isolamento em re-

lação a outros indivíduos da espécie humana. Va-mos conhecer uma dessas experiências?

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CAP ÍTULO 1 A soc iedade humana

Um cas o in tr ig an te

Em 1797, um menino seminu foi visto na flo-resta de Lacaune, na França. Mais tarde, foi regis-

trado seu aparecimento no distrito de Aveyron.

Descalço, apenas alguns farrapos de uma velha

camisa (sinal de algum contato anterior com se-

res humanos) cobriam parte de seu corpo. Sem-

pre que alguém se aproximava, ele fugia como um

animal assustado.

Era um menino de cerca de 12 anos. Seu cor-

po estava repleto de cicatrizes. Provavelmente

abandonado na floresta aos 4 ou 5 anos, foi objeto

de curiosidade e provocou discussões acaloradas,

principalmente na França.

Após sua captura, verificou-se que Victor (as-

sim passou a ser chamado) não pronunciava ne-

nhuma palavra e parecia não entender nada do que

lhe falavam. Apesar do rigoroso inverno europeu,

rejeitava roupas e também o uso de cama, preferin-

do dormir no chão. Locomovia-se apoiado nas mãos

e nos pés, correndo como os animais quadrúpedes.

C om o nos to rnam os hum anos?Victor de Aveyron tornou-se um dos casos

mais conhecidos de seres humanos criados em

condições de liberdade em ambiente selvagem. Al-

guns médicos franceses afirmavam que o menino

sofria de idiotia, uma deficiência mental grave.

Segundo eles, teria sido essa a razão pela qual os

pais o haviam abandonado.

Opsiquiatra Jean-Marie Gaspard Itard não con-

cordava com a opinião dos colegas. Quais as conse-

quências, perguntava ele, da privação do convivio

social e da ausência absoluta de educação para a

inteligência de um adolescente que viveu assim, se-

parado de indivíduos de sua espécie? Itard acredi-

tava que a situação de abandono e afastamento da

sociedade é que explicava o comportamento dife-

rente do menino. Discordava, assim, do diagnóstico

de deficiência mental para o caso.

A partir de então, Itard trabalhou diretamente

na educação do menino. Sua experiência foi regis-

trada no livro A educação de um homem selvagem,

publicado em 1801. Nesse livro, Itard apresenta seutrabalho com o menino de Aveyron, descrevendo as

etapas de sua educação: ele já é capaz de sentar-se

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convenientemente à mesa, de se servir da quanti-

dade necessária de água para beber, de levar certosobjetos ao seu terapeuta; diverte-se ao empurrar

um pequeno carrinho e começa a ler (veja a seção

F i lme s suger ido s no fim do capítulo).

Cinco anos mais tarde, Victor já confeccionava

pequenos objetos e podava as plantas da casa. Es-

ses resultados pareciam confirmar a tese de Itard,

segundo a qual os antigos hábitos selvagens do

menino e sua aparente deficiência mental eram

apenas e tão-somente resultado de uma vida afas-

tada da sociedade.

Com base nessa experiência, Itard formulou

a hipótese de que a maior parte das deficiências

intelectuais e sociais não é inata, mas tem sua

origem na falta de socialização do indivíduo con-

siderado deficiente e na ausência de comunicação

com seus semelhantes, especialmente de comuni-

cação verbal.

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Aproximando-se de uma visão sociológica, o

pesquisador concluiu que o isolamento social pre-judica a sociabilidade do indivíduo. Ora, a socia-

bilidade, ou seja, a capacidade de se comunicar e

interagir com outros seres humanos, é o que torna

possível a vida em sociedade.

CAP ÍTU LO 1 A so c ie da de h um an a

Kam ala e os lobos

Não seria, entretanto, o caso de Victor deAveyron uma exceção? Bastaria esse exemplo para

demonstrar que o ser humano é um animal social,

que precisa viver em sociedade para se tornar ver-

dadeiramente um ser humano?

oMITO DE TARZAN

Nocomeço do século XX, o escritor nor-

te-americano Edgar Rice Burroughs

(1875-1950) deu início à publicação de uma

série de histórias cujo personagem central

era um homem criado desde criança por

grandes macacos na África. Filho de um casal

de nobres ingleses mortos após o naufrágio

do navio em que viajavam pela costa africa-

na, seu nome era Iohn Greystoke. Os maca-

cos que o criaram, porém, o chamavam de

Tarzan. Sucesso imediato entre os leitores,

Tarzan logo passou para as telas de cinema epara as histórias em quadrinhos, encantando

sucessivas gerações.

Nas histórias de Burroughs, Tarzan apren-

deu a ler sozinho, com a ajuda apenas de um

livro encontrado em uma cabana. Além disso,

demonstrava sentimentos nobres e humanos

e defendia valores semelhantes aos da socie-

dade em que viveu o escritor. Na verdade, o

autor criou Tarzan segundo a imagem que ti-

nha do homem europeu na época vitoriana.

"civilizado", incapaz de atos de violência gra-

tuita, justiceiro e. .. "superior" aos africanos.

Tratava-se, portanto, de uma construção ideo-

lógica que reproduzia as relações de domina-

ção das potências europeias sobre os povos

da África na época do imperialismo (séculos

XIX e primeira metade do século XX). Por

essa época, os líderes das potências europeias

justificavam essa dominação afirmando que

os europeus iam para a África difundir o que

chamavam de "civilização" entre povos "bár-baros" e "atrasados".

Como obras de ficção, os livros de Tar-

zan sempre atraíram o interesse de jovens

leitores. Como fonte de conhecimento, en-

tretanto, apresentam uma imagem falsa e de-

formada da África, criando um personagem

mítico, distante da realidade. Como vimos, os

indivíduos da espécie humana só se tornam

verdadeiramente humanos por intermédio da

convivêneia e da interação em um meio so-~/

cial, ou seja, com seres de sua espécie. Como

outras construções ideológicas, Tarzan con-

tribuiu para difundir e legitimar os interessesimperialistas de dominação dos povos africa-

nos entre os séculos XIX e XX.

Capa da edição italiana de uma das histórias emquadrinhos do personagem Tarzan, desenhada porBurne Hogarth.

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CAP Í TULO 1 A soc ie dade h um an a

Vamos conhecer outra história. Em seu livro

Estudos sociais, A. Xavier TeUes descreve o caso deduas meninas que viviam entre lobos numa caver-

na da Índia. Descobertas em 1921, a mais velha,

que passou a ser chamada de Kamala, tinha oito

anos; a outra, batizada de Amala, tinha apenas

quatro anos. Confiadas a um asilo, passaram a ser

observadas por estudiosos. A mais jovem não re-

sistiu aos novos hábitos e logo morreu. Kamala,

porém, ainda viveu oito anos.

Ambas apresentavam hábitos alimentares bem

diferentes dos nossos. Como fazem normalmente os

animais, elas cheiravam a comida antes de tocá-la,

dilaceravam alimentos com os dentes e faziam pou-

co uso das mãos para beber e comer. Tinham uma

aguda sensibilidade auditiva e o olfato desenvolvi-

do. Locomoviam-se de forma curvada, com as mãos

apoiadas no chão, como fazem os quadrúpedes.

Kamala levou seis anos para andar de forma

ereta. Notou-se também que a menina não ficava

à vontade na companhia de pessoas, preferindo o

convívio com animais, que não se assustavam com

sua presença e pareciam até entendê-la (adaptadode: TELLES,A. Xavier. Es tudos sociai s. São Paulo:

Nacional, 1969. p. 115-6).

Assim como no caso do menino de Aveyron, a

experiência das duas crianças criadas entre lobosna Índia mostra que os indivíduos só adquirem

características realmente humanas quando con-

vivem em sociedade com outros seres humanos,

estabelecendo com eles relações sociais.

Separadas entre si por mais de um século e

afastadas uma da outra por milhares de quilõme-

tros, as experiências do menino de Aveyron e das

crianças criadas com lobos na Índia deixam uma

lição que não pode ser ignorada: sem o denso

tecido das relações sociais simplesmente não há

humanidade.

R eLa çõ es s oc ia is

As relações entre os seres humanos que vivem

em sociedade são chamadas de relações sociais.

Elas constituem a base da sociedade (veja o boxe

a seguir). Vale dizer que sem elas a sociedade não

existiria. Essas relações supõem a existência de

pessoas que interagem reciprocamente. Não são

relações fixas e imutáveis. São relições dinâmicas

que se transformam com as mudanças na socieda-de, ao mesmo tempo que as estimulam e interfe-

rem nelas.

~L...-..--- _

i ~. Vamos pensar?

A sociedade é um a rede de rela çõ e s ent re ind iv í-

duos, entre grupos s oc ia is e e ntre in stitu iç õe s [ ve ja

o s c ap ítulo s 3, 4 e 9]. Por is so , p od emo s a na lis ar as oc iedade tanto no nív el da s r el aç õe s entre indivíduos

na sua v id a c otid iana como no nível da forma ou

e stru tu ra d e ta is re la çõ es , p osto q ue e sta s a pa re cem

p erso nific ad as n os c on ceito s, normas e regras que

regulam a conduta s oc ia l. Ma s ta is e stru turas expe-

rim entam mudanç as : p or ta nto , a so cie da de d ev e s er

estudada em seu desen vo lvim ento hist órico e não

com o um sim ples grupo de gente ou um conjunto de

ins ti tu iç õe s existentes n um d ado m om en to .

BO T T OMO RE , T h oma s. In : MARQUÊS , J. , MO LLÁ , D. , S A L C EDO , S.A s oc ie da d e a tu a l. Rio d e J an e iro : Salva t Editor a do B rasil , 1979 . p. 9.

Co l e ção B ibliote c a Salva t de G ran de s T em as.

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1. Oque quis dizer o

autor ao afirmar que as

relações sociais aparecempersonificadas nos conceitos,

normas e regras que regulam

a conduta social? Cite

algumas regras de conduta

que personificam relações

em uma sociedade.

2. Por que o autor afirma que a

sociedade deve ser estudada

em seu desenvolvimento

histórico?

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Victor de Aveyron aprendeu a andar, a co-

mer, a se vestir e a fazer objetos por intermédiodo contato com outras pessoas, ou seja, por in-

termédio de relações sociais. Mas não assimilou

apenas as coisas práticas da vida. Ao estabelecer

relações com outros seres humanos, aprendeu

também a se comportar, a expressar sentimen-

tos e a agir da mesma forma que as pessoas com

as quais passou a conviver. Em urna palavra, ele

CAPÍTU LO 1 A s oc ie dad e h um an a

se socializou, ou seja, tornou-se um membro da

sociedade.O estudo de corno os seres humanos se relacio-

nam na vida social, das formas pelas quais interagem

uns com os outros, estabelecendo regras e valores,

das coisas que produzem e das trocas simbólicas no

curso dessas relações constituem tarefa de um gru-

po de disciplinas reunidas sob o nome de Ciências

Sociais. A Socioioqia é urna dessas disciplinas.

2I A sociedade como objeto de estudo

O comportamento humano é complexo e di-

versificado. Cada indivíduo recebe influências do

meio em que vive, forma-se de determinada ma-

neira e age no contexto social de acordo com sua

formação. O indivíduo aprende com o meio, mas

também o transforma com suas ações. Assim, o

ser humano não é um produto passivo do meio,

mas constrói a si mesmo interagindo com o meio

e modificando-o.Há comportamentos estritamente individuais

- corno andar, respirar, dormir - que se originam

na pessoa corno organismo biológico. São compor-

tamentos estudados pelas Ciências Físicas e Bio-

lógicas. Já ações corno trabalhar, jogar vôlei ou

futebol, fazer greve, participar de reuniões, assis-

tir a aulas, estudar, casar-se, educar os filhos são

comportamentos sociais, pois se desenvolvem por

meio de interações no contexto da sociedade.

Essas interações sociais F l 'ã o podem ser plena-

mente explicadas pela Biologia ou pela Física. Para

compreendê-Ias, estudá-Ias de forma sistemática e

explicá-Ias foram criadas as Ciências Sociais. Elas

pesquisam e estudam o ser humano corno ser so-cial em suas várias formas de manifestação.

Oobjeto de estudo das Ciências Sociais, portan-

to, são os seres humanos no contexto de suas rela-

ções sociais. Ométodo empregado nesse estudo é o

da investigação científica (veja o boxe a seguir).

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CAPÍTULO 1 A so ciedade hum ana

oM ÉTODO CIENTÍFICO NAS CIÊNCIAS SOCIAIS

Em geral, temos opiniões formadas sobre

diversos assuntos. Por exemplo, se um pai

castiga seu filho, somos levados a pensar que

o menino transgrediu alguma regra, compor-

tou-se mal ou tirou notas baixas na escola.

Esse é um tipo de conhecimento que faz parte

de nossas percepções cotidianas. Não consti-

tui um conhecimento científico.

Entretanto, essa mesma atitude do pai

que castiga o filho pode ser objeto de análise

da ciência. Para isso é preciso que seja aplicado

a ela um método científico de investigação.

Em ciência, a palavra método designa um

conjunto de procedimentos, ou de atividades

Divisões das Ciências Sociais

ordenadas, necessários ao conhecimento do

objeto de estudo emum nível de profundidade

que não pode ser apreendido pela observação

superficial do cotidiano. Trata-se de um pro-

cesso racional, que utiliza conceitos, catego-

rias de análise, hipóteses e outros recursos para

chegar a um resultado, seja este a explicação

de um fenômeno ou a formulação de leis que

regem certos conjuntos de fenômenos.

Tudo isso levou o pensador inglês K.

Pearson a afirmar que fia ciência não são os fa-

tos, mas o método com que são tratados". Os

fatos são, na verdade, a matéria-prima com

que trabalha a ciência.

Com o avanço do conhecimento da sociedade,

tornou-se necessário dividir as Ciências Sociais em

diversas áreas de conhecimento, de modo a facili-

tar a sistematização dos estudos e das pesquisas.

Essa divisão abrange atualmente diversas discipli-

nas. Veja a seguir algumas delas.

Sociologia - Estuda as relações sociais e as for-

mas de associação, considerando as interações que

ocorrem na vida em sociedade. A Sociologia envolve,

portanto, o estudo da estrutura social, dos grupos e

das relações sociais, da divisão da sociedade em clas-

ses e camadas, da mobilidade social, das instituições,

das relações de trabalho, dos processos de coopera-

ção, competição e conflito na sociedade, etc.

Economia - Tem por objeto as atividades hu-

manas ligadas à produção, circulação, distribuição e

consumo de bens e serviços. Portanto, são fenômenos

estudados pela Economia as atividades agrícolas e in-

dustriais, o comércio, o mercado financeiro (bancos,

bolsas de valores, etc.), a distríbuição da renda, a

política salarial, a produtividade das empresas, etc.Antropologia - Estuda a produção cultural,

as semelhanças e as diferenças culturais entre

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os vanos agrupamentos humanos, assim como a

origem e a evolução das culturas. São objetos de

estudo da Antropologia os tipos de organização

familiar, as religiões, a magia, os ritos de iniciação

dos jovens, o casamento, etc.

Ciência Política - Ocupa-se da distribuição

de poder na sociedade, assim como da formação

e do desenvolvimento das diversas formas de go-

verno. Estuda também os partidos políticos, os

mecanismos eleitorais, etc.

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Não existe uma divisão nítida entre essas dis-

ciplinas. Embora cada uma das Ciências Sociaisesteja voltada preferencialmente para um aspecto

CA PÍT ULO 1 A s oc ie da de h um an a

da realidade social, elas são complementares entre

si e frequentemente atuam juntas para explicar oscomplexos fenômenos da vida em sociedade.

oMÉTODO EM SOCIOLOGIA

lescentes preferem tal programa de televisão,

enquanto tantos por cento de pessoas de ida-

de entre 40 e 60 anos preferem outro. Pode-

-se ainda fazer uma diferenciação por sexo,

ou utilizando quaisquer outros critérios.

Já a análise qualitativa procura estabele-

cer conexões lógicas de causa e efeito entre os

fenômenos, recorrendo à interpretação e utili-

zando ou não dados estatísticos. É o caso, por

exemplo, da análise do sociólogo alemão Max

Weber sobre a relação entre a religião calvinis-

ta - surgida na Europa, no século XVI, durante

o período conhecido como R i fo rma Pro te st an te

- e o "espírito do capitalismo", ou seja, o con-

junto de valores, interesses e atitudes da bur-

guesia, grupo social que liderou o processo deformação da sociedade capitalista.

De fato, os valores da burguesia daque-

la época - que exaltavam o trabalho árduo, a

poupança e a frugalidade - foram decisivos

para a formação de uma economia baseada no

comércio e na acumulação de dinheiro para

ser investido na produção. Esse processo seria

chamado por Karl Marx (1818-1883), outro

pensador alemão, de acumu laç ão prim itiva de ca -

pital e estaria nas origens da sociedade capita-

lista moderna.

Seja qual for o método de análise ado-

tado pelo sociólogo, é importante considerar

a observação do pensador francês Raymond

Boudon. "O ponto de partida de qualquer

pesquisa - quantitativa ou qualitativa - é ge-

ralmente uma pergunta do tipo por quê? - Por

que o suicídio varia conforme as épocas e os

lugares? Por que as pessoas decidem votar em

tal candidato? Por que alguns casamentos ter-

minam em divórcio? Por que há mais divór-cios em certos países do que em outros?".

Em Sociologia, o método científico utiliza

diversas categorias de análise, como as de

grupo social, classe, estratificação social, fato

social, interação, estrutura social, instituição,

etc. Também fazem parte dele, entre outros,

instrumentos de análise como o estudo de

caso, a análise comparativa, a análise quanti-

tativa e a análise qualitativa.

O estudo de caso é um tipo de instru-

mento metodológico no qual se aborda apenas

uma unidade social (um "caso") - uma família,

uma cidade, uma instituição, etc. -, que ser-

ve de base para a compreensão de fenômenos

mais amplos. Assim, o estudo de uma família

de camponeses do sertão de Pernambuco, por

exemplo, pode oferecer ao sociólogo uma vi-são da sociedade rural dessa região em seu con-

junto e não apenas dessa família em particular.

A análise comparativa envolve procedi-

mentos que levam o sociólogo a estabelecer

relações de causa e efeito de certos grupos de

fenômenos com base na comparação entre fe-

nômenos diversos. Comparando uma família

de camponeses que vive no meio rural com

outra de operários da indústria em uma gran-

de cidade, por exemplo, ele pode fazer o le-

vantamento das semelhanças e das diferenças

entre uma e outra. Com base nesses dados,

ele pode identificar as causas de comporta-

mentos, hábitos de vida, valores e tendências

políticas de uma e de outra.

A análise quantitativa, por sua vez, uti-

liza em larga escala dados estatísticos e nu-

méricos. Muitas pesquisas de mercado servem

de matéria-prima para análises quantitativas.

Podemos analisar, por exemplo, certas prefe-

rências culturais entre diversas faixas etáriasde uma população: tantos por cento de ado-

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CAPÍTU LO 1 A soc ie dade h um an a4 1 A sociedade com o prob lem a

C om o afirm a o so ció lo go C a rlo s B . Ma r ti n s, " po -de m o s e n te n de r a S oc io lo gia c om o u m a das m a nife s-

taçõe s do p en sam e n to m o de rn o. A e vo lu ção do pe n-sam e n to c ie n tífic o, qu e v in h a se c on stitu in do de sdeN ic olau C opérn ic o [astrôn om o polon ês qu e v ive ue n tre 1 47 3 e 1 543], p assa a c ob rir, c om a S oc io lo gia,u m a n ov a áre a do c on h ec im e n to ain da n ão in c orpo ra-da ao sab er c ie n tífic o, o u se ja, o m u n do so cial. Surgepos te r io rmen te à c o n stit u iç ão d as c iê n cia s n a tu r ais

e de div ersas c iên c ias so ciais" (M A R T IN S,C a rlo s B .O que é Socioloqia. S ão P a u lo : N o va C u l tu r aljB ra si-lie n se , 1 986 . p . 1 0 , c o le ç ão P r im e i ro s P a ss os ).

D essa fo rm a , c om parada a ou tras c iên cias,a Soc io logia n asc e u tardiam e n te . Na c itação qu evoc ê ac abou de le r, C arlos M artin s se re fe re a ou -tras c iên cias soc iais an te rio re s à S oc io lo gia. U m ade las é a C iên cia P olític a, c ujos pre cu rsore s foramfiló so fo s g re go s, c om o P latão (427 -347 a.C .), au -to r de A República, e A ristóte le s (384-322 a.C .),qu e e sc re ve u Política. M ais tarde , já n o R en asc i-m e n to , o pe n sado r N ic olau M aqu iav el (1 468-1527)

pu blic ou O ptincipe, liv ro g eralm e n t e c on sid erad oo m arc o da C iên cia P olític a m ode rn a (ve ja o boxea s eg u ir ).

U M L IV RO -B OM BA

V ocê sabe o significado da palavra maquia-

ve1 ico? Se procurar em um dicionário, vai

encontrar algo como "procedimento astucio-so, velhaco, traiçoeiro".

O termo maquiavélico deriva do nome

de Nicolau Maquiavel, cujo livro, O príncipe,

escrito em 1514, provoca polêmicas ainda

hoje. Ele foi escrito com um objetivo bem cla-

ro: dar conselhos a um príncipe sobre como

proceder para unificar os pequenos estados

em que a península lt ál ica estava dividida na-

quela época. Maquiavel queria que esse prín-

cipe restaurasse a antiga grandeza do Império

Romano, perdida em 476, após sucessivas in-

vasões de povos germânicos.

No livro, Maquiavel aconselhava o

príncipe a não recuar diante de nenhum crime

para conquistar esse objetivo. Em caso de ne-

cessidade, o príncipe deveria mentir ou mes-

mo destruir seus oponentes para conquistar e

consolidar o poder. Por isso lhe é atribuída

a frase "os fins justificam os meios", que na

verdade ele nunca disse ou escreveu.

Segundo o filósofo Renato )anine Ri-beiro, o livro O prínciPe representa o rompi-

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mento com um modo medieval de ver a polí-

tica como extensão da moral. Para os autores

da Idade Média, o "bom rei" era aquele quefazia o bem, seguindo os preceitos cristãos.

Em oposição a eles, Maquiavel mostrou que

os reis bem-sucedidos raramente seguiam a

moral convencional e cristã. Seus argumen-

tos punham fim à justificação religiosa para

o poder político. Para ele, o que importava

na ação política eram os resultados e não sua

obediência a critérios morais estritos.

Re tra to d e N ic ola u Maqu ia ve l, óleo sobre tela do

pintor Santi de Tito.

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Esses três pensadores refletiram principal-

mente a respeito do poder político e das formasde organização do Estado. A sociedade aparece

em suas obras quase corno um dado natural e não

corno um conjunto dinâmico de relações e proble-

mas a serem analisados e explicados.

A RevoLu ç ão In du str ia L

As primeiras reflexões mais sistemáticas so-

bre a sociedade só começaram a ser formuladas no

momento em que ela se diversificou corno nunca

anteriormente, com a Revolu ção I ndu st ria l, inicia-

da na Inglaterra por volta de 1750. Ela deu origema novos grupos sociais - a burguesia e o proleta-

riado - e à formação de um novo tipo de estrutura

social: a sociedade capitalista.

Nesse processo teve particular importância a

R e vo lu çã o F ran ce sa (1789), que concorreu para a

ascensão da burguesia ao poder e para dar maior

visibilidade aos problemas e conflitos sociais. A

Revolução Francesa mostrou que a sociedade es-

tava dividida em grupos sociais antagônicos - a

nobreza, a burguesia, os camponeses -, que as

CA P ÍT U LO 1 A s oc ied ad e h um an a

relações entre esses grupos era de tensão e con-

flito e que o domínio exercido por qualquer umdesses grupos não era eterno. Dessa forma, a so-

ciedade aparecia corno um campo de forças em

permanente tensão, corno um conjunto de rela-

ções conflituosas que poderiam levar a rupturas

e mudanças radicais.

A Revolução Industrial, por sua vez, introduziu

a máquina a vapor no processo produtivo, reorgani-

zou o trabalho manufatureiro de forma radical, des-

truiu o artesão independente, introduziu a fábrica

moderna e criou urna nova classe de trabalhadores:

o proletariado, ou classe operária, concentrado so-bretudo em grandes unidades industriais.

Esse processo provocou muitas mudanças,

corno o crescimento das cidades, a concentração

de centenas de milhares de trabalhadores em bair-

ros industriais e a degradação das condições de

vida do proletariado. Até o fim do século XIX, as

jornadas de trabalho na indústria europeia gira-

vam em torno de catorze ou dezesseis horas por

dia. Não havia descanso remunerado, corno hoje,

nem férias, nem aposentadoria.

17

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CAP ÍTU LO 1 A s oc ied ad e h um an a

As condições de trabalho na indústria e nas

minas eram extremamente penosas, ocasionando

muitos acidentes, que podiam provocar a morte

ou mutilações nos trabalhadores. Não havia limite

de idade para trabalhar, nem leis de proteção ao

menor, de modo que mesmo crianças de até seis

ou sete anos trabalhavam em funções perigosas.

Além disso, as condições de vida e de moradia

eram precárias. Não havia saneamento básico nos

bairros proletários. As habitações eram peque-

nas, insalubres e nelas se aglomeravam muitaspessoas. Como observa Carlos Martins, "as ccnse-

quências da rápida industrialização e urbaniza-

ção levadas a cabo pelo sistema capitalista foram

tão visíveis quanto trágicas: aumento assustador

da prostituição, do suicídio, do alcoolismo, do

infanticídio, da criminalidade, da violência, de

surtos de epidemias de tifo e cólera que dizima-

vam parte da população, etc." (MARTINS,Carlos

B. op. cito p. 13-4).

Nesse contexto, eclodiram movimentos deprotesto e tentativas de organização da classe

trabalhadora. Formaram-se, assim, os primeiros

18

sindicatos na Inglaterra e em outros países euro-

peus. Ao mesmo tempo, apareceram pensadores

que tentavam reformar o capitalismo ou promo-

ver uma revolução que levasse a classe traba-

lhadora ao poder. Entre estes últimos estava o

alemão Karl Marx (1818-1883), autor de obras

como o Man ifesto d o P artid o C omu nista (1848) e

O c ap ita l (1 8 57-1 894).

Pensa r o m undo novo

Como nota ainda Carlos Martins, com as mu-danças ocasionadas na sociedade pela Revolução

Industrial, diversos pensadores começaram a re-

fletir sobre os novos fenômenos sociais: "A So-

ciologia constitui em certa medida uma resposta

intelectual às novas situações colocadas pela Re-

volução Industrial".

Foi só no século XIX - com Augusto Comte,

Herbert Spencer, Gabriel Tarde e, principalmente,

Émile Durkheim, Max Weber e Karl Marx - que

a investigação dos fenômenos sociais ganhou umcaráter verdadeiramente científico. Esse tema será

abordado no capítulo 2.

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C A PÍ T U L O 1 A sociedade humana

.-------:Livros sugeridos

• MARTINS, Carlos B. o qu e é Sociologia . São Paulo: Nova Cultural/Brasíliense, 1986 (Coleção Primeiros Passos).

• TELLES,Maria L. So ciologia para jovens - in iciação à So ciologia. Petrópolis: Vozes, 2001.

r---"': Filmes sugeridos

• o gar oto s elv ag em, de François Truffaut. 1970. A história de Victor de Aveyron, menino capturado numa floresta fran-cesa sem nunca ter tido contato com um ser humano.

• O eni gma de K aspar Hauser, de Werner Herzog, 1974. Em 1828, foi encontrado em urna cidade da Alemanha um jovemque passara a vida trancado em um porão e não conseguia se comunicar.

• G reystoke, a lenda de Tarzan , de Hugh Hudson, 1984. Baseado nos romances de Edgar Rice Burroughs, conta a história

de um homem branco criado entre macacos na África.• A guerra do fogo, de Hugh Hudson, 1981. Nos primórdios da humanidade, grupos de hominídeos disputam a posse

do fogo.

• Danion, o processo da Rev ol uçã o, de Andrzej Wajda, 1982. A luta de Danton contra Robespierre para colocar fim aoTerror durante a Revolução Francesa.

• Maria Ant onieta, de Sofia Coppola, 2006. Sobre a rainha da França, mulher do rei Luís XVIà época da Revolução Fran-cesa, e sua execução em 1793.

• Germinei , de Claude Berri, 1993. Sobre as condições de vida e de trabalho dos mineiros da França durante o século XIX.Adaptação do romance homõnimo de Émile Zola.

• Oliver Twist, de Roman Polanski, 2005. A história de Oliver, um pequeno órfão, sobre o pano de fundo da RevoluçãoIndustrial na Inglaterra. Baseado no romance de Charles Dickens.

Para complementar o estudo do capítulo, assista a um ou mais dos filmes indicados e reflitasobre as seguintes questões:

• Que relações podem ser estabelecidas entre o enredo do filme e os conceitos estudados neste capítulo?

• Há referências, no filme, às consequências da Revolução Industrial? Quais são elas e onde aparecem no filme?

• Há referências à Revolução Francesa? Que conclusões são possíveis extrair do que se vê no filme?

• Há referências à necessidade da vida em sociedade para que o individuo se humanize?

• Otrabalho com filmes tem demonstrado resultados muito positivos para a compreensão de certos conteúdos por partedos alunos. Se for possível, proponha este exercício de reflexão em sala de aula.

- -Questões propostas

1. Você acredita que por meio de jornais e revistas é possível verificar exemplos de comportamentos

sociais?

2. Defina o conceito e o objeto das Ciências Sociais.

3. Quais são os principais campos de interesse de cada disciplina em que se dividem as Ciências

Sociais?

4. De que forma a Revolução Industrial contribuiu para o surgimento da Sociologia corno ciência?

5. Quais são as diferenças entre a análise comparativa, a análise quantitativa e a análise

qualitativa em Sociologia?

19

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CAP lTULO 1 A s oc ie da de h um an a

TE XTO 1

A Revolução Industrial e os trabalhadores

I nicia da n a I ng late rra , a R evo lu çã o I nd ustria l d os s éc ulos X VIII e XIX modificou radicalmente a sociedade

moderna. Ela inaugurou a indústria moderna, abr iu caminho para o capitalism o industrial e subverteu as

relaçõe s s oc iais. N o texto a seguir, o histor ia do r i ng lê s E . P Thompson analisa suas consequências para o modo

de vida da classe trabalhadora na Inglaterra.

Comparadas com as vilas rurais, as con-

dições gerais nas grandes cidades industriais

eram mais repugnantes e inconvenientes. Nas

vilas rurais, a água de um poço próximo ao

cemitério podia ser impura, mas, pelo menos,

seus habitantes não tinham de se levantar à

noite para entrar numa fila diante da única

bica que servia a várias ruas, nem tinham de

pagar por ela, como acontecia nas cidades in-

dustriais.

Nestas, os trabalhadores e suas famílias

tinham de suportar o mau cheiro do lixo in-

dustrial e dos esgotos a céu aberto, enquantoseus filhos brincavam entre detritos e montes

de esterco. [...]

À medida que a Revolução Industrial

avançava e surgiam as clássicas condições de

superpopulação e de depravação nas grandes

cidades em rápida expansão - inchadas pelos

imigrantes -, a saúde da população urbana

começou a se deteriorar.

A taxa de mortalidade infantil, durante

as três ou quatro primeiras décadas do sécu-

lo XIX foi muito mais alta nas novas cidades

industriais - às vezes o dobro - do que nas

áreas rurais. Segundo o Dr. Turner Thackrah,

de leeds, "menos de 10% dos habitantes das

grandes cidades gozam de perfeitas condi-

ções de saúde". [...]

O Primeiro Relatório do Oficial Geral

de Registros (1839) mostrou que aproxima-

damente 20% da taxa global de mortalidade

se devia à tuberculose, uma doença associada

à pobreza e à superpopulação, predominandotanto nas regiões rurais quanto nas urbanas.

20

Das 92 mortes de trabalhadores adultos e jo-

vens de uma fábrica de tecidos de lã de leeds,

entre 1818 e 1827, pelo menos 52 foram atri-

buídas à tuberculose ou ao "definhamento".

Nessa época, a taxa de mortalidade na faixa

de O a 5 anos de idade chegava a 517 em mil

nascidos vivos. [...]

O trabalho infantil não era uma novida-

de. A criança era parte intrínseca da economia

industrial e agrícola antes de 1780, e como tal

permaneceu até ser resgatada pela escola. A

forma predominante de trabalho infantil era

a doméstica ou a praticada no seio da eco-nomia familiar. As crianças que mal sabiam

andar podiam ser incumbidas de apanhar e

carregar coisas.

Um trabalhador dessa época recordava

que começou a trabalhar "pouco depois de

que iniciei a andar. [...] Minha mãe costumava

bater o algodão sobre uma peneira de arame.

Colocava-o, então, num recipiente marrom es-

curo, com uma espessa camada de espuma de

sabão. Depois, dobrava minha roupa até a cin-

tura e me colocava na tina para que eu pisasse

sobre o algodão que jazia no fundo. [...] Esse

processo prolongava-se até que o recipiente fi-

casse cheio e se tornava perigoso continuar ali

dentro; colocavam, então, uma cadeira ao meu

lado, e eu me agarrava ao seu encosto".

O trabalho infantil estava profunda-

mente arraigado nas atividades têxteis, des-

pertando, com frequência, a inveja dos traba-

lhadores em ocupações onde as crianças não

podiam trabalhar e aumentar o rendimentoda família [...].

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CAP Í TULO 1 A soc ie dade h um an a

~ . - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - .

Antes do aparecimento da fábrica [siste-ma fabril], a produção manufatureira, de tipo in-

dustrial, era realizada em domicílio, onde toda

a família trabalhava. Em 1806, um trabalhador

previa que, com o triunfo do sistema fabril "to-

dos os trabalhadores pobres serão arrancados

de suas casas e levados para as fábricas, e ali não

contarão com a ajuda e a vantagem da presença

de suas famílias, que tinham em suas casas".

De acordo com os padrões da época, a

fábrica era uma novidade penosa e até mesmo

brutal. As atividades domésticas eram mais va-riadas (e a monotonia é particularmente cruel

para a criança).

Em circunstâncias normais, o trabalho

doméstico não se prolongava ininterrupta-

mente, seguindo um ciclo de tarefas. Podemos

supor, nesse caso, que havia uma introdução

gradual ao trabalho que respeitava a capaci-

dade e a idade da criança, intercalando-o com

a entrega de mensagens, a colheita de amoras,

a coleta de lenha e as brincadeiras. Acima detudo, o trabalho em domicílio era desempe-

nhado nos limites da economia familiar, sob

o cuidado dos pais. [ ...]

O crime do sistema fabril consistiu em

herdar as piores feições do sistema doméstico,

num contexto em que inexistiam as compen-sações do lar. Em casa, 'as condições da crian-

ça variavam de acordo com o temperamento

dos pais ou do patrão e, de certa forma, seu

trabalho era graduado de acordo com suas

habilidades. Na fábrica, a maquinaria ditava

as condições, a disciplina, a velocidade e a

regularidade da jornada de trabalho, tornan-

do-as equivalentes para o mais delicado e o

mais forte.

O dia de uma criança trabalhadora co-

meçava às cinco e meia da manhã. Levavapara a fábrica apenas um pedaço de pão, seu

único alimento até o meio-dia. O trabalho

não terminava antes das sete ou oito horas

da noite. No final da jornada, elas já esta-

vam chorando ou adormecidas em pé, com

as mãos sangrando por causa do atrito com

os fios têxteis. Seus pais davam-lhes palmadas

para mantê-Ias acordadas, enquanto os con-

tramestres rondavam com correias.

Nas fábricas rurais, dependentes daenergia hidráulica, eram comuns os turnos à

noite ou as jornadas de quatorze a dezesseis

horas diárias, em épocas de muito trabalho.

Adaptado de: THOMPSON, E. P. Afonnação da classe

oper ária inglesa. 3. ed. Rio de Janeiro, 2001. v. 1 1 . p. 184-210.

f-- __Pense e responda

o trabalho infantil foi um fenômeno comum aos países que ingressaram no capitalismoindustrial. OBrasil de fins do século XIXe começo do século XXnão fugiu à regra. Atualmente,

o trabalho infantil é uma realidade em várias regiões do Brasil. No capítulo 13 deste livro,

abordamos esta questão com dados numéricos levantados pelo IBGE. Eram cerca de 5 milhões

de menores trabalhadores em 2006.

Qual a relação de seus alunos com o trabalho?

21

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€AP Í lW r.o 1 A s o cie da de h uma na

TEXTO 2

Sociologia e sociedade industrial

o texto que você vai ler agora, escrito pelo soc ió logo alemão Ralph D ah ren do d, analisa de forma crítica

o c on ceito de socied ad e in du stria l, m uito em voga entre os sociólogos na segunda m etade do século XX. Em sua

crí tica, D ahrendod aborda tam bém o pape l da Sociologia no mundo moderno. Depois de ler o texto, respo nda

à s que stõe s p ropost as.

A Revolução Industrial estava ainda

em seus primeiros passos, mas já em fins do

século XVIII alguns pensadores perceberam

que estava em vias de aparecer uma nova so-

ciedade em que a desigualdade humana seria

considerada de um ponto de vista diferente

do critério até então válido. A imposição da

noção moderna da igualdade dos cidadãos

no Estado e a formação de uma classe social

fundada em sua posição econômica foram os

estímulos fundamentais desta evolução inte-

lectual que mais tarde desembocou na Socio-

logia científica. [... ]A época da Revolução Industrial carac-

teriza-se pela queda daquele sistema privile-

giado de desigualdade social, que designamos,

de preferência, como ordem estamental [o

autor se refere ao feudalismo, sistema vigente

na Europa durante a Idade Média, anterior ao

capitalismo. Veja o significado de estamento

no Dicionário Básico de Sociologia no fim do

livro]. No entanto, os pensadores do século

XIX e começo do século XX perceberam que,

com a queda da ordem estamental, não desa-

pareceu a desigualdade entre os homens. Seu

grande tema era a desigualdade como con-

sequência da propriedade e do poder: a luta

de classes e a sociedade que valoriza cada um

segundo sua renda e posse.

Hoje, entretanto, a imagem dominante

sobre a estratificação social da sociedade in-

dustrial é caracterizada sobretudo por três as-

pectos: em primeiro lugar, fala-se de uma ten-

dência ao nivelamento entre ricos e pobres.Argumenta-se quedesde a Revolução France-

sa todos os homens gozam de um mesmo sta-

tus fundamental: o de cidadão. Eliminaram-se

na sociedade as diferenças de princípio entre

os homens. As discrepâncias acidentais que

ficaram já não são tão grandes como antes;

a hierarquia na estratificação social se redu-

ziu [sobre o conceito de estratíficação, veja

o capítulo 9].

Em segundo lugar, encontramo-nos com

uma forte concentração no campo médio dessa

hierarquia reduzida [o autor se refere às clas-

ses médias]. Enquanto em todas as sociedades

antigas a maioria dos homens se concentravano estrato hierárquico inferior, uma imensa

maioria ocupa hoje a posição média. [...]

Quanto às diferenças restantes, pode-

se afirmar, em terceiro lugar, que o indivíduo

na sociedade industrial não se acha preso à

sua posição social; pode mover-se livremente,

descer e, sobretudo, subir de categoria [sobre

mobilidade social, veja o capítulo 8]. Se não

consegue ascender, seus filhos podem conse-

gui-Io. [...]

Na sociedade estamental a posição so-

cial do homem dependia de seu nascimento;

na sociedade industrial do século XIX, o ho-

mem era o que tinha, isto é, sua situação social

se determinava de acordo com suas rendas e

posses. A sociedade industrial, em contrapar-

tida, apoia-se sobre uma nova base de ordena-

ção: agora o homem é o que ele consegue. A

renda determina a situação social de cada um

e as instituições do sistema educativo têm a

missão de calibrar a capacidade de rendimen-to de cada indivíduo com o objetivo de dirigir

L- ~~-- __---------------------------------------------------- --~~

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C A P ÍT U L O 1 A soc ie dade h um an a

cada um até a posição que lhe corresponde na

sociedade. Todos têm idêntica oportunidade,

uma vez que nem a origem nem a propriedade

decidem hoje a situação social do indivíduo; a

sociedade de consumo também conduz à eli-

minação da desigualdade.

[Segundo essa concepção sociológica,]

a sociedade industrial tem ainda uma quarta

característica, que quase não falta nas análi-

ses sociológicas mais recentes e que é talvez

a mais curiosa: na sociedade industrial desa-

parece o domínio do homem pelo homem,isto é, o instrumento mais eficaz de separa-

ção entre os de cima e os de baixo que aglu-

tinava e desmembrava todas as sociedades

antigas.

Nesse sentido, hoje se fala muito da fá-

brica automática, na qual todas as relações de

dominação se transformaram num programa

de mecanismos dirigidos eletronicamente e

onde ninguém dá ordens e ninguém obedece.

[ ...] Dessa maneira, ninguém, na realidade,

está por cima ou está subordinado; também

no campo do poder e da servidão a socieda-

de industrial eliminou a desigualdade entre os

homens. [...]

O conceito de sociedade industrial [en-

tendida como sociedade na qual vão desapa-

recendo as desigualdades sociais] contém um

elemento de benévola generalização. Todas

as diferenças particulares entre as distintas

sociedades desaparecem dentro dele: as so-

ciedades inglesa, norte-americana, alemã efrancesa e logo também a soviética se fundem

nele de um modo genérico, que promete a to-

dos os países idêntica esperança [na época em

que foi escrito este texto, a União Soviética

era um país comunista, enquanto os Estados

Unidos, a Alemanha e a França são países ca-

pitalistas. A União Soviética foi extinta em

1991. Veja as diferenças entre capitalismo e

comunismo no capítulo 7].

Mas essas sociedades são, realmente,

tão semelhantes? Não existiria uma falta de

exatidão nesse conceito de sociedade indus-

trial? Não seria ele uma tentativa de eliminar

o problema das características particulares, e,

menos agradáveis, da sociedade norte-ameri-

cana, alemã ou russa? Não fica sem ser dito o

fundamental, se nos aproximamos da realida-

de com essa inocente ideia geral da sociedade

industrial?

A Alemanha e a Inglaterra são socieda-

des industriais; mas a Inglaterra é a mãe da

democracia liberal e a Alemanha é a mãe do

moderno Estado autoritário [a referência éao nazismo, regime totalitário que dominou

a Alemanha entre 1933 e 1945]. Os Estados

Unidos e a União Soviética são sociedades

industriais e, sem dúvida, suas divergências

caracterizam a nossa época. Estes não são

problemas sociológicos? Parece-me que são

até mesmo nossos problemas fundamentais.

Mas, para resolvê-los, temos de nos liberar do

mito idílico da sociedade industrial.

Do mesmo modo, no que se refere a

quaisquer sociedades determinadas, a socie-

dade industrial resulta num mito. Já não existe

efetivamente a desigualdade entre os homens

nas sociedades modernas? Ou, talvez, apenas

se modificaram as formas dessa desigualdade?

Não são também o tipo de carro, o lugar das

férias, o estilo da habitação outros tantos sím-

bolos efetivos e que deixam a marca da estra-

tíficação social, como o eram os privilégios

na sociedade estamentalz

Não existem mais na sociedade atual os"de cima" e os "de baixo"? Admito que se trata

de questões difíceis, que de maneira alguma

podem ser respondidas com uma simples ne-

gação ou afirmação; mas creio poder afirmar

que cada uma dessas perguntas nos revelaria

um aspecto de nossa sociedade que não cor-

responde à imagem harmoniosa da sociedadeindustrial. [... ]

Por que razão, então, a tentativa cons-

tante de profetizar para um futuro próximo

uma sociedade industrial justa e harmônica?

~ r - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - ~

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CA PÍT U LO 1 A s oc ied ad e h um an a

De que fontes se alimenta tal ciência? A quem

ela serve? Aqui se nota claramente que a So-

ciologia moderna da sociedade industrial não

é, na realidade, mais do que ideologia da ca-

mada burocrática e da pequena burguesia que

denomina a si própria de "classe média" e que

domina muitas sociedades modernas; camada

a que também pertencem os próprios soció-

logos [sobre o conceito de ideologia, ver o

Dicionário Básico de Sociologia no fim do

livro]. [...]

Os manaqer: [gerentes e executivos] e os

técnicos formam uma camada superior, uma

classe dominante, a quem deve servir a ideo-

logia harmônica da sociedade industrial. Pelo

menos num ponto a moderna meritocracia de

títulos e certificados continuou fielmente os

passos de seus antecessores: também necessitade uma ideologia que justifique a desigualdade.

A Sociologia é a encarregada de oferecer essa

ideologia com o mito da sociedade industrial.

Não é uma casualidade que seja exata-

mente a Sociologia que procure esse reforço

ideológico para a sociedade industrial. Os

burocratas, manaqers e técnicos constituem um

grupo dominante, "invisível", que evita cui-

dadosamente aparecer como tal. Necessitam,

por isso, de uma ideologia o mais "neutra"

possível, cujo caráter de justificação não seja

patente a uma simples verificação, uma ideo-

logia com a auréola da ciência.

Adaptado de: DAHRENDORF, Ralph. Sociologia e

sociedade industrial. In. FORACCHI, Marialice e

MARTINS, José de Souza (orgs.). Sociologi a e sociedade.

Rio de Janeiro: livros Técnicos e Científicos, 1977. p. 121-5.

1. Qual é o principal objeto de crítica de Ralph Dahrendorf no texto que você acabou de ler?

Cite um parágrafo em que esse objeto de crítica apareça claramente.

2. O que o autor quis dizer com a frase: "a Sociologia moderna da sociedade industrial não

é, na realidade, mais do que ideologia da camada burocrática e da pequena burguesia que

denomina a si própria de 'classe média"'?

I----tl: Pense e responda

24