A ocupação da terra rural na zona Noroeste Paulista

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SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros GHIRARDELLO, N. À beira da linha: formações urbanas da Noroeste Paulista [online]. São Paulo: Editora UNESP, 2002. 235 p. ISBN 85-7139-392-3. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org >. All the contents of this chapter, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution-Non Commercial-ShareAlike 3.0 Unported. Todo o conteúdo deste capítulo, exceto quando houver ressalva, é publicado sob a licença Creative Commons Atribuição - Uso Não Comercial - Partilha nos Mesmos Termos 3.0 Não adaptada. Todo el contenido de este capítulo, excepto donde se indique lo contrario, está bajo licencia de la licencia Creative Commons Reconocimento-NoComercial-CompartirIgual 3.0 Unported. A ocupação da terra rural na zona Noroeste Paulista Nilson Ghirardello

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SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros GHIRARDELLO, N. À beira da linha: formações urbanas da Noroeste Paulista [online]. São Paulo: Editora UNESP, 2002. 235 p. ISBN 85-7139-392-3. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org>.

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Todo o conteúdo deste capítulo, exceto quando houver ressalva, é publicado sob a licença Creative Commons Atribuição - Uso Não Comercial - Partilha nos Mesmos Termos 3.0 Não adaptada.

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A ocupação da terra rural na zona Noroeste Paulista

Nilson Ghirardello

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2 A OCUPAÇÃO DA TERRA RURALNA ZONA NOROESTE PAULISTA

VIIEm antigas comarcas das zonas vizinhas,tabeliães habilidosos urdiram tramoiasno segredo poeirento dos cartorios discretos.E surgiram títulos de propriedade.Homens de negócios da Capitalagiram tranqüilos e audaciosos.Os sobrados do largo da Sé, em taboletas largas,colonizadores de escriptóriocom inverossímeis dominios e posses immemoriaes.Italianos, japonezes, brasileiros, polacos, portuguezes, alemãesvieram com escripturas perfeitas,requereram divisões em Baurue espalharam-se pela terra bruta.As mattas foram caindo.Depois, nas roçadas humidas de chuva,viçaram os cafesaes inauguraes.E tinham nascido as cidades vermelhas.

(Ribeiro do Couto, “Noroeste”)

SITUAÇÃO ATÉ 1880

Até meados do século XIX, a Zona Noroeste do Estado de SãoPaulo raramente fora percorrida pelo homem branco. Sabe-se que

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no século XVIII algumas poucas expedições terrestres em direçãoàs áreas mineradoras passaram pela região, particularmente pelovale do Rio Aguapeí/Feio e pela “Serra de Ybitucatu”, atual Serra deBotucatu.1 Ocupação rural jamais houvera.

É a partir de 1850, em razão da declinante produção aurífera,bem como de pedras preciosas em Minas Gerais, que para a pro-víncia de São Paulo se dirigem muitos mineiros, processo que al-guns autores chamam de frente de expansão:

Vieram quase todos de Minas Gerais, os pioneiros que, a partirde 1850, se chocaram com os índios. Sua província não se restabele-cera da crise econômica, acarretada pela decadência da mineração.(Monbeig, 1984, p.133)

Não foi, porém, apenas a exaustão das atividades extrativasque “expulsou” uma grande leva de migrantes mineiros em direçãoa São Paulo. A Lei n.601, de 18 de setembro de 1850, chamada“Lei de terras”, influenciou na vinda dessa população, aliás a maiordo Império. Embora a lei tivesse sido criada, em parte, para estan-car a ocupação de terras devolutas por posseiros, acabou por incen-tivá-la. Os prazos dados para o registro de terras ocupadas ante-riormente à lei, por posse ou concessão governamental (sesmarias),e a impossibilidade de ocupação de terras devolutas posteriormentea ela, a não ser por compra direta do Estado, acabaram por es-tabelecer um espaço de tempo àqueles que desejassem ocupar ile-galmente terras devolutas. O governo, por sua vez, conforme a pró-pria lei, deveria demarcar as terras devolutas de sua propriedade,reservando as que lhe interessasse e vendendo as demais. No Im-pério, foi criada a repartição geral das terras públicas que deveriacuidar desse trabalho, mas jamais houve

um mappa ou inventário completo, do qual contassem todos os lotesjá demarcados, com a indicação de seu destino, isto é, si tinham sidovendidos, dados gratuitamente, concedidos a emprezas, ou reserva-dos a algum mister do público serviço. (Amaro Cavalcanti, apud Lima,1990, p.75)

1 Sobre o assunto, ver Comissão Geográfica e Geológica do Estado de São Pau-lo, 1905, p.34.

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A penúria econômica de grande parte da população mineirae, um pouco depois, o alistamento militar para a Guerra do Paraguaiinfluirão positivamente para a “fuga” à província de São Paulo,possuidora de imensas matas, sinal de boa terra:

Crescia a pobreza e contra isso o único remédio era a emigra-ção. Perturbações políticas, a tentativa revolucionária de 1842, vie-ram reforçar a partida dos mineiros para as novas terras. Por fim,durante a Guerra do Paraguai de 1864-1870 preferiu bom numerodestes correr os riscos da vida no sertão a sujeitar-se ao alistamentomilitar. (Monbeig, 1984, p.133)

As regiões das atuais cidades de Franca, Mococa, Ribeirão Pre-to, até pela proximidade com Minas Gerais, serão as primeirasáreas ocupadas (Ellis Jr., 1951, p.366 ss.). Muitos seguem viagemcruzando o Tietê em busca das comentadas “Terras do Oeste”.

Mario Leite (1961) descreve a rota dos mineiros e as cidadespor eles formadas em solo paulista, bem como o momento em queultrapassam a barreira do Tietê, com a esperança da boa qualidadedas terras:

As terras da margem esquerda deviam ser tão ferazes como aslimitadas pela barranca direita. E aconteceu que os devassadores dosertão transpuseram o histórico rio, e com todo seu denodado esfor-ço abriram clareiras e picadões... (p.217)

Nesse ponto é oportuno fazermos observação a respeito dotermo “Oeste” utilizado de forma genérica em documentos anti-gos. A falta de precisão por vezes resulta em dificuldades de situardeterminado fato ou acontecimento em áreas que podem estar fi-sicamente distantes: a Oeste, Nordeste ou Noroeste do Estado.Consideramos que só depois do reconhecimento do sistema fluvialdo lado ocidental de São Paulo é que as regiões serão designadasconforme os limites dos rios, pois estes guardam algum paralelismo.São eles: Tietê, Aguapeí/Feio, Peixe e Paranapanema, todos tribu-tários do Rio Paraná.

Com a chegada das ferrovias e, particularmente, após os anos1920, quando o sistema ferroviário estiver quase completo, comohoje o conhecemos, é que as diversas áreas do Estado passarão a

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ser designadas pelos nomes das companhias que as serviam. Deno-minação, até pela decadência das estradas de ferro, atualmente emdesuso.

No centro-oeste do Estado de São Paulo, começa a ser ocupa-da a região de Botucatu, antes dos meados do século XIX. Estaganha o foro de cidade em 1855, e de comarca em 1866. Botucatuserá por muitos anos a “boca-de-sertão” das regiões entre os riosTietê e Aguapeí/Feio (Noroeste), bem como daquela entre o Peixee o Paranapanema (Cobra, 1923, p.9).

Em direção a Noroeste, é ainda criado, posteriormente, omunicípio de Lençóis Paulista em 1865, e só depois o de Bauru em1896. Em destino à região do Paranapanema, será formado omunicípio de Campos Novos Paulista em 1885, que também atua-rá como “boca-de-sertão” no fim do século XIX. Porém, nesse pri-meiro momento de ocupação, as pontas-de-lança em direção ao“sertão” serão as cidades de Lençóis Paulista e Botucatu, com maiordestaque para a segunda por seu porte, dimensão econômica esituação geográfica. Deve-se observar ainda que, à medida que ainteriorização se processa, as áreas inexploradas, em direção aoRio Paraná, vão sendo deixadas como território do último municí-pio desmembrado.

As ocupações rurais mais antigas na região de Bauru2 aconte-cem por volta de 1856. O primeiro a registrar suas terras será omineiro Felicíssimo Antonio de Souza Pereira:

O abaixo assignado possue uma fazenda de mattas de denomi-nada batalha, desta freguezia de Botucatú; suas divizas são a seguin-te: pelo nascente com Faustino, pelo norte com Vicente Martins,pelo poente e sul com o mesmo Faustino, cujas terras comprei a LuizFrancisco Gomez.

Bauru, 15 de Abril de 1856Felicíssimo Antonio Pereira. (Silva, 1957, p.30)

Como se percebe pela descrição dos limites do imóvel, já de-via haver outros ocupantes na região, como o citado Faustino Ribei-ro da Silva e outros que registraram suas terras logo após (Paiva,

2 A designação da cidade vem do Rio Bauru.

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1977, p.20). É interessante observar que as datas de registro damaioria das escrituras obedecem ao período determinado pela “Leide terras” para legalização dos imóveis apossados. O regulamentode n.1.318, de janeiro de 1854, que manda executar a Lei de 1850,é incisivo em seus artigos 91 e 92 quanto às datas para inscrição detodas as terras com título de propriedade ou apossadas anteriormen-te a 1850. Os prazos para sua legalização seriam os seguintes: “1º,2º, 3º: o 1º, de dois anos; o 2º, de um ano; e o 3º, de seis meses”.Todos a partir do ano do regulamento (Silva, 1990, p.501-2).

Alcides Silva (1957, p.30) relata em seu trabalho que Felicís-simo Antonio Pereira tinha perfeita ciência quanto aos problemasadvindos da falta de registro, sendo esta a única maneira de evitar“o apossamento indevido de certos aventureiros como os que agi-ram, há tempos, lá pelas bandas de Ararítaguaba com falsos títulosde sesmeiros”.

É difícil sabermos hoje quais das terras inscritas no períodoforam apossadas de fato antes do preceito de 1850. Em muitoscasos, usava-se o recurso de atribuir o apossamento a terceiros, emperíodo anterior à “Lei de terras”, que supostamente teriam ven-dido ao interessado no registro. Dessa maneira, descaracterizava-se a posse após a lei.

Nogueira Cobra (1923, p.22-3, 62) registra diversos casossemelhantes em seu livro sobre os sertões do Paranapanema, parti-cularmente quanto às posses comprovadamente posteriores à lei eregistradas como anteriores a ela. Porém, é bom frisar, mesmo aque-las posses efetuadas após a lei, ilegais, portanto, foram motivo delongas batalhas judiciais durante todo o século XIX. Importantesjuristas questionariam freqüentemente o preceito de 1850, emparticular no tocante às “posses novas” (Silva, 1990, p.193-8).

A realidade era uma só: por meio de diversas artimanhas, asposses em terras devolutas continuaram a ser feitas.

Nesse momento, o apossamento se dava especialmente parauso próprio, embora houvesse também, numa quantidade menor,apropriação para a revenda.

Nogueira Cobra narra que o primeiro grande posseiro da re-gião do Paranapanema, o mineiro José Theodoro, teve quase todasua imensa gleba alienada a conterrâneos seus, a preço irrisório, e

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que, pela distância e dificuldade de acesso, poucos se dispuseram avisitar essas áreas reservando-as:

Muitos nem sequer as conheceram; enviaram os filhos, muitotempo depois, afim de verem aquillo que seus paes adquiriram, fia-dos nas informações e na palavra dos posseiros simplesmente. (Co-bra, 1923, p.34)

Como eram áreas no meio da mata, sua forma variava muito.Porém, em geral, obedeciam aos limites impostos pela natureza,particularmente córregos e espigões. Os cursos d’água poderiamser limites, mas freqüentemente centralizariam a propriedade en-tre dois espigões. Estes seriam divisas mais certas, em plena flores-ta, quase uma estratégia para comprovar a existência e o conheci-mento da gleba, que habitualmente recebia o nome do curso d’água.Tais procedimentos davam alguma segurança ao proprietário quedelimitava a área apenas “a olho”.

Na região de Bauru, o apossamento simplesmente para reven-da parece ter sido menos intenso nesse momento, como se percebepela análise das primeiras escrituras.3 O baixo valor comercial e ainexistência de um “mercado” para essas terras desestimulavam astransações. São inúmeras as histórias de posseiros que presentea-vam ou entregavam por quase nada glebas inteiras.4 Foi mais co-mum a posse para uso próprio, ou a compra para uso próprio, querepresentou, a nosso ver, uma válvula de escape à pobreza, e formade subsistência para muitos mineiros sem trabalho e perspectivas.

Embora o cultivo do café fosse a principal atividade econômi-ca das capitanias do Rio de Janeiro e de São Paulo, a distância dosportos e os quase inexistentes caminhos para essa inóspita regiãotransformavam seu plantio em algo impraticável.

Os mineiros transplantaram para a “boca-do-sertão” paulistaseu modo de vida, bem como sua lavoura e criação. Plantavam

3 São poucas as transações de imóveis. Em geral, verifica-se uma venda perma-necendo o imóvel com o comprador até pelo menos os anos 1880/1890 quan-do se intensifica o mercado de terras.

4 Pierre Monbeig (1984, p.135) cita um caso de doação feita por José Theodoroa um cozinheiro que o servira.

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milho, criavam gado e principalmente porcos, em sua grande maio-ria. A produção de milho era basicamente para subsistência pró-pria e dos animais. Os porcos eram vendidos em Botucatu e Len-çóis Paulista.

Em uma entrevista publicada pelo Diário da Noroeste em2.2.1930, o mineiro Valentim Manoel Goulart, o mais antigo mo-rador de Bauru à época, ocupante de terras desde 1870, diz:

Os moradores dos sítios desta região cuidavam de sua roçadase, para as suas necessidades, de gado vacum e suíno. Mais tarde,alguns dedicaram-se a este comércio, tendo com elle, a custo de gran-des economias e sacrifícios amealhado alguns bens.5

Na mesma entrevista, Valentim Goulart comenta que, à épo-ca, os cafeeiros mais próximos de Bauru localizavam-se na Serrade Brotas,6 ou seja, bastante distantes da sua região de moradia.

Também Pierre Monbeig (1984) nos informa sobre a produ-ção na área situada entre o Rio do Peixe e o Paranapanema, igual-mente ocupada por mineiros:

O principal recurso era a criação de porcos, tradicional emMinas. Bastava semear milho nos campos desmoitados pelo fogo eneles deixar os animais em liberdade. Quando estes engordavam su-ficientemente eram conduzidos em extensos rebanhos até LençóisPaulista e Botucatu, sendo o caso até Sorocaba. (p.135-6)

Além da ocupação esparsa, aos arredores da futura vila de Bauru,em direção ao interior da Zona Noroeste, apenas um ou outroraro posseiro se sujeitava a isolar-se, enfrentando a distância e osindígenas.

Houvera sim, adentradas na região, as colônias militares deAvanhandava e Itapura, a primeira criada pelo Decreto n.2.126,de 23 de março de 1858, e a segunda em junho do mesmo ano.7 A

5 Entrevista publicada no Diário da Noroeste, de Bauru, em 2.2.1930 (apudGhirardello, 1992, p.40).

6 Ibidem, p.40.7 Estudos feitos para reconhecimento da zona entre Bahuru e Itapura (apud

Relatório da directoria..., 1906, p.79).

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finalidade de ambas estava intimamente vinculada aos atritos diplo-máticos freqüentes com o Paraguai, servindo também como “umalinha de estafetas para facilitar com a máxima brevidade as comu-nicações com a província de Mato Grosso” (Cesp, 1988, p.12).

As duas colônias militares poderiam representar apoio militare logístico para atingir a área de um possível conflito com o Paraguai,evitando percurso por regiões também pertencentes a paíseslimítrofes.8 Sua localização era acertada, junto a saltos do Rio Tietê9

que não podiam ser transpostos por embarcações, área de varações.Seriam, sobretudo, sentinelas avançadas em zonas que poderiamser invadidas facilmente, por estrangeiros, através do Rio Paraná eseu afluente Tietê.

Como nos informam antigos documentos, a população dascolônias sempre foi reduzida. Em maio de 1861, a colônia deAvanhandava era “Povoada por quarenta indivíduos brasileiros,um português e um dinamarquês, sendo sete militares e sete mulhe-res, dezenove paisanos e nove mulheres” (ibidem, p.15).

A dificuldade de acesso, apenas fluvial, o isolamento e o fimda prenunciada guerra com o Paraguai fizeram que fossem aban-donadas à própria sorte. Serão consideradas pelo governador daprovíncia João da Silva Carrão “sorvedouros de dinheiros públi-cos” (ibidem, p.17).

Na intenção de dar sobrevida às colônias, tentou-se a abertu-ra de um “picadão” ligando Avanhandava a Botucatu. Esse cami-nho, embora iniciado por Felicíssimo Antonio Pereira, a mandodo governo, jamais teve suas obras completadas.10

A Comissão Geográfica e Geológica do Estado de São Paulo,em 1905, encontra apenas ruínas das colônias (ibidem, p.17). Mes-mo antes da Comissão, o grupo responsável pelo reconhecimentoda zona, para a construção da Companhia Estrada de Ferro Noro-este do Brasil, defronta-se com os núcleos destruídos. No relatóriode reconhecimento, atribuem, com pesar, a decadência das colô-

8 Na realidade, a atuação das duas colônias foi bastante reduzida em relação aosconflitos com o Paraguai.

9 As colônias receberam o nome dos saltos.10 Sobre o assunto, ver Ghirardello (1992, p.45-6).

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nias à inacessibilidade, lamentando, inclusive, o fim da abertura do“picadão”:

Só em 1863 começaram a abertura da estrada para o Avanhan-dava. Construiram 80 kilometros ... difficuldade de administração ede verba paralysaram as obras e o desenvolvimento da colonia.

Em 1881 começaram a reabertura da estrada, mas os mesmosmotivos actuaram em sentido de estagnação, que foi até a decadên-cia daquelle nucleo, hoje abandonado e em ruínas.11

FIGURA 23 – Levantamento do Salto de Itapura, no Rio Tietê, executado pelosengenheiros da CEFNOB, onde consta a “Antiga Colônia de Itapura” (Rela-tório da directoria..., 1906, prancha sem número de página).

11 Estudos feitos para reconhecimento da zona entre Bahuru e Itapura (apudRelatório da directoria..., 1906, p.70 e 80).

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Até por volta de 1880, portanto, a ocupação da Zona Noro-este Paulista pelo homem branco estará restrita à região da futuracidade de Bauru. Daí até as margens do Rio Paraná, raríssimosserão aqueles a desafiar a floresta e o gentio. Somente na décadaseguinte, por motivos que adiante veremos, o quadro começa amudar.

SITUAÇÃO APÓS 1880 ATÉ O INÍCIODA CONSTRUÇÃO DA CEFNOB

A partir de 1880, a ocupação da região denominada bairro deBauru, ou bairro do Bauru, acelerava-se. O “bairro” era

um vasto complexo de sítios povoados que se disseminaram ao longodo curso do Ribeirão Bauru e de seus afluentes, e se estendia a muitasléguas ao redor, pela Água Parada, Anhumas, São Sebastião da Ale-gria, Rosa do Batalha, Soturna e Quilombo. (Bastos, 1994, p.28)

O bairro de Bauru, no início dos anos 1880, não era aindauma formação urbana, mas sim diversos sítios e fazendas na regiãodo Rio Bauru, bairro rural, portanto. Para este, Antonio Candidodá a seguinte definição:

poder-se-ia dizer que é, de modo geral, uma porção de territóriosubordinado a uma povoação, onde se encontram grupos de casasafastadas do núcleo do povoado, e uma das outras, em distânciasvariáveis. (Souza, 1987, p.63)

Essa povoação, que seria a futura cidade de Bauru, é estabele-cida até o final da década de 1880.

Em 1884, Antonio Teixeira do Espírito Santo e sua esposadoam à igreja área para a formação do patrimônio de São Sebastiãodo Bauru (Ghirardello, 1992, p.51). Nessa área, arruada em 1888,estabelece-se uma população fixa, particularmente junto a um ca-minho de ligação entre “o sertão” e Lençóis Paulista, que futura-

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mente seria uma de suas ruas,12 bem como ao redor do cruzeiro,local da futura capela.

O povoado cresce rapidamente em parte pela abertura, nas pro-ximidades, de grandes lavouras de café, que trariam, conseqüente-mente, atrás delas, a estrada de ferro.

Os grandes cafeicultores voltavam seus olhos para uma regiãode terras baratas, se a opção fosse comprá-las de antigos posseiros,ou ainda gratuitas, se fosse preferida a apropriação de terrasdevolutas.

Esses novos ocupantes terão um perfil diverso do anterior:serão proprietários de terras em outras zonas do Estado, detento-res de grandes capitais. Formarão de imediato fazendas com imen-sas plantações de café. Será o início da chamada frente pioneira. Adiferença básica entre a frente de expansão e a frente pioneira éque, na primeira, a ocupação da terra se faz para, basicamente,garantir a subsistência, já no segundo caso, sua apropriação:

se instaura como empreendimento econômico: empresas imobiliárias,ferroviárias, comerciais, bancárias, etc., loteiam terras, transportammercadorias, compram e vendem, financiam a produção e o comér-cio. (Martins, 1971)

A frente pioneira consolida, portanto, “a incorporação do ter-ritório ao capitalismo” (Lima, 1978, p.54).

É importante observar que, após a República, a ânsia de enri-quecimento adormecida ou camuflada no antigo regime aflora porinteiro. A especulação e o lucro serão os paradigmas do período.Se no Império a figura “do indivíduo inteiramente voltado com suasatividades e atenções para o objetivo único de enriquecer” não ébem-aceita, a República transformará, em muitos casos, “homensrepresentativos da monarquia” em “ativos especuladores e negocis-tas” (Prado Jr., 1994, p.208). A República, portanto, libera e incen-tiva práticas consideradas inaceitáveis no antigo regime, entre elas,a nosso ver, a acumulação de terras feita sob quaisquer condições.

12 Parece já ter havido um princípio de ocupação nesse caminho, antes mesmo dadoação do Patrimônio, no começo da década de 1880. Futuramente essa viareceberá o nome de Rua Araújo Leite.

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Tidei de Lima (Lima, 1978, p.V – Introdução) considera quenesse momento a penetração assume característica de grande em-presa, seja quanto à escala da apropriação de terras, seja quanto aograu de violência na destruição das populações indígenas. É omomento em que a convivência, ainda relativamente pacífica, en-tre o homem branco e o gentio será quebrada.

A necessidade de imensas áreas para a produção e sua ocupa-ção imediata para a agricultura ensejarão a exploração ou destrui-ção imediata das tribos dentro das áreas de posse. Até então, mesmoque os apossamentos fossem vastos, e muitos o eram, existiam teo-ricamente nas escrituras. Como vimos, a produção era desprezível eas áreas de cultivo, ou criação, pequenas. Mesmo o desmatamento,um dos meios de se distinguir uma posse, era de pequena monta. Oplantio de milho para subsistência dos moradores e animais, bemcomo a criação de porcos, exigia pouca “terra limpa”, portanto aconfiguração dessas propriedades era a da própria mata nativa.

O primeiro grande fazendeiro a acorrer para a região de Baurufoi o coronel Joaquim de Toledo Piza e Almeida que estabeleceude imediato as fazendas “Faca” e “Acampamento” em 1888; noano seguinte, aportam Araújo Leite e seu genro, Azarias Leite, queformam a fazenda “Aureópolis”; logo após, José Ferreira deFigueiredo instala a fazenda denominada “Val de Palmas”.

Joaquim de Toledo Piza e Almeida, nascido em Capivari, era detradicional família paulista proprietária de terras. Aos 27 anos, vaipara a região de Jaú, considerando a excelente qualidade dos solospara formar fazendas de café. Nelas todo trabalho era feito peloimigrante europeu. Aos 37 anos, já muito rico, se apossa de terrasnas vertentes do Rio Feio, formando as fazendas “Faca” e “Acampa-mento”. Ambas chegaram a ter em produção, no início do séculoXX, um milhão de pés de café (Ercilla & Pinheiro, 1928, p.41-4).

José Ferreira de Figueiredo também era grande fazendeiroquando chega à região de Bauru. Planta imediatamente quinhentosmil pés de café na propriedade “Val de Palmas” (Paiva, 1975, p.178).

A formação dessas imensas fazendas em local tão isolado, re-conheça-se, não deve ter sido fácil. Ercilla & Pinheiro (1928), emtom grandiloqüente, assim se referem ao isolamento das áreas aber-tas por Toledo Piza:

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A enorme distancia que tinha de percorrer para chegar à Jahú,que era o centro de abastecimento do pessoal empregado na abertu-ra e formação da nova fazenda, ou sejam vinte e quatro léguas, quan-do o meio de transporte era ainda o cavallo, o burro e o carro de boi,sem estradas conservadas, não o aterrorisou. (p.43)

Mesmo a produção inicial de café teve que ser transportada,por lombo de burro ou carro-de-boi, para Jaú, que já contava comos serviços da estrada de ferro. Porém, tinham ciência todos aquelesque fizeram parte dessa leva de ocupantes de que, embora os trans-portes fossem apenas aqueles movidos a tração animal, o seriampor pouco tempo.

Em 1889, os trilhos da Sorocabana alcançam Botucatu (Ma-tos, 1974, p.80), e os da Paulista, Dois Córregos. A valorizaçãodas terras nessas cidades foi imediata. Sabia-se que as duas empre-sas se dirigiriam mais cedo ou mais tarde para a região de LençóisPaulista, São Paulo dos Agudos e, por conseqüência, Bauru.

Ellis Jr. (1951) relata que as lavouras de café estavam sempreà frente da ferrovia e que as plantações direcionavam o destinodas linhas: “Assim, vê-se com espantosa nitidez que não foi a estra-da de ferro que criou a lavoura de café. Pelo contrário, foi a lavou-ra de café que criou a estrada de ferro” (p.398).

Tal afirmação seria verdadeira e regra geral para o Estado deSão Paulo, ao menos até a constituição da CEFNOB.

Em 1896, o governo estadual baixa dois decretos, o de n.373e o de n.374. No primeiro, era permitido à Cia. Paulista de ViasFérreas e Fluviais “prolongar seus trilhos de Dois Córregos, atra-vessando o Tietê, passando pelas povoações de Pederneiras, Forta-leza, Agudos e terminando em Bauru” (Pelegrina & Zanlochi, 1991,p.6). O segundo autorizava as companhias Ituana e Sorocabana aprolongarem sua linha férrea de Lençóis, em destino a Bauru, tam-bém passando por São Paulo dos Agudos.

Tais decretos serão vistos de maneira particularmente especialpelos fazendeiros, que vislumbrarão nas cidades de Bauru e de SãoPaulo dos Agudos futuros entroncamentos ferroviários de duasimportantes companhias, com reflexos claros no desenvolvimentodas localidades, bem como no aumento do valor das terras rurais.

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Em 1903, os trilhos da Estrada de Ferro Sorocabana e tambémos da Companhia Paulista de Estradas de Ferro chegam a São Pau-lo dos Agudos (Rocha, 1993, p.52).

O relatório da Companhia Paulista daquele ano traz um ras-gado auto-elogio mostrando a importância da empresa no desen-volvimento da última região por ela cruzada, aquela situada entreo Rio Tietê e a cidade de São Paulo dos Agudos. Considerava queele deveria acontecer entre as cabeceiras do Rio Aguapeí/Feio e adivisa com o Mato Grosso. E essa deveria ser a esperança, ou tal-vez a certeza, de todos aqueles com interesses ligados à regiãoNoroeste do Estado.

No relatório, prosseguem as justificativas, juntando-se outrosargumentos, quanto ao traçado da ferrovia que se dirigia a

importante porção do território paulista que vai das nascentes doFeio às barrancas do Paraná, a qual apesar de compor-se segundoreferem poucos que a penetraram, de excelentes terras de cultura ede medir a superfície equivalente a quase ¼ do território do estado,entretanto traz no próprio nome de terra ignota, com que até hojefigura nas cartas geográficas do País, o mais significativo atestado detão desmerecido com o completo abandono em que havia sido dei-xada. Levando a ponta dos trilhos para aquelas bandas, a Paulistapõe ao imediato alcance daquele sertão, o mais fecundo propulsorde seu povoamento, o instrumento que mais facilmente poderá abri-lo às benéficas incursões do trabalho e da civilização.13

Fica claro no arrazoado da Companhia a importância da es-trada de ferro na almejada ocupação dessa área do Estado, pensamen-to comungado pelas mesmas elites que passavam a se apropriar deterras no entorno de Bauru.

A “abertura” da Zona Noroeste traria ainda, como já salienta-mos anteriormente, considerável aumento de renda para a Paulista,mesmo que essa “abertura” fosse feita por outra Companhia. Im-portante é que os trilhos em direção ao Noroeste do Estado partis-sem das proximidades.

13 Relatório da Companhia Paulista de Estradas de Ferro datado de 1903 (apudMatos, 1974, p.93-4).

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É o momento em que se discute de onde deveria partir a estra-da de ferro destinada a dirigir-se para Cuiabá, a futura CompanhiaEstrada de Ferro Noroeste do Brasil. O parecer do Clube de Enge-nharia, no ano de 1904, define por São Paulo dos Agudos ou Bauru.A primeira, por já dispor em seu solo da Sorocabana e da Paulista,e a segunda, por vir a dispor conforme os Decretos de ConcessãoEstadual de nºs 373 e 374.

Bauru será a escolhida14 e atuará como “boca-de-sertão” e basede toda operação de ocupação da Zona Noroeste de São Paulo.

SITUAÇÃO APÓS O INÍCIO DA CONSTRUÇÃO DA CEFNOB

As obras da ferrovia iniciam-se, em Bauru, no dia 15 de no-vembro de 1905.15

A Estrada de Ferro Sorocabana tinha sido inaugurada na cida-de em 1º de julho do mesmo ano. A estação, bem como os escritó-rios, as oficinas e o canteiro central das obras da Companhia Estradade Ferro Noroeste do Brasil situar-se-ão nas proximidades da esta-ção da Sorocabana, permitindo um fácil e rápido transbordo.

A cidade de Bauru, nesse momento, era uma pequena locali-dade sem nenhuma expressão política ou econômica. Em 1904, oengenheiro Cornélio Schmidt (1961) assim a descreve:

Bauru está numa lombada, de espigão comprido, e é só areia.Tem uma só rua no rumo norte-sul e agora esta se formando umpátio perto da igreja situada no lado oeste. Possui uma aparência deBrotas.

14 Por diversas vezes a cidade de São Paulo dos Agudos foi sugerida como localpara início da CEFNOB e esta acabou partindo de Bauru. Embora não hajanenhuma comprovação a respeito, conta-se que o prefeito de São Paulo dosAgudos, à época, se mostrou contrário à ferrovia, chegando a tratar com des-caso e má-vontade os engenheiros precursores. E, em virtude dessa cidade eBauru reunirem condições semelhantes, sendo ambas apontadas como possí-veis sedes, os técnicos decidiram por Bauru.

15 Palestra feita ao Clube de Engenharia do Rio de Janeiro pelo engenheiro Joa-quim Machado de Mello, em 5 de dezembro de 1914 (apud Relatório daCEFNOB, 1916, p.18).

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A citada rua de sentido norte-sul era a antiga estrada que liga-va o sertão a Lençóis Paulista, local das principais moradias, hotéise comércio, juntamente com os arredores do largo da capela. Coma instalação das ferrovias, no lado oeste da cidade, todo o comér-cio e serviços para aí se dirigem, levando à decadência aquela quetinha sido a primeira rua comercial (Ghirardello, 1992, p.102). Avocação de Bauru como pólo comercial e prestador de serviçosinicia-se com a instalação da CEFNOB, que, unida à Sorocabana eà Paulista inaugurada em 1910 (ibidem, p.92), transforma a cidadeem importante nó ferroviário. Sendo a última localidade em dire-ção a Noroeste do Estado, sua área territorial era imensa: oito-centos mil alqueires (Ercilla & Pinheiro, 1928, p.151)16 abrangen-do praticamente toda aquela zona.

A instalação quase imediata da Sorocabana e do complexo daCEFNOB altera dramaticamente a pacata vida local. Milhares detrabalhadores dirigem-se a Bauru em busca de ocupação nas obras.

FIGURA 24 – Antigas oficinas da CEFNOB localizadas na cidade de Bauru. Fotode 1906 (Museu Ferroviário Regional de Bauru).

16 Deve-se observar ainda que uma parte da Zona Noroeste estará ligada a SãoJosé do Rio Preto até a criação da Comarca em Bauru, no ano de 1910.

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Junto a eles aportam à cidade todos aqueles que, de uma maneiraou de outra, pudessem tirar partido dessa empreita: caixeiros-viajan-tes, grileiros, prostitutas, advogados, agrimensores, bugreiros etc.

A primeira manifestação do aumento populacional se dará nopreço dos aluguéis, que de 5$000 em média passam a valer 60$000,ou mais, por mês (O Estado de S. Paulo, 28.9.1906).

O percurso da Companhia Estrada de Ferro Noroeste do Bra-sil no Estado de São Paulo deveria ser executado em três partes. Aprimeira delas já havia sido aprovada pelo governo federal e eraconstituída de um trecho de cem quilômetros, a partir de Bauru,quilômetro zero. Esse primeiro trecho, mais próximo a Bauru, pos-suía alguma ocupação rural, parte dela de origem anterior a 1880,e outra parte posterior, feita por grandes lavouras de café em finsdo século XIX. Isso não significava inexistirem áreas disponíveispara ocupação nas proximidades da cidade. Elas existiam e esta-vam à espera de melhores acessos e, especialmente, de outros inte-ressados na eliminação dos indígenas, donos do território, que re-presentavam o maior obstáculo ao avanço da ocupação.

Interiorizando-se na Zona Noroeste, a situação de posseamentodas terras era ainda mais favorável pela inexistência de titularidadeanterior, ao menos seguramente comprovada. Restavam, porém,os mesmos empecilhos: a maneira de ingresso e os caingangues.

A ferrovia de alguma maneira constituirá solução para os doisproblemas: o de acesso a áreas praticamente inatingíveis e, aomesmo tempo, parceira na eliminação do gentio.

As “dadas” ou “batidas” organizadas para o extermínio dosíndios não eram práticas novas. Começam a acontecer na regiãocom a ocupação pelos grandes fazendeiros no final do século XIX,em razão da exigência de grandes áreas para suas plantações. Po-rém, a escala e a brutalidade com a abertura da ferrovia tornaram-se infinitamente maiores. Há clara união de interesses por partedaqueles que desejavam apropriar-se de terras devolutas e daque-les que almejavam avançar com as obras da estrada. É importanteobservar, ainda, a rapidez com que se dá todo o processo. A cons-trução acelera o avançamento em direção às terras. Sem ela, comcerteza, a ocupação também se daria, mas, é claro, não de formatão ágil e violenta.

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Tidei de Lima (1978) é enfático a esse respeito:

não se trata apenas, e especificamente, da implantação dos trilhos eda edificação das estações, ao longo do território dos caingangues,na faixa entre o Feio-Aguapeí e o Tietê, mas o significado que essesimplementos, adquirem como fator de potencialização da conquis-ta, encorajando a ampliação de empreendimentos – como, por exem-plo, a expansão cafeeira e a comercialização das terras que estavamna sua dependência. E não apenas “encorajando”, mas acima de tudo,apressando, o que confere a penetração uma carga maior de violên-cia, face às múltiplas perspectivas que se abrem para a acumulaçãocapitalista. (p.51-2)

Na Zona Noroeste, portanto, diferentemente do restante doEstado de São Paulo, até a data, inverte-se a situação da lavouraprecedendo a ferrovia. Nessa região, os trilhos chegarão antes dequalquer produção agrícola. Mais que isso, em muitos trechos aestrada estará adiante da ocupação territorial, abrindo caminhopara ela.

Pierre Monbeig (1984, p.105) chama-nos atenção sobre todoesse processo de ocupação do Oeste paulista, inserindo-o na “ex-pansão da civilização capitalista” que, longe de ser um “fenômenolocal”, atuava em diversas partes do globo solidariamente, fosseno restante da América Latina, África ou Austrália.

Hobsbawm (1979) nos fala da especialização, ou monoculturada produção agrícola, em várias partes do mundo, possível pelosnovos meios de transporte: ferrovia e navios a vapor. Salienta aprocura por esses produtos como principal motivador da expan-são territorial:

O elemento dinâmico no desenvolvimento agrícola era, por-tanto, a demanda: a crescente demanda por alimentos por parte dasregiões urbanas e industriais do mundo, a crescente demanda destesmesmos setores por trabalho e, como ligação entre os dois, a econo-mia de rápida expansão que fez crescer o consumo básico das massase, portanto, sua demanda per capita. Pois com a construção de umagenuína economia global capitalista, novos mercados surgiram donada (como notaram Marx e Engels) enquanto os mais antigos cres-ceram dramaticamente. (p.192)

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Gostaríamos, porém, de salientar o modus operandi da ex-pansão capitalista na Zona Noroeste de São Paulo, que guardapeculiaridade mesmo em relação às outras áreas do território pau-lista “conquistadas” até então.

Em 27 de setembro de 1906, o primeiro trecho de cem quilô-metros era aberto com a presença do ministro da Viação LauroMuller, o presidente do Estado Jorge Tybiriçá, vários deputadospaulistas, engenheiros da Central do Brasil e repórteres de diver-sos jornais (Neves, 1958, p.51-2). A importância da comitiva quese abalara da capital federal e estadual para vir inaugurar uma fer-rovia em local tão distante mostra o quanto significava a CEFNOB,tanto em termos estratégicos como para a expansão da produçãocafeeira em São Paulo. Nesse dia, são inauguradas, mesmo queinconclusas, as estações de Presidente Tybiriçá, Jacutinga, Presi-dente Alves e Lauro Muller, esta última localizada logo após aFazenda da Faca pertencente ao coronel Joaquim de Toledo Piza,exatamente no quilômetro 92.

FIGURA 25 – Trem inaugural do primeiro trecho da CEFNOB, em 1906 (Insti-tuto Antônio Eufrásio de Toledo. Bauru, SP).

O segundo trecho da ferrovia será inaugurado em 16 de feverei-ro de 1908 com a presença do presidente da República AfonsoPenna, do ministro da Viação Miguel Calmon, do superintendente

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da Sorocabana e outras tantas personalidades (ibidem, p.57-8). Nessedia, foram entregues as estações de Presidente Penna, AlbuquerqueLins, Hector Legru e Miguel Calmon no quilômetro 202.

Vale observar que parte das estações leva o nome dos políti-cos envolvidos com a construção da ferrovia: presidentes da Re-pública, presidente do Estado e ministros. A fervorosa bajulação ea falta de referências fizeram que as estações tomassem qualquerdenominação. Como todas tinham sido erguidas em meio à mata,não havia ainda designação para a maioria dos córregos e ribei-rões, e como os nomes sacros estavam caindo em desuso, viu-sepor bem presentear os poderosos do momento.

FIGURA 26 – Presidente Afonso Penna (à esquerda), durante a inauguração dosegundo trecho da CEFNOB em 1908 (Centro de Memória Regional, RFFSA/UNESP. Bauru, SP).

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O exemplo mais gritante da falta de critério é a escolha donome “Hector Legru”, na realidade “Legrou”, para a estação doquilômetro 178. Legrou, grande banqueiro belga, foi um dosfinanciadores da CEFNOB e jamais pisara o solo brasileiro, muitomenos a região, mas ainda assim recebe uma estação com seu nome.

Também em 1908, são entregues as estações de General Glicérioe Araçatuba. Entre 1909 e 1910 são abertas as últimas estações noEstado de São Paulo: Córrego Azul, Aracanguá, Anhangai, Mansodo Bacuri, Lussanvira, Ilha Seca e Itapura, todas localizadas à beirado Rio Tietê em zona palustre. Estas jamais sediarão núcleos urba-nos em razão de sua péssima localização, foco de moléstias.

Em fevereiro de 1910 (ibidem, p.65), o trecho paulista daferrovia estava concluído e, portanto, toda Zona Noroeste do Es-tado, em particular aquela por nós estudada compreendida entreBauru e Araçatuba, tinha tráfego, dispondo de composições mistasem três horários por semana (Correio da Noroeste, Edição Suposi-tícia, 14.10.1956, p.2).

Todo esse histórico é importante para podermos averiguarcomo se sucede a apropriação da terra conforme a ferrovia vaisendo implantada.

Como já frisamos, os trilhos, nesse trecho, situam-se no espigãodos vales dos rios Tietê e Aguapeí/Feio. Cortam as melhores terrasda Zona Noroeste, aquelas com menos propensões a geadas, pelasua localização elevada. Esse fenômeno climático desvalorizavasensivelmente as áreas destinadas ao café, em virtude da poucacapacidade que tem esse arbusto de suportar baixas temperaturas.Portanto, a ferrovia foi o caminho natural para a ocupação da ter-ra, seus trilhos correram sobre as melhores áreas no que tange àausência de geadas e também à qualidade dos solos.

Os trilhos balizarão, ainda, a ocupação, em virtude de suapresença física, que seria garantia de transporte para a futura pro-dução. E se as linhas facilitavam e asseguravam a ocupação, maiorseria a garantia dada pelas estações e “chaves”. As estações, porserem ponto de embarque e desembarque, carga e descarga e lo-cais “naturais” de prováveis núcleos urbanos, iam além, representa-vam segurança para os eventuais ocupantes, em razão de disporemde pessoal e farta munição. Acabavam por fazer as vezes de forta-

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lezas imersas na floresta, local de refúgio e socorro, ao menos atéa pacificação indígena em 1912. As “chaves”, por semelhanças decaracterísticas, também tendiam a ser procuradas. Eram pontos deparada, tinham pessoal, dispunham de alguma estrutura e podiamser elevadas à categoria de estações, como veremos no caso da“chave” de Birigüi.

Para a apropriação da terra, portanto, nesse primeiro momento,será dada prioridade à obtenção de áreas junto às estações, às cha-ves e à linha, nessa ordem. Quanto mais longe de cada uma delas,menor seria seu valor. Isso é facilmente comprovado pelos váriosanúncios de terras encontrados nos jornais de Bauru, onde a pro-ximidade da estação ou ao menos da linha é fundamental:

Terras na NoroesteVendem-se mil e quatrocentos alqueires de terras boas na Zona

Noroeste, próximo a estação de Presidente Penna com boa àgua, eatravessada pela linha férrea, divididas e livre de qualquer onus.

Preços e informações na Casa Vermelha, rua Batista de Carva-lho 65, caixa postal 7, Bauru. (O Commercio de Bauru, 28.2.1915)

Nesse, como em vários outros anúncios freqüentemente vis-tos nos jornais da época, tão importante quanto a qualidade daterra e a presença da água era a proximidade da ferrovia, estaçõesou chaves.

Em relação à ocupação de áreas devolutas, devemos salientarque a República, por meio da Constituição de 1891, alterará a le-gislação, passando o domínio das terras devolutas aos Estados. SãoPaulo aprova sua lei em 2 de agosto de 1898, sob o n.545, regula-mentada pelo Decreto n.734, de 5 de janeiro de 1900 (Colleçãodas Leis..., 1901, p.2-36). Essa lei é bastante favorável em relaçãoaos ocupantes, permitindo a legitimação de posses anteriores a1878, bastando para isso a comprovação de títulos de domínio.Posses anteriores a 1868 poderiam ser registradas mesmo sem ne-nhuma documentação. E, ainda, posses efetivadas até 1895 pode-riam ser legitimadas se tivesse havido, até a data, alguma cultura emoradia (Silva, 1990, p.328-9).

A lei paulista é francamente liberal, refletindo claramente osinteresses da elite econômica e política que dominava o poder no

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Estado. Parte importante dessa elite será beneficiária da ocupação deterras públicas, portanto seu apoio e aval não parecem estranhos.

Ligia Maria Osório Silva reproduz em seu trabalho trecho deum parecer de Francisco de Paula Rodrigues Alves, em 1888, noperíodo em que fora presidente da província de São Paulo, a res-peito de solicitação de posseiros, onde fica clara a condescendên-cia com que eram tratadas as terras do Estado, ajudando a explicaro espírito da lei de 1898 e a regulamentação de 1900.

Como posteriormente se tivessem apresentado a esta Presidên-cia alguns posseiros solicitando o reconhecimento dos seus direitos,e entendendo que da parte dos poderes públicos deve haver todabenevolência para com esses ocupantes de terras, tenho resolvidonão só atender a tais pedidos, como também lhes conceder novoprazo de seis meses; na conformidade do artigo 57 do decreto nº 1318de 30 de Janeiro de 1854.17

Essa “benevolência” a terceiros, em muitos momentos, tornar-se-ia “autobenevolência”. Sabe-se das imensas propriedades ocupa-das pela família Rodrigues Alves no final do século XIX, nos arre-dores da futura cidade de Piratininga, fora da zona por nós estudada,mas próxima a Bauru. Seu irmão, coronel Virgílio Rodrigues Alves,possuirá mais de dez mil alqueires, dos quais quinze serão utiliza-dos para a fundação da Vila de Piratininga (Rosa, 1981, p.47),onde se torna chefe político supremo. Virgílio, que cuidava dosnegócios do irmão, futuro presidente, chegará a ter entre todas aspropriedades da família dois milhões de pés de café (Motta Sobri-nho, 1978, p.108).

Tais elites preferiam permitir a ocupação indiscriminada deterras do Estado, se possível por elas mesmas, e não a permanênciado gentio ou a manutenção de estoque de terras sob a propriedadepública.

A facilidade para a legitimação de posses, bastando para isso,conforme a época de ocupação, apresentar títulos de domínio que

17 Relatório com que o Exmo. Sr. Dr. Francisco de Paula Rodrigues Alves passoua administração da província de São Paulo ao Exmo. Sr. Dr. Francisco AntonioDutra Rodrigues, primeiro vice-presidente, no dia 27 de abril de 1888, p.54(apud Silva, 1990, p.267-8).

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poderiam ser recibos de compra e venda, ensejará os “grilos”. Ouentão, no caso da comprovação de moradia e cultura, a simplesfraude. Ambos foram constantes na Zona Noroeste.

Os “grilos” nada mais eram que falsos títulos de domínio con-seguidos de diversas formas. Usava-se papel com antigos timbres,antigos papéis com as armas do Império ou mesmo o envelheci-mento destes por diversos métodos que iam do esfumaçamentonos giraus à guarda dentro de recipientes sob a terra.

Sobre os “grilos”, um autor que estudou a região nos informade que o grileiro

obtinha um papel do regimen passado, papel sempre antiquissimo, osello que mais ou menos com o papel coincidia, e nelle documentavaabundantemente a sua posse de tempos remotíssimos, isto é posse deseus antecedentes. Atravez de gerações successivas as terras que oíndio usufruira, a elles pertenciam por direito de nascença... (Ercilla& Pinheiro, 1928, p.124)

O que facilitava todo o procedimento era que a maioria dasterras não tinha tido nenhuma ocupação pelo homem branco, tra-tava-se de áreas devolutas, embora tenha havido casos de disputaentre grileiros, e mesmo entre estes e descendentes dos primeirosocupantes dos meados do século XIX. A imprecisão das divisasdessas ocupações, pelo desconhecimento geográfico das glebasestabelecidas em meio à floresta, a ausência de demarcações físi-cas, a nomenclatura incerta e por vezes repetida de córregos e ri-beirões em muito contribuíam para a indeterminação de proprie-dade. Mesmo o caudaloso Tietê podia “mudar de lugar”, como seviu num dos grilos mais famosos, o chamado “Grilo da Noroeste”,originado no livro número 4, de meados do século XIX, perten-cente ao Cartório de Lençóis Paulista, livro este convenientementedesaparecido.

As primitivas escrituras de 1852, lavradas naquele cartório ...referentes às terras do lugar denominado “Lageado”, não menciona-vam as margens do Rio Tieté.

Todavia, entre 1906 e 1913, operou-se uma inexplicável modi-ficação, de tal arte que essas mesmas terras, com àrea de 102 milalqueires, passaram a ser banhadas pelos Ribeirões Baguassu,

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Ondinhas (ou Córrego Azul), Aracanguá, Agua Parada (ouJacarecatinga) e localizadas à margem esquerda do Rio Tieté!(Martins, 1968, p.68)

Por fim, a falta de registro de muitas áreas pelos seus antigosocupantes, gente simples e desinformada, além do fato de muitosserem analfabetos, tornando desnecessária a falsificação de assina-turas, cuidava do restante.

A fraude para o apossamento era também relativamente sim-ples. Abria-se uma clareira na área pretendida, erguia-se uma taperacom materiais antigos, especialmente telhas, fazia-se uma roçadae, dessa maneira, se “comprovava” a ocupação das terras alegandosua apropriação como anterior a 1868.

Às vezes, a imaginação ia além:

Implantavam-se à pressa cafeeiros de vinte ou trinta anos nasclareiras das florestas. Transportaram-se partes destacadas de casasvelhas, que eram guarnecidas com móveis antigos, para criar o ambi-ente adequado e simular uma antiga ocupação do solo. (Monbeig,1984, p.144)

O fato é que a grande maioria das terras foi grilada ou ocupa-da ilegalmente, se observados estritamente os termos da lei.

Toda a Zona Noroeste assistiu, durante décadas, às lutas pelaapropriação de imensos latifúndios de propriedade e época de ocupa-ção incerta, na qual, dependendo dos interesses envolvidos, havia“legítimos” documentos de comprovação de posse. Na região deBauru a Fazenda Flores, na das estações de Presidente Penna(Cafelândia) e Albuquerque Lins (Lins), a Fazenda Dourados doOeste; Estação Hector Legru (Promissão), Fazenda Itacolomy ouPatos, Fazenda Banhado e Fazenda Goaporanga; na Estação dePenápolis, fazendas Moreiras, Brejo Alegre, Água Limpa e Matão;Chave de Birigüi, Fazenda Baguassu ou Perobal e Fazenda Baixotesou Congonhas; Estação de Araçatuba até a divisa com o Rio Paraná,fazendas Baguassu, Jangada e Aguapeí (Martins, 1968, p.68).

As disputas judiciais avançaram pelo século XX de maneiracada vez mais confusa em razão da morte de interessados, heran-ças, vendas e revendas, desmembramentos etc. Não se pode des-

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prezar o grau de violência em todos esses momentos gerando pen-dências gigantescas “no decorrer das quaes, no intervallo das sen-tenças dos Juizes, se fazia ouvir a razão fortissima do bacamarte...”(Ercilla & Pinheiro, 1928, p.124 e 126).

Seja, porém, pelas mãos dos primitivos, ou novos posseiros, emesmo grileiros, o certo é que as terras devolutas, pertencentes aoEstado ou ao gentio, haviam se transformado em mercadoria.Grileiros e posseiros serviram para legitimar a apropriação das ter-ras, inserindo-as no circuito de bens de troca (Sallum Jr., 1982, p.20).

Junto às estações recém-inauguradas, acorreram todos aque-les que podiam e queriam terras de futuro valor. A posse e suademarcação demandavam investimento: juntava-se uma caravanacom bugreiros fortemente armados, um agrimensor, cozinheiro ealguns picadeiros que cuidavam da abertura da mata (Cunha, 1980,p.26). Seguiam as obras da ferrovia, ou, quando prontas, embarca-vam em um trem até a estação ou chave pretendida.

FIGURA 27 – Grupo de homens, devidamente munidos, durante a abertura depropriedades na Zona Noroeste. Foto sem data (Instituto Histórico AntônioEufrásio de Toledo. Bauru, SP).

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Francisco Cunha, o João-do-Mato, agrimensor na região daAlta Sorocabana, durante os anos de 1920, explica que a demarca-ção de terras, junto à ferrovia, se dava a partir dos trilhos da estra-da de ferro, também lá situada no divisor de águas, “o que eramais racional e naturalmente indicado”.

Desse modo, prossegue:

Assim, de cada estaca de estacionamento do instrumento davaeu um rumo de direção mais ou menos perpendicular ao espigão.Destacava dois picadeiros um para balizar a picada outra para abri-lano mato a golpes de foice ... à medida que eu alcançava pelos trilhoscom o caminhamento, os picadeiros iam abrindo estas seções. Devolta do espigão à linha eles mediam a seção feita e deixavam escri-tas numa estaca à beira da cerca, a distância encontrada. A não serpor meio de nivelamento, esta foi a técnica mais perfeita, rápida eeconômica para determinar a posição de um divisor no meio da mata,porque sendo feita com estacas da mesma altura, o balizamento acu-sa visivelmente a crista do divisor, ao ser ultrapassado. Nesse pontoera fincado um pequeno marco. Depois de confeccionada a planta,ligadas estes pontos entre si tinha-se um levantamento suficiente-mente perfeito para o fim em perspectiva. (ibidem, p.37-8)

Os procedimentos na Zona Noroeste eram semelhantes aodescrito; ressalte-se que a forma de demarcação mudou em rela-ção ao período anterior a 1880. Agora, em razão da presença cadavez mais constante do agrimensor, optava-se por formas mais geo-métricas, em geral um retângulo, em que os lados alongados seriamfreqüentemente as linhas de separação das águas (Monbeig, 1984,p.215). O velho costume de delimitar a propriedade “a olho”, ape-nas observando os caprichos da natureza, é substituído por rigorgeométrico, linhas retas e o máximo de precisão. Persistia, porém,quando possível, a opção por um vale, que garantia maior valori-zação da área, pois haveria dois espigões para o futuro plantio docafé que pedia terras altas. Ainda, em caso de loteamento, todos osfuturos sítios poderiam ter a testada junto ao cume e fundos para aágua, algo fundamental para venda da terra rural.

Assim explica Pierre Monbeig o parcelamento das grandespropriedades e sua subdivisão em sítios ou chácaras: “Cortam-seas vertentes de cada um dos pequenos vales em faixas perpendicula-

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res aos ribeirões, todas com aproximadamente a mesma superfí-cie” (ibidem, p.221). Portanto, em geral, a gleba apossada nesseperíodo ficaria com os limites determinados pela ferrovia, duasencostas e um último paralelo à estrada de ferro, ao fundo.

A ocupação de terras devolutas, agora, exigia grande investi-mento por causa da contratação de pessoal técnico para localiza-ção, demarcação e execução de planta com determinação dos limi-tes da gleba, bem como, num segundo momento, profissionais paraa tentativa de regularização da apropriação. Esta se fazia por su-posta comprovação de posse anterior, por meio de registros anti-gos, se houvesse, documentos falsos, ou comprovação de moradia,como já vimos. Todo esse trabalho tinha que ficar em mãos deespecialistas, falsificadores e advogados, às vezes a mesma pessoa,que conhecessem as leis de maneira a, aproveitando-se de suasbrechas, burlá-las. Toda essa complexa e onerosa situação contras-tava-se com a simplicidade e modestos custos dos primeirosposseamentos feitos pelos mineiros.

Seguindo esse procedimento, as terras ao longo da CEFNOBforam sendo tomadas ou “compradas” segundo o discurso de seusproprietários. Junto à estação de Presidente Alves (km 71), inau-gurada em 1906, fazendas são formadas a partir de 1907 por LuizWolf, Mario Pimentel, Roque Xisto e Benedito Caçapava (Ercilla& Pinheiro, 1928, p.211).

Nas proximidades da estação de Presidente Penna (km 125),inaugurada em 1908, futura cidade de Cafelândia, estabelecem-se ao redor da estação os irmãos Zucchi. Outros, ainda, para aíse dirigem, como o coronel Maurício Moreira e Pedro TheodoroRaposo dos Santos (Enciclopédia dos Municípios Brasileiros,1957, p.190).

Junto à estação de Albuquerque Lins (km 151), inauguradaem 1908, atual cidade de Lins, formam fazendas Manoel Francis-co Ribeiro, Francisco Teófilo de Andrade, Frederico M. Costa,Amancio Nogueira, José do Rego, Francisco Veloso Martins, co-ronel João Pedro de Carvalho Jr., Joaquim de Godoy etc. (Prefei-tura de Lins, 1992, p.1). A quantidade maior de interessados queacorrem aos arredores dessa estação pode ser explicada pela boaqualidade das terras, uma das melhores da Noroeste, manifestadapela exuberância das matas.

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A partir da próxima estação, a de “Hector Legru”, depois cha-mada “Promissão”, no quilômetro 178 até a de “Araçatuba” noquilômetro 281, o procedimento de ocupação junto à linha daCEFNOB será unificado, especialmente, a partir de 1912, por umúnico grupo amparado por capitais externos. Tal grupo dará à ocupa-ção e retalhação das terras um procedimento empresarial em con-traste com a fragmentação do processo praticado por pessoas físi-cas, individualmente, até a estação de Albuquerque Lins. E dentretodos os membros dessa companhia parceladora, um se destacará:coronel Manoel Bento da Cruz.

A RETALHAÇÃO DAS TERRAS

No período por nós abordado, 1905-1914, a região Noroesteterá pequena produção cafeeira. Estará concentrada nos arredoresda cidade de Bauru, boca-de-sertão, que, embora possua terras debaixa qualidade para o plantio (arenito Bauru), produzirá durantealgum tempo em relativa quantidade. O húmus acumulado sobreas camadas superficiais manterá as colheitas até o final da primeiradécada do século XX, quando então são substituídas por outrasculturas ou por criação de gado.18 Porém, essa produção não serárepresentativa da zona como um todo, dizia respeito apenas aoentorno de Bauru.

Sérgio Milliet (1982, p.55) situa o início da produção cafeeirana região Noroeste, em bloco, nos anos 1920, antes disso não hánenhum indicativo de produção em suas tabelas. O autor coloca,como auge da produção na zona, os meados dos anos 1930, “ape-sar das crises que se amiúdam”. Milliet atribuiu à Noroeste, em1935, uma produção cafeeira de 4.455.000 arrobas, “66 vezes aprodução de 1920” (ibidem, p.62).

Outro aspecto que explica a inexistente produção de café nazona, no período abrangido por este estudo, diz respeito à caracte-rística do vegetal que, pelo tempo entre plantio e colheita, perfaz

18 A Fazenda Val de Palmas nas cercanias de Bauru é um exemplo; nos anos 1920,sua produção cafeeira é praticamente abandonada (cf. Ercilla & Pinheiro, 1928,p.126).

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um mínimo de cinco anos. Mesmo assim, as primeiras colheitassão pequenas, necessitando de oito anos para a safra plena, semconsiderarmos o período suplementar de queimada das matas,destoca e preparo do solo, necessários em áreas recém-abertas.

A principal razão, contudo, de não haver produção cafeeiraaté os anos 1920 deve-se ao fato de que, nesse primeiro momento,as terras estavam sendo ocupadas e retalhadas. No período, oslucros se darão não com o inclemente trabalho no solo, e sim coma confortável especulação sobre a terra.

A iniciativa mais bem-sucedida no parcelamento das terrasocorrerá na área compreendida entre as estações de Hector Legru,futura vila de Promissão, e Araçatuba, num total de 103 quilôme-tros pela linha. Nela imperará a posse, ou a reunião de posses, depraticamente um único proprietário, coronel Manoel Bento da Cruz.Mas, antes de nos aprofundarmos nessa questão, é importantedarmos uma rápida biografia de nosso personagem.

Bento da Cruz nasce em 1875, no Rio de Janeiro, filho de por-tugueses enriquecidos com o comércio carioca. Estuda no tradi-cional Colégio Pedro II, cursando depois a faculdade de Direitodo Rio de Janeiro. Aos 18 anos, casa-se com uma paulista, sobri-nha dos barões de Serra Negra e Resende, muda-se para São Pauloe daí para várias cidades do interior do Estado e Mato Grosso,onde exerce diversas funções relacionadas à sua profissão: titularde cartório, promotor público, curador de órfãos, além de manterbanca como advogado.19

Toda essa experiência nas áreas jurídicas e notariais, comoveremos, será muito importante para sua vida futura. Em 1905,Bento da Cruz já estará vivendo na Zona Noroeste, próximo àfutura Estação de Penápolis. A partir de então se torna advogadode diversos descendentes de antigos ocupantes e grileiros da re-gião, pleiteando junto ao Estado imensas glebas. Seus honoráriosserão pagos com terras, e em alguns casos ficava com a maior ex-tensão, bem como aquelas de localização mais privilegiada (Martins,1968, p.68-9).

19 Dados colhidos em Martins (1968, p.23-32) e Paiva (1975, p.216-9).

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É bom que se esclareça que, nessa área da Zona Noroeste, emrazão da criação nos meados do século XIX da colônia militar deAvanhandava, alguns posseiros para aí se dirigiram. Facilitava aocupação a segurança gerada pela colônia, bem como a ausênciade florestas, naturalmente substituídas por campos.

Também mineiros para Avanhandava se destinaram, logo apósa efetivação da colônia, ocupando extensas glebas denominadas:Degredo, Brejo Alegre, Cachimba, Quaresma, Água Limpa, Lajea-do, Moreira Farelo, Patos e Banhado (Barros, 1992, p.8).

Com o abandono da colônia militar por parte do Estado, aárea ficou sem nenhuma proteção e totalmente isolada. Em 1886,caingangues matam onze moradores (ibidem, p.11). Os demaisposseiros, com receio de serem as próximas vítimas, fogem da re-gião, deixando as propriedades. Entre esses moradores estavamAlexandre Ferreira de Souza e sua mulher Maria Chica, que dará onome ao lugar: “Campos de Maria Chica” (ibidem, p.51-3).

A extensão das terras ocupadas pelos antigos moradores dos“Campos de Maria Chica” era de difícil cálculo em razão de todasas imprecisões geográficas e demarcatórias já levantadas por nós.Aproveitando-se disso, Bento da Cruz procura os descendentesdas famílias propondo “defendê-los” na recuperação das posses deseus antepassados.

Quando Cruz descobriu as posses daquela gente, foi de casa emcasa tomando procuração de todos para o levantamento e legislaçãodas terras aposseadas, recebendo a metade delas em pagamento.20

Dessa maneira, Bento da Cruz consegue amealhar uma quan-tidade de terras estimada em trinta mil alqueires (Martins, 1968,p.68), em boa parte acompanhando a linha da CEFNOB.

A sua formação privilegiada diante daquelas pessoas simpló-rias facilitará seus negócios. Longe de ser uma personalidade singu-lar, Manoel Bento Cruz representava bem a moral dos primeirosanos republicanos, a ética dos novos tempos. De alguma maneira,

20 Entrevista de Enoch José de Castilho, descendente de um dos antigos possei-ros (apud Barros, 1992, p.118).

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na região, era o próprio espírito da época em busca de riquezasmateriais:

nenhum dos freios que a moral e a convenção do império antepu-nham ao espírito especulativo e de negócios subsistirá; a ambição dolucro e do enriquecimento consagrar-se-á como um alto valor social.(Prado Jr., 1994, p.209)

O epicentro dessa “democracia de arrivistas” se localizava nacapital federal sacudida por reformas europeizantes destinadas auma nova classe de “cavadores”, “especuladores” e “golpistas”(Sevcenko, 1985, p.40-1). Dentro desses paradigmas, Manoel Bentoda Cruz será como nenhum outro, na Zona Noroeste, um repre-sentante dos novos tempos de liberalismo econômico.

Nessa época, por volta de 1905, já era público que os trilhosda CEFNOB iniciar-se-iam na cidade de Bauru, passando pela re-gião da futura vila de Penápolis, mas os raros moradores remanes-centes nesse sertão tão distante e isolado nem imaginavam nenhummelhoramento dessa natureza.

Nos meados de 1905, os engenheiros da ferrovia já realiza-vam as explorações preliminares para marcação da estrada (Bar-ros, 1992, p.11), e Bento da Cruz torna-se interlocutor privilegiado.

Quando a Noroeste estava sendo aberta, com as paralelas deaço alcançando o estado de Mato Grosso, os engenheiros e altosfuncionários tinham como ponto de pouso a residência de Bento daCruz, em Penápolis. Enviavam-lhe telegramas assim: “Cruz. Chega-remos as tantas horas. Apronte a bóia”.

Essas refeições fizeram época. (Martins, 1968, p.32)

Junto à gentil hospitalidade, em local tão inóspito, ao redor deuma mesa farta, acompanhada de vinhos caros e champanha fran-cês (ibidem, p.32), não é difícil imaginar que seria bem possível,entre uma conversa e outra, sugerir a mudança do local dos trilhos,chaves e mesmo estações. Presentear um anfitrião tão generosocom um pequeno remanejamento no traçado, ou na posição deestações, em meio ao nada, não deve ter sido difícil, nem motivode peso na consciência.

Fausto Ribeiro de Barros (1992) nos confirma como foi feitaa escolha do local para a estação de Penápolis:

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Por volta de Junho de 1907, a pedido de Manoel Bento da Cruz,os engenheiros da ferrovia localizaram uma estação nos Campos deMaria Chica, junto à propriedade rural do próprio Cruz... (p.76)

Até 1912, quando Bento da Cruz forma a “The San Paulo Land,Lumber & Colonization Company”, sua atividade de parcelador enegociante de terras será exercida individualmente como tantosoutros na Zona Noroeste. Venderá a interessados áreas de dimen-sões variadas, porém sempre junto ou próximas da linha de ferro.Uma das vendas mais conhecidas será aquela feita a Nicolau daSilva Nunes, considerado o fundador da cidade de Birigüi.

Nicolau lê no jornal O Estado de S. Paulo, no ano de 1911,artigo sobre a Companhia Estrada de Ferro Noroeste do Brasilescrito pelo almirante José Carlos de Carvalho. Empolga-se com adescrição da uberidade da terra, pega algumas economias e parteda sua cidade, Salles de Oliveira, para a Zona Noroeste, juntamen-te com um amigo.

Nicolau conta em seu relato, publicado há pouco tempo (Cunha,1997), que chegara por trem à estação de Albuquerque Lins em 22de junho de 1911 e que nessa localidade tivera oferta de terras, porparte de um morador, mas pela incerteza quanto à documentaçãodas posses declinara da compra.

Seguindo viagem para a estação de Penápolis, é apresentado aBento Cruz, o mais poderoso negociante de terras da zona, quan-do expõe sua intenção de comprar terras para si próprio e pararevendê-las a “centenas de famílias de colonos de origem estran-geira” de sua região. Inicialmente, Cruz oferece terras na Estaçãode Avanhandava (Miguel Calmon). Nicolau vai até o local e não sesatisfaz com a qualidade das terras. Informado a respeito, Bentoda Cruz propõe novas áreas na chave de Birigüi, alertando que “osíndios têm atacado muito” o local ou na Fazenda Baguassu em Ara-çatuba “estação e pernoite de trens”, o que indicaria provável va-lorização urbana.

Nicolau viaja até a Estação de Araçatuba reparando na geadapelo caminho.

No dia seguinte, às 3 horas da manhã, fomos despertados napensão para embarcarmos num vagão aberto de lastro para Araçatuba,junto com Manoel Bento Cruz. Fazia um frio cortante, principiou aclarear próximo à Birigüi e fomos reparando nos vestígios da geada.

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Tudo queimado até o Km 262, depois tudo verde até as verten-tes de “agua branca” e assim por diante até Araçatuba com vestigiosde geada. (ibidem, p.77-8)

Diante do quadro, Nicolau retorna de Araçatuba disposto anão comprar as terras da Fazenda Baguassu, mas sim aquelas loca-lizadas entre o Córrego dos Baixotes e seu espigão, junto à chavede Birigüi. Chegando a Penápolis, Nicolau verifica o mapa dasterras e compra quatrocentos alqueires e seu amigo, 120, “todo la-do direito da linha” (ibidem, p.79-80). Após o negócio, retorna aSalles de Oliveira, na região da Mogiana. Porém, antes tratara comBento da Cruz para que “intercedesse” junto à CEFNOB a fim deque esta construísse uma casa de turma próxima à linha, bem comoprovidenciasse estação junto à chave, mesmo que provisória.Nicolau temia que os ataques indígenas afugentassem os futuroscompradores, pois estes necessitavam de alguma segurança paraviverem no local.

Embora Birigüi fosse uma chave, a Companhia Estrada de Fer-ro Noroeste do Brasil não conseguia funcionários para viveremno local.

Não era possível permanecer uma turma fixa em Birigüi, poisos índios já tinham eliminado dois serradores, atacado as turmas vo-lantes e enforcado outra pessoa num poste de telégrafo. (ibidem, p.81)

Quando Nicolau retorna a Birigüi, em dezembro de 1911,com alguns interessados nas terras, já estava construída uma casa deturma “especial”, a de número 33. Para tanto, a diretoria da Noro-este teve que dissuadir o mestre de linha e o feitor que não queriam,preliminarmente, viver em local tão arriscado (ibidem, p.81).

Junto à chave, a CEFNOB providencia dois vagões que no iní-cio servirão como moradia para os recém-chegados e depois funcio-narão como estação, até o ano de 1917, quando será construída adefinitiva. “Os dois vagões de carga, cedidos pela Noroeste, forampara eles fortalezas inexpugnáveis. Sentiam-se fortes, unidos e pro-tegidos pelo grupo” (ibidem, p.57).

O longo relato serve para mostrar como se comercializavamas terras aposseadas, até essa época, de maneira relativamente in-formal e em praticamente qualquer local entre a estação de Ava-nhandava (Miguel Calmon), no quilômetro 202, e a de Araçatuba

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A escolha da terra era feita devendo para isso apenas ter limi-tes claros entre a ferrovia, espigões e cursos d’água, fosse qualfosse sua dimensão. A demarcação seria executada a posteriori pelosagrimensores de Manoel Bento da Cruz.

Observa-se ainda que muitos compravam terras para revenda,como no caso de Nicolau da Silva Nunes, que realmente parcelouparte de sua propriedade, vendendo-a em pequenos sítios a váriosconterrâneos seus que serão os primeiros moradores da futura vilade Birigüi.

Essa e outras experiências semelhantes22 incentivam ManoelBento da Cruz na formação, em 1912, de sua Companhia.

FIGURA 28 – “Estação” e armazém de Birigüi. Foto de 1914 (Ramos & Matins,1961, p.93).

21 Bento da Cruz também possuía terras na estação anterior, Avanhandava (Mi-guel Calmon), mas, conforme o relato de Nicolau da Silva Nunes, não chega aoferecer-lhe.

22 O Livro de Notas n.1, do Cartório de Penápolis, foi aberto em 1910, anoseguinte da criação do Distrito. Nele constam diversas transações de terrasfeitas por Manoel Bento da Cruz (ver Barros, 1992, p.111-2).

no quilômetro 281.21 Revela ainda o quanto era importante a es-tação na escolha da área, ponto de comunicação com o mundoexterior e baluarte na proteção dos novos moradores.

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Deve-se notar, ainda, que esse é o ano da pacificação dos cain-gangues na Zona Noroeste pelo recém-criado SPI,23 Serviço deProteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais.Esse órgão, que teve a colaboração de Cândido Rondon, depois decontatos pacíficos com os indígenas, instala-os nas reservas de Icatue Vanuire.24

Sabe-se que parte do receio dos imigrantes em se estabelecerna região dizia respeito ao terror aos caingangues, que tinham suasações deliberadamente amplificadas pelos posseiros e CompanhiaFerroviária. As notícias de ataques indígenas rapidamente chega-vam aos principais jornais do país, ao passo que as “batidas” dosbugreiros eram devidamente acobertadas. Tentavam os posseiros ea Companhia Ferroviária pressionar o governo a tomar medidasdefinitivas em relação ao gentio, a fim de tornar a ocupação daterra e as instalações da empresa mais seguras.

Tais interesses ficam expressos nas cartas trocadas e publicadasno jornal O Estado de S. Paulo entre o tenente Manoel Rabello,inspetor do SPI na região, subordinado de Cândido Rondon, eManoel Bento da Cruz, em data anterior à pacificação dos índiosda Zona Noroeste.

O tenente Rabello tenta explicar à opinião pública o ataque mortaldos caingangues a um agrimensor e sua turma, que prestavam servi-ços a Manoel Bento da Cruz na medição da Fazenda Dourados:

Por occasião da minha recente estadia na Zona Noroeste, fuiinformado da existência dessa e de outras turmas que, com a maiorimprudencia, penetravam no território habitado pelos índios e quelegitimamente lhes pertence, abrindo picadas e derrubando as mattas,facto que é recebido pelos selvicolas como invasão nos seus domínios,que heroicamente estão defendendo.25

Mais adiante, ressalta a estratégia de amplificação dos atosindígenas:

23 O órgão foi criado em 20 de julho de 1910.24 Sobre a pacificação indígena na região Noroeste do Estado, ver Lima (1978,

p.173-95).25 Carta do tenente Manoel Rabello, inspetor do Serviço de Proteção aos Índios,

publicada no jornal O Estado de S. Paulo, no ano de 1910 (apud Martins,1968, p.214).

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São esses mesmos interessados em manter no espirito públicoinjustas prevenções contra os índios, para à sombra delas praticarema expoliação de suas terras, que vêm assim illaquear a boa fé da im-prensa e do publico, annunciando ataques, muitas vezes phantasticos,que agora motivaram descabidas accusações á inspectoria do serviçode protecção, que longe de descurar o problema da pacificação doscoroados faz disso a sua principal preoccupação.26

Manoel Bento da Cruz responde poucos dias depois, deixandoclara sua posição em relação à ocupação das terras e aos indígenas:

Assegura a constituição da República (art. 72) o pleno direitode propriedade, salvo as restricções de desapropriação por utilidadee necessidade públicas, assim mesmo envolvendo a obrigação natu-ral da indemnização.

É, pura e simplesmente o que estão fazendo taes agrimensores eos habitantes da zona, pouco importa que os índios tal não agrade, é olivre exercício do direito de propriedade ... ora, o unico regimem legalé aquelle que favorece os habitantes apoiados nas disposições das Leisde 1850 e 1898, aquella do Império e esta do Estado, e na possetrintannaria (posse de 30 annos) que “agora” se pretende turbar...

São dois interesses que se repellem: o da civilização e o da con-servação dos índios em seu estado nomade, dando pasto às suastendencias sanguinárias e reivindicatórias.27

O quase-extermínio do gentio provocado pelas batidas de bu-greiros e sua virtual rendição ocorrida com a “pacificação” em1912, quando foram agrupados e isolados em pequenas reservas,sinalizavam àqueles imigrantes mais receosos o fim dos conflitos eda carnificina, porém representavam muito mais a liberação defi-nitiva da terra para sua franca ocupação. Posseiros e agrimensorespoderiam trabalhar livremente, demarcando as apropriações dasterras públicas para fins privados, sem receio de ataques dos seusantigos moradores.

Cassiano Ricardo (1970), falando do extenso trabalho de Ron-don, após 1910, na Bahia, Espírito Santo, Amazonas e na Zona

26 Ibidem, p.215.27 Carta de Manoel Bento da Cruz publicada no jornal O Estado de S. Paulo no

ano de 1910 (apud Martins, 1968, p.215-6).

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Noroeste de São Paulo, toca numa questão, a nosso ver, muitoimportante: “Em cinco anos de trabalho êle conquistou, pacifica-mente, alguns milhares de quilômetros quadrados, agora em con-dições de fácil valorização” (p.603).

Livre dos indígenas, era possível adentrar mais em direçãoaos rios Aguapeí/Feio e Tietê e a ocupação poderia se “descolar”dos trilhos, oferecendo terras mais baratas ainda. Para isso, basta-vam ser criadas estradas vicinais, perpendicularmente aos trilhos,a partir das estações da CEFNOB.

A escala do parcelamento agora seria outra, de cunho franca-mente empresarial, e em 12 de outubro de 1912 é criada a “TheSan Paulo Land, Lumber & Colonization Company”. São sóciosmajoritários na empresa o coronel Manoel Bento da Cruz, Presci-liano Pinto de Oliveira, o inglês James Mellor e o escocês RobertClarck. O capital da sociedade, em boa parte inglês, foi instituídocom o valor de 800:000$000, divididos por oito mil açõesintegralizadas (Martins, 1968, p.139-40).

Esse corresponde a um momento de intenso investimento es-trangeiro no Brasil. Caio Prado Jr. coloca-nos que, a partir de 1906,com a operação de valorização do café, a presença estrangeira,particularmente inglesa, aumenta sensivelmente. Tais capitais, se-gundo ele, dirigem-se às ferrovias, aos setores industriais, de servi-ços públicos e à economia cafeeira da produção à exportação (Pra-do Jr., 1994, p.271-4). Porém, como alerta o autor, “onde querque apareçam oportunidades de negócios rendosos para lá afluiráimediatamente o capital financeiro...” (ibidem, p.272-3). Este, pormeio de seus agentes, não demorará a perceber as amplas possibi-lidades do comércio da terra agrícola. Pierre Monbeig (1984, p.112)considera o ano de 1905 como data provável para o início de com-pra de terras por ingleses nas zonas novas paulistas.

Consideramos que a inversão de capitais ingleses no lotea-mento rural da Zona Noroeste, por intermédio da “The San PauloLand, Lumber & Colonization Company”, precederá e incentiva-rá outras empresas subseqüentes pelo seu sucesso.

Com efeito, nas décadas seguintes, na própria zona por nósestudada, na região do Rio Paranapanema e também com grande

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força no norte do Estado do Paraná, surgirão diversas empresas deloteamento rural a partir de capitais estrangeiros.28

FIGURA 29 – Quadro dos fundadores da “The San Paulo Land, Lumber &Colonization Company”. Foto de 1912 (Ramos & Martins, 1961, p.55).

28 Na Zona Noroeste será criada posteriormente a “Brazilian Plantation Com-pany”, proprietária de quinze mil alqueires. Pierre Monbeig (1984, p.201-4,344-6) aponta algumas delas em seu livro, localizadas tanto em São Paulo comono norte do Paraná. Sobre loteamentos rurais particularmente nos finais dosanos 1920, ver Vieira (1973).

A “The San Paulo Land, Lumber & Colonization Company”,em sua criação, declara-se proprietária de terras nas fazendasBaixotes ou Congonhas e Baguassu situadas em Penápolis e comárea de 6.500 alqueires (Martins, 1968, p.139). Ainda, segundoOrentino Martins, a companhia “adquire”, após sua constituição,sessenta mil alqueires de terras virgens entre os rios Tietê e Aguapeí/Feio (ibidem, p.139).

Dava-se agora um aspecto empresarial a uma atividade queaté então tinha sido relativamente improvisada. A união de forçasde grandes proprietários e capitais externos em abundância acele-rará a ocupação das terras.

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FIGURA 30 – Propaganda no Almanach de Pennápolis da Companhia auto-intitulada “Proprietária da MAIOR colonização do Paíz” (Almanach dePennápolis para o anno de 1920, 1920, p.34. Cópia do acervo do MuseuHistórico e Pedagógico Fernão Dias Paes. Penápolis, SP).

Visava a Companhia vender pequenos lotes rurais, com di-mensões a partir de dez alqueires, pagos parceladamente, 30% àvista e o restante em três anos com juros de 10% (Ercilla & Pinhei-ro, 1928, p.501-2). Seu público-alvo seriam os imigrantes, especial-mente aqueles chegados ao Brasil há alguns anos e que tivessemamealhado algum dinheiro. A estes, a Zona Noroeste, distante, maspossuidora de boas terras e com preços acessíveis, acabava sendo aúnica alternativa na conquista de um pequeno chão.

As poucas colônias agrícolas, organizadas pelo Estado, e as máscondições de vida dos imigrantes nas fazendas faziam que estes tentas-sem rapidamente guardar algum dinheiro para compra de terra.

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Verena Stolcke (1986, p.79) indica que, no começo do século,havia duas correntes de proprietários rurais que discutiam a situa-ção do imigrante: seu padrão de vida e oportunidades, uma otimistae outra pessimista, mas que ambas concordavam num ponto: osimigrantes queriam era sair das fazendas. Os pessimistas justifica-vam a saída dos colonos por causa de terríveis condições de vida; osotimistas achavam que a situação não era tão ruim, pois “Elas per-mitiam que uma porção significativa de colonos economizasse osuficiente para a compra da terra própria...” (ibidem, p.79).29

Realmente, o Boletim do Departamento de Trabalho de SãoPaulo, no final da primeira década desse século, indicava que anti-gos colonos estavam rapidamente adquirindo terras e transforman-do-se em pequenos proprietários.30

Havia, pois, demanda por terras, especialmente aquelas debaixo custo e pagáveis durante alguns anos, quando a produçãoagrícola das roças, entremeada com o café, de crescimento lento,já estaria rendendo algum dinheiro.

Mesmo para o grande proprietário seria conveniente a presençade imigrantes nas cercanias como estoque de força de trabalho aser utilizada eventualmente, como jornaleiros. Vislumbrava-se, ain-da, a possibilidade de fornecimento de serviços mais qualificadosem outros ramos também importantes à atividade rural, como car-pintaria, ferraria, marcenaria, olaria etc., que poderiam agora seroferecidos por profissionais sem ligações funcionais com as fazen-das, desobrigando o grande proprietário rural de organizá-losprivadamente.31

Os diretores da “The San Paulo Land, Lumber & ColonizationCompany” acertadamente consideravam que, para atingir seus fins –

29 Caio Prado Jr. (1957, p. 237) considera ainda que muitos compradores “nemsempre estão em condições de julgar se a compra convém. Na ânsia de se torna-rem proprietários olham mais para os preços e facilidades de pagamentos”.

30 Boletim do Departamento Estadual do Trabalho, v.6, n.24, 1917 (apud Stol-cke, 1986, p.79).

31 Era comum nas grandes fazendas do século XIX a existência de serraria, ola-ria, moinhos de fubá, ferraria etc., além de toda a infra-estrutura habitual paraa produção do café, que a partir de 1870 se mostra bastante sofisticada e me-canizada: secadeiras, ensacadores etc. (ver Silva, 1976, p54-6). Também sobreo assunto, ver Taunay (1939-1943, v.3, p.221-3).

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a venda de terras –, o pequeno agricultor precisaria ter à disposi-ção, além da terra barata e do transporte fácil, garantido pelaCEFNOB, núcleos urbanos que o amparassem nas necessidades, eonde pudesse vender sua futura produção. Portanto, a formaçãode povoados passaria a ser uma das principais preocupações des-ses loteadores rurais. Isso fica muito claro até pelo nome da com-panhia “The San Paulo Land & Lumber Company” alterado,açodadamente durante sua constituição, conforme o artigo 9º:

Modificar o título da companhia, adicionando as palavras “&Colonization”, “e Colonização”, depois da palavra “Lumber” (ma-deiras), da seguinte forma: The San Paulo Land, Lumber, &Colonization Company – Companhia de Terras, Madeiras e Coloni-zação de São Paulo. (Martins, 1968, p.141)

A palavra, astuciosa, sinalizaria ao interessado, imigrante emgeral, preocupação mais abrangente do que o simples comércio daterra, talvez algo mais próximo dos Núcleos Coloniais propostospelo governo. Nestes havia a organização de três tipos de lotes:urbanos ou da sede, para as futuras povoações; suburbanos ouchácaras; e rurais para a lavoura.32 Tal organização e método dedistribuição espacial estava longe de ser prevista pela “The SanPaulo Land, Lumber & Colonization Co.” que visava prioritaria-mente ao loteamento rural, utilizando-se dos núcleos urbanos emformação apenas como chamariz para sua clientela.

Se o grande fazendeiro podia dispor, se assim quisesse, de infra-estrutura básica para a plantação e beneficiamento do café, queacaba servindo para diminuir o número de braços utilizados paraprodução (Queiroz, 1969, p.72-3), o pequeno agricultor não ti-nha capital para montá-la. Despolpadores, secadeiras, ensacadores,lavadores etc. eram equipamentos caros demais para os sitiantes.Estes teriam que se valer de máquinas alugadas em beneficiadorassituadas nas proximidades e, pela facilidade de acesso, os locaismais recomendados seriam as estações. Ao mesmo tempo, ao seuredor se formariam pequenas vilas, centro da vida rural, bases de

32 Colleção das Leis e Decretos..., 1902. Artigos 4º e 5º, do Capítulo I - DaFundação dos Núcleos, p.73-4.

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apoio aos pequenos sitiantes, recém-chegados, e fornecedores deuma elementar assistência à saúde, educação e lazer, assim comosediando o imprescindível comércio.

A companhia loteadora percebe a complexidade da questão epropõe incentivar a criação de núcleo urbano no próprio local dasede da empresa: a chave de Birigüi.

O artigo 4º da Constituição da Companhia é claro:

Auxiliar, mediante a contribuição de dez (10) tostões por alqueirede terras vendidas, e na proporção que fôr vendendo, a construçãode estação, pôsto policial, escolas e mais edifícios necessários ao pro-gresso do núcleo de Birigüi e ao bem estar de sua população. (Martins,1968, p.141)

Num primeiro momento, Birigüi seria beneficiado, mas ou-tros núcleos poderiam ser criados, conforme o mesmo artigo 4º:

Fundar outros núcleos, ao longo da Estrada de Ferro Noroeste,entre os quilometros 245 e 277, quando julgar conveniente, poden-do combinar e contratar com a administração da referida Estrada acolocação de desvio e chaves. (ibidem, p.141)

Percebe-se a comunhão de interesses entre a “The San Paulo,Land, Lumber & Colonization Company” e a Companhia Estradade Ferro Noroeste do Brasil. Para a primeira, a vantagem maiorestava em negociar terras rurais com imigrantes; os núcleos urba-nos viriam a reboque como estratégia de venda. A segunda visava,principalmente, ao transporte de cargas, especialmente café, a serplantado pelos futuros ocupantes. O transporte de passageiros,embora menos lucrativo que o de cargas, também carrearia àCEFNOB ganhos razoáveis.

Deve-se considerar que até esse período, início da segunda dé-cada, por causa do despovoamento da região, o transporte de pas-sageiros é irrisório e o de cargas quase inexistente, o que explica otráfego de apenas três composições por semana. A criação de plan-tações e núcleos urbanos só podia ser saudada, mesmo que, emrazão da pacificação dos caingangues, a segurança às estações einstalações da ferrovia ficasse em segundo plano.

A tática da empresa de Bento da Cruz funcionará perfeita-mente. No início dos anos 1920, já tinha parcelado 38.434 alqueires

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vendidos a mais de dois mil compradores brasileiros, portugueses,italianos, espanhóis e japoneses (Ramos & Martins, 1961, p.59).O alqueire vendido na região de Birigüi, em 1913, a 100$000,valeria, ao findar os anos 1920, 2:000$000! (Ercilla & Pinheiro,1928, p.501-2).

Compete observar que Bento da Cruz havia vendido terras aNicolau da Silva Nunes, em 1911, a 25$000 o alqueire (Cunha,1997, p.79). A partir da constituição da companhia loteadora, apósa pacificação indígena, esse mesmo alqueire saltará para 100$000e, próximo aos anos 1930, atingirá 2:000$000. Portanto, uma va-lorização de oitenta vezes.

A Companhia divulgava seu empreendimento de forma bas-tante inovadora para a época e imprimiu em Ribeirão Preto pros-pectos tendo “em um dos lados a planta das terras, que são todasás margens das vertentes dos rios Feio, Tieté e Peixe... (Ercilla &Pinheiro, 1928, p.495). E do outro lado, dizeres sobre a qualidadedas terras, bem como sobre as condições da zona. E ainda, parafacilitar o acesso do imigrante, especialmente aquele de origemitaliana, os dizeres, em sua língua-pátria:

Per chi abbia la sua residenza nella Mogyana arrivará a la No-roeste deve comprare passagio pela la Estazioni di Francisco Schmidtnel ramale di Sertãozinho prendere un troly e imbarcarsi in Pontalcon biglietto per Baurú dove incomincia la Ferrovia Noroeste.(ibidem, p.495)

Tais panfletos foram distribuídos em todo o Estado de SãoPaulo, em especial na Mogiana, de onde partiram muitos imigran-tes para a nova zona, incentivados pela experiência de Nicolau daSilva Nunes (Cunha, 1997, p.58).

Toda essa aparente modernidade empresarial encobria, naverdade, um violento processo de apropriação de terras públicasque acabou sendo a forma básica de conquista nessa região doEstado (Sallum Jr., 1982, p.19).

O parcelamento significava ganhos rápidos e fáceis, em áreassem garantias jurídicas claras. Outra opção de ganho poderia sero plantio de café, em todas as glebas, pelos proprietários da Com-panhia. Mas a situação irregular das posses, sua dimensão exces-

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siva, os capitais imensos para sua viabilização, além da sujeição àscrises constantes dessa lavoura tornavam a empreita por demaisarriscada.33

Maria Isaura Pereira de Queiroz (1969) observa que “O lotea-mento e a multiplicação de vilas fêz com que se desenvolvesse noestado de São Paulo a pequena propriedade, fenômeno raro nahistória brasileira...” (p.113). Contudo, consideramos que no casoda Zona Noroeste a “multiplicação das vilas” vem a reboque doloteamento rural e acontece de modo rápido, especialmente moti-vado por ele.

Outro ponto que nos parece fundamental é a pequena proprie-dade policultora que surgirá em grande número pelo parcelamentodas propriedades maiores e pelo cultivo intercalar.34

Também Sérgio Milliet (1982) surpreende-se com o cresci-mento da pequena propriedade; embora seus índices de crescimentoe composição percentual das propriedades rurais, na Zona Noro-este, iniciem-se na década de 1930, verifica-se que a região entrePromissão e Araçatuba já possuía, em 1930, 3.788 pequenas pro-priedades. E conforme as palavras do autor: “Crescem todas asclasses à custa do sertão bruto, e mais a pequena propriedade doque todas as outras ... e quanto mais longe maior o crescimento,ao contrário, ao que fora de esperar...” (ibidem, p.95).

A pequena propriedade, porém, antes de ser uma forma de“repartir” a terra, era maneira de se livrar da posse irregular, garan-tindo ganhos aos loteadores. O parcelamento era o meio mais rá-pido, prático e barato de se fazer fortuna. Sua simplicidade e agili-dade tinham como contraste o desinteresse e a má-vontade doEstado na divisão judicial de suas terras. Ou seja, agindo-se cele-remente no fracionamento da terra, os grandes posseiros conse-guiram criar uma situação de fato.

No início dos anos 1920, alguns interessados reivindicam parasi parte das terras da Companhia de Manoel Bento da Cruz, mas a

33 Apenas uma pequena fração das posses será utilizada para o plantio pela Com-panhia, aquela mais bem localizada e com documentação mais segura. A fazen-da se denominará “Água Branca” (Cf. Ercilla & Pinheiro, 1928, p.501).

34 Esse cultivo era comumente feito pelos imigrantes como colonos. Ao adquiri-rem suas terras, farão o mesmo como forma de subsistência, ao menos até oinício da produção do café.

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quantidade de assentados, mais de dois mil, será tão expressiva eas pressões tão fortes que a causa acaba sendo ganha pela “TheSan Paulo Land, Lumber, & Colonization Company” (Martins,1968, p.142-3). O desalojamento de um número tão grande depessoas, boa parte delas estrangeiras e com plantações formadas,traria necessariamente graves embaraços internos e externos aogoverno brasileiro.

Toda essa situação de posses irregulares, acordos bem-sucedi-dos com a CEFNOB e a relativa facilidade para a criação de condi-ções propícias à formação de núcleos urbanos, contudo, só podemsignificar que, além de ter havido solidez econômica, foi necessá-rio um lastro político. É o que veremos a seguir.

UM CORONEL “PLANTADOR DE CIDADES”

Vários autores trataram do conceito de coronelismo. Mariade Lourdes Monaco Janotti (1986) resume de forma genérica, in-formando que “Coronelismo é o poder exercido por chefes políti-cos sobre parcela ou parcelas do eleitorado, objetivando a escolhade candidatos por eles indicados” (p.7).

Victor Nunes Leal (s. d.) reforça que a existência do coronel éintimamente ligada à estrutura agrária do Brasil “que fornece abase de sustentação das manifestações de poder privado ainda tãovisíveis no interior do Brasil” (p.37).

Janotti (1986) lembra, porém, que em alguns Estados, parti-cularmente naqueles mais ricos, o coronel é o representante nãomais de uma mera oligarquia agrícola, mas de seu estágio maisavançado: a oligarquia agrícolo-mercantil, “Que controla o poderpúblico e orienta suas decisões no sentido de afastar as demaisclasses do poder e aumentar seus privilégios” (p.9).

A maioria dos autores coloca a origem do coronelismo emperíodo anterior à República. Contudo, pela Constituição de 1891,sua importância e seu raio de ação ampliam-se. A carta de 1891 au-menta o poder dos Estados, ao mesmo tempo que indiretamentereduz os poderes do município. Federalista e descentralizadora,dá autonomia às antigas províncias para que, por meio de consti-tuições próprias, cuidassem da Lei Orgânica dos Municípios. “Toda-

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via a plenitude do princípio federativo não foi exercida na práticadevido à política das oligarquias, que dele se utilizavam de acordocom os seus interesses” (ibidem, p.32).

O município permanecerá, mais que no Império, subjugadoaos interesses das antigas províncias. Ao retirar verbas e poderesdo município, submetendo-os ao poder do Estado, o coronel passaráa ser o principal, se não o único intermediário entre as comunida-des e o governo. Haverá, a partir de então, dependência entreessas duas esferas de poder. O governador precisará do coronel,pois este tinha prestígio, bem como poder de pressão para intimi-dar os eleitores. Por sua vez, o coronel necessitava do governo esta-dual para se manter e/ou ampliar seu poder político. Ele servia comoponte para acesso a verbas ou melhoramentos de interesse da comu-nidade. Sua permanência como chefe político dependia, portanto,dos dois lados: do poder de aliciamento sobre o eleitorado decabresto, que deveria ser numeroso, a fim de somar muitos votos,bem como das benesses conseguidas para a comunidade local.35

Um coronel, numa zona nova, com pouca população tinhapouco poder. Ao ampliar o número de habitantes, bem como onúmero de vilas e cidades, sua importância cresceria.

É sob essa óptica que devemos entender a figura do coronelManoel Bento da Cruz, que estava longe da imagem estereotipadado coronel ignorante e incivilizado. Bento da Cruz nascera e foracriado na maior cidade do país, era advogado, vestia-se elegante-mente e falava cinco línguas (Martins, 1968, p.32). Essas caracte-rísticas fizeram dele personagem com tráfego fácil nas altas esferassociais e políticas do Estado, porém não deixaram menos brutalsua atuação política.

Manoel Bento da Cruz não era o único coronel da Zona No-roeste, mas com certeza chegou a ser, no período por nós estuda-do, o mais importante. Seu biógrafo, bem como outros autoresque tratavam das cidades da região, chamou-o de “Plantador de

35 Nunes Leal (s. d., p.37) fala do desvelo de muitos coronéis trazendo melhoriaspara suas comunidades em que pese a generalizada falta de espírito públicoatribuída ao coronel.

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cidades”, ou mesmo “O homem que fez a Noroeste”.36 Essa últi-ma denominação nos parece particularmente interessante por su-gerir a inexistência política da zona antes de Bento da Cruz. Emparte é verdade, porque a área estava sendo ocupada na época emque Bento da Cruz para ela se dirigiu.

Sabe-se que o “coronel” tem forte vínculo com a terra rural,37

em geral vínculo de nascimento, o que não era o caso de Bento daCruz, originário de família rica, ligada a atividades urbanas: o gran-de comércio da capital federal. Como era neófito no trato da terra,mas tinha altas pretensões políticas e econômicas, Bento da Cruzprocurará uma área também a ser “aberta” e colonizada, onde nãohouvesse a “tradição” da terra como nas zonas mais antigas. Co-meçariam ele e a região um percurso rumo à riqueza e ao prestígio.

Sobre o coronel das zonas novas, nos diz um estudioso:

O posto era comumente herdado, nas cidades mais antigas,mediante a influência natural das famílias tradicionais, de geraçãoem geração.

Sobretudo nas cidades mais novas povoadas de aluvião, cabiaentre os primeiros chegados, aos que revelavam mais atividades eeficiência. (Paiva, 1975, p.126)

Bento da Cruz chegou à Noroeste num dos primeiros “alu-viões”, apossou-se de terras para fracioná-las e “colonizá-las” e,dessa forma, ter um eleitorado fiel e cativo. Reservará para si umapropriedade chamada “Santa Leonor”, como a disfarçar o “nego-ciante” e sua distante relação com a terra.

Como seus interesses eram tão vastos como suas posses, Ben-to da Cruz teve forte participação política não só em uma localida-de, mas em toda a região.

Quando se transfere, em 1905, para a futura estação de Pená-polis e começa a se apropriar de terras, estabelece contatos políti-cos junto ao governo do Estado como forma de amparar suas pre-tensões.

36 Ver Martins (1968, p.103 e p.32), e Ercilla & Pinheiro (1928, p.439). ManoelBento da Cruz é tratado em diversas passagens por essas denominações.

37 Janotti (1986, p.42) considera que o típico coronel era um fazendeiro. Já Fao-ro (1975, p.630) comenta que outras categorias não territoriais, em algumassituações, poderiam ocupar o lugar de coronel.

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No ano de 1911, sua facção política do PRP contará com oapoio do secretário do interior Oscar Rodrigues Alves, o deputadofederal Raul Renato de Melo Cardoso, o deputado estadual Luizde Toledo Piza Sobrinho, além do coronel Virgílio Rodrigues Alves(Martins, 1968, p.117). Era um grupo muito forte, formado porintegrantes das famílias do ex-presidente Francisco de Paula Rodri-gues Alves e Toledo Piza. Todos com interesses claros na zona ouproximidades, os Rodrigues Alves donos de fazendas junto a Pirati-ninga, e os Toledo Piza proprietários de terras nas estações de ToledoPiza e Albuquerque Lins (Lins).

A atuação política de Bento da Cruz estará calcada na açãocoletiva, mas visando prioritariamente ao proveito próprio, práticaessa generalizada a esses chefes políticos. “O coronel utiliza seuspoderes públicos para fins particulares, mistura não raro, a organiza-ção estatal e seu erário com os bens próprios” (Faoro, 1975, p.637).

Utilizando-se do prestígio outorgado pelas esferas superioresde poder, interfere decididamente na vida local. Como todo coro-nel, atuará no varejo do dia-a-dia, mediante práticas comuns decompadrio, tirando dúvidas acerca de questões jurídicas, especial-mente aquelas ligadas à terra, patrocinando a criação de hospitais,cemitérios e cadeias públicas (Martins, 1968, p.83, p.63, p.47).

Ao coronel caberia, ainda, resolver rixas pessoais ou de pe-quenos grupos, “verdadeiros arbitramentos, que os interessadosrespeitam” (Leal, s. d., p.23). Os pequenos posseiros (e mesmo osgrileiros) só podiam atuar sob o beneplácito do coronel:

Sem a “proteção” dos políticos influentes, os posseiros não ti-nham a certeza de poder permanecer nas suas parcelas de terras, eestavam sempre sobressaltados, temendo a grilagem ou a disputa composseiros mais poderosos. O Estado deixava nas mãos dos políticoslocais a resolução das pendências de terras, em vez de exercer seupoder garantidor da Lei. (Silva, 1990, p.372-3)

Numa zona como a Noroeste, onde o Estado tinha pouquíssimaatuação direta, o poder do coronel tendia a ser maior. Na ausênciado poder público, o poder privado ocuparia o maior espaço possí-vel (Leal, s. d., p.42). Espaço aliás da polícia pública, substituídapor milícia privada.

Bento da Cruz tinha à sua disposição grupos armados, ou bu-greiros, que, ao mesmo tempo em que massacraram os indígenas

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para ampliação de seus domínios, afastavam ocupantes antigos deterras de seu interesse, bem como “convenciam” eleitores indecisosnas já habitualmente viciadas eleições.

Em algumas passagens, Fausto Ribeiro de Barros (1992, p.99)nos revela a face violenta de Bento da Cruz. Numa delas é procuradopor dois matadores de aluguel para receber por “serviços perigo-sos” prestados. Em outra, por desentendimentos políticos emPenápolis, “arregimentou capangas, programou a expulsão dosadversários, permitiu tiroteios e espancamentos” (ibidem, p.103):

quando se sentia contrariado em questões políticas ou de terras, todoo seu mundo interior rugia. Homem de corpo franzino, incapaz deesforço físico, lutava através de outros equipamentos legais, ou forada mansidão e segurança da Lei. (ibidem, p.102)

Uma das primeiras atuações na política da Estação de Penápolisserá, por meio de clientes seus, interceder na doação de terras paraos frades capuchinhos como forma de iniciar uma povoação. Talordem religiosa já tivera atuação na catequese indígena, em outrasáreas do Estado, e este era um dos propósitos de Bento da Cruz:conter o gentio que dificultava o comércio de terras.

Em 25 de outubro de 1908, os missionários se instalam emPenápolis (Martins, 1968, p.43). O próximo passo seria a criaçãodo distrito de paz, conseguido por seus contatos políticos na capi-tal paulista, em 17 de novembro de 1909 (ibidem, p.51).

O recém-criado distrito fora, porém, ligado a São José do RioPreto, a cidade mais próxima à época e “dona” da comarca atéentão, mas com penoso contato por caminho de terra, além desituar-se na margem direita do Rio Tietê, fora da Zona Noroeste.Como todos os interesses de Manoel Bento da Cruz estavam situa-dos na zona ligada pela CEFNOB, inicia-se nova batalha políticapara ligar Penápolis a Bauru, cidade “boca-de-sertão” da Noroes-te. Os coronéis de São José do Rio Preto não admitiam perder tãovasta e promissora área; além disso, não queriam ver crescer poli-ticamente Bento da Cruz, que rapidamente se tornava figura proe-minente, até pela inexistência de rivais à altura.

Para desmembrar o Distrito de Paz de Penápolis e anexá-lo aoMunicípio de Bauru o cel. Bento da Cruz lançou mão de todos os

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trunfos de que dispunha, pondo em jôgo o seu enorme prestígiojunto às autoridades do estado ... Nessa refrega foram usados todosos meios possíveis, lícitos ou ilícitos, mostrando-se os contendoresinteiramente intransigentes. (ibidem, p.72)

Em 16 de dezembro de 1910, de acordo com a Lei n.1.225, oDistrito de Penápolis era anexado a Bauru.

Interessava, porém, a Bento da Cruz tornar a vila cidade esede de município, de forma a adquirir independência política,econômica e administrativa. Novas disputas são iniciadas, agoracom uma das correntes políticas de Bauru, facção do PRP lideradapor Vergueiro de Lorena, o primeiro promotor da comarca dessacidade, estabelecida em 1911. Estes tentam sobrestar a solicitaçãode criação de município alegando “carencia de elementos vitaes, depopulação e renda sufficiente, para um municipio independente”.38

Esses foram os argumentos oficiais utilizados para negar a ele-vação de status, mas pelo teor do documento percebe-se que aprincipal discordância dizia respeito às dimensões propostas parao novo município a se formar; imensas, abrangendo boa parte daZona Noroeste,

as divisas apresentadas viriam difficultar a creação de outros municí-pios, para o futuro, nos districtos de paz de Pirajuhy e Jacutinga,que, pelo desenvolvimento e progresso revelados, dentro em breve,deverão ser emancipados. Finalmente essas divisas alterariam, ainda,as divisas das comarcas de Baurú e Campos Novos, retirando destagrande extensão territorial.39

Tais limites, propostos pelo grupo de Bento da Cruz, abran-giam grande parte dos imóveis em litígio da Zona Noroeste40 eeram inaceitáveis para os políticos de Bauru, que viam seu territó-rio e sua influência reduzidos a quase nada.

Como o trâmite na Assembléia Legislativa se tornava arrasta-do, em razão da intervenção sistemática de grupos contrários, Manoel

38 Parecer de número 38 da Comissão de Estatística, Divisão Civil e Judiciária daAssembléia Legislativa de São Paulo (apud Martins, 1968, p.85-6).

39 Ibidem, p.86.40 Os imóveis em litígio foram citados no subcapítulo “C”.

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Bento da Cruz se une a políticos bauruenses, de facção oposicionistaao grupo de Vergueiro de Lorena, lançando-se a vereador. Habil-mente tentará ocupar o espaço do chefe político local, Azarias Leite,assassinado em uma emboscada no ano de 1910.

Era ainda fundamental garantir maior atuação política emBauru, pois essa cidade fora elevada a comarca em 1910, abran-gendo sua jurisdição toda região Noroeste, de interesse vital paraBento da Cruz.

Nas sedes das comarcas funcionavam os Registros Públicosdas Terras, conforme rezava o regulamento estadual de 5.1.1900.41

Também ligados a elas atuavam os Serviços de Discriminação deTerras Devolutas (Silva, 1990, p.369). Se em uma cidade sem statusde comarca o coronel já tinha grande espaço político, numa eleva-da a essa categoria seu poder redobraria:

Na luta entre grileiros e posseiros, ou entre posseiros, era pou-co sensato tentar agir judicialmente. Os chefes políticos exerciamgrande domínio sobre os demais atores do drama da terra: agrimen-sores, juízes comissários, delegados de polícia, donos de cartórios ejuízes de paz. Os agrimensores eram nomeados pelas autoridadesmunicipais, assim como os delegados de polícia. Os juízes de paz,por sua vez, eram eleitos. Os únicos que poderiam escapar das rédeasdo chefe político municipal eram os juízes de direito, porque eramintegrantes da magistratura e não dependiam deste. Mas na verdade,o juiz de direito não teve até a década de 1920 um papel importantenas questões de terras porque estas eram julgadas pelos juízes comis-sários, que como sabemos eram nomeados pelos governadores. (Sil-va, 1990, p.374)

O controle político da cidade sede de comarca garantiria açãodecisiva sobre essa “teia” de agentes que atuavam diretamente so-bre os destinos da terra rural.

Em 1911, Bento da Cruz consegue a vereança, e em 1913 éeleito prefeito por seus pares (Pelegrina, 1996, p.70). Nesse mes-mo ano, Penápolis alcança sua emancipação política (Martins, 1968,p.89), e Vergueiro de Lorena, o primeiro promotor público de

41 Decreto n.734, de 5 de janeiro de 1900 (apud Collecção das Leis e Decretos...,1901, p.2-36).

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Bauru e opositor ferrenho de Bento da Cruz, é “removido” paraoutra comarca.42 Donde se vê que nem o Ministério Público estavalivre da influência coronelista.

Bento da Cruz permanece na legislatura bauruense até 1915,é reeleito prefeito em 1914 e presidente da Câmara em 1915 (Pe-legrina, 1996, p.72). Embora os membros da Câmara tivessemmandato de três anos, a composição da mesa camerária era eleitaanualmente entre seus pares, sendo os principais cargos os de pre-sidente da Câmara, vice-presidente, prefeito e vice-prefeito.

Nesses anos, o coronel Manoel Bento da Cruz se transformouno político mais poderoso da zona, seu prestígio e influência esta-rão diretamente relacionados com a formação da sua empresa “TheSan Paulo Land, Lumber & Colonization Company”, “proprietá-ria” de sessenta mil alqueires de terras na Noroeste. Nesse mo-mento, raros serão os que se anteporão às conquistas territoriaisde Bento da Cruz e seu grupo.

Além de se tornar prefeito da cidade de Bauru, Comarca eboca-de-sertão da Noroeste, Bento da Cruz elege todos os verea-dores da Câmara Municipal de Penápolis, o outro único municípioda zona (Martins, 1968, p.93). Convém salientar que, entre os mem-bros da Câmara penapolense, estará James Mellor, diretor-gerenteda “The San Paulo, Land, Lumber & Colonization Company”, queserá eleito prefeito entre seus pares de 1914 a 1916 (Ramos &Martins, 1961, p.67). É o que, nas palavras de Raymundo Faoro(1975, p.632), se chama “subcoronel”, chefe político menor, subor-dinado a outro de maior grandeza.

Esse grupo político, ao mesmo tempo que tentava se apropriarde áreas rurais cada vez maiores, com dinheiro público dos muni-cípios de Bauru e Penápolis, fomentava a criação de núcleos urba-nos. Estes impulsionariam o parcelamento rural e como subprodutoaumentariam seu poder político.43

42 A remoção, segundo Raymundo Faoro (1975, p.632), era possível quando ochefe político era afinado com o governo do Estado e possuía divergênciascom funcionários públicos. Sobre a remoção de Vergueiro de Lorena, ver Paiva(1975, p.207).

43 Maria Isaura Pereira de Queiroz (1969, p.89) comenta que, malgrado o muni-cípio perdesse espaço com a República, ainda era o centro da política.

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Às Estações da Noroeste serão dadas condições para se trans-formarem em vilas.

Em 3 de dezembro de 1913, a Câmara Municipal de Bauruautoriza o prefeito, Manoel Bento da Cruz, a vender terrenos ur-banos na Estação de Albuquerque Lins (Lins), pertencentes à Câ-mara Municipal de Bauru. Permite, ainda, despesas para o “levan-tamento do terreno, alinhamento, planta, impresos e outras equaesquer que sejam para completa validade da aquisição e trans-missões a effectuar...” (A Gazeta de Bauru, 1º.2.1914).

Os terrenos urbanos, nesse primeiro momento, pouco vale-rão em termos econômicos. Era importante que essas vilas fossemocupadas de maneira a oferecer mão-de-obra ocasional aos proprie-tários das fazendas maiores em formação, valorização das terrasda região, bem como palco para o exercício do mando político.Mas, principalmente, teriam papel fundamental como centros es-tratégicos para viabilização do parcelamento rural.

Maria Isaura Pereira de Queiroz (1969) comenta que os fa-zendeiros não esperavam compensação monetária imediata com avenda do solo urbano, pois

o preço de venda não era alto; o que pretendiam era, por meio dacriação da vila, da qual seriam fundadores e benfeitores e cuja admi-

FIGURA 31 – Reunião política presidida por Manoel Bento da Cruz. À sua direi-ta, Robert Clark, um dos diretores da “The San Paulo, Land, Lumber &Colonization Company”. Foto sem data (Ramos & Martins, 1961, p.53).

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nistração e habitantes girariam a sua volta, obter facilidades de mãode obra, assim como a valorização de sua própria fazenda, que como progresso da vila, em breve estaria às portas de centro populoso edobraria de preço. (p.112)

A Estação de Hector Legru (Promissão) terá seu arruamentoexecutado a mando de Manoel Bento da Cruz, pelos agrimenso-res Adolpho Hecht e Christiano Olsen. Os dois técnicos eram pes-soas da mais alta confiança de Bento da Cruz, do mesmo grupopolítico, responsáveis pela maioria de suas divisões rurais (Mar-tins, 1968, p.184), e autores do arruamento de Penápolis (Barros,1992, p.113-4).

Na Estação de Miguel Calmon (Avanhandava) é também au-torizado pela Câmara Municipal de Bauru, no ano de 1914, a ven-der “em lotes os terrenos pertencentes a municipalidade...” (AGazeta de Bauru, 1º.2.1914).

A “chave” de Birigüi, que teve suas terras urbanas situadassobre parte da propriedade de Nicolau da Silva Nunes, por solici-tação de Bento da Cruz, será arruada a mando deste pelo enge-nheiro Theodore A. Graser.

Em carta enviada a Nicolau, no ano de 1913, Bento da Cruzapresenta o engenheiro, ao mesmo tempo em que o indica paraproceder ao levantamento “e mais trabalhos do terreno destina-dos a povoação. Devem ficar reservados 2 datas para o posto poli-cial, 2 para escolas e o terreno necessário para o cemitério”.44

Por último, pede para que Nicolau consiga camaradas paraauxiliar no trabalho, serviços a serem pagos pela Câmara Munici-pal de Bauru.45

A Estação de Araçatuba teve seu núcleo urbano estabelecidoem terras de Manoel Bento da Cruz e de seu cliente Augusto Eliseode Castro Fonseca (Pinheiro & Bodstein, 1997, p.65). O arrua-mento foi refeito em 1914, por Adolpho Hecht, sob ordem da pre-feitura de Penápolis, cujo comando era exercido por James Mellor.

44 Carta de Manoel Bento da Cruz a Nicolau da Silva Nunes, datada de 20 deoutubro de 1913 (apud Cunha, 1997, p.130).

45 Ibidem, p.130.

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Os custos foram cobertos por essa municipalidade, conforme severifica pelo requerimento de Hecht:

Ilmo Sr. Prefeito Municipal de Penápolis.O abaixo-assinado vem, respeitosamente, requerer de V. S. o

pagamento dos serviços feitos prestados à Câmara Municipal dePenápolis, que são: uma planta do patrimônio – 30$000; uma plantade parte do município – 150$000; o alinhamento do patrimônio deAraçatuba com a respectiva planta – 500$000. Total – 680$000.

Pede Deferimento.E.R. Mercê.Penápolis, 12 de Julho de 1914.Adolpho Hecht (ibidem, p.97)

O despacho, do mesmo dia, não poderia deixar de ser positi-vo (ibidem, p.97).

Por esses exemplos, percebe-se claramente o empenho paraque fossem criados núcleos urbanos junto às estações, em particularnaquelas próximas às terras da companhia loteadora. O processocomeçava pela obtenção do chão para formação do patrimônio e,como segundo passo, o arruamento deste, para possibilitar sua ocupa-ção. A obtenção era simples, bastava a autorização do dono dasterras ao redor da estação, que via seus alqueires, podendo ser co-mercializados por metro quadrado. Era um bom negócio, mesmoque os primeiros lotes fossem vendidos muito baratos. Conseguira área para o núcleo urbano era um problema menor, interessavaaos proprietários. O mais dispendioso desse processo era o arrua-mento, que exigia técnicos e auxiliares. Porém, como vimos, esteseram colocados à disposição por Bento da Cruz e seu grupo e pagoscom dinheiro público da prefeitura de Bauru ou de Penápolis. Sobra-va ao proprietário apenas a comercialização dos lotes, em virtudede não haver nenhum tributo ou outra exigência de cunho urba-nístico, como doação de áreas verdes ou execução de infra-estru-tura básica.

Bento da Cruz e seu grupo, dominando o poder político detoda a região, incentivaram, ou mesmo, quando necessário, pressi-onaram para que proprietários rurais, alguns clientes seus, colo-cassem à disposição terras para viabilização dos povoados, juntoàs estações. Era o primeiro passo para o embrião se tornar vila. A

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À BEIRA DA LINHA 123

partir do momento em que o povoado começasse a crescer, erasolicitada a formação do Distrito Policial e, posteriormente, do Dis-trito de Paz, caminho jurídico obrigatório para formação do muni-cípio, e daí, quem sabe, sede de comarca, como veremos no próxi-mo capítulo.

Os novos núcleos urbanos incentivariam a ocupação rural, e oque era melhor, sem nenhum gasto privado, especialmente à gran-de interessada no florescimento urbano, a empresa “The San Pau-lo, Land, Lumber & Colonization Company”, maior loteadorarural da Zona Noroeste.

Vale observar, para encerrar este capítulo, que tal florescimentourbano contrariava, na raiz, a idéia de coronelismo. Embora nessemomento as terras rurais valorizassem à sombra de novos núcleos,intenção básica do coronel Manoel Bento da Cruz, as futuras cida-des, bem como o fluxo migratório em direção a elas nos anos 1920/1930 (sobretudo a Revolução de 1930), atingirão de forma fatal opoder coronelista (Faoro, 1975, p.647). Este, baseado numa eco-nomia de fundo agrário, representava a antítese de sólidas econo-mias urbanas, amparadas numa florescente classe média e numnascente operariado.