A realidade, o livro e o filme em "O Lobo de Wall Street"

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Universidade de São Paulo Escola de Comunicações e Artes A realidade, o livro e o filme em O Lobo de Wall Street” Fernando Carvalho Tabone São Paulo Junho/2014

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Universidade de São Paulo

Escola de Comunicações e Artes

A realidade, o livro e o filme em “O Lobo de Wall Street”

Fernando Carvalho Tabone

São Paulo

Junho/2014

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1. Introdução: a dobradinha “livro-filme”

Apesar de ser um negócio lucrativo, produzir um filme para o cinema é

uma tarefa custosa e envolve grandes riscos. Para um roteiro sair do papel e

virar filme, é necessário um alto investimento financeiro, e onde há muito

investimento, espera-se também grande retorno, que não é garantido. Diante

desta lógica, para diminuir os riscos de fracasso e aumentar a probabilidade de

lucro, muitas produções tem apostado em adaptar sucessos literários para o

cinema.

Na última semana, por exemplo, estrearam nos cinemas americanos

dois filmes: “No Limite do Amanhã” e “A Culpa é das Estrelas”. O primeiro, que

tem Tom Cruise como protagonista, teve um custo de produção estimado em

US$ 178 milhões¹ e já arrecadou nas bilheterias US$ 29,1 milhões, um alto

valor, porém baixo quando comparado ao outro filme, “A Culpa é das Estrelas”,

baseado no romance homônimo de John Green, que já arrecadou US$ 48,2

milhões, quatro vezes mais que o custo da sua produção, orçada em US$ 12

milhões.

Um dos autores literários que mais teve obras adaptadas ao cinema, são

6 no total, Nicholas Sparks, comenta que a lógica “filme-livro” é boa não só

para o cinema, mas também para a indústria editorial. :

“As pessoas veem mais filmes do que leem livros. E duvido que

isso vá mudar. Sendo assim, adaptações beneficiam um autor,

pois mais pessoas entram em contato com seu trabalho, e

algumas delas eventualmente compram o livro. Geralmente, isso

é o suficiente para um título acabar na lista de best-sellers.” ²

Uma das obras literárias mais vendidas de Nicholas Sparks é o romance

“Um amor para recordar”, que já foi adaptado ao cinema e hoje tem mais de 5

milhões de exemplares vendidos no mundo.

Dessa maneira, muitas pessoas acabam tendo contato com ambas as

obras: o livro e o filme. Isto provoca, inevitavelmente, que surjam comparações

sobre as obras e consequentes questões sobre fidelidade autoral e liberdade

de criação.

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Em seu último lançamento, um dos diretores de cinema mais

consagrados de Hollywood, Martin Scorsese, também se arriscou na produção

de um filme a partir de uma adaptação literária. “O Lobo de Wall Street”,

dirigido por ele e protagonizado por Leonardo DiCaprio, foi adaptado do livro de

mesmo nome, de autoria de Jordan Belfort.

A tentativa de adaptação foi muito bem sucedida e se configurou no

maior sucesso de arrecadação de um filme dirigido por Scorsese, superando a

marca de US$ 300 milhões³ arrecadados em bilheteia. O sucesso do filme

também alavancou as vendas do livro e, consequentemente, ganharam

notoriedade na mídia e entre o público as diferenças entre o que é relatado no

filme e no livro. Também foram levantadas questões sobre a realidade da

história – o livro de Belfort relata a experiência de vida do próprio autor, que

após a popularização do filme e do livro, também foi questionada quanto à

veracidade.

Este trabalho, no ensejo das discussões sobre livros que viram filmes,

adota o filme “O Lobo de Wall Street” como objeto de estudo e discute algumas

das polêmicas levantadas sobre este filme em relação às diferenças entre o

filme, o livro de mesmo nome e a realidade vivida pelo autor Jordan Belfort.

2. Discussão: as diferenças realmente importam?

“O livro é um parente distante da verdade, e o filme é um parente

distante do livro.” Danny Porush, cofundador da Stratton

Oakmont4

O filme “O Lobo de Wall Street” é uma adaptação do livro de mesmo

nome, de autoria de Jordan Belfort, que relata, baseado em fatos reais, como

foi experiência de vida do próprio autor em enriquecer rapidamente trabalhando

como corretor de ações no mercado financeiro americano, isto logo após uma

época difícil, a da queda da Bolsa de Valores no final dos aos 80, até abrir sua

própria corretora, chamada Stratton Oakmont, que faturou bilhões de dólares e

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levou Belfort a se afundar em “um mundo de loucuras”, como o próprio autor

diz, e acabar preso por fraudes fiscais e operações irregulares na bolsa.

Não é a primeira vez que um filme é fruto deste curioso processo de

adaptação de um livro que é baseado em fatos reais. O filme “A Rede Social”5,

de 2010, por exemplo, também é originário de um processo semelhante.

Adaptado do livro “Bilionários por Acidente”6, no qual o escritor Ben Mezrich se

baseia em fatos reais para contar como foi o processo de criação do Facebook,

o filme fez sucesso nos cinemas durante o ano de lançamento e também

recebeu diversas críticas quanto a sua fidelidade à realidade - muitas das

críticas, inclusive, foram exploradas na produção do documentário lançado em

2012, chamado “Mark Zuckerberg, a verdadeira face do Facebook”7.

Um exemplo de distorção, apontando por Eduardo Saverin, que é um

dos fundadores do Facebook e um dos personagens centrais do filme “A Rede

Social”, em entrevista a revista Veja8, é que a cena retratada no filme em que

ele escreve uma equação na janela de um dos dormitórios de Harvad, para que

Zuckerberg a utilize na programação da página “Facemash”, na verdade nunca

existiu, e aquela equação é, na realidade, uma simples equação utilizada no

jogo de xadrez9.

Já no filme “O Lobo de Wall Street”, são diversas as diferenças

apontadas entre filme, livro e realidade. Talvez uma das mais cruciais entre o

filme e o livro, é que o filme omite o longo relato presente no livro no qual

Belfort conta como foi o processo de recuperação do vício das drogas, que

antecederia sua prisão. Diferenças significativas como esta chamam bastante

atenção, e foram exploradas por diversas reportagens e entrevistas na

televisão - Jordan Belfort chegou a ser entrevistado pelo popular programa, de

origem americana, chamado “60 Minutes” 10 - mas, segundo o crítico de cinema

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do jornal Folha de São Paulo, essas diferenças existem por alguns motivos

simples: por não representarem o que é essencial na história; para permitirem

adequação entre a história e o estilo Scorsese de cinema; e por didática, ao

facilitarem o entendimento dos fatos narrados.

“O desafio consistia em captar o essencial dos livros sem

adulterar os fatos. Tratava-se de não “adaptar” (trair), no mau

sentido da palavra. E, ao mesmo tempo, de construir a base para

uma narrativa à maneira de Martin Scorsese. O que Terence

Winter (o roteirista) fez foi, claro, suprimir certas ações e

personagens, tornar certos momentos mais didáticos, de maneira

a facilitar a compreensão rápida do espectador das sujeiras

financeiras em que estava envolvido o fundador da Stratton

Oakmont, Jordan Belfort. Mas tudo que está lá é, basicamente, o

que Belfort conta, e os momentos essenciais da narrativa foram

preservados.”11

Há, além de diferenças significativas, aquelas mais discretas que apenas

um leitor e expectador atentos perceberiam. Belfort, por exemplo, relata no livro

que quando almoçou com seu primeiro chefe, recusou-se a beber martini e

pediu ao garçom apenas uma coca-cola. No filme, no entanto, Leonardo

DiCaprio, que interpreta o personagem de Belfort, pede ao garçom um copo

d’água12. O leitor e expectador mais crítico quanto à veracidade, diante desta

contradição, poderia se indagar “o que foi, afinal, que Belfort pediu ao garçom:

coca-cola, água ou aceitou mesmo o martini?”

Sorri para Mark e disse,

num tom humilde:

“Desculpe-me, mas eu

não bebo”. Então me

virei para o garçom

“Você pode me trazer

apenas uma Coca. Isso

seria bom.”13

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Diante dessas questões, cabe-nos como leitores e expectadores adotar

uma entre duas posições: fixar-nos à distorções e contradições, e

desqualificarmos as obras; ou nos questionarmos se elas realmente são

relevantes e prejudiciais no entendimento da obra.

Segundo o professor e pesquisador Randal Johnson, da University of

California (UCLA), na reportagem da revista Cult, intitulada “Filme é melhor que

o Livro?”, muitos expectadores adotam a primeira posição e exigem do filme

fidelidade precisa ao livro, acabando por vezes em desacreditá-lo quando não

cumprida.

“A insistência na fidelidade da adaptação cinematográfica à obra

literária originária pode resultar em julgamentos superficiais que

frequentemente valorizam a obra literária em detrimento da

adaptação, sem uma reflexão mais profunda. Os filmes são

julgados criticamente porque, de um modo ou de outro, não são

“fieis” à obra modelo. O conceito de ‘fidelidade’ assume conotação

crucial, tornando-se o chamado “X” da questão na reflexão sobre

o relacionamento entre cinema e literatura. 14

Mas, no caso de “O Lobo de Wall Street”, é curioso que já no próprio

livro, o autor está atento a isto e deixa uma nota inicial, anterior ao primeiro

capítulo, esclarecendo que o seu relato pode não ser exatamente fiel aos fatos

originais:

“É uma história verdadeira, baseada em recordações de vários

eventos de minha vida. Em certos trechos, reorganizei e/ou

abreviei eventos e períodos de tempo a serviço da narrativa e

recriei diálogos para adaptá-los às lembranças desse momentos.”

Portanto, se o próprio autor já alerta que sua narração sobre sua própria

vida pode conter distorções, por que filmes, dirigidos e escritos por pessoas

que sequer vivenciaram as experiências relatadas, também não podem conter

imprecisões ou alterações? Fica evidente que a exigência de fidelidade precisa

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aos fatos em uma obra artística é preciosismo, e dá lugar ao que é mais

importante: a mensagem.

Semelhantemente a Belfort, porém de maneira ainda mais desapegada

a realidade, enfatizando claramente que a obra tem um objetivo maior que a

fidelidade aos fatos, os autores André Batista, Luiz Eduardo Soares e Rodrigo

Pimentel, escreveram no prefácio do livro “Elite da Tropa”, que esteve entre os

mais vendidos no Brasil e serviu de inspiração para criação do filme “A Tropa

de Elite” do diretor José Padilha e lançado em 2006:

“Este livro foi escrito com o propósito de enriquecer o processo de

reflexão dos policiais e da opinião pública. Seu objetivo não é depreciar

os profissionais da segurança, mas valorizá-los; não é atingir as

instituições, mas promover seu aperfeiçoamento.(...) Os três autores

sonhamos com o dia em que poderemos celebrar, no Rio de Janeiro, a

reconciliação entre a sociedade e as instituições policiais (...) Elite da

Tropa é dedicado aos que trabalham, nas polícias e fora delas, para que

a reconciliação seja um dia possível. Os relatos que compõem este livro

são ficcionais, no sentido de que todos os cenários, fatos e personagens

foram alterados, recombinados e tiveram seus nomes trocados. Se, por

acaso, nossa imaginação se equiparar ao que efetivamente acontece,

talvez isso decorra do fato de termos escrito este livro a partir das

nossas experiências, e de termos vivido, cada um à sua maneira, a

realidade da segurança pública do Rio de Janeiro.”15

3. Considerações finais: a mensagem e o exemplo da fotografia

Se por acaso o objetivo deste trabalho fosse apenas o de destacar as

diferenças existem entre o filme, o livro e a realidade, no caso de “O Lobo de

Wall Street”, talvez jamais alcançássemos uma lista exaustiva e nos

perderíamos em meio as inúmeras distorções e contradições presentes na

obra. No entanto, este trabalho se prestou a esclarecer que o mais importante

em adaptações entre cinema, literatura e realidade, no que se refere à arte, é a

mensagem e o poder de provocar sensações no leitor ou expectador. O

roteirista, Doc Comaparato, a respeito do mesmo tema, diz o seguinte:

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“Não temos a responsabilidade de nos limitar ao sistema

ideológico que nos ampara, mas sim a de dar forma artística e

dramática aos conflitos do homem do nosso tempo. Expressar as

suas aspirações, necessidades, contradições e complexidades.

Mostrar o mundo injusto que nos rodeia e revelar a profundidade

de paixões, ou nos conformar com o estabelecido. Sendo uma

decisão de cada dia e de cada um. Uma coisa é certa: aborrecer

mortalmente o espectador não é permitido.”16

Este conceito apresentado por Comparato, de entretenimento e

valorização da mensagem, também esta presente na fotografia. Podemos

exemplificar com uma das imagens mais icônicas da história da fotografia,

chamada de “A Morte de Um Miliciano”, registrada pelo fotógrafo Robert Capa

durante o período da Guerra Civil Espanhola na década de 30, que, apesar de

especialistas a considerarem montagem, por hipoteticamente não reproduzir

uma cena real17, ainda é reconhecida como um dos mais belos retratos de

combates de guerra da história.

A respeito do filme, “O Lobo de Wall Street”, podemos dizer que, assim

como em “A Rede Social” e “Tropa de Elite”, a presença de diferenças em

relação ao livro ou a realidade, não o desqualificam no aspecto artístico e

apenas indicam que, a despeito do que foi escrito por Belfort no livro ou

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realmente aconteceu, o diretor Martin Scorsese buscou provocar sensações no

expectador e transmitir uma mensagem específica. O consequente sucesso do

filme, tanto a respeito de arrecadação em bilheteria, em que ultrapassou a

marca de US$ 300 milhões³, quanto a crítica, em que recebeu 5 indicações ao

Oscar, demonstram que o diretor atingiu algum sucesso no que se

comprometeu.

4- Referências

Filme: O Lobo de Wall Street (The Wolf of Wall Street), EUA, Martin Scorsese,

2013.

Livro: O Lobo de Wall Street, Jordan Belfort (tradução: Pedro Barros), São

Paulo, Planeta, 2014.

1- Em estreia, "A Culpa é das Estrelas" fatura quatro vezes quanto custou,

Uol, 08/06/2014. Disponível em: http://cinema.uol.com.br/noticias/redacao

/2014/06/08/a-culpa-e-das-estrelas-lidera-bilheteria-dos-eua-com-us-482-

milhoes.htm

2- Livros que viraram filmes (muitas vezes estrelados por astros teen)

dominam lista das obras mais vendidas, Marina Cohen, O Globo,

07/06/2011. Disponível em: http://oglobo.globo.com/cultura/megazine/livros-

que-viraram-filmes-muitas-vezes-estrelados-por-astros-teen-dominam-lista-das-

obras-mais-vendidas-2760960

3- O Lobo de Wall Street torna-se o filme de maior bilheteria da carreira de

Scorsese, O Globo, 12/02/2014. Disponível em:

http://oglobo.globo.com/cultura/ o-lobo-de-wall-street-torna-se-filme-de-maior-

bilheteria-da-carreira-de-scorsese-11580410

4- Lobo de Wall Street vende cursos éticos, Rodolfo Lucena, Folha de São

Paulo, 2014. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2014

/02/1409523-lobo-de-wall-street-vende-cursos-eticos.shtml

5- A Rede Social (The Social Network), EUA, David Fincher, 2010.

6- Bilionários por Acidente (The Accidental Billionaires), Ben Mezrich,

Intrinsica, São Paulo, 2009.

7- Mark Zuckerberg: A verdadeira Face do Facebook (Mark Zuckerberg: The

Real Face of Facebook), EUA, Lauren Klein e Julien Pradinaud, 2012.

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8- Eduardo Saverin, o brasileiro do Facebook, conta sua história, Fábio

Altman, Revista Veja, 26/05/2012. Disponível em: http://veja.abril.com.br/

noticia/vida-digital/eduardo-saverin-o-brasileiro-do-facebook-conta-sua-historia

9- Algoritmo de Eduardo Saverin – Facemash, Angel R Debone, Geek,

2013. Disponível em: http://www.geek.com.br/posts/21834-algoritmo-de-

eduardo-saverin-facemash

10 - Entrevista Jordan Belfort (Jordan Belfort Interview), 60 minutes.

Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=S8i13AqvV3M

11- Memórias do “Lobo de Wall Street” geram filme invulgar, Inácio Araújo,

Folha de São Paulo, 10/02/2014. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/

ilustrada/2014/02/1409727-critica-memorias-do-lobo-de-wall-street-real-geram-

filme-invulgar.shtml

12- O Lobro de Wall Street (The Wolf of Wall Street), EUA, Martin Scorsese,

2013. Aos 8:10 min.

13- O Lobo de Wall Street, Jordan Belfort (tradução: Pedro Barros), São

Paulo, Planeta, 2014. Página 16.

14- O filme é melhor que o livro?, Revista Cult, Edição 135, 2010. Disponível

em: http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/o-filme-e-melhor-que-o-livro/

15 – Elite da Tropa, André Batista, Luiz Eduardo Soares e Rodrigo Pimentel,

Objetiva, São Paulo, 2006. Página 7.

16 - Da criação ao roteiro: teoria e prática, Doc Comparato, São Paulo,

Summus, 2009. Página 370.

17- A sombra de uma dúvida, tradução de Christian Schwartz publicado

originalmente no The New York Times, Gazeta do Povo, 01/09/2009.

Disponível em: http://www.gazetadopovo.com.br/cadernog/conteudo.phtml?id=

920142