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A PROPÓSITO DE UM BENEFÍCIO*: A NECESSIDADE DE UMA ELITE EM ASCENDER. MAURÍCIO HIGINO DA SILVA* () quadro doado pelo artista Eduardo Dias para o "Hospital de Carida- de"(1) de Florianópolis, por volta dos anos vinte, mostra como a caridade muito mais do que somente um ato humanitário por parte de alguns homens públicos, foi tam- bém uma forma de distanciamento propos- ta pela elite, para diferenciar-se dos menos abastados. A entrega dessa pintura no começo do século, representa uma preo- cupação crônica nos interesses do pro- gresso republicano, devido a uma grande soma de pedintes e mendicantes que pe- rambulavam pela cidade, como o jornal "A OPINIÃO"comentou em seu artigo entitu- lado "Morpheticos Mendigantes". "Há muitos dias perambulam pelas ruas desta capital, dois infelizes morpheticos, inspirando às familias que se compadecem deveras de seu estado lastimável, natural e instintiva repulsão. . Temo-los visto nesta cidade, sentados 'Formado em História pela FAED/UDESC e aluno da Pós-Graduação de Mestrado em História Social do Departamento de História e Filosofia da UFSC. nas soleiras das portas, ou deitados nas calçadas, e outras vezes, invadindo os do- micilios em busca de esmolas. (...)"(2) A necessidade de retratar para a cida- de partia a princípio dos pintores, que por sua vez tinham uma relação de dependên- cia com a elite política. Entretanto as gran- des associações de caridade patrocinadas pelas senhoras que se reuniam para o ato aos pobres, acabam retratando uma reali- dade e um princípio cujo o significado re- presenta muito mais do que somente as imagens de algumas telas, trazendo um questionamento que parece comum ao iní- cio do século XX. O fato de haver uma grande soma de desempregados e miserá- veis em Florianópolis que não apareciam nas pinturas desses artistas, talvez, ocor- ra porque a "(...) imagem que dele se dá é pitoresca, caricata: o povo é sujo, medo- nho."(3) Por esse motivo é difícil mostrar uma pintura desse problema republicano nas grandes capitais, seja porque não era um tema apropriado para aquele tipo de arte visual, ou porque essa realidade esta- ÁGORA 27 7

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A PROPÓSITO DE UM BENEFÍCIO*:A NECESSIDADE DE UMA ELITE EM

ASCENDER.

MAURÍCIO HIGINO DA SILVA*

()quadro doado pelo artista EduardoDias para o "Hospital de Carida-

de"(1) de Florianópolis, por volta dos anosvinte, mostra como a caridade muito maisdo que somente um ato humanitário porparte de alguns homens públicos, foi tam-bém uma forma de distanciamento propos-ta pela elite, para diferenciar-se dos menosabastados. A entrega dessa pintura nocomeço do século, representa uma preo-cupação crônica nos interesses do pro-gresso republicano, devido a uma grandesoma de pedintes e mendicantes que pe-rambulavam pela cidade, como o jornal "AOPINIÃO"comentou em seu artigo entitu-lado "Morpheticos Mendigantes".

"Há muitos dias perambulam pelas ruasdesta capital, dois infelizes morpheticos,inspirando às familias que se compadecemdeveras de seu estado lastimável, naturale instintiva repulsão. .

Temo-los visto nesta cidade, sentados

'Formado em História pela FAED/UDESC e aluno daPós-Graduação de Mestrado em História Social doDepartamento de História e Filosofia da UFSC.

nas soleiras das portas, ou deitados nascalçadas, e outras vezes, invadindo os do-micilios em busca de esmolas. (...)"(2)

A necessidade de retratar para a cida-de partia a princípio dos pintores, que porsua vez tinham uma relação de dependên-cia com a elite política. Entretanto as gran-des associações de caridade patrocinadaspelas senhoras que se reuniam para o atoaos pobres, acabam retratando uma reali-dade e um princípio cujo o significado re-presenta muito mais do que somente asimagens de algumas telas, trazendo umquestionamento que parece comum ao iní-cio do século XX. O fato de haver umagrande soma de desempregados e miserá-veis em Florianópolis que não apareciamnas pinturas desses artistas, talvez, ocor-ra porque a "(...) imagem que dele se dá épitoresca, caricata: o povo é sujo, medo-nho."(3) Por esse motivo é difícil mostraruma pintura desse problema republicanonas grandes capitais, seja porque não eraum tema apropriado para aquele tipo dearte visual, ou porque essa realidade esta-

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va pensada nos artigos de jornais escritospor homens públicos ou religiosos; poisos grandes periódicos dessa época na ca-pital catarinense não tinham essa preocu-pação, a não ser que esse povo ofendessea sua superioridade e dignidade peranteaos admiradores da escrita moral. Portan-to essa realidade representa um tipo deforça na linguagem escrita, onde o "(...)poder pertence ao discurso que o define eo qualifica"(4).

Havia um momento na vida dos pobresque o convívio com a classe abastada es-treitava-se no público, entre as ruas e osencontros boêmios, podendo ferir os olhosque estavam admirando o belo e o novoque o século vinte estava propondo aosrepublicanos. Mesmo que essa pobrezapudesse ofender o "olhar", não mudaria oproblema que era inegável: a "nova" Flori-anópolis não poderia conviver com umamiséria crescente e a obra de arte seria oespelho da elite e não das demais classessociais, sua possível ligação com os po-bres está em ampliar o distanciamento en-tre ambos através da altivez e sobriedadedas imagens. A atitude de caridade evita-ria um confronto eminente no futuro, comoo jornal "A OPINIÃO" escreve em seu ar-tigo "Os Pobres":

"(...) Que Deus se compadeça dos quesofrem as torturas da miséria, - hoje ainda,por vergonha, no íntimo do lar, mas ama-nhã ou dentro em pouco publicamente,

para remorso daqueles que deitam milhõesao vento, e que querem fazer economia domagro salário de pobres trabalhadores ede modestos empregados, economisandoassim à custa dos padecimentos, da misé-ria e da fome de famílias inteiras..."(5)

Alguns pintores compadeciam-se como aumento da pobreza em Florianópolis,dentre eles Eduardo Dias, que tinha amiza-de com as pessoas ilustres, devido aosinúmeros contatos na boemia da cidadecomo bares e cafés, e em um desses en-contros tornou-se amigo do diretor doHospital de Caridade. Esse fato vai pro-porcionar a chance de ajudar aos necessi-tados, e por um breve momento fazer partedesse grupo seleto de caridosos abasta-dos. Esse tipo de atitude era muito comumpara aproximar a arte aos bons olhos dasfamílias da elite política. Os artistas utiliza-vam-se muito desse artificio de coopera-ção mútua; uma prova dessa relação detroca de favores, está nos jornais que fo-ram a melhor maneira de sacramentar essecontato, como é o caso do pintor GuttmannBicho, que o jornal a"REPÚBLICA" enal-tece no seu artigo "Quadro artístico - Embeneficio dos pobres do Asylo de Mendici-dade".

"O distinto pintor patricio GuttmannBicho, professor de desenho do Lyceu deArtes e Officios, produziu um bellissimoquadro a oleo que destinou aos pobres doAsylo de Mendicidade.

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É um dos mais lindos trabalhos do pin-cel do festejado artista, que soube com rarafelicidade transportar para a tela um recan-to da natureza, batido pela esplandente deuma noite de luar.

O Sr. Patricio das Neves, presidente daassociação Irmão Joaquim e do Asylo deMendicidade expoz o quadro mostra daRelojoaria Meyer, onde tem sido muitoapreciado.

O Sr. Deputado Hyppolito Boiteux jáoffereceu 50$000 pela artística tela, um be-neficio dos pobres do Asylo.

Quem offerecer maior quantia, entre osque querem adquiri-la, será o possuidorde tão bello quadro e concorrerá para umaobra de verdadeira caridade." (6)

Parece ter sido este o reflexo de umanecessidade do artista de não somente teros trabalhos publicados e propagandea-do indiretamente nas folhas dos jornais,especialmente nos periódicos republica-nos, mas também aproximar-se da elite pelomeio mais "humanitário"e "nobre". Noentanto era fato que a miséria existia emboa parte no grande número de desempre-gados, e entre esses trabalhadores da Flo-rianópolis do início do século XX, esta-vam ironicamente os pintores; pois nãoeram uma exeção da própria pobreza quenão pintavam, sua arte era negociada emleilões para a caridade, "(..) assim é e por-que não há sujeito social que possa igno-rá-lo praticamente, as propriedades (ob-

jetividade) simbólicos, mesmo as maisnegativas, podem ser utilizadas estrate-gicamente em função dos interesses ma-terais e também simbólicos de seu porta-dor " (7), o quadro "Hospital de Carida-de", de Eduardo Dias, tem mais a mostrardo que simplesmente a sua qualidade ar-tística, retrata uma época de empobreci-dos que não aparecem nessas imagens euma elite que utiliza-se da iconografia comolhe era conveniente. Observando-se emdetalhe a obra, é percebível o Hospital deCaridade em plano alto, acima das casas edos transeuntes, que se colocam quaseinvisíveis a suntuosidade e distanciamen-to. Percebe-se que a colocação espacialdos humildes na parte inferior da pintura ébem disposta para ao mesmo tempo man-ter os mendicantes bem longe da cidade edas casas de família; servindo como sím-bolo dos anseios da generosidade da elitepolítica de Florianópolis. Muitas vezes taisdesejos foram usados no discurso de "pro-gresso" tornando-se o principal elementoda arrecadação de dinheiro das "senhorashonestas".

O pintor procura pela tonalidade de luze cores, ferramentas importantes de sedu-ção do público sendo geralmente o pontoprincipal para aumentar o comércio dessaarte nos leilões. Mesmo que muitas vezestenha sido o elemento dos comentários nasexposições de arte, esse brilho provocadopelo artista no quadro em questão, somente

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A PROPOSITO DEUM BENEFICIO

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ampliava o motivo dessa generosidade ar-tística, pois há uma intenção de "atenderàs expectativas de representação simbó-lica nutridas pelos setores de elite queacabaram convertendo a encomenda des-sas obras numa marca excepcional de re-quinte e prestigio". (8) Tornava-se assim,essa iconografia, um negócio permutávelde beleza e de aparências inauguradas pelapintura, sendo que a caridade não fugia aomesmo sentimento. A primeira está preo-cupada com um "olhar" mais privado e opintor o máximo de publicidade possívelpara ampliar a clientela e na segunda o"olhar"é muito mais popular para ambosos casos, pois somente mencionando osnomes dos caridosos é que sua superiori-dade seria consumada. Por isso essa pin-tura é interessante pois reúne os íconesdo prestígio sonhado pela elite, a tela ondeas imagens ganham eternidade na mentedos apreciadores ilustres e a generosida-de que mascara a intenção verdadeira deter seus nomes publicados nos artigos dejornais atraindo a merecida publicidade.

Esses símbolos dessa elite urbana oramisturavam-se com os interesses daqueleque os soubessem manusear, ora atuavamseparadamente com focos distintos. Ge-ralmente o alvo de seus olhares era umacidade que clamava nos discursos repu-blicanos por mudanças não indicando queos menos favorecidos fizessem parte des-se pensamento de modernidade. O enfo-

que do quadro demonstra esse motivo, poromitir o interesse do hospital, justamenteonde os desfavorecidos estão mantidos,ao invés disso mostra o exterior que é mui-to mais fácil de ser reconhecido por qual-quer "cidadão". Parece dicotômico ter umasociedade preocupada com a invasão desuas casas pelos os "desconhecidos"mendigos, e ao mesmo tempo organizaremtodo tipo de atividades filantrópicas paraangariar fundos para esses mesmos estra-nhos.

A questão dos desfavorecidos era umapolêmica em quase todos os artigos de jor-nais da época, podendo ser interpretadacomo um pavor para a elite política, umaameaça a ordem estabelecida. Símbolo dereconhecimento através da caridade e com-pleto desespero devido ao inerte compor-tamento da maioria da população, essespobres eram de desempregados ou pesso-as que viviam com pouco na periferia dacapital do Estado é o que o jornal "A Opi-nião" comenta no seu já referido artigo:

"(...) Hoje é uma realidade terrível edolorosa como um pesadelo povoado defantasmas desoladores.

O pão encarece, o dinheiro escasseia eo trabalho falta pela escassez do dinheiro.

Das oficinas são despedidos em mas-sa, ás centenas, os operários, que nelas,com o suor do trabalho - muitas vezes alémdas suas forças, - iam ganhar o sustentoda família, a renda da casa, o vestuário mo-

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desto.De um momento para outro, tudo lhes

falta, tudo se desmorona e subverte, comosi um cataclysmo lhes houvesse desaba-do sobre a cabeça."(9)

A perspectiva de ascender passa ne-cessariamente pela consolidação da ima-gem tanto em um contexto político comoem um contexto cultural, essa aceitaçãoparte do diminuto público que normalmenteparticipava das amostras e exposições dearte, ao grande público que raramente leriaum jornal e ficaria com seus olhares paraas vitrinas dos cafés onde estaria as pin-turas dos rostos ou de caridade, onde apintura é o "(...) fruto de uma complexanegociação entre o artista e o retratan-do, ambos imersos nasa circunstâncias emque se processou a fatura da obra, mol-dados pelas expectativas de cada agentequanto à sua imagem pública e instituci-onal, quanto aos ganhos de toda a ordemtrazidos pelas diversas formas de repre-sentação visual (...)"(10), pertencentes aouniverso simbólico dessa época, as refe-rências da cidade são a melhor traduçãodo entendimento do artista das necessi-dades de seus compradores.

O ato de doar aos pobres, seja o preci-oso tempo da elite ou um bem para ser ne-gociado nos leilões de caridade, não re-presentava a "opinião" de todos os jorna-listas do início do século XX em Florianó-polis, havia alguns que não encaravam tão

satisfatoriamente essas doações, questio-nando o real sentido que estava por trásdesses pedintes abastados. Na capital eracomum encontrá-los pelas ruas atacandoaos distraídos transeuntes, pelo menos éo que propõe uma crônica dessa época pu-blicada no jornal "República", cujo títuloé o mesmo deste artigo:

"Quando a mim me falam em benefíci-os, ponho para logo as orelhas a pino,arregalo melhor os olhos, e fico na espec-'ativa da 'facada".

Geralmente, "benefico" é synonimo de"cavação"; o beneficio theatral, porexemplo, é uma amostra excelente do pan-no, sem um fiapo falso, sem uma únicamalha postiça. (...)"(I 1)

Esse argumento é interessante apesarde seu tom coloquial, para compreenderque nem todos compactuavam com o pen-samento da caridade, que é o de sempredoar aos que precisam a todo o instante,mas somente quando for conveniente con-ciliar os interesses particulares com a ver-dadeira necessidade de dar aos pobres.

Os pedintes que obviamente não eramos mendigos, pois estes assolavam a men-te e os receios das famílias da capital, masos que se acobertavam pelo beneficioalheio e indiretamente o próprio, é que vãoproporcionar as circunstâncias para a cri-ação dessa pintura de Eduardo Dias. Sãoos que pedem na rua que sustentam a cari-dade na cidade, independente dos interes-

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ses pedidos aos homens públicos que porsua avareza ou pelo fato de não haver ne-nhuma projeção em dar algo a alguém, tor-naram possível um prestigio a um artistapobre de aproximar-se e fazer parte, nemque seja por um simples ato de caridade.Podendo dessa forma ascender como umpintor da elite política e cultural, pois a pin-tura seria colocada em um local de desta-que no próprio hospital, justificando o ar-tista e sua arte.

O benefício foi a melhor forma depoisda pintura de demonstrar o devido distan-ciamento dado pela elite ao resto da popu-lação. Mesmo que houvesse uma boa in-tenção pelas mãos de algumas mães cató-licas, esse fato não garantia que todas seempenhassem nesse objetivo. É importan-te lembrar que quase toda a caridade par-tia da própria igreja, a religião por muitotempo apropriou-se das imagens para ex-pressar sua fé, pensamentos e manter umpúblico cativo a idéias cristãs. Para os pin-tores esta era mais uma forma de garantirtrabalho e o sustento da sua arte.

Os desfavorecidos tinham nas organi-zações beneficientes a única esperança deatenção nessa luta de olhares e imagens.Para a minoria política, os populares sãoparte eleitores que devem admirar seusrostos e parte um estorvo e receio de umconvívio mais próximo. Essa populaçãopossuía hábitos e costumes próprios e namaioria das vezes são muito aceitos por

essa elite local, pois os mendigos e os po-bres tiravam as expectativas de pureza elimpeza porposta pelo discurso dessa épo-ca. No entanto, os desqualificados de vezem quando destituíam-se desse pensa-mento provocando ao pedir qualquer aju-da, os princípios dos homens públicos edas mulheres ricas ao afrontar sua estéticae tênue aparência, tendo a sua inerente "(...)criatividade social dos assim chamadosdesarticulados, pelo modo como eles seapropriam de velhas formas sociais e asmodificam de acordo com suas necessi-dades. "(12)

A caridade em Florianópolis no iníciodo século XX, mobilizava as damas da so-ciedade, os politicos influentes, os jorna-listas católicos e críticos e as jovens daelite que sonham com sua aparência mol-dada nos valores tradicionais da elite. Es-sas adolescentes conciliavam a articula-ção da generosidade e forneciam umaamostra da transformação que sofriam paraserem aceitas nesse preâmbulo de imagenslegitimadoras de indivíduos, como o refe-rido artigo do jornal "República", mencio-na na sua nota final:

"Algumas mocinhas da sociedade es-tão a esta hora activando os preparati-vos para a realização de uma festa embeneficio do Asylo de Orphãos.

O querer de cada um desses jovenscorações tão cheios de piedade visou dêsdo principio angariar os necessarios mei-

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os para ampliar o edifício daquelle esta-belecimento de caridade, não poupandosacrifícios no santo intiuito de levarem acabo o meritorio acto.

Que seja, pois, é dever de cada cava-lheiro não desertar com o seu soccorropecuniario á bolsa angariadora dessascreaturinhas bemfeitoras e não esconderusurariamente sua presença ao completobrilhantismo do festival de amanhã, noTheatro Alvaro de Carvalho. "(13)

Os jovens, como relata o artigo, forma-vam um grupo tão ansioso em brilhar nosjornais como os adultos. No entanto osargumentos da palavra sobressaem a ten-tativa de aparecer para a elite social e cris-tã, enaltecendo pela escrita o que a ima-gem não poderia ainda fazer por esses abas-tados, ou seja, consolidar também na ico-nografia seus desejos de destaque.

O alcance das simbologias na icono-grafia no início desse século, trouxe umalinguagem visual muito mais apurada pelafotografia, que naquele momento estavanos jornais lidos pela elite. Mostrar a reali-dade na pintura não indicava necessaria-mente que seria tudo visualizado pelo ar-tista, mas sim descrever pela tinta o imagi-nado na tela. Motivado muitas vezes pelopagamento, os desejos do comprador e ascânones pictóricos é que tomará possívelum trabalho de técnica mais apurada le-vando o artista a perceber as necessida-des visuais de seu negociante, para dessa

forma ganhar a devida notoriedade nessasociedade, então é interessante pensar quenesse período criar uma imagem é fortale-cer a sua própria diante de uma elite caren-te de aparências dignas de seus interes-ses particulares.

A pintura tem seu próprio meio de atin-gir a sensibilidade do olhar pois o pintorvê na sua arte um modo de ascender e oartista aproxima-se de técnicas e sentidosdo seu corpo. "Nesse tipo de conhecimen-to entram em jogo (diz-se normalmente)elementos imponderáveis: faro, golpe devista, intuição."(14) É essa soma de sen-sibilidade e percepção dos desejos da eli-te, que provavelmente projetara o pintor,por isso aprimorar sua arte é vital para au-mentar o apreço pelo estilo artístico deEduardo Dias. Sua assinatura torna-se le-gítima perante o "olhar" apurador dessaelite de aparências e suas telas ganhampouco a pouco a simpatia dessa socieda-de de imagens. O artista pode-se dar aoluxo de doar um quadro ao Hospital de Ca-ridade, pois não é qualquer pintor que tema mesma oportunidade nessa época de fa-zer tão apreciado ato de benevolência.

Para que essa condição de iconogra-fia e aceitação dessa maneira particularde pintar o seu ambiente dentro dos parâ-metros canônicos de luminosidade, co-res e forma fosse reconhecida pela elite,era de suma importância notar que "(...)este tipo de rigor é não só inatingível

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mas também indesejável para as formasde saber mais ligadas à experiência co-tidiana."(15) Essa reflexão auxilia a pro-posta de pensar que talvez esse seja umbom motivo para entender a questão denão haver nas pinturas dessa época a me-nor referência aos pobres que tanto a eli-te gostava de ajudar na caridade Mesmosabendo do valor de um quadro para ummembro dessa elite, e da parca proximida-de da arte com os desfavorecidos, é es-tranho não pensar nessa imagem comotema do pintor, sendo que estava maisperto da pobreza do que do requinte bur-guês. Aparentemente resume-se tudo ápintura de uma construção que não refle-te os necessitados que assolam a capitaldo estado, entretanto serve a sua funçãode generosidade e publicidade.

O artista indiretamente perpetua acrença de identificação coma imagemmantendo um grupo de pessoas sobre oágil pincel e distanciando outras que nãoo reconhece como pintor da mesma formaque a elite o faz nos artigos de jornais.Essa pobreza não tem realmente outra al-ternativa a não ser esperar a boa venturadesses caridosos abastados, cuja real pre-ocupação é duvidosa, pois creio que neintodos tinham tanto altruísmo assim pararesolver as necessidades dos pobres queofendiam estética e comportalmente a sen-sível visão de "luxo"e "progresso" dosabastados de Florianópolis no início do

século.O impacto que essa arte infligia aos

observadores e compradores, tornavama elite dependente da justificativa visual,e tal dependência poderia provocar umareação a tudo que se refere a aparência eascensão social perante aos critérios im-posto pelos abastados. Manter um pa-drão de comportamento dentro dessa so-ciedade de compra e venda de pinturas,ampliou naquela época o status da elite epor algum tempo trabalho a um pintor ca-rente de trabalho rentável.

A pobreza, a arte, a elite política, ospedintes, o artista e os jornais formam acomposição desse cenário na capital, cujatonalidade é determinada pela ascensãonas imagens. A pintura do "Hospital de

Caridade" representa muito bem essa ne-cessidade crônica de ver e ser visto paraos habitantes da capital, traduzindo es-ses anseios para a iconografia, onde atéo próprio criador da pintura é o principalalvo da imagem que produz. Um "(...) exa-

me desse imenso corpus pictórico develevar em consideração os condicionan-tes relativos ao status então desfrutadopelas artes visuais e seus praticantes nocontexto mais amplo do campo intelec-tual e artístico do período"(16), tornan-

do sua arte valiosa tanto na memória comona história dessas pessoas, um registrode sonhos e desejos em símbolos e ima-gens.

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NOTAS:** Titulo de um artigo encontrado no jornal RE-

PÚBLICA de 16/10/1919, n° 310, pg. 02.Título da pintura em questão, tombado pos-

teriormente pelo MASC n° 417, óleo s/tela, 12x18 em.

Jornal A OPINIÃO de 04/05/1916, n° 345,pg. 02.

GENEVIÉRE, Bolléme. O Povo por Escrito.São Paulo: Martins Fontes, 1988. p. 139.

GENEVIÉRE, Bolléme. op. cit. p. 139.Jornal A OPINIÃO de 28/01/1916, n° 264,

pg. 02.Jornal REPÚBLICA de 15/08/1919, n° 258,

pg. 02.(7) BORDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Lis-

boa: Difel, 1990. p. 112.MICELI, Sérgio. Imagens Negociadas.São

Paulo:Companhia das Letras,1996.p. 118.Jornal A OPINIÃO, op. cit. n° 264, pg. 02.MICELI, Sérgio. op. cit. p. 18.Jornal REPÚBLICA de 16/10/1919, n° 310,

pg. 02.DAVIS, Natalia Zenon. Culturas do Povo.

Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. p. 106.Jornal REPÚBLICA, op. cit. n° 310, pg.

02.GINZBURG, Carlo. Mitos, Emblemas e Si-

nais - Morfologia e História: Companhia

das Letras, 1991. p. 179.GINZBURG, Carlo. op. cit. p. 178.

(16) MICELI, Sérgio. op. cit. p. 18.

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