A Objectividade Da Verdade Histórica

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A objectividade da verdade histórica (Adam Schaff, História e Verdade, Lisboa, Ed. Estampa, 1994, pp. 229-253) O historiador vulgar e medíocre que também pensa talvez e que pretende que a sua atitude é puramente receptiva, que se submete ao conhecido, não é de nenhum modo passivo no seu pensamento, traz as suas categorias, ao ver os factos de través... G. W. F. HEGEL (Leçons sur la philosophie de I’histoire) O poeta cria o seu mundo arbitrariamente, de acordo com a sua ideia, e por isso pode apresentá-lo de maneira perfeita e acabada; o historiador está limitado, porque lhe é preciso construir o seu mundo de maneira a que se adaptem a ele todos os fragmentos que a história nos trouxe. Assim, não poderá nunca criar uma obra perfeita, transportará sempre as marcas visíveis do esforço das investigações, da recolha e da reunião dos factos. GOETHES GESPRA ECHE (Gesprach mit H. Luden) Na primeira parte desta obra, consagrada aos pressupostos gnoseológicos das nossas análises sobre a verdade histórica, distinguimos três acepções do adjectivo «objectivo» empregado para qualificar o conhecimento. Lembremos essas acepções:

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Historical truth, verdade histórica, histoire et verité, questão da objetividade, historiografia

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A objectividade da verdade histrica (Adam Schaff, Histria e Verdade, Lisboa, Ed. Estampa, 1994, pp. 229-253)O historiador vulgar e medocre que tambm pensa talvez e que pretende que a sua atitude puramente receptiva, que se submete ao conhecido, no de nenhum modo passivo no seu pensamento, traz as suas categorias, ao ver os factos de travs...G. W. F. HEGEL(Leons sur la philosophie de Ihistoire)O poeta cria o seu mundo arbitrariamente, de acordo com a sua ideia, e por isso pode apresent-lo de maneira perfeita e acabada; o historiador est limitado, porque lhe preciso construir o seu mundo de maneira a que se adaptem a ele todos os fragmentos que a histria nos trouxe. Assim, no poder nunca criar uma obra perfeita, transportar sempre as marcas visveis do esforo das investigaes, da recolha e da reunio dos factos.GOETHES GESPRA ECHE(Gesprach mit H. Luden)Na primeira parte desta obra, consagrada aos pressupostos gnoseolgicos das nossas anlises sobre a verdade histrica, distinguimos trs acepes do adjectivo objectivo empregado para qualificar o conhecimento. Lembremos essas acepes:1) objectivo o que vem do objecto, ou seja o que existe fora e independentemente do espirito que conhece; portanto, objectivo o conhecimento que reflecte (numa acepo particular desta palavra) este objecto;2) objectivo o que cognitivamente vlido para todos os indivduos;3) objectivo o que est isento de afectividade e, portanto, de parcialidade.O adjectivo subjectivo designa respectivamente:1) o que vem do sujeito;2) o que no possui um valor cognitivo universal;3) o que emocionalmente colorido e, por este motivo, parcial.Comecemos pela primeira acepo da palavra objectivo. O conhecimento objectivo, dissemos ns, quando vem do objecto quando constitui um reflexo especifico dele. Para um materialista esta tese banal; mas as complicaes comeam a manifestar-se, mesmo para um materialista, talvez mesmo sobretudo para um materialista (para o idealismo subjectivista, o problema no se pe), desde que se encare o papel do sujeito que conhece ou, noutros termos, o papel do factor subjectivo no conhecimento.Ao apresentarmos os nossos pressupostos gnoseolgicos, assinalmos o risco de uma interpretao mecanicista do processo do conhecimento, ou seja do caso em que se concebe o primeiro termo da relao sujeito-objecto como um elemento passivo. E, com efeito, ao longo da nossa anlise das determinaes do conhecimento histrico, pudemos ver a que ponto uma tal concepo estava errada. O sujeito desempenha um papel activo no conhecimento histrico, e a objectividade desse conhecimento contm sempre uma dose de subjectividade. Seno, esse conhecimento seria a-humano ou sobre-humano.Apesar do que sugere o qualificativo empregue, o conhecimento objectivo comporta sempre contedos que impossvel reduzir apenas ao objecto, mas que esto ligados qualidade do sujeito dado, determinado historicamente (mais concretamente socialmente). Se concebemos adequadamente o processo do conhecimento, a ltima verificao cai sob o senso comum, mas tambm, na perspectiva desta concepo, no h razo nem para recearmos o papel do sujeito, nem para nos encarniarmos a elimin-lo artificialmente. De resto, como elimin-lo, visto que no pode haver conhecimento sem sujeito que conhece; este deve necessariamente estar implicado no processo do conhecimento. O verdadeiro problema consiste em compreender o seu papel, porque apenas nesta condio que se pode reagir eficazmente contra as deformaes potenciais, disciplinar ,de certa maneira o factor subjectivo do conhecimento. S este objectivo real na nossa procura do conhecimento que qualificamos objectivo. Como o observa muito justamente H. M. Lynd no seu ensaio sobre a objectividade do conhecimento histrico, quanto melhor sabemos precisar o que o sujeito traz ao conhecimento do objecto, melhor nOS apercebemos do que esse objecto na realidade.Quanto mais conscientes estamos da ordem que reside no nosso mtodo de observao, tanto mais estamos em condies de apresentar claramente qualquer ordem existente no mundo exterior. A preciso a que podemos pretender acessvel apenas na condio de tomar conscincia do papel de observador apreendido como elemento do processo de observao: no abstraindo desse observador, mas incluindo-o no clculo. Mesmo em fisica preciso tomar em considerao o facto de que a coisa medida alterada pelo instrumento de medida, e vice-versa. No h maior obstculo no caminho que leva objectividade que a confuso da subjectividade com o facto de ter em conta a posio do observador. Paul Ricoeur desenvolve e concretiza esta ideia no seu livro Histoire et Vrit. Depois de ter analisado as formas principais do factor subjectivo no conhecimento histrico: juzos de valor em relao com a seleco dos materiais histricos, explicao causal e hierarquizao dos diversos tipos de causas histricas, imaginao histrica e factor humano como objecto da histria Paul Ricoeur concretiza a tese segundo a qual o historiador constitui uma parte da histria. isto enfraquecer a objectividade da verdade histrica? De modo nenhum. A objectividade dita pura uma fico; o factor subjectivo introduzido no conhecimento histrico pelo prprio facto da existncia do sujeito que conhece. Em contrapartida, h duas subjectividades: a boa, ou seja aquela que provm da essncia do conhecimento como relao subjectivo-objectiva e do papel activo do sujeito no processo cognitivo; a m, ou seja a subjectividade que deforma o conhecimento por causa de factores tais como o interesse, a parcialidade, etc. A objectividade a distncia entre a boa e a m subjectividade, e no a eliminao total da subjectividade.. . .A objectividade apareceu-nos primeiramente como a inteno cientfica da histria; marca agora a distncia entre uma boa e uma m subjectividade do historiador; de "lgica" a definio da objectividade tornou-se "tica".Esta concepo to simples e ao mesmo tempo to profunda conduz-nos ao nosso problema principal: como atingir a objectividade do conhecimento histrico ultrapassando a m subjectividade?Trata-se aqui, antes de mais nada, da objectividade na segunda e terceira acepes propostas atrs: da objectividade no sentido de imparcialidade e do valor universal dos juzos.Comecemos por lembrar uma verdade banal, mas da qual no se tem sempre plenamente conscincia: a identificao da objectividade do conhecimento com a imparcialidade total, com a homogeneidade absoluta dos juzos de valor feitos sobre o processo histrico um equvoco. Demos momentaneamente a palavra a um dos clssicos da historiografia polaca, Michal Bobrzynski.O que a imparcialidade do historiador de que se fala tanto? No se pode nunca exigir do historiador a imparcialidade no sentido estrito deste termo. Apenas o facto histrico que o historiador estuda pode ser imparcial. Quanto ao historiador, se quer avaliar esse facto, tem de tomar posio... A posio do historiador pode e deve ser cientfica, pode ser elevada e cada vez mais elevada, mas ser sempre uma posio, um ponto de vista. O seu sucessor, que subir a uma posio ainda mais elevada, ter um horizonte mais largo, far um juzo mais imparcial e mais fundado, mas, por sua vez, encontrar algum para o ultrapassar. O historiador que aspirasse ao impossvel, quer dizer que desejasse ser absolutamente imparcial e no tomar nenhuma posio, parecer-se-ia com o homem que vagueia numa floresta, esbarra contra as rvores, toca-as, cheira-as, v os seus troncos e razes, mas no consegue aperceber-se de uma coisa, da prpria floresta.O que ns chamamos a imparcialidade do historiador, no sentido positivo e favorvel deste termo, so unicamente os esforos que desenvolve para guardar as distncias, nos seus juzos, em relao s finalidades estranhas verdade histrica, sua convico cientfica... Esta obrigao a mais dificil... Do mesmo modo, o que definimos como a imparcialidade do historiador, apenas a tentativa sincera, coroada de um xito maior ou menor. Um saber profundo, um bom mtodo de estudo e um trabalho perseverante ajudam o historiador nesta tentativa, mas o xito desta nunca completo, porque o historiador sempre um homem.Para voltar s palavras de Paul Ricoeur, h pois duas subjectividades: a que est naturalmente ligada ao papel activo do sujeito no conhecimento e no pode, por este motivo, ser inteiramente eliminada, apesar dos seus efeitos particulares poderem ser transpostos no processo infinito do aperfeioamento do conhecimento; assim como a subjectividade que provm de fontes extracientficas, como o interesse pessoal, a animosidade em relao a uma pessoa, os preconceitos contra certos grupos humanos, nacionais, tnicos ou sociais por exemplo. Apesar destes dois tipos de subjectividade no estarem rigorosamente delimitados e se interpenetrarem, no entanto possvel e necessrio distinguir a subjectividade extracientfica, m, resultante de certa maneira da vida quotidiana, pedindo como o faz P. Ricoeur que o historiador aborde os acontecimentos histricos sine ira et studio. Este postulado claro e simples, apesar da sua realizao no ser nada fcil e se reduza na prtica a um processo. Mas o mais complicado o problema da subjectividade dita boa, ou seja daquela que est pela sua natureza ligada ao papel activo do sujeito no conhecimento.O historiador sujeito que conhece um homem como qualquer outro e no pode libertar-se das suas caractersticas humanas: no capaz de pensar sem as categorias de uma lngua dada, possui uma personalidade socialmente condicionada no quadro de uma realidade histrica concreta, pertence a uma nao, a uma classe, a um meio, a um grupo profissional, etc., com todas as consequncias que tudo isto implica no plano dos esteretipos que aceita (inconscientemente, em geral), da cultura de que ao mesmo tempo uma criao e um criador, etc. Se se juntarem a isso os factores biolgicos e psicossomticos que constituem um poderoso agente de diferenciao individual, obtemos uma quantidade de parmetros possuindo, alm disso, uma estrutura complicada e cuja resultante define o indivduo como sujeito no processo do conhecimento. evidente que obtemos assim uma especificidade individual e a especificidade de certas classes de indivduos que, alm das diferenas individuais, possuem certos traos comuns podendo ser extrapolados como traos colectivos. Se a objectividade do conhecimento devesse significar a excluso de todas as propriedades individuais da personalidade humana, se a imparcialidade devesse consistir em fazer juzos de valor renunciando ao seu prprio ponto de vista e ao seu sistema de valores, se o valor dos juzos universais devesse consistir na eliminao de todas as diferenas individuais e colectivas, a objectividade seria pura e simplesmente uma fico, porque implicaria que o homem fosse um ser sobre-humano ou a-humano.Mas a objectividade do conhecimento histrico, no sentido da sua imparcialidade e, portanto, do seu valor universal, no se reduz, como o queria Bobrzynski, apenas aos esforos do historiador com o objectivo de guardar as suas distncias em relao s finalidades estranhas verdade histrica e sua convico cientfica. Este cepticismo excessivo e explica-se alis pelo estado da teoria do conhecimento na poca em que esta opinio foi formulada. Hoje, sabemos que o factor subjectivo no conhecimento do historiador no redutvel apenas interveno de fins extracientficos: inerente ao prprio conhecimento cientfico, s suas mltiplas determinaes sociais. O verdadeiro problema, o problema mais interessante, pelo menos, consiste precisamente em estudar as condies e os meios que permitem ultrapassar esta forma da subjectividade; ultrapassagem que s pode ser um processo.O trabalho do historiador, como o diz H. Pirenne, ao mesmo tempo uma sntese e uma hiptese: uma sntese na medida em que o historiador tende a reconstituir a totalidade da imagem a partir do conhecimento dos factos particulares; uma hiptese na medida em que as relaes estabelecidas entre esses factos no so nunca absolutamente evidentes nem verificveis. Seria mais indicado dizer que a produo do historiador uma sntese hipottica, porque os dois aspectos do trabalho do historiador a sntese e a hiptese s podem ser distinguidos pela abstraco; na realidade, constituem uma unidade. Sublinhar o carcter hipottico dos resultados do trabalho do historiador, apreender noutros termos o papel que desempenha o factor subjectivo neste trabalho.Pirenne atribui o carcter hipottico das relaes estabelecidas entre os factos a diversas causas, mas estas exprimem todas a influncia do factor subjectivo sobre o conhecimento histrico: os fundamentos tericos, o conhecimento da realidade social e das suas leis, a imaginao criadora, a compreenso das condutas humanas, etc. o que faz com que cada historiador apreenda sua maneira os mesmos materiais histricos. Nestas condies ser possvel superar a influncia do factor subjectivo? A resposta sim, se se tem em conta o carcter cumulativo do saber que se enriquece acumulando verdades parciais.Cada autor esclarece um elemento, pe em relevo alguns traos, considera certos aspectos. Quanto mais numerosas so estas contribuies, estas apreciaes, tanto mais a realidade infinita se liberta dos seus vus. Todas estas apreciaes so incompletas, todas so imperfeitas, mas todas contribuem para o progresso do conhecimento.A soluo consiste pois em passar do conhecimento individual ao conhecimento considerado como um processo social. O conhecimento individual sempre limitado e agravado pela influncia do factor subjectivo; verdade parcial, s pode ser relativa. Em contrapartida, o conhecimento considerado escala da humanidade, concebido como um movimento infinito consistindo em ultrapassar os limites das verdades relativas pela formulao de verdades mais completas, mais cheias, um processo tendendo para o conhecimento integral. Esta receita indica como dominar o factor sujectivo num processo infinito de aperfeioamento social do saber e coincide com as teses desenvolvidas por Engels sobre a verdade relativa e absoluta, no Anti-Dhring. O mesmo tema de pensamento reaparece em K. R. Popper que sublinha igualmente a necessidade de nos situarmos ao nvel social com vista a resolver o problema da objectividade do conhecimento: esta objectividade pode ser garantida apenas pela colaborao de numerosos cientistas (a objectividade do conhecimento equivale intersubjectividade do mtodo cientfico) e por uma crtica cientfica consequente que permite o progresso constante do conhecimento.Assim, possvel superar a aco deformante do factor subjectivo no e pelo processo social do progresso da cincia, na e pela acumulao de verdades parciais. Isto no significa no entanto que seja impossvel ultrapassar os limites do conhecimento do indivduo: a ontognese cientfica de um dado cientista pode tambm ser considerada como processo. Foi particularmente por este problema que Mannheim se interessou na sua sociologia do conhecimento.A aco do sujeito sobre o conhecimento inevitvel: eliminar o sujeito da relao cognitiva suprimir esta ltima. A concluso torna-se ento evidente; se a tendncia para a objectividade do conhecimento no pode consistir na eliminao do factor subjectivo, deve ser realizada por e na superao do factor subjectivo, das suas manifestaes concretas e das deformaes que introduz; superao que constitui necessariamente um processo infinito. Donde o descontentamento daqueles que queriam um resultado tendo o valor de uma verdade absoluta, sem ter em conta o facto de que esta no acessvel seno sob a forma de um movimento infinito em direco a ...; donde, por outro lado, o optimismo daqueles que, ao considerarem o progresso do saber humano como uma acumulao de verdades parciais, vem uma nova fase deste progresso em cada superao de um dos limites do conhecimento. O nico meio de dominar a aco deformante do factor subjectivo tomar conscincia da sua natureza e da sua aco. Quanto mais conhecemos os contedos e as modalidades da interveno do sujeito no conhecimento, melhor conhecemos, quantitativa e qualitativamente, as propriedades do objecto. A nossa situao anloga do fisico que, conhecendo as interferncias entre o objecto fsico a medir e o instrumento de medida, pode introduzir as correces que se impem, eliminando ou reduzindo o erro ao mnimo.Tal , em resumo, a base da concepo de Mannheim sobre a traduo e a sntese das perspectivas. Do mesmo modo que, conhecendo as regras da perspectiva geomtrica (espacial), estamos sempre em condies de colocar a imagem noutra perspectiva, de ver o objecto doutro ponto de vista, se bem que se trate sempre de uma certa perspectiva e de um certo ponto de vista e, multiplicando essas perspectivas e esses pontos de vista, de obter uma viso do objecto mais completa, mais global; assim, nos outros domnios, podemos fazer progredir o nosso saber. Evidentemente, indispensvel conhecer o que rege as perspectivas e as modalidades da sua traduo, da passagem de um ponto de vista que nos mostra um aspecto, uma viso do objecto, para um outro ponto de vista a partir do qual veremos outro aspecto, etc. Este conhecimento das perspectivas, das frmulas da sua traduo e da sua sntese, necessariamente objectivo, est fundado no nosso caso preciso no conhecimento das propriedades do sujeito que conhece, modalidades segundo as quais realiza o acto do conhecimento e do que traz a esse acto por e nas suas operaes cognitivas; noutros termos, indispensvel conhecer o instrumento (o agente) do conhecimento, os seus parmetros e as modalidades da sua aco sobre o objecto estudado. Se a tarefa est relativamente facilitada no caso de um instrumento utilizado na fsica, consideravelmente mais complicada e mais penosa quando se trata de medir a incidncia do aparelho perceptivo do homem sobre a imagem do objecto apercebido, sobre a perspectiva da percepo; infinitamente mais complicada ainda e mais delicada quando se trata de apreciar o papel activo do sujeito que conhece, a influncia do factor dito subjectivo sobre o conhecimento da realidade social varivel.Se a tarefa to difcil e complexa, a ponto de poder parecer impossvel, antes de mais nada porque o nmero de parmetros muito maior que no caso das medidas fsicas ou no da simples percepo visual; alm disso, o objecto estudado muda no prprio decurso do conhecimento. Tal , em especial, a razo por que impossvel, neste domnio, codificar quaisquer regras em vista da traduo e da sntese das perspectivas; impossvel estabelecer previamente as modalidades de superao das diferentes manifestaes da deformao cognitiva, engendradas pela aco do factor subjectivo. Com efeito, no se sabe antecipadamente o que sero esses factores, o seu nmero e a sua aco em condies dadas; pois impossvel prever a maneira de os superar. Podemos unicamente formular a tese geral segundo a qual preciso antes de mais nada tomar conscincia da situao geradora de deformaes e descobrir o factor que a determina. A partir dessa tese geral, possvel construir uma doutrina metodolgica adequada sobre o comportamento cognitivo a adoptar tendo em vista remediar o mal. Era precisamente o fim que perseguia Mannheim na sua doutrina sobre a traduo e a sntese das perspectivas e na sua teoria sobre a intelligentsia como grupo vector de uma funo cognitiva particular. Estas proposies constituem um dos principais mritos tericos de Mannheim, mrito inegvel no obstante as fraquezas e os erros da sua sociologia analisados ulteriormente.A directiva: Tomai conscincia do factor subjectivo que introduzis no conhecimento, e do perigo de deformao cognitiva que isso significa pode parecer ingnua; no ser um voto piedoso? Com efeito, como podemos aperceber-nos dos nossos prprios limites cognitivos e super-los em seguida, visto que, como resultado das determinaes sociais, os pontos de vista escolhidos parecem ser naturais? No entanto, esta ingenuidade apenas aparente, porque esta directiva, como algumas outras teses da sociologia mannheimiana do conhecimento, possui um valor gnoseolgico e epistemolgico aprecivel; a sua realizao no um simples voto piedoso, votado antecipadamente ao falhano, visto que esta directiva provm do conhecimento de certas regularidades do processo cognitivo.A interveno de factores deformantes no conhecimento um facto do qual os filsofos tm h muito tempo conscincia: j Bacon o formulava teoricamente na sua concepo do dolo. O mrito do marxismo consiste principalmente, neste domnio, em ter posto em evidncia as implicaes terico-gnoseolgicas deste problema na teoria da infra e da superestrutura, assim como na teoria da ideologia. A sociologia contempornea do conhecimento situa-se neste quadro de ideias que desenvolve e concretiza. E precisamente o facto terico que consiste em reconhecer que o condicionamento social do conhecimento humano e a aco deformante do factor subjectivo so regularidades e no fenmenos fortuitos que o ponto de partida das operaes que visam superar constantemente as formas concretas sucessivas sob as quais se manifestam os limites e as deformaes do conhecimento.O ponto de partida no aqui o aspecto individual, mas pelo contrrio o aspecto social do processo do conhecimento. A aparncia de ingenuidade das directivas da sociologia do conhecimento pode precisamente tornar-se uma realidade quando sem fundamento se situa este problema a nvel estritamente individual. Com efeito, neste caso, estamos autorizados a fazer a pergunta: Como se pode ter conscincia da aco do factor subjectivo, visto que essa aco, no contexto do condicionamento social do conhecimento individual, tal que se verifica na nossa experincia interior, como um factor objectivo?O sujeito que conhece, socialmente condicionado e portador do factor subjectivo no conhecimento, no um tomo isolado, semelhante mnada sem janelas de Leibniz, hermtica a toda a aco exterior. Pelo contrrio, determinado pelo seu meio, igualmente determinado pela cincia contempornea, na medida, evidentemente, em que suficientemente instrudo. E precisamente por esse canal que, o mais naturalmente do mundo, penetram igualmente na conscincia do sujeito que conhece as informaes sobre o factor subjectivo no conhecimento e sobre o seu papel deformante. por essa razo que ns dizemos da sociologia do conhecimento que realizou uma verdadeira revoluo no domnio terico-gnoseolgico.O total de conhecimentos, graas ao qual o homem contemporneo considera como evidentes numerosas descobertas e invenes revolucionrias, no uma aquisio individual mas social. Esta assero diz respeito igualmente conscincia cada vez mais generalizada de o nosso conhecimento estar submetido s determinaes mais diversas que, se no implicam a deformao absoluta do conhecimento, implicam pelo menos o seu carcter unilateral, parcial, limitado, implicam por conseguinte o facto de que as verdades atingidas nesse conhecimento no so totais e definitivas, absolutas (com excepo de um domnio relativamente restrito do conhecimento onde as verdades parciais absolutas so acessveis), mas limitadas, parciais, relativas (inclusive as verdades parciais absolutas quando se consideram num contexto mais vasto). Os efeitos psicolgicos deste metaconhecimento so considerveis: desconfiana relativamente s pretenses, qualquer que seja o seu autor, ao conhecimento absoluto, puramente objectivo; tendncia para analisar este conhecimento a fim de lhe descobrir os limites; tolerncia aumentada relativamente s opinies divergentes que no se devem identificar com a vontade de renunciar defesa das suas prprias posies, mas com a boa f, a vontade de reconhecer as verdades relativas contidas nas ideias do adversrio. Tudo isto constitui precisamente a bagagem intelectual do homem contemporneo, em particular da intelligentsia, bagagem destinada s operaes que visam superar o factor subjectivo e que autoriza um certo optimismo quanto aos resultados obtidos. Evidentemente, esta superao nunca ser absoluta: visa sempre uma manifestao concreta do factor subjectivo, uma limitao concreta do conhecimento, e no a aco em geral do factor subjectivo, ou o conjunto das parcialidades e limites do conhecimento.Esta superao da aco deformante do factor subjectivo um processo social, e isto por duas razes: a primeira que a tomada de conscincia pelo sujeito que conhece do carcter limitado e socialmente condicionado do seu conhecimento de origem social, porque a conscincia terica deste estado de coisas trazida do exterior, como saber socialmente constitudo que o sujeito assimila na e pela educao, pela instruo; a segunda razo que o processo em questo, a superao da aco do factor subjectivo, ele prprio social na medida em que implica a cooperao dos homens de cincia, em particular a crtica cientfica. Este ltimo problema no se reduz no entanto ao simples facto de que outra pessoa o critico perceba e supere os limites e as deformaes das opinies da pessoa criticada; apesar deste facto ser o mais frequente. Mas, o que nos interessa aqui principalmente, a autocrtica, a auto-reflexo sobre os limites do seu prprio conhecimento, a capacidade para superar por si prprio a aco deformante do factor subjectivo. Este problema, particularmente importante para a procura da objectividade do conhecimento, precisamente o objecto da teoria da traduo e da sntese das perspectivas, das directivas respectivas da sociologia mannheimiana do conhecimento.O sujeito que conhece, o historiador no nosso caso, est portanto dependente das determinaes sociais mais diversas, em funo das quais introduz no conhecimento elementos de subjectividade diversos: preconceitos, opinies preconcebidas, predileces e fobias, os quais caracterizam a sua atitude cognitiva. Mas o seu conhecimento sobretudo funo de outros factores, igualmente determinados socialmente, tais como: a sua viso da realidade social, ligada teoria e ao sistema de valores que aceitou; o seu modo de articulao da realidade, articulao que o leva a construir, a partir de fragmentos, factos significantes no sistema de referncia dado; a sua tendncia para esta ou aquela seleco dos factos histricos, ou seja dos factos considerados como importantes do ponto de vista do processo histrico, etc. Desta propriedade objectiva que o condicionamento social do conhecimento, no pode o sujeito que conhece desfazer-se; no pode escapar-lhe simplesmente porque um homem e porque a personalidade humana s se pode desenvolver em sociedade, pelas diversas mediaes sociais das quais a mais importante a educao. Mas se no se pode desfazer desta propriedade, inerente de certa maneira sua essncia, o sujeito que conhece pode tomar conscincia dela, compreender que ela indissocivel de todo o conhecimento. No s pode, mas, em certas condies, quando o saber respectivo foi adquirido e socialmente generalizado, deve faz-lo, sob pena de ver desqualificado o nvel da sua reflexo cientfica.O cientista (o intelectual) pode ser e em geral permevel s fobias, aos preconceitos, aos modelos de interpretao e de avaliao dos factos e dos homens, caractersticas da sua poca, da sua classe, do seu grupo social, do seu meio profissional, etc. Todos estes factores moldam essencialmente a sua concepo do mundo, as suas atitudes e as suas opinies em matria de problemas sociais, o que impregna portanto a sua viso do processo histrico, o modo como constri e selecciona os factos histricos, sem falar da sua interpretao quando passa s snteses histricas. Tais so os contedos concretos que se escondem sob o criptnio o factor subjectivo no conhecimento histrico.Concordamos pois que a interveno deste factor no conhecimento histrico inelutvel, se bem que as suas formas sejam das mais variadas. Mas pesa irremediavelmente um fatum sobre o historiador que foi condicionado por estas ou aquelas determinaes sociais? A personalidade do historiador, uma vez formada, ser necessariamente imutvel, esttica, congelada de uma vez por todas? A limitao das suas opinies, resultado do factor subjectivo dado a que est sujeito, poder ser superada apenas pela crtica cientfica formulada exclusivamente por outros pensadores, sobretudo por aqueles que representam pontos de vista diferentes, determinados por outros condicionamentos sociais, tais como uma mudana das condies gerais da poca ou dos interesses divergentes de classe?Todas estas questes so retricas, e a resposta evidentemente negativa. Sabemos por experincia que o homem um ser malevel, apto a transformar-se, a adaptar-se, a evoluir conscientemente. de resto nesta capacidade que consiste principalmente a sua superioridade sobre o mundo animal. Sabemos por experincia que os pontos de vista tericos so maleveis, modificveis, e que os pensadores so muitas vezes capazes no apenas de fazer retoques mais ou menos importantes nas suas opinies, o que absolutamente normal (quanto mais no fosse em funo do saber e da experincia acumulados com a idade), mas tambm de modific-las em profundidade, de proceder a uma critica cientfica que pode lev-los a abandonar as opinies professadas anteriormente. Um dos poderosos motores da autocrtica cientfica, que deveria caracterizar em permanncia a obra do cientista e ser a garantia da sua vitalidade, a conscincia do condicionamento social e das limitaes subjectivas do conhecimento; conscincia que, sensvel em primeiro lugar sob a sua forma terica geral, conduz em seguida o cientista a pr em questo a sua prpria obra, a uma reflexo mais sistemtica sobre o condicionamento social das suas prprias posies, sobre os limites e as deformaes eventuais dos seus prprios pontos de vista sob o efeito do factor subjectivo. Evidentemente, isto no uma panaceia, e esta conscincia terica, este metaconhecimento no domnio da sociologia do conhecimento no garante de maneira nenhuma que a aco do factor subjectivo seja superada at ao fim. Seria demasiado simples: bastaria difundir entre os cientistas os ensinamentos da sociologia do conhecimento para que reinasse na cincia a verdade objectiva pura, que sabemos por outro lado ser impossvel. No se trata pois aqui de procurar fazer milagres, mas de obter efeitos reais no progresso do saber, o que encontra a sua expresso no postulado do progresso da objectividade do conhecimento. Este progresso no apenas possvel, mas efectivo na prtica cientfica, numa prtica secundada pela auto-reflexo metodolgica que desperta e alimenta a sociologia do conhecimento. Dirigido ao cientista em geral, ao historiador em particular, pode pois formular-se o postulado realista de uma investigao da objectividade do conhecimento, no sentido de um processo visando superar as influncias limitativas, coercivas e deformantes do factor subjectivo. Damos a este postulado uma dupla interpretao: a primeira, mais primitiva, consiste em considerar o pedido de escrever a histria sine ira et studio como um apelo para passar alm das animosidades e dos interesses extracientficos que contrariam a verdade histrica; a segunda, mais subtil e complicada, reduz-se a pedir ao historiador para proceder a uma auto-reflexo sobre o condicionamento social dos seus pontos de vista, como meio de transportar as influncias limitativas e deformantes do factor subjectivo.Mas como conciliar esta exigncia de superar as influncias do factor subjectivo no processo social do conhecimento com o princpio de uma tomada consciente de posies de classe no estudo dos fenmenos sociais?A coisa relativamente simples quando o postulado da superao da aco do factor subjectivo acompanhado da assero sobre o condicionamento de classe do conhecimento dos fenmenos sociais. O condicionamento de classe do conhecimento com efeito uma das manifestaes do factor subjectivo, e especialmente porque esse condicionamento se produz que somos levados a postular a superao da aco desse factor na nossa marcha para degraus superiores do conhecimento objectivo. A situao muito mais complicada quando simultaneamente se postula a superao do factor subjectivo no processo infinito da progresso do saber, por um lado, e que se assenta no princpio de tomar posies de classe no estudo dos fenmenos sociais, por outro lado, ou seja a exigncia consciente de deixar o factor subjectivo manifestar-se plenamente. Nesta posio terica dos marxistas, visto que so precisamente eles que reconhecem estas duas necessidades, no se desenhar uma contradio? Na minha opinio, a contradio s aparente: provm da forma insuficientemente concreta e precisa do enunciado sobre a necessidade de tomar conscientemente as posies de classe no estudo das realidades sociais. incontestvel que o progresso realizado no domnio do conhecimento, progresso que podemos apresentar igualmente como um aumento da objectividade do conhecimento, funo da superao dos factores limitando essa objectividade, causando a unilateralidade ou a parcialidade do conhecimento, at mesmo a sua deformao. preciso admitir que o conhecimento objectivo s pode ser um amlgama do que objectivo e do que subjectivo, dado que o conhecimento sempre obra de um sujeito; mas preciso tambm admitir que o progresso no conhecimento e a evoluo do saber adquiridos graas a ele s so possveis se se transpem as formas concretas, sempre diferentes, do factor subjectivo. O condicionamento de classe do conhecimento obedece mesma regra: as formas de deformao, de parcialidade, de limitao do conhecimento que esse condicionamento origina, devem ser transpostas no processo de progresso do saber, sob pena de estagnao e petrificao.Tal o ponto de partida das nossas anlises e assim deve s-lo se no se quer ser levado a enunciar caindo em contradio com os fundamentos da gnoseologia marxista que qualquer conhecimento incluindo pois o conhecimento condicionado pelos interesses de classe do proletariado, um conhecimento perfeito, uma verdade absoluta. Mas se assim, que significa o principio de adoptar posies de classe no estudo dos fenmenos sociais, de fazer prova de esprito de partido; como conciliar esse princpio com a luta para a objectividade do conhecimento?Observemos em primeiro lugar que se trata de um enunciado elptico, ou seja de uma proposio que no contm todas as definies e os parmetros necessrios, levando a eventuais equvocos pelo facto da sua formulao aparentemente universal e supratemporal. Vejamos, com efeito, como formulada esta directiva: Se desejam chegar nos vossos estudos verdade objectiva, adoptem conscientemente as posies de classe e um esprito de partido conformes aos interesses do proletariado. O que que isto significa? Que queremos dizer com isto e o que que no queremos dizer?Em primeiro lugar, enunciamos uma directiva que no universal, no supratemporal, mas concretamente histrica, se bem que isso no esteja estipulado expressis verbis. O nosso raciocnio o seguinte: cada conhecimento est socialmente condicionado; numa sociedade de classes, o conhecimento sofre necessariamente um condicionamento de classe. ilusrio esperar evitar o condicionamento social, porque o sujeito que conhece um produto social (numa acepo determinada da palavra produto); portanto, numa sociedade de classes, este sujeito um produto submetido ao determinismo de classe. Nessa situao, a nica soluo a escolha entre os condicionamentos de classe possveis, e no a tentativa de lhes escapar em geral. Do ponto de vista da objectividade do conhecimento (na sua nica concepo real, ou seja como objectividade relativa e no absoluta), a soluo ptima adoptar as posies determinadas pelos interesses de classe do proletariado, da classe revolucionria. O condicionamento pelos interesses da classe revolucionria no conduz s deformaes conservadoras; subentende, pelo contrrio, uma atitude aberta ao progresso social e mudana. Depois deste raciocnio necessariamente reduzido ao essencial, vemos que a nossa directiva est concretamente ligada a uma situao social histrica, sociedade de classes do tipo capitalista. Trata-se pois de uma directiva que tem em conta o grau de verdade do conhecimento condicionado pelas posies de uma ou de outra classe; portanto, provm do princpio que a verdade relativa e no absoluta.Em segundo lugar, a directiva recomendando a adopo das posies de classe do proletariado, consideradas como as posies ptimas cognitivamente na situao social dada, no implica de maneira nenhuma que se julgue o conhecimento assim atingido como perfeito, integral, e a verdade que ele contm como absoluta. Sabemos que se passa de outra maneira. Mesmo se constitui o maior xito do esprito humano nas condies dadas (falamos do modelo e no da realizao que, em geral, se afasta consideravelmente dele), o conhecimento submetido ao condicionamento de classe impregnado, evidentemente, do factor subjectivo apenas uma verdade relativa que, desde o momento em que o conhecimento se eleva a um nvel superior, deve ser superada. Assim, em relao ao conhecimento condicionado pelos interesses das outras classes, as posies de classe do proletariado asseguram, em certo sentido, a superioridade do conhecimento empreendido a partir delas e na sua perspectiva; mas este conhecimento no ser nunca perfeito, a sua verdade no ser nunca absoluta. De onde a necessidade de tender continuamente para um conhecimento mais integral, mais rico e, neste sentido, superior.No h pois contradies entre as duas directivas mencionadas atrs. Neste caso, porque pareciam contraditrias, de onde vem o mal-entendido? Vem principalmente do facto que ns somos induzidos em erro por uma formulao que situa no mesmo plano e associa directamente uma directiva autenticamente universal e supratemporal, por um lado, e uma directiva concretamente histrica, relativa a um tipo definido de relaes sociais, por outro lado. De um lado, o postulado de aperfeioar o conhecimento, de caminhar para uma objectividade ptima pela e na superao do factor subjectivo, equivale efectivamente a urna directiva universal, supratemporal: o conhecimento um processo infinito ao longo do qual se podem transpor os seus limites concretos, aparecidos num dado momento, mas no se podem superar todos os seus limites, o que significa ir ter ao termo final de uma coisa que, pela sua essncia, infinita. Por outro lado, a recomendao de adoptar as posies de classe do proletariado uma directiva concretamente histrica, ligada a um sistema dado de relaes sociais. A formulao geral desta segunda directiva, a sua associao directa com a primeira directiva universal sobre a condio fundamental do progresso do conhecimento em todas as situaes sociais; tais so as razes pelas quais tnhamos a impresso errada de se tratar de duas directivas igualmente universais e supratemporais, o que sugeria uma contradio.Quando dizemos a um homem de cincia: Se, nas condies do capitalismo, quereis chegar ao conhecimento objectivo, quando estudais as realidades sociais, -vos preciso adoptar conscientemente as posies de classe do proletariado, de maneira nenhuma afirmamos com isso que essa via leva verdade absoluta; pretendemos apenas que as ditas posies so um melhor ponto de partida e uma melhor perspectiva na procura da verdade objectiva, decerto relativa, mas optimamente integral, optimamente completa em relao ao nvel de desenvolvimento do saber humano dado. No damos portanto a este cientista nenhuma garantia; indicamos-lhe apenas as possibilidades de xito, asseguramos-lhe que pode deste modo chegar verdade, no absoluta, mas relativa. E por isso que no lhe sugerimos o considerar o conhecimento adquirido como um ideal, como o conhecimento perfeito; precisamos que se trata unicamente de um patamar no desenvolvimento do saber, patamar depois do qual ser preciso transpor outro, graas, particularmente, conscincia da necessidade desta marcha de limite em limite.Quando, na sua polmica com Strouv, Lnine faz o elogio do esprito de classe e de partido no conhecimento histrico, dizendo especialmente que o materialista que adopta as posies de uma classe definida realiza mais plenamente o objectivismo do conhecimento do que o objectivista, no est de maneira nenhuma em contradio com a directiva de visar a verdade objectiva na cincia, a superao dos limites que so obstculo a esta objectividade, cujos limites esto em relao com o conhecimento de classe das perspectivas cognitivas. Apesar das aparncias, Lnine no identifica aqui o esprito de partido das posies tomadas (o que recomenda) com a objectividade do conhecimento sem mais nada. Diz simplesmente (como resulta do contexto) que a posio de partido que toma em considerao a estrutura de classes da sociedade d como resultado uma verdade objectiva de uma ordem superior (implicando que se trata sempre de verdades relativas, diferentes do ponto de vista do grau de adequao da representao em relao realidade representada), comparada com a posio que ignora esta estrutura e a sua aco, pretendendo deste modo qualidade de conhecimento objectivista.Interpenetram-se aqui duas questes que se impe nitidamente distinguir. Uma de carcter verbal, terminolgico, e deve ser explicada a fim de evitar eventuais mal-entendidos. Porque emprega Lnine relativamente a Strouv o nome de objectivista num sentido pejorativo, quando considera a objectividade do conhecimento como uma coisa positiva, afirmando especialmente que os materialistas aplicam precisamente o objectivismo melhor que os outros? O equvoco vem do facto de Lnine usar a palavra objectivista no em relao queles que realizam realmente o objectivismo cognitivo, mas queles que aspiram objectividade pelo facto de recusarem o princpio do condicionamento de classe do conhecimento. Na realidade, fazendo abstraco da estrutura de classes da sociedade, estes ltimos introduzem o subjectivismo no conhecimento, falseiam a objectividade do conhecimento. Assim, o sentido pejorativo em que Lnine emprega a palavra objectivista no significa que ele censure a tendncia do conhecimento para a objectividade (pelo contrrio, aprova-a); este cambiante pejorativo significa na realidade que Lnine condena as tentativas visando camuflar o subjectivismo cognitivo de classe atrs de frases ocas sobre a verdade objectiva que se pretende defender excluindo o factor subjectivo ligado estrutura objectiva da sociedade. O mal-entendido tanto mais compreensvel quanto, no texto de Lnine, as palavras objectivista e objectivismo esto juntas, quando funcionam em significados muito diferentes, apesar da sua origem etimolgica comum.Depois de ter precisado o aspecto terminolgico dos enunciados de Lnine, passemos sua substncia. Na altura da crtica de Strouv, Lnine estabeleceu uma distino entre o ponto de vista do marxista e o ponto de vista de um objectivista do tipo de Strouv. O objectivista limita-se a verificar o processo histrico dado e a sua necessidade, alm disso com o risco de desviar e de cair numa apologia sensaborona dos factos observados. Pelo contrrio, o marxista estuda concretamente a formao dada e as foras sociais em presena; no verifica apenas as tendncias histricas invencveis, mas as classes definidas que determinam o contedo do regime. E Lnine conclui:Assim pois o materialista , por um lado, mais consequente que o objectivista; o seu objectivismo mais profundo, mais completo... Por outro lado, o materialismo supe de certa maneira o esprito de partido; obriga-nos, em qualquer apreciao de um acontecimento, a conservarmo-nos abertamente e sem equvoco no ponto de vista de um grupo social determinado.Assim, por um lado, no h oposies entre a directiva do esprito de partido e a directiva da procura da objectividade da verdade; por outro lado, s se pode fazer um juzo negativo contra os objectivistas, ou seja contra aqueles que pretendem que a negao do carcter de classe do conhecimento contribui para a objectividade deste. J expusemos uma das razes deste juzo negativo; por detrs da camuflagem das palavras sobre a objectividade que, por assim dizer, seria alterada se se lhe reconhecesse o condicionamento de classe, dissimula-se na realidade um subjectivismo cognitivo, negando dogmaticamente as realidades sociais, deformando o conhecimento dos fenmenos sociais. A outra ideia contida neste juzo negativo merece igualmente ser posta em relevo. Como se sabe, a objectividade do conhecimento realiza-se no processo de superao dos seus limites ligados aco do factor subjectivo sob as suas formas e nas suas manifestaes mais diversas. Um dos meios desta superao a auto-reflexo que permite ao investigador tomar conscincia das formas do factor subjectivo que actuam no caso concreto, e depois vencer a sua influncia. Deste ponto de vista, a diferena considervel entre o pensador que percebe a influncia da estrutura de classe da sociedade sobre o conhecimento, e o objectivista que, negando essas realidades, no est altura de compreender o mecanismo do seu funcionamento. O primeiro est evidentemente mais apto que o objectivista para tomar conscincia da sua situao cognitiva e para super-la. O primeiro no s conhece melhor a realidade social (e, neste sentido, o seu objectivismo mais profundo, mais completo), mas ainda tem melhores possibilidades de continuar a desenvolver o seu valor.Para concluir: no s a teoria marxista no implica contradies entre a directiva do aperfeioamento da objectividade do conhecimento e a directiva de adoptar posies de classe, um esprito de partido, mas ainda o marxista, tendo como objectivo a verdade objectiva, realiza-se atravs da superao dos seus limites cognitivos, inclusive dos limites ligados ao ponto de vista da classe que adopta. Por mais paradoxal que isto parea primeira vista, a directiva de adoptar as posies de classe nos seus trabalhos, longe de o incomodar, ajuda-o pelo contrrio. Em todo o caso, a dominante para o investigador marxista, o seu objectivo final, permanece sempre a verdade objectiva, e tudo o resto constitui unicamente o meio servindo para atingir este fim. Como escreve Marx:O primeiro dever de quem quer que procure a verdade no o de avanar directamente verdade, sem olhar nem esquerda nem direita? No me esquecerei de dizer a prpria coisa quando me preciso esquecer ainda menos de a dizer nas formas pedi-das? A verdade to pouco discreta como a luz. Alis com quem o seria ela? Com ela prpria? Verum judex sui et falsi. (A verdade o seu prprio critrio, e o critrio do falso Espinosa.) Portanto com o erro?A verdade atingida no conhecimento histrico uma verdade objectiva relativa. Todo o decorrer do nosso raciocnio visava at aqui demonstr-lo. O subjectivismo especula sobre esta relatividade, confundindo o problema da verdade objectiva com o problema da verdade absoluta. J falmos disso no princpio deste livro, mas a importncia da questo tal que se impe voltar a ela neste novo contexto.Comecemos por uma tese geral: a concepo da verdade relativa objectiva apresentada nos nossos desenvolvimentos difere e, num certo sentido, ope-se concepo da relatividade objectiva que defendem os partidrios do presentismo na metodologia da histria. Para ver em que consiste esta concepo da relatividade objectiva, damos a palavra a J. H. Randall, um dos seus principais partidrios.O historiador deve fazer uma escolha. Na infinita variedade das referncias que descobrem os acontecimentos passados, deve escolher aquelas que so importantes ou fundamentais para a sua histria particular. Se essa escolha no se deve fundar unicamente no que lhe parece importante; se no deve ser "subjectiva" e "arbitrria", preciso que tenha um ncleo "objectivo" numa tarefa qualquer, no que o historiador considera como imposto aos homens, numa coisa que deve ser realizada. A histria do que importante e significativo para essa coisa... ser ento perfeitamente "objectiva", na medida em que nunca teria podido ser objectiva a simples relao de "factos" arbitrariamente escolhidos.Tal o "relativismo objectivo" caracterstico do saber histrico, como de todos os tipos de saber. O saber "objecto" num nico contexto definido: sempre o conhecimento da estrutura e das relaes essenciais nesse contexto.Prosseguindo este raciocnio, Randall conclui com uma frmula particularmente explcita: A "objectividade" significa sempre ser objectivo para qualquer coisa, da mesma maneira que a "necessidade" significa ser necessrio a qualquer coisa. A "objectividade" no pode existir sem uma relao com qualquer coisa de objectivo...Analisemos os pontos de vista de Randall de maneira a isolar o que os distingue da concepo da verdade relativa objectiva. Randall parte da observao do esprito de partido do historiador que, ao proceder seleco dos materiais histricos e aos juzos respectivos, est condicionado pelos interesses da sua poca, etc. Isso no exerce no entanto uma influncia negativa na objectividade do conhecimento, pelo contrrio a garantia dessa objectividade: ... apenas ao adoptar uma posio definida, pelo menos intelectualmente, que podemos esperar compreender ou escrever "objectivamente" a histria do que quer que seja. Porque ser isto assim? Que significa, segundo Randall, a objectividade assim obtida?O presentismo, de que conhecemos j a argumentao, responde primeira pergunta. O historiador deve seleccionar os materiais histricos, preciso pois que lhes avalie a importncia. Implica-se portanto que exista um sistema de referncia em relao ao qual o critrio dado da importncia seja vivel. Este sistema de referncia um objectivo determinado, uma tarefa que o historiador pe como um dever social. Quando esse dever organiza o trabalho do historiador, o risco da arbitrariedade e de subjectividade na escolha dos materiais est eliminado, o trabalho do historiador torna-se objectivo. Trata-se a de um relativismo que garante a objectividade dos estudos histricos referindo-se a um objectivo de investigaes escolhido; de onde o seu nome -- relativismo objectivo.E que significa, segundo Randall, a objectividade? Segundo os textos citados, v-se que confere a esta expresso um sentido particular. Randall interpreta a objectividade do conhecimento no esprito de um relativismo radical. O conhecimento objectivo para um nico contexto determinado diz Randall. Assim, tudo depende do ponto de vista escolhido ou do sistema de referncia: um nico conhecimento ser objectivo num caso e no ser noutro. A objectividade no pode existir em relao com um objectivo explica Randall, usando um jogo de palavras possvel igualmente em ingls: a relao de objectivity com objective. Assim, a objectividade significa adaptao a um objectivo determinado. Tendo aceitado essa acepo do termo objectividade, Randall est fundamentado para afirmar que no se pode escrever objectivamente a histria a no ser que se tome uma posio parcial, que se adopte um esprito de partido. Uma vez que o sentido que ele confere aos termos respectivos claro, as aparncias de um paradoxo caem por terra.Quais so as convergncias e as diferenas entre esta concepo do relativismo objectivo e a nossa concepo da verdade relativa objectiva no conhecimento histrico? Comecemos pelas convergncias. As duas concepes abordam o problema da verdade na histria sob o aspecto do seu carcter relativo ou absoluto; ambas admitem que as verdades histricas so relativas.Mas, se as duas concepes reconhecem a relatividade da verdade histrica, cada uma delas encara este problema sob um ngulo diferente e, portanto, desenvolve-o de modo diferente.Segundo a nossa concepo da verdade relativa objectiva, o problema consiste em comparar a verdade histrica, considerada como uma verdade parcial, incompleta e, neste sentido, relativa, com o conhecimento ideal que d um saber total, exaustivo e, portanto, absoluto do objecto. Ao afirmar que o conhecimento histrico d verdades relativas e que s o processo infinito do conhecimento tende para a verdade absoluta com limes adopta-se para ponto de partida a tese que a verdade histrica, se bem que relativa, sempre uma verdade objectiva na medida em que reflecte, representa, a realidade objectiva.A concepo da realidade objectiva encara o problema sob outro aspecto e sem partir da tese exposta atrs. A qualificao da verdade, isto , se se trata de uma verdade parcial ou total, exaustiva, no lhe interessa; procura estabelecer se o nosso conhecimento est ligado a um objectivo, se se situa no quadro de um sistema de referncia, sendo nesse caso relativo, ou se independente de qualquer sistema de referncia, de qualquer objectivo, e nesse caso absoluto. A questo importante, se bem que banal em certos casos. Assim, quando posta por um partidrio do presentismo ou pelo partidrio de qualquer teoria do condicionamento social do conhecimento histrico, a questo retrica: neste caso, com efeito, a verdade histrica evidentemente relativa, visto que o conhecimento histrico depende sempre de certos condicionamentos e, portanto, posta em relao com certos objectivos. Randall pe nesta tese evidente toda a bagagem do presentismo, mas este facto no modifica a legitimidade da tese preliminar sobre a relatividade do conhecimento histrico (no sentido da sua relao com...), nem a legitimidade da concluso, paradoxal na sua formao, que dela foi deduzida e segundo a qual s um tal conhecimento relativo pode ser objectivo: com efeito, quando se aceitou um sistema de referncia e se estabeleceu um objectivo de investigao, obtm-se automaticamente um critrio de seleco dos materiais histricos, seleco que j no pode ser arbitrria, subjectivista, mas que objectiva por causa do sistema de referncia dado. Tal era a ideia de Randall quando, na passagem j citada, escreve:a objectividade no pode existir sem relao com o objectivo definido. Isto incontestavelmente verdade e poder-se-ia, alis, deduzi-lo a partir da negao do carcter absoluto do conhecimento histrico.At aqui, alm das convergncias, expusemos as diferenas entre a concepo da verdade relativa e a concepo da relatividade objectiva, mais particularmente no que diz respeito histria. No entanto, estas diferenas resultavam da diversidade das perguntas postas acerca do problema e no opunham estas duas concepes permitindo considerar os seus resultados como complementares. Mas h entre estas duas concepes outras divergncias que devemos analisar de mais perto.J dissemos que o ponto de partida, de certa maneira o princpio da concepo da verdade relativa objectiva no conhecimento histrico, a tese segundo a qual a verdade relativa, assim como a verdade absoluta, objectiva: o problema da objectividade da verdade e o problema do absoluto da verdade so duas questes diferentes, se bem que ligadas. claro que este ponto de partida tem um fundamento filosfico adequado de que a consequncia: este fundamento a filosofia materialista, de acordo com a qual o conhecimento verdadeiro o reflexo (numa acepo particular deste termo) da realidade objectiva. A teoria da verdade relativa objectiva possui pois ntidas implicaes dependentes da Weltanschaung e est ligada posio materialista na teoria do conhecimento. O que que se passa com este ponto de vista da teoria da relatividade objectiva?Esta teoria passa estas questes em silncio, e isto, como o prova o contexto, no porque as considere como evidentes, mas porque defende as posies do idealismo. A teoria da relatividade objectiva insiste sobre a argumentao do relativismo cognitivo; quando emprega o termo objectivo, trata-se exclusivamente da adequao da seleco dos materiais histricos do ponto de vista do objectivo do estudo; objectivo, neste caso, significa adaptado s necessidades dadas e, nesse sentido, no arbitrrio. O problema da relao do conhecimento com a realidade no formulado. E no um acaso:o presentismo, com todo o conhecimento de causa, referia-se a Benedetto Croce e, portanto, estava sob a influncia do seu idealismo.Verifica-se pois que as duas teorias tm decerto um ponto de contacto, que diferem essencialmente pela sua concepo recproca da objectividade. A teoria da verdade relativa objectiva concebe a objectividade como o reconhecimento da existncia objectiva da realidade que o conhecimento reflecte; a teoria da relatividade objectiva concebe a objectividade como uma adaptao s necessidades dadas, como a adaptao ao objectivo dado, abstraindo do problema da relao do conhecimento com a realidade.Ao compararmos estas duas teorias da relatividade do conhecimento histrico, a nossa inteno principal no era proceder a um estudo comparativo ou a uma anlise semntica de certas expresses, mas antes expor um problema concreto e importante ao nosso contexto: ao introduzir o factor subjectivo na anlise do conhecimento histrico, ao abordar esta anlise dando um grande lugar ao factor antropolgico, a obrigao do marxista opor-se ao subjectivismo tradicionalmente ligado especulao sobre o factor subjectivo, e defender sem equvoco a tese sobre a objectividade do conhecimento e da verdade. Por obrigao, entendo as consequncias que resultam das posies tomadas em filosofia, ou seja das posies materialistas; esta obrigao estende-se igualmente conscincia dos perigos incorridos no empreendimento tentado aqui e que consistia em enriquecer a teoria da verdade objectiva graas compreenso do papel activo do sujeito no conhecimento, com a ajuda de elementos tais que permitem perceber melhor o processo real do conhecimento, exprimir e aprofundar essa percepo. No entanto, no em caso nenhum nosso dever fazer concesses aos nossos adversrios idealistas que usam muitas vezes o argumento do papel activo do sujeito no conhecimento a fim de negar a objectividade deste. Evidentemente, a soluo do diferendo depende, em ltima instncia, das posies filosficas gerais que adopta o investigador dado; neste caso preciso, a teoria precede nitidamente a histria. Quando estas posies filosficas prvias so decididamente divergentes, no se pode, num dado momento, seno verificar as divergncias de opinies; mas isto tambm tem importncia para a conscincia terica e, como tal, constitui um passo indispensvel para um eventual progresso neste domnio.Para fechar todos estes raciocnios, voltemos a pr a questo com a qual comemos a presente obra: os historiadores mentem quando, se bem que dispondo dos mesmos materiais histricos acessveis a uma poca dada, escrevem histrias diferentes? Administram a prova da no cientificidade da histria quando, como resultado de uma mudana das condies da poca, e no apenas a seguir a um enriquecimento dos materiais factuais, reescrevem a histria e, alm disso, fazem-no reinterpretando-a noutros termos?No termo das nossas anlises, a resposta negativa a estas duas perguntas est fundamentada: apoimo-la em todos os nossos desenvolvimentos consagrados ao condicionamento social do conhecimento histrico, ao papel assumido neste conhecimento pela actividade do sujeito, aos aspectos particulares da objectividade do conhecimento que abordmos em diversas perspectivas. Agora, no temos mais do que acrescentar algumas notas de natureza mais geral.O problema aparentemente impressionante da variabilidade da viso histrica nos historiadores vivendo na mesma poca e, com maioria de razo, pertencendo a pocas diferentes, , na realidade, um problema banal: a aparncia de complexidade terica nasceu do ponto de partida falso aceite no raciocnio.O ponto de vista geral, considerado na realidade como um axioma, que o historiador comea pelos factos e que so precisamente eles os factos histricos que so o objecto do seu estudo e do seu conhecimento; a palavra facto designando aqui um acontecimento concreto do passado. Ora, falso que o historiador comece o seu empreendimento cientfico pelos factos; igualmente falso que os factos constituem o objecto do seu empreendimento, o objecto sobre o qual exerce o seu estudo e o seu conhecimento. Estes erros so sequelas da f positivista num modelo da histria escrita wie es eigentlich gewesen, a partir de um mosaico de factos constitudos que o historiador se contenta com reunir e expor. nesta falsa premissa que se encontra a chave permitindo decifrar o problema que estudamos.No seu trabalho, o historiador no parte dos factos, mas dos materiais histricos, das fontes, no sentido mais extenso deste termo, com a ajuda dos quais constri o que chamamos os factos histricos. Constri-os na medida em que selecciona os materiais disponveis em funo de um certo critrio de valor, como na medida em que os articula, conferindo-lhes a forma de acontecimentos histricos. Assim, a despeito das aparncias e das convices correntes, os factos histricos no so um ponto de partida, mas um fim, um resultado. Por conseguinte, no h nada de espantoso em que os mesmos materiais, semelhantes nisto a uma matria-prima, a uma substncia bruta, sirvam para construes diferentes. E a que intervm toda a gama das manifestaes do factor subjectivo: desde o saber efectivo do sujeito sobre a sociedade at s determinaes sociais mais diversas.A coisa complica-se ainda mais quando se considera que o estudo e o conhecimento histrico podem apenas ter por objecto no factos particulares tomados separadamente, mas processos histricos apreendidos na sua totalidade. O que ns chamamos um facto, no sentido de um acontecimento histrico concreto, o produto de uma abstraco especulativa: um fragmento da realidade histrica isolado, separado das suas mltiplas correlaes e interdependncias com o processo histrico. Quando um historiador assegura que parte de tais factos, essa certeza apenas ilusria; mesmo se o pensa subjectivamente, como bom historiador procede de maneira diferente. Com efeito, o estudo e o conhecimento histrico tm sempre como objecto um processo histrico na sua totalidade, se bem que nos apercebamos desse objecto atravs do estudo de fragmentos dessa totalidade. O nosso caso uma simples ilustrao de um problema mais vasto, o da relao entre o todo e a parcela: podendo a parcela ser tomada apenas no quadro do todo acessvel ao conhecimento apenas pela mediao das suas partes. Quanto mais um historiador competente, melhor sabe desempenhar esta tarefa; quanto mais o historiador consciente das implicaes metodolgicas da relao do todo e da parte, mais fcil a relao desta tarefa.Este estado de coisas implica no entanto consequncias importantes mesmo na prtica da historiografia. Se o objecto do conhecimento histrico efectivo o processo histrico na sua totalidade e se esse processo o ponto de partida dos estudos do historiador, se bem que este no esteja sempre plenamente consciente disso, ento a variabilidade da viso histrica uma necessidade. Um todo, um todo alm do mais varivel, dinmico, no podendo ser apreendido seno por e nos seus fragmentos, nas suas partes, mesmo se estamos conscientes da necessidade de combinar esses fragmentos no quadro da totalidade do processo, o resultado obtido ser sempre imperfeito, visto que sempre parcial. O conhecimento toma necessariamente o carcter de um processo infinito que aperfeioando o nosso saber caminhando a partir de diversas aproximaes da realidade apercebida sob os seus diferentes aspectos, acumulando as verdades parciais no termina apenas numa simples adio dos conhecimentos, em mudanas quantitativas do nosso saber, mas tambm em transformaes qualitativas da nossa viso da histria.Que os historiadores percebam diferentemente a imagem da histria, quando dispem de materiais e de fontes idnticas, que esta percepo se diferencie medida que estes materiais se enriquecem e que evolui a aptido dos historiadores para fazerem perguntas e para descobrirem os problemas dissimulados atrs desses materiais, o fenmeno normal e compreensvel se se apercebe em termos adequados o processo do conhecimento histrico.Mentem os historiadores? Isto pode produzir-se quando perseguem fins extracientficos e vem na histria um instrumento de realizao de necessidades prticas actuais. Numerosos so os casos deste tipo, mas apesar da sua importncia social e poltica, este problema teoricamente desinteressante. Em compensao, so teoricamente interessantes os casos onde a variabilidade da viso histrica segue a par com a probidade cientfica e uma investigao competente da verdade histrica. Os historiadores no mentem, se bem que sustentem discursos diferentes, por vezes mesmo contraditrios. Este fenmeno simplesmente o resultado da especificidade do conhecimento que tende sempre para a verdade absoluta mas realiza essa tendncia no e pelo processo infinito da acumulao de verdades relativas.Ser isto uma prova da inferioridade do conhecimento histrico em relao s matemticas por exemplo? Esta pergunta pe imediatamente um problema que, desde h sculos, objecto de litgio: o valor das cincias sociais e das cincias humanas em relao s cincias exactas da natureza. A resposta a esta pergunta implica conte(idos mais ricos do que os que deixa supor a sua formulao banal: tudo o que dissemos sobre o conhecimento histrico e sobre a verdade histrica, todas as nossas concluses impregnadas de cepticismo provam apenas que tratamos com outro tipo de conhecimento do que no caso das cincias da natureza. E todas as tentativas visando refutar o valor das cincias sociais, tais como so, todas as tentativas para as reformar conferindo-lhes a forma de cincias dedutivas, esto como a experincia o provou votadas ao fracasso, sendo o seu nico efeito infligir numerosos prejuzos s cincias assim aperfeioadas. Quanto s pretenses superioridade deste ou daquele domnio de estudos e dos mtodos que a so empregues, tudo depende do sistema de referncia, dos objectos fixados, dos critrios de avaliao aplicados, etc. Em todo o caso, no h a este respeito nem respostas, nem juzos unvocos. Supondo um sistema de referncia, objectivos de investigao e critrios definidos, o conhecimento histrico pode ser superior, por ser mais complexo e estar ligado vida da sociedade. Mas no certamente disso que se trata: querer estabelecer uma emulao deste tipo seria no apenas fazer prova de falta de seriedade, mas ainda confirmar que as comunidades cientficas sofrem por vezes de complexos. O que interessa pelo contrrio afirmar e reafirmar que o conhecimento histrico diferente, especfico; , sobretudo, postular que esse conhecimento seja adquirido de maneira competente, quer dizer com a inteira conscincia da sua especificidade.

http://histheory.tripod.com/adam_schaff.htmlAS FILOSOFIAS DA HISTRIA[ Guy Bourd & Herv Martin,As Escolas Histricas,Mem Martins, Publicaes Europa-Amrica, 1990, pp. 44-60]As filosofias da histria tomaram forma no sculo XVIII, na poca das luzes. Nascem ento as ideias do devir da matria, da evoluo das espcies, do progresso dos seres humanos. Pensadores como Voltaire, Kant ou Condorcet acreditam num movimento ascendente da humanidade em direco a um Estado ideal. No sculo XIX, sob o impacte da Revoluo Francesa e de outras revolues na Europa, florescem filosofias da histria, Quer sejam religiosas ou ateias, optimistas ou pessimistas, tm todas em comum descobrir um sentido para a histria. As doutrinas de Hegele de Comte representam modelos do gnero: organizam os perodos, apreciam as mudanas ou as permanncias, interpretam a evoluo geral do mundo com o auxlio de um princpio nicoa marcha do Esprito ou a lei dos trs estados. De urna certa maneira, Marx, que faz domaterialismo histricouma teoria cientfica ligada a uma prtica revolucionria, no sai inteiramente do mbito da filosofia da histria na medida em que, para ele, a evoluo da humanidade permanece orientada para um fim. No sculo XX,os historiadores da escola metdica, depois da escola dos Annales instruiram o processo das filosofias da histria e, globalmente, venceram. No dia seguinte Segunda Guerra, R. Aron obrigado a admitir que a incerteza da documentao, a imensidade das vises, a pretenso a submeter a complexidade do real a um esquema rgido, todos estes efeitos que se emprestam aos sistemas clssicos, passam por caractersticas da filosofia da histria. A partir de ento, os historiadores profissionais j s se autorizam a uma reflexo de ordem epistemolgica sobre o andamento do conhecimento histrico. Contudo, em pleno sculo XX, existem ainda filosofias da histria: so as interpretaes cclicas do destino das civilizaes como as que so formuladas por O. Spengler ou A. Toynbee; ou ento os prolongamentos do pensamento marxista, como as teorias que G. Lukcs exprime emHistria e Conscincia de Classe.l. Kant e as LuzesO pensamento teleolgico que postula um sentido histria nasce num texto de Plato: oFdon.No seu dilogo, Plato faz enunciar por Scrates as seguintes afirmaes:a)h ordem no universo;b)tudo ordenado tendo em vista o melhor resultado;c)uma inteligncia ordenadora aplica ao mundo esta concepo;d)o melhor situa-se ao nvel intelectual e no material;e)existe um Verdadeiro, um Bem, um Belo em si. Mantidas todas as propores, Bossuet esboa uma teleologia a bem dizer uma teologia da histria quando afirma que Deus fez o encademento do universo [...] e quis que o curso das coisas humanas tivesse a sua continuao e as suas propores; [...] que a divina Providncia preside ao destino dos Imprios, ao seu desenvolvimento e sua queda.(Discurso sobre a histria universal).Do mesmo modo, Leibniz interroga-se sobre a tendncia para o meio: sublinha a contradio entre a existncia de um deus criador, absolutamente sbio e todo-poderoso, e a manifestao constante do mal as guerras, as epidemias e outras catstrofes; todavia, conclui na racionalidade da escolha divina: Se tivssemos condies para compreendermos a harmonia universal, veramos que aquilo que somos tentados a censurar foi digno de ser escolhido... Vivemos no melhor dos mundos possveis(Ensaios de Teodiceia).Contudo, a filosofia das Luzes muitas vezes an-histrica. A este respeito, a obra deJ.-J.Rousseau significativa. Em princpio, uma teoria da histria esboada noDiscurso sobre a origem da desigualdade.J.-J. Rousseau parte de uma considerao moral: Quando se observa a constituio natural das coisas, o homem parece evidentemente destinado a ser a mais feliz das criaturas; quando se raciocina segundo o estado actual, a espcie humana parece de lamentar. H grande aparncia de que a maior parte dos seus males so obra sua. Estabelecida esta constatao, o filsofo vai, por uma atitude regressiva, despojar o homem de tudo o que lhe veio do exterior para remontar at ao estado de natureza. Nesta fase (que uma fico e no uma realidade), o homem vive numa situao no conflitual, em estado de equilbrio e de harmonia. E no momento em que o equilbrio rompido entre as faculdades e as necessidades que o homem entra na histria, que deve trabalhar. medida que o gnero humano se alargou, as dificuldades multiplicaram-se com os homens [...] Anos estreis, Invernos longos e rudes, Veres ardentes exigiram deles uma nova indstria. A partir de ento, a humanidacle evolui para uma sociedade cada vez mais organizada; pouco a pouco, aparece a propriedade; cavam-se desigualdades entre os ricos e os pobres; e instituies jurdicas vm sancionar relaes de fora. esta, em grandes traos, a passagem do estado natural ao estado civil. Na reflexo de Rousseau, a histria no passa de uma abstraco (o negativo da natureza) que colocada ao servio de uma demonstrao moral.O pensamento de Kant mistura uma teleologia oriunda de tradio crist e uma reflexo tica prpria da era das Luzes. Deste modo Kant reconcilia a herana de Bossuet e o legado de Rousseau, como mostra esta passagem: A histria da natureza comea pelo bem, porque ela obra de Deus; a histria da liberdade comea pelo mal, porque ela obra do homem. No que respeita ao indivduo que, fazendo uso da sua liberdade, s pensa em si mesmo, houve perda desta por altura desta mudana. No que respeita natureza, preocupada em orientar o fim que reserva ao homem tendo em vista a sua espcie, foi um ganho. O indivduo tem portanto razo em inscrever sua conta como seu prprio erro todos os males que sofre.., mas, ao mesmo tempo, como membro de uma espcie, tem razo para admirar a sabedoria da ordenao [...](Conjecturas sobre os incios da histria humana).Diferentemente de Rousseau, que concebe uma histria fictcia, Kant quer pensar a histria real... compreendida de maneira emprica. Mas a histria do filsofo no exactamente a do historiador; continua a ser uma histria do sentido da vida humana. Para Kant, a filosofia da histria afirma-se como uma parte da Moral.Kant exprimiu a sua reflexo sobre a histria numa srie de opsculos, nomeadamenteAIdeia de uma histria Universal sob um ponto de vista cosmopoltico(1784). A hiptese de Kant que, no curso absurdo dos assuntos humanos, na acumulao dos factos da histria emprica, existe uma finalidade. Todavia, esta finalidade, nenhuma inteligncia suprema a concebeu; nenhuma sociedade humana a quis; corresponde a um plano da natureza. Paradoxalmente, a natureza realiza os seus fins atravs dos homens: Os indivduos e mesmo os povos inteiros no pensam que ao perseguirem os seus fins particulares em conformidade com os seus desejos pessoais e muitas vezes em prejuzo de outrem, conspiram sem o saberem com o desgnio da natureza (p. 60). O poder de que o homem est dotado para realizar os seus projectos a razo. Portanto, o plano previsto para o homem no que atinja o estado de natureza mas que atinja o estado de cultura (a este respeito Kant ope-se a Rousseau). Convm notar que a natureza avara das suas ddivas: se confia a razo humanidade porque no tem, para esta, nenhuma funo precisa.Quando Kant fala do homem, significa a espcie e no o indivduo. Com efeito, a natureza precisa de uma linhagem interminvel de geraes para atingir os seus fins. Tambm a morte no passa de um acidente para o indivduo mas no toca no desenvolvimento da espcie. Mais, ao limitar a sua vida, a natureza obriga o indivduo a fazer um esforo, a empenhar-se no trabalho. A conscincia do seu fim obriga o indivduo a sair do seu torpor, leva-o a agir. Kant sublinha nitidamente que o indivduo est ao servio da espcie: O que, nos sujeitos individuais, nos choca pela forma confusa e irregular, poder todavia ser conhecido no conjunto da espcie sob o aspecto de um desenvolvimento contnuo, apesar de lento, das disposies originais (p. 59). O filsofo precisa ainda: No homem enquanto nica criatura dotada de razo na Terra as disposies naturais que visam a utilizao da sua razo no devem ter recebido o seu desenvolvimento completo no indivduo, mas apenas na espcie (afirmao 1). Atravs da obra de Kant, o postulado da vida eterna da espcie humana afirmado na filosofia da histria desempenha o mesmo papel que o postulado da imortalidade da alma na filosofia moral.A natureza deu ao homem o impulso para a humanidade, mas no a sua humanidade. Ao munir o homem da razo, a natureza indicava claramente o seu plano... O homem no devia ser governado pelo instinto nem secundado por um conhecimento inato; devia tudo tirar de si mesmo (afirmao 3). Por conseguinte, a natureza deixou ao homem o cuidado de inventar a sua vida material, de satisfazer as suas necessidades e de assegurar os seus tempos livres, mas tambm de extrair de si mesmo a sua inteligncia, at bondade do seu querer. Nestas condies, o homem deve viver em sociedade. E ento que se encontra colocado numa situao contraditria: por um lado, um desejo leva-o a viver com outros homens, a criar laos sociais; por outro, um impulso condu-lo a isolar-se, a ficar s. Aquilo a que Kant chama a inclinao para entrar em sociedade dobrada da repulsa para o fazer. Na realidade, o antagonismo entre a sociabilidade e a insociabilidade o meio de que a natureza se serve para levar a cabo o desenvolvimento de todas as disposies da humanidade. A discrdia ao nvel da espcie no verdadeiramente negativa, mas mais um factor de progresso. O destino do homem no a felicidade a todo o custo. Nesta perspectiva, a hostilidade entre os indivduos obriga-os a sarem de um estado de beatitude mais ou menos primitiva e a empenharem-se na aplicao de tarefas difceis mas grandiosas.O problema essencial com que a razo vai ser confrontada na histria a realizao da sociedade civil, administrando o direito de maneira universal. Kant observa: Pode encarar-se a histria da espcie humana, por grosso, como a realizao de um plano escondido da natureza para produzir uma constituio poltica perfeita (afirmao 8). Trata-se portanto de edificar uma organizao civil tal como as leis podem regular os antagonismos e instituir as liberdades. Ora este empreendimento complexo esbarra com dois obstculos. O primeiro escolho a questo da autoridade. Dada a dualidade da natureza humana dividida entre a aspirao ao bem e a atraco pelo mal,preciso impor aos homens um mestre que ataque as vontades particulares, necessariamente egostas. Contudo, este mestre, que ele mesmo um homem, deve comportar-se como um chefe justo, respeitando os outros homens. Imagina-se que no fcil descobrir um indivduo com qualidades to excepcionais. O segundo escolho o problema do entendimento entre as naes. Os povos despedaam-se, agridem-se, fazem guerras, muitas vezes mortferas para as pessoas e desastrosas para os bens. Todavia, Kant no se comove: interpreta os conflitos como outras tantas tentativas para estabelecer novas relaes entre Estados. Dos confrontos insensatos a que os homens se entregam acabar por sair uma comunidade civil universal.., que administrar o direito internacional de maneira que o mais pequeno Estado possa atingir a garantia da sua segurana... de uma fora unida, e de um acordo das vontades.Como se pode supor, as noes de um soberano justo, arbitrando entre os interesses particulares, e de uma sociedade das naes, garantindo a segurana dos Estados, so ideais no sentido Kantiano, objectivos morais que a humanidade deve fixar-se, empenhar-se em realizar. Quanto ao imediato, a espcie humana ainda no atingiu a constituio perfeita; est apenas em marcha para a era das Luzes. O tempo do Aufklarungno evidentemente o paraso reencontrado; parece-se mais com uma idade de maturidade, em que a espcie humana comea a libertar-se das tutelas, incluindo a dominao divina. Do andamento para as Luzes, Kant percebe sinais anunciadores: a extenso das liberdades econmicas, civis, religiosas na Inglaterra, na Alemanha ou na Austria no final do sculo XVIII; e, no mesmo momento, a Revoluo em Frana. A filosofia celebra este acontecimento em termos entusiastas: Um tal fenmeno na histria do mundo nunca se esquecer, porque descobriu no fundo da natureza humana uma possibilidade de progresso moral de que nenhum homem poltico tinha at ento desconfiado. (O Conflito das faculdades, 1798).2. Hegel e a dialcticaGeorg W. F. Hegel nasceu em Estugarda em 1770. O seu pai era funcionrio das Finanas. Faz estudos secundrios em Estugarda, inicia estudos de teologia em Tubingen, mas renuncia a tornar-se pastor. Continua marcado durante toda a vicia pela formao religiosa luterana. Hegel vive das suas actividades de preceptor em Berna e em Francoforte entre 1793 e 1800; ensina na universidade de Iena de 1801 a 1806; redactor naGazeta de Bambergem 1806-1807; dirige o liceu de Nuremberga de 1808 a 1816. E casado, pai de famlia. Durante esta ascenso na carreira docente, Hegel assimila as obras filosficas dos seus contemporneos Kant, Fichte e Schelling. Como toda aliteintelectual alem, Hegel influenciado pelo pensamento das Luzes, admira a Revoluo Francesa e espera muito da sua difuso atravs da Europa graas s conquistas napolenicas. O choque da Batalha de Iena (Outubro de 1806), que desperta em Fichte um nacionalismo prussiano virulento, no abala em Hegel a confiana nas ideias francesas. Passada a tormenta das guerras, Hegel consegue uma cadeira de Filosofia em Heidelberga em 1817; depois substitui Fichte na cadeira de Filosofia em Berlim, de 1818 a 1831. A, acede notoriedade, rodeia-se de discpulos Von Henning, E, Gans, B. Bauer, etc.,, apresenta-se como terico do Estado prussiano. Morre levado por uma epidemia de clera, em 1831.Hegel pertence inegavelmente ao mundodoAufklarung;acredita na fora da razo. Dirigindo-se aos alunos, recomenda-lhes terem confiana na cincia, terem f na razo. Todavia, Hegel continua ligado religio; v na filosofia que professa um desenvolvimento de protestantismo; por isso que se prope elevar a f luterana do sentimento subjectivo certeza racional. Sejam quais forem as influncias que o marcaram, a obra de Hegel aparece como uma tentativa para constituir um sistema no qual todo o Universo possa ser pensado. O empreendimento do professor de Berlim apresenta-se sob a forma de uma ampla deduo que abrange todos os conhecimentos possveis. Distinguem-se trs seces: 1)a lgica que trata da ideia abstracta, da formao das categorias intelectuais; 2) a Filosofia da Natureza que examina a difuso da Ideia fora de si, no mundo natural; 3)a filosofia do Esprito, que se interessa pela tomada de conscincia do esprito atravs da histria universal. Ainda Hegel vivo, foram publicadas apenas trs obras:A Fenomenologia do Esprito(1807),A Lgica,3 volumes (1812-1817); eAFilosofia do Direito(1821). Depois da morte do mestre, alguns dos discpulos Gans, Marheineke e outros transcreveram as suas notas de curso, reviram-nas e fizeram publicar, sob o nome de Hegel, dezoito volumes, entre os quais AEsttica, A Filosofia da Religio, AsLies sobre a filosofia da Histria(entre 1838 e 1845).O pensamento de Hegel afirma-se como um idealismo absoluto que supe uma identidade entre o sujeito e o objecto, entre o conhecer e o ser. Neste sentido, Hegel reencontra o realismo da Antiguidade abalado um mornento pelo nominalismo da idade Mdia. Pode apreciar-se este puro idealismo nesta passagem dasLies sobre a filosofia da Histria:Oesprito tem justamente em si mesmo o seu centro; no h unidade fora dele mas encontrou-a, est em si e consigo... Oesprito sabe-se a si mesmo; o julgamento da sua prpria natureza; tambm a actividade pela qual volta a si, se produz assim, se faz o que em si. Segundo esta definio, pode dizer-se da histria universal que a representao do esprito no seu esforo para adquirir o saber daquilo que (Introduo, p. 27). Nestas condies, a filosofia da histria no poderia dizer o que o mundo deve ser,a fortioriproduzir esse mundo. A filosofia da histria no significa outra coisa a no ser a sua considerao reflectida... A nica ideia que a filosofia d que a razo governa o mundo e que, em seguida, a histria do mundo o movimento pelo qual a substncia espiritual entra na posse da sua realidade. difcil imaginar uma construo mais abstracta: a histria do Esprito confunde-se com a histria do Universo.Hegel, prolongando Bossuet, acentuando Kant, permanece firmemente numa perspectiva teleolgica: no admite que o mundo seja entregue ao acaso: Devemos procurar na histria um objectivo universal, o objectivo final do mundo, no um objectivo particular do esprito subjectivo ou do sentimento humano. Devemos compreend-lo com a razo porque a razo no pode ter interesse em nenhum objectivo acabado particular, mas apenas no objectivo absoluto. A realizao perfeita do fim do universo opera-se pelo andamento do Esprito. Trata-se portanto do objectivo final que a humanidade persegue, que o Esprito se propaga no mundo e que realiza levado por uma fora infinita. O seu objectivo chegar conscincia de si mesmo, de tornar o mundo adequado a si mesrno. E a evoluo do Esprito vai no sentido de um progresso. A natureza s conhece um regresso cclico das estaes; a razo dirige-se para um fim ltimo: Na natureza, a ressurreio no passa da repetio do mesmo, uma histria montona que segue um ciclo idntico. No h nada de novo debaixo do sol. E diferente em relao ao sol do Esprito. A sua marcha, o seu movimento no uma auto-repetio. O aspecto mutvel que o Esprito reveste essencialmente um Progresso(La Raison dans lHistoire,edio 10/18, pp. 48, 92 e 95).Hegel introduz a dimenso da temporalidade. Na tradio medieval, o tempo era concebido como uma degradao ontolgica. Na concepo hegeliana, o tempo torna-se uma categoria de inteligibilidade. O Esprito manifesta-se necessariamente no tempo; enquanto no compreender o seu conceito puro(Fenomenologia do Esprito,II, p. 305). O Esprito, actor principal da histria, no toma conscincia de si mesmo directamente, mas por um movimento dialctco, por uma operao de ritmo ternrio. O movimento dialctico comporta trs momentos: a tese (o ser); a anttese (o no ser); a sntese (o devir). Na sua marcha, o Esprito coloca-se em si, desenvolve-se fora de si, para regressar a si; atravs destas mutaes, o Esprito atinge uma forma nova, consegue constituir urna unidade superior: O Esprito que se forma amadurece lentamente e silenciosamente at sua nova figura, desintegra fragmento por fragmento o edifcio do seu mundo precedente... Este esmigalhamento contnuo que no alterava a fisionomia do todo bruscamente interrompido pelo nascer do sol que, num relmpago, desenha ainda uma vez a forma do novo mundo(Fenomenologia do Esprito,p. 12). Hegel no se limita a enunciar um idealismo puro, faz corrente no sculo XVIII; inventa o movimento dialctico, que vai dominar o pensamento do sculo XIX.

Hegel inspira-se em Kant quando percebe um plano escondido, escapando conscincia da espcie humana. A liberdade, realizao pelo esprito da sua prpria essncia, a finalidade absoluta da histria. Por que meio a liberdade progride na histria? As aces dos homens derivam dos seus interesses egostas, mais frequentemente do que das suas virtudes. Aparentemente, a histria trgica porque a violncia das paixes parece determinar o curso das questes humanas as guerras, as lutas sociais, os conf1itos etticos, etc. Na realidade, atravs das aces dos homens, o Esprito realiza fins racionais: Dois elementos intervm: um a ideia; o outro, as paixes humanas; um a cadeia; o outro a trama do grande tapete que a histria universal constitui.., apresentando-se assim sob a forma de essncia da vontade da natureza... a necessidade, o instinto, a paixo, o interesse particular existem imediatamente por si... Esta massa imensa de querer, de interesse, de actividade constitui os instrumentos e os meios do gnio do Universo para realiza o seu fim, elev-lo conscincia e realiz-lo...(Lies sobre a Filosofia da histria,p. 32). No limite, a histria universal aparece como processo, lento, obscuro, doloroso pelo qual a humanidade passa do inconsciente para o consciente.E ento que Hegel avana a ideia de uma astcia da Razo. No curso da histria, resulta das aces dos homens algo diferente do que projectaram, do que sabem ou do que querem. Os indivduos julgam realizar os seu prprios fins, defender os seus interesses; e apenas realizam, sem dar conta disso, um destino mais amplo que os ultrapassa. A Razo, por uma astcia, tira partido do instinto colectivo para fazer avanara humanidade na via da perfeio. Um caso histrico far compreender melhor o mecanismo, No fim da Repblica romana Csar movido pela paixo do poder; acede s principais magistraturas, ao comando das legies, ao governo das provncias (tese). Os seus inimigos Pompeu, Crassus, etc. , que tm igualmente ambies pessoais, erguem obstculos no caminho; daqui resultam violentas guerras civis (anttese). Csar triunfa dos seus rivais, impe-se como o nico senhor em Roma e instaura o principado sobre o modelo de uma monarquia helenstica (sntese). Durante este confronto, que pe a ferro e fogo todo o mundo mediterrnico, os protagonistas foram movidos por foras profundas, sem terem claramente conscincia dos seus objectivos. Csar criou o imprio sem o ter querido explicitamente. A propsito, nota-se como Hegel concebe o papel dos grandes homens. Na sua opinio, os indivduos fora do comum Alexandre, Csar, Napoleo, etc. so aqueles que o tempo exige, aqueles cujas ambies e aces correspondem melhor s circunstncias histricas(Lies sobre a Filosofia da Histria,p. 36).Em definitivo, Hegel deixa entrever o objectivo final em direco ao qual a Razo guia a humanidade. O filsofo, protegido da monarquia Prussiana, exps sobretudo a sua teoria do Estado emAFilosofia do Direito(1821 ). A famlia, a sociedade civil, o Estado apresentam-se como os trs estdios de uma ascenso para o absoluto. A famlia bem soldada por laos naturais, mas s conhece os seus interesses particulares. A sociedade civil, a fim de satisfazer as necessidades materiais dos homens, deve organizar instituies econmicas, sociais e jurdicas que nem todas podem ser perfeitas. O Estado permite aceder a um nvel superior: a administrao, que se apoia na classe universal (os funcionrios), consegue conciliar os interesses privados e os fins gerais. O Estado a realidade onde o indivduo possui a liberdade e goza dela O Estado a vida verdadeiramente moral porque a unidade do querer geral... Na histria universal, s pode tratar-se de povos que formam um Estado. Com efeito, deve saber-se que um Estado a realizao da liberdade, ou seja do objectivo final absoluto(Lies sobre Filosofia da Histria,p. 40-41). A concluso hegeliana parece muito decepcionante: a longa marcha do Esprito, ritmada pelos movimentos da dialctica, culmina na criao de um Estado moderno, burocrtico, que deve incarnar a moral, a liberdade e a razo, ser a forma ltima do progresso.3. A. Comte e o PositivismoAugusto Comte nasceu em Montpellier em 1798. Faz estudos secundrios na sua cidade natal, vai para a capital, entra na Escola Politcnica em 1814, expulso por indisciplina em 1816. O jovem tem de ganhar a vida dando lies de matemtica; depois torna-se secretrio de Saint-Simon. E nesta poca, entre 1817 e 1824, que A. Comte se emancipa das crenas religiosas, adere s ideias racionalistas e desliza, pouco a pouco, para ideias socialistas. A partir de ento, durante um quarto de sculo, A. Comte edifica a sua grande obra.O Curso de filosofia positivaque, em cerca de sessenta lies, trata da formao das cincias e da evoluo das sociedades. A publicao dos seis volumes do curso, devido a correces, complementos, prolongamentos, vai de 1830 a 1852.Na sua vida privada, A. Comte conhece graves dificuldades: tem relaes penosas com a esposa, Caroline Massin; sofre de perturbaes mentais que o levam a uma tentativa de suicdio seguida de um internamento temporrio; finalmente, apaixona-se sem xito por Clotilde de Vaux, e o seu amor falhado transforma-se em exaltao mstica. A. Comte termina a sua reflexo por duas obras de tonalidade religiosa:O Catecismo positivista,de 1852, e oSistemade poltica positiva,em 1853-1854. O novo profeta da religio da humanidade morre em Paris em 1857.Auguste Comte pode, legitimamente, ser considerado como o inventor da sociologia. O seu mestre e patro H. de Saint Sirnon afirmou a possibilidade de uma cincia do homem, concebida como uma fisiologia alargada da orgnica ao social, emO Catecismo dos Industriais(1823). A. Comte retoma a ideia de uma cincia da sociedade a Fs