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    Mesmo que todas as par tes de um problema

    paream ajustar-se com o peas de um

    quebra-cabea, h que refletir qu e aqu i lo que

    provvel no necessar iamente a verdade e

    qu e a verdade nem sempre provvel.SIGMUNDFREUD

    Clarice Lispector tem, nesse romance, Ahora da estrela1, um divisor de guas, profundase opacas de um lado o social , do outro,profundas, porm, cristalinas Macaba.

    Publicou esse livro, madura, em 1977, compouco mais de cinqenta anos. Nascida emTchetchelnik, antiga URSS, na Ucrnia, em 1926,morrendo em 9 de dezembro de 1977, s 10:30.

    ComA hora da estrela, Clarice inicia umanova fase de sua carreira. Nascia uma nova evigorosa escritora do povo, da realidade brasileiradeste fim de sculo.

    A solido, um leitmotiv, continua a ser suagrande preocupao. Sua literatura marcada porduas fases. A primeira (iniciada com Perto docorao selvagem), a das dores existenciais banaisdo pequeno-burgus, do no-sei-o-que-vou-fazer-da-minha-vida. Uma alegoria da solido, umasolido que rescalda. Uma solido de pessoas quetm um ego interior, profundo, estranho, pessoasque, mesmo sendo comuns, vivem uma existnciainterior deformada, uma vida de fuga realidade.

    A segunda (apenas uma obra, A hora daestrela), a solido dos proletrios, aguada pelomorar mal, comer mal, vestir mal, ganhar mal, umamisria concreta, real e objetiva, resultante de umaexplorao consciente e organizada pelaburguesia e pelo latifndio. Pessoas que reagemtipicamente diante dos acontecimentos do dia-a-dia de nossa sociedade, pessoas comuns que

    vivem situaes comuns.

    A solido, emA hora da estrela, avulta aindamais pela dificuldade de comunicao: Ela falava,sim, mas era extremamente muda (AHE, 36). Esse

    paradoxo, fala/mudez, um contraditrio irnicoe cmico que di no leitor, como uma bofetada.

    Clarice captou, com rara acuidade, toda asolido de nossa protagonista, toda a sua alienao,

    num emaranhado que evita sua integrao nasociedade:Pois que a vida assim: aperta-se o boto e avida acende. S que ela no sabia qual era oboto de acender. Nem se dava conta de quevivia numa sociedade tcnica onde ela era umparafuso dispensvel (AHE, 36).O problema da comunicao torna-se mais

    chocante quando se encontram pessoas-ilhasdentro desse universo alienado: Macaba e odoutor. Um dilogo de surdos. A ternura e acupidez. O mdico, desatento, que achava a

    pobreza uma coisa feia, detestava os pacientes,desatualizado na medicina e nas novidadesclnicas mas para o pobre servia, queria terdinheiro para fazer exatamente o que queria:nada (AHE, 77).

    Voc est com comeo de tuberculosepulmonar.Ela no sabia se isso era coisa boa ou ruim. Bem,como era uma pessoa muito educada, disse: Muito obrigada, sim (AHE, 78).

    A emoo o condicionamento de toda aobra. A marcha do demiurgo, na direo da

    escritura do povo, era como a roda da histria,no voltaria jamais. Teramos, como disse Engelsa respeito de Balzac, mais uma vitria do realismona literatura brasileira.

    O ttulo era Humi lhados e ofendi dos. Ficoupensativa. Talvez tivesse pela primeira vez sedefinido numa classe social. Pensou, pensou epensou! Chegou concluso que na verdadeningum jamais a ofendera, tudo o que aconteciaera porque as coisas so assim mesmo e nohavia luta possvel, para que lutar? (AHE, 48).Na sua marcha para uma escritura renovada,

    ela foi buscar, no macrocosmo brasileiro, umsemovente para o seu microcosmo, representanteda misria toda: uma nordestina, uma indesejada

    A pro letr ia Ma ca ba

    Carlos Alberto dos Santos AbelPro fes so r a posen tado de l i te r a tu ra b ra s i le i ra e pesqu i sado r a s soc iado / UnB

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    da sorte, pria dessa sociedade capitalistaselvagem, injusta e desumana, onde o pauperismo dividido autocraticamente a maioria tem-noem doses macias.

    Volto moa: o luxo que se dava era tomar um

    gole frio de caf antes de dormir. Pagava o luxotendo azia ao acordar (AHE, 41).O drama de Macaba o padro da grande

    maioria da nossa populao. Um padro queinteressa, na medida em que universal,espraiando-se por toda nossa realidade, umuniversal concreto e vvido, acontecendo no agorade todos esses deserdados.

    Macaba, personagem quase caricata, aempregada domstica, a comerciria, a industririaou a campesina, tipo servente da classe mdia, daburguesia e do latifndio, moradora das casashumildes, dos barracos das favelas, dos cubculos,chamados de quarto-de-empregada, um-gueto-sem-janela, apertado e sufocante, ou sem-teto-lar-dinheiro-justia, sem-nada, nas ruas calorentas efriorentas de nossas cidades ocidentais-crists..Bernard Shaw, socialista sarcasta, concluiu que,no capitalismo, o pobre tem um direito inalienvel:s ele pode dormir debaixo da ponte...!

    Clarice critica o mundo degradado. Vai-nosconduzindo pela vida sem esperana dasMacabas. Macaba empalideceu: nunca lhe

    ocorrera que sua vida fora to ruim (AHE, 86).Clarice, atravs de um estilo personalssimo,

    vai-nos trazendo informaes acerca daprotagonista. Verdadeiros achados. Tesouros denaturalidade. Arte maior. Didaticamente forma-se o quadro: Voc, Macaba, um cabelo na sopa(AHE, 70).

    Uma das marcas da mestria clariceana afixao de Maca pela cultura (quase sempre intil)da Rdio Relgio Federal uma das facetas maistocantes do romance:

    Foi assim que aprendeu que o Imperador CarlosMagno era na terra dele chamado Carolus.Verdade que nunca achara modo de aplicar essainformao (AHE, 45).Os proletrios deA hora da estrelaso ss,

    no so solidrios nem tm solidariedade deningum, no h a justaposio dialticaindivduo-sociedade, ego-coletividade, indivduo-classe social. Solitrios, no podem lutar contraas regras injustas de um jogo que tm de sofrer. Ocampo da justa e as regras da burguesia.

    Os despossudos, emA hora da estrela, ou

    aceitam passivamente tudo que lhes imposto,ou passam a agir como o autntico picareta, opcaro, o sobrevivente, como Olmpico. Karl Marx

    brilhantemente cognominou essa escria delumpenproletariado,

    termo que traduz o alemo lumpenproletariat,como o lixo de todas as classes, uma massadesintegrada, que reunia indivduos arruinados

    e aventureiros egressos da burguesia,vagabundos, soldados desmobilizados,malfeitores recm-sados da cadeia [...]batedores de carteira, rufies, mendigos etc.2

    No mundo capitalista, os valores moraisdegradados, deteriorados, os lumpenproletrios,medram nesse caldo de cultura. Os Olmpicos esuas peripcias, os pcaros, os anti-heris,manhosos, cnicos, inescrupulosos, masdeterminados a sobreviver e a tirar todas as

    vantagens possveis de tudo e de todos.Procuram realizar-se, desejam sair da

    condio de servos, querem ser patres,proprietrios, querem tornar-se o aoite dos seusiguais. Como, numa premonio, afirma Olmpico:Sou muito inteligente, ainda vou ser deputado.

    E no que ele dava para fazer discurso? Tinhao tom cantado e o palavreado seboso, prpriopara quem abre a boca e fala pedindo eordenando os direitos do homem. No futuro, queeu no digo nesta histria no que eleterminou mesmo deputado? E obrigando osoutros a chamarem-no de doutor (AHE,55).O pcaro tem um projeto pessoal, quer

    alcanar suas metas, um ideal individual e no declasse. Os Olmpicos, concretizando seus planos,no afetaro o conjunto da sociedade, e a justiacontinuar legal, mas amoral, injusta, a alienaoperpetuada:

    No se arrependeu um s instante de terrompido com Macaba pois seu destino era ode subir para um dia entrar no mundo dosoutros. Ele tinha fome de ser outro (AHE, 75).Quando vemos o circo poltico brasileiro,

    no concordo com os cientistas que afirmam que,aps a prxima hecatombe nuclear, prxima eltima, s sobrevivero os ratos e as baratas. Noconcordo, pois acrescentaria muitas das figurassrdidas que campeiam na nossa burguesia osde dentro e os de fora do aparelho do estado, mastodos participando da mesma maracutaia.

    Essa crtica poltica de Clarice Lispector nonos lembra Graciliano Ramos em seus melhoresmomentos? Essa a Clarice que morrendo, esabendo que morria, deixa-nos esse testamentoliterrio, entristecendo-nos mais ainda, porperdermos uma escritora que seria, sem sombra

    de dvida, o grande demiurgo do Brasil nosestertores do sculo XX.

    Rua do Acre. Mas que lugar. Os gordos ratos da

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    rua do Acre. L que no piso pois tenho terrorsem nenhuma vergonha do pardo pedao devida imunda (AHE, 37-8).Macaba morava num velho sobrado

    colonial, na Rua do Acre. E vejam o calembour,

    o jogo de palavras, que Clarice arma, quando falados gordos ratos da Rua do Acre: os ratosrepresentam-se a si mesmos, bichanos nojentos,mas, tambm, metaforicamente. Clarice denunciaa burguesia mercantil, que domina as trocascomerciais de todo o Estado do Rio de Janeiro.

    Os personagens vivem uma existnciamedocre, encarcerados dentro de si mesmos,aprisionados pela estagnao social, comhorizontes curtos e pauprrimos, reforando aalegoria da solido, da alienao e damarginalizao.

    A hora da estrelatem uma atmosfera quaseirrespirvel de miserabilidade trgica, de fatalismoirreparvel a realidade econmica, o elementogerador de todos os conflitos. No seu caudal,envolve-se tudo, o interior e o exterior dospersonagens, a sociedade burguesa determinando,impondo sua ideologia, e o proletariado no tendocomo enfrent-la, a no ser que se mudem asregras do jogo. Um lado, com a clara percepoda defesa intransigente de seus privilgios: o outro,sofrendo a dura discriminao social que o levar,

    um dia, a explodir na revolucionria determinaoreivindicatria.

    O gnio do demiurgo traz-nos umfragmento de tempo, em um ambiente acanhado,com personagens mesquinhos, descerrando-se opainel de toda a realidade de nosso Brasil.

    Eisenstein dizia que, quando se assiste a umfilme, v-se, na tela, a forma, e, ao mesmo tempo,fazemos, inconscientemente, sem nenhumcomando intelectual, uma confrontao com acontra-forma, que a situao poltica, social,

    econmica, financeira, religiosa etc. que cercaaquela obra artstica. Podemos declarar o mesmode qualquer obra de fico. Quem ler esseromance ter uma viso da realidade do migrantenordestino, uma viso que uma relao entre omundo emprico e o mundo do imaginrio,relao mediatizada pela mundividncia e pelamundivivncia de Clarice: Madama Carlota haviaacertado tudo, Macaba estava espantada. S ento

    vira que sua vida era uma misria (AHE, 94).Comove-nos a viso humanista da escritora,

    grito de desespero contra a solido e a alienaomutiladoras do indivduo, a luta pelo homemintegral, pela felicidade dos despossudos.

    Em A hor a da est r ela, a criadora,defendendo a humanidade, coloca-se frente, na

    vanguarda do proletariado. A sua tica, a do gruposocial amesquinhado, uma viso crtica dasociedade burguesa.

    O eplogo de A hora da estrelaaproxima-se do deQuincas Borba. Dois grandes ficcionistas,dois grandes demiurgos, dois grandes romances.

    Rubio est morrendo:antes de principiar a agonia, que foi curta, ps acoroa na cabea. [...] Guardem a minha coroa, murmurou. Aovencedor...A cara ficou sria, porque a morte sria; dousminutos de agonia, um trejeito horrvel, e estavaassinada a abdicao3.EmA hora da estrela, no final, Macaba vai

    cartomante. Esta d-lhe prognsticos felizes. Elasai e atropelada e morta: Vencera o Prncipedas Trevas. Enfim a coroao (AHE, 96).

    Macaba, a pequena proletria, de uma vidasem perspectivas, de sacrifcios, encontra o seumaravilhoso destino, augurado pela cartomante,madama Carlota. Morre certa da felicidadealcanada. Tanto ela quanto Rubio expiram naglria imaginada, para eles, realizada.

    Nas palavras de Machado e de Clarice,impressionam-nos o humor negro e a ironia, pois

    Rubio e Macaba sentem a centelha da vitria,pirrnica, para, logo depois, serem destrudos pelachegada da Indesejada das gentes4.

    Esse humor de Clarice aparece com forano prprio ttulo do livro: A hora da estrela. Aundcima hora da travessia de todos torna-se paraos proletrios a hora em que se tornam a estrelado espetculo de sua prpria morte: a hora deestrela de cinema de Macaba morrer (AHE, 94).

    Para Clarice Lispector, a palavra no apenas um significante e um significado, mas,antes de tudo, um smbolo, com validade por simesmo dentro do contexto, contudo tambmrepresentativo de um estado de existncia nomomento da escritura.

    Keats ensinou-nos:O carter do poeta tudo e nada [no tem eu]...Um Poeta a coisa menos potica do mundo,porque no tem identidade estcontinuamente a se enformar e a preencheroutra pessoa5.Isto no acontece em A hora da estrela.

    Neste, encontramos a prpria Clarice Lispector,

    encontramos os seus males fsicos e mentais,retratando-se no seu trmino existencial, comopessoa emprica e criatura demirgica. Revelando-nos o amor pela literatura e a presena

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    ameaadora da morte.Lendo-se A hor a da est re la , vemos,

    sentimos, sofremos, vivenciamos, cheiramosClarice Lispector. Morremos com sua brevedespedida do globo terrqueo. Encontramos a

    minoria judaica, o seu esprito desconfiado esinuoso, como disse rico Verssimo; a procurada identidade, principalmente, atravs da procurado saber como os outros a vem; o fatalismodiante da existncia; o Destino, presidindo todasas coisas; a tragdia e o instinto de sobrevivncia.

    Esbarramos com o fim de sua travessia, adoena terminal, a inconformao do ser humanoque sabe que tem de partir, mas que luta, paracontinuar se doando.

    E agora agora s me resta acender um cigarroe ir para casa. Meu Deus, s agora me lembreique a gente morre. Mas mas eu tambm?!No esquecer que por enquanto tempo demorangos.Sim (AHE, 98).Observemos a pontuao de Clarice: Mas

    mas eu tambm?! Ela tambm? A dvida (?) ea confirmao (!). Sim, ela tambm! Podamosperguntar: Mas ns tambm?!

    Os morangos conduzem-nos ao hinohomrico a Demeter e ao conhecimento de queas frutas dos vivos, em particular a rom, s podem

    ser comidas pelos que ainda esto apartados damorte. Ela, apesar do perigo do Estige, ainda podiaconsumi-las, sem o perigo de ser jogada aos fogosdo Inferno.

    A interpretao psicolgica vlida? vlido desvendar o processo criador a partir dafigura emprica, do ser social do escritor?Dependendo da obra e do autor... Devemosdesmitificar essa histria do trabalho crticopuramente tcnico e isento de emoo. Umtrabalho de base psicolgica deste tipo no valora

    qualquer tipo de literatura, mas ilumina-o,esclarece o processo criador, torna-nos cmplicesda autora e, por que no?, co-autores.

    A leitura de qualquer texto de Clarice sumo de muita taquicardia, muito trabalho e muitacomoo! Concordo com Harold Bloom, quandoafirma que, se conhecermos o autor, a leitura sermais prazerosa, mais envolvente, mais catrtica...Um seco analista literrio diria que essasinformaes no interessam literatura. Dizemoso contrrio: interessam sim!

    Repetindo-me enfaticamente, essasquestes genticas no tornam desprezvel o

    julgamento esttico da literatura, que existe esubsiste por suas qualidades de obra de arte e

    no pela anlise da psicologia do escritor.Clarice incorporou ao texto a sua

    mensagem de despedida da vida e do anseio depermanecer entre ns, os vivos de hoje... Claricecoloca, em A hor a da estr ela, seu substrato

    humano, descobre-se, desnuda-se, alegria e dor,felicidade e tristeza, pois por enquanto tempode morango...

    A um texto instigante como esse deA horada estrela, podemos acrescentar as observaesde Freud (Moi ss de Miguel ngelo):

    Toda autntica criao potica deve decorrerde mais de um motivo, mais de um impulso nopensamento do poeta, e deve admitir mais deuma interpretao.

    A obra aberta d margem a outrasinterpretaes, todas vlidas, desde quearticuladas com o texto, considerando-se aindamais que, se nenhum objeto pode serinteiramente descrito, tambm havemos deconsiderar que no h limites para a interpretaodo texto literrio.

    Conhecendo a Clarice Lispector do mundoemprico, conhecendo a Macaba do mundoimaginrio, envolvemo-nos, frumos, adentramoso esprito de A hor a da estr ela. Naquelesmomentos da leitura, mesmo depois, rodeados poraquele halo mgico da criao artstica, somos

    Clarice e Macaba, Clarice e Rodrigo, somos Glriae Olmpico, porque somos o todo e a parte doromance.

    O todo sem a parte no todo,A parte sem o todo no parte,Mas se a parte o faz todo, sendo parte,No se diga, que parte, sendo todo.(Gregrio de Matos)Fao minhas, as palavras de um personagem

    das Hi str i as de calendr i o, pea de BertoldBrecht:

    J observei que afastamos muita gente da nossa

    doutrina por termos para tudo uma resposta-feita. No seria conveniente estabelecermos embenefcio da nossa propaganda, uma lista detodas as questes que nos parecem ainda noestar solucionadas?Pegando esse gancho de Brecht, dirijo-me

    aos dois ou trs leitores desse pequeno ensaio,conclamo-os a pensarem nas montanhas delacunas, de gaps, de buracos sem fundo, que estetrabalho est mostrando, e procurarem soluess questes infinitas que eu no solucionei e que

    vocs podero criar, encontrar respostas, detectarverdades, pensando na epgrafe de Freud.Clarice Lispector transmite-nos a idia de

    que escrever mistrio, enigma; escrever magia,

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    encanto; escrever passar do aqum para o alm-tmulo, deixando testemunho. Mesmo apequenina Macaba, o espetar de um alfinete naanca do elefante capitalista, incomoda, e, por isso,os demiurgos, todos, os timos, os bons, os

    regulares, os pssimos, todos aqueles que criamliteratura a partir da folha de papel em branco,so temidos, e, por isso, afastados, desprezados,pela classe dirigente, porque so perigosos,somosmuito perigosos.

    Mas quando escrevo no minto. Que mais? Sim,no tenho classe social, marginalizado que sou.A classe alta me tem como um monstroesquisito, a mdia com desconfiana de eu possadesequilibr-la, a classe baixa nunca vem a mim(AHE, 25).

    A classe alta (sic) considera-a um monstro

    esquisito, e di-lo com toda a razo, porque aescritora no faz parte do seu modo de produo no faz porque no quer e a burguesia temum projeto, a extorso dos outros. A classemdia desconfia, porque tem medo, vive temerosa,no fio da navalha, entre o proletariado e aburguesia, desprezando o primeiro e invejando osegundo. A classe baixa (sic), o proletariado,completamente desorientado, desorganizado,avana num prato de comida, nunca num livro.Sabemos que mais importante o que entra na

    cabea do que tudo aquilo que pode entrar pelaboca... mas v-se argumentar nestes termos comum faminto...

    A Macaba de Clarice Lispector, digo, aMacaba Brasileira do Brasil, representante detodos os deserdados de nosso mundo-co, vagueiaao lu da sorte e do destino, passa pela vida comoo ar, e confirma o trusmo de que fcil amar ahumanidade, difcil amar o prximo.

    As Macabas Brasileiras do Brasil reforama idia de que o capitalista brasileiro desmente as

    palavras de Ricardo III: No h besta, por maisferoz que seja, que no tenha um pouco depiedade.

    Hemingway, emO velho e o mar, declarouque o povo pode ser destrudo, mas nuncaderrotado. Na mesma linha de raciocnio porque o poeta a antena do povo (Ezra Pound),assim, nada os separa e tudo os une, seja l qualfor a latitude, a nacionalidade ou o tempo de sua

    vida Clarice cunhou palavras que marcam aexistncia de Macaba e a de todos ns:

    O que queria dizer que apesar de tudo ela

    pertencia a uma resistente raa an teimosa queum dia vai talvez reivindicar o direito ao grito(AHE, 90-1).Clarice Lispector criou Macaba, entretanto

    no fez literatura panfletria. Vemos que Friedrich

    Engels e Clarice caminham juntos, quando lemosa carta do filsofo a Margaret Harkness, inciosdo ano de 1888, acerca do romance A city gir l:

    se tenho alguma crtica a fazer, ser talvez a deque seu romance no bastante realista. Orealismo, para mim, implica, alm da verdadedo detalhe, a apresentao verdadeira depersonagens tpicos em circunstncias tpicas.Macaba e todos os personagens agem

    tipicamente em situaes tpicas, sejamproletrios ou no, todos so criaturas to vivas,ou mais, do que as que nos cercam no nosso

    medocre viver. Clarice apresenta o problema, nod a soluo, porque ela conta a vida de umapersonagem e, em momento algum, pretendeescrever uma tese poltica.

    De qualquer maneira, queles que achamque Clarice perverteu sua escritura com A horada estrela, oferto o poema de Bertolt Brecht queencerra esse caleidoscpio:

    OOOOOANANANANANALFALFALFALFALFABETABETABETABETABETO POLTICOO POLTICOO POLTICOO POLTICOO POLTICOO pior analfabeto o analfabeto poltico.Ele no ouve, no fala nem participa dosacontecimentos polticos.Ele no sabe que o custo de vida, o preo dofeijo, do peixe, da farinha, do aluguel, do sapatoe do remdio dependem das decises polticas.O analfabeto poltico to burro que se orgulhae estufa o peito dizendo que odeia a poltica.No sabe o imbecil que da sua ignornciapoltica nasce a prostituta, o menor abandonado,o assaltante e o pior de todos os bandidos, que o poltico vigarista, pilantra, o corrupto e lacaiodas empresas nacionais e multinacionais.

    NotasNotasNotasNotasNotas1LISPECTOR, Clarice -A hora da estrela. 9 ed. Rio deJaneiro: Nova Fronteira, 1984; daqui em diante, indicadano texto pela siglaAHE.2BOTTOMORE, Tom (ed.) -Di cionr io do pensamentomarxista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988, p. 223.3ASSIS, Machado de -Quin cas Borba. Rio de Janeiro:Nova Aguilar, 1992, p. 806.4BANDEIRA, Manuel - Consoada, em MORAES,Emanuel de (org.) - Seleta em prosa e verso. Rio deJaneiro: INL, Jos Olympio, 1971.5FORMAN, M. R. (org.) -The letter s of John Keats. NewYork, 1935.

    Carlos Alberto dos San tos Abel - A prolet ria Ma caba . Estudos de Literatura Brasileira Contempornea, n 04. Braslia,

    fevereiro de 2000 , pp. 1-5.