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Universidade Federal do Rio de Janeiro Museu Nacional Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social A nova ordem cerebral: a concepção de ‘pessoa’ na difusão neurocientífica Rogerio Lopes Azize Rio de Janeiro 2010

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Museu Nacional

Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social

A nova ordem cerebral: a concepção de ‘pessoa’ na difusão neurocientífica

Rogerio Lopes Azize

Rio de Janeiro 2010

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A nova ordem cerebral: a concepção de ‘pessoa’ na difusão neurocientífica

Rogerio Lopes Azize

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Doutor em Antropologia Social Orientador: Prof. Dr. Luiz Fernando Dias Duarte

2010

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A nova ordem cerebral

A concepção de ‘pessoa’ na difusão neurocientífica

ROGERIO LOPES AZIZE

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional / UFRJ como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em

Antropologia Social.

Aprovada em:

_______________________________________________________ Prof. Dr. Luiz Fernando Dias Duarte – PPGAS-MN- UFRJ (Orientador) _____________________________________________________ Profa. Dra. Sônia Weidner Maluf – PPGAS-UFSC ______________________________________________________ Profa. Dra. Jane Araújo Russo – IMS - UERJ ________________________________________________________ Prof. Dr. Gilberto Cardoso Alves Velho – PPGAS-MN-UFRJ ________________________________________________________ Prof. Dra. Adriana de Resende Barreto Vianna – PPGAS-MN-UFRJ ___________________________________________________________ Profa. Dr. José Sérgio Leite Lopes – PPGAS –MN-UFRJ (Suplente) ___________________________________________________________ Profa. Dra. Lilian Krakowski Chazan – CLAM/IMS/UERJ (Suplente)

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Azize, Rogerio Lopes A nova ordem cerebral: a concepção de ‘pessoa’ na difusão neurocientífica / Rogerio Lopes Azize – Rio de Janeiro: UFRJ/Museu Nacional, 2010. XIII, 281 f.: il, 1v. Orientador: Luiz Fernando Dias Duarte Tese (doutorado) – UFRJ/Museu Nacional/Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, 2010. Referências Bibliográficas: f. 268-281

1. Antropologia Social. 2. Antropologia da Pessoa. 3. Cérebro. 4. Neurociência. 5. Medicamentos. 6. Popularização científica. 7. Marketing farmacêutico. I. Azize, Rogerio Lopes. II. UFRJ/Museu Nacional/Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. III. Título.

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Resumo A neurociência contemporânea tem uma pretensão bilíngue: a de investigar a fisiologia

cerebral, ao mesmo tempo em que se debruça sobre o que considera ser epifenômenos

deste órgão, o que inclui as emoções, os sentimentos, as escolhas e as mais simples

ações da vida cotidiana. Em formatos e através de veículos os mais diversos, esta idéia,

que constrói uma equivalência entre cérebro e indivíduo, tem sido alvo de intensa

divulgação por parte de pesquisadores da área entre o público leigo. Emana daí, para

além de saberes sobre o cérebro, uma noção de ‘pessoa’, tema que esta tese se propõe a

investigar. Com este objetivo, articula-se aqui um material etnográfico amplo, que passa

pela popularização de neurociência propriamente dita (em livros, teatro, televisão), a

publicidade de psicofármacos por parte de laboratórios farmacêuticos (onde se divulgam

as ‘doenças do cérebro’) e representações que atravessam a cosmologia espontânea da

cultura ocidental moderna, o que pode ser observado através da presença marcante de

um vocabulário cerebralista na mídia em geral, na publicidade e no cinema. O trabalho

filia-se à tradição dos estudos de construção social da pessoa, focando em um tema de

reflexão que ganhou nuances peculiares nas últimas décadas: uma noção dualista, no

formato cérebro/mente, ou corpo/mente, passa a conviver com um dualismo fisicalista,

no formato cérebro/corpo.

Palavras-chave: pessoa; cérebro; neurociência; popularização científica; marketing farmacêutico.

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Abstract Contemporary brain sciences have a bilingual agenda: to investigate brain physiology,

and at the same time to address what they consider to be epiphenomena of that organ –

which includes the emotions, feelings, choices and the most trivial actions of daily life.

Presented in various formats and by different media, this idea, which sets an

equivalence between brain and individual, has been intensely promoted by researchers

of the area among the lay public. Thence stems, besides corpora of knowledge on the

brain, a notion of ‘person’ – which is the subject of this research. With that aim, a wide

ethnographic material is here articulated, ranging from the popularization of

neuroscience proper (in books, theatrical plays, television), the advertising of

psychopharmaceuticals (promoting ‘diseases of the brain’) by pharmaceutical

laboratories, and representations that run through the spontaneous cosmology of modern

western culture. This can be observed through the striking presence of a ‘cerebralist’

idiom in the general media, advertising and cinema. The research joins the tradition of

the studies of the social construction of the person, focusing on a subject-matter that

gained peculiar nuances in the last decades: a dualist notion, in the brain/mind format, is

now joined by a physicalist dualism, in the brain/body format.

Key-words: person; brain; neuroscience; science popularization; pharmaceutical marketing.

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Agradecimentos Escrever uma tese de doutorado é um processo tão prazeroso e cheio de interlocução quando doloroso e solitário. Nos dois sentidos, alguns agradecimentos são necessários. Em primeiro lugar, agradeço o acolhimento do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social/Museu Nacional/UFRJ, que proporcionou um ambiente instigante e desafiador para a execução desta pesquisa. Quando da entrevista para a admissão no programa, a professora Lygia Sigaud, a quem deixo aqui uma pequena homenagem, questionou-me sobre, afinal, quem seriam os meus trobriandeses. Espero ter oferecido uma resposta. Os recursos necessários foram concedidos pela CAPES e pela FAPERJ. Instigante e desafiador são bons adjetivos também para a orientação do professor Luiz Fernando Dias Duarte. É evidente nesta tese o diálogo com as suas pesquisas. Os seus trabalhos e orientação direta são aqui uma referência ‘física’; mas há também uma referência ‘moral’ que levarei comigo: uma postura pedagógica aberta e sensível, que marca as suas posições ao mesmo tempo em que confere autonomia. Por tudo isso, obrigado. As sugestões da professora Jane Araujo Russo (IMS/UERJ) foram essenciais para o texto nos processos de qualificação. Agradeço também a todo o corpo docente do PPGAS, em especial aos professores Gilberto Velho, José Sergio Leite Lopes, Lygia Sigaud, Giralda Seyferth e Antonádia Borges (hoje na UNB), com quem tive o prazer de compartilhar a sala de aula. Sou grato também aos professores Benilton Bezerra Jr. e Francisco Ortega, que me receberam como aluno em seus cursos sobre o ‘sujeito cerebral’ no IMS/UERJ. O professor Octavio Domont de Serpa Júnior aceitou guiar-me pelos caminhos para mim desconhecidos do Congresso Brasileiro de Psiquiatria. Fico muito grato pela sua atenção e paciência. Por convites para falar em contextos diferentes a respeito de resultados parciais desta pesquisa, agradeço às professoras Sônia Weidner Maluf (UFSC) – minha orientadora no mestrado – e Carmem Susana Tornquist (UDESC), ao professor Guido Korman (Universidade de Buenos Aires) e a Gabriel Cid de Garcia (produtor cultural da Casa da Ciência/UFRJ). Agradeço também aos professores e colegas com quem tive a oportunidade de trocar idéias nos congressos da ABA, da ANPOCS e na RAM. Agradeço também a Maria Luiza Heilborn e a todos os colegas da pesquisa HEXCA no CLAM, que foram pacientes com meu afastamento na fase final da escrita da tese. O Dr. Lucílio Medeiros Neto ajudou-me a encarar 2 e ½ cirurgias com mais tranquilidade, quando um rim ameaçou a minha saúde às portas de um prazo importante.

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Tânia e Isabelle (secretaria do PPGAS), Carla e Alessandra (biblioteca), Carmem e Fabiano (fotocopiadora) tiveram grande paciência e cuidado durante minha passagem pelo Museu Nacional. Estendo o agradecimento a todos os outros funcionários. Por motivos diferentes, seja pela amizade ou pela interlocução (quase sempre pelos dois motivos), as pessoas a seguir mereceriam uma página de agradecimentos cada um. Listá-los neste formato é uma injustiça que tentarei desfazer depois pessoalmente: Lilian Krakowski Chazan, Marta Regina Cioccari, Nicolás Viotti, Luiz Felipe Benites, João Duarte, Martinho Braga Batista e Silva, Marcos Castro Carvalho, Naara Luna, Guido Korman, Mercedes Sarudiansky, Neide Eisele, Eduardo Riaviz, Vanessa Nahas, Tade-Ane do Amorim, Luiza Larangeira, Antonio Holzmeister, Luciana Lombardo, Bruno Marques, Indira Caballero e Diana Lima.

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A tese é dedicada a quem não sei como agradecer:

À Luana.

Aos meus pais, Azize e Creusa.

Ao meu irmão Rafael.

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Convenções Uma observação faz-se necessária. Grande parte dos dados etnográficos desta

tese é composta por material impresso, em variados registros. Para facilitar a sua

visualização na mancha gráfica do texto, optei por dois formatos de citação.

Referências etnográficas serão apresentadas no formato centralizado, e em corpo

de texto 12, como a seguir:

Nos nossos dias, sabemos que é o nosso cérebro o que sustenta, gere e origina o nosso sentido de eu (self), de pessoalidade (personhood), o nosso sentido dos outros e a nossa humanidade (humanness). O cérebro é um órgão complexo, como o coração, os rins, e o fígado. Mas quando pensamos nesses órgãos, não nos tornamos românticos ou nos preocupamos com eles como entidades encerradas em si próprias (unto themselves). (Gazzaniga, 2005, p.31)

Referências teóricas, por sua vez, serão apresentadas em corpo de texto 11 e com

recuo, como no exemplo abaixo:

Gall reuniu crânios de criminosos ou de doentes mentais e bustos de homens célebres. Com base na cuidadosa observação destes, elabora um mapa das localizações ósseas correspondentes às tendências e faculdades particularmente exacerbadas neste ou naquele indivíduo. Por acaso ou profunda intuição, Gall localiza a memória das palavras e o sentido da fala nas regiões frontais próximas da localização que hoje se lhes atribui. Contudo, no restante, a topografia proposta por Gall é extremamente fantasista. (Changeux, 1985, p. 25)

Não por acaso, os dois exemplos escolhidos são de textos de neurocientistas.

Nem sempre foi simples escolher qual formato seguir em certos casos. Afinal, analisa-se

aqui, entre outras coisas, o discurso da neurociência, e nestes casos eles são fonte

primária, dado etnográfico; mas, por vezes, um mesmo autor desta área me serve como

referência teórica. Trata-se de um limite inerente ao tipo de trabalho de campo

realizado, e as poucas ambigüidades foram resolvidas a cada caso.

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Ao longo destes capítulos, o leitor ter-se-á rendido à evidência de que o cérebro do homem é constituído por milhares de milhões de neurônios ligados entre si por uma imensa rede de cabos e conexões, de que nos seus “filamentos” circulam impulsos elétricos ou químicos inteiramente explicáveis em termos moleculares ou físico-químicos e de que qualquer comportamento se explica pela mobilização interna de um conjunto topologicamente definido de células nervosas. Jean-Pierre Changeux, O homem neuronal São borboletas da alma, cujo bater de asas quem sabe esclarecerá algum dia o segredo da vida mental. Santiago Ramón y Cajal, a respeito dos neurônios O importante não é a casa onde moramos. Mas onde, em nós, a casa mora. Mia Couto, Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

p. 29 – Imagem 1 – Reprodução de parte da capa do livro “What makes us think?”

p. 68 – Imagem 2 – Área de exposição dos estandes no XXV Congresso Brasileiro de

Psiquiatria (CBP) – Foto Rogerio Azize

p. 69 – Imagem 3 – Área de exposição dos estandes no XXV Congresso Brasileiro de

Psiquiatria – Foto Rogerio Azize

p. 72 – Imagem 4 – Impresso na parede do estande do medicamento Cymbalta (CBP) –

Foto Rogerio Azize

p. 77 – Imagem 5 – Pintura coletiva, estande do Rivotril (CBP) – Foto Rogerio Azize

p. 78 – Imagem 6 – Pintura coletiva, estande do Rivotril (CBP) – Foto Rogerio Azize.

p. 87 – Imagem 7 – Bicicletas ergométricas no estande do Zyprexa (CBP) – Foto

Rogerio Azize.

p. 104 – Imagem 8 – Capa de folder que divulga atividades relacionadas ao

medicamento Cymbalta (CBP)

p. 105 – Imagem 9 – contra-capa do mesmo folder.

p. 106 – Imagem 10 – Capa de folheto informativo sobre depressão, distribuído pelo

laboratório Lilly.

p. 110 – Imagem 11 – Folheto do laboratório Lundbeck, direcionado ao público leigo, a

respeito de depressão.

p. 112 – Imagem 12 – Folder do medicamento Abilify, indicado para a bipolaridade,

voltado aos médicos.

p. 114 – Imagem 13 – Capa de CD promocional do medicamento Somalium, produzido

pelo laboratório Aché.

p. 166 – Imagem 14 – Capa do impresso de divulgação da peça de teatro “O neurônio

apaixonado”.

p. 243 – Imagem 15 – Cenas do filme Avatar.

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Sumário

Introdução.................................................................................................................... 1

Capítulo 1 - Uma pessoa e 100 bilhões de neurônios ............................................12

1.1 O cérebro como órgão pessoal .................................................................................... 12

1.2 Uma antiga boa nova .................................................................................................. 32

1.3 Algumas perspectivas críticas ao ‘cérebro como pessoa’ ........................................... 49

Capítulo 2 - Divulgação dos produtos da psicofarmacologia: o cérebro, suas doenças e seus medicamentos .................................................................................................. 58

2.1 Um não prescritor no Congresso Brasileiro de Psiquiatria ....................................... 65

2.1.1 Entre os estandes ................................................................................................................ 70

2.1.2 Trabalho de campo em um campo dividido.......................................................................... 89

2.2 Fisicalismo, naturalismo e subjetividade na publicidade de psicofármacos .............. 96

2.2.1 Natureza antidepressiva (ansiolítica, antipsicótica...)............................................................ 99

2.3 Debates morais em torno da psicofarmacologia ....................................................... 122

Capítulo 3 - O cérebro para leigos: cérebro, neurônios e neurotransmissores na vida cotidiana................................................................................................................... 139

3.1 A neurociência amplia os seus círculos ..................................................................... 141

3.2 “Neurônios são umas bolinhas cheias de fios”: o cérebro para crianças ................. 153

3.2.1 Quando o cérebro rouba a cena: aplaudindo neurônios no teatro......................................... 164

3.3 O “cérebro nosso de cada dia”: divulgação científica da “neurociência do cotidiano” ......................................................................................................................................... 180

3.3.1 Neurociência de “rede na varanda” .................................................................................... 184

3.3.2 A “auto-ajuda no seu ápice” .............................................................................................. 200

3.3.3Um “órgão fantástico” ....................................................................................................... 210

Capítulo 4 - Fragmentos de um órgão midiático: o cérebro no jornalismo, na publicidade e no cinema ........................................................................................... 219

4.1 Notícias do cérebro ..................................................................................................222

4.2 O cerebralismo em peças publicitárias .....................................................................230

4.3 Avatar: neurônios e sinapses em um blockbuster ....................................................239

4.4 O cérebro como sujeito do capitalismo ....................................................................248

Considerações finais ................................................................................................ 256

Referências bibliográficas ........................................................................................ 268

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1

Introdução

O cérebro é um órgão fundamental na representação de pessoa que atravessa a

cultura ocidental moderna. Ele possui uma posição hierarquicamente superior a outros

órgãos do corpo humano, e, de certa forma, ao corpo ele mesmo. Além disso, a noção

de mente aparece, em um certo conjunto de representações, como um epifenômeno do

cérebro, uma conseqüência da atividade neuronal.

Uma idéia bastante divulgada hoje é a de que cada indivíduo se confundiria com

o seu cérebro. Aquilo que somos e sentimos seria um produto direto dessa complexa

rede de aproximadamente 100 bilhões de neurônios. Essa idéia vem se popularizando

entre o público leigo, por meio de diversas formas de difusão dos saberes sobre o

cérebro: a divulgação de neurociência propriamente dita, o marketing dos laboratórios

farmacêuticos que produzem psicofármacos e também através de representações

espontâneas em veículos de comunicação de massa. Esta tese investiga o fenômeno

desta difusão neurocientífica em sentido amplo, buscando apreender a concepção de

pessoa que emana destes discursos.

O cérebro tornou-se uma espécie de ‘ator social’, ou ao menos isso está muito

mais evidente nos últimos anos. As neurociências, afirma Alain Ehrenberg (2008:80),

contribuíram para mudar o estatuto do cérebro, no sentido em que ele não é mais somente considerado em sua dimensão médica, mas também adquiriu um valor social que não existia até pouco tempo na vida cotidiana, na vida política e nas referências culturais.

Este valor social do cérebro, conforme veremos, não é um fenômeno recente.

Mas é fato que há algo de novo no ar: uma onda de ‘ufanismo’ neurocientífico que

carrega consigo uma concepção objetiva de pessoa, movida, ao menos em parte, pelo

combustível de novas tecnologias de visualização do cérebro, e hipóteses a respeito do

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que essas imagens podem dizer acerca da subjetividade humana. Assim como o resto do

corpo, o cérebro tornou-se mais ‘transparente’ em decorrência de novas técnicas, o que

tem possibilitado a divulgação da idéia de que se pode ‘ver’ um pensamento,

sentimentos, emoções e doenças mentais.

As páginas que se seguem falam de uma tensão entre idéias como cérebro e

mente. Se, um dia, estas duas palavras já se referiram a coisas diferentes, hoje, ao menos

no que se refere ao material aqui analisado, temos duas idéias que estão sobrepostas e

hierarquizadas. De certa forma, temos um novo cogito, não mais com a forma penso,

logo existo, mas sim uma espécie de existo porque tenho um cérebro que pensa.

No cérebro, o material e imaterial, o físico e o moral, parecem ter um ponto de

encontro. Parte da biologia do corpo humano, cérebro-carne, mas também um órgão

historicamente relacionado à esfera do transcendente, que pode ser visto como sede da

alma, do espírito, daquilo que nos confere individualidade e singularidade. Mas as

distâncias entre carne e espírito ou cérebro e mente hoje são outras. Cada vez mais, a

ciência propõe possibilidades que funcionam como pontes entre esses pares, uma vez

vistos como ocupando polaridades distintas; refiro-me a termos como “moderna

biologia do espírito”, como nos fala Changeux (1985) a respeito das neurociências.

Um vocabulário relacionado às “novas ciências do cérebro” – neurônios,

neurotransmissores, sinapses, serotonina, etc. – começa a fazer parte do acervo

semântico do qual o público leigo lança mão em seu cotidiano para falar dos mais

variados temas que dizem respeito ao comportamento e sentimentos humanos. Estamos

atravessando um processo de popularização desse tipo de saber, assim como já vivemos

uma popularização de saberes ligados aos conhecimentos ‘psi’, como inconsciente, ego,

ato falho, etc. Ecos de uma ‘cultura psi’ convivem hoje de forma complexa com um

discurso no qual o cérebro tem preeminência sobre a mente; ou melhor, a mente é um

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epifenômeno do cérebro, uma conseqüência direta da sua atividade química e elétrica.

Trata-se aqui de pensar o papel da difusão científica neste processo. Mas também

refletir sobre uma mudança mais ampla em termos de visão de mundo, a partir da qual

uma noção de pessoa centrada no cérebro começa a fazer sentido.

O vocabulário para falar da mente, do cérebro ou do corpo e de suas

perturbações (sejam elas físicas, mentais ou em tensas combinações) é cambiante, e

sempre parece escapar pelos dedos dos sistemas que pretendem enquadrá-las em

perspectivas universalistas. Esta percepção, no contexto de investigações em espaço

urbano, é evidente nas reflexões de Velho, quando o autor se pergunta:

... o que significa a frase “Estou deprimido” para diferentes segmentos da sociedade brasileira? A noção de depressão, embora não seja exclusiva, está muito vinculada a um tipo de camada média urbana relativamente intelectualizada e bastante “psicologizada”. Isso não significa, obviamente, que indivíduos de outras categorias sociais não fiquem deprimidos, mas sim que existem trajetórias e experiências sociais mais ou menos delimitadas socialmente que produzem universos que utilizam com mais freqüência ou elaboram certas expressões, frases, cujo sentido está fortemente vinculado e marcado por essas fronteiras sociológicas. Ou seja, a expressão estar deprimido pode não fazer sentido para certas categorias sociais que têm seus universos simbólicos e representações mais apoiados em outros tipos de linguagem e em outros domínios culturais. Já se alguém fala que está deprimido em um bar do Leblon há um entendimento básico imediato. (Velho, 1987, p. 21)

Em diálogo, eu poderia dizer ainda que a expressão “estar deprimido” pode

continuar fazendo sentido entre os estratos aos quais Velho está se referindo, mas ela

pode significar algo totalmente diferente em um novo momento histórico.

Preponderantemente, o autor está trabalhando com períodos de grande prestígio e

expansão da psicanálise no Brasil, especialmente nos contextos mais urbanizados”, o

que Duarte e Carvalho (2005) relacionam com “os efeitos da modernização

socioeconômica acelerada após a Segunda Grande Guerra e da modernização ideológica

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associável à difusão dos movimentos contraculturais”.1

Mas por que destacar estas reflexões a respeito de fronteiras culturais ou

temporais que marcariam uma ‘cultura psicologizada’? Minha idéia é assim abrir um

espaço de contraste com a expansão mais recente de discursos a respeito do cérebro –

não no sentido em que substitua de todo uma cultura ‘psi’, já que coexistem de uma

forma complexa, algumas vezes formando polaridades, outras vezes formando pares

hierárquicos, com um saber afirmando-se em patamar superior a outro. No mesmo bar,

hoje, ao se afirmar deprimido, uma pessoa pode acionar um vocabulário cerebralista

para explicar a sua condição, e neurônios e sinapses podem dividir a mesma mesa com

um vocabulário ‘psicologizado’.

Em uma curta entrevista à revista Veja, o fisiologista e neurocientista Erik

Kandel, que recebeu o prêmio Nobel de medicina em 2000, é questionado se “a

psicanálise está ameaçada pelas descobertas da neurociência”. Ora, por si só, em uma

revista de comunicação de massa, a pergunta já é sintomática, já que lança no ar a

tensão entre dois campos do saber; em sua resposta, ele afirma que

Não. Psicanalistas e psicoterapeutas podem até se beneficiar com isso, mas terão de se adaptar. Eles precisam se familiarizar com as novidades da neurociência. Já existem, por exemplo, estudiosos analisando imagens cerebrais de pessoas com distúrbios mentais, para detectar possíveis anormalidades e descobrir como elas são revertidas com a psicoterapia. As evidências, até agora, são muito estimulantes. Obsessão-compulsão, depressão, neuroses – com todos esses distúrbios já há estudos mostrando como a psicoterapia e a psicanálise conseguem reverter, em alguns casos, anomalias cerebrais. (...) Os estudos de neuroimagem mostram que esse é um método bastante eficiente para certos casos.2

A autoridade da neurociência, como um sistema que autoriza (ou não) e explica

1 A respeito da qual, aliás, existe importante produção na antropologia brasileira, ou ao menos

em diálogo com ela. Ver, por exemplo, Figueira, 1985. 2 Revista Veja, edição 2147, ano 43, n.2, como parte da reportagem “A conquista da memória”,

p.78-87.

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como operam algumas práticas terapêuticas psi, é evidente. “Neuroses” e “obsessão-

compulsão” são caracterizadas como “anomalias cerebrais”; em outro registro, ele

também usa a expressão “distúrbios mentais”. Afinal, trata-se de males da mente ou do

cérebro? A convivência tensa entre estes diferentes enfoques – e a própria discussão a

respeito de que talvez não sejam diferentes, de um certo ponto de vista – é um dos temas

que esta tese se propõe analisar.

As ‘ciências do cérebro’ ou ‘neurociências’ passam hoje por um momento

peculiar, de celebração do que já se teria atingido, de otimismo quanto às possibilidades

futuras e de grande exposição pública. Neurocientistas e psiquiatras de uma linha

biológica aparecem em espaços de referência na grande mídia, como as páginas

amarelas da revista Veja ou o programa Fantástico, na Rede Globo. Um ‘ufanismo

neurocientífico’ justifica-se com base em descobertas recentes, mas também baseado

em expectativas para o futuro, que trabalham com a noção de que a ciência avança de

forma incomensurável. E esta ‘boa nova’ – o quão nova seriam algumas questões

levantadas pela neurociência é outra das questões que serão aqui abordadas – deve ser

compartilhada com o público leigo, como afirma o neurocientista Jean-Pierre

Changeux:

A descoberta da sinapse e das suas funções lembra, pela amplitude das suas conseqüências, a do átomo ou do ácido desoxirribonucléico. Abre-se um novo mundo e parece oportuno alargar este campo do saber a um público mais vasto que o dos especialistas e, se possível, permitir que compartilhem do entusiasmo que anima os investigadores neste domínio. (Changeux, 1985, p.10)

Estaríamos na “era de ouro da neurociência”, e o projeto para o século XXI seria

encontrar uma “penicilina para a doença mental” (Andreasen, 2005); estaríamos recém-

saídos do que o Congresso americano designou a “década do cérebro” (os anos 90), mas

somente recém-entrando no que alguns chamam o “século do cérebro”. Todos estes

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períodos “do cérebro” e “da neurociência” parecem apontar para um novo capítulo do já

tão debatido fisicalismo que constitui um dos traços marcantes da cultura ocidental,

traço que foi exacerbado durante o século XX. Uma certa noção de pessoa está

informada hoje por um cerebralismo, uma visão de mundo que liga um indivíduo ao seu

cérebro e situa neste órgão o locus de nossa identidade pessoal. Entendo aqui a idéia de

um cerebralismo como uma face específica de um mais amplo fisicalismo, termo que

Duarte define da seguinte forma:

O fisicalismo, como teoria da pessoa, é uma revolução cosmológica (...) decorrente da separação radical entre corpo e espírito (expressa, por exemplo, na filosofia de Descartes) e graças à qual se passa a poder considerar a corporalidade humana como dotada de uma lógica própria, que deve ser descoberta e que tem implicações imediatas sobre a condição humana. Na verdade, é a condição da corporalidade em si, como dimensão auto-explicativa do humano, que se pode chamar propriamente de fisicalismo. (Duarte, 1999:25)

É sobre esta noção de pessoa e sobre algumas de suas manifestações contemporâneas

que me debruço aqui.

Há algo de despótico na posição que o cérebro ocupa hoje. O cérebro surge

como um déspota que domina a nossa subjetividade, um órgão imperador que rege

estados de humor e define a nossa identidade. Falamos da química cerebral com certa

naturalidade, comentamos os efeitos dos neurotransmissores como se eles fossem

nossos velhos conhecidos; em suma, falamos uma espécie de “linguagem da

serotonina”, que parece ser hoje hegemônica entre o público leigo, da mesma forma que

um dia já falamos uma “linguagem psicanalítica”. Da insônia à inteligência, da

‘depressão’ à ‘ansiedade’ em suas várias manifestações, novas e velhas questões têm

etiologia, cura ou debate ligados ao cérebro e aos neurotransmissores. Para Healy, o

marketing dos laboratórios farmacêuticos tem uma influência central nessa mudança de

perspectiva:

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Sob a influência do marketing dos ISRS [inibidores seletivos da recaptação de serotonina], esta psicobalela (psycobabble) está rapidamente sendo substituída por uma biobalela (biobabble), que fala sobre níveis baixos de serotonina e coisas no gênero, de uma forma divorciada de qualquer quadro de referência científica (Healy 2004, p. 233).

Novas formas de objetividade e novas formas de subjetividade confundem-se em

um discurso que mescla cérebro e pessoa, imagens técnicas e sentimentos, razão e

emoção. O determinismo neurológico vem avançando a passos largos através de

diversos sistemas de difusão. Seja através da divulgação científica de neurociências

propriamente dita, seja através da incorporação de um discurso cerebralista, em um tom

casual, quase acidental, às mais diversas formas de comunicação publicitária e

jornalística. Com isso quero dizer que nem sempre os personagens cerebrais – o cérebro

ele mesmo, as sinapses, neurônios ou neurotransmissores – estão diretamente

mencionados nas manchetes de reportagens na grande mídia. O tema pode ser um

acidente aéreo, alimentação saudável, respiração, violência ou estilo de vida, e o cérebro

aparece como um mecanismo explicativo de algo que diga respeito ao comportamento

individual e social, mostrando-se como parte da cosmologia espontânea no pensamento

moderno, não apenas dos saberes científicos, mas com certeza em comunicação com

eles.

Minha fonte de informação no que diz respeito às ciências do cérebro tem o

formato de divulgação científica. Boa parte dos textos que serão utilizados tem o

objetivo de se comunicar com um público amplo. Isso me trouxe uma vantagem: uma

ciência que trabalha com uma matéria invisível à grande maioria das pessoas precisa

trabalhar com analogias se quiser se comunicar com os leigos. Ao fazer isso, a

neurociência precisa fazer escolhas, e é neste ponto que se torna um discurso ainda mais

produtivo para um antropólogo. É quando a ciência mostra mais radicalmente o seu

caráter social, uma forma de discurso totalmente embebida no universo do qual ela faz

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parte. Como representar a rede neuronal, seu sistema de comunicação e complexa

divisão de tarefas senão buscando matéria-prima na rede de símbolos que constitui uma

cultura específica? O cérebro tem por trás de si história e tempo, ciência e política,

analogias, metáforas e metonímias. No que diz respeito ao cérebro, neste sentido, o

material de campo é amplo, e pode ser encontrado em livros de divulgação científica, na

última revista semanal de grande circulação, assim como no recente block-buster

Avatar.

O foco etnográfico de meu trabalho são os mecanismos de difusão de saberes

sobre o cérebro, em várias frentes: (1) neurocientistas que publicam livros de

popularização científica para crianças e adultos, ou oferecem cursos, por exemplo, sobre

um tema como “a neurociência do cotidiano”; (2) ‘aparições’ constantes do cérebro,

neurônios e neurocientistas na mídia de massa; (3) e a publicidade de psicofármacos, o

discurso sobre o cérebro e suas doenças, que emana da chamada psiquiatria biológica e

da indústria farmacêutica. Optei por fazer maiores comentários a respeito de como se

organizou cada etapa do trabalho de campo nos capítulos pertinentes, já que se trata de

um campo heterogêneo.

O título da tese faz por merecer uma observação. Quando pensei que poderia ser

adequado, veio-me a impressão de um título pomposo, algo pretensioso e grandioso

demais. Afinal, o que se apresenta aqui é um esforço etnográfico localizado, ainda que

multi-localizado, que tenta construir uma interpretação de processos de difusão de

saberes sobre o cérebro. Mas o tom grandioso da expressão “nova ordem cerebral” não

se refere ao conteúdo ou a uma pretensão do meu trabalho, e sim à forma como a

neurociência se apresenta hoje, como um sistema ambicioso que pode dar conta de

tantas dimensões (possivelmente todas) de uma suposta ‘natureza humana’. Na

concepção nativa pela qual navego nos capítulos a seguir, divulga-se a idéia de que o

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cérebro seria uma ‘última fronteira’ do conhecimento sobre o corpo humano, uma

espécie de ‘bio-fronteira final’. Trata-se de um ufanismo para a frente, no sentido em

que celebra tanto os avanços já atingidos na pesquisa sobre o cérebro, quanto se anuncia

um porvir venturoso no qual este órgão não seja mais um mistério, mas sim uma

estrutura transparente à intervenção da ciência e mesmo dos seus proprietários.

Começo a colocar em prática este objetivo no capítulo 1, atravessado pela idéia

central de que o cérebro é encarado e apresentado hoje pelo discurso neurocientífico

como o órgão da pessoa, a estrutura biológica que nos define enquanto indivíduos. Mas

não se pode tomar esta idéia como verdade científica sem reflexão. A própria noção de

indivíduo é uma variação ideológica da noção de pessoa, entre outras possíveis. Ainda

que esta idéia esteja longe de ser recente na história da cultura ocidental moderna,

procuro demonstrar que diferentes olhares estavam sendo lançados para diferentes

cérebros, e isso atendo-me somente a idéias tão recentes quanto aquelas que surgem no

século XVIII. É neste capítulo ainda que introduzo algumas críticas à idéia do ‘cérebro

como pessoa’, e especialmente ao tom de boa nova que costuma ser utilizado nesta

formulação contemporânea das ciências que se ocupam do cérebro, englobadas pelo

termo ‘neurociência’.

O capítulo 2 centra atenção na difusão de saberes da psicofarmacologia. Se a

mente hoje é encarada, sob uma determinada perspectiva, como um epifenômeno do

cérebro, o mesmo pode ser dito das doenças mentais. Aqui e ali, a terminologia

‘doenças cerebrais’ começa a ser de uso mais comum para designar variantes de

transtornos como a depressão, a ansiedade e a esquizofrenia. O ponto de partida para o

capítulo é uma viagem ao Congresso Brasileiro de Psiquiatria, com foco etnográfico no

espaço ocupado pelos estandes da indústria farmacêutica. Foi uma forma de me

encontrar, ao vivo, em um espaço no qual se difunde a idéia de doenças do cérebro,

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lançando o olhar na direção de uma indústria cujos interesses comerciais passam (ou

dependem) da difusão de hipóteses cerebralistas das doenças mentais/cerebrais. As

estratégias de marketing dos estandes construídos no espaço de exposições do congresso

procuram mexer com a estimulação dos sentidos dos congressistas, construindo um

paralelo entre as sensações às quais estão ali expostos e os efeitos da química dos

medicamentos no cérebro dos seus pacientes. Ainda neste capítulo, aventuro-me pela

massa de material publicitário ao qual tive acesso neste evento, peças que divulgam para

o público leigo e para médicos saberes sobre as doenças e sobre as moléculas, nesta

ordem. A análise parte da idéia de que um discurso fisicalista/cerebralista faz-se

acompanhar de imagens e ilustrações que insistem no aspecto físico-moral deste

universo; como explicar, por exemplo, as freqüentes ilustrações de imagens da natureza

(praias, campos, etc.) convivendo com um texto focado em neurotransmissores?

O tema do capítulo 3 é a popularização da neurociência propriamente dita, um

outro esforço etnográfico central da tese. Como se cria um público mais amplo

interessado em uma área de saber cuja fama remete a um conhecimento altamente

esotérico e especializado? Especialmente na última década, dois neurocientistas

brasileiros se propuseram a trabalhar com divulgação/popularização neurocientífica, em

paralelo a seus trabalhos com hard-science, ou mesmo, por algum tempo, dedicando-se

a isso. Seguir estes esforços de popularização me obrigou a um desenho etnográfico

peculiar, que passa por uma coleção de livros infantis – e uma peça de teatro neles

baseada –, livros sobre curiosidades a respeito da relação entre cérebro e a vida

cotidiana, um curso para o público leigo e um quadro no programa Fantástico, da Rede

Globo de Televisão. Ao avançar sobre a vida cotidiana, ganhar um tom de auto-ajuda, e

mesmo passar a ilustrar peças publicitárias, a neurociência torna-se mais pop e alguns

neurocientistas ganham aura de celebridades, figuras públicas. Em diálogo com autores

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como Ludwig Fleck e Joseph Dumit, discuto aqui a forma e conteúdo deste esforço de

divulgação, cristalizado no trabalho destes neurocientistas.

O capítulo 4 procura organizar idéias em torno de um material de campo de

característica mais fragmentar do que o utilizado nos capítulos anteriores. Com o passar

do tempo, acumulei recortes de revistas, peças publicitárias, material de internet, notas

sobre filmes e programas de televisão que, de alguma forma, ajudam a disseminar a

força simbólica do cérebro e a autoridade da neurociência. Este material é motivo para

uma comparação entre o que se divulga nos meios de comunicação de massa como um

cérebro ideal e o indivíduo adequado ao nosso atual estado do ‘espírito do capitalismo’.

Por último, observo que tentei evitar a construção de um ‘capítulo teórico’, antes

de deixar falar a etnografia. Na medida do possível, procurei fazer com que teoria e

campo dialogassem em todos os capítulos. As páginas a seguir vão dizer se consegui

colocar este objetivo em prática.

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Capítulo 1 - Uma pessoa e cem bilhões de neurônios

1.1 O cérebro como órgão pessoal

A maioria das interrogações representativas do problema da identidade pessoal não são inicialmente aquelas do filósofo profissional, mas aquelas do homem da rua que se interroga, muitas vezes de forma confusa, sobre o que ela é. “Quem sou eu?”, “o que é o eu?”, “por que é que eu sou o mesmo a despeito das diferenças morfológicas, psicológicas e contextuais?”, “o que é que faz com que um único e mesmo homem exista sucessivamente como um conceptus, um embrião, um feto, um bebê, uma criança, um adolescente e um idoso?”, “qual é a relação entre o meu corpo e eu?”, “eu tenho um cérebro ou sou meu cérebro?”... Stephane Ferret, Le philosophe et son scalpel, 1993, pp. 19-20.3

Uma hierarquia tem se consolidado nas apresentações científicas a respeito dos

órgãos do corpo humano. Cada vez mais, o cérebro, cuja possibilidade de transplante

ainda soa como ficção científica, é visto como o órgão pessoal por excelência, aquele

que de fato define e carrega identidades individuais, em comparação com outros que

seriam essenciais para a vida humana, mas transplantáveis e intercambiáveis. É comum,

como pretendo logo demonstrar, encontrar variações dessa concepção naturalista e

3 Trata-se de uma tradução livre. Sempre que for este o caso, vou inserir o texto original em nota

de rodapé. “La plupart des interrogations représentatives de problème de l’identité personnelle ne sont pas d’abord celles du philosophe professionnel, mais de l’homme de la rue qui s’interroge, le plus souvent confusément, sur ce qu’il est. “Qui suis-je?”, “qu’est-ce que le moi?”, porquoi suis-je encore le même en depit des différences morphologiques, psychologiques et contextuelles?”, “qu’est-ce qui fait qu’un seul et même homme existe successivement comme un conceptus, un embryon, un foetus, un bébé, um enfant, un adolescent, un adulte, um veillard?”, quelle est la relation entre mon corps e moi?”, “ai-je un cerveau ou suis-je mon cerveau?””...

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cerebral de pessoa em textos de neurociência4 – não apenas naqueles de circulação inter-

pares, publicados em periódicos científicos especializados ou mesmo livros-texto para

estudantes (que não fazem parte da minha etnografia), mas também em material que se

propõe a comunicar com um público não iniciado nos ramos da ciência que se ocupam

do cérebro. Neste capítulo, assim como nos seguintes, minha principal fonte etnográfica

é do segundo tipo, aquela que tem como objetivo declarado atingir um público leigo,

adaptando tanto a forma quanto o conteúdo da mensagem para esse fim. Foi

mergulhando nas produções de neurocientistas voltadas para um público amplo que

encontrei repetidas evidências da noção, hoje muito em voga, do cérebro como órgão

pessoal e do cérebro como pessoa.

Nessa particular concepção de pessoa, receba-se um coração, rim, fígado ou

córneas que já foram parte de outro corpo, não pairam dúvidas de que o receptor

continua a ser quem ele é. Mas o cérebro é um órgão-limite para a concepção ocidental

moderna de pessoa, um “limite somático” (cf. Ferret, 1993, p.12 e p.99), além do qual

cessamos de ser nós mesmos, seja para definir a identidade pessoal em vida, seja para

definir os limites entre vida e morte5. O cérebro – não a cabeça, nem a ‘mente’ ou a

4 Assim como em material de divulgação de psicofármacos, produzidos pela indústria

farmacêutica, como veremos no capítulo 2. 5 Refiro-me ao conceito, no qual não pretendo me demorar durante o texto, de “morte cerebral”

ou “morte encefálica”. Trata-se, segundo Macedo (2008), de um conceito relativamente recente, já que o primeiro protocolo para definir os critérios desta nova morte seria de 1968. A mesma autora, em sua etnografia entre os profissionais envolvidos nos processos em torno da definição deste tipo de morte, explica que “a morte encefálica ocorre quando o encéfalo não possui nenhuma atividade orgânica, perdendo assim a capacidade de funcionar como um centro integrador das demais funções do corpo” (ibidem, p.2). Atente-se para o lugar que o órgão possui já nesta definição, o de “centro integrador”, uma espécie de central de comando do corpo.

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‘alma’, mas o órgão físico ele mesmo6 –, neste contexto cultural, é muitas vezes

sinônimo de indivíduo.

A atribuição de uma importância central, de emoções ou de características

morais a este ou aquele órgão do corpo humano não é uma novidade. Ainda hoje o

coração tem um lugar de destaque no imaginário ocidental, e por vezes surge em

contraste com o cérebro, representando ambos, respectivamente, um órgão relacionado

com as emoções e outro com a razão. Mesmo um “cerebrocentrismo” não é uma

invenção recente, remetendo, em uma primeira parada, a esforços de localização

cerebral (de ordem física e moral) que tiveram grande aceitação nos séculos XVIII e

XIX, mesmo entre o público leigo, ainda que, em algumas de suas versões, tenham

caído em descrédito posteriormente.

O cérebro, por assim dizer, ganhou vida própria, um órgão ao qual se faz

referência na terceira pessoa. Ora, alguém poderia argumentar que é assim também que

nos referimos aos nossos rins. Mas não se atribui aos rins a sede da nossa personalidade,

como hoje a atribuímos ao cérebro (cf. Greenfield, 1997), tampouco o controle da nossa

racionalidade e das nossas emoções, de nossos reflexos e crenças, da criatividade, da

6 Variações desta ideia podem ser encontradas tanto no campo da filosofia quanto no da

literatura. Mas ainda não se trata de pensar no cérebro em si, mas sim na ‘alma’ ou na ‘cabeça’. Para o primeiro caso, ver o experimento de pensamento apresentado por John Locke em seu Ensaio sobre o entendimento humano (1690), imaginando qual seria o resultado se a alma de um príncipe passasse a ocupar o corpo de um sapateiro. Thomas Mann (2000 [1940]), a partir de um mito indiano, imaginou uma troca de cabeças entre dois amigos envolvidos em um triângulo amoroso com uma mulher. A preeminência da ‘cabeça’ sobre o corpo fica evidente quando os dois sujeitos resultantes da troca passam a exibir os hábitos da cabeça que recebe o corpo, e não ao contrário, como se vê nesta passagem: “O que nesse pormenor ficava cabalmente demonstrado era a importância decisiva, indubitável, da cabeça para a personalidade de um ser humano aos olhos de toda a gente. Procure imaginar que seu mano, seu filho ou um concidadão qualquer entre pela porta, exibindo sobre os ombros a bem conhecida cabeça, e veja se, mesmo que haja algo desusado no resto de suas pessoas, pode-se alimentar a menor dúvida quanto à identidade real desses homens!” (p.88).

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memória e da inteligência.7 Nós não somos os nossos rins, ainda que qualquer afecção,

em qualquer órgão humano, possa estar cercada de questões de ordem moral, e não

somente física8. Tampouco se encontra alguma representação que relacione um fígado a

7 Ao menos não dentro do escopo da lógica biomédica, sistema hegemônico, ainda que não

exclusivo, na cultura ocidental moderna. Já em termos comparativos, diferenças radicais saltam aos olhos, mesmo no que diz respeito à anatomia do corpo humano. Ver, a este respeito, Kuriyama (1999), em um trabalho sobre as divergências entre as medicinas grega e chinesa. Ele coloca lado a lado uma imagem produzida por Vesalius (1543) e outra produzida por Hua Shou (1341), possibilitando uma comparação entre diferentes ‘anatomias’ do corpo humano. O primeiro destaca a estrutura muscular, enquanto o segundo baseia-se nos pontos relacionados à acupuntura: “Em Hua Shou perdemos o detalhe muscular do homem vesaliano; e na verdade os médicos chineses não dispunham sequer de uma palavra específica para ‘músculo’. A muscularidade foi uma preocupação peculiar ao Ocidente. Por outro lado, os meridianos (tracts) e pontos da acupuntura escapavam completamente à visão ocidental da realidade. Assim, quando os europeus no seiscentos e do setecentos começaram a estudar os ensinamentos médicos chineses, as descrições do corpo que encontraram pareceram-lhes ‘fantásticas’ e ‘absurdas’, como lendas de uma terra imaginária” (p.8).

8 Em uma releitura, percebi que este exemplo não era casual, e guardava algo de pessoal. Durante a confecção da tese, tive que me submeter a intervenções cirúrgicas nos rins para corrigir problemas congênitos e, posteriormente, tratar cálculos. Como resultado, as pessoas passam a me perguntar pela saúde daquele órgão como se perguntassem,é claro, pela minha própria. Resolvido o processo, ainda assim, eu ficava atento a qualquer dor que surgia naquela região, preocupado com alguma nova manifestação. Passei a ouvir histórias sobre os rins, como, por exemplo, que eles seriam a sede do medo para a medicina chinesa tradicional, o que nunca confirmei. Após a primeira cirurgia, cometi o erro de assistir ao vídeo que me foi entregue pela equipe médica, no qual estava gravada a parte principal do processo. Após uma hora e quarenta minutos – mais ou menos o tempo de um longa metragem – assistindo ao meu próprio interior sendo corrigido, fui tomado por uma inédita sensação que eu pudesse talvez caracterizar como de ‘ansiedade’, sem pretender que isso se aproxime de qualquer categoria nosológica oficial. Mas algo foi ali somatizado, como se os rins também pudessem servir à operação simbólica que liga partes ao todo.

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cada indivíduo, ainda que isso seja um fato empírico.9

Por sua vez, no que diz respeito ao cérebro, é bastante evidente uma dinâmica

que permite tomar a parte pelo todo. Essa, ao menos, é a ideia que vemos se repetir em

discursos da neurociência contemporânea, e mesmo em saberes sobre o cérebro que

antecedem em muito essa recente formulação, que já pertence ao século XX. Um

neurocientista convidado a participar de um debate sobre o individualismo pode

justificar a sua presença com a afirmação de que “a cada cérebro, corresponde um e um

único indivíduo” (Percheron, 1987, p.95). Essa mesma equivalência pode ainda ser

explicitada em uma fórmula, o que confere à ideia uma aura de regra lógica acerca da

identidade pessoal, que ademais envolva necessariamente o conceito de cérebro: “uma

pessoa P é idêntica a uma pessoa P* se e somente se P e P* são dotadas de um só e o

mesmo cérebro funcional” (Ferret, 1993, p.79).

Tal concepção de pessoa vem constantemente atravessando, em ambas as

direções, a ponte pela qual se comunicam os discursos científico e leigo. Por um lado, é

ao discurso científico que cabe (no sentido em que a ciência detém esta autoridade no

Ocidente) produzir novas verdades sobre a ‘natureza humana’, hoje fortemente

relacionada ao funcionamento do cérebro, assim como difundir tais ideias, que

9 Refiro-me a um momento contemporâneo no qual o cérebro ocupa um lugar central na

concepção fisicalista de pessoa. Mas é possível encontrar, especialmente no universo da ficção, outros órgãos ou membros que respondem por um todo físico e moral. Le Breton (1995) entende assim o romance de Maurice Renard, Les mains d’Orlac, de 1920, que teve uma transposição para o cinema já em 1924, dirigida por Robert Wiene. No romance como no filme, um pianista chamado Orlac tem suas mãos decepadas em um trágico acidente, e recebe em substituição um implante das mãos de um suposto assassino recentemente guilhotinado. Mas estas novas mãos parecem trazer consigo uma nova personalidade para o brilhante pianista, que passa a produzir uma música medíocre e se nega a tocar em sua mulher. Quando assassinatos começar a ocorrer em torno de si, inclusive o de seu próprio pai, Orlac cogita a ideia de que ele teria se tornado o próprio assassino de quem recebeu as mãos. Ao final, desvela-se que o pianista era vítima de uma trama com o objetivo de chantageá-lo, mas, a essa altura, afirma Le Breton, “estamos totalmente dentro do imaginário da identidade singular dos órgãos, da metamorfose da personalidade que se seguiu ao implante (...). O romancista consegue jogar habilmente com o fantasma do destino inerente a certos órgãos simbolicamente significativos (aqui as mãos, ali o coração, o cérebro, etc.), e suspeitos de transmitir as virtudes ou os defeitos do homem a quem eles foram arrancados” (id., p. 55-56).

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consistem em um modelo de pessoa, entre o público leigo. Por outro, há que se levar em

conta que o público amplo não é ‘estranho ao cérebro’, no sentido em que não é recente

a circulação de saberes sobre este órgão, cuja centralidade em nosso corpo como um

centro organizador já atravessa há muito uma cosmologia espontânea na cultura

ocidental moderna.

A noção de que “somos nosso cérebro” dá título a uma peça de teatro encenada

na Argentina10, baseada em textos de um psiquiatra, cujo primeiro diálogo coloca em

cena a fórmula lógica acima mencionada:

(O primeiro bloco de diálogo se passa em um consultório médico; as cenas são projetadas em uma tela atrás dos atores que já estão no palco.) Hernán – Su hígado ya no funciona. Si lo reemplazamos por otro, usted podrá seguir viviendo. ¿Acepta? Susana – Acepto. Hernán – Su corazón no está trabajando bien. Si lo reemplazamos por otro, usted podrá seguir viviendo. ¿Acepta? Susana – Acepto. Hernán – Su cerebro tiene dificultades. Si lo reemplazamos por otro, usted podrá seguir viviendo. ¿Acepta? Susana – ... Hernán –¿Acepta? (No palco, comentando a cena que se passou.) Susana – Qué mal tenía él pelo ese día. Rosario –¿Vos aceptarías? Susana – ... hay días que sí. Rosario – Yo no, no quiero dejar de ser yo justo ahora que me conozco un poco más.

Abrir mão de seu próprio cérebro, nesta cena de ficção, é abandonar a si mesmo,

“deixar de ser eu”. O órgão que se vai é a pessoa, que deixaria de ser ela mesma;

consequentemente, o que se receberia é um outro indivíduo, que passaria a ocupar

10 Teve sua estreia em julho de 2003, no Centro Cultural Ricardo Rojas, em Buenos Aires. A

peça está baseada em textos do psiquiatra Sergio Strejilevich, e faz parte de uma trilogia cujos próximos tópicos seriam a genética e a teoria do caos. A intenção é criar, assim se afirma em uma apresentação não assinada, “espetáculos de divulgação científica concebendo-o a partir de uma sensibilidade artística” (p.13). O livro com o texto da peça foi-me presenteado pelo amigo Nicolas Viotti, a quem agradeço.

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aquele corpo. Neste palco, a pessoa não é exatamente definida por um corpo indiviso,

visto que, em contraste com o cérebro, o trânsito de alguns de seus órgãos é aceito sem

maiores problemas; trata-se, sim, de um cérebro individual. Ao mesmo tempo em que se

divulga uma concepção cerebralista de pessoa, quando uma das personagens afirma que

não gostaria de perder o seu cérebro “justo agora que se conhece um pouco mais”, algo

aponta para uma ‘interioridade psicológica’ que se desvenda no decorrer do tempo

através de um processo de autoconhecimento, e mesmo para alguma noção de razão

desprendida; afinal, que seria este “yo” que se conhece um pouco mais?

De alguma maneira, a cena é bilíngue, no sentido em que conjuga a ideia do

‘cérebro como pessoa’ com uma noção de conhecimento de si que me parece remeter ao

‘mental’, como uma instância de outra ordem relativamente ao aparato biológico. Isso

pode soar ambíguo em um primeiro momento; mas logo veremos que esta habilidade

bilíngue é pretendida pelo discurso neurocientífico, que tem como objetivo ultrapassar

os limites entre corpo e mente, sujeitando ambos a um monismo cerebral.

O cérebro tornou-se uma personagem central para a nossa definição de

identidade pessoal, de sujeito. Da neurociência à filosofia, da medicina à antropologia,

especialistas têm se esmerado em comentar o lugar do cérebro, hoje, em relação ao

corpo e à cultura, em discussões – diretas ou indiretas, já que nem sempre temos a

presença de interlocutores – nas quais tensões são mais comuns do que concordâncias.

Os debates apaixonados que se multiplicam sobre o seu funcionamento, funções e

doenças são sinal desse lugar especial e controverso do cérebro. O adjetivo apaixonados

já avança aqui a ideia de que tais discursos não são ideologicamente neutros – e isso

inclui, é claro, o meu próprio. Muito pelo contrário, ideias relacionadas ao cérebro estão

em relação ou em tensão com questões de ordem política, religiosa e econômica. Para o

cérebro, tido como o sítio biológico da mente e daquilo que nos define como indivíduos,

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vale especialmente o que Le Breton (2005, p.56) afirma valer para todas as outras

unidades distintas do corpo: “Não há inocência dos órgãos no imaginário ocidental, a

parte vale pelo todo físico e moral.”.

Ao analisar discursos da ciência sobre o cérebro, temos um atalho

particularmente rico para aceder à noção de ‘pessoa’ que faz parte de uma determinada

visão de mundo. Como afirmaram Russo e Ponciano, a propósito deste tema, “examinar

as novas teorias sobre a pessoa produzidas no âmbito da neurociência significa

examinar uma nova forma de compreender/interpretar a pessoa que, ao mesmo tempo,

indica novos modos de construção de si” (2002, p.349). Mas este é um ponto de vista

antropológico. Um neurocientista – ou seja, um de meus discursos nativos – poderia

modificar a frase acima, invertendo a ideia de que possamos depreender uma noção de

pessoa analisando os discursos da neurociência sobre o cérebro, e afirmando justamente

que tal noção é um produto deste órgão, gerada e sustentada por ele, que caberia a uma

ciência do cérebro desvendar:

Nos nossos dias, sabemos que é o nosso cérebro o que sustenta, gere e origina o nosso sentido de eu, de pessoalidade, o nosso sentido dos outros e a nossa humanidade. O cérebro é um órgão complexo, como o coração, os rins, e o fígado. Mas quando pensamos nesses órgãos, não nos tornamos românticos ou nos preocupamos com eles como entidades encerradas em si próprias. (Gazzaniga, 2005, p.31)11

Para Gazzaniga – em um bom exemplo da perspectiva da neurociência –, não se

trata de um ramo científico que produz em seu discurso uma concepção de pessoa. É o

cérebro quem produz e sustenta o que chamamos de personalidade, e gera um sentido de

self; no limite, este é o órgão que produz a nossa concepção de pessoa; a neurociência

desvendaria, tão-somente, os mecanismos por trás desse processo.

11 “In our era, we know that it is our brain that sustains, manages and generates our sense of self,

of personhood, our sense of others and our humanness. The brain is a complex organ, like the heart, kidneys, and liver. But when we think of those organs, we don’t get romantic or concerned about them as entities unto themselves”.

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O cérebro tem um lugar peculiar em discursos contemporâneos sobre o corpo

humano. Com estatuto de sujeito, o cérebro tornou-se um órgão inevitável,

incontornável, tema de debates que podemos chamar de científico-morais, fazendo um

paralelo com a categoria físico-moral, como usada em Duarte (1986) para designar

perturbações relacionadas a uma totalidade da pessoa, que tem consequências para além

da sua manifestação no corpo. Alguém poderia dizer já agora que qualquer tema

relacionado ao corpo humano – sejam as suas doenças, seja o seu funcionamento

considerado normal – é, em algum nível, físico-moral, assim como todo debate e fazer

científicos seriam também “guerra e discurso”. Mas digamos que algumas querelas

científicas em torno do corpo humano são mais morais do que outras, expondo essa

tensão de forma mais evidente – vide não apenas aquelas que dizem respeito ao cérebro,

mas também as discussões sobre células-tronco, aborto e manipulação genética, que

trazem para a cena pública limites (ou o desmonte dos limites) entre vida e não-vida,

natureza e cultura, herdado e adquirido.

Em debates que dizem respeito ao cérebro estão em jogo alguns dos valores

centrais à cosmologia que atravessa a cultura ocidental moderna: autonomia, liberdade,

razão, autenticidade e livre-arbítrio. Possivelmente seja esta a razão de “nos tornamos

românticos” quando o assunto é o cérebro. Um órgão que ocupa posição hegemônica

não é um órgão como outro qualquer; ele está em posição hierarquicamente superior a

outros do corpo humano, à noção de mente – vista pela neurociência contemporânea

como um epifenômeno do cérebro – e ao corpo ele mesmo, no sentido em que pode

compor uma nova e peculiar versão dualista, na forma corpo/cérebro, que parece

substituir-se à diluída versão corpo/mente.

A ideia do cérebro como pessoa é repetida em formatos variados em livros de

divulgação de importantes neurocientistas, os quais visam os seus pares especialistas, e

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também procuram ampliar o número de curiosos a respeito do funcionamento do

cérebro12. Não se trata de uma interpretação forçada, mas de uma ideia explicitada. Para

a neurocientista e psiquiatra Nancy Andreasen,

O cérebro é a essência daquilo que nos define como seres humanos. Compreender a sua estrutura e o seu funcionamento é compreender a nós mesmos. O cérebro saudável é um órgão complexo, milagroso e engenhosamente criado. Ele nos permite realizar as maravilhas da música, da arte, da ciência, da arquitetura, da engenharia, da organização política e da estrutura econômica. Cada um de nós foi dotado de um cérebro singular, com capacidades específicas que podemos aumentar pela aprendizagem e pelo trabalho produtivo ou desperdiçar pela inatividade intelectual e por hábitos de vida que não sejam saudáveis. Podemos usar os nossos cérebros para finalidades boas, como construir pontes ou curar doenças, ou podemos usá-los para causar mal ou destruir os outros de muitas formas inovadoras. (Andreasen, 2005, p.43)

O modelo do indivíduo autônomo e singular é rebatido sobre o cérebro, que vira

um agente que “nos permite”, no limite, construir um certo modelo de civilização.

Nesse sentido, ainda que o discurso da neurociência esteja embasado numa crítica ao

dualismo cartesiano – uma das pedras de sustentação da noção de pessoa no ocidente –,

ela radicaliza, por outro lado, algumas características do sujeito moderno, em especial

os valores da singularidade, da autonomia e da possibilidade de constante construção de

si (Russo e Ponciano, 2002). Outro modelo que salta aos olhos é o do progresso

contínuo do sujeito, que pode melhorar o seu cérebro através dos ‘bons hábitos’ da

12 Como já afirmei, estas produções, tanto nacionais quanto estrangeiras, e heterogêneas quanto

ao grau de ‘cientificidade’ que imprimem ao seu discurso, constituem em grande parte o meu corpo de informantes.

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“aprendizagem” e do “trabalho produtivo”, em uma peculiar Bildung neurológica.13

Afinal, esses hábitos melhoram a nossa capacidade de realizá-los, através de uma

melhoria no próprio cérebro, que se mostra hoje aos olhos dos neurocientistas com

acesso privilegiado a este interior como um órgão plástico, cujas redes neuronais estão

em constante modificação. O acesso à ‘verdadeira natureza’ do que “nos define como

seres humanos” dependeria, então, do conhecimento da estrutura e função cerebrais.

Logo nas primeiras páginas de um de seus livros com perfil de divulgação

científica, a neurocientista Susan Greenfield – que possui vários trabalhos de divulgação

de neurociência para um público amplo, impressos e na TV – é explícita no que diz

respeito à ideia que me serve como fio condutor desta sessão: ela compara o cérebro,

que seria um “órgão pessoal”, com outros órgãos do corpo humano, definidos como

impessoais:

A sua visão de mundo única e extremamente pessoal – a sua mente – dificilmente reside nas funções mecânicas do seu fígado, coração, ou pulmões. Conforme avança a tecnologia médica, esses órgãos vitais, mas impessoais, serão transplantados com cada vez mais facilidade e frequência. Devo admitir a minha tendenciosidade, pois trabalho diariamente sobre a química do cérebro. Ainda assim, é o cérebro, afinal, que, ao ser bombardeado por drogas, assaltado por desordens psiquiátricas e neurológicas e vítima de ferimentos craneanos, está na raiz de quaisquer mudanças de caráter, nas emoções, ou na consciência. Ali, por entre os liames de células invisíveis, impulsos elétricos e

13 Ortega (2008) chama atenção para o momento no qual Hans Castorp, o engenheiro que

protagoniza o romance A montanha mágica, de Thomas Mann, se defronta pela primeira vez com uma imagem de raio X do seu próprio corpo. Castorp fica maravilhado e, ao mesmo tempo, mais consciente da sua mortalidade após visualizar parte de seu esqueleto. Ortega vai ressaltar a transformação pela qual passa o personagem após este episódio: “A partir deste momento, ele deixa para trás a sua existência burguesa e dá início aos estudos científicos e filosóficos, transformando-se em um intelectual e cortando os laços com o mundo além dos confins do sanatório. Ele é invadido por uma vontade de saber sobre o corpo, que abarca desde o estudo da anatomofisiologia até o da metafísica, num processo que lembra o percurso descrito nos romances de formação (Bildungsroman) alemães, cujo modelo clássico é Os anos de aprendizagem de Wilhem Meister, de Goethe. Para Castorp, a autoformação intelectual está ligada à descoberta e ao conhecimento do corpo, o que poderíamos denominar de somatização do ideal clássico da Bildung, de Bildung fisiológica. O conhecimento do interior do corpo representa uma metáfora eficaz do conhecimento de si” (Ortega, 2008, p.128-29).

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moléculas que vão do fantástico intrincado das proteínas à assombrosa simplicidade dos gases, ali onde o tempo se conta em menos de um milésimo de segundo, de alguma maneira é gestada uma experiência única e subjetiva em cada um de nós – uma experiência da consciência. (Greenfield, 2000, p.1, grifo meu)14

A baronesa Susan Greenfield é também a apresentadora de uma série de TV

produzida pelo canal BBC, chamada Brain story15, na qual ela aborda tópicos como

religião, criatividade, memória e doenças neurológicas, sempre a partir do ponto de

vista de que o cérebro controla todas as nossas ações e emoções, definindo quem nós

somos. Na introdução ao primeiro episódio, enquanto ela passeia por ruas de Jerusalém,

em uma sequência entrecortada por imagens que mostram a diversidade religiosa que

marca aquele local, fica ainda mais evidente qual a posição e as promessas da

neurociência que são divulgadas contemporaneamente:

Na qualidade de neurocientista, a minha posição é a de que podemos explicar tudo sobre nós olhando lá dentro (looking inside). Estou certa de que tem de ser cérebro a fazer de nós quem somos. As nossas esperanças, os nossos medos, pensamentos e sonhos estão de algum modo escondidos dentro das nossas cabeças. Estou convencida de que não há um único aspecto das nossas vidas que não resida na massa pastosa das nossas células nervosas. Estou convencida de que um dia seremos capazes de interpretar até mesmo os nossos sentimentos

14 “... your unique, highly personal view of the world – your mind – hardly lies in the

mechanical workings of your liver, heart, or lungs. As medical technology marches forward, these vital yet impersonal organs will be transplanted with increasing ease and frequency. Working as I do every day on the chemistry of the brain, I have to admit some bias. Even so, it is the brain, after all, when assaulted by drugs, psychiatric and neurological disorders, and head injuries, that is primarily at the root of any changes in character, emotions, or consciousness. There, among the tangle of invisible cells, electrical impulses, and molecules ranging from the awesome intricacy of the proteins to the spooky simplicity of gases, down there where time counts to less than a thousandth of a second, somehow a unique, subjective experience is generated in each one of us – an experience of consciousness”.

15 Não pude descobrir se a série teve veiculação por algum canal brasileiro. A série foi ao ar pela primeira vez na Inglaterra no segundo semestre do ano 2000. O seu primeiro episódio, cuja apresentação reproduzi aqui em parte, foi projetado no Centro Cultural Casa da Ciência da UFRJ, por ocasião de um evento chamado “Paisagens Neuronais”, realizado nos dois primeiros meses de 2009. A principal atração eram fotografias ampliadas do universo microscópico de diversas partes do sistema nervoso, enviadas por laboratórios de neurociências ao redor do mundo, produzidas a partir de técnicas de coloração aplicadas aos neurônios e seus prolongamentos. Quanto ao filme, agradeço o convite de Gabriel Cid para comentá-lo com a plateia.

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espirituais mais intensos em termos das operações (workings) do cérebro. A pesquisa está finalmente nos aproximando disso. (Brain story, BBC, primeiro episódio)16

Apesar da “certeza” demonstrada quanto ao papel que o cérebro exerce na

definição de nossos medos, esperanças e pensamentos, e de a pesquisadora estar

“convencida” de que nenhum aspecto do comportamento humano escapa ao controle da

rede neuronal, esta introdução à série traz um tom de promessa futura, de uma boa nova

ainda não atingida pelas possibilidades científicas atuais. Ainda assim, insinua-se uma

noção de progresso científico contínuo, já que as pesquisas estariam “finalmente” se

aproximando desse objetivo. Trata-se de uma estrutura discursiva que anuncia um

possível futuro venturoso para as pesquisas que relacionam cérebro e subjetividade, em

busca de correlatos neurais para sentimentos, emoções e mesmo para os “mais intensos

sentimentos espirituais”.

A neurocientista afirma que podemos explicar qualquer coisa sobre nós mesmos

“olhando ali dentro”, procurando no cérebro os segredos da consciência e mesmo o

surgimento de um self. Mas, para demonstrar de forma pedagógica como a rede neural

se organiza, e como as células do cérebro se comunicam, é no mundo lá fora que ela vai

buscar referências de apoio:

Os cem bilhões de neurônios no cérebro humano adulto17 foi associado anteriormente ao número de árvores presentes na floresta tropical amazônica. Mas agora penso que uma metrópole pujante, como a cidade de Nova York, seria uma analogia melhor. Nova York pode ser dividida, grosso modo, em diferentes distritos, em seguida em diferentes zonas e bairros, e finalmente em blocos. Mas no interior de cada bloco há uma

16 “... as a neuroscientist, my view is that we can explain everything about ourselves by looking

inside. I’m sure it has to be the brain that makes us who we are – our hopes, our fears, our thoughts, our dreams are all somehow hidden away inside our heads. I’m convinced there isn’t a single aspect of our lives that doesn’t reside in the sludgy mass of our brain cells. I’m convinced that one day we will be able to interpret even our most intense spiritual feelings in terms of the workings of the brain. Research is finally bringing us closer”.

17 Note-se a animização do cérebro: o adjetivo ‘adulto’ qualifica ‘cérebro’, como se o cérebro fosse uma pessoa.

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atividade incessante, a um tempo restrita a esferas locais de influência e interagindo com níveis mais “altos” de vizinhança – zona, distrito e assim por diante. Poderíamos imaginar, talvez, que um apartamento num prédio de um bloco fosse como um neurônio. A constante atividade no interior de um edifício qualquer, com as pessoas se movendo inquietas ou lentamente, descansando, precipitando-se de um ambiente a outro e para fora em direção ao mundo mais amplo da rua e da própria cidade, seria similar aos elementos químicos, ou transmissores, que são usados como mensagens de uma célula nervosa à próxima. Os transmissores são usados para vencer o hiato, a sinapse, entre os neurônios. Primeiro, um neurônio gera um sinal elétrico que dura um milésimo de segundo, cuja amplitude pode ir de algo como sessenta mil a noventa mil avos de um volt: este é o potencial de ação, um bip elétrico que desce até ao final do neurônio em velocidades de até 155 quilômetros por hora. Quando ele atinge o final do neurônio, o impulso elétrico age como um gatilho para que o transmissor seja liberado. O transmissor rapidamente se espraia através da estreita sinapse entre as duas células, e se une – num aperto de mão molecular – a um elemento químico feito sob medida (receptor), embutido fora do neurônio-alvo. Esse aperto de mão molecular, talvez mais próximo a uma mão que se acomoda bem numa luva, inicia o passo final, a geração de um novo potencial de ação na célula-alvo. Este processo, transmissão neuronal, é o mecanismo mais bem conhecido através do qual células cerebrais se comunicam umas com as outras; é considerado a estrutura de base de praticamente todas as operações cerebrais. (Greenfield, 2000, p.7)18

Ela abandona a comparação com a floresta amazônica em nome de uma

comparação com o espaço construído. O cérebro, em sua imensidão neuronal, pode ser

18 “The 100 billion neurons in the adult human brain have been linked previously to the number

of trees currently in the Amazon rain forest. Yet I now think that a bustling metropolis, like New York City, would be a better analogy. New York City can be divided up on a gross scale into different boroughs, then into different districts and neighborhoods, and finally into blocks. But within each block there is an incessant activity both restricted to local spheres of influence as well as interaction with the “higher” levels of neighborhood – district, borough and so on. Any one room in a building on a block could, perhaps, be fancifully likened to a neuron. The constant activity within any building, with people darting, lingering, resting, and rushing between rooms and out into the wider world of the street and the city itself, would be similar to the chemichals, or transmitters, that are used as messengers from one brain cell to the next. Transmitters are used to the bridge the gap, the synapse, between neurons. First, one neuron generates an electrical signal lasting a thousandth of a second, and of one amplitude ranging, anywhere from some sixty thousandths to ninety thousandths of a volt: this is the action potential, an electrical bip that hurtles down to the end of the neuron at speeds up to 250 miles per hour. Once it reaches the end of the neuron, the electrical impulse acts as a trigger for the transmitter to be released. The transmitter then diffuses rapidly across the narrow synapse between the two cells, and joins in a molecular handshake with an appropriate custom-made chemical (receptor) embedded on the outside of the target neuron. This molecular handshake, perhaps more akin to a hand fitting in a glove, initiates the final step, the generation of a new action potential in the target cell. This process, synaptic transmission, is the best-known mechanism by which brain cells communicate with one another; it is regarded as the basic building of virtually all brain operations”.

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como a ‘natureza’, comparável a uma gigantesca floresta, mas é também possível traçar-

se um paralelo com um gigantismo gerado pelo engenho humano, com a aglomeração

de indivíduos que se relacionam no contexto de uma cidade. Não qualquer cidade: o

paralelo que se estabelece é com Nova Iorque, uma das metrópoles mais cosmopolitas

do mundo ocidental. Os contatos e a circulação dos indivíduos em uma grande

metrópole servem de símile para explicar como se dá o trânsito entre células, através do

pequeno vazio entre os neurônios chamado sinapse. Os neurônios não se tocam; trata-se

de um “aperto de mão molecular”, mas as duas unidades em comunicação vestem uma

luva, uma imagem para representar o sistema contíguo, mas não contínuo, como é

conhecido hoje o trânsito entre os neurônios.

Será inevitável – até pela possível fertilidade da reflexão – comparar textos

sobre o cérebro provenientes do campo da neurociência com obras centrais das ciências

sociais. A comparação feita por Greenfield entre a vida na metrópole e a estrutura

cerebral me remeteu de imediato à reflexão de Simmel (1995 [1903]) sobre as grandes

cidades e a vida do espírito. A cidade, em Simmel, tem efeitos algo danosos sobre a

‘vida do espírito’ e a ‘saúde dos nervos’. Nestes ambientes, há um excedente de

excitabilidade – causado por uma “mudança rápida e ininterrupta de impressões

interiores e exteriores” (p.578) – que gera nos indivíduos uma “intensificação da vida

nervosa” (p.577). Para se proteger, o habitante da grande cidade, coagido pelo excesso

de contatos, assume uma atitude de reserva, cria um “órgão protetor”, e passa a

responder ao mundo exterior com o entendimento, e não com a alma, deslocando a sua

reação para o “órgão psíquico menos sensível, que está o mais distante possível das

profundezas da personalidade” (p.578). O ponto a se reter é que nesse texto,

originalmente publicado em 1903, a estrutura de contatos da grande metrópole está em

oposição à saúde dos nervos, e fere a subjetividade individual, que busca no caráter

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blasé um espaço de proteção.

Já na apresentação de Greenfield, que relaciona a rede neural com a rede de

contatos e circulação na metrópole, a lógica se inverte, e o vocabulário muda

radicalmente. Um maior número de conexões e experiências é visto não como um risco

aos nervos, mas como essencial para o bom funcionamento do cérebro: “os efeitos da

experiência são os de modificar não tanto o número dos próprios neurônios mas, antes,

as conexões entre eles. Como uma generalização ampla, vimos que quanto mais

experiência, mais conexões” (Greenfield, 1997, p.183). A dinâmica de circulação e

contatos em uma cidade complexa estaria em estrutura especular com o funcionamento

dos neurônios, sinapses e neurotransmissores. A forma como hoje se representa a

‘natureza cerebral’ serve de modelo para a complexidade da metrópole, assim como esta

empresta a sua imagem para que uma neurocientista possa explicar como o órgão

funciona.

Olha-se para dentro – na verdade, para o cérebro – para entender a ‘natureza

humana’. Mas é necessário buscar no mundo lá fora metáforas para explicar o

funcionamento do órgão. No cérebro, como na cidade, mais e melhores conexões

recebem um sinal positivo. Esse pequeno desvio, explorando a relação que a autora

construiu entre cérebro e cidade, e o paralelo com o texto de Simmel, que ressalta os

riscos da grande metrópole para a saúde mental, são úteis para demonstrar o caráter

social e histórico de discursos sobre o cérebro, os quais servem como metáfora do seu

tempo.

Para a neurociência contemporânea, o cérebro é visto como a “fronteira final”

(Greenfield, 1997, p.3) no que diz respeito ao entendimento do ser humano. Neste órgão

que pesa cerca de um quilo e trezentos gramas estariam guardados os últimos mistérios

da nossa ‘natureza’. Para de fato vencer essa suposta última fronteira, as ciências que se

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ocupam do cérebro, agregadas pelo termo ‘neurociência’, teriam que ser bilíngues,

segundo Susan Greenfield, para dar conta não somente da fisiologia de um órgão, mas

da mecânica capaz de gerar o fenômeno da memória, dos sentimentos, da aprendizagem

e da consciência de si. “Da forma como vejo, ela afirma,

precisamos ser bilíngues. Com isso quero dizer que devemos investigar tanto a neurociência – as operações físicas do cérebro – quanto os fenômenos subjetivos do sentimento. Precisamos nos familiarizar com as questões em torno do estudo dos eventos tanto físicos quanto epifenomenais do cérebro se de fato queremos compreender ambos. (Greenfield, 2000, p.2)19

Ao estabelecer uma correlação direta entre os fenômenos físicos e

epifenomenais que acontecem no cérebro, ou seja, reduzindo a esfera do ‘mental’ ou

‘psicológico’ a uma consequência física da rede neuronal, dilui-se aquilo que

conhecemos como o dualismo mente/corpo, herança do pensamento cartesiano, em

nome de uma perspectiva cerebralista da pessoa. Se nós somos o nosso cérebro, todas as

capacidades humanas, para o bem e para o mal, estão relacionadas a este órgão, e não a

qualquer estrutura de caráter metafísico. A ideia de ‘mente’ mantém-se viva nessa

perspectiva, mas como um subproduto do cérebro, uma consequência da rede neural em

funcionamento. As duas palavras, então, podem ser usadas de forma intercambiável, o

que possibilita que, em um mesmo livro de divulgação de saberes da neurociência e da

psiquiatria, possam conviver duas ideias como as seguintes:

O cérebro humano é uma incrível obra de engenharia que nos permite processar bilhões de informações em um “computador vivo” compacto, poderoso e continuamente mutável, que carregamos sobre os ombros por toda a vida. Ele pesa pouco mais de um quilo, e cada um de nós recebe apenas um. Portanto, devemos entender os seus componentes, como ele funciona e como podemos cuidar bem dele – atualizando o seu software

19 “we need to be bilingual, by which I mean that we must investigate both the neuroscience –

the physical workings of the brain – and the subjective phenomena of feeling. We must develop a familiarity with the issues involved in the study of both the physical and the epiphenomenal events in the brain if we are truly to understand either”.

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de maneira contínua e mantendo o seu sistema funcionando perfeitamente com o mínimo possível de problemas e incompatibilidades. (Andreasen, 2005, p.43) As doenças mentais são uma condição que aflige as mentes, os cérebros e os espíritos de bilhões de pessoas em todo o mundo. (id., p.VIII)

Pode surpreender e confundir, a um primeiro olhar, a convivência de um

vocabulário radicalmente fisicalista, que fala em termos da informática, com um outro

que faz uso da ideia de “mentes” e “espíritos”. Ao mesmo tempo em que a autora afirma

que as doenças mentais “afetam o cérebro e seu produto, a mente” (p.17), ela pode

inverter a ordem de causalidade e afirmar, algumas páginas antes, que “as doenças

mentais são uma condição que aflige as mentes, os cérebros e os espíritos de bilhões de

pessoas em todo o mundo” (p. VIII).

Encontrei uma imagem, reproduzida a seguir, que considero bastante

significativa desta pretensão ‘bilíngue’ da neurociência:

Figura 1 – reprodução de parte da capa do livro “What makes us think?”, mostrando

uma suposta aplicação de tecnologias de neuroimagem à escultura ‘O pensador’, de

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Rodin.

Seja o que estiver pensando “o pensador”, este conteúdo é material e passível de ser

traduzido e interpretado a partir de imagens do cérebro que se pretendem objetivas,

produzidas por novas tecnologias de imageamento. A neurociência estaria próxima,

como parece ser a mensagem veiculada nesta imagem, de uma possível “moderna

biologia do espírito”, como afirma o neurocientista Jean-Pierre Changeux no prefácio ao

seu livro O homem neuronal.

O cérebro estaria, então, colado a (e seria determinante para) um determinado

modelo de pessoa, uma categoria de análise antropológica que autores como Mauss

(2003a) e Dumont (2000) demonstraram ser situacional – “flutuante”, afirma o

primeiro, uma “configuração ideológica”, afirma o segundo, da qual o individualismo

seria apenas uma variação. Este modelo de pessoa ao qual me referia seria justamente

aquele que, como afirma Duarte a propósito de suas reflexões sobre a categoria ‘nervos’

e o ‘sistema nervoso’, “se veio a conhecer como o ‘indivíduo’, uma totalidade indivisa,

dotada de um ‘sistema’ interior articulador de todas as partes e dimensões de sua

existência” (2010, p.2). Tal sistema interior parece ter-se deslocado da representação

mais abrangente do ‘sistema nervoso’ como um todo para o cérebro em especial; mas

continua valendo uma perspectiva ‘totalizante’, que Duarte definiu em trabalho recente

como uma “qualidade de eixo ou centro articulador da pessoa humana desempenhado

pelo sistema nervoso” (Duarte, 2010, p.4) e, antes, como uma

qualidade totalizadora básica que permite colocar o cérebro no ápice de uma hierarquia das funções internas dos organismos animais e o homem (com esse cérebro e esse sistema nervoso) no ápice de uma hierarquia evolutiva de organização e capacidade no quadro dos seres vivos. (...) o sistema nervoso é apresentado como o plano de mais alta articulação da pessoa, lugar de todos os fluxos necessários entre os centros de comando cerebrais e a periferia corporal, entre os órgãos de sentido e as redes sensoriais, garantindo a memória, a consciência,

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enfim, todas as chamadas qualidades “superiores”. Esse sistema é frequentemente apresentado nas obras gerais como homólogo ao dos “aparelhos” em que se divide as diversas funções vitais do organismo, embora hierarquicamente superior. Isso pressupõe a ideia de um órgão central, de uma rede de comunicação e de um fluxo qualquer entre o órgão e a rede. Quanto ao órgão central, não parece haver, há pelo menos um século, qualquer especulação que tenda a quebrar a hegemonia do cérebro. (...) Também quanto à rede, a representação de fibras, que se substitui no século XVIII à clássica imagem galênica dos tubos, tampouco parece contestável, embora complexificada com as modernas formulações neuronais. (Duarte, 1986, p.73/75)

A ideia do cérebro como “eixo” e “órgão central” para o funcionamento do

indivíduo não é, como já se pode divisar, nova. Mas esta antiga “hegemonia do cérebro”

pode ganhar novas roupagens, merecedoras de análise. Ainda que a hegemonia não seja

nova, renovam-se o vocabulário, as representações e a tecnologia nas quais ela se

baseia. O meu foco está voltado justamente para a difusão das “modernas formulações

neuronais”, para o novo formato que o cérebro passa a ganhar em nosso tempo, cujas

origens mais diretas remetem à virada do século XIX para o século XX; é neste

momento que o cérebro se torna mais molecular, com um novo vocabulário cujas

estrelas centrais são os neurônios, sinapses e neurotransmissores. Tais palavras, como

veremos, são de cunho recente, já que nascem no período citado. Na virada seguinte de

século, elas já fazem parte do acervo semântico do qual mesmo o público leigo lança

mão em seu cotidiano. Chamarei aqui de ‘cerebralismo’ a uma concepção de pessoa que

relaciona cérebro e indivíduo, que tem hoje ampla divulgação nos meios de

comunicação, para a qual contribuem representações científicas e também leigas, e que

conta com a autoridade da chamada ‘neurociência’.

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1.2 Uma antiga boa nova

Em 17 de julho de 1990, o então presidente dos EUA, George Bush, proclamou que se deviam fazer esforços para ‘aumentar a consciência pública dos benefícios a serem alcançados pela pesquisa do cérebro’. Estamos agora em meados da ‘Década do cérebro’. Um interesse geral pelo cérebro é oficial. Greenfield, 1997, p.320

Eventualmente, enquanto escrevo, faço uma pausa para um café expresso, na

esperança de que a cafeína me possibilite manter a atenção por mais tempo. Como em

várias outras situações semelhantes, momentos de descanso eram invadidos pelo meu

tema de pesquisa, já que o cérebro ou algum tema relacionado pareciam estar em todo

lugar em meu entorno. Ligasse eu a televisão, passasse por uma banca de revista ou

parasse para um café, o meu tema de pesquisa surgia, como se me lembrando para onde

eu deveria voltar.

Ao lado da mesa que ocupei, em uma cafeteria, havia um balcão com alguns

folhetos disponíveis para os clientes. Um deles, assinado pela Associação Brasileira das

Indústrias de Café (ABIC) e pelo Ministério da Agricultura, ressaltava as benesses do

consumo dessa bebida e explicava como ela atua. O café, afirmava-se, atuaria contra o

mau humor, porque

possui os ácidos clorogênicos, que após a torra formam substâncias que atuam no humor, alterando as endorfinas do cérebro. As quino-lactonas são formadas quando os grãos de café são torrados. E ainda influenciam no humor, aumentando a sensação gostosa de bem-estar, o que é muito importante. Afinal, isso ajuda a evitar a depressão, que pode até levar ao

20 “On July 17, 1990, the then president of the United States, George Bush, proclaimed that

every effort should be made to ‘enhance public awareness of the benefits to be derived from brain research’. We are currently in the middle of the ‘Decade of the Brain’. A general interest in the brain is official”.

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suicídio ou ao alcoolismo e às doenças do fígado provocadas por ele, como a cirrose.

Como fiz durante todo o período de campo, guardei este folheto entre outras

peças publicitárias e jornalísticas que faziam alguma menção ao cérebro, a maioria delas

encontradas mais por obra do acaso do que por um esforço sistemático e organizado de

trabalho de campo21. Deixei-a junto a outras duas peças de uma campanha publicitária

do laboratório farmacêutico GlaxoSmithKline para divulgar um produto chamado

Niquitin, uma “terapia de reposição de nicotina” indicada para quem deseja parar de

fumar. Em um folheto disponível em farmácias, explica-se o seu funcionamento, divido

em três etapas ilustradas:

1. Fumar aumenta o número de receptores do seu cérebro que se ativam com nicotina. 2. Se você interrompe o fornecimento de uma vez, eles [os receptores] enlouquecem e você sente os desagradáveis sintomas da falta de cigarro. 3. Niquitintm libera nicotina terapêutica de forma controlada no seu organismo, facilitando o processo de parar de fumar e ajudando a sua força de vontade. Com Niquitintm, você tem o dobro de chances de parar de fumar.

Na primeira ilustração, um cérebro aparece envolto pela fumaça que sai de um

cigarro, e os “receptores” – ilustrados como pequenos monstrinhos pretos, com olhos e

dentes pontiagudos brancos, algo antropomorfizados – parecem estar satisfeitos com a

presença da substância que os ativa. Na segunda, os receptores aparecem gritando (eles

“enlouquecem”) dentro da cabeça de uma mulher, supostamente sentindo a falta da

nicotina. A terceira aponta para a caixa do produto que controlaria estes sintomas

desagradáveis.

O vocabulário utilizado nas duas peças de divulgação é bastante contemporâneo,

baseado no funcionamento de neurotransmissores e receptores que operam no cérebro,

envolvidos em alguma espécie de mecanismo de bem-estar ou prazer: no caso do café,

21 Analiso parte desse material no capítulo 4.

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menciona-se o “humor” e o “bem-estar” da pessoa que o consome; no caso do tabaco,

ainda que se trate de um produto que ajuda a cortar um hábito tido como prejudicial à

saúde, os “receptores” do cérebro parecem muito satisfeitos, ao menos antes que lhes

seja retirada a nicotina. Ao lermos estes folhetos, é como se o conhecimento das

consequências que essas substâncias apresentam no cérebro de alguma forma

dependesse de descobertas muito recentes sobre a fisiologia cerebral. Mas a relação

entre o consumo de café e tabaco e as suas consequências no cérebro humano é

mencionada por Schivelbusch como estando em pauta muito antes das descobertas da

neurociência moderna:

Embora desde o século dezessete o tabaco e o café tenham sido considerados particularmente adequados para a pessoa intelectualmente ativa, os seus efeitos se encontram em contraste notável uns com os outros. O tabaco acalma, o café estimula. Normalmente, partiríamos do princípio de que essas qualidades contraditórias se cancelam mutuamente. Contudo, o oposto é verdade: elas se complementam. O alvo comum do uso de ambos era a reorientação do organismo humano para o primado do trabalho mental. O cérebro é a parte do corpo humano com a qual mais se preocupa a civilização burguesa. Unicamente ele foi desenvolvido, cultivado e cuidado nos séculos XVII e XVIII. O resto do corpo, um mal necessário que era, servia meramente como suporte para a cabeça. O café funcionava positivamente, despertando e alimentando o cérebro. O tabaco funcionava negativamente, acalmando o resto do corpo – ou seja, reduzindo a sua motoricidade (motoricity) a um mínimo –, como era necessário e desejável para a atividade mental, i.e., sedentária. (Schivelbusch, 1992:110) (grifos em itálico do autor; o sublinhado é meu)22

O autor cita ainda um tratado francês de 1700, Le bon usage du Tabac en

22 “Although since the seventeenth century tobacco and coffee had been considered particularly

suitable for the intellectually active, their effects stand in remarkable contrast to one another. Tobacco calms, coffee stimulates. Normally one would assume that these contradictory qualities cancel each other. Yet the opposite is true: they complement each other. The common goal both were used to achieve was the reorientation of the human organism to the primacy of mental labour. The brain is the part of the human body of the greatest concern to the bourgeois civilization. It alone was developed, cultivated, and cared for in the seventeenth and eighteenth centuries. The rest of the body, necessary evil that it was, merely served as a support for the head. Coffee and tobacco, each in its particular way, assisted this reorientation. Coffee functioned positively, arousing and nourishing the brain. Tobacco functioned negatively, calming the rest o the body – that is, reducing its motoricity to a minimum – as was necessary and desirable for mental, i.e., sedentary, activity.”

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Poudre [O bom uso do tabaco em pó], no qual se afirma que o tabaco “torna o cérebro e

os nervos mais secos e estáveis. Isso conduz a uma faculdade de julgamento sólida, a

uma mais clara e circunspecta faculdade de razão, e a uma maior constância da alma”

(id., p.103). No caso do tabaco, a diferença entre os ‘receptores ativados’ na propaganda

de um produto farmacêutico e os ‘nervos mais secos’ em um tratado na transição entre

os séculos XVII e XVIII é tão grande quanto a que existe entre um vocabulário ainda

devedor do sistema humoral (“cérebro e nervos mais secos”) e o léxico neurocientífico

atual. Aspectos positivos do consumo ficam de lado, o que pode ser atribuído à cruzada

antitabagista atual. Quanto à indicação de Schivelbusch a respeito das benesses do café

no século XVII e a relação da cafeína com o cérebro, elas permanecem de alguma forma

bastante atuais. No folheto publicitário publicado pela Associação Brasileira da

Indústria de Café, encontramos relação semelhante, ainda que o foco seja o prazer, e

não o trabalho, e agora com um vocabulário neuroquímico.

Ainda que os saberes contemporâneos sobre o cérebro tragam todo um novo

vocabulário para se referir aos efeitos do café e do tabaco, esta relação já estava

construída séculos antes. Ora, é claro que aquilo a que se chama ‘o cérebro’ em

períodos históricos tão distantes não é exatamente a mesma coisa. Mas o exemplo serve

para mostrar que o cérebro, já há muito, estava na ordem do dia. Antes que qualquer

exame moderno torne este órgão mais transparente ao escrutínio de cientistas e médicos

para que se possam analisar os efeitos de certas substâncias, já se tomava café com o

objetivo de torná-lo mais atento e apto para o trabalho.

Não pretendo, com essas observações, propor qualquer abordagem histórica

mais aprofundada sobre a relação entre o consumo de algumas substâncias e discursos

sobre o cérebro. Também não é minha intenção qualquer tom anticientificista; é fato que

maiores investimentos em ciências ligadas ao conhecimento do cérebro podem levar a

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novos caminhos e descobertas sobre a sua estrutura, função e consequências do uso de

substâncias com algum efeito no sistema nervoso. Estes dados com intervalo de cerca

de 300 anos me ajudam tão-somente a colocar em perspectiva os discursos da

‘neurociência’ como uma novidade.

Também não é minha pretensão reconstruir a linha histórica deste processo;

esforços nesta direção podem ser encontrados em Duarte (1986), no que diz respeito aos

nervos e ao sistema nervoso, e em Vidal (2005, 2009), no que diz respeito mais

especificamente ao cérebro. Nesta sessão, o objetivo é trabalhar em duas frentes: em

primeiro lugar, procuro demonstrar que a pretensão bilíngue da neurociência da qual

Susan Greenfield fala não é nova; explicar os fenômenos físicos do cérebro e ao mesmo

tempo os fenômenos mentais, os sentimentos, aquilo que a neurociência entende como

epifenômenos, e construir uma ciência materialista da mente é uma ideia que nos leva

aos séculos XVIII e XIX, quando surgem primeiros esforços sistemáticos para localizar

no cérebro questões de ordem moral. Em outro registro, é, sim, bastante recente o

surgimento de um vocabulário ‘neuro’ que, a esta altura, já parece estar incrustado na

nossa ‘natureza’ e fazer parte de um acervo cotidiano mesmo entre o público não

especializado. A transição do século XIX para o século XX marca, nesse sentido, uma

mudança radical na forma de ver o cérebro; é a esse momento histórico que os

neurocientistas contemporâneos se referem quando mencionam a época do surgimento

da ‘neurociência moderna’. Todo um vocabulário que passa hoje por intenso processo

de popularização – a própria expressão ‘neurociência’, assim como neurônios, sinapses

e neurotransmissores – surge somente a partir daí; poderíamos afirmar que esse é o

momento no qual tais personagens surgem, já que sequer haviam sido nomeadas antes.

O cérebro do qual se fala hoje, esse ente composto por unidades discretas interligadas

de forma contígua, mas não contínua, nasce aí.

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Essa história poderia começar em vários pontos. Parece-me fazer sentido

trabalhar, de forma exemplar, sobre o primeiro sistema a “ancorar qualidades

psicológicas e comportamento em determinadas regiões do córtex cerebral” (Vidal,

2009, p.16), o primeiro “sistema de atribuição de um endereço cerebral específico para

o comportamento humano” (Abraham, 2005, p.35); em outras palavras, a primeira

tentativa sistemática de estabelecer um caráter bilíngue (nos termos de Greenfield, op.

cit.) para o conhecimento do cérebro. A chamada frenologia é para mim um importante

ponto de referência e contraste, já que se trata de um sistema de redução da mente, ou

da pessoa, ao cérebro que obteve sucesso para além dos fóruns científicos, chegando a

um público mais amplo, uma característica compartilhada com a difusão pública dos

saberes neurocientíficos contemporâneos.

O principal nome associado à frenologia é Franz Joseph Gall, anatomista alemão

que viveu entre 1758 e 1828, estudou medicina em Estrasburgo e Viena, onde se tornou

um médico de sucesso. Em 1794, Gall teria sido indicado para se tornar o médico

responsável pela saúde do imperador da Áustria, mas recusou o convite para preservar a

sua independência e por não se sentir atraído pela vida na corte (cf. Finger, 2000,

p.122).

Ao contrário do que costuma ser afirmado, ele nunca propôs o uso da palavra

frenologia, termo pelo qual ficaram conhecidos os seus esforços para atribuir ao, e,

principalmente, localizar no cérebro certas características de ordem moral (cf. Finger,

2000). O termo é devido aos seus seguidores, e significa “estudo da mente”, o que não

condizia exatamente com a proposta de Gall, cujo foco eram as manifestações visíveis

dos trabalhos do cérebro. Mas vejamos o que significava um cérebro ‘visível’ naquele

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momento23.

Segundo ele, existiriam no ser humano características morais e intelectuais que

seriam “congênitas, essenciais e irredutíveis” (Changeux, 1985, p.25), e cada uma delas

estaria relacionada a uma parte específica do córtex cerebral24, que seria composto por

vários órgãos, parte da sua teoria que ele chama de organologia. Gall elabora uma lista

com 27 características (algumas imagens mostram que poderiam ser, no total, 35),

sendo que oito delas seriam específicas do ser humano, enquanto as outras 19 seriam

compartilhadas com os outros animais25. Entre aquelas compartilhadas apenas pelos

seres humanos estariam a ‘sabedoria’, o ‘talento poético’ e o ‘sentimento religioso’.

Na última década do século XVIII, Gall divulgava em cursos públicos a ideia de

que o desenvolvimento diferenciado destes órgãos do córtex cerebral se refletia em

padrões diferentes que podem ser observados, apalpados e interpretados quando se toca

a parte externa do crânio, que reproduziria fielmente a superfície do córtex. Changeux

(1983) explica assim a metodologia de Gall, chamada de ‘cranioscopia’:

Gall reuniu crânios de criminosos ou de doentes mentais e bustos de homens célebres. Com base na cuidadosa observação destes, elabora um mapa das localizações ósseas correspondentes às tendências e faculdades particularmente exacerbadas neste ou naquele indivíduo. Por acaso ou profunda intuição, Gall localiza a memória das palavras e o sentido da fala nas regiões frontais próximas da localização que hoje se lhes atribui. Contudo, no restante, a topografia proposta por

23 Parto da ideia de que a noção de visibilidade do cérebro é não apenas mediada pelo discurso

científico – apesar deste ser um importante agente nesse processo –, mas está relacionada a condições culturas e históricas mais amplas, em que tais discursos estão inseridos. Nesse sentido, a propósito da construção social de imagens fetais, Chazan (2007, p.25) afirma que “ver não é apenas ter a retina estimulada pela radiação luminosa que atravessou as outras estruturas do globo ocular. O ato de ver inclui implicitamente a compreensão do que está sendo visto. Daí decorre a importância aqui atribuída ao papel desempenhado pela cultura do ‘sujeito que vê’ na configuração desse olhar. Por ‘configuração do olhar’ entende-se a construção mesma do olhar, modelada pelos códigos que circulam dentro de uma determinada cultura, seja ela qual for”.

24 Trata-se da camada mais externa do cérebro dos vertebrados, e está associada às chamadas funções superiores ou complexas do cérebro, como a linguagem, o pensamento, a memória e a atenção.

25 Este dado foi encontrado em Finger (2000); Jean Pierre Changeux (1983) apresenta outro número – a proporção seria de 8 para 20.

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Gall é extremamente fantasista. (Changeux, 1985, p. 25)

Esta atenção dada ao crânio como expressão direta do córtex cerebral e de

características morais da pessoa não sobreviveu ao tempo, e veio a ser alvo de muitas

críticas, por mais de um motivo. De qualquer forma, Gall afirmava que o seu foco não

era o crânio: “o objeto da minha pesquisa é o cérebro. O crânio é apenas uma expressão

(cast) fiel da superfície externa do cérebro, e, consequentemente, não é senão uma parte

menor do objeto principal” (Gall, 1796, apud Finger, 2000). As hipóteses de Gall

podem ser consideradas uma espécie de avô da neurociência moderna, já que os

esforços localizacionistas se multiplicam ainda hoje. De qualquer forma, impossível não

atentar para a semelhança de objetivos entre, apenas como um exemplo, o esforço de

Gall em designar uma parte do córtex cerebral responsável pelo ‘sentimento religioso’ e

a afirmação da neurocientista Susan Greenfield, em um documentário produzido pelo

canal inglês BBC, de que “um dia seremos capazes de interpretar até mesmo os nossos

sentimentos espirituais mais intensos em termos das operações do cérebro”. A

pretensão, como se pode ver, não é nova, tanto para os sentimentos religiosos, como

para outros temas que já estavam na lista de Gall, como o ‘amor pela prole’, o ‘instinto

reprodutivo’, a ‘amizade’, a ‘coragem’ e tendências à violência (estas características

compartilhadas entre os cérebros de humanos e animais). Uma ciência bilíngue do

cérebro tem, então, uma genealogia possível, ainda que aqui em uma versão

simplificada, mas talvez suficiente para as minhas pretensões.

Um aspecto interessante acerca do percurso de Gall são as tensões suscitadas

pelas suas teses, que vão além de querelas científicas, e se misturam ao campo político e

religioso, mostrando o quanto essas esferas são permeáveis. O mesmo império que o

convidou a ser o médico responsável pelo seu soberano, após alguns anos foi

responsável pela saída de Gall da Áustria. As suas palestras públicas divulgando a

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organologia/cranioscopia tornaram-se cada vez mais populares, o que chamava mais

atenção sobre si e suas ideias. A conexão direta feita por Gall entre o intelecto – além de

outras faculdades específicas do ser humano – e uma substância material atingia em

cheio a crença em uma alma imaterial (cf. Finger, 2000). Por outro lado, a forma como

Gall apresentava o cérebro – uma entidade compartida, sem um poder central, com cada

área responsável por uma característica ou faculdade – era uma metáfora política mal

vista pelo império. Ou seja, Gall era acusado ao mesmo tempo de materialismo e de

uma posição politicamente subversiva (cf. Changeux, 1983). Este cérebro sem poder

central proposto por Gall, esta mente fatiada e subdividida, com diferentes faculdades

sendo atribuídas a diferentes partes discretas, soava aos poderes políticos dominantes

como uma tese perigosa. Tanto em Viena – onde Gall foi proibido de fazer conferências

– como na França napoleônica – onde não conseguiu ser admitido na Academia de

Ciências –, as ideias relacionadas a Gall e à frenologia de forma mais geral eram vistas

como uma ameaça à estabilidade do Estado (Jeannerod, 2008). Gall deixou Viena em

1805 e viajou pela Europa; voltou, com sucesso, a proferir palestrar em países tidos

como mais liberais, até se estabelecer em Paris em 1807.26

Segundo Clarke e Jacyna (1987, p.5), em uma investigação a respeito das

origens, no século XIX, dos conceitos da neurociência, a ideia de que a mente está

situada no cérebro, este “princípio neurocientífico” (p.5), seria para nós,

contemporaneamente, uma “conclusão muito óbvia, mas de forma nenhuma

universalmente aceita no princípio do século XIX” (p.5). A colocação denuncia uma

certa postura: em primeiro lugar, chama a teoria de Gall de um “princípio

neurocientífico”, muito antes do surgimento desta formulação; em segundo, pretende 26 Não se trata aqui de fazer um levantamento histórico cuidadoso dos passos de Gall ou de seus

principais interlocutores ou adversários. Meu objetivo é demonstrar uma possível genealogia da redução da mente ao cérebro, uma pretensão que não é nova. Ainda que a técnica de Gall tenha sido alvo de críticas e, eventualmente, tenha caído em desuso, a sua organologia foi o primeiro passo de uma tradição localizacionista que tem ecos ainda hoje.

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que a ideia da mente como situada ou epifenômeno do cérebro seja um princípio hoje

universalmente aceito, uma afirmação que não leva em conta outras perspectivas sobre a

pessoa, e resistências a este modelo que vai, de fato, ganhando hegemonia. Assim como

os saberes da neurociência contemporânea, as teses de Gall contaram com ampla

difusão entre o público leigo, tendo ele mesmo se engajado em palestras e dissecações

públicas que atraíram a atenção tanto de cientistas quanto do público mais amplo para o

cérebro e o sistema nervoso. Historiadores da área e neurocientistas falam dessa ampla

divulgação desse corpo de saberes de uma forma crítica:

Com as mãos nuas e as pontas dos dedos, os frenologistas acariciavam cabeças, relacionando as elevações e reentrâncias que sentiam com mapas que habilmente apresentavam a localização de mais de vinte e sete habilidades e características. Uma testa pronunciada, por exemplo, em tese indicava benevolência. Outros ressaltos significavam dissimulação ou sagacidade, curiosidade ou determinação. Os frenologistas vagavam pelo interior lendo cabeças da mesma forma que adivinhos lêem as palmas das mãos, esvaziando bolsos enquanto diagnosticavam as pessoas como trabalhadoras ou honestas – uma informação particularmente útil para clientes crédulos contratando uma empregada ou escolhendo um marido. Mas com sua interpretação inconstante, seus mapas mutáveis e seus charlatães, a frenologia foi descartada pelo establishment científico do século XIX como sendo algo ridículo. (Abraham, 2005, p.35)

Susan Greenfield atribui a popularização da frenologia no início do século XIX à

habilidade de seus propagadores em capturar um certo “espírito do tempo”:

Ela oferecia uma nova maneira de se olhar para o cérebro, e uma vez que se apoiava em medidas objetivas tinha todo o lustre de uma verdadeira ciência. Como tal, rapidamente capturou o espírito do tempo. A frenologia tornou-se popular porque parecia apresentar às pessoas uma abordagem mais ‘científica’, bem como uma nova base para a moralidade, algo que poderia ser medido e não implicava ideias difíceis e abstratas, como o espírito (soul). (...) Era uma nova forma de gerar largas somas de dinheiro; panfletos, livros e modelos de frenologia começaram a proliferar. De fato, a frenologia tornou-se uma parte da vida de muitas pessoas. Assim como hoje itens que vão de canecas a jóias exibem signos do zodíaco, no século passado [XIX] bengalas, por exemplo, poderiam ter um pequeno busto personalizado de frenologia na

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alça. (Greenfield, 1997, p.11-12)27

A comparação manda um recado: a frenologia seria comparável hoje com a

crença nos astros e no zodíaco, uma forma de afirmar o caráter pouco científico das

teorias de Gall e seus seguidores. Ainda que tenha caído em desuso após sucessivos

ataques, as ondas de localizacionismo cerebral que continuam ainda hoje mostram que

talvez Gall tenha feito, de um certo ponto de vista, as perguntas certas, mas ainda sem a

tecnologia disponível para embasar as suas ideias.

Mais uma vez, as palavras de Susan Greenfield oferecem um termo comparativo

interessante. Critica-se duramente a popularização deste gênero de localizacionismo na

passagem do século XVIII para o século XIX, com a pecha de charlatanismo e de uma

pseudociência sem fundamentos, utilizada como uma forma de angariar dinheiro. Mas

os seus argumentos parecem adequados para pensar também o sucesso da neurociência

contemporânea, um discurso de presença cada vez mais marcante na mídia de massa.

Seria tão estranha ao nosso tempo a imagem de alguém carregando o seu ‘busto

frenológico’, como uma espécie de carteira de identidade moral? Ora, uma ou outra

cena contemporânea começa a soar semelhante. Latour (1999) conta, em uma

conferência, que o seu antigo colega de faculdade Paul Churchland – filósofo conhecido

por seus trabalhos em filosofia da mente e por defender uma postura eliminativista em

relação ao que ele chama de ‘psicologia popular’28 – carregaria consigo na carteira uma

foto de sua mulher, também famosa no campo. Mas, na verdade, não se trata de uma

27 “It offered a new way of looking at the brain, and because it relied in objective measurements

it had all the lustre of a true science – as such it rapidly captured the spirit of the times. Phrenology became popular because it seemed to present people with a more ‘scientific’ approach as well as with a new basis for morality, something that could be measured and did not entail difficult and abstract ideas, like soul. (...) it was a new way of making large amounts of money: phrenology pamphlets, books and models all started to proliferate. Indeed phrenology became a part of many people’s lives. Just as today items ranging from mugs to jewellery bear signs of the zodiac so in the last century walking canes, for example, would have a tiny, personalized phrenology bust on the handle”.

28 Voltarei a este ponto na próxima sessão.

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imagem do rosto ou do corpo da pessoa, como se imagina num primeiro momento, mas

sim uma imagem do cérebro dela, produzida a partir de uma tecnologia de

imageamento. Em outro exemplo, no blog na neurocientista Suzana Herculano-

Houzel29, a primeira imagem que surge à esquerda da tela do computador é justamente a

do “cérebro da neurocientista”, também a partir de técnicas contemporâneas de

imageamento.

Nenhuma destas duas imagens está diretamente seguida de uma legenda que

relacione aquele cérebro com as faculdades morais da pessoa que o porta. Mas é por si

só interessante que uma imagem como essa seja utilizada em contextos de apresentação

do sujeito, que de certa forma presentificam o indivíduo. Um outro ponto a se destacar é

que os saberes difundidos pela neurociência contemporânea também tendem a se tornar

“parte da vida das pessoas”, algo que Greenfield aponta no que diz respeito à frenologia

em tom acusatório. Na epígrafe desta sessão, destaco justamente uma sua colocação a

respeito da declaração oficial, feita pelo então presidente dos Estados Unidos, de que os

anos 90 seriam a década do cérebro, e esforços não deveriam ser poupados para

divulgar as ‘boas novas’ da neurociência a um público leigo. Ela afirma que um

interesse geral na neurociência passa a ser então oficial; ora, na verdade o cérebro está

em pauta muito antes de qualquer declaração oficial. Por outro lado, uma concentração

de esforços de pesquisa em uma determinada área tende a gerar não somente uma

profusão de descobertas – ou, ao menos, novas hipóteses sobre estrutura e função do

cérebro –, mas também a necessidade de comunicá-las a um público amplo, esforço no

qual a própria autora está inserida.

Se a frenologia é utilizada aqui para colocar em perspectiva a pretensa juventude

29 Como veremos no capítulo 3, trata-se de um nome central no que diz respeito à divulgação de

neurociência no Brasil para um público amplo. O endereço do blog é http://www.suzanaherculanohouzel.com.

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de certas proposições contemporâneas da neurociência, um outro aspecto que entendo

ser importante destacar ilustra justamente o contrário: o quanto é recente um

vocabulário ‘neuro’ que já faz parte do nosso cotidiano, para além dos muros dos

laboratórios.

É no final do século XIX que o cérebro começa a ganhar a forma que apresenta

contemporaneamente. Com isso quero dizer que neste momento histórico começamos a

falar, por exemplo, em termos de neurônios e sinapses. A ideia mesma de uma

‘neurociência’ integrada é ainda posterior a isso, formulada já no decorrer do século

XX.

Neurociência é um termo guarda-chuva sob o qual recebem guarida diversos

ramos científicos que se ocupam do cérebro. Mas vejamos como profissionais desse

campo definem essa área de pesquisa eles mesmos, nas três formulações a seguir:

Neurociência é a moderna disciplina científica formada no final do século XX pela confluência de várias disciplinas ditas básicas – a anatomia, a histologia, a bioquímica, a biologia molecular – com outras tantas disciplinas ditas profissionais (ou “clínicas”) – a neurologia, a neuropatologia, a psicologia, a psiquiatria. A essas se juntaram ainda a inteligência artificial, a informática robótica, vários ramos da matemática e da física. Os cientistas que trabalhavam em cada uma dessas disciplinas, utilizando seus métodos e abordagens para compreender o sistema nervoso, descobriram que melhor fariam se se reunissem em congressos unificados, trabalhassem em projetos multidisciplinares, publicassem em revistas comuns e recebessem estudantes de diferentes formações. Os novos profissionais que se formaram com essa visão ampla e diversa são os neurocientistas. O resultado desse movimento foi uma explosão impensável do conhecimento científico sobre o cérebro e suas operações, que ocorreu nos últimos anos e ainda está em curso. (Lent, 2002, p. 18) P - Como o senhor define a neurociência? R - A neurociência trata do último grande mistério do universo científico: a natureza da mente humana. O que nos permite ser criativos, ter fantasias, pensar, tomar decisões e perceber o mundo? Essas habilidades incríveis do cérebro humano são o que os neurocientistas

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tentam desvendar. (Erik Kandel, em entrevista à revista Veja, 2010)30 Mas o que queremos dizer com ‘neurociência’? A palavra foi definida de várias maneiras ao longo da sua relativamente curta história; aqui não se tentará dar nenhuma definição formal. Para os nossos propósitos, a palavra é tomada no seu sentido interdisciplinar mais amplo. Assim, usando ‘neurociência’ como um termo guarda-chuva que recobre todas aquelas ciências que tentam compreender o cérebro e o sistema nervoso e estão envolvidas na investigação de como o cérebro e o sistema nervoso mediam o comportamento, aí se incluindo a vida mental e emocional dos humanos, qualquer cientista, de qualquer disciplina biomédica, física, comportamental, interessado em tentar compreender os mecanismos subjacentes à função da mente-cérebro pode ser considerado um neurocientista. Novos termos e campos foram desenvolvidos, cobrindo diferentes aspectos da pesquisa do cérebro e do sistema nervoso, e.g. neurobiologia, ciência cognitiva, computação neural, etc. Mas consideramos todos como subconjuntos da “neurociência” geral, unificada. (Adelman e Smith, 2004)31

As definições foram encontradas em fontes bastante diversas: em ordem inversa,

elas estão no prefácio a uma enciclopédia da área, em uma curta entrevista concedida

pelo neurocientista Erik Kandel à revista Veja e na apresentação de um livro de

divulgação de neurociência.

Em um primeiro momento, chama atenção tanto o adjetivo “moderna” para

designar esta “disciplina científica”, quanto o fato de que as especialidades que formam

o seu corpo não sejam novas. É evidente a pretensão a ser uma prática interdisciplinar, e

30 Entrevista para a revista Veja, como parte de uma reportagem de capa cujo título é “Os

segredos da memória”. Veja, edição 2147, ano 43, n.2, 2010. 31 “But what do we mean by "neuroscience"? The word has been defined in various ways during

its relatively short history; no formal definition will be attempted here. For our purposes, the word is considered in its broadest interdisciplinary sense. Thus, using "neuroscience" as an umbrella term covering all those sciences trying to understand the brain and nervous system and involved in the investigation of how the brain and nervous system mediate behavior, including the mental and emotional life of humans, any scientist from whatever discipline biomedical, physical, behavioral - interested in trying to understand the mechanisms underlying mind-brain function, may well be considered a neuroscientist. New terms and fields have developed covering different aspects of brain and nervous system research, e.g. neurobiology, cognitive science, neural computing, etc. But we consider all of these simply subsets of the overall, unified "neuroscience"”.

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também o caráter unificador do termo32. Quanto a esta nova formulação, o

neurocientista da UFRJ Roberto Lent a situa no final do século XX, sem ser específico a

respeito do ano. A definição de Kandel, curta como deve ser no caso de uma entrevista a

uma revista semanal voltada para o público amplo, vai direto ao ponto da redução da

mente ao cérebro: criatividade, fantasias e pensamentos são produtos físicos do trânsito

neuronal, e este é o objeto da neurociência.

A data de surgimento do termo ‘neurociência’ é algo incerta, mas não há dúvidas

quanto a ser relativamente recente. No prefácio à Enciclopédia de Neurociência,

Adelman e Smith (2004) afirmam que o termo deve ter sido provavelmente usado pela

primeira vez no final dos anos 50 do século passado por Ralph W. Gerard. Valenstein33

(2005, p.132) confirma esta fonte, e afirma que Ralph Gerard foi um neurofisiologista

envolvido nos debates que, ainda em meados do século XX, discutiam se a transmissão

no sistema nervoso (tanto periférico quanto central) se dava por meio elétrico ou

químico. A ele é atribuída também a frase “There is no twisted thought without a

twisted molecule” (ibidem, p.161), uma ideia que estabelece uma conexão direta entre

pensamentos e moléculas, tornando o primeiro uma consequência de algo que se passa

no segundo.

Termos importantes da área, como ‘neurônio’ e ‘sinapse’ surgem um pouco

antes. O termo ‘neurônio’ é utilizado pela primeira vez em 1891, cunhado por um

cientista alemão, Wilhem von Waldeyer, a partir da palavra grega para fibra ou corda

(cf. Abraham, 2005, p.34), para designar as unidades funcionais do sistema nervoso.

‘Dendritos’ e ‘axônio’ também só entram para o vocabulário na última década do século

32 Não deixa de ser curioso este desejo unificador da neurociência, em um momento no qual

tanto se fala sobre a excessiva especialização e compartimentalização das disciplinas. É como se a organização desta nova ‘superdisciplina’ refletisse a posição mesma do cérebro em relação ao resto do organismo, como uma espécie de superentidade que organiza a totalidade da qual faz parte.

33 Valenstein, Elliot S., The war of the soups and the sparks. O autor é professor emérito de psicologia e neurociência na Universidade de Michigan.

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XIX. Já a palavra ‘sinapse’ foi introduzida pelo neurofisiologista britânico Charles Scott

Sherrington (cf. Valenstein, 2005); convidado a escrever um volume sobre o sistema

nervoso, como parte de um livro-texto mais amplo, ele julgou precisar de um termo para

designar as microscópicas fendas entre neurônios, e entre neurônios e os músculos, um

hiato (gap) ainda puramente hipotético naquele momento, já que não havia ainda

tecnologia para visualizá-lo34. O termo ‘sinapse’ teria sido sugestão de um amigo da

academia, especializado em grego, a partir da palavra que naquele idioma tem o sentido

de apertar, afivelar ou entrelaçar. Fica claro que essa era uma opção entre outras

possíveis, escolhida em um contexto de debates científicos a respeito da forma como se

comunicam os neurônios; nomeia-se o que sequer era visível para tornar mais real a

suposta fenda: “Sherrington preferiu esta palavra a outras alternativas que pareciam

implicar uma conexão física mais próxima do que aquela que ele acreditava haver entre

os neurônios” (ibidem, p.4)

O final do século XIX e início do século XX foi um período, como se pode ver

pelas datas acima, de profundas modificações na forma como a ciência entende o

cérebro. Foi nesse período que a chamada ‘doutrina neural’, proposta pelo espanhol

Santiago Ramon y Cajal, que embasa ainda hoje os saberes da neurociência, teria sido

aceita. Para utilizar um termo de Latour (2000), as caixas-pretas da neurociência

contemporânea ainda estavam abertas. Atribui-se hoje a Cajal o lugar de ‘pai’ da

neurociência, por ter sido responsável pela teoria neuronista; segundo essa hipótese, “as

células nervosas, como as árvores de uma floresta ou as tesselas de um mosaico, são

unidades independentes em relação de contiguidade umas com as outras” (Changeux,

1983, p.34). Esta hipótese estava em oposição ao formato de continuidade entre as

células defendido por Camilo Golgi, concorrente de Cajal, e defensor do que se

34 Contam os historiadores da neurociência e neurocientistas que a fenda entre os neurônios só

pode de fato ser vista por volta de 1950, com a introdução da microscopia eletrônica.

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chamava reticularismo.

Uma vez tendo vencido esta batalha científica, a teoria neuronista traz um novo

problema: se as células do sistema nervoso não se tocam, qual seria o motor do fluxo de

informações entre os neurônios? Como se daria a travessia da sinapse? O que vale para

o sistema nervoso periférico valeria também para o sistema nervoso central? Ainda em

meados do século XX, a ideia de que agentes químicos estivessem envolvidos no ‘salto’

sináptico no caso específico do cérebro era ainda muito contestada por fisiologistas,

ainda que aceita no que diz respeito ao sistema nervoso periférico. “A química – afirma

Changeux (1983, p.43) – estaria na periferia, a eletricidade, mais fluida e impalpável, no

refúgio da alma!”.

Responder a todas essas questões me levaria a um esforço de reconstrução

histórica ao qual não me proponho aqui. Aos meus objetivos etnográficos, acredito ser o

bastante ter marcado a juventude de uma série de conceitos centrais para a neurociência

contemporânea, e que parecem estar, após pouco mais de um século, tão incrustados em

discursos cotidianos, mesmo entre o público leigo, que soa como se eles sempre

tivessem existido35.

Em síntese, a ideia de uma redução da mente, ou da pessoa, ao cérebro, não é

algo novo. A noção de que seria este órgão que faz de nós aquilo que somos e onde

devemos procurar fisicamente para encontrar nossas esperanças, medos, pensamentos e

sonhos – como afirma Susan Greenfield na introdução ao documentário Brain story da

BBC – já estava de alguma forma colocada em esforços anteriores de localização

cerebral. Por outro lado, todo um vocabulário ‘neuro’ que passa hoje por um amplo

processo de popularização é de batismo muito recente. Neurônios e sinapses, termos que

35 Ainda assim, ressinto-me de não apresentar uma história mais completa, que ofereça um

quadro com melhor definição deste período entre a organologia de Gall e o surgimento das teses centrais que embasam a neurociência contemporânea, e mesmo do vocabulário hoje utilizado. Um esforço neste sentido poderia mostrar os próximos passos deste trabalho.

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soam hoje tão incrustados na natureza dos nossos cérebros, e por isso soam ahistóricos,

como se sempre se soubesse que eles estavam lá, são conceitos criados já às portas do

século XX, quando a chamada ‘neurociência moderna’ dava os seus primeiros passos

em um sentido mais molecular.

1.3 Algumas perspectivas críticas ao ‘cérebro como pessoa’

Como procurei demonstrar, a transição do século XIX para o século XX

estabeleceu um novo vocabulário e uma nova forma, literalmente, de ver o cérebro.

Novas técnicas de coloração permitiram a Santiago Ramon y Cajal visualizar com

acuidade as células que posteriormente foram denominadas ‘neurônios’, o que abriu

caminho para as hipóteses que até hoje sustentam as ciências do cérebro. Mesmo antes

disso, novos capítulos no que diz respeito a esforços localizacionistas tentam provar,

como no caso de Paul Broca, em 1861, qual é a área do cérebro responsável pela

articulação da linguagem.

É provável que, não por coincidência, autores vinculados às ciências humanas

começem, neste mesmo período, a estabelecer debates nos quais figuram o cérebro e

suas células, em diferentes críticas a um determinismo neurológico. No texto

“Representações individuais e representações coletivas”, Durkheim (1970 [1898])

procurava demonstrar “a exterioridade dos fatos psíquicos em relação às células

cerebrais” (p.40). Para ele, esses termos estavam em equivalência, nesta ordem, aos

fatos sociais e aos indivíduos: ou seja, existe algo no fato mental que não pode ser

explicado pelo vibrar das células cerebrais, no mesmo sentido em que o todo ultrapassa

a soma das partes. O autor investe contra o fracionamento da vida mental associado ao

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localizacionismo cerebral:

Que dizer então da hipótese segundo a qual os elementos “últimos” da representação (...) seriam não menos precisamente localizados? Dessa forma, a representação da folha em que escrevo seria literalmente dispersada por todos os desvãos do cérebro! Não somente haveria de um lado a impressão da cor, de outro, a da forma, de outro ainda, a da resistência, mas ainda a ideia da cor em geral localizar-se-ia aqui, ali residiriam os atributos distintivos de tal matiz em particular, acolá as características especiais que tem esse matiz no caso presente e individualizado que tenho sob os olhos, etc. Como não se concluir, antes de mais nada, que se a vida mental estivesse de tal forma fracionada, se fosse formada dessa poeira de elementos orgânicos, a unidade e a continuidade que ela apresenta tornar-se-iam incompreensíveis? (Durkheim, 1970 [1898], p.27)

O que Durkheim postula é um estado de independência das representações em

relação ao seu substrato físico, sem negar que tal substrato é condição necessária à

existência da representação, mas não pode explicá-la totalmente, em uma crítica a ideia

do psíquico como epifenômeno do cérebro. Ele deixa claro que se trata de uma

autonomia relativa, já que não propõe que as representações surjam de qualquer

entidade metafísica:

nada será, pois, tão absurdo quanto erigir a vida psíquica sobre uma espécie de absoluto, que não viria de lugar nenhum e que não se ligaria ao resto do universo. É evidente que o estado do cérebro afeta todos os fenômenos intelectuais e que é fator imediato de alguns deles (sensações puras). Mas, por outro lado, conclui-se do que foi dito que a vida representativa não é inerente à natureza intrínseca da matéria nervosa, pois que subsiste em parte por suas próprias forças e tem maneiras de ser que lhe são peculiares. A representação não é um simples aspecto do estado em que se encontra o elemento nervoso no momento em que ocorre, não só porque ela se mantém mesmo quando esse estado não mais existe, como porque as relações das representações são de natureza diferente das relações dos elementos nervosos subjacentes. A representação é algo de novo, que certas características da célula naturalmente contribuem para que se produza, mas que não são suficientes para formá-la, uma vez que a elas sobrevive e manifesta propriedades diferentes. (Durkheim, 1970 [1898], p.37)

Não se trata, então, de negar de todo a participação do cérebro e de suas células

no processo que daria vida aos “fatos psíquicos” ou às “sensações”. A argumentação de

Durkheim parece caminhar no sentido de combater a redução de uma coisa à outra,

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antecipando em muito argumentos antirreducionistas que se multiplicam hoje quase na

mesma proporção das manifestações que reduzem a pessoa ao cérebro. O autor aplica a

essa relação uma lógica semelhante àquela proposta para pensar a autonomia dos fatos

sociais em relação aos indivíduos. Em relação ao substrato nervoso, os fatos psíquicos

também existiriam como coisas, exteriores à superfície necessária para que eles existam,

e com algum grau de autonomia.

Sem sair da escola sociológica francesa, outro texto importante faz menção a

pesquisas que envolvem o cérebro. Sem negar de todo que aspectos orgânicos

contribuam para a desteridade, Hertz (1980 [1909]) questiona se tais aspectos seriam

suficientes para explicar a “preponderância absoluta da mão direita se isso não fosse

reforçado e fixado pelas influências estranhas ao organismo” (ibidem, p.102). A causa

anatômica para a “preeminência da mão direita” contra a qual o autor vai se colocar é o

“maior desenvolvimento no homem do hemisfério cerebral esquerdo, o qual, como

sabemos, enerva os músculos do lado oposto” (ibidem, p.100). Neste caso, então, não se

trata de uma crítica ao localizacionismo cerebral; Hertz vai opor-se à ideia de que a

citada assimetria sirva como explicação única da preferência pela mão direita, como

propôs o anatomista, cirurgião e antropólogo físico francês Paul Pierre Broca36 (1824-

1880), ao afirmar que “somos destros na mão porque canhotos no cérebro”.

Não se deve duvidar de que uma conexão regular exista entre a preeminência da mão direita e o desenvolvimento da parte esquerda do cérebro. Mas, destes dois fenômenos, qual é a causa e qual é o efeito? O que existe que nos impeça de inverter a proposição de Broca e dizer: somos canhotos de cérebro porque destros de mão? É um fato

36 Um caso estudado por Broca é paradigmático e citado com frequência: um paciente afásico

chamado ‘Tan’ – este era o único som que o paciente emitia em resposta a qualquer pergunta – foi diagnosticado com uma lesão no lado esquerdo do cérebro, decorrente de neurosífilis. Abriu-se aí, segundo Vidal (2009, p.17), uma porta para a formulação de diversas dicotomias baseadas nos hemisférios cerebrais, não apenas no que diz respeito a questões de ordem física, mas também a questões morais; o hemisfério esquerdo passa a ser com o tempo associado não apenas à enervação do lado direito do corpo e à capacidade de linguagem articulada, mas também à masculinidade e à racionalidade, enquanto o hemisfério direito fica relacionado ao feminino e às emoções.

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conhecido que o exercício de um órgão leva à maior alimentação e ao consequente crescimento daquele órgão. A maior atividade da mão direita, o que envolve mais trabalho intensivo para os centros nervosos da esquerda, produz o efeito necessário de favorecer o seu desenvolvimento. (id., p.101)

Encontramos aqui, já em 1909 – ano de publicação original do texto de Hertz –,

um debate na linha nurture vs. nature em torno do cérebro. De certa forma, a proposta

de Hertz é muito moderna – ou, certas proposições atuais da neurociência não são assim

tão recentes –, já que parece de acordo com uma visão plástica do cérebro, órgão que

poderia ser modificado, treinado e melhorado conforme as interações do sujeito com o

meio ambiente.

Ao que parece, não são novas as tensões entre diferentes perspectivas no que diz

respeito às determinações entre o cérebro e a pessoa. De certa forma, argumentos como

estes de Durkheim e Hertz serão recuperados décadas depois.

Discutindo as origens dos conceitos neurocientíficos no século XIX, Clarke e

Jacyna (1992) afirmam que o tema não pode ser compreendido se divorciado da cultura

mais ampla, não-científica, da filosofia e da visão de mundo de uma época. É neste

sentido também que, para Percheron (1987), os discursos sobre o cérebro não são

ideologicamente neutros – uma observação particularmente interessante, visto ser ele

mesmo um neurocientista. Ao revisar a bibliografia sobre a história dos conhecimentos

sobre o cérebro, o autor retoma as controvérsias entre localizacionistas e

antilocalizacionistas, para demonstrar que um debate “pretensamente científico era de

fato político” e nuançado: como já foi sugerido em seção anterior, enquanto de forma

geral os localizacionistas eram tidos como hostis à ordem, adversários da pena de morte,

anticlericais, ateus e republicanos, na Alemanha, às voltas com seu processo de

unificação, são os antilocalizacionistas que ocupam esse lugar de inimigos da ordem.

É claro que construir esse tipo de relação fica mais fácil quando se trabalha com

o passado. Mas uma análise, ainda que superficial, de uma determinada posição dentro

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da filosofia contemporânea, pode nos dar algumas pistas de relações possíveis com o

atual sucesso das neurociências. Matthews (2007) analisa um artigo particularmente

significativo de Paul Churchland, filósofo ligado a uma visão chamada “materialismo

eliminativista”:

O materialismo eliminativista é a tese de que nossas concepções de senso comum sobre os fenômenos psicológicos constituem uma teoria radicalmente falsa, uma teoria tão fundamentalmente defeituosa que ambos os princípios e a ontologia desta teoria eventualmente se deslocarão, ao invés de serem reduzidos suavemente, pela neurociência consumada (Churchland, 2004, p.382, apud Matthews, 2007, p.48)

Uma “neurociência consumada” apresentaria um substituto mais adequado para

o que Paul Churchland chama “folk psychology” (“psicologia do senso comum” ou

“psicologia popular”), porque enquanto a segunda trabalha com conceitos que fazem

uso da ideia de intencionalidade, incomensuráveis com as categorias da ciência física,

“a neurociência utiliza os mesmos tipos de conceitos das outras ciências físicas e,

portanto, é coerente com elas como parte de uma explicação científica unificada sobre o

mundo, incluindo a nós próprios” (Matthews, 2007, p.51).

Vale dizer que esse posicionamento defendido por Paul Churchland e colegas

filiados a esta corrente gera uma resposta por parte de outros autores que advogam, a

partir de diferentes enfoques, contra teses neuroreducionistas. É o caso do filósofo Paul

Ricoeur, em um livro de formato raro: trata-se de um diálogo entre ele e o neurocientista

Jean-Pierre Changeux – o qual ganhou notoriedade com a obra O Homem Neuronal –,

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cujo objetivo é se comunicar com um público mais amplo37. Um dos argumentos

centrais de Ricoeur é o combate ao que ele considera ser um amálgama semântico que

reuniria dois discursos: um que diz respeito ao corpo e ao cérebro, e outro que diz

respeito à mente. Para Ricoeur, essas seriam perspectivas heterogêneas, que não podem

ser reduzidas uma à outra, ou derivar uma da outra.

Num caso, trata-se de neurônios e da sua conexão num sistema; no outro fala-se de conhecimento, ação e sentimento – ações ou estados caracterizados por intenções, motivações ou valores. Deverei, portanto, combater o tipo de amálgama semântico que se encontra resumido na fórmula oximórica: “O cérebro pensa”. (...) Não vejo maneira de se passar de uma ordem de discurso a outra: ou falo de neurônios, etc., caso em que me situo numa certa linguagem, ou falo de pensamentos, ações e sentimentos que associo ao meu corpo, com que me encontro em relação de posse, de pertença. (Changeux e Ricoeur, 2000, p.14-5) 38

A relação que o sujeito entretém com o seu cérebro, argumenta Ricoeur, é de um

tipo específico, que não pode ser comparado com a relação que se tem, por exemplo,

com a própria mão ou com os olhos. O cérebro, em sua opinião, não faz parte da nossa

experiência corporal (bodily experience); ele seria um objeto da ciência e não da nossa

experiência cotidiana (id, p.49).

A questão que pode ser colocada é se uma divulgação massiva da neurociência

37 Changeux é explícito no que diz respeito a esta comunicação voltada a um público amplo. Ao

comentar o caráter revolucionário da descoberta de uma fenda entre os neurônios, ele afirma que “a descoberta da sinapse e das suas funções lembra, pela amplitude das suas consequências, a do átomo ou do ácido desoxirribonucleico. Abre-se um novo mundo e parece oportuno alargar este campo de saber a um público mais vasto que o dos especialistas, e, se possível, permitir que compartilhem do entusiasmo que anima os investigadores deste domínio” (Changeux, 1985, p. 10). Na capa do livro, uma edição portuguesa, já é dito se tratar de uma obra com pretensões em atingir um público amplo: “Informar e, se possível, despertar o interesse dos leitores sobre as ciências do sistema nervoso. Parece chegado o momento de abrir ao grande público um domínio até agora reservado aos especialistas”.

38 “In the one case it is a question of neurons and their connection in a system; in the other one speaks of knowledge, action, feeling – acts or states characterized by intentions, motivations or values. I shall therefore combat the sort of semantic amalgamation that one find summarized in the oxymoronic formula “The brain thinks”. [...] ...I do not see a way of passing from one order of discourse to the other: either I speak of neurons and so forth, in which case I find my self in a certain language, or I speak of thoughts, actions and feelings that I connect with my body, to which I stand in a relation of possession, of belonging” (Changeux e Ricoeur, 2000, p.14-5).

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para o público amplo não teria justamente este efeito: o de construir uma percepção

generalizada de uma experiência cotidiana do cérebro, até porque ele é apresentado,

como veremos mais tarde na apresentação de esforços de divulgação neurocientífica

feitos no Brasil, como responsável por tudo o que sentimos e fazemos em nosso dia a

dia. Acredito que o ambiente em que estamos vivendo já tenha incorporado essa visão

cerebralista de pessoa, ainda que convivendo com uma miríade de outras

representações. O fato de intelectuais ligados às ciências humanas começarem a ocupar

este debate de forma mais intensa é um sintoma disso. Ainda que seja ingênuo atribuir

esse espírito cerebralista do nosso tempo somente ao sucesso público das neurociências

hoje, estou convencido do rendimento de uma análise que se dedique ao conteúdo da

divulgação neurocientífica; especialmente porque este material parece construir

exatamente aquilo que Ricoeur diz não existir: uma experiência corporal do cérebro,

que começaria a fazer sentido em nossa cultura.

As objeções de Ricoeur estão longe de ser a única postura de ‘resistência’ a esse

tipo de redução da pessoa ao cérebro, ou mesmo à ideia de que ‘descobertas’

neurocientíficas tenderiam a substituir outras visões de mundo e noções de pessoa,

mesmo entre um público leigo, por oferecerem uma leitura mais objetiva daquilo que

faz de nós quem nós somos. Nos seus últimos trabalhos (2000, 2007), a antropóloga

Emily Martin também vem ensaiando respostas a esse tipo de pretensão. Tomando

como foco etnográfico o lugar do transtorno bipolar na cultura norte-americana, Martin

dialoga com autores que postulam um monismo ou materialismo eliminativista. Para

ela, os pressupostos dessa posição consistem em um erro categorial:

A psicologia popular estadunidense não será necessariamente substituída pela posição segundo a qual estados internos são estruturas neurais, assim como a visão habitual de um jogador de que uma pontuação de 21 ganha uma rodada (hand) de blackjack não seria substituída pela visão de que o jogo frequente é causado pela posse de um conjunto de genes específico. Se uma imagem reducionista da

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ação humana, baseada no cérebro, se substituísse aos nossos conceitos mentais correntes, isso não aconteceria porque (ou apenas porque) a teoria das rede neural teria ganho na corte da opinião pública. Isso aconteceria porque o ambiente em que vivemos (e no qual são produzidas teorias científicas) se modificara, de tal maneira que uma concepção de uma pessoa baseada no cérebro havia começado a fazer sentido em termos culturais. (Martin, 2000, p.575)39

Para Martin, então, a tensão entre diferentes modelos de pessoa não se joga

somente na arena científica, mas em um circuito cultural muito mais amplo, no qual o

discurso científico está inserido. Uma noção de pessoa cujo centro é o cérebro faz parte

de uma espécie de pedagogia científica, já insinuada aqui, e que será aprofundada nos

próximos capítulos. Mais à frente, tratar-se-á de demonstrar justamente de que maneira

uma visão de mundo cerebralista tem sido divulgada pela neurociência e pelo marketing

dos laboratórios farmacêuticos, que trabalham com a ideia de que as ‘doenças da mente’

seriam na verdade ‘doenças do cérebro’.

Como procurei mostrar, um modelo ‘cerebrocêntrico’ de pessoa está longe de

ser uma proposta nova. Essa ideia tem sido defendida por Fernando Vidal, que

argumenta ser uma postura apressada tomar a ideia do ‘cérebro como pessoa’ como uma

consequência de avanços atuais conquistados pela neurociência (em relação, por

exemplo, à produção de imagens do cérebro e à volumosa divulgação de correlatos

neurais nelas baseados). Vidal segue justamente na direção contrária, como ilustram as

duas passagens a seguir:

Um bom número de neurocientistas dos séculos XX e XXI parecem acreditar que as suas convicções sobre o self são baseadas em dados neurocientíficos. Na realidade, as coisas se passaram ao contrário: a cerebralidade (brainhood) é anterior, no tempo, às descobertas

39 “U.S. folk psychology will not necessarily be replaced by the view that inner states are neural

structures, any more than a habitual gambler’s view that a score of 21 wins a hand of blackjack would be replaced by the view that habitual gambling is caused by possessing a particular set of genes. If a more reductionistic and brain-based picture of human action displaced our current everyday mental concepts, it would not be because (or solely because) the neural net theory had won in the court of scientific opinion. It would be because the environment we live in (and that scientific theories are produced in) had shifted so that a brain-centered view of a person began to make cultural sense”.

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neurocientíficas fiáveis, e constituiu um fator motivante da pesquisa que, por sua vez, a legitimou. (Vidal, 2009, p.14)40 Os discursos neuroculturais, e, com eles, a neuroética, mascaram a continuidade existente, desde inícios do século XIX, nas grandes pressuposições, nas ‘grandes’ questões que eram colocadas (sobre a natureza da consciência ou a relação mente-cérebro), bem como nas respostas a elas (e.g., a mente como redutível ao cérebro ou a mente como uma propriedade emergente). O argumento de que os anos 1990 foram decretados a Década do Cérebro porque “o sucesso do método científico substituiu em parte noções mais antigas da alma (soul) ou o dualismo mente-corpo com a doutrina de que a mente (...) é um output exclusivo do cérebro” (Lepore, 2001) é típico do triunfalismo ahistórico característico do campo neuro. (Vidal, 2009, p. 10)41

O termo brainhood, que pode ser traduzido como ‘cerebralidade’, guarda

parentesco com a expressão personhood, ou personalidade; se o segundo responde pela

“qualidade ou condição de ser uma pessoa individual”, o primeiro nomearia a

“qualidade ou condição de ser um cérebro” (Vidal, 2005, 2009; Ortega e Vidal, 2007).

Aquilo que a neurociência contemporânea decreta, então, ter descoberto – ser o cérebro

a essência do que nos define como seres humanos, como afirma Andreasen (op. cit.) –

seria uma ideia profundamente enraizada na cultura ocidental, já que a ‘cerebralidade’

seria uma figura antropológica inerente à modernidade.42 O cérebro já ocuparia um lugar

central na concepção ocidental de pessoa em séculos anteriores, e com outros

argumentos, em seu tempo também considerados científicos.

40 “A good number of 20th- and 21st- century neuroscientists seem to think that their convictions

about the self are based on neuroscientific data. In fact, things happened the other way around: brainhood predated reliable neuroscientific discoveries, and constituted a motivating factor of the research that, in turn, legitimized it.”

41 “Neurocultural discourses, and neuroethics with them, mask the continuity that exists, since the early 19th century, in the main assumptions, in the ‘big’ questions being asked (about the nature of consciousness or the mind-brain relation), and in the answers to them as well (e.g. mind as reducible to brain or mind as an emergent property). The claim that the 1990s were declared the Decade of the Brain because ‘the success of the scientific method partially replaced older notions of the soul or mind-body dualism with the doctrine that mind… is the brain’s exclusive output’ (Lepore, 2001) is typical of the ahistorical triumphalism characteristic of the neuro-field.”

42 Ver Sourkes, 1998, em comentário sobre os trabalhos de Georges Cabanis (1757-1808), nos quais este último posiciona o estudo da atividade mental como parte da fisiologia, relacionando o físico e o moral.

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Capítulo 2 - Divulgação dos produtos da psicofarmacologia: o cérebro, suas doenças e seus medicamentos

Onde menos se espera, é possível se deparar com a ideia de que perturbações

mentais dos mais diversos tipos têm, em sua origem, um desequilíbrio do cérebro,

algum descompasso químico envolvendo neurotransmissores, em um formato de causa

e consequência. Por si só, esta constatação nos coloca uma questão: as doenças seriam

da mente ou do cérebro? Tal aspecto da saúde humana deve ser referido como ‘saúde

mental’ ou ‘saúde cerebral’? Na verdade, em um contexto no qual não há uma divisão

entre cérebro e mente, mas sim uma hierarquia na qual o cérebro tem na mente um

epifenômeno, trata-se de uma falsa questão. Neste caso, ainda que o vocabulário

utilizado seja ‘saúde mental’, é ao cérebro que se está referindo em última instância.

Esta é a perspectiva nativa evidenciada em grande parte do material analisado nesta

tese, no que diz respeito tanto à neurociência contemporânea, quanto ao material ligado

à psicofarmacologia.

Tomemos como exemplo e ponto de partida uma passagem do livro A cientista

que curou o seu próprio cérebro, no qual a neurocientista Jill Bolte Taylor relata como

se recuperou de um derrame no lado esquerdo do cérebro, partindo do momento em que

percebeu que estava tendo um acidente vascular cerebral, até ao que ela chama de “my

stroke of insight”: uma tomada de consciência de que ela poderia, em parte, “assumir o

comando” do que se passa no seu cérebro, escolhendo reativar ou não determinados

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neurocircuitos em seu processo de recuperação.43 Em uma frase que me parece lapidar,

ela afirma que “a saúde mental de nossa sociedade é estabelecida pela saúde mental dos

cérebros que a formam” (Taylor, 2008, p.190).

Duas questões relacionadas entre si surgem de imediato a partir desse excerto. A

primeira seria o que significa “saúde mental” no contexto da frase de Taylor; a segunda

seria a propósito da relação que a frase estabelece entre mente e cérebro. Não

precisamos ir muito longe para perceber que o termo ‘mente’, no trecho apresentado,

corresponde a uma espécie de fenômeno de segunda ordem do cérebro, uma

consequência da atividade em rede de nossos bilhões de neurônios, o mesmo valendo

para a ideia de saúde ou de doença mental. Esta é a perspectiva que a neurociência

contemporânea, assim como a corrente que se convencionou chamar psiquiatria

biológica, nos apresentam hoje: uma visão fisicalista da mente, que trabalha com a

possibilidade de uma base biológica para as doenças mentais em suas mais variadas

formas. Assim, cérebro, mente e sujeito se confundem, saúde mental parece ser um

sinônimo para saúde cerebral e males como a esquizofrenia e as variantes da depressão

e da ansiedade possuiriam uma materialidade equivalente a um acidente vascular

cerebral.

Outro ponto merece também atenção no trecho destacado acima. A ideia de que

43 A expressão foi traduzida para o português como “meu derrame de sabedoria” (“stroke”

significa, também, por metonímia, derrame). A sua escolha caminha na direção do lado direito do cérebro/mente: “Com base em minha experiência de perder o lado esquerdo da mente, acredito inteiramente que o sentimento de paz interior está localizado no circuito neurológico do lado direito do cérebro” (idem, p.169). Os termos mente e cérebro são utilizados de forma intercambiável para se referir aos dois lados do órgão. Já se entrevê aqui uma relação próxima entre diferentes aspectos da subjetividade e lateralidade cerebral: a “paz interior” tem endereço no lado direito do cérebro – lado que a autora passa a valorizar mais durante o seu processo de recuperação, e a usar conscientemente; enquanto isso, à esquerda estaria um circuito neural que ela escolheu não recuperar, devido ao seu “potencial para ser cruel, preocupar-se sem cessar ou ser verbalmente abusivo com relação aos outros ou a mim mesma” (idem, p.151-52). Por enquanto, deixo apenas sublinhado o sinal positivo dado à escolha e à autonomia, para retomar mais a frente uma discussão sobre a relação entre tais valores e representações presentes no marketing de psicofármacos.

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a saúde mental de uma sociedade é estabelecida pela saúde mental dos cérebros que a

formam traz embutido o pressuposto, nada óbvio, de que uma sociedade é formada por

cérebros. Temos aqui uma pista etnográfica para a nossa hipótese de que um acento no

cerebralismo – face específica da ideia mais ampla de fisicalismo – marca não apenas

uma determinada noção de ‘pessoa’, mas também, explicitamente, uma noção de

sociedade.

Encontrei variações desta ideia de uma saúde/doença cerebral em inúmeros

espaços que eu consideraria prováveis – um livro de uma neurocientista, uma revista

especializada no tema, peças publicitárias de laboratórios farmacêuticos –, mas também

em espaços e momentos a princípio improváveis, quando eu sequer estava fazendo

trabalho de campo44.

Uma história em quadrinhos (HQ) parece-me ser desses espaços pouco

prováveis, mas não por isso menos significativos. Estão envolvidos em uma batalha os

mutantes conhecidos como X-Men, personagens bastante populares no universo das

HQs e recentemente transpostos para o cinema. O que nos interessa aqui é o poder

atribuído a um mutante chamado Caliban: “a emoção é a arma de Caliban. Ele se

alimenta dela e a molda ao seu bel-prazer, disparando-a em um alvo à sua escolha na

forma de um vírus psicoativo”. Caliban ataca um mutante adversário, que fica de

imediato desabilitado para a batalha e cai no solo repetindo frases como “sinto muito,

sinto muito, é minha culpa”, e ainda “ma-mãe? / calma, filho, calma” (como se estivesse

revivendo um diálogo com sua mãe). Finda a batalha, aproxima-se da vítima uma

mutante sua aliada, também com poderes psíquicos, e explica o que aconteceu: “Caliban

o infectou com uma psicose temporária. Você está revivendo o seu passado... Preciso 44 Se é que faz sentido fazer esta divisão, levando em conta a forma como se deu esta etnografia.

Boa parte dos dados se apresentaram quando eu estava, por assim dizer, com a guarda etnográfica baixa. Por isso considerei importante salientar as condições de possibilidade de fazer este trabalho, composto por um campo heterogêneo, o que vai ficando mais evidente a cada capítulo.

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consertar isso rápido, antes que os danos sejam permanentes. Se eu puder bloquear os

neurotransmissores por alguns segundos... Pronto!”. E, com uma expressão de dor, o

mutante infectado com o “vírus psicoativo” volta ao normal, sem ter consciência do que

se havia passado45.

Nessa cena de ficção, a psicose pode ser causada por um vírus, o que por si só já

lhe conferiria uma base exclusivamente de ordem fisiológica; por sua vez, a cura da

“psicose temporária” dá-se instantaneamente através do bloqueio de

neurotransmissores, através de um toque de mãos nas laterais da cabeça do personagem

atingido, o que traz também a cura para o palco do cérebro enquanto órgão físico. O

sentimento de culpa é gerado automaticamente por um vírus, e retirado com a mesma

velocidade através de uma intervenção em uma conexão neural.

A escolha desta cena em uma revista em quadrinhos como um exemplo

etnográfico não é casual. Isso fala do quanto a ideia de uma saúde/doença cerebral está

entranhada em uma certa vertente da cultura contemporânea, espalhando-se pelo que

poderíamos chamar de uma cultura leiga, muito para além dos espaços eruditos ou

técnicos. Além disso, ao comentar esse espaço em que a princípio seria pouco provável

encontrar um discurso sobre doenças mentais/cerebrais e neurotransmissores, a ideia é

não permitir uma hierarquia entre representações mais ou menos próximas do

‘científico’, mas justamente pensar a forma como esses discursos (mais ou menos

leigos, mais ou menos especializados) se relacionam, interpenetram e influenciam

mutuamente. Nelkin e Lendee (1995) propõem um método de pesquisa semelhante a

respeito de uma temática próxima, o DNA – o parentesco fica por conta de ambos os

45 Deparei-me ao acaso com esta cena em “Guerra Civil: X-Men n. 1, 2006”. Os personagens

principais da revista são mutantes, heróis ou vilões que nasceram com determinadas características mutagênicas que conferem diferentes habilidades especiais a cada um.

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temas remeterem de alguma forma a debates a respeito de uma ‘natureza humana’46.

Com o objetivo de refletir sobre o que chamam a “mística do DNA” na cultura

americana, elas afirmam que

A cultura popular importa. Para muitos consumidores, estórias criadas para a mídia, novelas, livros de aconselhamento, imagens publicitárias e outros veículos de cultura popular são uma fonte crucial de orientação e informação. Não se trata simplesmente de fontes escapistas. São narrativas de significado, que ajudam os seus atentos ouvintes a lidar com dilemas sociais, a descobrir os limites do comportamento socialmente aceito e a filtrar ideias complexas. (...) O objetivo da nossa análise não é o de identificar distorções populares da ciência, ou desbancar mitos científicos. A questão interessante não é o contraste entre as culturas científica e popular; é a maneira como se cruzam, para moldar o sentido cultural do gene. (Nelkin e Lendee, 1995, p.11/ p.4)47

Parafraseando as autoras, o que proponho aqui é pensar o sucesso atual das

neurociências e de uma certa vertente da psiquiatria contemporânea entre o público

leigo como parte de uma ‘mística do cérebro’, que se reflete na ampliação do espaço

ocupado por temas relacionados a este órgão, sua saúde, suas doenças e seu

aprimoramento, na mídia em geral. Em sentido amplo, o cérebro tornou-se um órgão

hegemônico, uma janela através da qual olhamos o mundo e explicamos o nosso

relacionamento com este mundo.

No que diz respeito às aparições do cérebro, ou ao discurso de especialistas no

assunto, em peças de comunicação de massa, os exemplos se renovam a cada dia, no

próprio momento em que escrevo. Tais situações serão relatadas no decorrer dos

46 Comparando a genética à figura antropológica do “sujeito cerebral”, afirma Vidal (2009, p.

6): “Ao julgar pela sua presença na mídia, o self genético parece ser o adversário mais forte do sujeito cerebral. O genoma vem-se tornando de fato uma metáfora moderna para a alma”.

47 “Popular culture matters. For many consumers, media stories, soap operas, advice books, advertising images, and other vehicles of popular culture are a crucial source of guidance and information. These are not simply escapist sources. They are narratives of meaning, helping their attentive listeners deal with social dilemmas, discover the boundaries of socially acceptable behavior, and filter complex ideas. (…) The point of our analysis is not to identify popular distortions of science or to debunk scientific myths. The interesting question is not the contrast between scientific and popular culture; it is how they intersect to shape the cultural meaning of the gene.”

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capítulos, conforme sua pertinência. No programa Fantástico, da TV Globo (com

emissão em 20/04/09), a propósito de um personagem esquizofrênico na novela

Caminho das Índias (ambos programas de forte audiência na TV brasileira), uma

reportagem mostrava o processo de preparação do ator, que teria visitado hospitais em

sua pesquisa em busca por maior verossimilhança. O texto destacava que “áreas

cerebrais ligadas à audição” explicariam o porquê de se ouvir vozes como parte da

doença. Uma animação – aliás de tipo bastante comum na TV quando o assunto remete

ao cérebro, ou a doenças e sentimentos a ele relacionados – mostrava o que seria a área

conhecida como sinapse, um hiato entre os neurônios, por onde fluem os

neurotransmissores; o neurotransmissor dopamina é representado por bolinhas que

fluem pelo vazio entre os neurônios, sendo captado por uma espécie de tubo do outro

lado. O excesso de dopamina liberada entre os neurônios seria a causa da esquizofrenia.

Os termos “doenças do cérebro” ou “saúde cerebral” vão aparecendo com maior

frequência, substituindo o termo de amplo uso saúde/doença mental. É o caso de uma

edição da revista Viver mente e cérebro, cuja capa é ilustrada por um traje masculino,

sendo que a cabeça é substituída por uma maça verde, apodrecida em algumas partes. A

chamada central na capa é justamente o termo “Doenças do cérebro”, e a revista aborda

os males mais diversos, passando pelo Alzheimer, Parkinson e autismo, até a depressão,

a ansiedade e o stress.

A difusão de saberes sobre a psicofarmacologia contemporânea é encarada aqui

como uma faceta importante de um fenômeno mais amplo, a difusão de saberes sobre o

cérebro. Hoje estes temas são inseparáveis, já que o discurso dos laboratórios

farmacêuticos sobre doenças como a depressão, a ansiedade e a esquizofrenia estão

recheados de menções à química cerebral e ao papel dos neurotransmissores. A

indústria farmacêutica constitui um agente central na difusão de ideias sobre doenças e

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medicamentos do e para o cérebro.

Em outubro de 2007, participei do XXV Congresso Brasileiro de Psiquiatria, em

Porto Alegre. Estava movido especialmente por um interesse no marketing dos

psicofármacos, já informado de que parte do espaço físico do evento é ocupada por

estandes de laboratórios farmacêuticos, agentes importantes na difusão de uma

perspectiva fisicalista das doenças mentais, tanto para o público leigo quanto para os

profissionais da biomedicina. Minha intenção era etnografar esse espaço do evento –

ainda sem muita clareza de como isso poderia ser feito – e coletar material publicitário

para posterior análise. O evento, assim eu soube posteriormente, “recebeu 5.038

congressistas inscritos em atividades científicas e o público total presente foi de 7.000

pessoas”, o que fez desta reunião a terceira maior em sua especialidade, conforme

informa a própria Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), organizadora e promotora

do evento, destacando o sucesso do encontro48. Tanto as atividades científicas quanto a

área de exposições ocupavam o centro de eventos e exposições da Federação das

Indústrias do Estado do Rio Grande do Sul (FIERGS). Em síntese, tratava-se de um

evento de grandes proporções, cuja programação se espalhava por mesas redondas sobre

os mais diversos temas (67, ao todo), conferências especiais, simpósios, fóruns, sessões

de casos clínicos e sessões de vídeos. Alguns simpósios, chamados justamente de

“Simpósios da Indústria”, foram organizados pelos laboratórios farmacêuticos com

objetivos específicos de divulgação. Em alguns casos, era possível encontrar o mesmo

profissional apresentando trabalhos em atividades diversas, como, por exemplo, em uma

conferência especial e em um simpósio da indústria, o que demonstrava haver trânsito

entre as áreas científica e comercial do congresso.

48 As informações estão disponíveis no edital de concorrência para apresentação de proposta

comercial de empresas candidatas a prestadoras de serviços de montagem para o mesmo congresso no ano seguinte.

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Sem dúvida, trata-se de um espaço no qual as tensões entre diferentes

paradigmas a respeito da saúde mental/cerebral se mostram bastante evidentes.

2.1 Um não prescritor no Congresso Brasileiro de Psiquiatria

Minha intenção, ao chegar ao local da reunião, era permanecer na área destinada

aos estandes da indústria farmacêutica, o que de fato fiz na maior parte do tempo

durante os quatro dias de congresso. Ao analisar melhor o programa oficial, outros

eventos chamaram a minha atenção, como os “simpósios da indústria”, palestras e

mesas-redondas. Ainda assim, procurei me concentrar na chamada “área dos

expositores”.

Ao fazer a inscrição, recebi um crachá com uma tarja azul clara (identificada no

Programa Oficial do Congresso como “azul bebê”), que indicava a minha categoria de

estudante e o meu nome. Ao ler o livreto com o programa oficial do congresso, percebi

que as cores marcavam diferenças entre os participantes, da seguinte forma:

Identificação das tarjas nos crachás: Organização – vermelho Associado da ABP – verde escuro Médico – amarelo escuro Profissional da saúde – azul Estudante – azul bebê Participante de um dia – branco (letras em vermelho) Expositor – violeta Comunicação ABP – ocre Mais do que uma diferença, as cores pareciam marcar uma hierarquia de proximidade

com a instituição promotora do congresso e com a área de saúde. A escolha do tom

“azul bebê” para os estudantes de qualquer área aparentemente significava uma posição

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menos prestigiosa naquele ambiente. Mais alguns momentos e percebi que isso poderia

ter implicações práticas no que dizia respeito à minha inserção em alguns espaços. Logo

no grande salão de recepção aos congressistas, deparei-me com uma placa na qual se

lia:

AVISO: é permitido o acesso de congressistas não-médicos na área de exposição da indústria desde que sejam respeitadas as normas da ANVISA. Os participantes do evento têm sua categoria profissional facilmente identificada de acordo com as cores da tarja do crachá. É proibida a distribuição de materiais publicitários de medicamentos a profissionais de saúde não habilitados a prescrever

Versões mais sucintas deste texto se repetiam em outras placas espalhadas pela área dos

expositores. Como uma de minhas intenções era acessar material publicitário, fiquei

preocupado com a interdição legal de distribuição do material por parte de um órgão do

Estado. Não apenas eu não estou habilitado a prescrever, como sequer sou um

“profissional da saúde”, o que me deixaria a léguas de ter acesso ao material publicitário

que também me interessava. A placa e a presença institucional da Agência Nacional de

Vigilância Sanitária não me surpreendiam, mas naquele momento tomei consciência de

um novo personagem que não os laboratórios, e que poderia incidir nas relações que eu

pudesse estabelecer ali. De qualquer forma, o alvo da interdição da ANVISA era a

distribuição de material, ou seja, estava direcionada aos expositores, que deveriam

obedecer a um determinado critério, e não aos congressistas. A cor “azul bebê” em meu

crachá explicitava minha condição de estudante e poderia dificultar – assim eu

acreditava – meu acesso ao material distribuído ou a alguma atividade promovida nos

estandes. É claro que eu não tinha a intenção de me fazer passar por médico, ou mesmo

estudante de medicina; mas, como logo descobri, a minha condição de “estudante”

pouco me atrapalharia, devido à forma como as regras da agência reguladora parecem

ser interpretadas naquele espaço. Independentemente da minha vontade, naquele

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ambiente eu seria chamado repetidamente de “doutor”, já que, em caso de dúvida, os

propagandistas dos laboratórios e funcionários dos estandes partem do pressuposto de

que os participantes do congresso são médicos ou estudantes de medicina.

No mesmo prédio, contíguo ao espaço de inscrição e recepção, abria-se um

amplo salão ocupado pelos expositores. Uma linha imaginária dividia este salão em dois

lados, um deles ocupado pelos estandes da indústria farmacêutica, e o outro ocupado

por estandes de livrarias, grupos de ajuda mútua, guarda-volumes e venda de produtos

identificados com a região, como chocolates e doces.

O relato da minha experiência neste espaço não é linear no tempo ou no espaço,

já que voltei várias vezes aos mesmos estandes em momentos e dias diferentes do

congresso. Procurei visitá-los com atenção a todos, mas sem dúvida alguns deles – pelo

seu tamanho, decoração ou pelas atividades que propunham aos congressistas –

chamavam de imediato mais atenção do que outros. Por vezes um estande de

apresentação menos espetacular poderá concentrar a presença de congressistas

(incluindo a mim mesmo) devido a algum brinde distribuído, à presença de uma

celebridade ou um acepipe específico. Ou seja, a dinâmica da minha circulação pela

área dos estandes variava ao sabor das atividades mais chamativas. Como se vê, as

escolhas estavam sujeitas à minha avaliação subjetiva a cada momento, o que terá

influência também sobre este relato.

Optei por uma apresentação não linear que toma como ponto de partida cada

estande em separado. Uma vez que os exemplos possíveis seriam vários, concentrar-me-

ei em alguns que considero mais significativos, no que diz respeito à densidade das

experiências etnográficas e mesmo ao fato de ter havido alguma interação com os

funcionários dos estandes e com os congressistas.

Não foi sem alguma ansiedade que dei os primeiros passos no que me parecia

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ser uma espécie de Shopping Center voltado exclusivamente para o marketing de

psicofármacos. A comparação com um centro de compras pode soar como uma crítica

moral, visto que eu estava em um congresso científico; mas, de fato, é a imagem mais

próxima que me vem à mente em termos comparativos.

Figura 2 – área de exposição dos estandes da indústria, vista do 2º andar

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Figura 3 – lado oposto: livrarias, chapelaria, grupos de ajuda mútua

Visto de cima, a partir de um andar mais alto, ficava evidente uma diferença entre os

dois lados do amplo salão: o estímulo visual, iluminação e concentração de

congressistas circulando era claramente maior no lado ocupado pela indústria, onde

novas ações de marketing se sucediam a cada momento. Os dois lados eram separados

justamente pelo principal corredor de passagem do saguão de exposições. O lado direito

– visto de cima, a partir do ponto de onde foram tiradas as fotos – era ocupado

exclusivamente por estandes da indústria farmacêutica.

Quanto à minha ansiedade, ficava por conta de uma ‘estreia’ em um novo

campo, com regras que teriam que ser decodificadas em pouco tempo, já que se tratava

de uma experiência curta, de quatro dias, ainda que bastante concentrada em um espaço

físico relativamente pequeno – mas não por isso menos complexo e denso de

significados.

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2.1.1 Entre os estandes

Quando comecei a circular pela área dos expositores, as atividades do congresso

estavam apenas começando: impressos ainda estavam sendo arrumados para

distribuição, e algumas equipes estavam tendo os primeiros contatos com ações de

marketing dos estandes. O primeiro expositor que prendeu minha atenção – na verdade,

o primeiro estande no lado da indústria, do ponto de vista de quem adentrava o salão

vindo da área de recepção – divulgava o antidepressivo Cymbalta® (cloridrato de

duloxetina)49, do Laboratório Lilly Boehinger-Ingelheim. Ao me aproximar do estande,

recebi alguns brindes: um biscoito da sorte, com a mensagem “Preparado para ver as

coisas de forma diferente?”, e um pequeno brinquedo de plástico, com uma lente que

aumentava um minúsculo impresso interno (uma espécie de óculo), no qual se lia

“PR3P4RADO P4R4 V3R A5 CO1545 D3 UM J3170 D1F3R3N73? Visite o estande

do Cymbalta!”.

Conforme anunciado em um pequeno folheto que me foi entregue, as ações de

marketing neste espaço estavam baseadas no conceito “trata além do óbvio”. O

promotor50 que trabalhava no estande me explica a ideia da seguinte forma: além de

tratar a depressão, o remédio trata sintomas associados à doença, como dores e

49 No Brasil este medicamento tem indicação na bula para tratamento de transtorno de depressão

maior. No site www.cymbalta.com, vemos que o medicamento é indicado no mercado americano também para transtorno de ansiedade generalizada, fibromialgia e para as dores relacionadas à neuropatia diabética.

50 Em conversa com a funcionária de um estande, perguntei como eu deveria me referir à sua categoria profissional. Ela se apresenta como “representante de vendas da indústria farmacêutica”. Na internet encontrei cursos de “formação de propagandistas e promotores para a indústria farmacêutica”. Casualmente, andando por Rosário, na Argentina, deparei-me com um “Centro de Estudios Superiores”, um de cujos cursos oferecidos era o de “agente de propaganda médica”. Para designar os profissionais que trabalham nos estandes das indústrias, utilizarei o termo promotor ou propagandista; muitos dos funcionários dos estandes eram de fato representantes de vendas dos laboratórios, o que não parecia ser o caso de todos eles. Parece ser uma profissão a respeito da qual não foi feito ainda qualquer esforço etnográfico no Brasil, tanto quanto sei; mas, tomando como referência a experiência que tive no CBP, e a presença frequente destes profissionais nas salas de espera de consultórios médicos, eles parecem ser um elo importante de ligação entre indústria farmacêutica e médicos.

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“problemas sexuais”, e aí estaria a conexão com “ver as coisas de forma diferente” e

com o “além do óbvio”. O foco da ação de marketing estaria nos sintomas físicos da

depressão, dividindo a atenção com os sintomas emocionais.

As atividades propostas pelo estande estavam voltadas mais ou menos

explicitamente para o estímulo dos sentidos. No interior do estande, três espaços

principais se destacavam: o “planetário de palavras”, a “parede dos sentidos” e um

balcão com serviço de café e alimentação. No chão do estande estavam impressas frases

de caráter negativo, que falam de consequências da doença na vida da pessoa: “a

depressão fez de mim uma pessoa solitária”, “meu sonho é voltar à vida que eu tinha

antes”, “vivo preocupada e não consigo resolver nada”, “minha vida não é mais como

era antes”. Já nas paredes principais, impressos maiores contrapunham problemas e

soluções: um deles mostra uma mulher com as mãos na cabeça e destaque para a frase

“estou me sentindo desanimada o tempo todo”; a partir da palavra “desanimada”, saíam

traços que indicavam outros termos: perda de prazer, tristeza, ansiedade, queixas

dolorosas, tensão muscular e alteração do apetite (ver figura 4). Em contraposição, o

impresso central do estande destacava uma mulher sorrindo e a frase “eu posso ter a

minha vida de volta” – e, a partir da palavra ‘vida’, indicavam-se os termos tempo com

a família, voltar a trabalhar, ter confiança, sorrir, reencontrar amigos e caminhar.

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Figura 4 – impresso no estande do medicamento Cymbalta

É digno de nota um recorte de gênero nesse estande, já que as imagens em

destaque são sempre de mulheres, o mesmo valendo para o material impresso

distribuído. Fica mais do que evidente, ao menos no que diz respeito a esse estande, a

relação entre a depressão e uma imagem feminina. Isso não deveria ser surpresa já que,

no caso da depressão maior (uma das indicações do medicamento), estudos indicariam

uma prevalência na proporção de 2:1 entre mulheres e homens (Justo e Calil, 2006)51.

Entro por uma porta, convidado pelos funcionários, sobre a qual se lê “planetário

de palavras”. Ela dava acesso, disseram-me, a uma “experiência visual”. A sala já

estava escura quando entrei. Em alguns segundos, cercado por quatro paredes, tem 51 Em uma primeira abordagem, o ‘dado epidemiológico’ poderia justificar o porquê da

prevalência de imagens femininas no marketing relacionado à depressão e aos antidepressivos, mas vale desconfiar um pouco dos números, já que a própria produção do dado científico pode ser generificado, influenciado pela representação da biomedicina acerca do feminino. A respeito das representações diferenciais da medicina sobre o feminino, ver Martin 2006 e Rohden 2001.

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início a projeção de uma série de poemas e letras de músicas, que giram em torno do

grupo presente. Trechos de João Cabral de Melo Neto, Chico Buarque, Nelson Sargento

e outros poetas e compositores são projetados nas paredes, circulando por elas, sendo ao

mesmo tempo declamados no áudio52. Os primeiros trechos em destaque falam de

tristeza, angústia e desesperança; em seguida, outros trechos mencionam “dar a volta

por cima” e felicidade. A contraposição dos poemas claramente nos leva da doença à

cura, da depressão à redescoberta do prazer com a “vida”, e conclui com um tom

otimista. No escuro e cercado por mais sete pessoas, não tenho condições de tomar

notas dos trechos de poemas e letras de músicas. Em seguida à projeção/leitura dos

poemas, divulga-se o medicamento, indicado para transtorno depressivo maior e para

tratamento das dores relacionadas à neuropatia diabética; chama-se atenção ainda para

as possíveis “novas indicações” de Cymbalta, como o transtorno de ansiedade.

Ainda nesse mesmo estande, o laboratório traz um móvel com 48 gavetas, uma

estrutura de madeira denominada “parede dos sentidos”. Entre uma maioria de gavetas

brancas, algumas coloridas (azuis e verdes) trazem o nome dos cinco sentidos humanos.

Somente estas gavetas coloridas podem ser abertas. A ideia é que, ao abrir as gavetas

indicadas, o congressista tenha uma experiência sensorial: a ‘visão’ traz fotos, a

‘audição’ um fone e o dizer “aperte no play” (mas que não emitia qualquer som), a

gaveta do olfato traz um sachet perfumado, o ‘tato’ apresenta uma substância gelatinosa

(mas que não gruda nos dedos) e a gaveta do paladar oferece pequenas balinhas.

A estratégia era estabelecer um contraponto entre, por um lado, a perda de prazer

com a vida e os sentidos acarretada pelos estados depressivos e, por outro, o estímulo

dos sentidos dos congressistas. A escolha de marketing fica ainda mais clara quando

folheio uma monografia do medicamento, um impresso voltado para os profissionais

52 A experiência estética tem como referência uma das atividades no Museu da Língua

Portuguesa, em São Paulo.

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prescritores, disponível no estande, à qual tive acesso sem qualquer impedimento. Na

introdução desta monografia, apresenta-se a “teoria bioquímica da depressão”, baseada

no papel dos neurotransmissores serotonina e noradrenalina; o texto confere destaque

aos sintomas físicos “fortemente reconhecidos como parte da síndrome depressiva” e

que incluem

falta de energia, distúrbios do sono, dores e queixas vagas, dor de cabeça, mudanças de apetite, distúrbios gastrintestinais e alterações na psicomotricidade. Enquanto os sintomas emocionais da depressão são mais fáceis de serem reconhecidos, os sintomas físicos geralmente são subestimados, complicando tanto o diagnóstico quanto o prognóstico da depressão.

Mas qual a relação entre a química do medicamento e o conjunto de sintomas físicos

associados à depressão? A resposta inclui um tom de incerteza a respeito de como

atuam os neurotransmissores:

os principais sintomas da depressão (...) que incluem humor depressivo, dores e queixas físicas, perda de energia e prejuízo da função cognitiva, não estão claramente identificados com um ou outro neurotransmissor. Dessa forma, vemos que há uma grande sobreposição dos sintomas mediados por estes dois neurotransmissores, tornando impossível determinar clinicamente se um paciente deprimido responderá melhor a um inibidor de recaptação de serotonina ou de noradrenalina. Além disso, pelo fato de muitos pacientes se apresentarem tanto com sintomas emocionais quanto físicos da depressão, usar um antidepressivo que atue tanto na serotonina como na noradrenalina pode aumentar a chance de melhorar todos os sintomas do paciente. (o grifo é meu)

Sendo o Cymbalta um inibidor de recaptação dos dois neurotransmissores, a

estratégia de destacar os sintomas físicos da depressão no estande – indo “além do

óbvio”, que seria tratar os sintomas emocionais – ficava agora mais clara. Como não se

conhece, conforme se afirma na monografia, qual a relação exata de cada

neurotransmissor com os sintomas físicos relacionados à depressão e destacados no

estande, o Cymbalta traria vantagens sobre os inibidores seletivos de recaptação de

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serotonina, como o conhecido Prozac, e sobre os medicamentos que atuam somente na

noradrenalina.53

Percebi nas experiências desse estande que eu deveria estar atento a uma relação

fina entre os medicamentos e as ações de marketing, relação esta que nem sempre é tão

óbvia para alguém não versado em psicofarmacologia. A característica específica de

cada molécula, suas vantagens em relação a medicamentos concorrentes, estariam (ou

ao menos poderiam estar) em relação com as atividades e imagens de cada estande; e

deveria atentar também para um possível diálogo surdo entre os estandes, visto que eu

estava em meio a empresas concorrentes, divulgando argumentos mais ou menos

explícitos para convencer os prescritores. Nos dias seguintes, passei a me apresentar

mais diretamente aos funcionários dos estandes como um estudante com interesse em

fazer um trabalho sobre a relação entre os estandes e os medicamentos.

O estande que divulgava o Rivotril® (Clonazepam), do laboratório Roche,

parecia-me um dos mais peculiares. Talvez por isso, durante os quatro dias de

congresso, presenciei e participei de algumas cenas que se relacionam especificamente

com este espaço, ao qual voltava ciclicamente. As atividades oferecidas pelo estande

combinavam artes plásticas e um clima de lounge, com serviço de bar e um DJ que se

apresentava sobre uma bancada. O formato do espaço pode remeter a várias imagens:

um disco-voador, uma flor ou mesmo uma taça de champagne (talvez inspirado na

arquitetura do Museu de Arte Contemporânea em Niterói-RJ, um dos conhecidos

projetos de Oscar Niemeyer); em torno desta estrutura funcionava um bar, onde eram

53 Na monografia disponível no estande sobre o Cymbalta, parte do texto é dedicada a

diferenciar a estrutura química de Cymbalta, Prozac e Strattera (este último um inibidor seletivo de recaptação de noradrenalina), todos os três fabricados pelo mesmo laboratório. O texto ressalta que não se trata de isômeros, apesar de compartilharem algumas características químicas: “entretanto são moléculas distintas, com diferenças estruturais, sendo que Cymbalta não foi desenvolvido a partir de Prozac, que é um ISRS. Essas diferenças estruturais podem ser consideradas em relação aos diferentes efeitos clínicos proporcionados por cada uma das drogas”.

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servidos coquetéis não alcoólicos no horário comercial do congresso, e alcoólicos no

momento do happy-hour, no início da noite, quando um clima de festa tomava conta da

área próxima a este e outros estandes. Uma vez terminadas as atividades, era nessa

região que se concentravam os congressistas.

Das diversas indicações previstas na bula do medicamento54, o estande destacava

o transtorno de pânico. Um grande cartaz no centro do estande mostra um corpo – que

parece ser masculino – em corrida, e traz a palavra “pânico” impressa sobre ele.

Dj, barmen e os promotores do estande vestiam uma camiseta preta, na qual as

letras R-I-V, iniciais de Rivotril, em amarelo, estavam espalhadas de forma irregular.

Em uma primeira aproximação, tomei um drink não alcoólico. As três opções de drinks

disponíveis no bar eram nomeados por adjetivos e assim deveriam ser pedidas: rápido,

eficaz e barato; esse último, por exemplo, era feito com suco de laranja, suco de

maracujá, mix de limão e Sprite. Os adjetivos, obviamente, são características atribuídas

ao medicamento pelo laboratório. No bar, tive acesso ao cardápio completo de coquetéis

não alcoólicos criados sob encomenda para este estande por uma empresa especializada

em serviços de barman, que incluía ainda as opções acessível, seguro e controle (a

receita deste último contem Monin Blue Curaçao, groselha, mix de limão e Sprite).

Duas situações no espaço da Roche/Rivotril/Pânico são especialmente dignas de nota.

No primeiro dia de congresso, chamou minha atenção uma grande tela para pintura, em

um dos cantos deste estande, com várias pequenas latas de tinta próximas a ela. Além de

outras formas, mais ou menos irregulares – um duende, um gato, olhos, uma estrela, um

coração, a palavra ‘Rivotril’ em destaque – lia-se na parte de baixo da tela a frase “viva

a psicanálise”. Tive o reflexo de fotografar esta imagem, pois achei interessante essa

54 Distúrbios epilépticos, transtornos de ansiedade (pânico, fobia social), transtornos do humor

(transtorno afetivo bipolar e depressão maior), síndrome das pernas inquietas, síndrome da boca ardente.

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manifestação favorável à psicanálise no estande de um medicamento.

Figura 5 – pintura coletiva, estante do medicamento Rivotril, primeiro momento

Quando voltei, algumas horas mais tarde, àquele mesmo ponto, a tela continuava lá,

mas o conteúdo dos desenhos tinha se modificado. As intervenções haviam se

multiplicado, a tela tinha menos espaços vazios, e da frase “viva a psicanálise” havia

sobrado somente o “viva”; como eu havia visto a tela em dois momentos diferentes, era

possível perceber que o resto da frase havia sido deliberadamente coberto por novas

pinturas – na verdade, por figuras geométricas como quadrados e triângulos, ou

simplesmente traços.

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Figura 6 – pintura coletiva, estante do medicamento Rivotril, segundo momento

Perguntei a um dos promotores se eles haviam trocado a tela. Ele me disse que

não, e explicou que se tratava de uma “obra coletiva”, que qualquer pessoa poderia fazer

uso das tintas e pintar alguma coisa. Comentei sobre a frase que havia sumido, e ele me

disse “é, só ficou o viva... deve ter sido algum psiquiatra clínico que passou por aqui... e

esse ‘Rivotril’ não fomos nós, porque a ANVISA não permite”. Uma resposta curta,

mas na qual se entrevê tensões: a suposta figura de um “psiquiatra clínico”, cuja

intervenção na pintura coletiva insere uma diferença entre o medicamento e a

psicanálise; e também, mais uma vez, a ANVISA, órgão cujos olhos estariam

supostamente atentos em busca de alguma irregularidade.

Uma segunda situação ocorreu após mais uma volta pelos estandes, e um retorno

ao espaço do “pânico”. Desta vez estava acompanhado de uma amiga, que encontrei por

acaso, uma médica/psiquiatra com formação também em antropologia, com quem eu

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havia estudado alguns anos antes. A companhia dessa colega ajudou-me a perceber uma

tensão nem sempre explícita naquele espaço entre diferentes paradigmas que convivem

nas áreas Psi. Quando nos aproximamos do estande, ela se mostrou surpresa por uma

das atividades organizadas pelo laboratório ser uma oficina de arte, na qual se poderia

praticar grafite, mosaico e caricatura em diferentes horários. A surpresa dela estava

relacionada à sua opinião de que o Rivotril seria um medicamento que “chapa” o

usuário, efeito que não combinaria com atividades artísticas criativas. De qualquer

forma, nos aproximamos do bar para tomar um coquetel (ainda não alcoólico naquele

horário), e então presenciei a seguinte situação: um congressista deixava o balcão com o

seu drink, que era servido com uma espécie de gelo seco, que faz com que a bebida

solte fumaça. Ao passar por mim e minha amiga, ele faz um comentário comparativo

em tom jocoso: “legal, só que o Rivotril não solta fumaça”, ao que minha amiga

contrapôs, aparentando um certo incômodo, mas bom-humor: “e o coquetel não chapa

como o Rivotril”.

O estande disponibiliza um grande volume de material publicitário, entre

pequenos impressos, monografias do produto e sobre doenças por ele tratadas, além de

uma série de DVDs que continham filmes promocionais que seriam parte de um

“Festival de Curtas” chamado “Pânico em cena 2007”. A propagandista do estande me

explicou que os filmes trazem casos de pânico interpretados por atores, e “serve para

mostrar aos pacientes que muitas vezes resistem ao diagnóstico”.55

Como já disse, os laboratórios estavam proibidos por ordem da ANVISA de

entregar material de marketing a um “não-prescritor” como eu. Mas, nesta passagem

55 Trata-se de curtas metragens produzidos para a Roche, com diferentes roteiros. Em um deles,

uma mulher conta como os sintomas de pânico do seu ex-marido levou ao fim do casamento; em um outro, uma mulher apresenta os sintomas durante uma trilha na mata com os amigos, interrompendo o passeio, para a decepção de todos. Um texto no verso do CD termina com a frase “A síndrome do pânico pode acontecer com qualquer um e não marca hora para alterar a rotina e prejudicar quem está sofrendo desse mal”.

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pelo estande descrita acima, acompanhado de uma colega psiquiatra, percebi que essa

regra era tratada com ambiguidade. Quando nos aproximamos, fomos atendidos por

uma promotora do estande, a quem perguntamos a respeito do acesso ao material

publicitário. Ela nos questionou: “Alguém visita vocês?” – uma frase que eu ouviria

com frequência em vários estandes durante o congresso. Ela se refere aos representantes

dos laboratórios, que circulam por consultórios médicos divulgando os produtos. Os

laboratórios aproveitam o congresso e a grande concentração de médicos para cadastrar

profissionais que queiram depois ser visitados por representantes da indústria

farmacêutica. A médica que me acompanhava disse que ninguém a visita, e a promotora

informou que, se ela assim o quisesse, seria necessário cadastrar o endereço do

consultório. Eu acusei de imediato minha condição de “não-prescritor”, e foi então que

percebi como os laboratórios expositores – ou ao menos os promotores destes espaços –

interpretavam as regras da ANVISA. Ela disse que não poderia me entregar alguns

materiais “porque os fiscais da ANVISA estavam de olho”, mas que os folhetos estão

em exposição e eu poderia pegá-los por conta própria. Por um segundo, refleti se eu

estaria ferindo algum critério ético de pesquisa antropológica, mas conclui que, se havia

algum mal-entendido, seria entre os laboratórios e a agência reguladora. Em nenhum

momento pude identificar a presença dos referidos fiscais, ainda que eles fossem

mencionados de tempos em tempos pelos funcionários dos estandes. O fato é que, em

todos os dias do congresso, eu tive que fazer uso do serviço de guarda-volumes, tal a

quantidade de material impresso que era disponibilizado, o que gerava um peso

considerável. Eu voltava para casa com algumas sacolas de material publicitário dos

laboratórios, peças que me foram entregues pelos promotores ou que estavam

disponíveis nos estandes, mesmo para um “não-prescritor”.

Como já foi dito, as proximidades do estande do laboratório Roche que

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divulgava com destaque a síndrome do pânico e o Rivotril funcionavam como um

espaço preferencial de sociabilidade após o horário comercial do congresso. Era nos

arredores deste estande que acontecia uma espécie de happy-hour, com música,

coquetéis agora alcoólicos e concentração de congressistas. Não era sem algum

estranhamento que eu participava deste momento de sociabilidade, com música e

drinks, entre estandes que divulgavam medicamentos. Tais momentos se mostraram

boas oportunidades para conversas informais com as poucas pessoas que eu conhecia.

Dei-me conta apenas posteriormente de que o livro com o programa oficial do

congresso trazia apenas duas páginas dedicadas à publicidade: a página dois era tomada

justamente por um anúncio do Rivotril, no qual se destaca o seu “rápido início de ação”,

e a quarta capa trazia um anúncio do laboratório Servier, que estaria divulgando o

lançamento de um novo antidepressivo naquele congresso. Isso me parecia confirmar

um espaço de destaque para este medicamento no espaço dos laboratórios no congresso,

se levarmos em conta o investimento necessário para essa exposição.

Este espaço destacado de divulgação faz eco com a informação depois obtida a

respeito do atual sucesso de mercado do Rivotril. Números aferidos no ano de 2009 pelo

instituto IMS Health, que audita a indústria farmacêutica, apontam o Rivotril como o

segundo medicamento mais vendido do país em 2008 (ano seguinte ao congresso que

frequentei), atrás apenas do anticoncepcional Microvlar. Em 2004, o Rivotril era o sexto

nesta lista, e sequer aparecia na lista dos 10 mais vendidos em 1998, apesar de já estar

disponível há 35 anos no mercado. Estas informações constam em uma reportagem na

revista semanal Época, que destacava em sua capa de 23 de fevereiro de 2009 uma

chamada com o texto “A vida com calmante – como o Brasil se tornou o maior

consumidor mundial de Rivotril”, sem contudo apresentar dados sobre a venda de

Rivotril em outros países. O que me chamou atenção na reportagem são os motivos

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destacados para justificar o sucesso de vendas do medicamento, ali definido como

“espetacular”56. Um dos principais seria a falta de psiquiatras no país, que leva a um

tratamento inadequado e excesso de prescrições, mesmo em casos não necessários. Um

psiquiatra entrevistado pela revista afirma que “os médicos fazem isso porque o remédio

é barato (a caixinha mais cara custa R$13, cerca de U$6,50 no câmbio do momento),

antigo e seguro (...) mas ele pode mascarar quadros mais graves”. Ainda que haja uma

visão crítica na observação deste psiquiatra, lembrei-me de já ter visto esses adjetivos

sendo atribuídos ao Rivotril: barato e seguro eram os nomes de dois dos drinques não-

alcoolicos servidos pelo estande do medicamento no Congresso Brasileiro de Psiquiatria

de dois anos antes. As qualidades atribuídas pelo laboratório ao medicamento agora

apareciam nesta reportagem avalizadas pela opinião de um médico e espalhando-se por

via de uma revista de comunicação de massa.

Ao que parece, o Rivotril começa a ocupar um espaço simbólico para muito

além de sua dimensão terapêutica (Lefèvre, 1991). Trata-se de um fenômeno já

conhecido, e já observado no caso de outros medicamentos de grande sucesso comercial

como, por exemplo, o Prozac. O nome-fantasia de um medicamento de sucesso pode se

tornar uma espécie de referência em sua área de atuação; mais do que isso, no caso de

psicotrópicos, pode se tornar um sinônimo do estado de humor que ele, supostamente,

geraria; indo além, uma pílula pode mesmo passar a significar um certo tipo de

personalidade. Ainda hoje, ouve-se menções ao Prozac em contextos os mais variados,

como no caso de um músico que qualifica o seu próximo CD como um “Prozac

56 O primeiro deles seria o número de pessoas em sofrimento psíquico: “transtornos de

ansiedade e depressão são comuns nas grandes cidades, castigadas pela violência, pelo trânsito e pelo desemprego. Mas a pesquisa São Paulo Megacity, uma parceria do Hospital das Clínicas de São Paulo com a Organização Mundial de Saúde, revela que 40% dos moradores da região metropolitana sofre de algum tipo de transtorno psiquiátrico”. Isso remete a uma relação que não é nova na cultura ocidental: a ideia de doenças da civilização, de males do espaço urbano.

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musical” em um jornal de grande circulação no Rio de Janeiro57, e a mensagem parece

ser entendida pelos leitores, que compartilham esta referência (caso contrário, muito

possivelmente, não estaria no texto). Uma participante do reality-show No Limite, da

rede Globo (que isola os competidores em condições teoricamente desafiadoras de

sobrevivência), em sua edição de 2009, é mencionada em uma coluna social no jornal O

Dia58, como tendo afirmado antes da entrada no programa o seu desejo de “sair rica para

beber muito champagne (...) Não sei como será a vida comendo olho de cabra. O

máximo que posso dizer é que não sei como vou viver sem o meu Rivotril e o meu

secador de cabelo”. Em uma foto ao lado deste texto, ela aparece em um vestido de festa

(curto, decotado, de cor roxa), com um sorriso escancarado.

A imagem do Rivotril voltou a atravessar o meu caminho em mais um desses

momentos nos quais o trabalho de campo irrompe de surpresa em meio à vida cotidiana.

Eu subia uma rua no bairro da Gávea (zona sul do Rio de Janeiro), em uma área

ocupada por casas de alto padrão; sem nenhuma relação com minhas atividades de

pesquisa, eu me direcionava ao consultório de um conhecido neurologista, levando os

exames de uma pessoa da minha família em busca de uma segunda opinião a respeito de

uma possível cirurgia. Ao virar uma esquina, deparei-me com um muro pichado com a

palavra ‘Rivotril’; não havia outras paredes pichadas nesta mesma área, então aquela

intervenção parecia ser isolada. Fiquei congelado alguns minutos em frente ao muro

pichado, lamentando não portar uma máquina fotográfica ou um celular com o qual

pudesse registrar a imagem. Lembrei-me de como me soou estranha a presença da frase

“viva a psicanálise” na pintura coletiva que estava no estande do medicamento.

57 O músico Ed Motta define assim um seu próximo disco, um retorno ao “pop dançante” após

discos instrumentais, em uma nota na coluna Gente Boa, de Joaquim Ferreira dos Santos, no suplemento de cultura do jornal O Globo, data de capa 7 de setembro de 2009.

58 Coluna social de Bruno Astuto, na edição de 11 de agosto de 2009. Entre os jornais diários que circulam no Rio de Janeiro, O Dia ocupa um lugar entre O Globo, que pode ser considerado um jornal voltado para a elite letrada, e os periódicos populares, mais baratos e voltados para as classes populares.

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Iluminada a posteriori por esta nova experiência, agora aquilo me soava como uma

espécie de pichação feita por um grupo de resistência, uma manifestação intrusiva que

foi logo apagada em poucas horas, mas que falava, assim como as observações de

minha colega psiquiatra, da presença mais ou menos silenciosa de um grupo dissidente

naquele espaço da indústria farmacêutica.

Alguns dias depois, pedi a um amigo que frequenta o bairro – e costuma passar

justamente naquela rua – que fotografasse o muro pichado. Ele me ligou posteriormente,

comentando – com alguma ironia – que talvez eu “estivesse trabalhando demais”, já que

ele não conseguia encontrar o tal muro pichado, ainda que passasse por ali com alguma

frequência. Imagino que, assim como no caso na tela coletiva no estande do Rivotril,

ainda que por outros motivos, alguém tenha passado uma mão de tinta por cima da

pichação, devolvendo a cor branca ao muro da casa. Seria o “Rivotril” pichado naquele

muro, em uma área hipoteticamente habitada e frequentada por pessoas com acesso a

diversas possibilidades terapêuticas relacionadas ao universo psi, medicamentos por

certo, mas também psicanálise e outras linhas de psicoterapia, tão intrusivo quanto o

“viva a psicanálise” no estande do medicamento?

No caso do medicamento Lorax® (Lorazepam), o estande disponibilizava

massagens de diversos estilos para os congressistas, em cadeiras especiais, uma

atividade bastante concorrida. Em destaque na estrutura do estande, lê-se a chamada

“proporcione um relax com Lorax” e, mais abaixo, “rápido e eficaz alívio da

ansiedade”. Considerei eu mesmo que uma massagem não faria mal, sendo aquele o

terceiro dia de congresso. O massagista por quem fui atendido era um fisioterapeuta;

pergunto a ele sobre a relação entre as massagens e o medicamento Lorax®, ao que ele

responde: “olha, eu não tenho conhecimento farmacológico, mas lendo ali [na estrutura

do estande] ‘ansiedade’, acho que a ideia é relacionar o relaxamento gerado pela

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massagem com o remédio. Eu trabalho em outra linha.”. Ele começa a me explicar os

efeitos positivos da massagem, como ela “mexe com os meridianos, como comprovado

pelos orientais; mas essa coisa dos meridianos e a nossa explicação hormonal na

verdade é a mesma coisa, né”, e segue explicando como a massagem pode atuar no

nível dos neurotransmissores dopamina e endorfina.

Em um diálogo rápido, misturam-se meridianos, hormônios, medicina oriental e

neurotransmissores. A forma como ele equipara a lógica dos meridianos à “explicação

hormonal” da biomedicina Ocidental pode ter um caráter pedagógico, mas não deixa de

mostrar como diferentes sistemas de crença circulam naquele espaço, ainda que

submetidos ou equiparados à lógica dos neurotransmissores.

Se no estande do medicamento Lorax o atrativo eram técnicas de massagem, a

poucos metros dali, no espaço dedicado ao Depakote®, o que chamava atenção eram

obras de arte. Este estande tinha como garoto-propaganda o pintor Van Gogh, imagem

que prendeu minha atenção. Por experiência própria de pesquisa e também pelo relato

de outros pesquisadores (Martin, 2007), sei que é comum atribuir diagnósticos

psiquiátricos – em alguns casos, categorias nosológicas recentemente criadas – a

personagens conhecidos da história universal. Van Gogh pode ser bipolar, assim como

Abraham Lincoln ou Mark Twain são indicados como tendo tido depressão; o subtexto

visa diminuir o estigma em torno destas doenças, ao mesmo tempo em que fala das

pretensões universalizantes das categorias psiquiátricas, que viajam entre culturas e

também no tempo.

O pintor, especialmente, tem sido citado quando se discute – como no

documentário da BBC Brain Story, apresentado pela neurocientista Susan Greenfield,

examinado no capítulo 1 – as relações entre cérebro e criatividade, e como uma doença

cerebral poderia influenciar a visão e as técnicas de um artista, mexendo com os

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sentidos e influenciando mesmo a forma como o sujeito vê o mundo natural. Perguntei a

um dos expositores neste estande o porquê de se utilizar imagens do pintor. Ele me

explicou que Van Gogh era “bipolar e sofria de crises convulsivas. A ideia é que se o

Depakote existisse na época, ele não teria se matado, cortado a orelha ou casado com

uma prostituta”. Imediatamente me veio à cabeça um complemento para a frase: pensei

que ele talvez também não tivesse pintado o que pintou e da forma como pintou, se

pensarmos o sujeito em sua totalidade; mais um segundo e percebi que o meu incômodo

falava das minhas crenças e acusava um algo que eu poderia chamar de etnocentrismo,

uma postura que seria aconselhável ter sob controle. Questionei ainda por que a coluna

do estande trazia um impresso com a palavra “EvoluiR” com a primeira e a última letras

destacadas em maiúsculas; o mesmo funcionário me explicou que eles estavam

divulgando uma nova apresentação “extended release”, cujas iniciais explicavam o ER.

Outros dois estandes, que estavam lado a lado na área dos expositores,

divulgavam antipsicóticos: o dos medicamentos Zyprexa® (olanzapina, do laboratório

Lilly) e Abilify® (aripiprazol, do laboratóro Bristol). O mesmo motivo movia algumas

escolhas de marketing dos dois estandes – a relação entre uso de antipsicóticos e

aumento de peso –, mas por razões diferentes. O estande do Zyprexa era maior em

tamanho e recebia um maior movimento de congressistas; quem passava por ali poderia

tirar uma foto de recordação do congresso – o que, aliás, eu fiz, como uma forma de

interagir com o espaço e as atividades propostas –, na qual o fotografado ficava logo

abaixo da frase “Zyprexa 10 anos. Obrigado por fazer parte dessa história”. Outra

atividade neste espaço era uma espécie de corrida em bicicletas ergométricas, cujo

vencedor levava como prêmio uma garrafa squeeze, do gênero utilizado por ciclistas e

outros atletas.

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Figura 7 – bicicletas ergométricas no estande do antipsicótico Zyprexa

Enquanto observo três congressistas competindo, tiro uma foto minha no sistema

instantâneo disponível e aproveito para fazer um pequeno lanche, oferecido pelo

laboratório, composto por iogurte natural sem açúcar, flocos de milho sem açúcar e

pequenos pedaços de melão. A alimentação leve e o exercício físico no estande estavam

relacionados ao programa que o laboratório Lilly, fabricante do Zyprexa, divulgava,

chamado “bem-estar”, voltado, segundo um folheto distribuído, para “promover a

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atenção à saúde dos portadores de transtornos mentais levando em conta a integração

entre corpo e mente saudáveis”, em convênio com o Departamento de Psiquiatria da

Universidade Federal de São Paulo.

Quando questionei o funcionário sobre a relação entre o medicamento e as

atividades do estande, ele me explicou que o “Zyprexa é um antipsicótico; o uso de

antidepressivos e antipsicóticos muitas vezes acarreta um aumento de peso. Então a

gente faz isso para que os médicos digam aos seus pacientes ‘façam exercício, comam

melhor’”. Em uma tarde, uma extensa fila se formou rumo a este estande porque o ex-

jogador de vôlei Giovane Gávio, contratado pelo laboratório, distribuía aos

congressistas bolas de vôlei autografadas, em mais uma atividade que relacionava o

Zyprexa de alguma forma a uma vida saudável e atividade física.

O estande ao lado, que divulgava o remédio Abilify, também relacionava os seus

brindes à ideia de que antipsicóticos podem, ou não, causar aumento de peso. Passei por

este estande em um horário de almoço, e uma fila já tinha se formado para ter acesso a

um prato com arroz, batata palha e carne. Como o serviço estava parado para reposição

dos alimentos, houve certa demora. Atrás de mim, uma mulher comenta que uma certa

demora “faz parte da estratégia, né?, ficar de frente pro Aripiprazol, não tem jeito”,

comentário que gerou risos em outras pessoas na fila. Fosse proposital a estratégia de

formar uma fila de frente para a logomarca do medicamento ou não, a observação em

tom jocoso – e os risos que demonstram algum grau de concordância – fala da

consciência que ali se tem das “estratégias” de marketing dos laboratórios, que podem

causar, senão desconforto entre os congressistas, alguma manifestação de ironia.

Dois dias depois, neste mesmo estande, era distribuída como brinde uma fita

métrica, do tipo que se usaria para tomar as medidas corporais, o que me deixou

surpreso; afinal, se antipsicóticos podem gerar aumento de peso, por que investir em um

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brinde para os médicos que realçaria este possível aumento de medidas? O funcionário

do estande me esclarece que o Abilily não engorda, “pelo contrário, o Abilify atua de

forma agonista e antagonista no sistema dopamimérgico – onde diminui, ele ajuda a

aumentar, onde aumenta, ele ajuda a reduzir, atua como um regulador”. Não me era

óbvia a relação direta entre essa atuação do medicamento e o aumento de peso, mas

segui em frente com o diálogo e questionei para que então a fita métrica, ao que ele

respondeu com um sorriso: “porque quando a pessoa perceber que as medidas estão

aumentando, está na hora de mudar de medicação”.

Os dois estandes vizinhos pareciam estar travando uma pequena guerra

silenciosa entre antipsicóticos concorrentes. Os brindes, atividades e alimentação estão

ali para enviar uma mensagem diretamente aos médicos, e indiretamente aos seus

pacientes. Não pude deixar de notar que a alimentação no estande do medicamento que

“não engorda” era mais pesada, enquanto o estande que divulgava o Zyprexa investia

em estratégias junto aos médicos que visavam gerar uma mudança de estilo de vida,

incluindo o fornecimento de uma alimentação leve.

2.1.2 Trabalho de campo em um campo dividido

Algumas das cenas descritas acima falam de uma cisão no campo da psiquiatria.

Refiro-me ao suposto “psiquiatra clínico” que teria desenhado por cima da frase “viva a

psicanálise” na pintura coletiva do estande do Rivotril, ou mesmo à percepção crítica

que minha colega psiquiatra tinha a respeito das técnicas de marketing neste mesmo

estande. Essa tensão não deveria ser exatamente uma surpresa, já que expressa, de certa

forma, uma diferença entre perspectivas que marcam o campo da saúde mental/cerebral.

Se há alguma novidade trazida pelas situações etnográficas aqui descritas, é que elas

ilustram uma tendência atual que subsume a mente ao cérebro, o psicológico ao

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orgânico, abrindo caminho para a ampliação daquilo que podemos chamar uma

medicalização da subjetividade, ou, com Maluf (2008), uma “racionalização biomédica

da vida subjetiva”. Não há dúvida de que, na difusão desta noção cerebralizada de

‘pessoa’, atores relacionados às neurociências contemporâneas e à chamada psiquiatria

biológica têm um papel central, com espaço crescente em diversos meios de

comunicação de massa e técnicas de marketing e divulgação para especialistas, como no

caso da área de estandes do congresso de psiquiatria que visitei.

Mas isso não significa que não haja vozes dissonantes. Como imaginei que

chegaria ao congresso às cegas, com uma ideia na cabeça por certo, mas sem ter grande

noção do espaço por onde estaria me movendo, busquei ajuda de informantes

privilegiados, a quem poderia recorrer caso necessário. Antes de viajar a Porto Alegre,

fiz contato – mediado muito gentilmente por uma professora minha – com um psiquiatra

que iria ao congresso e se dispôs a me ajudar. Ficou claro que se tratava de um

profissional com uma visão crítica da tendência exclusivamente ‘cerebralista’ e

medicamentosa que se convencionou chamar psiquiatria biológica. O mesmo vale para

alguns colegas seus, com quem também tive oportunidade de conversar; alguns

inclusive entretêm diálogo mais ou menos próximo com as ciências sociais.

O contato com esse grupo não foi constante durante os dias de congresso, até

porque eu não tinha intenção de atrapalhá-los – alguns tinham papers a apresentar –,

mas se mostrou, além de agradável, útil para que eu entendesse a natureza das diferentes

atividades no congresso, e no que consiste essa diferença, do ponto de vista deles. No

fim de tarde do primeiro dia de congresso, encontrei este grupo fazendo um happy-hour

nas proximidades do estande do Rivotril, onde havia um DJ e se serviam bebidas

alcoólicas após o final do horário de atividades do congresso. Fui apresentado ao grupo

pelo meu ‘guia’ como um antropólogo que estava ali com interesses etnográficos;

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enquanto tomávamos alguma coisa, expliquei de forma sintética que o meu trabalho

estava relacionado ao cerebralismo na/da cultura contemporânea, e a relação direta que

o tema possui com neurociências, psiquiatria biológica e o papel da indústria

farmacêutica.

Naquele grupo, o tema de pesquisa encontrou eco, visto que eles não se

identificam com a tendência mais fisicalista da psiquiatria e, principalmente, vêem com

desconfiança as políticas de divulgação da indústria farmacêutica. Esta diferença era

marcante e marcada em vários momentos da conversa; por exemplo, em dado momento,

uma pessoa do grupo me relatou seu incômodo ao ouvir um comentário de um

conhecido psiquiatra brasileiro, que teria dito, antes de uma palestra, ao explicitar o seu

“conflito de interesses59”: “eu sou patrocinado por uma indústria farmacêutica, eu

carrego esta marca; mas quem não carrega alguma marca na vida?”. Ela sorri e comenta

comigo que “esta marca” não é como qualquer outra, e fica clara a sua posição crítica ao

tipo de relação que pode se estabelecer entre médicos e laboratórios.

Comentei com eles que pretendia prestigiar suas apresentações durante o

congresso. E aqui aconteceu algo curioso: eles me desincentivaram a comparecer aos

eventos dos quais participariam. O meu guia me questionou: “É essa tribo que você quer

etnografar?”, e os colegas concordaram, afirmando que eu deveria procurar a “produção

mais fisicalista de discurso no congresso”, construindo, claramente, uma diferença. Um

colega dele indica que eu procure comparar os discursos dos mesmos profissionais nos

“simpósios da indústria” – palestras feitas por médicos e pesquisadores patrocinados

pelas empresas, com o objetivo explícito de divulgar um produto determinado – e nas

mesas-redondas, nas quais o tom mudaria, visto não haver explícito interesse comercial,

59 Quando isso não é óbvio, ou seja, quando não se trata de uma palestra explicitamente

organizada pelos laboratórios para divulgar um determinado produto, os palestrantes apontam, no primeiro slide de apresentações que usam recursos visuais, o que chamam de “conflito de interesses”, o seu vínculo com algum laboratório farmacêutico.

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e os profissionais “teriam uma outra postura com o objetivo de angariar um certo tipo de

respeito entre os pares”. Outro ponto que o grupo destaca é que eu deveria estar atento

ao crescimento da neuroimagem na construção do diagnóstico, tema que de fato se

espalhava por várias atividades do congresso60.

Foi impossível seguir todos estes conselhos, ainda que tenham sido muito

pertinentes, devido à minha intenção de me concentrar na área dos expositores, e ao

pouco tempo disponível para etnografar todos os aspectos do congresso. De qualquer

forma, os conselhos por si sós falavam de uma diferença e tensões naquele espaço.

Acompanhei algumas mesas-redondas durante o congresso e, de fato, a possibilidade de

que um médico direcione o seu discurso no sentido de valorizar um medicamento

específico, sem que isso seja explicitado claramente, pode ser motivo de discussões

acaloradas.

Quando havia alguma espécie de vínculo entre o profissional que apresentaria o

trabalho e um laboratório farmacêutico, apresentava-se no início da fala o “conflito de

interesses”, que consiste em tornar tal vínculo explícito. Mas isso não zera a

possibilidade de que haja desconfianças quanto à neutralidade do discurso. Foi este o

caso de uma cena que se passou em uma mesa sobre “depressão grave” (um dos

trabalhos discutia inclusive o conflito de interesses em ensaios clínicos), durante a qual

um dos apresentadores foi questionado no momento do debate se ele não teria

privilegiado em sua fala o Citalopram (um inibidor seletivo de recaptação de

serotonina). Ele defendeu-se nos seguintes termos: “por favor, numa mesa em que se

fala de conflito de interesses, não diga que eu privilegio este ou aquele antidepressivo,

60 Entre as oito conferências especiais do congresso, por exemplo, uma delas apresentava

resultados do trabalho de uma pesquisadora italiana a respeito da “neurobiologia da paixão amorosa”. Em outro registro, às vésperas da entrega do texto final desta tese, uma edição do programa Globo Repórter, que vai ao ar pela rede Globo de Televisão, foi todo dedicado à idéia de que o enamoramento apresenta sinais externos e internos mensuráveis e visíveis ao escrutínio científico. Todos eles em total relação com o cérebro.

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isso se vê caso a caso”.

Após a mesa, fiz uma breve entrevista com o psiquiatra questionado. Apresentei-

me como um antropólogo interessado em etnografar o congresso buscando compreender

os mecanismos de divulgação da indústria. Ele me disse que desenvolve estudos para a

indústria, mas que explicitou este “conflito de interesse” na introdução de sua fala, e que

naquele momento não estava a serviço do laboratório. A respeito do hábito de se

apresentar o conflito de interesses antes da palestra, ele me diz que se trata de um

“modelo copiado do FDA61, porque a coisa estava ficando avacalhada, o profissional

estava divulgando uma molécula e não deixava isso claro”. Conversamos sobre o papel

da indústria farmacêutica, o que ele definiu como “uma espécie de mal necessário... em

um mundo ideal devia ser diferente”, mas que hoje “95% dos estudos são desenvolvidos

pela indústria e 5% por iniciativas particulares ou universidades”.

Ficava claro que havia no ar uma tensão com o papel da indústria no congresso,

em contraste com estudos não patrocinados, apresentados nas mesas-redondas; mas

mesmo nestas podem surgir desconfianças de que a palestra tenha um determinado viés

com o objetivo de divulgar um ou outro medicamento, sem que isso esteja claro.

Quando decidi participar do Congresso Brasileiro de Psiquiatria, fui informado

sobre o quão surpreendente poderia ser a área dos estandes da indústria para um

marinheiro de primeira viagem, no sentido em que as ações de marketing seriam

bastante agressivas. Antes de partir, ouvi falar sobre o congresso em outros anos,

quando o personagem “Zé do Caixão”, de José Mojica Marins, foi utilizado como

garoto-propaganda em um estande que divulgava uma medicação para um transtorno de

ansiedade; ou ainda sobre teorias a respeito de mecanismos de controle dos médicos por

parte das indústrias: os congressistas teriam seus interesses no congresso mapeados

61 Sigla para Food and Drug Administration, o órgão americano que regulamenta o mercado de

remédios, entre outras coisas.

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através do código de barras no crachá, o que permitiria às indústrias saber qual assunto

ou medicamento interessa a qual profissional. Verdade ou não, o que importa aqui é

como um pequeno mito se constrói em torno da relação entre indústria e profissionais.

A área dos expositores era também um espaço de lazer e sociabilidade entre os

congressistas. Mas cabe ressaltar que qualquer diversão oferecida sempre relacionava

‘química e sentidos’ de alguma forma. Em cada estande era possível vivenciar de

alguma maneira o estado no qual supostamente o paciente pode ser colocado através

daquela droga; uma atividade proposta pode se contrapor a um efeito colateral do

medicamento; os brindes, por sua vez, podem ir de viagens ao próximo congresso

mundial da área, passando por carimbos e chegando a uma fita métrica que simboliza a

ideia de que um medicamento concorrente engorda; mesmo a escolha da alimentação

oferecida parece longe de ser gratuita.

O importante aqui é salientar que as tensões que se desenhavam no congresso –

nas mesas redondas, nos estandes ou em discursos isolados aqui e ali – falavam sobre a

presença de – como definiu o meu guia e informante privilegiado – tribos62 diferentes

dentro do campo da psiquiatria hoje. Diferenças eram marcadas especialmente no que

dizia respeito ao papel da indústria farmacêutica no congresso e ao maior espaço

ocupado por um discurso de base neurocêntrica (com destaque para a neuroimagem

como possível ferramenta diagnóstica de doenças mentais/cerebrais).

62 O livro de Tanya Luhrmann (2000), Of two minds: the growing disorder in american psychiatry, foi esclarecedor da minha experiência de campo, ainda que a posteriori. Professora da Universidade de Chicago, ela realizou uma etnografia entre os residentes de psiquiatria. Neste momento de formação, os residentes estão, de certa forma, aprendendo a ver ‘doenças’ que não podem ser diagnosticadas com marcadores biológicos, ao menos não diretamente. Ela explora as tensões no processo de aprendizagem em uma área na qual diferentes paradigmas estiveram por muito tempo em debate: refiro-me ao paradigma que se convencionou chamar “psiquiatria biológica” em tensão com uma linha psicodinâmica. Luhrmann preocupa-se em mostrar que a psiquiatria parece encaminhar-se para um paradigma de ordem fisicalista-reducionista, no qual uma das ‘lentes’ utilizadas pelos psiquiatras para entender os transtornos mentais estaria sendo perdida. A autora toma partido e interpreta este movimento como uma perda que levaria os psiquiatras e a sociedade como um todo a ‘ver’ menos complexidade do que antes. (Luhrmann, 2000:24) Tal perda fica evidente quando ela analisa unidades psiquiátricas nas quais o ‘modelo de doença’ segue o paradigma da psiquiatria biológica: “A paciente estava falando com o médico sobre a história da sua alma, e ele escutava através do relato a forma e o equilíbrio do seu cérebro” (ibidem:135)

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Quanto às condições de possibilidade de se realizar este esforço etnográfico,

vale destacar o lugar que me era atribuído no espaço dos expositores. Desde o começo,

a minha condição explícita de estudante no crachá não foi impedimento para que me

fosse entregue – ou para que eu pudesse coletar sem ser questionado – uma grande

quantidade de material publicitário de medicamentos. Na primeira manhã de congresso,

por volta das 11 da manhã, eu já tinha mais material impresso do que poderia carregar

comigo, e mais do que eu já tinha tido acesso em vários anos de interesse no assunto.

Somente no terceiro dia de congresso, um funcionário de um estande obedeceu às regras

da ANVISA sem qualquer ambiguidade, conferiu a minha condição de estudante no

crachá, e não me permitiu acesso aos folders disponíveis. Em todos os outros

momentos, não só minha condição de estudante não era levada em conta, como fui

diversas vezes chamado de “doutor”. De qualquer forma, a minha condição de “não-

prescritor” não foi impedimento para o acesso ao material de divulgação de

medicamentos. Voltei para casa com algum excesso de bagagem nas mãos e um novo

conjunto de dados a ser analisado.

É justamente nesta direção que avanço na próxima sessão: uma análise do

material publicitário relacionado aos psicofármacos, produzido e distribuído pelos

laboratórios farmacêuticos. Abordo ainda as críticas que vem sendo direcionadas a uma

indústria que cresce sob fogo cerrado, e a moralidade em torno do uso de psicofármacos

em um contexto no qual os limites entre ‘tratamento’ e ‘aprimoramento’ parecem por

vezes bastante turvos.

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2.2 Fisicalismo, naturalismo e subjetividade na publicidade de psicofármacos

Como todas as palavras que designam uma ideia muito geral, a palavra Natureza parece clara quando a empregamos, mas, quando sobre ela refletimos, parece-nos complexa e talvez mesmo obscura. Robert Lenoble, 1990:183

Retornei da viagem ao Congresso Brasileiro de Psiquiatria com um desafio de

certo peso: analisar os quilos de material publicitário de psicofármacos em minha

bagagem. Brindes de diversos tipos, folheteria em diversos formatos e até blocos com

receituário médico para medicamentos controlados63 compunham uma massa de dados

que, em um primeiro momento, assustava só pelo volume. Este material se somava a

outras peças do mesmo gênero às quais eu já tinha tido acesso em salas de espera de

consultórios médicos, algumas recolhidas pessoalmente, outros presenteadas por amigos

e familiares que sabiam do meu interesse no assunto64.

Uma primeira tarefa era classificar este material, ‘deixá-lo falar’ de alguma

forma, abrindo espaço para que semelhanças e contrastes viessem à tona a partir da

análise. Tratava-se de uma massa heterogênea de material gráfico, ao menos em termos

63 Como dito antes, o material me era entregue sem muito critério ou questionamento. Quando

não analisavam a categoria impressa no meu crachá de identificação, eu tinha acesso irrestrito aos brindes e ao material publicitário disponível. Isso só não aconteceu nas poucas vezes em que fui questionado sobre minha condição profissional, ou quando era requisitado o preenchimento de uma ficha com informações pessoais, o que incluía o CRM (número do médico no Conselho Regional de Medicina). Entre este material, havia uma sacola plástica que continha um kit com caneta, monografia do produto, impressões de artigos científicos que falavam sobre a molécula e dois blocos de receituário médico para medicamentos de uso controlado.

64 Já na pesquisa do mestrado (Azize, 2002) eu acumulara bastante material publicitário de laboratórios farmacêuticos, incluindo psicofármacos. Naquele momento, o foco era tentar compreender o lugar da categoria “qualidade de vida” no marketing das chamadas ‘drogas do estilo de vida’, com atenção especial para marcas que se tornaram um grande sucesso de vendas, como o Viagra, o Xenical e o Prozac, que chegaram ao mercado com o estatuto de moléculas revolucionárias para o tratamento de disfunção erétil, obesidade e depressão, nesta ordem (Azize 2002, 2006).

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da sua forma, que incluía pequenos folhetos, artigos científicos, anúncios publicitários e

monografias de medicamentos. Parte deste material está voltada diretamente aos

profissionais habilitados a prescrever; ali são divulgados medicamentos específicos, em

linguagem técnica, com gráficos que comparam sua eficácia ante placebo e outras

moléculas, as apresentações do medicamento e resultados de testes a que foram

submetidos. Outra parte tem como objetivo a difusão de saberes sobre doenças do

sistema nervoso entre o público leigo, campanhas de sensibilização a respeito de

determinada doença, que informam seus sintomas e via de regra sublinham a ideia de

que se trata de uma “condição médica” real, e não alguma fraqueza moral do indivíduo.

Várias tentativas de classificar um material tão extenso e heterogêneo foram frustradas.

Tentei organizá-lo reunindo em blocos separados peças que diziam respeito (1) ao

público-alvo daquela comunicação (leigo ou especializado), (2) ao laboratório

farmacêutico fabricante e (3) a doenças específicas, na esperança de que alguma delas

me oferecesse um frame de análise. Mas o que veio à tona foi outro tema, que se

mostrou transversal aos laboratórios, ao público-alvo e mesmo às doenças: tratava-se da

presença frequente de fotos e ilustrações da natureza, mostrando praias, plantas, flores,

pássaros, gramados, borboletas ou peixes, com a presença ou não de seres humanos.

Variadas imagens deste gênero ilustram material publicitário relacionado à depressão, à

ansiedade, à esquizofrenia e também informativos sobre acidente vascular cerebral e

doença de Alzheimer. Deparei-me neste momento com uma questão: por que boa parte

do material publicitário de laboratórios a respeito de psicofármacos (antidepressivos e

ansiolíticos principalmente) e doenças relacionadas tem como motivos gráficos imagens

da natureza?

A formulação mesmo desta pergunta já explicita o ponto de partida de que não

há nada de óbvio na escolha destas ilustrações, mas sim algo a ser interpretado, visto

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que o sentido atribuído ao meio ambiente na cultura ocidental – e mesmo ao lugar do

ser humano em meio à natureza – é absolutamente contingente e histórico65. Antes de

tentar respondê-la, mais uma observação se faz necessária. Não há dúvida de que esse

tipo de ilustração não é uma exclusividade do marketing de psicofármacos. A ‘natureza

lá fora’, no sentido de meio ambiente natural, ilustra, apenas para citar alguns exemplos,

a publicidade de lançamentos imobiliários, móveis, roupas, alimentos e a lista poderia

continuar. Tais imagens fazem sentido dentro de uma estética do bem-estar – por certo,

uma estética que, circularmente, elas também ajudam a construir – e se fazem

acompanhar de valores a ela solidária, como, num forte exemplo, a ideia de “qualidade

de vida”. ‘Natureza’ é um valor “crucial para a ordenação dos horizontes modernos”,

como afirma Duarte (2005:158), uma das linhas de força que comporiam o sistema

cosmológico mais amplo da cultura ocidental moderna (Duarte et allii, 2006), e por isso

será transversal a tantos temas e passível de tantas significações. Assim sendo, aquilo

que será dito aqui a respeito da relação que se estabelece entre alguns medicamentos

para o sistema nervoso e imagens da natureza poderia se estender a um circuito cultural

mais amplo. Por outro lado, a ‘natureza’ como valor – seja no que diz respeito às suas

imagens, seja quanto ao próprio uso do termo – é um servidor de múltiplos patrões, no

sentido em que se presta a uma pluralidade de significados que podem ser atribuídos ao

que é mais ou menos natural. O papel ao qual me proponho é construir uma

65 O tema suscita uma imensa bibliografia, com aproximações filosóficas, históricas e

etnográficas. Ver Lenoble (1990), Lovejoy (1993), Thomas (1988), Corbin (1989), Schama (1995) e Sahlins (2004), apenas para exemplos mais pertinentes no que diz respeito a reflexões internas à cultura ocidental. Pensando em termos comparativos, a questão ganha ainda mais complexidade, se levarmos em conta cosmologias mais fluidas no que diz respeito, por exemplo, à distância que separa (ou não) seres humanos e animais, nas quais a própria noção de natureza faz pouco ou nenhum sentido, como parece ser o caso de cosmologias ameríndias cunhadas de perspectivistas, nas quais “as categorias de Natureza e Cultura (...) não só não subsumem os mesmos conteúdos, como não possuem o mesmo estatuto de seus análogos ocidentais; elas não assinalam regiões do ser, mas antes configurações relacionais, perspectivas móveis – em suma, pontos de vista” (Viveiros de Castro, 2002: 349).

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interpretação a respeito de um fenômeno localizado, consciente de que ele faz parte de

uma estrutura mais ampla.

2.2.1 Natureza antidepressiva (ansiolítica, antipsicótica...)

Um anúncio publicitário do governo do Estado da Bahia, veiculado em 2001 em

diversas revistas de circulação massiva (recortado de uma publicação chamada Quem,

da Editora Globo), procura atrair turistas para aquela região através do seguinte

formato: uma foto em página-dupla de uma praia deserta, com céu e mar azuis e cercada

por área verde, é atravessada na parte inferior por uma faixa preta com os dizeres “Para

lembrar que é um antidepressivo, colocamos esta tarja preta”. A relação é mais do que

evidente entre o potencial da paisagem apresentada para gerar certas sensações e a

função de medicamentos antidepressivos de uso controlado.

O que não me parece tão evidente é o fato de que o uso da ideia neste contexto

expressa quão difundidas estão as noções de antidepressivo e tarja preta66 em um

circuito muito mais amplo do que o especializado no tema; mas o principal ponto que

me fez guardar esse anúncio por tantos anos entre o meu material de campo é a relação

entre as sensações evocadas pelo que poderia ser definido como um ambiente natural

66 “Tarja preta”, devido justamente a carregarem esta marca na caixa do produto, é como são

referidos os medicamentos de controle especial, entre eles, por exemplo, os antidepressivos e os anorexígenos (para emagrecer). Cabe à Agência Nacional de Controle Sanitário (ANVISA) fiscalizar a comercialização deste tipo de medicamento. A expressão tem também um uso popular: uma pessoa considerada desequilibrada por alguém pode ser chamada, de forma jocosa, de “tarja preta”. Uma coletânea de contos com este título foi publicada pela editora Objetiva em 2005, com autores como Pedro Bial (repórter, apresentador de TV), Jorge Mautner (músico e escritor) e Adriana Falcão (escritora, roteirista de TV e cinema). Esta última constrói seu conto no formato de um diálogo (ou, melhor dizendo, dois monólogos paralelos) entre uma mulher e o seu cérebro, que ganha vida própria, discutindo se ela deveria ou não telefonar para uma desilusão amorosa.

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(uma praia pouco ocupada) e o efeito de um medicamento67. O anúncio só existe neste

formato porque essas relações já correm no repertório cultural de criadores da campanha

e leitores da revista – afinal, estas presenças em um anúncio publicitário reforçam um

arsenal simbólico mais amplo, ao mesmo tempo em que são reforçadas por ele.

Alguns anos depois, analisando dados de campo de outra ordem – o material

publicitário de laboratórios farmacêuticos a respeito de medicamentos que tratam

condições nomeadas como depressão, ansiedade, bipolaridade ou esquizofrenia –,

percebo que a relação entre psicofármacos e ambientes naturais ilustra o material do

qual os laboratórios lançam mão em suas estratégias de marketing, seja para divulgar

moléculas específicas entre os profissionais habilitados a prescrever, seja para divulgar

as doenças para um público mais amplo. A faixa preta de um suposto antidepressivo

atravessa uma praia no anúncio do governo da Bahia; imagens de praias e da natureza

em geral atravessam a publicidade de antidepressivos, ansiolíticos e outros

medicamentos que atuam no sistema nervoso central.

Esta relação entre saúde mental/cerebral e imagens da natureza não é exatamente

recente. No que diz respeito ao Ocidente moderno, a relação remonta ao menos à

segunda metade do século XVIII, quando, segundo Corbin (1989), emerge o desejo

pelas praias de mar, como parte da terapêutica de cura da melancolia e do spleen. A

construção do desejo pela beira-mar viria acompanhada de um certo desgosto com a

cidade e os “males da civilização”. Espera-se da água fria e especificamente do banho

de mar o aumento de vigor, tonificação, controle de ansiedade, atenuação da irritação

nervosa, além de cura para a impotência e problemas de fertilidade. O principal alvo

desses cuidados seria uma elite urbana de vida irregular que

67 O que nos remete mais uma vez às atividades propostas pelos estandes dos laboratórios

farmacêuticos aos médicos no Congresso Brasileiro de Psiquiatria. Lembremos que as atividades propostas – massagens, uma corrida entre bicicletas ergométricas, a parede dos sentidos – construíam correlações entre sensações e os efeitos dos medicamentos.

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teme seus desejos artificiais, seus langores, suas neuroses. As paixões e excitações que lhe são próprias ameaçam-na de morte social, por não saber participar dos ritmos da natureza. (...) espera-se do mar que acalme as ansiedades da elite, que restabeleça a harmonia do corpo e da alma, que estanque a perda de energia vital de uma classe social que se sente particularmente ameaçada em suas crianças, suas raparigas, suas mulheres, seus pensadores. Espera-se dele que corrija os males da civilização urbana, os efeitos perversos do conforto... (Corbin, 1989:73-74)

Não é minha intenção aqui fazer um longo apanhado histórico sobre a relação

entre natureza – menos ainda sobre a particularidade das águas68 – e cura, mas tão

somente apontar que não se trata de uma novidade no Ocidente moderno. Atentemos

que algo de pouco saudável no ritmo ou estilo de vida urbano aparta dos “ritmos da

natureza”, ideia que nos será útil mais adiante.

Em um livro publicado pela editora O Cruzeiro em 1952 (original em inglês de

1944)69, o Dr. Boris Sokoloff, apresentado na orelha do livro como “famoso médico

internacionalmente conhecido”, discorre a respeito do que ele chama “doenças da

civilização”, que atingiriam o sistema nervoso, estômago, intestino, fígado, sangue,

coração, olhos e glândulas, fruto de hábitos irregulares e alimentação inadequada. Na

apresentação, afirma-se que se trata de “um livro para ler e guardar. Em casa, no

escritório, nas estações de veraneio ou em viagens, ele poderá ser útil a qualquer

instante, como preciosa fonte de informação para os nossos males”. O “artificialismo da

vida civilizada” está no livro em oposição ao “instinto da raça humana”. Nos últimos

séculos, a humanidade iria “de mal a pior”, adquirindo “péssimos hábitos, os quais,

substituindo o instinto, contribuíram, grandemente, para as doenças” (p.12). Teríamos

deixado de ouvir a “frágil voz de nosso amigo – o instinto, que nos foi dado pela

natureza para nos guiar através da vida” (p.12). A ciência médica teria um papel

essencial na recuperação do equilíbrio perdido entre o “artificialismo” e o “instinto”;

68 Trabalho mais do que cuidadoso tomando estâncias hidrominerais como ponto de partida é o

de Marras, 2004. 69 Intitulado “Doenças da civilização: você pode curá-las”.

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nas duas ou três décadas anteriores à publicação (lembremos que a edição original é de

1944), a medicina teria dado um grande salto na descoberta de causas e curas para a

maioria das “doenças da civilização”.

Um capítulo inteiro está dedicado ao sistema nervoso; para ele, o cérebro seria o

“órgão da civilização”, mais especificamente o lóbulo central, responsável pelo que ele

chama uma vitória do homem sobre o mundo orgânico e inorgânico. É o lóbulo central

que “inventa os aeroplanos, que idealiza os arranha-céus, que constrói barcos e navios,

que escreve novelas, forma linguagens e cria filosofias” (p.230). Mas “reflexos

atávicos” subsistem no homem moderno e interferem em nossa função cerebral,

produzindo um excesso de excitações elétricas... a causa real dos conflitos mentais, das

neuroses e psicoses”. Vejamos então como o Dr. Boris Sokoloff propõe o tratamento de

um paciente neurastênico, diagnóstico cujo tipo ideal seria o de um sujeito “sempre

cansado”, a quem qualquer esforço fatiga, “meio deprimido e (que) revela, com

frequência, o desejo de morrer, mas raramente atenta contra a própria vida”. O paciente

seria um artista de 27 anos, curado da seguinte forma:

Discutindo o problema com ambos, aconselhei sua espôsa a primeiro melhorar o seu estado físico. Sugeri trabalhos leves de jardinagem, nados diários no mar (êles moravam na Riviera Francesa) e duas horas diárias de banho de sol. Sua dieta foi grandemente enriquecida de proteínas, para restaurar a função das glândulas sexuais. Com o auxílio da sua espôsa, o tratamento surtiu efeito” (p.235).

Ainda que o salto histórico possa parecer grande demais, ecos deste desejo pelo

mar e por um contato mais próximo com a natureza como lugar de cura da melancolia

ou da neurastenia ainda ressoam contemporaneamente e podem ser escutados em um

anúncio publicitário como o acima descrito, no qual uma praia na Bahia é apresentada

como tendo efeito antidepressivo. O desafio aqui é descrever como esta relação se

manifesta contemporaneamente na publicidade de psicofármacos; para isso é necessário

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proceder a uma descrição de dados etnográficos mais específicos a respeito de como a

natureza ilustra tais peças publicitárias. Temos que compreender ainda de qual natureza

se está falando neste contexto, visto o caráter plurisemântico do termo, e considerando

que não se trata de uma indicação real de contato com a natureza lá fora, mas sim uma

relação de caráter simbólico, uma metáfora.

Em um primeiro momento, as peças publicitárias de divulgação às quais tive

acesso chamavam a atenção por certa homogeneidade nas cores – preferencialmente

apareciam o branco e tons suaves do azul, amarelo ou verde – e pelos temas gráficos

que, invariavelmente, traziam em algum ponto, quando não em destaque frontal, uma

imagem da natureza, como campos de trigo, praias, um girassol, tulipas, céu limpo e

claro, um casal na grama brincando com um cachorro, um pássaro livre de sua gaiola;

havia em algumas imagens pessoas sozinhas ou acompanhadas emolduradas por esses

ambientes.

A capa de um folheto do laboratório Lilly, divulgando as atividades relacionadas

ao medicamento Cymbalta durante o Congresso Brasileiro de Psiquiatria do qual

participei, é ilustrado por um casal que caminha acompanhado de um cachorro por uma

calçada, em uma área cercada por grama e árvores. Em torno desta calçada, árvores,

flores e grama são parte de uma área verde organizada e simétrica.

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Figura 8 – folheto entregue durante o congresso, destacando as atividades relacionadas ao medicamento Cymbalta

Na contra-capa, o mesmo casal está deitado sobre a grama, no que poderia ser o quintal

de sua casa ou um gramado qualquer; a mulher, sorridente e com pés descalços, brinca

com o animal, na iminência de jogar uma bola para que ele a apanhe.

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Figura 9 – contra-capa do mesmo folheto, entregue durante o congresso, destacando as atividades relacionadas ao medicamento Cymbalta

Em outro folheto do mesmo laboratório – disponível na sala de espera de um

psiquiatra, coletado em momento anterior de trabalho de campo –, logo abaixo da

chamada “Você sabe reconhecer os sintomas da depressão?”, uma mulher aparentando

cerca de 30 anos, vestida com roupas brancas, aparece em meio a um campo de trigo

com o rosto tranquilo em discreto sorriso, em um dia de céu azul. Apesar da imagem de

conotação positiva, ela está cercada por palavras que indicam os sintomas para os quais

o título do impresso chama atenção: dor de cabeça, tristeza, dores nas costas, perda de

interesse, preocupação excessiva, alterações no sono, estresse, sentimento de

inutilidade, dores vagas e difusas.

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Figura 10 – capa de folheto informativo sobre a depressão, voltado ao público leigo, do laboratório Lilly

Ainda no mesmo folheto, um casal também com roupas predominantemente

claras passeia por uma praia, caminhando sorridentes e com os pés descalços pela areia

molhada, ambos aparentando em torno dos 35 anos. Desta feita, trata-se de uma peça

voltada para o público leigo, relacionada, ainda que isso não seja explícito – devido à já

mencionada proibição no Brasil de publicidade de medicamentos controlados

direcionada diretamente ao consumidor –, ao medicamento Cymbalta. Cheguei a esta

conclusão analisando o texto do folder, que se refere à importância de lidar com

serotonina e noradrenalina para tratar a depressão, e também devido ao destaque dado

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aos sintomas físicos da doença – estratégia utilizada também na publicidade voltada aos

médicos do citado medicamento. O texto do folder apresenta a etiologia de um quadro

depressivo da seguinte forma:

Duas substâncias químicas vitais são responsáveis pela depressão. Muitos especialistas acreditam que a depressão é causada por alterações de substâncias químicas naturalmente presentes no corpo: serotonina e noradrenalina. No cérebro, essas duas substâncias químicas são associadas com a transmissão de pensamentos e sentimentos. No corpo, essas mesmas substâncias estão associadas com a regulação e a redução de sensações de dor. Quando essas substâncias químicas estão em desequilíbrio, o efeito pode ser sentido tanto no cérebro quanto no corpo. O paciente pode sentir tanto sintomas emocionais quanto sintomas físicos dolorosos associados à depressão. Para a melhora dos sintomas depressivos, emocionais e físicos, o médico pode prescrever um medicamento que aja sobre essas duas substâncias químicas vitais.

Podemos encarar o trecho acima como uma versão para o público leigo do texto

destacado mais acima (item 2.1.1) a partir de uma monografia do Cymbalta voltada aos

médicos. Lá, como aqui, há uma mistura de certeza e incerteza a respeito da hipótese

que explica o porquê da depressão. Afinal, afirmar que “muitos especialistas

acreditam...” soa somente como uma hipótese, ainda que o restante do texto seja mais

assertivo. O mesmo argumento apresentado na publicidade voltada ao público

especializado – a relação da serotonina e noradrenalina com os sintomas emocionais e

físicos da depressão – aparece agora em tom menos erudito. Temos aqui de novo em

destaque os sintomas físicos da depressão: no mesmo folheto, a foto de uma mulher, de

costas, tocando a região do ombro e da nuca como se apontasse uma área na qual

experimenta dor, é acompanhada da frase: “Eu não tinha ideia de que minhas dores

poderiam estar relacionadas à depressão”. Ao que parece, dores com causa inespecífica

têm sido associadas à depressão e consideradas como um possível sintoma, proposta

que torna mais abrangente a possibilidade de diagnosticar a doença.

Este material de difusão da depressão estabelece uma peculiar divisão entre

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cérebro e corpo. No primeiro, um desequilíbrio químico afeta “a transmissão de

pensamentos e sentimentos”, enquanto o segundo pode sofrer dores. Pensamentos e

sentimentos ganham uma existência material nesta representação, sendo transmitidos

célula a célula, uma ideia coerente com pesquisas – muito em voga – que buscam

mapear a neurobiologia de estados como a paixão amorosa, a violência ou a orientação

sexual. Impulsos nervosos são equiparados a “sentimentos” e “pensamentos”, o que os

torna, podemos dizer, plenos de subjetividade; ou, por outro lado, esta leitura da

transmissão neuronal objetiva a subjetividade, e por isso a torna passível de

manipulação.70

Mas não podemos deixar de chamar atenção para a ideia de que cérebro e corpo

sejam entidades diferentes, ainda que interligadas e que ambos sofram com sintomas da

química ‘desregulada’ dos neurotransmissores – uma ideia que não parece ter um

equivalente em relação a outros órgãos do corpo humano. O corpo é tratado como um

Outro, relacionado e ao mesmo tempo apartado do cérebro, que também sofre as

consequências do inadequado funcionamento dos neurotransmissores; por outro lado, ao

‘regular’ a química cerebral, o corpo também é beneficiado. Assim, no lugar de uma

representação dualista do ser humano, no formato corpo/mente ou cérebro/mente, o que

vemos com frequência no material de campo é uma construção que propomos chamar

de um dualismo fisicalista, no formato corpo/cérebro, sem contraponto em algum termo

70 Trata-se de um bom exemplo, dentro do campo da difusão de saberes da psicofarmacologia,

do que Paul Ricoeur considera um amálgama semântico inadequado entre discursos que dizem respeito ao cérebro e ao corpo, por um lado, e à mente, pelo outro, em seu debate com o neurocientista Jean Pierre Changeux (2000), conforme apontei no primeiro capítulo.

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menos material, tendo o cérebro um lugar superior na hierarquia.71

Voltemos à relação que se estabelece entre a publicidade dos psicofármacos e as

imagens da natureza, à qual não faltam exemplos. Diversos folhetos do laboratório

Lundbeck – cuja logomarca, vale dizer, traz uma estrela-do-mar – voltados para o

público leigo têm como tema gráfico de capa um girassol, que se destaca sobre um

fundo azul e branco. Encontrei diversos destes folhetos no estande do laboratório no

congresso brasileiro de psiquiatria e em salas de espera de consultórios médicos; cada

um deles se refere a uma doença ou grupo de doenças: um aborda os ‘transtornos de

ansiedade’, outro tem como tema a ‘depressão’, enquanto um terceiro discorre sobre

“depressão resistente e depressão grave”. No folheto que fala sobre transtornos de

71 Este formato de um dualismo fisicalista (corpo/cérebro) possibilita pensarmos em contraste

com o dualismo corpo/cabeça que Duarte (1986) descreve em sua pesquisa sobre a “vida nervosa” em um universo de classes populares nos anos 80. Em um trecho que me parece significativo, até por oferecer um exemplo empírico, o autor analisa a categoria “atacar”, em sua relação com corpo e cabeça: “É comum, portanto, dizer-se que uma doença específica atacou tal órgão diretamente, ou o corpo em geral (é particularmente usual a referência a ter os pulmões atacados), assim como referir-se a uma fonte de perturbação que tenha atacado a cabeça (“acho que foi a morte do pai que lhe atacou a cabeça”). Teríamos, aliás, neste último caso, o pólo oposto – mais exclusivamente moral – ao do “ataque” ao fígado, que considerávamos como o limite “físico”dos “ataques” transcorridos no plano da interioridade corporal. Pois o que me interessa aqui desenvolver é o modo como se arma uma lógica interna do atacar desencadeada em certos nódulos por “entradas” físicas e morais. Resumindo, poderíamos montar um quadro em que teríamos no alto [cabeça/nervos] estímulos “morais” atacando a cabeça (e, portanto, diretamente os nervos) e embaixo [corpo/fígado/sangue] estímulos “físicos” atacando o fígado (basicamente através do sangue)...” (Duarte, 1986, p. 168) O par cabeça/nervos, no universo do qual fala Duarte, seria então o ponto de ataque de “estímulos morais”, enquanto o corpo receberia as entradas físicas regulares (comida) e irregulares (droga e doença). No caso do discurso cerebralista da publicidade de psicofármacos aqui analisada, caminha-se justamente na direção de um esvaziamento de qualquer dimensão moral para as chamadas “doenças do cérebro”, que acometem um órgão específico (e não a ‘pessoa’) e podem, por isso, ser explicadas em sua dimensão física. O exemplo destacado por Duarte quando menciona a dimensão de ataque [moral] à cabeça dá continuidade ao contraste entre aquele universo etnográfico e este no qual me movo. Recentemente, ouvi o relato de uma pessoa próxima à minha família nuclear de origem, que há tempos vem se tratando com psicofármacos para um quadro de depressão. Ele afirmou saber exatamente quando ficou doente: ao deparar-se com o corpo de um parente seu morto em circunstâncias trágicas, ele teria sentido uma espécie de curto-circuito no cérebro, que ele teatralizava com um gesto de mão sobre a cabeça e pela imitação de um ruído elétrico, como se tivesse sentido um choque. A diferença é que aqui não se trata de um “ataque à cabeça”, mas do início de uma disfunção cerebral que ele tentará corrigir com medicamentos que interferem nos neurotransmissores. Ou seja, o cérebro é atingido em sua fisicalidade elétrica e química, e por estes meios deve passar um mecanismo de tratamento.

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ansiedade – destacando o transtorno do pânico, o transtorno de ansiedade social e o

transtorno de ansiedade generalizada –, uma foto mostra dois homens, uma mulher e um

cachorro voltando de uma praia, em um dia de céu claro, caminhando por uma estrutura

de madeira sobre a areia, uma imagem bastante semelhante a outras descritas aqui. Já no

folheto que aborda formas mais graves da depressão, parte da mesma campanha, há uma

imagem ilustrativa interna que também se refere à natureza, mas foge à regra de

imagens positivas: uma árvore totalmente seca e desfolhada aparece isolada em um

ambiente de aparência desértica.

Figura 11 – natureza desértica em folheto do laboratório Lundbeck, direcionado ao público leigo

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Se o termo ‘natureza’ é uma categoria polissêmica, também as imagens que a

apresentam podem apontar para diversos sentidos; a árvore seca de vida representaria o

vazio da doença, uma natureza de aspecto doente e negativo, assim como outras cenas

de uma natureza mais positiva representariam a possibilidade de tratamento e cura.

Um anúncio, publicado na contracapa de uma edição da revista Diálogo Médico

– publicação da Roche voltada aos médicos, mas também disponível em salas de espera

de consultórios –, traz a chamada “Aguarde o novo antidepressivo da Roche” (que viria

a ser o medicamento Ixel), e tem como tema gráfico o desenho de uma gaivota. Nesta

mesma direção os exemplos se multiplicam; a repetitividade aumenta a força do dado

etnográfico e mostra a pertinência da relação que se constrói no marketing dos

psicofármacos com imagens da ‘natureza’.

As peças de divulgação para médicos do Abilify (aripiprazol, do laboratório

Bristol-Myers Squibb), indicado para “episódios agudos de mania no transtorno afetivo

bipolar” e para “esquizofrenia” apresentam um personagem chamado Daniel, um

homem entre 30 e 35 anos. Ele aparece em diversas imagens (sozinho e acompanhado

por amigos, de perfil e de frente), sempre sentado em uma cadeira, próximo a uma

janela aberta, iluminado pelos raios de sol. A chamada, em um anúncio publicado na

contracapa de uma edição de 2007 do Jornal Brasileiro de Psiquiatria, afirma que “A

melhora dos sintomas ajuda Daniel a realçar o seu brilho interior”.

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Figura 12 – impresso entregue durante o congresso, cujo público-alvo são os profissionais prescritores A ideia se repete em um impresso obtido em um estande no Congresso Brasileiro de

Psiquiatria, tendo os médicos como público-alvo, explicando em maiores detalhes como

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o medicamento atua – ele “combina modulação do sistema dopamina e serotonina”,

reduzindo a “neurotransmissão dopaminérgica onde ela for excessiva” e aumentando “a

neurotransmissão dopaminérgica onde ela for muito baixa” –, e comparando a eficácia

desta molécula em relação a outras concorrentes no tratamento do transtorno afetivo

bipolar. Nesta peça podemos entender melhor a que se refere o “brilho interior”: uma

foto na segunda página mostra Daniel em sua mesa próxima à janela, acompanhado por

mais duas pessoas; Daniel está mostrando aos dois amigos uma foto, supostamente

tirada por ele, e lemos na legenda “Daniel: Paciente com Transtorno Afetivo Bipolar

Apaixonado por fotografia”; logo abaixo a chamada principal afirma que “Quando o

paciente com Transtorno Afetivo Bipolar está encoberto pelos sintomas, amigos e

familiares têm pouca chance de ver o seu brilho interior”.

A ‘natureza lá fora’ não passa em branco: pela janela aberta atrás de Daniel, a

ilustração de um grande “A” (de Abilify, o nome do medicamento), posicionado sobre a

grama, marca o início de uma senda que atravessa o gramado e leva a uma área

arborizada – uma espécie de estrada azul e amarela rumo a uma área verde iluminada

pelo sol. O tratamento, então, permitiria que um ‘verdadeiro Daniel’ revelasse seu

“brilho interior”, encoberto pelos sintomas do transtorno afetivo bipolar.

Não há, neste sentido, qualquer ideia de artificialidade relacionada à intervenção

química ou ao que poderia ser visto como uma produção neuroquímica de um estado

subjetivo; pelo contrário, é ela que permite vir à tona o que se anuncia como a verdade

do sujeito, o seu “brilho interior”. A medicação psicotrópica nesta representação não

esconderia uma suposta verdade do sujeito, como uma espécie de maquiagem química;

ela justamente permite que o indivíduo venha à tona em sua plenitude e possa expressar

a sua verdadeira natureza antes “encoberta pelos sintomas”. Uma relação especular

parece se construir entre as imagens de uma boa natureza lá fora (o meio ambiente

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positivamente representado) e a ‘verdadeira’ natureza cá dentro do indivíduo – a

primeira ilustra a publicidade de psicofármacos, a segunda pode ser atingida pelo seu

uso adequado, que traria um reequilíbrio ao funcionamento dos neurotransmissores.

A imagem que ilustra a capa de um CD promocional distribuído pelo laboratório

Aché para divulgar o Somalium (bromazepam), um tranqüilizante da categoria dos

benzodiazepínicos, oferece uma síntese desta relação que se estabelece na publicidade

de psicofármacos entre natureza, liberdade, autonomia e expressão de um “brilho

interior”. Nela pode ser lida a chamada “O melhor da música New Age” (trata-se de

uma coletânea deste estilo), e a ilustração mostra um beija-flor voando, próximo a uma

gaiola aberta, da qual o pássaro teria saído, e o slogan “liberdade para viver”.

Figura 13 – capa de um CD promocional produzido pelo laboratório Aché.

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Ao me deparar com o CD, lembrei-me de expressões como “jaula química”,

“prisão química”, “camisa-de-força química” ou “gaiola química” para designar –

obviamente de um ponto de vista que vê com ressalvas a medicamentalização

psiquiátrica – o efeito de medicamentos voltados para o sistema nervoso, visto que

‘encobririam as causas’ do problema, ou, nos termos da colega e psiquiatra com quem

encontrei no congresso (ver item 2.1), “chapariam”. No caso desta propaganda, o efeito

do medicamento é representado como libertador e não como um mecanismo de

aprisionamento, usando justamente uma gaiola aberta para inverter essa relação.

O slogan criado para o Somalium e utilizado no CD promocional não é um caso

isolado, mas representativo dos argumentos de venda de antidepressivos e ansiolíticos.

O Paxil foi o primeiro remédio aprovado pelo FDA para transtorno de ansiedade social

em 1999; recentemente, um anúncio publicitário deste medicamento no New York Times

Magazine trazia o slogan “Your life is waiting” 72; a chamada para o Paxil no site do

laboratório GlaxoSmithKline mantém a mesma linha: “relieve the anxiety, reveal the

person” (citado em Elliott, 2003).

Repete-se aqui um tema intimamente relacionado ao valor que a natureza tem

nessas peças de divulgação. Trata-se da noção nativa de interioridade presente neste

material, de um ‘verdadeiro eu’ que estaria encoberto pelos sintomas de uma doença

que se passa no cérebro, e que pode ser descortinado por uma intervenção química no

72 Como se pode ver, um dos argumentos dos quais a publicidade relacionada aos psicofármacos

e de divulgação das doenças a eles associadas lança mão com frequência é a categoria “vida” ou o verbo “viver”. Trata-se de uma categoria de estatuto complexo no horizonte semântico da cultura ocidental, assim como ‘natureza’. Neste exemplo, assim como no caso da capa do CD citada mais acima, ‘vida’ corresponde a um estado a ser atingido por meio de uma gestão psicofarmacêutica, e não a uma qualidade intrínseca ao sujeito; no caso da gaiola, há uma oposição evidente entre ‘vida’ e liberdade, por um lado, e a imobilidade, por outro. Temos aqui um exemplo etnográfico da polarização apontada por Duarte (2004a) entre os valores românticos da vida e do movimento (ou fluxo) e um “horror à imobilidade – ou à permanência como imobilização” que marcaria uma teoria romântica da Pessoa, com ecos aqui. Em um certo sentido, aliás, o material publicitário sobre psicofármacos ilustra perfeitamente uma tensão entre o cientificismo iluminista e os valores românticos.

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funcionamento de certos neurotransmissores. Ainda que não se use diretamente esta

categoria, como não poderia deixar de ser, entendemos que a ideia de um “brilho

interior”, de uma pessoa que se revela ou se liberta, corresponde a alguma noção de

interioridade, ainda que não se trate de uma interioridade psicológica – uma das

características centrais atribuídas ao indivíduo na concepção de ‘pessoa’ moderna (cf.

Duarte, 1983; Salem, 1992; Taylor, 1997; Russo, 2001).

As representações em questão apontam para uma “revelação”, ou mesmo uma

“libertação”, uma vez atingido um ponto de equilíbrio neuroquímico. É este o caminho

para que o indivíduo possa revelar uma verdade ou um brilho interior – ou,

simbolicamente, possa alçar voo, como indica a capa do CD relacionado ao Somalium.

Este jogo entre imagens da ‘natureza lá fora’ e uma verdade interior a ser revelada pelo

acesso a uma ‘natureza cerebral’ fala de mais uma relação cara à cultura ocidental

moderna: cada um de nós é dotado de uma interioridade única, uma singularidade; o que

há de peculiar aqui é que essa singularidade é acessada, desvelada e gerida através de

uma intervenção na química cerebral. Em outras palavras, essa singularidade, no

sistema simbólico aqui analisado, tem uma base biológica localizada em um órgão

específico.

Eu proporia chamá-la de uma interioridade neurológica, termo que postula uma

relação neste material entre fisicalismo e subjetividade – sendo mais explícito, entre

uma teoria fisicalista dos males mentais (que aqui seriam mais adequadamente referidos

como transtornos do cérebro) e representações que apontam para um mundo interior a

ser revelado. Por certo, a expressão carrega alguma ambiguidade, ao menos em um

primeiro momento, já que o termo ‘interioridade’ não costuma ser utilizado para

designar um espaço biologicamente determinado. Como falar de interioridade quando

estamos no campo de difusão dos saberes da psiquiatria biológica, cujas técnicas e

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vocabulário, ao menos em termos gerais, passam longe do mentalista ou psicológico?

Ora, atentemos para a fusão entre campos semânticos do físico e do moral –

internamente ao cérebro – quando se afirma que neurotransmissores ‘fazem fluir’

sentimentos, pensamentos e emoções. Assim sendo, um vocabulário cerebralista pode

estar em relação direta com a interioridade do sujeito, sem qualquer mediação. Torna-se

possível – e coerente, neste contexto – aquilo que Changeux (1980) chamou uma

“moderna biologia do espírito”. Desfaz-se a ambiguidade.

O discurso que analisamos na publicidade de psicofármacos, nunca é demais

dizer, não se produz por fora das possibilidades semânticas e representacionais da

cultura onde circula. Ao contrário, é possível perceber neste material alguns de nossos

traços cosmológicos centrais. Chamo a atenção para uma chave interpretativa que

propõe serem o naturalismo e o subjetivismo valores estruturantes da cultura ocidental

moderna: este nos remete para uma dimensão de escolha e liberdade individual,

enquanto aquele os remete à ideia de natureza como uma ideologia preeminente em

nosso sistema de valores (cf. Duarte et alli, 2006). Juntos, subjetivismo e naturalismo

conformariam

As linhas de força da ‘cosmologia moderna’ [que] detêm grande preeminência na organização do ethos privado por força de sua alta legitimidade pública e por sua condição propriamente estruturante, não questionada (um verdadeiro senso comum), crescentemente capilarizada para todos os níveis da sociedade pelos meios de difusão ideológica dominantes (escola, meios de comunicação, interação com profissionais eruditos e mediadores ativistas etc. (Duarte et alli., 2006:24)

O que postulo aqui é a ideia de que a publicidade de psicofármacos não escapa a

– na verdade, reproduz – este sistema de valores. Por outro lado, com a autoridade de

um discurso científico, o discurso dos laboratórios sobre medicamentos e doenças do

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cérebro constrói e reforça a ideia de onde partiu.73 Isso pode ser percebido tanto pela

presença massiva de imagens da natureza representando uma ideia de equilíbrio e saúde,

quanto pela valoração de um subjetivismo, expresso em imagens e palavras que falam

de liberdade, vida e de uma interioridade – ou “brilho interior” – a ser expressa.

Os temas gráficos comuns às peças publicitárias de psicofármacos deixam no ar,

de fato, algo paradoxal, que nos remete à pergunta central deste item da tese: como

essas imagens da “natureza”, que encarnam uma ideia de “liberdade”, paz de espírito,

expressão de uma verdade interior, encaixam-se com as apostas fisicalistas a respeito

das doenças ou dos sintomas que essas peças divulgam? Como poderíamos interpretar a

convivência de textos que apontam ser a causa da depressão ou da ansiedade um

desequilíbrio químico no cérebro e imagens que remetem ao meio ambiente harmonioso

e equilibrado? Como uma interferência química, sintética, é elencada para ‘revelar’ ou

produzir a ‘verdadeira natureza’, a ‘verdade última’, singular e subjetiva do sujeito?

Russo (2001) oferece uma pista de análise que me parece convincente para esta

convivência entre valores aparentemente não solidários entre si. A autora analisa a

convivência contemporânea entre práticas terapêuticas tão distantes quanto o uso do

Prozac e Florais de Bach, “não apenas externa, no mundo, mas muitas vezes interna ao

sujeito” (p.121). A pílula e os florais são apenas um exemplo, representando a presença

simultânea de práticas e crenças relacionadas à psiquiatria biológica e um complexo

terapêutico relacionado à esfera da “nova era” – esta última tendendo ao que ela chama

de um holismo/vitalismo neo-romântico. O aparente antagonismo entre essas duas

linhas marca um reencontro no corpo, ou melhor, no abandono de uma visão dualista

entre mente e corpo, “No caso da psiquiatria biológica, por causa do antimentalismo. No

73 Trata-se, então, de um movimento incessante. Lembremos que este material publicitário

consiste em uma importante fonte de informação também para os médicos, que por sua vez prescrevem não apenas um medicamento, mas por vezes o aparato simbólico que cerca o produto.

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das terapias alternativas, devido a uma espécie de antiintelectualismo, ou anti-

racionalismo, que leva a uma consequente revalorização do corpo” (p.121). Trata-se de

uma “corporificação do mental”, para utilizar outra ideia feliz do texto, “fonte comum

tanto do re-encantamento do mundo quanto do triunfalismo médico” (p.122).

A análise de Russo ilumina as aparentes ambigüidades na apresentação do

material publicitário de psicofármacos dos laboratórios farmacêuticos. No material

obtido, internamente a uma mesma estratégia de divulgação, caminham lado a lado as

hipóteses puramente fisicalistas dos transtornos cerebrais e a simbologia complexa de

um meio ambiente natural que representa reequilíbrio, liberdade e encontro com uma

certa verdade interior – simbologia esta que estaria, em tese, mais próxima a uma visão

encantada do mundo. Ao que parece, a ambiguidade que pode ser aventada em um

primeiro momento é apenas aparente. A linguagem técnica dos neurotransmissores,

apesar de seu caráter aglutinador, não pode prescindir de valores estruturantes do

pensamento ocidental, que aparecem de forma explícita em ilustrações e slogans. Na

maneira como se apresenta – e vários foram os exemplos aqui explorados –, é como se a

ideia de um indivíduo expressivo (cf. Taylor, 1997) fosse rebatida para dentro de uma

linguagem fisicalista que caracteriza a publicidade de psicofármacos. Uma “visão

expressiva da vida humana”, segundo Taylor, está diretamente relacionada ao

“individualismo qualitativo” (cf. Simmel, 1995 [1903]), e nos remete, mais uma vez, à

imagem de um indivíduo singular. O expressivismo, afirma Taylor,

Foi a base de uma individuação nova e mais completa. Essa é a ideia que se desenvolve no final do século XVIII: cada indivíduo é diferente e original, e essa originalidade determina como ele deve viver. Apenas a noção de diferença individual, claro, não é nova. Nada é mais evidente, nem mais banal. Nova é a ideia de que isso realmente faz diferença quanto ao modo de vida que somos chamados a levar. As diferenças não são apenas variações sem importância dentro da mesma natureza humana básica; ou diferenças morais entre indivíduos bons e maus. Implicam, em vez disso, que cada um de nós tem um caminho original que devemos percorrer; colocam para cada um de

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nós a obrigação de viver de acordo com nossa originalidade (Taylor, 1997, p.481)

Não estaria essa obrigação de viver conforme a sua originalidade expressa nas

ideias de liberdade, da “vida esperando lá fora”, do brilho interior que deve ser

expresso? Nestas peças publicitárias, o consumo de medicamentos para depressão e

ansiedade não são incompatíveis com os valores da autonomia, singularidade e criação

de si, tampouco com a ideia de “natureza”. Esta convivência complexa se faz possível

através da diluição do dualismo corpo/mente que marca este material, já que a ideia de

mente aqui – e com ela a de subjetividade – é subsidiária do funcionamento do cérebro.

É possível constatar que aquilo que o medicamento é capaz de desvendar ao

manipular os mecanismos de controle de humor pode ser representado como o “eu real”,

uma verdade que estaria encoberta pelo ‘mau funcionamento’ do cérebro. Produz-se, ao

mesmo tempo em que se desvela, a “natureza” do ser, no sentido da sua verdade mais

íntima, sua personalidade, o pássaro que sai de sua gaiola e ganha liberdade. Uma

verdade que não é quimicamente produzida, e nesse sentido cairia na seara do que

poderia chamar de artificial; o “brilho interior” é quimicamente desvelado, o que faz

toda a diferença. Não há aqui lugar para uma oposição entre natural e artificial, nem

entre natureza e tecnologia; no caso do material publicitário dos laboratórios sobre

antidepressivos, ansiolíticos e outros medicamentos, os valores da natureza e da ciência

não estão em contradição74. Essa combinação peculiar reflete uma outra que está

presente, de acordo com Nikolas Rose, na variante da noção de ‘pessoa’ que ele chamou

74 Vale dizer que esta não-contradição entre natural e artificial não é uma exclusividade deste

material de campo. Trata-se de uma característica típica das biotecnologias contemporâneas. Vejamos, por exemplo, como Luna (2007) reflete sobre este aspecto, no que diz respeito às novas tecnologias reprodutivas: “É difícil estabelecer limites entre o natural e o cultural em um campo em que se altera a biologia continuamente pela intervenção técnica. Natureza assistida deixa de ser natural? As tecnologias de procriação, ao ampliarem o leque de escolhas na área de parentesco, enfatizam seu caráter intencional. Em contrapartida, mesmo escolhas que aparentemente contrariem a natureza podem surgir de uma lógica que toma o parentesco natural por referência.” (p. 276)

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“neurochemical self”. Referindo-se às drogas psiquiátricas, afirma que “no interior da

estruturação molecular destas drogas se imiscui uma ética, e as drogas elas mesmas

personificam [embody] e incitam formas de vida específicas nas quais o ‘eu real’ é ao

mesmo tempo ‘natural’ e está por ser produzido” (Rose, 2003:59). Eu diria ainda que

este ‘eu real’ a ser produzido pode ele mesmo ser visto como uma manifestação da

natureza do indivíduo, apenas descortinada com a ajuda de uma intervenção química.

Idéia que, de certa forma, dilui uma oposição fácil entre natural e artificial no que diz

respeito a essa noção particular de ‘pessoa’.

Tanto as fotos quanto as cores escolhidas fazem lembrar algo das indicações

curativas que incluem contato com a natureza; ao mesmo tempo, trata-se de um material

que difunde uma posição fisicalista a respeito dos males do sistema nervoso, remetendo-

se sempre a uma disfunção do cérebro e dos neurotransmissores. Estes valores –

fisicalismo e naturalismo – não estão em contradição neste material de divulgação; ao

contrário, são valores que se apóiam mutuamente, assim como natureza e tecnologia. Se

voltarmos ao anúncio do governo da Bahia que abre esta sessão, vamos ver que lá a

natureza é antidepressiva como um medicamento; já no marketing de psicofármacos a

relação se inverte, e os medicamentos são antidepressivos [ou ansiolíticos ou

antipsicóticos] como a natureza.

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2.3 Debates morais em torno da psicofarmacologia

Não que eu seja um cérebro perfeito. Reconheço minhas falhas na transmissão de impulsos nervosos.Sei que não sou o rei da sinapse. Tenho certa dificuldade para captar e repassar as informações entre os neurônios, admito. Mas depois de tantos anos de estimulante, calmante, estimulante, calmante, estimulante, calmante, fica difícil distinguir o que é fabricação própria do que me é impingido. De um cérebro ficcional, em conto de Adriana Falcão na coletânea Tarja Preta (2005:48)

Uma hipótese de trabalho move a sessão anterior, e a recuperamos aqui em

síntese: o valor central do naturalismo na publicidade de psicofármacos – que se entrevê

tanto nas apostas fisicalistas de explicação dos males da mente/cérebro, quanto nas

imagens do meio ambiente que ilustram tal material – representa uma espécie de re-

equilíbrio natural do indivíduo, um reencontro com a sua ‘verdadeira natureza’ a partir

de uma intervenção química no cérebro. Nos termos nativos, isso fica explícito em

slogans e chamadas como “revelando a pessoa”, “liberdade para viver” ou “realçando o

brilho interior” que estaria encoberto pelos sintomas. Desenha-se aqui uma forma

peculiar de entender a ‘pessoa’; apresentamos acima exemplos empíricos de um self

neuroquímico (cf. Rose, 2003; 2007), cuja verdade interior pode ser desvelada pela

correta gestão do funcionamento dos neurotransmissores; a personalidade resultante

destas intervenções não está necessariamente relacionada a uma ideia de artificialidade

– ao contrário, as representações que vemos exaustivamente repetidas no marketing de

psicofármacos da ‘natureza lá fora’ parece espelhar o caminho para a liberação e uma

expressão de uma ‘natureza cá dentro’. O indivíduo expressivo (cf. Taylor, 1997) é

rebatido para dentro de uma linguagem fisicalista.

A comunicação dos psicofármacos é um bom exemplo etnográfico da afirmação

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de Emily Martin de que uma visão estritamente neurológica da ‘pessoa’ consiste no

“novo disfarce da natureza” (Martin, 2000, p.585). O paralelo entre a natureza do

indivíduo e imagens da ‘natureza lá fora’ nos parece bastante evidente, justamente em

um contexto no qual cérebro e subjetividade se confundem, como fica claro em

afirmações do gênero “no cérebro, essas duas substâncias químicas [referindo-se a

neurotransmissores] são associadas com a transmissão de pensamentos e sentimentos”,

trecho retirado da monografia de um antidepressivo. Impulsos nervosos e sentimentos,

nesta passagem, são uma e a mesma coisa. Cérebro, natureza e uma

interioridade/subjetividade neurologicamente determinada aparecem relacionados entre

si, em um amálgama semântico que tem um órgão rei no topo da sua hierarquia.

Ajustar o funcionamento do cérebro nos aproximaria de, ou permitiria vir à tona,

uma interioridade neurológica – uma noção que nos fez referir ao indivíduo qualitativo

simmeliano, já que remete a uma singularidade, ainda que de um tipo particular, que

carece de reequilíbrio para ser adequadamente expressada, e cuja unicidade residiria na

materialidade cerebral. Livre da gaiola de um desequilíbrio no funcionamento dos

neurotransmissores, o indivíduo agora ganha “liberdade para voar”. Neste contexto,

natureza e tecnologia são valores que se apóiam mutuamente; mais do que isso: através

de um re-arranjo químico no circuito dos neurotransmissores podemos chegar mais

perto de quem ‘realmente’ somos.

A hipótese apresentada na tentativa de compreender a relação que se estabelece

entre psicofármacos e imagens da natureza – talvez de forma um tanto repetitiva, mas

trata-se de um ponto importante para as pretensões do capítulo – abre um novo leque de

questões a enfrentar. O naturalismo não está sozinho enquanto valor importante na

publicidade de psicofármacos; tal valor compartilha a mesma face da moeda com uma

compreensão fisicalista da mente e dos seus males. Fisicalismo, naturalismo e

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cerebralismo fazem parte de uma mesma tendência; são, neste contexto, termos

aparentados, noções que se apóiam mutuamente.

O mesmo material publicitário de psicofármacos que lança mão de imagens do

meio ambiente natural, é repetitivo e explícito no sentido de ressaltar o caráter

fisicalista, a natureza físico/cerebral de doenças como a depressão e a ansiedade. Não se

trata apenas de afirmar a materialidade destes males, mas negar explicitamente vínculos

com cultura, tempo, história e ambiente. A construção de uma visão estritamente

fisicalista/cerebralista dos males da mente passa pela negação explícita de qualquer

aspecto moral relacionado a estes males. Chegamos então a outro ponto de debate: o

caráter físico-moral dos discursos contemporâneos a respeito da psicofarmacologia, sua

função, seus usos e limites.

Abordarei o tema, em um primeiro momento, justamente pela frequência de sua

negativa. Ainda que haja menções esparsas a outras formas de tratamento (são

freqüentes as referências à terapia cognitivo-comportamental como um possível

‘complemento’ ao tratamento75) e mesmo a diversas causas para as doenças

(experiências de vida, mudanças hormonais após o parto, abuso de álcool ou outras

drogas, história familiar), nunca é demais sublinhar que se está referindo neste material

a males do cérebro gerados por um desequilíbrio químico. Mas, para além desta

constante re-afirmação de uma hipótese cerebralista, outro ponto também ventilado com

frequência merece destaque: a negação ativa de uma dimensão moral para os mesmos

males.

Uma campanha de informes publicitários do Laboratório Wyeth, fabricante do

antidepressivo Efexor (venlafaxina, indicado, segundo a bula, para todos os tipos de

75 A própria ideia de um ‘complemento’ para designar outras terapias que não as de caráter

medicamentoso em peças publicitárias de laboratórios farmacêuticos que divulgam doenças já aponta para a centralidade da neuroquímica.

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depressão, inclusive depressão associada à ansiedade)76, composta por anúncios de

jornal (recortados do caderno Folha Equilíbrio, da Folha de São Paulo) com o objetivo

de divulgar as características e tratamento da depressão entre o público geral apresenta

como a doença deve ser encarada:

A depressão já é conhecida e suficientemente definida há muitos séculos, e em todas as culturas e países. Desse modo, não se pode encará-la como uma doença moderna, ou uma doença típica das grandes cidades. (...) Diagnosticar com precisão e tratar adequadamente um estado depressivo são procedimentos fundamentais para evitar riscos decorrentes da doença, e devolver ao paciente uma boa qualidade de vida (...) À volta de um paciente deve haver a compreensão de que a depressão não é preguiça, nem falta de caráter ou de vontade. Não adianta pedir ao paciente que reaja, pois ele precisa de medicamentos.

O caráter universal da depressão, doença que atravessaria o tempo, culturas e

países, é claro no trecho acima. Ainda que em espelho negativo, ouvimos aqui o eco das

“doenças da civilização”; afirma-se não se tratar de doenças “modernas” ou

relacionadas às “grandes cidades” (a própria negação ativa por si só não deixa de ser um

reconhecimento desta possibilidade), mas lembremos da constante presença de

‘ambientes naturais’ ilustrando o material publicitário sobre psicofármacos – ainda que

76 A internet é uma interminável fonte de material a respeito das relações entre psicofármacos e

discursos sobre cérebro e medicamentos. Uma simples busca pelo nome da molécula pode nos levar a sítios inesperados. Ao pesquisar o termo Efexor, encontrei um relato que relaciona o medicamento, cérebro, sonhos e felicidade: “Alguém já observou uma correlação entre uso de antidepressivos e sonhos maravilhosos? Alguns dos momentos mais felizes de minha existência foram os sonhos que eu tinha quando tomava Efexor... (...) Não eram sonhos necessariamente fantásticos no visual ou na história - embora eu também tivesse sonhos assim. Eram muitas vezes sonhos "comuns" - eu estudando numa escola, eu numa versão alternante do meu trabalho... mas a sensação de felicidade era algo incrível. Como se uma parte do meu cérebro, responsável pela sensação de felicidade plena, só funcionasse a todo vapor durante os sonhos, e sob efeito do Efexor. (...) Eu tinha sonhos nos quais eu atingia um estado de tanta felicidade interior que jamais imaginei um dia sentir. Cheguei a brincar que o Sentido da Vida era sonhar tomando Efexor... :-)”. Trata-se de um texto assinado e registrado em nome de Augusto C. B. Areal, disponível em http://www.infobrasilia.com.br/pessoais/sonhos/antidepressivos_x_sonhos.htm (o grifo é meu). O argumento central de Areal relaciona o uso do medicamento com uma mudança no padrão dos sonhos. A ideia de que uma parte do cérebro seria “responsável pela sensação de felicidade plena” e de que esta parte pode ser excitada por uma pílula é tão somente um ponto de apoio ao argumento, ponto já tomado como pressuposto.

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não seja este o caso específico desta campanha do laboratório Wyeth. Corta-se aqui

qualquer vínculo entre a doença e outras possíveis causas que não as físicas. Como

corolário, pede-se a compreensão de que nada possa ser feito, nem pelo paciente nem

pelas pessoas que o cercam, a não ser uma intervenção medicamentosa.

O texto da campanha de anúncios é paradigmático do material publicitário dos

laboratórios, tanto no que toca à localização da doença no cérebro, quanto à

desculpabilização do indivíduo em relação à doença. Em um folheto do laboratório Lilly

voltado ao público leigo, parcialmente escrito em modelo de perguntas e respostas, lê-

se:

Como eu cheguei a este ponto? O paciente com depressão também se questiona sobre o motivo de estar sofrendo essas mudanças. Mas não é sua culpa. Acredita-se que a depressão seja uma condição médica causada por alterações de substâncias químicas no cérebro e por todo o corpo. Essas alterações podem ter sido desencadeadas por algum evento negativo em sua vida, por estresse excessivo ou até mesmo surgirem sem nenhuma causa aparente. De qualquer forma, a depressão é uma condição médica real, assim como as doenças cardiovasculares ou o colesterol alto e, portanto, é preciso ajuda especializada para sair dela.

Ainda que desencadeadas por “eventos negativos” ou “estresse excessivo”, a “condição

médica” da depressão é comparada a outros males cujos marcadores biológicos são

tidos como fatos científicos. Em um parágrafo curto, atente-se, o termo “condição

médica” é repetido duas vezes, com o reforço do adjetivo “real” na segunda vez. Por ser

uma “condição médica”, afirma-se que a depressão não é um mal de outra natureza, um

oposto possível sendo o de condição psicológica; e o seu caráter “real” quer conferir

algo de palpável a um estado que foge à possibilidade de medição por exames

laboratoriais, como seria o caso, por exemplo, do nível de colesterol.

Essa materialidade dos males do sistema nervoso, e a sua comparação com

problemas de ordem mais obviamente física – como contraponto ao psicológico – é

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também um dos traços marcantes do material publicitário de psicofármacos. Em um

impresso do laboratório Lundbeck sobre depressão, essa comparação chega aos

membros do corpo:

Os medicamentos que corrigem o desequilíbrio químico das substâncias no cérebro são chamados de antidepressivos. Os antidepressivos mais modernos geralmente são eficazes, bem tolerados, seguros e não causam vício ou dependência, mesmo se utilizados por muito tempo e em doses elevadas. São necessárias algumas semanas para que o efeito dos antidepressivos aconteça. Até que o efeito ocorra, não se deve exigir do paciente com depressão uma mudança radical de comportamento, porque ele ainda não vai estar pronto para isso; é como se pedíssemos para uma pessoa que acabou de tirar o gesso de uma perna quebrada correr. É muito importante que o paciente e seus familiares compreendam que a depressão é uma doença médica real e que necessita de tratamento específico. (...) Não tenha medo nem vergonha de ter depressão. A depressão é uma doença e deve ser encarada como tal. A depressão tem tratamento.

Vamos encontrar textos semelhantes em material de divulgação dos vários

transtornos de ansiedade. Em um folder voltado ao público leigo, também assinado pelo

laboratório Lundbeck, afirma-se que “é frequente atribuir as doenças psiquiátricas a

uma falta de “força” ou “caráter”. Não se trata disso. Existem as reações normais e

esperadas e as anormais, que quando consideradas doenças, demandam tratamento

específico”.

O discurso obedece a um duplo objetivo: por um lado, os laboratórios participam

de uma política para reduzir o estigma que cerca as doenças relacionadas ao

cérebro/mente, construindo uma equivalência com outros males não (ou menos)

estigmatizados através de comparações ou metáforas; por outro, a materialidade dos

males serve ao objetivo comercial de divulgar um certo modelo de doença e tratamento,

que conferiria critérios mais objetivos ao universo da saúde mental. Em síntese: para

afirmar a realidade física dos males cerebrais/mentais, nega-se a eles explicitamente

uma dimensão de ordem moral.

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Uma consequência, então, do foco em um discurso cerebralista, é a não-

responsabilização do indivíduo pela sua doença, e mesmo a não-implicação subjetiva

em relação ao seu estado. Esta característica não diz respeito somente aos males do

cérebro, tratando-se sim de um traço geral dos discursos que transitam entre a

psiquiatria biológica e as neurociências, dizendo respeito a diversas características do

indivíduo, e encontrando eco entre o público leigo.77 Um exemplo pertinente é o da

orientação sexual; mais uma vez, minha ancoragem etnográfica situa-se no ponto de

encontro entre o discurso científico e a forma como ele é apropriado pelo público leigo.

Referindo-se à divulgação dos resultados de uma pesquisa realizada por cientistas

ligados ao Instituto Karolinska, na Suécia,78 encontrei esta nota em uma coluna social

do jornal O Dia:

Rogéria está soltando fogos de artifício com o estudo divulgado por pesquisadores suecos que prova que o cérebro de homens gays é fisicamente parecido com o das mulheres heterossexuais. “Fiquei muito feliz – disse ela. Agora acabou de vez aquele ranço que existe. Então, não é opção: a pessoa nasce com o cérebro de mulher. A minha mãe sempre me disse que era biológico. Ela tinha razão”, comemora a loura.

O importante para minhas ambições aqui é perceber que a divulgação pública

em mídia não-especializada de saberes sobre o cérebro tem reverberado entre o público

leigo, um fenômeno que apenas começa a ser explorado. No caso acima, a travesti

Rogéria alinha-se de forma positiva aos resultados divulgados de uma pesquisa

relacionada à expressão no cérebro da sexualidade; ou, explicando melhor, como uma

determinada característica deste órgão define a sua opção sexual, que não passaria então

77 Trata-se de um ponto complexo. Por outro lado, veremos mais à frente que a difusão de

saberes das neurociências que se aproxima, em alguns casos, do discurso de auto-ajuda, nos direciona a uma noção de gestão cotidiana do próprio cérebro.

78 Uma análise antropológica deste estudo e do contexto no qual está inserido pode ser encontrada em Carvalho, 2008. Meu foco limita-se a esta nota no jornal O Dia, por certo consequência da ampla divulgação que os resultados deste estudo tiveram na mídia de massa, merecendo, por exemplo, uma reportagem na revista Veja.

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por uma escolha de caráter subjetivo ou por uma história de vida, e pode ser objetivada

através de exames de neuro-imagem. Por esta razão, não deveria ser alvo de objeções,

“ranço” ou preconceito que situariam a escolha no campo moral. Neste sentido, as

doenças do cérebro, assim como a sexualidade, são vistas como uma dimensão sobre a

qual o indivíduo não tem controle, e, por isso, não poderia ser culpabilizado.

É justamente sobre o valor da escolha que me debruço agora. Tanto o uso de

psicofármacos, quanto o debate mais amplo sobre o funcionamento do cérebro e mesmo

a relação do indivíduo com o seu cérebro estão atravessados por valores centrais para a

cultura Ocidental, como escolha, autonomia e autenticidade, que convivem de uma

forma tensa com a chave fisicalista e desculpabilizante que encontramos no discurso da

indústria farmacêutica. Voltemos por um instante ao livro da neurocientista Jill Bolte

Taylor, já citado anteriormente. Todo o seu relato a respeito da recuperação de um AVC

no lado esquerdo do cérebro está baseado na noção de escolha, de que o cérebro não é

controlado por um destino imutável, e que uma pessoa poderia optar por reativar ou não

determinados circuitos de neurotransmissores para atingir determinados objetivos.79

O seu ponto de partida, tomando como base a questão da lateralidade cerebral, das

diferentes funções concentradas nos lados esquerdo ou direito do cérebro, é o de que

“somos duas distintas manifestações no mundo, podemos escolher de maneira

espontânea ter muito mais controle do que imaginávamos sobre o que ocorre no interior

do cérebro” (Taylor, 2008:157). Em parte, ela afirma ter assumido o comando do

próprio cérebro, e ter feito uma opção por dar um “passo à direita”, evitando

79 O contraste é curioso: um AVC tem uma expressão física difícil de contestar e Taylor vai

ressaltar em seu livro a noção de escolha na sua relação com o seu próprio cérebro após um derrame; por sua vez, o diagnóstico ‘cerebral’ via exames de neuro-imagem (pet-scans ou fMRI) para transtornos de depressão e ansiedade é muito mais controverso, e todo o material publicitário de psicofármacos que sublinha uma hipótese baseada no desequilíbrio de neurotransmissores justamente ressalta que não há reação ou escolha possível por parte do indivíduo, que precisa sim de medicamentos. Reconheço que se trata de material etnográfico de naturezas diversas, mas a comparação me parece pertinente, já que ambos os discursos marcam um encontro na relação da pessoa com algo que se passa em seu cérebro.

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determinados circuitos cerebrais, como aquele relacionado à raiva. “Momento a

momento – ela afirma – faço a escolha de me ligar ao neurocircuito ou recuar para o

momento presente, permitindo que a reação desapareça da minha fisiologia”

(ibidem:153). Essa escolha pessoal a respeito do funcionamento do cérebro ganha um

tom de auto-ajuda, como na passagem destacada a seguir:

Percebo que a consciência do meu hemisfério direito está ansiosa, esperando que a humanidade dê aquele salto gigantesco e dê um passo à direita, de forma que possamos fazer o planeta evoluir e transformar-se no lugar de paz e amor que queremos que ele seja. (...) Seu corpo é a força de vida de cerca de 50 trilhões de gênios moleculares. Você e eu escolhemos momento a momento quem e como queremos ser no mundo. Eu o incentivo a prestar atenção ao que acontece em seu cérebro. Assuma o comando e se mostre para a vida. Brilhe!80 (ibidem:190, grifo da autora)

A escolha e o controle consciente em relação aos neurocircuitos no relato de Taylor

contrastam com a impossibilidade de escolha a respeito de algumas doenças do cérebro

conforme a posição defendida no marketing de remédios e doenças dos laboratórios

farmacêuticos. Por outro lado, assistimos a repetição de alguns termos nesta passagem

que já foram vistos naquele material: assumir o comando do cérebro está, também aqui,

relacionado à possibilidade de expressão de um ‘eu interior’ – que “brilha” e se “mostra

para a vida –, neste caso, preferencialmente, do “pacífico e amoroso personagem do

lado direito do cérebro”.

Quando o discurso neurocientífico – refiro-me especificamente àquele que 80 Fica clara no trecho em destaque a relação entre lateralidade cerebral, auto-conhecimento e

controle de si. Trata-se apenas de um exemplo contemporâneo de uma tendência mais ampla. Encontrei em um jornal de bairro no Rio de Janeiro (jornal Posto 6, sem referência de data) o anúncio de uma oficina criativa voltada especialmente para crianças, que prometia estimular “o lado direito do cérebro, trazendo benefícios psicológicos a nível de segurança, auto estima, desinibição, elementos fundamentais para superar as barreiras do dia a dia seja no campo pessoal, familiar ou profissional. (...) O canal para fazer contato com as emoções é o Hemisfério Direito do Cérebro”. (grifo no texto original) As pesquisas relacionadas à lateralização hemisférica tiveram como uma de suas consequências a produção de uma “vasta literatura de desenvolvimento pessoal e auto-ajuda visando o cultivo de um lado do cérebro, e até em considerações neuropolíticas sobre o futuro catastrófico de uma sociedade que seria tiranizada por valores do hemisfério esquerdo” (Vidal, 2009, p. 17).

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procura traduzir a aridez de um vocabulário especializado com vistas a torná-lo mais

palatável ao público leigo – aproxima-se de um tom de ‘auto-ajuda’, abre-se a

possibilidade de que ‘escolhas’ possam ser feitas no que diz respeito ao cérebro e

mesmo que possamos controlá-lo. O que nos interessa, para concluir este capítulo, é

mostrar que certas práticas, usos e discursos relacionados à psicofarmacologia também

possuem uma face relacionada ao valor da escolha, o que nos remete a uma dimensão

moral. Refiro-me especialmente aos debates suscitados pelo uso de psicofármacos com

fins de melhoramento da capacidade cognitiva, ou mesmo para um controle do humor,

não relacionado à cura ou tratamento de qualquer patologia. Quando entramos nesta

seara, fica mais do que evidente o quanto o uso de medicamentos que atuam no sistema

nervoso é atravessado por questões de ordem moral, que em muito ultrapassam uma

polaridade simples entre saúde e doença.

Tal uso vem sendo referido na literatura como enhancement, o que pode ser

traduzido como aprimoramento ou melhoramento. Juengst (1998:29) oferece a seguinte

definição: “O termo enhancement é geralmente utilizado em bioética para caracterizar

intervenções destinadas a melhorar a forma ou o funcionamento humano além do que é

necessário para sustentar ou restaurar a boa saúde”. O tema ganhou destaque para muito

além dos debates acadêmicos em bioética, tornando-se frequente em veículos de

comunicação de massa. Através de expressões como “neurocosmética” ou

“psicofarmacologia cosmética”, começa a ganhar destaque a discussão do uso de

psicofármacos como medicamentalização do estilo de vida. O próprio discurso dos

laboratórios farmacêuticos oferece pistas neste sentido; ainda que se trate os males do

cérebro/mente como “condições médicas reais”, é constante o uso da expressão

qualidade de vida nas peças de divulgação, um deslizamento semântico que não deve

passar despercebido – afinal, a busca por mais qualidade de vida não é o exato

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equivalente do tratamento de um transtorno, e permite pensar um escopo muito mais

amplo de possibilidades de uso dos medicamentos.

A ideia de enhancement é bastante espinhosa porque se trata de um conceito

moral – ou físico-moral, se lembrarmos que a expressão pode designar intervenções

com alguma consequência direta na vivência corporal; o limite entre uma intervenção

médica caracterizada como “tratamento” e outra qualificada como aprimoramento é

muito tênue, envolvendo um debate sobre quais seriam os limites da medicina e quais

estados físicos devem ou não ser alvo de intervenções medicamentosas, cirúrgicas etc.

(Parens, 1998), e nos relembra o estatuto ambíguo que a ideia de ‘droga’ possui na

cultura ocidental contemporânea81.

O amplo uso que vem sendo feito de antidepressivos e ansiolíticos fez com que o

debate sobre enhancement cruzasse com certo uso contemporâneo da

psicofarmacologia, especialmente desde o lançamento do Prozac, um antidepressivo

que, ao ganhar estatuto de estrela no campo da psicofarmacologia (um verdadeiro

fenômeno pop), lançou mais uma vez em fórum público o debate sobre as possíveis

81 Ver Vargas, 1998. O autor faz uso da noção de drogas em seu sentido mais completo:

“aquelas substâncias químicas, naturais ou sintetizadas que produzem algum tipo de alteração psíquica e corporal, e cujo uso, em nossa sociedade, é objeto de controle (caso do álcool e do tabaco) ou repressão (caso das drogas ilícitas) por parte do Estado. Mesmo que trivial, é preciso não esquecer que ‘drogas são ainda todos os fármacos’”. (Vargas, 1998:122) O autor deixa ainda uma pista relacionada aos nossos esforços nesta tese quando afirma que “ainda são escassas as pesquisas que investiguem o problema das drogas do ponto de vista crítico de suas práticas de consumo e de suas relações com os saberes e as práticas médicas” (ibidem:122). Voltarei a este tema mais adiante.

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“pílulas da felicidade” 82. Uma pergunta importante é se a ampliação do uso desta classe

de medicamento (os inibidores seletivos de recaptação de serotonina, ISRSs) não estaria

fazendo com que não só fossem tratadas doenças clinicamente diagnosticadas como a

depressão e a ansiedade, mas também houvesse um uso que provocaria nas pessoas a

passagem de um estado normal para outro. Este assunto avança para muito além de uma

determinada classe de medicamentos, já que questões semelhantes ecoam no uso já

noticiado de beta-bloqueadores para reduzir os sintomas de ansiedade, ou do

medicamento Ritalina – oficialmente indicado para o transtorno de déficit de atenção –

para “turbinar o cérebro”, aumentando a capacidade de concentração.

Em que sentido o debate a respeito da ideia de enhancement pode nos ser útil

aqui, quando nos propomos a entender as campanhas de divulgação de doenças e os

medicamentos ligados ao sistema nervoso veiculados pelos laboratórios farmacêuticos?

Algumas vozes têm se levantado em um tom denunciatório para apontar que muitas das

estratégias de marketing dos laboratórios consistem justamente em esfumar os limites

entre enhancement e tratamento, com o objetivo de ampliar o espectro de estados

diagnosticáveis como patológicos e, assim, ampliar o mercado consumidor de

82 O conceito, na verdade, não seria novo; em 1955 o laboratório Wallace teria comercializado a

molécula meprobamato sob o nome fantasia Miltown, a primeira droga psicoativa para tratar a ansiedade da vida cotidiana, “a prescription drug for the worried well” (Elliott, 2004:1). Ele não era comercializado como sedativo, mas como tranqüilizante. Este ponto, vale sublinhar, comunica-se com a ideia de qualidade de vida, repetida com frequência na publicidade de psicofármacos (e em muitas outras frentes publicitárias dos laboratórios farmacêuticos, como no caso dos medicamentos ligados à saúde sexual), no sentido em que nos chama atenção para a importância de um deslizamento semântico: “os americanos ansiosos – afirma Elliott – não queriam ser sedados, mas quem poderia discutir com um pouco mais de tranqüilidade?”. Miltown foi um sucesso, tornou-se um fenômeno de cultura pop, Newsweek o chamou de ‘aspirina emocional’. Na mesma direção, eu poderia afirmar, refletindo sobre meu material de campo, que nem todos os consumidores de remédios para o cérebro se vêem como portadores de um transtorno cerebral; mas quem pode argumentar contra a busca por mais qualidade de vida? Não seria esta uma chave interessante para pensarmos sobre a atual elasticidade dos diagnósticos psiquiátricos hoje em dia?

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medicamentos.83 Mas não se trata aqui de demonizar a postura dos laboratórios

farmacêuticos; afinal, a estética do bem-estar e da qualidade de vida reflete um traço

ideológico da cultura ocidental moderna, muito além dos interesses de uma indústria.

Por outro lado, não se pode desprezar a capacidade de multiplicação dessas ideias,

quando eles atendem ao interesse de uma corporação tão poderosa, e que ocupa um

lugar de autoridade como produtora de verdades sobre o funcionamento do corpo

humano.

De qualquer forma, parece-me mais fértil refletir aqui sobre a relação entre

tecnologias de aprimoramento e a noção de escolha. O debate que tem sido suscitado

sobre a ampliação do uso de antidepressivos e ansiolíticos, e também o processo de

difusão destes males, está atravessado por estas questões e nos lança em uma

interessante bifurcação. Elliott (2004) retrata bem essa questão ao afirmar que a vida

moderna nos impulsionaria em duas direções morais distintas. Uma delas diz respeito à

herança de uma tradição moral84 que valoriza a noção de autenticidade; conceitos como

integridade moral versus traição de si (self-betrayal), sinceridade ou duplicidade, being

true to yourself só fariam sentido porque acreditamos possuir selves individuais, que

apresentam unidade e integridade no decorrer do tempo e, centralmente, que nós

devemos ter um comprometimento moral com a manutenção dessa unidade. Uma ética 83 Ver, por exemplo, Moynihan e Cassels (2005). Os autores fazem um esforço de denúncia das

técnicas de marketing da indústria farmacêutica, referindo-se a uma entrevista dada por um executivo do Laboratório Merck à revista Fortune, “há 30 anos atrás” (1975?), na qual ele afirma seu desagrado a respeito da limitação dos consumidores da Merck às pessoas doentes. O seu sonho seria um momento no qual o laboratório começasse a criar medicamentos para pessoas saudáveis. Para Moynihan e Cassels, esse tempo já chegou: as novas estratégias da indústria estariam focadas em campanhas ambíguas de awareness-raising, visando informar a população a respeito de determinada doença ou transtorno – o problema é que tais campanhas seriam publicidade de medicamentos travestida de esforço para informar a população a respeito de uma doença pouco conhecida e da existência de um tratamento. Sem meias palavras, o livro mostra que existem profissionais de marketing especializados em criar doenças, uma forma sofisticada de vender medicamentos. Moynihan foi também um dos editores de um dossiê especial da revista PlosMedicine sobre o chamado disease mongering.

84 Tradição que ele circunscreve à cultura americana, mas poderíamos afirmar que hoje atravessa o Ocidente como um valor importante.

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da autenticidade nos ensina que uma vida plena de significado passa pela descoberta e

pela busca de valores, ideais e talentos que seriam peculiares a cada um de nós enquanto

indivíduos. Mas esse vocabulário moral surgiria em um pano de fundo que valoriza a

adoção de uma identidade flexível e adaptável, contra a ideia de que temos que nos

reinventar a cada momento, transitar por diferentes identidades para que tenhamos uma

vida rica em experiências.

Este é um debate, creio, paralelo ao desenvolvido por Sennett (2005) sobre as

mudanças no mundo do trabalho: se, no paradigma atual do mundo do trabalho, pede-se

fluidez e um espírito adaptável, por vezes esses valores vão de encontro à identidade

desejada em termos da vida íntima; a identidade profissional “leve”, com vínculos de

caráter transitório, não existe sem consequências para a vida íntima, se lembrarmos da

centralidade da categoria trabalho para nós. A questão, conforme aponta Sennett, é

como criar um discurso que coloque ordem na ambiguidade entre os valores da leveza e

da mobilidade social, por um lado, e a valorização das raízes, da autenticidade, por

outro.

O debate moral sobre o uso de antidepressivos e ansiolíticos para fins de

aprimoramento carregaria essa mesma tensão e ambivalência sobre a ideia de

autenticidade. Trata-se da liberdade de se reinventar a cada momento – e o uso de

psicofármacos seria uma das formas de atingir esse fim – ou estaríamos sendo fechados

em uma espécie de jaula química, que mantém um “verdadeiro eu” encarcerado

enquanto o medicamento faz efeito? Para alguns, o enhancement psicofarmacológico é a

ponta de um admirável mundo novo, com medicamentos como o Prozac sendo

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comparados ao Soma85. Para outros, a resistência moral ao uso dos psicofármacos

caracterizado como enhancement é exatamente isto: uma questão moral.

DeGrazia (2004), por exemplo, questiona a ideia de que o uso de psicofármacos

para fins de enhancement ou self-improvement seja um ataque à autenticidade do self.

Para ele, os argumentos contrários ao enhancement trazem embutida a concepção de

que o self é um dado, uma realidade preexistente; essa visão negligenciaria aquilo que

DeGrazia vai chamar de as possibilidades de criação de si (self-creation). A chave do

seu argumento está na seguinte pergunta: por que alguns tipos de self-improvement são

considerados autênticos, como exercícios físicos ou educação, e outros seriam

considerados artificiais e não-autênticos, como o uso de antidepressivos para fins de

enhancement?

Na esteira da pergunta formulada pelo autor, se tomarmos a vida cotidiana em

seu aspecto competitivo, a questão se torna ainda mais complexa, já que estratégias de

aprimoramento cognitivo, ou mesmo de gestão do humor e da ansiedade, podem ser

vistas em certos contextos como uma espécie de doping. Mas, não deixa de haver um

paralelo entre os limites para intervenções visando melhoria da performance física e

mental/cerebral/cognitiva. Um atleta pode treinar ao limite da sua capacidade para uma

competição, mas há regras severas (em tese) para o uso de qualquer molécula que possa

trazer vantagens ‘artificiais’. No que diz respeito ao aspecto cognitivo ou emocional, ao

que me parece, não há dilema moral quando existe implicação e esforço individual em

estratégias de aprimoramento, como seria o caso de ensaiar ao limite da capacidade,

estudar ou buscar terapias nas quais haveria uma implicação subjetiva evidente, um

esforço de si. Mas a possibilidade de que um competidor – tomemos o caso de 85 No livro Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley (2001[1932]), um clássico das anti-

utopias de ficção científica, o Soma é um comprimido ingerido regularmente pelas pessoas com o objetivo de gerar um estado de homeostase, evitar conflitos e jogar uma bruma entre o indivíduo e o mundo exterior, como se percebe no trecho a seguir: “uma segunda dose de soma [...] erguera um mundo intransponível entre o universo real e seus espíritos” (2001:95).

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concursos para empregos ou vagas na Universidade – possa tirar vantagens a partir da

gestão neuroquímica mostra-se como um desafio para o futuro próximo, um assunto que

começa a ganhar evidência em fóruns públicos.

A ideia de self-creation, segundo DeGrazia, está estreitamente vinculada ao

livre-arbítrio, fazer escolhas para si mesmo, modificar a sua identidade conforme a

valoração de determinados traços que portamos, e dos quais podemos, ou não, querer

nos livrar. Os críticos diriam que o Prozac configura um artifício, um atalho não-natural

ou artificial rumo ao self-improvement; a psicoterapia, em contrapartida, seria

considerada mais “natural”, por carregar uma implicação mais radical do indivíduo, e

consistir em um processo autêntico de transformação.

Mas por que destacar aqui a questão do aprimoramento? Acredito que a

ampliação do uso dos psicofármacos para além do binômio saúde/doença – ou ainda, o

esfumar das fronteiras do que venha a ser um estado a ser medicalizado em termos de

saúde mental/cerebral – está intimamente relacionada à difusão de saberes sobre o

cérebro e suas doenças para um público mais amplo. A indústria farmacêutica tem sido

mantida sob fogo cerrado, acusada de promover, através de um marketing agressivo, a

criação e a difusão de novos diagnósticos com fins comerciais, além de incitar um

escopo mais amplo para o uso de medicamentos. Afinal, conforme a lógica destacada na

sessão anterior, difunde-se uma simbologia que conecta uma intervenção no

funcionamento do cérebro como forma de atingir um estado ‘natural’. Por outro lado,

uma maior elasticidade dos diagnósticos psiquiátricos, em paralelo com uma ampliação

do uso de psicofármacos ao largo do sistema médico oficial parece ir ao encontro de

valores como aprimoramento, autonomia e criação de si, em relação aos quais a política

dos laboratórios é apenas mais uma manifestação.

A busca por aprimoramento físico ou mental passa longe de ser novidade no

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Ocidente. Ao contrário, trata-se de um traço da cultura ocidental86. Logo, não é de se

estranhar que, com a maior difusão de saberes que visam tornar o cérebro mais

transparente para diagnósticos e intervenções, a noção de aprimoramento avance sobre a

gestão deste órgão.

86 Como afirma Duarte a respeito de um conceito aparentado, talvez sinônimos: “A perfectibilidade (...) implica o uso sistemático da razão para o avanço do ser humano em suas condições de relação com o mundo. Essa perfectibilidade, por outro lado, só pode se desencadear (segundo seus ideólogos originários) através da “experiência” em relação ao mundo exterior. A razão humana só viceja através do contato dos sujeitos com o mundo propiciado pelos “sentidos”; ela depende da maneira pela qual eles percebem o mundo que os cerca, e é através desses sentidos que vão poder construir as suas novas formas de relação com o mundo e se tornar eventualmente cada vez mais aperfeiçoados, mais capazes, mais senhores do seu futuro”. (Duarte, 1999:24-25)

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Capítulo 3 - O cérebro para leigos: cérebro, neurônios e neurotransmissores na vida cotidiana

The explanation given to any relation can survive and develop within a given society only if this explanation is stylized in conformity with the prevailing thought style. Ludwig Fleck, 1975[1934], p.2

“Estamos sendo observados”, diz um neurônio; “mania de perseguição sua”,

responde o outro; “mas que invasão de privacidade”, “não se pode nem mais ser

neurônio em paz”, eles reclamam, após concordarem que estão realmente sendo

observados. Ouve-se as vozes destes neurônios em off, enquanto se vê no palco um

cientista vestido com um jaleco branco e óculos que os observa (assim somos levados a

entender) através de um microscópio.

A cena soaria insólita – afinal, de que forma neurônios poderiam falar em off, o

que pressupõe em primeiro lugar ‘falar’ e, em segundo, uma possível presença –, não se

tratasse dos primeiros momentos de uma peça de teatro infantil sobre a forma como o

cérebro (e o sujeito que porta tal cérebro) funciona, encenada em um teatro na zona sul

do Rio de Janeiro87 para uma audiência de cerca de 20 crianças, seus pais e (assim

imagino) um antropólogo. Dentro de alguns instantes, neurônios com diferentes nomes

e funções estariam no palco não apenas falando, mas fazendo escolhas e interagindo

entre si na pele dos atores da peça, uma adaptação feita a partir da coleção de livros

infantis sobre neurociência chamada “As aventuras de um neurônio lembrador”, de

87 A peça estava sendo encenada na Casa de Cultura Laura Alvim, em Ipanema, área “nobre” do

Rio de Janeiro.

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autoria do neurocientista Roberto Lent88. Em duas das encenações, entre crianças e seus

acompanhantes adultos, eu estava presente observando os neurônios-atores no palco e as

reações da audiência.

Este capítulo descreve e discute o fenômeno da divulgação ou popularização de

neurociência (a peça de teatro inclusive), na forma como é conduzida por dois

pesquisadores da área que atuam no Brasil, e atendo-se às suas manifestações mais

simplificadas, que visam atingir um público amplo. Refiro-me aos neurocientistas que

se dedicam – em paralelo ao seu trabalho de pesquisa de bancada e docência – a

produzir material traduzindo e adaptando os conhecimentos da neurociência para o

público leigo, crianças e adultos, seja para mostrar como o funcionamento do cérebro se

reflete diretamente nos mais diversos aspectos da nossa vida cotidiana, seja para indicar

caminhos para atingir o bem-estar ou uma melhor “qualidade de vida” através de uma

gestão cotidiana atenta do cérebro e da vida. Não estão incluídos neste esforço

etnográfico livros-texto para estudantes da área e nem artigos científicos em periódicos

especializados. É no material voltado aos não-iniciados – mas produzido por

especialistas da área – que me concentro a seguir.

Meu foco etnográfico são determinados espaços de interseção entre esta vertente

do discurso científico e o público leigo. Se estamos falando em um processo de

popularização/divulgação de um saber científico, foi aí que me deparei com grande

parte de meus dados. As seções nas quais este capítulo se subdivide, após a primeira, na

qual faço uma breve digressão teórica, partem de diferentes formas de divulgação dos

saberes da neurociência, para diferentes públicos.

88 A próxima sessão será dedicada à análise desta coleção de livros e de sua versão teatral, então

me permito apresentar o autor mais a frente.

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3.1 A neurociência amplia os seus círculos

Os neurônios não poderiam estar mais corretos na afirmação que abre a

encenação. Do ponto de vista da neurociência contemporânea, cérebro, neurônios e

neurotransmissores nunca foram tão ‘visíveis’. Para as “novas ciências do cérebro”, o

sentido da frase “estão sendo observados” se justificaria fazendo alusão aos avanços nas

técnicas de mapeamento e registro cerebral, que permitem ver e estudar o cérebro vivo,

em movimento, ‘escaneá-lo’, medir fluxos sanguíneos ou de consumo de glicose em

determinadas áreas do órgão enquanto o sujeito analisado experimenta uma ou outra

sensação em situações controladas em laboratório. Tais técnicas89 estão por trás da

miríade de notícias sobre correlatos neurais para quase tudo, da depressão à ansiedade,

do medo à paixão, da orientação sexual à violência, de experiências de caráter

místico/religioso às práticas de consumo e aplicações financeiras. Sem grande esforço,

reportagens com este teor podem ser encontradas em diversos veículos de comunicação

de massa quase todas as semanas.

Mas o sentido que confiro aqui às expressões “observados” e “visíveis” não se

resume à observação médico-científica de um órgão e suas células por meio de algum

aparato técnico. O que quero destacar é a sua visibilidade sem microscópios ou alta

tecnologia no teatro, na televisão, em revistas, histórias em quadrinhos, peças

publicitárias e livros de divulgação neurocientífica. Cérebro, neurônios e

neurotransmissores circulam com frequência nos espaços de uma cultura leiga90,

ocupando papéis centrais, coadjuvantes ou metafóricos, seja em imagens ou textos,

reportagens ou entrevistas. Um cérebro mais visível, em outras palavras, fez-se

89 Não me parece ser o caso aqui de explicar diferentes aparatos técnicos utilizados para analisar

o cérebro, como o PET scan, o fMRI ou o eletroencefalograma. 90 Estou usando este termo para designar sujeitos e espaços não especializados em

neurociências, neurologia ou psiquiatria.

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acompanhar por um aumento da visibilidade pública do cérebro, para além do debate

em fóruns científicos.91

Se o capítulo anterior mostrou formas e conteúdos de divulgação de algumas

“doenças do cérebro”, agora vou explorar frentes de difusão ainda mais amplas a

respeito da relação entre o traço cultural que estou chamando de cerebralismo e a noção

ocidental moderna de ‘pessoa’. O ponto de partida etnográfico não será mais a ideia de

que as doenças da mente são na verdade do cérebro, mas sim a de que, virtualmente,

qualquer experiência ou sensação cotidiana – sejam elas físicas ou morais, de caráter

mais ou menos subjetivo – tem em sua base uma explicação cerebral, sobre a qual a

neurociência contemporânea tem algo a dizer. Avanço sobre espaços e superfícies que

popularizam uma noção mais difusa e abrangente, que vou sintetizar por enquanto como

uma análise do cerebralismo na vida cotidiana, inspirado no discurso nativo de

neurocientistas que se propõem a pensar uma “neurociência da vida cotidiana”.

A visibilidade que o cérebro tem hoje entre os círculos leigos deve-se, em parte,

ao esforço de neurocientistas que dedicam uma fatia de seu tempo à divulgação ou

popularização dos saberes da neurociência. No Brasil, os professores Roberto Lent e

Suzana Herculano-Houzel são expoentes na área de divulgação, pesquisadores de

destaque no que diz respeito à pesquisa de bancada, mas que também produzem

material que visa atingir e ampliar o público leigo interessado na relação entre

conhecimento científico sobre o cérebro e a vida cotidiana.

A partir de contatos iniciais com o trabalho desses dois autores – no caso de

Roberto Lent, com sua coleção de livros infantis, e, no caso de Suzana Herculano-

91 O termo visibilidade está sendo utilizado aqui em sentido amplo, referindo-se não somente às

imagens do cérebro e suas células veiculadas na cultura popular, mas sim ao volume de exposição de ideias sobre o órgão e suas funções, acompanhados de ilustrações ou não. Uma análise mais específica sobre imagens do cérebro (mais especificamente os PET scans, tomografias por emissão de pósitrons) em veículos de comunicação de massa pode ser encontrada em Dumit, 2004.

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Houzel, com seus livros de divulgação científica –, procurei seguir pistas que me

levavam aos espaços onde se dá esse processo de popularização-divulgação.

“Popularização científica” e “divulgação científica”, de forma intercambiável,

são os termos utilizados hoje pelos próprios cientistas, ao menos entre o meu material

de pesquisa, para designar um esforço em falar da sua ciência para o público leigo.

Esses termos, acredito, não são gratuitos, no sentido em que ressaltam um objetivo

educativo e de democratização destes saberes, ao mesmo tempo em que se amplia a

legitimidade de um campo de saber. Em uma entrevista tardia em relação ao resto do

trabalho de campo, feita em conjunto com um colega antropólogo também interessado

no assunto, questionei a professora Suzana a respeito desta terminologia, se ela veria

alguma diferença entre os termos, e também a respeito de uma forma correta de se

referir à sua prática profissional, se deveríamos utilizar o termo neurociênciA, no

singular, ou neurociênciAS, no plural:

Eu não me interesso por essas questões formais. Quando eu comecei a fazer divulgação científica, tem grupos que ficam anos debatendo se é vulgarização científica, divulgação científica, se é comunicação científica, eu francamente não estou nem aí. O que eu gosto de fazer é divulgar neurociência, não importa o verbo que você usa pra isso, e estudar neurociência. Se é uma só ou se são várias, é para os semânticos decidirem, eu não me importo. Eu acho que só uma questão de formato, de consistência, a gente dá um nome para o programa, para o curso, para o livro, enfim, mas neurociênciA é uma coisa só porque o assunto é o mesmo. Por outro lado você pode justificar dizendo que tem várias ciênciAS, como física, biologia, biofísica, que estudam o sistema nervoso, então se justificaria neurociênciAS. Francamente é uma discussão que não leva a lugar nenhum. (...) O nome específico não tem nenhuma conotação além de simplesmente o nome, só pra indicar que é algum tipo de comunicação para um público amplo, por isso eu acho que ‘divulgar’ é adequado...

Com meus interesses assim organizados, fui levado a uma etnografia que

envolve a análise de livros, mas também um deslocamento efetivo, no sentido de um

‘estar lá’, no teatro ou em curso de neurociência voltado ao público leigo; mais tarde,

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acabei também tomando notas em frente à televisão ou ao computador, assistindo

episódios de um quadro sobre neurociência que estava (na verdade, está no presente

desta escrita) sendo veiculado em um programa de grande audiência na Rede Globo de

Televisão.

Com a chegada da divulgação de neurociência a um programa de TV com alto

índice de popularidade, em horário nobre nas noites de domingo (refiro-me ao

Fantástico), acredito ser provável afirmar que, hoje, grande parte das pessoas, ao menos

nas classes médias e altas das áreas urbanas, esteja mais consciente – ou convencida –

da presença e influência cotidiana do seu cérebro em suas vidas, e de que o

funcionamento deste órgão tem um papel central não apenas em nosso estado de saúde,

mas também participa em nossas ações e escolhas mais corriqueiras. Acredito que isso

se dá, ao menos em parte, pelos esforços de divulgação científica conduzida por

neurocientistas, que têm ampliado o círculo de interessados no tema, através de uma

linguagem acessível e sedutora aos não iniciados, muito mais focada em curiosidades da

vida cotidiana e do funcionamento ‘normal’ do cérebro do que voltada para as doenças

que afligem, segundo uma certa lógica, este órgão. O ponto de partida aqui é a

percepção de que o discurso neurocientífico tem consequências para muito além dos

limites dos laboratórios, o que fica particularmente claro quando os cientistas que

estudam o cérebro passam a se ocupar de alguma espécie de difusão para o assim

chamado público leigo, os não iniciados nos saberes sobre o cérebro.

A presença massiva de discursos sobre o cérebro na cultura contemporânea tem

chamado atenção de pesquisadores de diversas especialidades. Isso inclui, e esta tese é

apenas um exemplo disso, pesquisadores ligados às ciências humanas: antropólogos,

sociólogos, filósofos, profissionais da área ‘psi’ procuram entender o lugar social

ocupado pelo discurso neurocientífico hoje e, neste sentido, também estão ‘observando’

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o cérebro, ou, melhor dizendo, estão analisando a profusão de discursos sobre o cérebro

que emanam do campo científico e se difundem das mais diversas formas pelos círculos

não-especializados. Fala-se já em uma especialidade emergente de “neurociência e

sociedade”, que teria como um de seus objetivos, nas palavras do pesquisador britânico

Scott Vrecko,

refletir sobre as formas como as teorias, tratamentos e explicações da neurociência estão mudando a compreensão que os indivíduos leigos têm de si mesmos e de seus mundos, e fazendo surgir o que poderia ser pensado como uma forma de 'neurologia popular'. (...) Os fatos moleculares da neurociência contemporânea deixaram de ser simples fatos científicos - isolados em periódicos especializados e discussões esotéricas -, passando a prover uma base para formas de neurociência popular que possuem, em certa medida, uma vida própria na cultura cotidiana. (Vrecko, 2006, p. 300/303)92

Ao sair do círculo restrito dos profissionais da área, os discursos científicos

ganham uma vida própria, dando origem ao que Vrecko denomina uma “neurologia

popular” – que estendo aqui para uma neurociência popular –, termo que define “the

views and beliefs that lay people have about their brains, which provides a basis for

explaining, predicting and managing themselves and others” (Vrecko, 2006, p. 300).

Ainda que não possa ser isolada como causa única do surgimento do que Vrecko

está chamando uma “folk neurology”93, o espaço que a neurociência ganhou enquanto

matriz explicativa de tantos comportamentos e sensações deve ser levado em conta.

Junto à genética, a neurociência e alguns neurocientistas gozam de grande legitimidade

hoje como especialidade e especialistas que se propõem a explicar a ‘natureza humana’.

92 “to reflect upon the ways that the theories, treatments, and explanations of the neuroscience

are changing the understandings that lay individuals have of themselves and their worlds and are giving rise to what might usefully be thought as a sort of ‘folk neurology’. (…) The molecular facts of contemporary neuroscience have ceased to be simply scientific facts – isolated in specialist journals and esoteric discussions – but also have come to provide the basis for forms of folk neurology that have, to an extent, a life of their own in everyday culture.”

93 Como já vimos, é muito mais provável que a figura antropológica do “sujeito cerebral” (Vidal, 2005 e 2009; Ortega e Vidal, 2007) seja causa da grande legitimidade da neurociência contemporânea ente o público leigo, mais do que sua consequência.

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Essa legitimidade é compartilhada entre o corpo de conhecimentos sobre o cérebro, os

cientistas que funcionam como porta-vozes públicos deste conhecimento e a própria

imagem do órgão em si, que passa a ser visto como um retrato vivo de nossa identidade

pessoal. É possível traçar um paralelo entre o maior apelo que o cérebro vem ganhando

na mídia de massa e a retórica de avanços, descobertas e promessas futuras da

neurociência. Retomando mais uma vez a situação algo paralela da genética, que

também vem passando por ampla divulgação pública, Nelkin e Lindee (1995, p.5)

afirmam que

Não é coincidência que uma apropriação popular da genética tenha se intensificado ao mesmo tempo em que cientistas ao redor do mundo começaram um esforço para mapear e sequenciar o genoma humano como um todo, já que ao apresentar sua pesquisa para o público, cientistas têm sido atores ativos na construção do poder do gene.94

A autoridade do discurso científico e um tom de iminência para novas

descobertas futuras conferem a estas especialidades um lugar de destaque na mídia de

massa e no imaginário deste início de século.

A questão que este capítulo se coloca é a respeito das formas de divulgação de

neurociência que circulam entre o público leigo, tendo como origem o discurso e certas

produções de divulgação de neurocientistas. Ou seja, pergunto-me aqui como é que se

produz interesse no público leigo a respeito de um tema de fama tão esotérica quanto o

funcionamento do cérebro; ou ainda como um público interessado em ideias sobre o

cérebro, mas não iniciado, tem acesso a um corpo de ideias que informa essa peculiar

noção de ‘pessoa’ que emana da neurociência e atravessa a cultura contemporânea.

Antes de passar à apresentação dos dados etnográficos propriamente ditos, é

importante introduzir alguns argumentos e autores que ajudam a iluminar este fenômeno

94 “It is not coincidence that the popular appropriation of genetics has intensified just as

scientists around the world have begun an effort to map and sequence the entire human genome, for in presenting their research to the public, scientist have been active players in constructing the powers of the gene.”

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de divulgação neurocientífica e mesmo a justificar o recorte etnográfico ao qual me

atenho. Dois autores me parecem particularmente importantes como pontos de partida

para as minhas intenções neste capítulo.

A divulgação neurocientífica – ainda que limitemos o sentido do termo às

atividades conduzidas por neurocientistas e ao material publicado em português – é um

fenômeno muito mais amplo do que aquele analisado nas próximas sessões. É

necessário, então, que a minha opção de trabalhar com os dois neurocientistas

escolhidos (e com alguns materiais especificamente) seja justificada. Para isso, lanço

mão do conceito de “coletivo de pensamento”, da forma como é apresentado por Fleck

(1979). Segundo ele, tal coletivo existe, de forma bastante genérica, “sempre que duas

ou mais pessoas estiverem trocando/compartilhando pensamentos” (ibidem, p.102). O

conceito ganha em densidade quando ele propõe uma estrutura geral para os coletivos

de pensamento:

The general structure of a thought collective consists of both a small esoteric circle and a larger exoteric circle, each consisting of members belonging to the thought collective and forming around any work of the mind, such as a dogma of faith, a scientific idea, or an artistic musing. (…) No direct relation exists between the exoteric circle and that creation of thought but only mediated esoterically. Thus most of the members of the thought collective are related to the works produced by the thought style only through trusting the initiated. (Fleck, 1979:105)

O conceito não se limita a designar a circulação de ideias a respeito de questões

consideradas científicas, mas a qualquer “work of the mind”. Essencial para minhas

pretensões é a diferença que Fleck vai construir entre o que ele chama de círculos

esotéricos e exotéricos. O círculo esotérico seria formado pelo pequeno grupo de

especialistas que compartilham um determinado estilo de pensamento. Neste sentido, o

‘cerebrocentrismo’ contemporâneo pode ser entendido como um “estilo de

pensamento”, posto a circular em um coletivo de pensamento mais amplo através dos

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mecanismos de divulgação neurocientífica. Ele define “estilo de pensamento” como

“[the rediness for] directed perception, with corresponding mental and objective

assimilation of what has been perceived. (…) It constrains the individual by

determining ‘what can be thought in no other way’”. (ibidem, p.99; grifos do autor)

Um esforço de popularização científica com o perfil do analisado aqui visa

alargar tanto quanto possível o raio de um determinado coletivo de pensamento,

ampliando aquilo que Fleck chamou de círculo exotérico, em torno dos saberes da

neurociência. Este círculo seria formado, segundo ele, pelos “amadores educados”, em

menor ou maior grau:

Existe uma hierarquia gradual de iniciados, e muitos fios conectando os diversos níveis assim como os vários círculos. Não existe relação direta entre o círculo exotérico e aquela criação do pensamento, mas apenas relações mediadas esotericamente. Portanto, a maioria dos membros do coletivo de pensamento relaciona-se com os trabalhos produzidos pelo estilo de pensamento somente através da confiança nos iniciados. (ibidem, p.105)95

O chamado círculo exotérico, que faz parte de um coletivo de pensamento, será

tão amplo quanto for a capacidade de comunicação dos especialistas que formam o

círculo esotérico; o diálogo será tão claro quanto maior for a concordância em torno de

um determinado estilo de pensamento e a capacidade de sedução do círculo de

especialistas. Ora, a imagem que Fleck criou para entender como se dá a circulação de

fatos científicos entre circuitos especializados e leigos ajuda a iluminar o meu recorte de

campo. No que diz respeito à divulgação contemporânea de neurociência, resolvi me

concentrar naquela produção que tem por objetivo atingir e ampliar as fronteiras mais

externas do círculo exotérico que orbita em torno dos saberes sobre o cérebro. Ou seja,

meu foco se volta para a divulgação mais simplificada, com potencial para atingir 95 “There is a graduated hierarchy of initiates, and many threads connecting the various grades

as well as the various circles. No direct relation exists between the exoteric circle and that creation of thought but only one mediated esoterically. Thus most of the members of the thought collective are related to the works produced by the thought style only through trusting the initiated.”

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mesmo os não iniciados de todo em neurociência. Não se trata de um julgamento de

valor, mas da percepção de que os neurocientistas Roberto Lent e Suzana Herculano-

Houzel, especialmente a segunda, tiveram sucesso no esforço de ampliação das

fronteiras de um público interessado em neurociência, ampliando o volume de

“amadores educados”, para voltar ao vocabulário de Fleck, ainda que a fonte de

informação se limite à versão facilitada de um livro infantil, ou de um quadro na

televisão. Trata-se, intencionalmente, de uma literatura muito mais palatável, de leitura

mais simples do que, por exemplo, os livros de Antonio Damásio (como por exemplo

“O erro de Descartes”) ou Oliver Sacks (autor de “Um antropólogo em marte”), que

também se ocupam, mas em outro registro, de divulgação de saberes sobre o cérebro.

No caso das produções de Damásio e Sacks, ainda que possam ser incluídas sob a

rubrica da divulgação científica, trata-se de textos mais difíceis, e sem qualquer intenção

lúdica, como parece ser o caso dos de Herculano-Houzel e Lent. Em síntese, estou

trabalhando com uma linguagem de divulgação científica que mira nos limites mais

externos da esfera dos leigos interessados, sejam eles crianças ou adultos, e que possui o

caráter, em muitos casos, de um evento ou uma leitura lúdica.

Como não poderia deixar de ser, uma outra justificativa para a escolha do

trabalho destes dois neurocientistas como material de análise está relacionada às

circunstâncias e ao período em que a etnografia foi realizada. O meu interesse no tema –

possivelmente não por acaso – cresceu juntamente com o espaço ocupado pelos meus

próprios informantes; no caso específico da professora Suzana, que apresenta o já citado

quadro na TV, podemos dizer que ela se tornou uma ‘celebridade’ no campo da

divulgação de neurociência. Além do acesso às publicações de divulgação dos dois,

pude acompanhar as transformações, os deslizamentos de estilo, as adaptações pelas

quais passaram os trabalhos, seja entre os livros e o teatro, seja entre os livros (e entre

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diferentes editoras) e um quadro na TV.

É preciso salientar que as interseções entre os discursos científicos e os círculos

leigos que etnografei são uma escolha arbitrária – como costuma ser na definição dos

contornos de qualquer objeto/sujeito etnográfico. Ainda assim, os contornos que dão

forma a este material são, ao que me parece, defensáveis. Não avancei por artigos de

difusão científica entre os pares, tampouco pelos livros texto, que podem servir como

material didático aos estudantes da área. Meu recorte, importante salientar, é o da

divulgação de neurociência mais simplificada, cujo conteúdo seja acessível a um

público não necessariamente iniciado no funcionamento do cérebro, neurônios e

neurotransmissores – ainda que, em parte, se trate de um público letrado e curioso sobre

o tema.

Se Fleck me instrumenta a falar sobre o recorte do campo, e sobre a circulação

de fatos científicos em termos genéricos, o trabalho de Joseph Dumit (2004) oferece

uma reflexão sobre a circulação de um objeto aparentado ao meu. A sua atenção se volta

para um aspecto peculiar da produção de fatos sobre o cérebro: as imagens de PET scan,

tão proeminentes na mídia (ele se refere à americana, mas o caso brasileiro não é

diferente neste aspecto), analisando o efeito visual destes cérebros em cores que “travel

easily and are easily made meaningful” (Dumit, 2004, p.4). O autor ressalta o “poder

persuasivo” e a “autoridade objetiva” dessas imagens do cérebro, acompanhadas de

legendas que designam a qual tipo de cérebro/pessoa ele corresponde, o que pode variar

desde um ‘cérebro deprimido’ ou ‘esquizofrênico’, até um ‘cérebro homossexual’. Fora

do circuito restrito de pesquisadores, quando são difundidas ou utilizadas em quaisquer

outras arenas públicas – ele se refere, por exemplo, ao jornalismo científico, filmes,

criminalidade, ao campo jurídico, às questões relacionadas à doença mental e ao

ativismo dos pacientes – estas imagens são acompanhadas pelo “seguinte pressuposto

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manifesto: mente = cérebro, existem tipos de cérebro (brains have types), estes tipos são

pessoas (these types are people)” (ibidem, p.141). Seu interesse – e um manifesto

incômodo com esta possibilidade96 – passa então por esta equivalência direta entre

imagens do cérebro sendo coladas a tipos de pessoas, e a forma como elas são usadas e

divulgadas em diversas arenas públicas cercadas de uma autoridade objetiva sobre a

‘natureza humana’. A estes fatos objetivos sobre cérebro e corpo que viajam por

diversas mídias, Dumit vai chamar “received-facts”, enfatizando através da palavra

“recebidos” as transformações pelas quais estes fatos passam até chegar ao público mais

amplo (cf. Dumit, 2003, p.39). Ao entrar em contato com estes fatos-recebidos

provenientes da medicina e da ciência em geral, o público mais ou menos leigo constitui

o seu self-objetivo.

We might call the acts that concern our brains and our bodies that we derive from received-facts of science and medicine the objective-self. The objective-self consists of our taken-for-granted notions, theories and tendencies regarding human bodies, brains, and kinds considered as objective referential, extrinsic, and objects of science and medicine. That we “know” we have a brain and that the brain in necessary for our self is one aspect of our objective-self. We can immediately see that each of ours objective-selves is, in general, dependent on how we came to know them. Furthermore, objective-selves are not finished but incomplete and in process. With received-facts, we fashion and refashion our objective-selves. (Dumit, 2004, p.7)

Para Dumit, este self-objetivo constitui uma categoria ativa de ‘pessoa’, mutável

no sentido em que novos fatos recebidos podem gerar adaptações em como entendemos

a ‘natureza humana’ e a nossa própria identidade pessoal. Não se trata de um

movimento simplesmente de cima para baixo, no sentido único do conhecimento

médico-científico na direção do público leigo, mas de um movimento circular (neste

96 Incômodo que o autor externaliza ao se perguntar, a respeito das imagens de PET scan: “What

if they are true? This questions trip me up, catches me off guard, posing a sublime moment of reflection: What do I believe (what do I know) about mental illness, sexual difference, sexuality difference, my own cognitive abilities, brain patterns, and identity? I am fascinated and horrified by the possibility posed here, of a world in which technology can tell me who I truly am”. (Dumit 2004, p.141)

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sentido, muito próximo às ideias de Fleck), já que novas categorias de ‘pessoa’ vão

informar o desenho do próprio discurso científico em sua produção de novas ‘naturezas

humanas’. O self-objetivo seria uma concepção de ‘pessoa’, então, na qual o discurso

científico e público ‘leigo’ estariam igualmente implicados:

The objective self is an active category of person that is developed through references to expert knowledge and invoked through facts. The objective self is also an embodied theory of human nature, both scientific and popular. (…) Objective-self fashioning calls attention to the equivocal site of this production of new objective knowledge of the self. From one perspective, science produces facts that define who our selves objectively are, and which we than accept. From another perspective, our selves are fashioned by us out of the facts available to us through the media, and these categories of people are, in turn the cultural basis from which new theories of human nature are constructed. (Dumit, 2004, p. 164)

Ainda que concorde com esta estrutura circular em termos da constituição deste

self-objetivo, acredito que seria ingênuo não perceber o lugar de autoridade ocupado

pelo discurso científico como produtor de verdades e o poder de persuasão de uma

retórica que nos apresenta fatos sobre nossos corpos, cérebros e selves. Pegando de

empréstimo uma expressão de Fleck – referindo-se à astrologia como ciência dominante

no século XV, com autoridade para definir, no exemplo por ele tratado, as origens da

sífilis –, parece-me ser da neurociência um lugar destacado de autoridade que vai definir

uma nova “atitude sociopsicológica prevalente” (Fleck, 1979, p.3), que passa a definir

também uma perspectiva de senso comum.

Ao expandir-se por círculos exotéricos que parecem ser cada vez maiores, o

cérebro não é mais o mesmo, assim como os neurônios e os neurotransmissores. Eles

ganharam vida própria, fora dos laboratórios, baseada em traduções e sentidos

atribuídos às estruturas moleculares às quais apenas poucos têm acesso direto, ao

mesmo tempo em que – já que não somos completos estranhos ao cérebro – estão

relacionadas a representações de ‘senso comum’. Neurônios, por exemplo, podem

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receber definições tão diferentes como “as unidades funcionais do sistema nervoso” (em

um sítio de divulgação científica na internet) ou “bolinhas cheias de fios” (se o público

alvo forem crianças). Seja como for, a retórica de uma ciência dominante tende a deixar

marcas duráveis na forma como entendemos a nós mesmos. Vejamos, então, em que

formatos pode viajar o cérebro na divulgação/popularização de neurociência.

3.2 “Neurônios são umas bolinhas cheias de fios”: o cérebro para crianças

Em 2006, inscrevi-me em um seminário intitulado “Neurociências e Sociedade

Contemporânea”. De caráter interdisciplinar, o ponto em comum entre os trabalhos

apresentados era um interesse na interface entre cérebro e sociedade, ou como as “novas

ciências do cérebro” impactavam a cultura ocidental moderna. O meu foco de interesse

nesta seção não diz respeito ao conteúdo do seminário, mas sim a uma obra que

encontrei em uma banca de livros, montada próxima à entrada do auditório onde

aconteciam as palestras, que reunia publicações de possível interesse dos participantes,

como é comum em eventos científicos. Entre eles havia um livro infantil chamado “O

neurônio apaixonado”; na capa do livro, vê-se a ilustração de um neurônio sorridente,

com rosto humano (olhos, nariz, boca), braços, pernas e um bottom com os dizeres “eu

♥” – o que costuma ser lido como “eu amo”.

Esta foi a primeira publicação com a qual me deparei – ao menos foi a primeira

que prendeu a minha atenção – de divulgação dos saberes das neurociências, com a

peculiaridade de seu público-alvo serem crianças. Folheando o livro ainda na banca do

seminário, soube se tratar do primeiro volume de uma coleção maior, em cinco

volumes, intitulada “Aventuras de um neurônio lembrador”. A coleção é de autoria do

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neurocientista Roberto Lent97, em parceria com o ilustrador Flávio Dealmeida.

O autor dos livros classifica este seu trabalho como de “popularização

científica”. Em seu currículo98, os trabalhos com este perfil são colocados à parte, em

um tópico em separado. Isso fala da especificidade do esforço de popularização,

diferenciado das publicações em periódicos e livros especializados, nos quais são

apresentados resultados de pesquisas de laboratório.

Posteriormente, adquiri a coleção através de um sítio na internet, quando já

havia constituído os processos de divulgação das neurociências como um dos temas

centrais da tese. Em cada volume, enquanto um garoto de nove anos de idade chamado

Ptix (um apelido formado pelas iniciais de Pedro Tiago Irineu Xavier, o nome do

garoto) se apaixona pela primeira vez (no volume 1), toma a presença de um mico na

porta de seu apartamento pela de um assaltante (volume 2), joga por acidente uma bola

de futebol no quintal da vizinha (volume 3), aprende a andar de bicicleta (4) e faz um

dever escolar (5), vemos paralelamente o que está acontecendo em seu cérebro. Em

cada volume, contrói-se uma relação direta entre essas atividades e estruturas, áreas ou

neurônios que seriam responsáveis por atividades ou sentidos relacionados. Melhor

97 O professor Lent possui graduação em Medicina (1972), mestrado (1973) e doutorado (1978)

em Ciências Biológicas (Biofísica), todos pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), na qual trabalha atualmente, no Instituto de Ciências Biomédicas (era diretor do Instituto em julho de 2008, quando captei o seu currículo na plataforma Lattes, onde também se informa que ele chefia o laboratório de neuroplasticidade). É autor ou co-autor de mais de 50 artigos publicados em periódicos científicos, e também autor e organizador de um livro texto chamado “100 bilhões de neurônios”, pelo qual recebeu o prêmio Jabuti, conferido pela Câmara Brasileira do Livro. Entre 2005 e 2007, Lent foi membro do comitê do CNPq de popularização científica. Além da coleção de neurociência para crianças, que será comentada aqui, ele escreve regularmente artigos de divulgação científica na revista Ciência Hoje On Line, além de outros veículos. Na versão para crianças, também na internet, desta mesma revista, é possível encontrar outras “aventuras” dos mesmos personagens da coleção. (ver www.cienciahoje.uol.com.br) Concentrei-me na análise de sua coleção de livros para crianças, e em sua posterior adaptação para o teatro, porque meus interesses, como já foi dito, estão voltados para a divulgação mais simplificada, para públicos o mais amplos possíveis. Mas o seu trabalho com divulgação científica antecede a coleção infantil. Outros artigos seus de divulgação, além de entrevistas para veículos de comunicação de massa, como a revista Veja, e citações em reportagens, serão utilizados de forma mais errática.

98 Lattes, mas também em outros mais resumidos, como o que encontrei no site brainhood.net.

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dizendo: através das ações e sentimentos dos neurônios, explica-se as ações e

sentimentos do garoto, seja a paixão, a memória, os movimentos do corpo ou o uso dos

sentidos de forma geral.

O cérebro ganha uma representação lúdica, na qual neurônios com funções

diversas (o neurônio da emoção, o neurônio da visão, da audição e o responsável pelos

músculos e movimentos) ganham vida e agência, viram personagens que interagem e se

comunicam, com consequências nos sentimentos, ações e sentidos do Ptix. São os

neurônios os grandes protagonistas da série, são eles que traçam planos e estratégias que

explicam as reações do garoto ao mundo que o cerca.

Os cinco volumes da coleção têm uma estrutura semelhante. Nas primeiras duas

páginas, são apresentados o narrador e a personagem principal das tramas. O narrador é

o próprio autor, o neurocientista Roberto Lent, representado através de uma caricatura.

Zé Neurim é o nome do personagem central, um fio condutor para todas as tramas, um

apelido para José Hipocampo Nostalgia. Todos os neurônios-personagens são nomeados

a partir da área do cérebro onde atuam e a partir de suas funções específicas. No caso de

Zé Neurim, o hipocampo é considerado uma região envolvida no processo de memória.

O próprio nome deste neurônio já merece atenção, pela relação direta que se estabelece

entre uma parte do cérebro e um sentimento, insinuando uma localização específica não

somente para a memória, mas para o sentimento de nostalgia. Nas tramas, Zé Neurim

tem um papel central; ele funciona como uma espécie de célula gerente que recebe

informações de outros neurônios – responsáveis pela audição, visão, emoções e

movimento –, cadastra tais informações nas gavetas da memória de Ptix, e

posteriormente redistribui tarefas.

Seguindo então a estrutura dos volumes, começamos e terminamos com um

discurso legitimador da ciência como produtora de verdades. De forma didática e com

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uma linguagem acessível ao público-alvo99, o texto explica na primeira página o que são

neurônios:

Neurônios são os componentes do nosso cérebro: umas bolinhas cheias de fios como se fossem cabelos, que vivem dentro da nossa cabeça. O nosso corpo, aliás, é cheio de bolinhas vivas desse tipo, que se chamam células. Neurônios são as células do cérebro. São tão pequenas que a gente não consegue ver nem olhando de perto. Como é que eu sei isso? [o narrador fala na 1ª pessoa] Ora, no meu laboratório tem um microscópio que aumenta tudo, e nele eu posso ver o que tem dentro do cérebro. Eu sou um cientista, faço isso quase todo dia. É a minha profissão.

O texto acima será repetido em todos os 5 volumes. Já se vê nesta primeira

página a centralidade do papel do narrador. Ele é condição de existência da história que

se segue, não simplesmente por ser o seu autor – o que poderíamos dizer de qualquer

obra de ficção –, mas por ser o único com domínio técnico do acesso a um mundo

microscópico no qual se passam as situações. A ficção que se seguirá tem este caráter

peculiar: ela só se descortina em um primeiro momento aos olhos informados de um

cientista e seu microscópio, que pode contar em terceira pessoa o que se passa ‘na

cabeça’ do garoto. Lembremos que o autor é também narrador e cientista, e tem sua

representação visual nas primeiras páginas através de uma caricatura. A técnica e o

técnico, de certa forma, são condição de acesso à história.

A definição de neurônios como “bolinhas cheias de fios como se fossem

cabelos” resolve-se graficamente através de neurônios estilizados, antropomorfizados,

com olhos, cabeça, um corpo e um prolongamento anterior, algo equivalente ao ‘rabo’

de um animal. Este rabo representa o axônio, enquanto os prolongamentos a partir da

cabeça seriam os dendritos. É através desses prolongamentos que os personagens se

comunicam entre si, encaixando o rabo/axônio de um nos cabelos/dendritos do outro,

99 A coleção está indicada para crianças de 8 a 12 anos, conforme informação que consta no

currículo do autor.

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representando o fluxo de sinais entre os neurônios, que tem sempre a direção do axônio

para os dendritos.

Na última página de cada volume, onde ficam as “dicas para os adultos” – uma

espécie de manual para que se possa possa explicar às crianças o que se passa no livro –,

a questão da comunicação entre as células é explicada da seguinte forma:

A maioria dos prolongamentos (os “cabelos” dos nossos personagens) são verdadeiras antenas que recebem mensagens de milhares de outros neurônios através das sinapses, os pontos de contato entre eles. Só um desses prolongamentos é o “cabo de saída” que leva as mensagens do neurônio para os demais. Esse é o chamado axônio.

Esta página constitui mais uma camada discursiva nos livros, que traz, além da

trama em si, voltada para o público infantil, informações para que os adultos possam

situar as crianças leitoras em uma breve história dos neurônios, o que acentua o projeto

pedagógico da publicação. Ali se encontra uma rápida contextualização histórica sobre a

“ideia do neurônio como unidade biológica do cérebro dos animais”, que foi

“estabelecida no final do século XIX pelo cientista espanhol Santiago Ramón y Cajal”.

A conexão entre as “antenas” receptoras e o “cabo de saída” (axônio) mostra-se

nas ilustrações dos livros de duas formas: ou como um encaixe literal, como se fossem

duas peças de um quebra-cabeças, ou como uma espécie de telefone. Zé Neurim “liga”

para outros neurônios, segurando o axônio próximo aos ouvidos e boca assim como

falamos ao telefone. Eventualmente, a comunicação se dá também através de correio

eletrônico, quando não se trata de um diálogo entre dois neurônios, mas sim de “mandar

uma mensagem para o cérebro todo”. Na peça de teatro, o sistema de comunicação entre

os neurônios inclui ainda o uso de telefone celular. Seja como for, em todas estas

formas temos uma representação maquínica da comunicação dentro do cérebro, mesmo

quando o tema da ‘aventura cerebral’ é a primeira paixão do garoto Pedro Tiago. É

através desses veículos de comunicação que fluem sentimentos e sensações.

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Em outro registro, no que diz respeito a como a noção de ‘mente’ é utilizada

neste material, a mesma coisa acontece no primeiro volume da coleção na seção “dicas

para os adultos”

Neste livro, pelo menos dois conceitos importantes são veiculados às crianças: o primeiro, de que até as operações mais complexas da mente, como é o caso das emoções, são controladas por neurônios. O segundo é que as emoções têm um componente psicológico, subjetivo, mas também um vasto repertório de fenômenos corporais que o acompanham, variáveis para cada emoção, mas raramente ausentes. Ambos componentes são controlados pelos neurônios das emoções e seus circuitos. (Lent, 2004: 31)

Vê-se aqui um exemplo da forma como aparece no material de divulgação dos

saberes das neurociências as relações e limites entre corpo, cérebro e mente. Fica claro

que temos uma hierarquia de controle, que traz o cérebro como um gestor tanto das

“operações mais complexas da mente” quanto dos “fenômenos corporais”. Além de

mostrar um exemplo de como a ideia de ‘mente’ é utilizada em um material com

objetivo de educação neurocientífica, esta coleção de livros infantis nos mostra

situações em que o cérebro de fato poderia ser vivenciado como uma ‘experiência

cotidiana’ em termos afetivos e corporais – desde que, é claro, crianças e adultos

concordem com o conteúdo dos livros, baseados em uma certa visão de mundo e de

pessoa.

No primeiro volume da coleção, o garoto Pedro Tiago apaixona-se pela sua nova

vizinha. Mas, durante a história, vamos perceber que dizer “Ptix apaixonou-se” é apenas

parte da explicação. As reações físicas da paixão do garoto são recebidas com

estranhamento por Zé Neurim, personagem que ocupa um lugar central da trama no

nível neurológico, “um neurônio lembrador, quer dizer, um neurônio que ajuda a

memória do Ptix a funcionar”. Zé Neurim empreende uma pesquisa com os outros

neurônios para saber o que teria gerado a estranha reação, que incluía sintomas físicos

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como coração disparado, gotas de suor na testa e respiração acelerada. Em vão, Zé

Neurim busca informações ligando para seus “parentes e colegas”, dois outros

neurônios: com Ocipitaldo Luzes, “do setor de cores e sombras do cérebro de Ptix”,

pouco se esclarece, apenas que o garoto “tinha visto uma menina morena, com olhos

claros, bonita, bonita”; em diálogo com Olívio Gravador, “do setor de sons e chiados”,

Zé Neurim pergunta se ele havia escutado algo, e o neurônio responsável pela audição

responde que “nem a Camila – alvo da paixão do garoto – falou qualquer coisa, nem

muito menos o Ptix, que ficou só com a boca aberta”. A rede neuronal é constituída por

uma trama de amizades e parentescos entre neurônios individualizados e

antropomorfizados.

Frente a estas negativas, Zé Neurim resolve “mandar uma mensagem para o

cérebro todo, como se fosse uma mensagem de correio eletrônico”. Após alguns

segundos, quem responde é um neurônio chamado “Acumbente dos Prazeres”. Através

deste contato, Zé Neurim vai descobrir que a causa estava no “setor de paixões e

felicidades”, onde trabalha o Acumbente dos Prazeres. Nas “dicas para os adultos”,

vamos aprender que o núcleo acumbente é a área do cérebro envolvida no controle das

emoções:

Os neurônios acumbentes fazem parte de um circuito que emprega a substância chamada dopamina como mensageiro sináptico. Esse circuito é muito importante para as emoções que provocam prazer, e está envolvido nos mecanismos neurais da dependência química.

Quando Ptix e Camila se encontram, o Acumbente afirma que foi tomado por

“uma reação muito esquisita. Não pude me controlar, e saí cantando, falando alto,

mandando mensagens para vários locais do cérebro do Ptix. Depois, quando acalmei,

não entendi o que tinha acontecido”.

O mistério das sensações que tomaram conta do Acumbente e de Pedro começa

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a ser esclarecido quando Zé Neurim compara o relato do neurônios responsável pelas

emoções com um trecho do romance Dom Casmurro, lido recentemente pelo garoto. No

trecho, transcrito e ilustrado no livro de Roberto Lent, lê-se: “Capitu ergueu-se rápida,

eu recuei até a parede com uma espécie de vertigem, sem fala, os olhos escuros. ... Não

me atrevi a dizer nada: ainda que quisesse, faltava-me a língua...”. O enamoramento de

Bentinho no romance é comparado ao de Ptix; e, ainda que não explícito no livro, a

dinâmica cerebral que explica a paixão de Ptix é projetada sobre o livro de Machado de

Assis, e deveria explicar também o enamoramento de Bentinho por Capitu, já que o

cérebro daqueles personagens – e mesmo o do próprio Machado – também conta com

um núcleo acumbente responsável pelas emoções que provocam prazer.

A trama se encerra, então, a partir desta comparação. Os neurônios arquitetam

um novo encontro entre Ptix e Camila, controlando as funções corporais do garoto, para

que ele tivesse que deixar a sala de aula (e ir ao banheiro, devido a uma ‘dor de

barriga’), no exato momento em que Camila iria ao dentista, gerando um novo encontro

‘casual’. E, “se a reação do Ptix se repetisse igual que o Dom Casmurro – Zé Neurim

pensou – ele teria matado a charada” (sic).

Neste novo encontro, ambos, Ptix e o Acumbente dos Prazeres, perdem o

controle: o garoto fica como se “tivesse sido enfeitiçado” e o Acumbente, por sua vez,

fica “totalmente fora de si, dando ordens para o coração do Ptix bater mais rápido, a

respiração acelerar, o suor suar, e assim por diante”. Conclui-se, em relação de causa e

efeito, que “Apaixonado, o Acumbente deixou o Ptix também apaixonado! Zé Neurim

pensou: - Onde já se viu neurônio apaixonado?”.

Terminada a trama, e antes das “dicas para os adultos” – em uma estrutura que

também se repete nos outros volumes –, o texto apresenta um ou mais pesquisadores

vinculados à área de investigação relacionada diretamente ao tema do volume. Neste

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registro, são ainda as crianças que são tomadas como interlocutores:

Agora que a história acabou, eu posso dizer a vocês: é isso mesmo. Quem me explicou foi minha colega Eliane Volchan, especialista em neurônios emocionados. Segundo ela, o Zé Neurim concluiu certo. No cérebro de todos nós existem neurônios que “sentem” prazer e felicidade. Prazer e felicidade são emoções, e quando a gente sente uma emoção, nosso corpo sente também. Por isso é que a gente sua quando fica nervoso, treme quando fica com medo, perde a fala quando fica apaixonado...

Na página seguinte, vê-se um cérebro cinzento, mas com uma área iluminada

colorida em vermelho, ao lado de uma foto que mostra uma mulher olhando a tela de

um computador, na qual aparece um tubarão com a mandíbula aberta, observada pela

cientista. Um texto descreve o experimento:

Eliane pede a pessoas como a Gabriela para olharem figuras assustadoras como esse tubarão, e estuda as reações de susto que elas têm. Quando a Gabriela vê a figura do tubarão ela se assusta, e uma porção de neurônios do cérebro dela começam a ligar uns para os outros para contar o que estão vendo: será mesmo um tubarão? Nesse momento pode-se tirar uma fotografia do cérebro, e o setor onde ficam os neurônios assustados aparece bem vermelho.

Nestas duas páginas, constrói-se sempre uma ponte entre as aventuras dos

neurônios e as pesquisas de laboratório que demonstram a base científica daquela

ficção. Ou melhor: demonstra-se que, apesar da apresentação em ilustrações voltadas

para crianças, não se trata meramente de uma fantasia ficcional, mas de fatos científicos

adaptados para uma apresentação ao público infantil. Na ‘vida real’ a qual se tem acesso

no experimento científico, como na história ilustrada de Zé Neurim, os neurônios

“ligam” uns para os outros, gerando uma atividade que permite, em tese, visualizar as

áreas do cérebro envolvidas na sensação gerada pela imagem do tubarão; e, por

semelhança de caso, o mesmo valeria para o cérebro apaixonado de Ptix.

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Uma entrevista do neurocientista Roberto Lent concedida à Revista Veja100 tem

justamente como manchete a frase “Não é mais ficção”. O ponto central da entrevista é

explicar – nas palavras de Lent – que “as descobertas feitas com base nas técnicas de

mapeamento e registro cerebral” não são mais coisa de ficção científica, “como as

pessoas tendem a imaginar”. Para exemplificar, o cientista lança mão do enredo do

filme “Brilho eterno de uma mente sem lembranças”, no qual uma empresa oferece

serviços para apagar memórias indesejadas, fazendo uso de neuroimagem para orientar

este curioso procedimento cirúrgico conduzido durante o sono do ‘paciente’. Segundo

Lent, esta possibilidade não estaria “muito distante da realidade”. Ele se mostra

preocupado com os limites éticos do uso dessas técnicas, que já estariam em aplicação

comercial; ele cita um caso, que “os jornais já noticiaram”, de

empresas recrutando voluntários para medir a ativação de seu cérebro enquanto assistem a um filme publicitário. As cenas mais vibrantes, as que ativam mais fortemente as áreas cerebrais ligadas à percepção do produto, são escolhidas para ser usadas nas peças publicitárias. Mas o fato é que padrões de comportamento já estão sendo alterados. (Lent, 2006) (Revista Veja ano 39, n.38 p.17)

Intercalam-se, na entrevista, referências de ficção e de algo já possível de ser

realizado no estágio atual das técnicas que propõem uma visualização ou uma

materialização da subjetividade e dos sentimentos, com o objetivo de demonstrar

justamente a distância cada vez menor entre as possibilidades científicas ‘reais’ e um

certo universo de representações que circula entre o público leigo. Algo de semelhante

existe, neste sentido, entre a forma como ele se coloca na entrevista e a própria estrutura

dos livros infantis: nas duas é possível identificar um trânsito entre ‘ficção científica’ e

realidade científica. Mas há uma diferença importante: talvez por consistir em uma peça

educativa para crianças sobre o funcionamento do cérebro, as referências científicas de

100 Revista Veja, ano 39, n.38, data de capa 27/09/2006 [páginas amarelas].

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base são retratadas de forma menos reflexiva. Atente-se para o fato de que os exemplos

utilizados na entrevista à revista Veja e no livro “O neurônio apaixonado” são

próximos. No primeiro caso, o uso de técnicas para medir a ativação de áreas do cérebro

para fins comerciais é citado entre os possíveis riscos éticos gerados por intervenções

cerebrais – no sentido em que a maquinaria publicitária teria um poder que a colocaria

quase para além da liberdade de escolha, já que as mensagens a respeito de um produto

estariam se comunicando com o cérebro dos consumidores, em um nível no qual falar

em uma ‘escolha subjetiva’ entre mais de uma marca já não me parece possível. Já no

segundo caso, no livro infantil, a possibilidade de se captar reações cerebrais frente a

imagens assustadoras – ou sedutoras – fazendo uso do aparato já existente para a

neurociência está cercado de uma aura positiva, que comprova a conclusão correta de

Zé Neurim, o ‘herói’ principal da história, a respeito das estranhas reações de Ptix

quando ele encontra o objeto de sua primeira paixão amorosa. A materialização de

sentimentos e emoções recebe sinais diferentes conforme o contexto no qual está sendo

discutida.

Atribuir esse nível de agência ao cérebro e suas células nos remete a uma

concepção particular de sujeito. A forma como se apresenta o “sujeito da neurociência”,

como afirmam Russo e Ponciano (2002), é um signo do esgotamento do dualismo

mente/corpo na cultura ocidental moderna, ainda que tal divisão subsista em algumas

representações. O slogan da revista mensal de divulgação científica Viver Mente e

Cérebro, talvez sem esta intenção, nos fornece mais um signo deste esgotamento: “a

revista que une as partes”. A questão é pensar quais são os termos desta união: une

porque se trata de um espaço de discussão para os dois temas?, ou une porque cérebro e

mente, na verdade, tornaram-se uma e a mesma coisa, sendo a mente uma espécie de

epifenômeno do cérebro? A concepção de sujeito, como apresentado pela neurociência,

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consistiria em uma

substituição de uma visão dualista do humano, baseada na afirmação de um plano “psíquico”, distinto do orgânico, por outra monista, que pretende fornecer uma leitura orgânica (ou naturalista) do que até então tem-se chamado psíquico (ou mental). (Russo e Ponciano, 2002, p.348)

Essa diluição dos limites entre os dois planos permite representações como esta

apresentada no livro de popularização neurocientífica de Roberto Lent. Temos então a

possibilidade de uma linguagem que inclua o vocabulário neurocientífico e ideias

ligadas ao plano da mente e da intencionalidade.

Lembremos agora que a coleção de livros infantis foi condensada em uma peça

de teatro. A partir de discussões sobre a peça, teremos oportunidade de voltar a temas

dos outros volumes da coleção infantil. Então vamos ao teatro do cérebro.

3.2.1 Quando o cérebro rouba a cena: aplaudindo neurônios no teatro

Através do jornal O Globo e da Revista Veja Rio, soube que a peça “O Neurônio

apaixonado ou o que é que você tem na cabeça, menino?”101, classificada como “teatro

infantil”, iria reestrear na Casa de Cultura Laura Alvim, em Ipanema, no Rio de Janeiro,

para uma nova temporada com apresentações em junho e julho de 2008, todos os finais

de semana, aos sábados e domingos. Eu havia perdido a chance de ver a peça em uma

temporada anterior, em 2006, no Centro Cultural Telemar, também no Rio de Janeiro, a

respeito da qual só me inteirei quando já era tarde demais. Ainda que se tratasse de uma

aventura etnográfica tardia, visto o meu cronograma de trabalho, resolvi comparecer a

101 Tanto a coleção de livros infantis quanto a montagem da peça de teatro contam com o apoio

da FAPERJ – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro. Os livros são uma co-edição da FAPERJ com a editora Vieira e Lent, na qual Roberto Lent é membro do conselho diretor.

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duas apresentações.102 Seria a chance de acompanhar in loco a reação do público a esta

linguagem, uma faceta que se perde quando analisamos somente os livros publicados;

pensei ainda que seria curioso ver ao vivo quais as soluções cênicas encontradas para

colocar neurônios no palco, como transformar atores em neurônios, como dar corpo às

células do cérebro, enfim, como operar essa adaptação.

Em minha primeira sessão, cheguei cerca de 30 minutos antes da hora marcada

para o início da peça, munido de meu diário de campo, com a intenção de acompanhar o

movimento dos outros espectadores. Estava preocupado com a possibilidade de que a

lotação estivesse esgotada, mas não foi este o caso. Quando me aproximei da bilheteria,

ouvi um diálogo entre um homem que fazia publicidade de uma outra peça infantil a ser

encenada e uma funcionária do centro cultural: ele perguntou, gracejando, “estão

apaixonados os seus neurônios?”, ao que ela rebateu com um “não, estão

abandonados...”. Brincava-se naquele ambiente com a ideia central que animava a peça,

uma encarnação física da paixão em uma célula do cérebro. Era inevitável, ainda que

um pouco constrangedor e invasivo, ouvir e prestar atenção a diálogos que aconteciam

em minha volta entre adultos e crianças, e que poderiam ter algum conteúdo relacionado

ao tema da peça. Alguns destes diálogos aparecerão aqui, sem que as pessoas sejam

identificadas.

Na bilheteria, tive acesso a uma filipeta de divulgação da peça. Fiquei surpreso

em um primeiro momento com o elemento gráfico central: a cor é predominantemente

vermelha e ao centro vê-se um coração antropomorfizado, com rosto humano. A partir

102 Nem é preciso mencionar que essa natureza inquieta e bastante ativa de meu objeto de estudo

colaborou para que o trabalho de campo se esticasse no tempo e levasse com ele o meu cronograma. A decisão de ‘sair do campo’ e não acumular mais qualquer novo dado sempre poderia ser revertida frente à tentadora notícia de uma montagem teatral de divulgação de neurociência, ou mesmo frente a uma reportagem onde o cérebro era citado de forma significativa na semana seguinte. Não é fácil ignorar dados de campo que por vezes se desenrolam na sua frente, visto se passarem no universo pelo qual circulo. Isso me lembrava da estranha sensação que sempre tenho frente aos filmes de júri, quando se pede que os jurados ignorem uma determinada evidência ou situação que acabou der mencionada.

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do coração, que tem uma expressão facial entre o surpreso e o assustado, entram e saem

veias e artérias.

Figura 14 – capa do impresso de divulgação da peça de teatro Em um primeiro reflexo, pensei que isto mostrava a força do coração como

metáfora ainda presente mesmo em uma cultura neurocêntrica. De fato, continuo

concordando com essa primeira impressão. Mas logo depois atentei para um pequeno

personagem de pé sobre uma das veias/artérias, do qual sai um balão, como nas

histórias em quadrinhos, onde se lê “Preparar para disparar as batidas do coração”. Este

personagem é o desenho de um neurônio estilizado, com olhos, boca, corpo e membros

(quatro pernas, quatro braços), que representam o corpo da célula, com seus dendritos e

axônio, semelhante às ilustrações dos livros que deram origem à peça. O coração está

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em destaque, mas é um neurônio, então, quem controla as suas reações. Temos aqui a

representação de dois órgãos centrais no imaginário ocidental moderno sobre o corpo

humano: em um nível, a figura do coração tem maior destaque na peça de divulgação;

no outro, temos uma hierarquia que mostra quem dita as regras a um coração que parece

surpreso com o que está se passando, manipulado por um neurônio que tem a autoridade

de “disparar” as suas batidas.103

No interior deste folheto de divulgação da montagem, um texto anuncia do que

se trata:

O espetáculo propõe uma divertida viagem ao interior do cérebro de Pedro, um menino de 9 anos. É lá que vamos conhecer os neurônios responsáveis por tudo o que o menino pensa e faz e como isso acontece. Assim, acompanhamos Pedro jogando bola, fazendo o dever de casa, aprendendo a andar de bicicleta e até vivendo a emoção de seu primeiro amor, sempre pelo ponto de vista de seus neurônios. Um ponto de vista, sem dúvida alguma, bastante peculiar.

Quando a organização libera a audiência para entrar no teatro, tento me

posicionar em meio à pequena algazarra das crianças. Atrás de mim, uma mulher,

acompanhada de duas crianças, possivelmente suas filhas, diz para uma delas que “eles

não vão aproveitar nada, não sabem nem o que é um neurônio”, referindo-se às crianças

mais jovens no grupo que entra. Uma de suas filhas, que aparenta cerca de nove anos,

com um ar sério, de óculos e com um tom vitorioso de quem se encaixa na faixa etária

103 No entanto, é curioso que, para simbolizar a ‘paixão’ do neurônio, apele-se à ilustração de

um coração, já que o paradigma científico atual defende que não apenas a razão, mas também os sentimentos e as emoções são consequência da atividade cerebral. Encontrei o coração como metáfora de emoções ou como designando o ‘centro’ de uma questão em outros discursos relacionados ao cérebro. A introdução do livro de Jill Bolte Taylor sobre o seu acidente vascular cerebral e o processo de recuperação chama-se “Coração a coração; cérebro a cérebro”, mostrando que essa diarquia ainda tem fôlego na cultura ocidental moderna. Outro exemplo está em uma notícia veiculada no Jornal da Ciência, de circulação virtual e livre para qualquer interessado, por via de e-mail, a respeito do neurocientista Miguel Nicolelis: “Nicolelis em seu trabalho de pesquisa pretende, além de explicar comportamentos motores e princípios de funcionamento dos circuitos neurais, que em breve essa interface cérebro-máquina possa ser "a base, o coração de algo chamado neuroprótese cortical que sirva para a restauração das funções motoras que sofreram algum tipo de lesão". JC e-mail 3832, 21 de agosto de 2009, (por Alex Sander Alcântara, da Agência Fapesp, 21/8)

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pretendida pela peça, lembra que existe uma indicação (eu não sabia ao certo onde) de

que o espetáculo seria adequado somente para crianças acima de seis anos.

A ideia de “aproveitar” ou não a peça deixa transparecer que a razão de estar ali

seria, ao menos em parte, educativa. Havia crianças na sala com idade abaixo da

indicada, inclusive algumas ainda de colo. Mas, ao que me parece, os motivos

educativos podem não ser os únicos que movem os pais, misturando-se ao lazer. Essa

questão ganha importância se pensarmos numa oposição entre lazer/ficção e

educação/realidade. Algumas crianças que pareciam felizes com a peça perguntavam

aos pais se aquilo que se passava no palco era real, ou seja, se a representação do

funcionamento dos neurônios que se vê no palco teria de fato um paralelo biológico que

se desenrolaria em suas próprias ‘cabeças’, recebendo, nos casos ao alcance de meus

ouvidos, sempre uma resposta positiva.

A sala é ocupada por cerca de 50 pessoas, entre elas 21 crianças. No áudio, antes

da presença de qualquer ator no palco, ouve-se o que parecem ser ruídos de impulsos

elétricos, o que confere, combinado com a meia-luz, um clima high-tech ao ambiente.

No decorrer da peça, os sons desses ‘impulsos elétricos’ são emitidos pelos próprios

atores, quando eles entram em contato físico para transmitir alguma mensagem,

ligando-se uns aos outros encostando cabeça com cabeça.

No palco, no início da peça, vemos somente uma mesa com um microscópio, e

uma tela ao fundo. O diálogo entre os neurônios, já referido no início deste capítulo,

ocorre enquanto um cientista observa ao microscópio – óculos, jaleco branco e a atitude

de olhar ao microscópio transmitem a identidade de ‘cientista’ ao ator. Uma criança,

que logo saberemos se tratar do sobrinho do cientista, entra em cena e surpreende o tio.

Ele apresenta ao sobrinho o material que analisava no microscópio, os neurônios que

conversavam; enquanto o garoto observa, o tio ensina que “eles moram dentro do seu

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cérebro e comandam tudo o que você faz, pensa e sente”. O garoto, parecendo bastante

excitado e ativo, anuncia ao tio-cientista que precisa sair, pois ainda precisaria fazer

muitas coisas naquele mesmo dia. O desdobrar-se da peça vai consistir justamente na

apresentação destes afazeres do garoto, mas sempre do ponto de vista de seus neurônios.

O garoto se retira do palco, e o tio-cientista ‘pensa’ em voz alta “ah, se eu pudesse ver o

que se passa nessa cabecinha...”.

Assim como no nome da peça, as expressões “ver o que se passa na cabeça” ou

“o que é que você tem na cabeça?”, de uso corrente em um registro leigo, são utilizadas

aqui em outra direção, apontando para a possibilidade de que esta ‘visualização’ seja

possível em sentido literal, por acesso direto às imagens do cérebro. É um bom exemplo

de como a linguagem cotidiana informa o próprio vocabulário de divulgação

neurocientífica, que volta ao público leigo, em um circuito contínuo. Ora, vamos assistir

no resto do espetáculo a insinuação de que o desejo do cientista já é uma possibilidade.

É como se o “ver o que se passa nessa cabecinha” fosse equivalente ao que toda a

platéia terá acesso a seguir.

A partir daí, passamos a uma nova camada da apresentação, justamente uma

viagem à “cabecinha” de Pedro. Uma tela desce do alto frente ao palco, onde passa a ser

projetada uma animação, enquanto uma voz em off anuncia uma “viagem ao cérebro”:

“atenção passageiros, sejam bem-vindos ao cérebro do Pedro; a temperatura é amena,

com tempo bom, sujeito a muitas sensações”. Essa “viagem” marca uma passagem para

o ambiente interno do cérebro do garoto. Recolhida a tela, entram em cena os neurônios,

os principais protagonistas da peça. São eles que atuam a partir deste momento, e os

personagens Pedro e seu tio-cientista apenas voltam ao palco no final.

Do meu ponto de vista, as camadas de observação se multiplicavam neste

momento etnográfico. Eu já havia lido a coleção de livros na qual a peça estava

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baseada, logo, meu olhar tinha o filtro da obra original; eu me perguntava como o

material de cinco volumes da coleção seria transposto para uma peça com pouco menos

de uma hora. Antes do palco, meu olhar se ocupava da platéia, atento a reações que

pudessem de alguma forma ser registradas. Só então chegava ao palco, no qual a peça

era encenada em três camadas: (i) o “mundo real”, (ii) o mundo interno ao cérebro e (iii)

de volta ao mundo real, já que os neurônios faziam referência às ações de Pedro,

algumas vezes projetadas numa tela atrás do palco, onde se passava aquilo que os

neurônios ‘viam’.

O tema central da peça é a paixão de Pedro por sua nova vizinha, como no

primeiro volume da coleção de Roberto Lent. Em torno desse eixo, as temáticas dos

outros volumes se articulam: Pedro vai aprender a andar de bicicleta, fazer o dever de

casa e jogar futebol, ganchos que servem para destacar neurônios de funções

específicas, responsáveis pelo equilíbrio e movimentos, pela audição, pela visão, pela

memória e pelas emoções.

Na peça, o neurônio responsável pelo controle das emoções é um personagem

masculino, mas representado por uma atriz – aliás, a mesma que faz o papel do garoto

Pedro. Os neurônios todos têm nomes masculinos: Zé Neurim (responsável pela

memória), Acumbente dos Prazeres (emoções e prazeres), Giraldo Cerebelim

(movimentos e equilíbrio), Ocipitaldo Luzes (visão) e Olívio Gravador (audição). A

questão de gênero tem importância aqui porque o neurônio responsável pelas emoções,

que será o “neurônio apaixonado”, claramente é representado com um ar entre o

efeminado e o sonhador, em relação aos outros neurônios. Tanto na peça quanto nos

livros, os neurônios têm sexo, mais ou menos explícito. No quarto volume, intitulado

“Atenção, neurônios na bicicleta!”, no qual Ptix aprende a “andar de bicicleta”, os

neurônios ligados aos músculos e à questão motora são particularmente masculinizados.

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Musculosos e portando bigodes ou uma máscara, estes neurônios vão trabalhar em

dupla com Zé Neurim para evitar maiores acidentes com a bicicleta nova, que Ptix havia

recebido de seu pai como presente de aniversário. Eles são apresentados da seguinte

forma no livro:

Talvez você não saiba: o Giraldo Cerebelim é um dos neurônios que controlam os músculos do Ptix, ele e os seus colegas do setor de Pulos e Corridas. Se o Ptix precisa andar, são eles que verificam se os músculos da perna fazem os movimentos certos. Se o Ptix precisa escrever, eles controlam os músculos do braço e da mão para rabiscar alguma coisa no papel. Daí que quando o Ptix fosse andar de bicicleta, era só o Giraldo imitar a cena do Seu Paulão [pai do garoto] que o Zé Neurim tinha mandado para ele.

É claro que a aventura não será tão simples. Após um primeiro tombo, os

neurônios que controlam os músculos e a memória acertam pequenos detalhes, como

apoiar ambos os pés ao mesmo tempo nos pedais.104

O Acumbente, responsável pelo controle das emoções, é acusado pelos

companheiros em várias situações durante a peça de teatro de ser responsável pelo

descontrole do sistema, como, por exemplo, quando Pedro tem uma performance ruim

em um jogo de futebol. Devido ao seu estilo desligado e desatento, os outros neurônios

estão sempre pedindo que ele se controle, e, em uma ocasião, que ele “seja macho”.

Neste sentido, é possível dizer que neurônio tem sexo: razão, força e equilíbrio

aparecem do lado masculino, enquanto a emoção e uma má influência sobre o sistema

como um todo tem uma imagem feminilizada.

104 Ao final do livro, repetem-se as duas páginas que apresentam um cientista e uma técnica

relacionada ao tema do volume. Vê-se a foto de uma mulher a cuja cabeça estão conectados uma série de fios. Um aparelho paira sobre a cabeça do sujeito estudado: “Está vendo esse objeto branco na mão da Tita? [a cientista] É um estimulador magnético do cérebro! Com ele, Tita estimula um local determinado do cérebro de uma pessoa, e aos mesmo tempo capta qualquer contração que os músculos realizam através dos fios colocados no corpo. O computador guarda tudo, e ela estuda depois.” Nestas páginas, onde se apresenta sempre uma técnica de estudo do cérebro e/ou um especialista no assunto, equiparam-se as emoções, movimento e a relação entre o cérebro e os sentidos.

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Estar “desligado”, por exemplo, é uma questão recorrente na fala dos neurônios,

ressaltado como algo negativo, porque “um neurônio nunca pode estar desligado”, como

afirma em dado momento o neurônio da visão. Quando Pedro erra um chute no futebol,

Zé Neurim percebe uma interferência na memória do jogador, que está muito

“desligado”; afinal, diz ele, “está na memória do Pedro chutar”. O Acumbente passeia

pelo palco com um ar apaixonado, sem se importar com o jogo. Ele é acusado por

Giraldo Cerebelim, um neurônio motor, responsável pelos músculos e movimentos, de

“estar cheio de emoção, distraindo o Pedro”. O Acumbente é chamado a ficar mais

atento e os neurônios, então, “se ligam” tocando uns nos outros, como uma forma de

representar as pontes de comunicação entre as células do cérebro.

De uma forma jocosa, a peça oferece dados para pensarmos também nas relações

entre ciência e religião enquanto modelos explicativos do mundo. Os neurônios, em

situações de desafios ou alguma dificuldade, fazem uso de expressões que substituem

termos religiosos por partes do cérebro, ou o cérebro ele mesmo. Isso acontece quando

Pedro ganha uma bicicleta como presente de aniversário e resolve aprender a andar

sozinho, situação a qual me referi acima. Esse processo de aprendizado é vivido pelo

grupo de neurônios como uma grande aventura. No livro como na peça, após vasculhar

as “gavetinhas da memória” do Ptix, Zé Neurim descobre uma cena na qual o pai do

garoto aparece pedalando; ele, então, telefona (no livro) / conversa (na peça) com

Giraldo Cerebelim e envia essas cenas de referência. Na primeira tentativa, os

neurônios, que haviam montado no palco, com os seus próprios corpos, um formato de

bicicleta, caem no chão, assim como Pedro. O garoto não desiste e tenta mais uma vez,

o que gera uma interjeição de Giraldo: “Oh meu São Hipotálamo, valei-me!”. Nesta

nova tentativa, Pedro consegue pedalar, e os neurônios reagem com alegria: “Ele

conseguiu, nós conseguimos... seja o que o São Cerebelo quiser!”. Em mais de uma

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situação, os atores exclamavam “ai, meu Deus do cérebro!”.

Com estas frases que substituem santos ou “céu” por partes do cérebro, algo de

transcendente por algo de imanente, os neurônios arrancam risos da platéia – na

verdade, também do antropólogo. Em algum sentido, os espectadores presentes na sala

compartilham de uma mesma visão de mundo, o que permite sorrir frente a estas piadas.

O fato de trabalharmos com concepções letradas de pessoa requer algumas observações. A primeira diz respeito ao fato de a ciência, a partir do esfacelamento de uma visão unitária e transcendente do mundo fornecida pela religião, apresentar-se como Weltanschauung, buscando fornecer interpretações que preencham os espaços deixados pela retração do poder explicativo da religião. (Russo e Ponciano, 2002, pg.348)

Trata-se de uma visão de mundo que confere aos discursos científicos um lugar

central; e, entre esses discursos, em determinados momentos históricos, destacam-se

determinadas especialidades, como é o caso das neurociências nos dias atuais. O que

talvez nos permita, estressando a proposta de Russo e Ponciano, falar em uma neuro-

Weltanschauung: a ciência apresenta-se como visão de mundo, com destaque para

determinados ramos científicos.

A adaptação teatral oferece um outro momento que nos permite falar da ciência

como um valor positivado neste corpo de representações. No volume cinco da coleção

de livros, intitulado “O esquecimento do neurônio lembrador”, o fio central da trama é o

dever escolar que Ptix precisa fazer, uma redação cujo tema é “As cidades”. E era dever

do neurônio Zé Neurim lembrar o garoto dessa atribuição:

Agora, veja você o problema em que o Zé Neurim se meteu: ele tinha que lembrar o Ptix de fazer o trabalho de casa. No entanto, já são quase 11 horas da manhã, o Ptix está vendo televisão tranquilamente, e nada do Zé Neurim lembrá-lo do trabalho da escola! (...) A história do desenho animado era tão engraçada que o Zé Neurim esqueceu do trabalho de casa do Ptix! Descrevia uma cidade onde as ruas não eram de cimento e asfalto, mas feitas de sabão. Ninguém conseguia ficar em pé, todo mundo escorregava e caía.

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Os problemas começam quando a mãe de Pedro telefona para saber se o dever

escolar estava pronto. Olívio Gravador, o neurônio responsável pela audição, “sentindo

que a mãe do Ptix falou com voz de brava”, liga para Zé Neurim para lembrá-lo da

obrigação. Os neurônios então começam a trabalhar e sugerem que o garoto escreva

sobre essa cidade imaginária retratada no desenho animado; ainda no telefonema com a

mãe, Pedro a acalma, dizendo que já saberia sobre o que escrever. O “esquecimento do

neurônio lembrador” será motivo mais à frente no livro para que se apresente às

crianças a relação entre os neurônios e a memória. Duas imagens são apresentadas lado

a lado para comparação, uma de “neurônios lembradores” e outra de “neurônios

esquecidos”, resultado do trabalho de dois pesquisadores da Universidade Federal do

Rio de Janeiro que estudam o “cérebro de velhinhos”, e teriam explicado ao autor as

diferenças.

Compare a foto da direita [com a legenda “neurônios esquecidos”] com a foto da esquerda [com a legenda “neurônios lembradores”]. Cada uma daquelas bolinhas verdes é um neurônio visto ao microscópio. Você percebe que os neurônios da direita têm muito menos cabelos que os neurônios da esquerda? Pois é: os da direita foram expostos a uma substância que existe no cérebro das pessoas idosas e que envelhece os neurônios! Por isso eles vão ficando “carecas” e esquecidos...

Na peça de teatro, a mesma situação do dever de casa ainda não cumprido,

remete, além de brincadeiras com a memória, a um elogio da posição de cientista. Na

peça, o tema da redação não é mais “As cidades”, mas sim a futura profissão de Pedro,

no estilo “o que você quer ser quando crescer?”. Pedro escreve então sobre o seu desejo

de seguir a profissão do tio. No texto da redação, que ouvimos em off, o garoto enaltece

o trabalho do tio, afirmando que “ele sabe ver coisas que ninguém imagina. Ele parece

um artista. Tá sempre inventando alguma. Ele sempre diz que é importante acreditar nos

sonhos e fantasias porque daí saem as grandes sacações”. Mais a frente - lembremos que

a peça retrata um dia na vida de Pedro, justamente o dia do seu aniversário -, o garoto

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vai receber de presente do tio um microscópio. Agradecido, o menino diz “irado, agora

vou poder ver tudo o que você vê”.

Duas questões aqui me parecem particularmente dignas de nota. Uma, talvez

mais óbvia e já mencionada, é o valor diferencial atribuído à ciência na cultura ocidental

moderna. A outra é a relação que se constrói entre o cientista e o artista. Exploremos

então essa conexão feita na peça.

O acesso do cientista a “ver coisas que ninguém imagina” o coloca em uma

situação de possível mediação entre um conhecimento somente a ele acessível e o

chamado público leigo. Mas estamos tratando aqui de um órgão particular do corpo

humano, e de um modo de conhecimento particular que se ocupa deste órgão. Se

concordamos que o cérebro é um órgão cercado de uma aura bastante peculiar se

comparado a outros do corpo humano nos dias de hoje, é razoável imaginar que algo

dessa aura se reflete sobre os neurocientistas.

À luz destas observações, podemos lançar uma reflexão sobre a comparação

entre um cientista e um artista feita na peça. Ambos ocupam um lugar de exceção, ainda

que por diferentes motivos. Em comum, ambos podem ser vistos – e o imaginário

popular está recheado destas representações – como loucos ou gênios ou ainda como

visionários. Se lembrarmos da análise feita por Elias (1995) do lugar social ocupado por

Mozart, temos aqui um possível paralelo. Também Amadeus é visto pelo autor como

um ponto de mediação entre dois momentos diferentes: entre a “arte de artesão” e a

“arte de artista”, entre o artista submetido aos ditames da sociedade de corte e aquele

que se tornaria o artista autônomo, festejado justamente em sua absoluta singularidade.

Elias situa Mozart no entroncamento entre dois mundos sociais, e talvez por isso

inadequado ao tempo em que vivia, razão de sofrimento do compositor no fim de sua

vida. Na peça de popularização de neurociências, a imagem do cientista ganha um sinal

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positivo justamente por este seu acesso a ver o que ninguém imagina, a inventar coisas

novas. Aqui, estar, digamos, um passo além de seu tempo vendo o que ninguém vê e

antevendo “o que ninguém imagina” confere um estatuto ao científico próximo da

produção artística singular, o que justifica a comparação feita por Pedro.

Esta situação de popularização de neurociências para crianças nos leva a um

limite curioso entre os fatos científicos e a ficção. Nas duas vezes em que assisti a peça

percebi que a ciência representada naquele formato suscitava nas crianças uma certa

dúvida a respeito da relação entre o que elas viam no palco e a expressão de uma

realidade biológica a respeito de como o cérebro funciona. É o caso de dois diálogos

que aconteceram próximos a mim por ocasião da primeira sessão. Durante a peça,

imediatamente em minha frente, uma garota parece em dúvida a respeito da relação

entre os dois mundos que se apresentam no palco, e questiona “Mamãe, eles controlam

o Pedro?”, recebendo de sua mãe uma resposta positiva, “sim, eles controlam”.

Já na saída da primeira sessão, ainda dentro das dependências do teatro, ouço o

seguinte diálogo:

Pai: Você gostou filha? Filha: Adorei Pai: Mas o que você entendeu? Neurônio vive dentro da sua cabeça, faz você sentir, pensar. Filha: Mas até na realidade, pai?

Os questionamentos das crianças mostram que para elas a relação entre o que se

via no palco e o que ocorre no corpo não seria tão direta – e isso poderia indicar, talvez,

algo mais do que um mero estágio em que a criança ainda está por dominar o conceito

de separação relativa ao relato ficcional e não ficcional. Os adultos, que em alguns

momentos, pareciam estar se divertindo tanto quanto as crianças, confirmam as teses

divulgadas na peça e o seu paralelo na ‘vida real’ e no corpo de cada um de nós. Ainda

na saída da primeira sessão, uma mulher em minha frente dizia “Filho, eu achei muito

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maneiro, porque explica tudo, né?”. Em outro diálogo, testemunhado na livraria do

centro cultural na saída da peça, enquanto duas mulheres adultas folheavam a coleção

de livros de Roberto Lent, em destaque na vitrine, uma (que havia assistido a peça) dizia

para a outra (que não assistiu) que “então os neurônios ficam brincando dentro do

cérebro, que na verdade é o que acontece com todo mundo”.

Meu testemunho pessoal, aliás, é o de que a peça diverte. Apesar da tensão por

estar ali a trabalho, tomando notas, achei tudo aquilo muito engraçado – afinal, a peça

não é um ‘drama’ do cérebro, mas sim uma comédia com piadas em torno do órgão e

suas células –, ainda que munido de uma perspectiva crítica do enfoque algo

reducionista que era encenado, em especial no que diz respeito à explicação que se dá

para a primeira paixão de Ptix, tema central na montagem. De qualquer forma,

partilhando eu do espírito do tempo que me cerca, o cérebro também me fascina.

Em duas sessões de teatro, uma audiência se reunia em um momento de

biosociabilidade, para pegar de empréstimo uma expressão de Paul Rabinow (1999).

Em outro contexto, falando sobre a possibilidade de testes mais refinados que possam

monitorar predisposições genéticas em indivíduos, famílias e mesmo populações mais

amplas, ele comenta:

Há um grande número de questões envolvidas, mas o que quero realçar aqui é que seguramente haverá a formação de novas identidades e práticas individuais e grupais, surgidas destas novas verdades. Haverá grupos portadores de neurofibromatose que irão se encontrar para partilhar suas experiências, fazer lobby em torno de questões ligadas as suas doenças, educar seus filhos, refazer seus ambientes familiares, etc. É isto o que entendo por biosociabilidade. (Rabinow, 1999, p.147)

O conceito me parece particularmente interessante para compreender a dinâmica

de certos espaços que frequentei com intenção etnográfica, sendo a peça apenas um

deles. É claro que se trata de forçar um pouco o conceito de Rabinow – afinal os

espectadores da peça não marcaram um encontro entre si. Apesar disso, o que nos

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reunia ali era um critério de ordem biológica, o interesse em um discurso a respeito do

funcionamento do cérebro e suas células. O fato da reunião se dar em um momento de

lazer, acredito, fala do quanto o tema está entranhado na cultura contemporânea. Se

Rabinow tem razão, e a tendência contemporânea é que tenhamos espaços de

sociabilidade cada vez mais específicos relacionados às novas verdades do corpo – ele

se refere aos grupos que tendem a se formar em torno de doenças, mas porque não

considerar os grupos que se reúnem para ouvir as boas novas da neurociência? –, talvez

possamos designar uma situação como esta que etnografei como de neuro-

sociabilidade.

Tanto os livros quanto a peça possuem um tom educativo, que visa mostrar, de

modo que as crianças entendam, uma certa perspectiva sobre como o cérebro funciona.

O foco central é a vida cotidiana, que, em cada momento, em cada sensação, seria uma

expressão da atividade cerebral. “Além de se divertir – afirma-se na contra-capa dos

livros –, você poderá descobrir como é que o cérebro funciona, como é que os neurônios

conversam, e como é que isso influencia na nossa vida de todo dia”.

Mas este processo educacional vai além de uma tradução de saberes sobre o

cérebro para o público infantil. Trata-se de um discurso sobre como a pessoa funciona,

comandada pelo seu cérebro. Os neurônios são tão humanizados quanto a pessoa como

um todo é ‘cerebralizada’, e passa a corresponder a uma espécie de reflexo neural, cujas

decisões já foram tomadas em outro nível. Esta concepção de ‘pessoa’ na divulgação de

neurociência gera dúvidas entre as crianças, que se mostram relutantes em aceitar a

ideia de que aqueles personagens “controlam o Pedro”. Um processo educacional, sim,

mas não simplesmente uma aula de biologia, que mostra certos fatos sobre o

funcionamento do corpo/cérebro humanos, de forma sedutora para crianças; o que se

passa a frente é uma perspectiva sobre a ‘pessoa’, que à equivale ao seu cérebro, muito

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em voga em nosso tempo. As crianças não estão aprendendo meramente sobre o

funcionamento do cérebro; elas estão sendo socializadas dentro da perspectiva de que

elas são um cérebro.105

Mas ainda não fechamos as cortinas. Ao final da peça, com os neurônios-atores

fora do palco, as vozes dos neurônios em off, como no início, voltam mais uma vez. Um

deles comenta surpreso que eles estariam sendo aplaudidos. Um segundo, mais

rabugento, retruca perguntando “agora você acha que está no teatro? Depois do

neurônio apaixonado, agora tem neurônio ator...”. Para a minha surpresa, o primeiro

reage a isso fazendo uso de um vocabulário que me parece, a princípio, de outra ordem:

“você é um neurônio neurótico”. Ora, um sinal discreto se manifesta aqui de uma outra

linguagem, que um dia também passou por um amplo processo de popularização, a da

psicanálise. De forma em alguns momentos tensa, mas aqui jocosa, uma perspectiva

cerebralista – seja por via direta do discurso da neurociência, seja em contextos

relacionados à divulgação de medicamentos psiquiátricos, como vimos no capítulo

anterior – convive com outros discursos que também deixaram marcas duradouras.

De qualquer forma, mais uma vez os neurônios tinham toda a razão. Eles foram

aplaudidos de pé nas duas encenações nas quais estive presente. Pelo antropólogo,

inclusive.

105 Esta seria a novidade educativa que se leva às crianças: aprende-se neste contexto que se é

um cérebro, ou ao menos que este órgão está implicado em todas as nossas ações cotidianas. A professora Sônia Maluf, em um contexto no qual eu apresentava resultados parciais desta pesquisa, lembrou-me que a situação lembra uma conhecida passagem relatada por Maurice Leenhardt em Do Kamo, o trecho no qual um nativo argumenta ser novidade para eles o corpo, e não o espírito, conforme pensava o antropólogo. Fico grato pela idéia, que ainda cabe desenvolver.

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3.3 O “cérebro nosso de cada dia”: divulgação científica da “neurociência do cotidiano”

A vida cotidiana é o reflexo da atividade do cérebro a cada instante, a cada dia. Suzana Herculano-Houzel, 2002:15

No Brasil, a divulgação dos saberes da neurociência está hoje identificada com a

imagem da neurocientista Suzana Herculano-Houzel. No que diz respeito à tradução dos

saberes da neurociência para termos mais palatáveis ao público leigo, a professora da

UFRJ106 alcançou grande êxito, o que pode ser aferido pelo grau de exposição tanto da

sua imagem pessoal quanto do conteúdo dos seus trabalhos de divulgação de

neurociência. Se o cérebro vem se tornando cada vez mais um órgão midiático, o

paralelo a isso entre os neurocientistas seria a professora Suzana.

Ela é o cérebro107 por trás de um sítio na internet, criado no ano 2000; seis livros

lançados entre 2002 e 2009 por diferentes editoras (Vieira e Lent, Objetiva, Jorge Zahar

e Sextante); uma coluna quinzenal no jornal Folha de São Paulo (caderno Folha

106 Atualmente, Suzana Herculano é professora da UFRJ, parte do quadro do Instituto de

Ciências Biomédicas, Departamento de Anatomia, no qual dirige o laboratório de neuro-anatomia comparada. Ela graduou-se em Biologia (UFRJ) em 1992, defendeu o mestrado em 1995 em Neurociência (Case Western Reserve University) e o doutorado também em Neurociência em 1999 (Université Paris VI). É importante salientar que o relato feito neste capítulo diz respeito somente (não é pouco, na verdade) à sua atividade como divulgadora científica do que ela chama de “neurociência da vida cotidiana”.

107 Usar esta expressão neste ponto corre o risco de soar como ironia; na verdade, ela é mais do que adequada, por mais de um motivo. Em primeiro lugar (estou aqui levando em conta a lógica nativa), trata-se de um pressuposto deste material um grau de equivalência bastante evidente entre o cérebro e o indivíduo que porta o órgão. No blog da neurocientista (www.suzanaherculanohouzel.com), uma das primeiras imagens é justamente a do seu próprio cérebro. Em outro registro, há que se levar em conta os diversos usos metafóricos e metonímicos para a palavra cérebro que estão tanto previstos em nossa gramática formal quanto fazem parte da linguagem cotidiana. Algumas destas possibilidades, como veremos, vai de encontro às revisões que as novas ciências do cérebro têm feito. O Houaiss prevê derivações por metonímia, como no caso de “João é todo cérebro”: “indivíduo que privilegia a razão sobre a emoção”; ou ainda como em “o cérebro da equipe”, o “indivíduo que lidera intelectualmente; cabeça”. Ora, essa divisão entre uma razão situada no cérebro, e uma emoção situada alhures soaria hoje no mínimo equivocada, mesmo para um leigo com acesso ao material de popularização que exploro aqui, no qual as emoções, da mesma forma que a razão, seriam um produto cerebral.

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Equilíbrio, desde 2006); um blog; e um quadro no programa dominical Fantástico, da

Rede Globo de Televisão, chamado Neurológica, que estreou no dia 9 de novembro de

2008. Todos estes trabalhos têm como objetivo levar os saberes da neurociência a um

público amplo, construindo sempre uma conexão entre saberes sobre o cérebro e a vida

cotidiana. A neurocientista tem participado em outros programas de TV e menções ao

seu nome não são incomuns na mídia impressa, em jornais e revistas.108 Ela também

vem sendo contratada para proferir palestras por empresas como Petrobrás, Bradesco,

AstraZeneca e O Boticário sobre temas como criatividade, motivação e estresse.

Em síntese, a proposta da professora Suzana de falar a um público leigo sobre

“as aplicações da neurociência à vida cotidiana” – como ela afirma em seu sítio na

internet – tem grande sucesso e espaço crescente de divulgação. Ainda que o fenômeno

designado aqui ‘cerebralismo’ não possa ser explicado tomando como causa o trabalho

de uma única pessoa, é também verdade que produções individuais, e certos sujeitos

eles mesmos, podem cristalizar uma visão de mundo em um determinado momento

histórico, e funcionar como um ponto central de difusão.

Estas afirmações podem soar um tanto exageradas, já que não fiz qualquer

estudo sistemático de recepção entre o público leigo. Mas, por outro lado, propus-me a

um acompanhamento tanto quanto possível exaustivo da produção da neurocientista no

que toca os seus esforços de divulgação de neurociência, e aí está minha ancoragem

etnográfica.

Se levarmos em conta os espaços por ela ocupados, cada vez mais prestigiosos

em termos de acesso ao grande público, é possível ter uma medida do sucesso do seu

108 Entre os programas de TV estão o Mais Você, que vai ao ar na Rede Globo de Televisão nas

manhãs de segunda a sexta; Happy Hour, no canal de TV a cabo GNT; programa Amaury Jr.; os programas de entrevistas Roda Viva e Sem Censura. Na mídia impressa, já foi entrevistada pela revista Época e pelo jornal Estado de São Paulo. Uma breve (auto)biografia da neurocientista pode ser encontrada em seu blog na internet, no endereço www.suzanaherculanohouzel.com

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empreendimento. Olhando o fenômeno por outro ponto de vista, podemos imaginar

também que existe um público ávido pelo consumo de saberes acessíveis sobre o

funcionamento do cérebro, de neurônios e neurotransmissores, e sobre como isso

influencia e se expressa em nossas ações mais corriqueiras.

A revista Época listou Suzana Herculano-Houzel entre as 100 pessoas “mais

influentes de 2008”, em uma edição especial com este destaque, chamada Época 100.

Segundo o diretor de redação, a lista seria composta por

aquelas [pessoas] que nos inspiram e nos fazem ser quem somos. Consideramos que o critério mais importante para alguém estar na lista não era ter fama, poder ou dinheiro. Era, mais do que isso, ter desenvolvido, durante o ano de 2008, um trabalho, atividade ou pensamento que tivesse servido de modelo e influído de modo claro no comportamento ou na mentalidade nacional. Era ter influência, tanto pelas ideias quanto pelos atos”. (Helio Gurovitz, diretor de redação, na apresentação à edição, pg.10, 8/12/2008, ed.551) (grifo meu)

O grifo logo acima quer destacar o quanto a frase do diretor de redação parece

adequada para o caso de Suzana Herculano-Houzel, em um contexto marcado, segundo

autores já citados, pela força de uma concepção de pessoa colada ao cérebro, a ideia de

um “sujeito cerebral” (Eherenberg, 2004; Vidal, 2005). Ainda segundo o diretor de

redação da citada revista, tão difícil e criteriosa quanto a escolha dos 100 mais

influentes teria sido a escolha de quem escreveria sobre eles: “na verdade – ele afirma –,

os próprios autores dos textos poderiam formar outra lista de gente influente no país”. O

escolhido para escrever sobre a neurocientista Suzana Herculano-Houzel é justamente o

neurocientista Roberto Lent, cujo trabalho de popularização para crianças analisei na

sessão anterior. Ambos militam no campo da divulgação/popularização de saberes das

neurociências. Em seu primeiro livro de divulgação, Suzana agradece o professor Lent

como seu “padrinho na divulgação”. Há uma relação clara de transferência de

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prestígio109 entre os dois, ao menos no campo da divulgação neurocientífica, ao qual me

limito. Em seu texto na revista Época, apresentando a colega, ao mencionar o trabalho

de divulgação científica, Lent afirma que [ela]

escreve de forma agradável e clara. Ela inovou ao explicar conceitos de neurociência por meio de exemplos do cotidiano das pessoas. De uma forma agradável e rigorosa, ela explica o que é o bocejo, o riso etc. Não é fácil falar com o grande público sem romper com os princípios da seriedade. (p.86)

No ano seguinte, o trabalho de Suzana Herculano continuou recebendo prêmios

conferidos por veículos de comunicação de massa. O prêmio “Veja Rio Cariocas do

Ano 2009”, conferido em 11 de novembro deste mesmo ano, também homenageou a

professora Suzana Herculano no quesito “cientista”. Estas deferências, por dois anos

seguidos, falam do espaço conquistado pela neurocientista em fóruns públicos (não

especializados ou leigos), prêmios por certo relacionados aos seus esforços de

divulgação e à exposição pública que deu cada vez mais evidência a tais esforços. O

trabalho de divulgação conduzido pela pesquisadora recebe chancela e premiação

pública, para além dos fóruns mais estritos entre pares cientistas, o que a autoriza como

uma espécie de porta voz no Brasil do seu gênero de divulgação.

Trata-se de uma produção heterogênea, a respeito da qual, por um lado, é

necessário atentar às nuances, já que as diversas superfícies de comunicação e suas

audiências específicas pedem adaptações de forma e conteúdo; por outro lado, é

109 Estou pensando no uso que Velho (1987) faz do conceito de prestígio para analisar contextos

de mobilidade social e individualização no Rio de Janeiro, como algo que pode ser “conferido ao ator pelo grupo ou grupos sociais a que pertence. (...) a partir do espaço social que lhe é conferido ou obtido, o indivíduo agente empírico desempenha papéis que permitirão a elaboração de uma identidade mais ou menos sólida, respeitada, gratificante” (Velho, 1987, p.45-6). É claro que o autor está trabalhando com um contexto bastante diverso do meu, mas a referência me parece pertinente. A partir dessa transferência de prestígio de um “padrinho” – manifesta no texto da revista Época citado, e na apresentação de Lent ao seu primeiro livro –, Suzana vai galgar vários degraus até se tornar ela mesma o rosto e a maior porta-voz da divulgação neurocientífica no Brasil.

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possível encontrar regularidades, especialmente no que diz respeito aos principais temas

abordados, que tendem a se repetir nos livros e pelas outras mídias. O que se propõe

aqui é uma abordagem etnográfica deste material, descritiva e analítica, como não

poderia deixar de ser. Além de acumular livros, colunas e material televisivo, navegar

pelo sítio na internet e pelo blog, frequentei em 2007 um curso oferecido pela

neurocientista, com o título “neurociência do cotidiano”. Esta sessão é um relato dessas

experiências etnográficas, nestes diferentes espaços de divulgação.

3.3.1 Neurociência de “rede na varanda”

A Dra. Suzana Herculano-Houzel intitula a si mesma a “neurocientista de

plantão”, cuja tarefa consiste em “pensar o lado cerebral de tudo o que acontece ao seu

redor”, tecendo comentário “sobre a vida, o universo e tudo mais”, como ela afirma em

seu blog na internet. A palavra “tudo” não é repetida gratuitamente nas duas frases;

trata-se, de fato, de um modelo explicativo do mundo, com algo a dizer sobre os temas

mais diversos. A essa perspectiva de grande abrangência, que pode abordar os temas

mais diversos do dia-a-dia, ela chama uma “neurociência do cotidiano” ou “descobertas

da neurociência sobre a vida cotidiana”.

Foi após terminar sua formação de pós-graduação, com passagens pelos EUA,

França e Alemanha, que ela voltou para o Brasil, com o objetivo de trabalhar com

divulgação científica, o que ela começou a fazer em 1999. Mas o que teria levado uma

cientista de bancada a trabalhar com divulgação científica? A própria Suzana explica

alguns de seus motivos em uma entrevista concedida em sua sala na UFRJ:

... quando eu dizia para alguém que eu era cientista, neurocientista, a primeira pergunta quase sempre era “Ah, que legal, qual a doença que você está estudando?, qual é o tratamento que você vai desenvolver?”. E não é isso, isso é uma parte mínima das neurociências, tem coisas muito mais interessantes, relacionadas ao cotidiano, que falam com 100% das

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pessoas, e não só com aquela parcela que realmente precisam de tratamento, alguma doença, enfim. Então eu tinha aquela vontade de mostrar para as pessoas que a ciência é bacana, é divertido, é muito mais próximo do seu dia-a-dia do que você pensa. Ela pode ser extremamente interessante, e atraente, e importante, sem precisar falar de doenças e de saúde. Até quando eu comecei a fazer divulgação científica, eu coloquei o site cerebronosso [cerebronosso.bio.br] no ar, uma das coisas que ficou instantaneamente clara era que os textos sobre doenças, saúde e tratamento, eram os menos procurados. O que as pessoas queriam era curiosidades, informação sobre memória, aprendizado, atenção, assuntos do dia-a-dia mesmo.

Esta proposta de falar sobre o cotidiano em termos neuronais é um sucesso.

Quando do lançamento de sua sexta obra de divulgação científica, em 2009, já se

anunciava na orelha do livro um número total de 60.000 exemplares vendidos. Mas este

número não reflete uma média regular de venda por livro lançado; o seu primeiro

lançamento pela editora Sextante – que corresponde ao seu quinto livro de divulgação –

é responsável por metade deste número, dado que merece atenção e comentários mais

abaixo.

O caminho seguido dentro das diferentes mídias é um dado importante. Ainda

que a internet tenha um poder de alcance amplo, o caminho trilhado entre o sítio virtual

(www.cerebronosso.bio.br) e um quadro em horário nobre dentro do programa

Fantástico na Rede Globo demonstra que a proposta da neurocientista foi muito bem

recebida, por um público cada vez mais amplo, e ocupando espaços de cada vez maior

prestígio e alcance dentro da mídia de massa. E, além disso, fala da ampliação de um

público receptivo às teses da neurociência, do crescimento de um público consumidor

de ideias sobre o cérebro, seduzido pela legitimidade atualmente alcançada pela

neurociência enquanto produtora de verdades sobre a natureza do ser humano, e

também por uma retórica que visa tornar acessível e aplicável no dia-a-dia um conjunto

de saberes de fama esotérica.

Se quisermos entender certas nuances importantes a respeito de conteúdo e estilo

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no conjunto de sua obra de divulgação, é preciso atentar para o percurso editorial feito

por Suzana Herculano. Se o primeiro livro lançado, chamado “O cérebro nosso de cada

dia: descobertas da neurociência sobre a vida cotidiana” (originalmente publicado em

2002, em sua 8ª edição em 2007), foi publicado por uma editora menos conhecida no

mercado, a Vieira e Lent Casa Editorial110, os três livros mais recentes – dois deles

publicados em 2007 e um em 2009 – já eram assinados pela Jorge Zahar e pela

Sextante, editoras de maior porte, contando com a possibilidade de uma distribuição

mais sólida e pontos de destaque nas livrarias.

Este percurso editorial será marcado por uma mudança de estilo na retórica de

divulgação – o que pode ser percebido claramente por qualquer leitor atento, ainda que

leigo em Antropologia ou Neurociência –, que inicia apresentando curiosidades

científicas a respeito do cérebro (ou seja, sobre quem nós somos e como funcionamos) e

muda de tom mais a frente, assemelhando-se a uma retórica de auto-ajuda (ou seja,

como os conhecimentos da neurociência podem ajudar a ganhar mais qualidade de vida

e bem-estar). Em outras palavras, parte-se de um discurso sobre quem somos para um

outro a respeito de quem podemos e devemos ser.

Não se trata de um material de fácil apresentação; digo isso não tanto pelo

volume de informação, mas por sua imensa variedade temática, o que por vezes torna

difícil construir uma síntese para descrever os livros como um todo. Um deles pode ser

composto por explicações neurocientíficas para questões tão variadas como “por que

cheiros ruins passam com o tempo?” até “por que a gente se arrepende?”. Um outro tem

seu foco nos “prazeres da vida cotidiana” e sua relação com o cérebro. Virtualmente,

não parece haver assunto relativo ao comportamento, relações, sentidos e sentimentos

humanos para o qual não haja uma explicação da neurociência. Deixei de pensar nesta

110 Para ser mais exato, tratava-se ali de dois momentos iniciais, já que era o primeiro livro de

divulgação de Suzana e também o primeiro livro lançado pela editora.

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característica do material como algo que dificulta a sua apresentação e análise – afinal,

como tratá-lo etnograficamente? – para percebê-la como uma questão a ser explorada. A

promessa de explicar cientificamente, de uma forma concreta, facetas tão diversas da

vida humana fala da pretensão da neurociência em conferir sentido ao mundo; o

funcionamento do cérebro explica porque “sentimos nojo” ou ainda porque “dar

presentes é bom”, naturalizando e universalizando, ao apresentar uma base biológica,

temas complexos como a dádiva ou os limites entre pureza e impureza.

Em termos gerais, o objetivo dos livros é comunicar a um público amplo o que

existe em comum entre descobertas recentes nas pesquisas em neurociências e a vida

cotidiana. O primeiro livro da autora111 é uma coletânea de ensaios originalmente

publicados no sítio virtual já citado, adaptados agora para um novo formato. Na

internet, além dos textos que deram origem à primeira publicação de Suzana, é possível

encontrar um “guia básico de neurociência”, com princípios de organização e

funcionamento do sistema nervoso, disfunções, tratamentos e outros tópicos. Um

neurônio, por exemplo, deixa de ser uma “bolinha cheia de fios”, como se apresentava

na divulgação para crianças, e passam a ser

as unidades funcionais do sistema nervoso: são eles as células excitáveis cuja atividade elétrica é comunicada a outras células, mesmo a um metro de distância (por exemplo, para levar informação da medula espinhal até o seu dedão do pé). Essa comunicação é direcional - ou seja, tem sentido de entrada e saída em cada neurônio - devido à estrutura dos neurônios e à distribuição de receptores e canais iônicos em sua superfície. Assim, neurônios recebem sinais pelos dendritos; integram esses sinais nos dendritos e no corpo celular; e, dependendo do resultado dessa integração, disparam potenciais de ação em seu axônio, que transmite a atividade aos neurônios seguintes.

111 Por si só, o título do livro já merece duas observações. O título, “o cérebro nosso de cada dia:

descobertas da neurociência sobre a vida cotidiana” estabelece uma linha de continuidade entre a produção do sítio virtual e esta primeira incursão em livro impresso – o sítio tem o mesmo nome: www.cerebronosso.bio.br. Insinua-se já no título a noção de uma presença cotidiana do cérebro e também a ideia de uma “descoberta” de uma característica biológica que existe em nossa ‘natureza’ e apenas aguardava ser desvelada pelas tecnologias apropriadas.

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O sucesso na internet teria sido o combustível para o projeto do primeiro livro.

Neste, a autora afirma em uma auto-apresentação que o objetivo dos textos é explicar

em linguagem simples, descobertas recentes da pesquisa sobre o cérebro relacionadas ao cotidiano de todos nós. A proposta não é explicar como o cérebro e a mente funcionam, mas sim expor alguns princípios através dos exemplos do cotidiano, na esperança de despertar no leitor a curiosidade e a vontade de entender como o cérebro faz de nós o que somos e fazemos no dia-a-dia. (Herculano-Houzel, 2002:15)

Esta auto-definição do seu trabalho é semelhante à forma como o diretor de

redação da revista Época referiu-se às “100 pessoas mais influentes do Brasil em 2008”.

Na revista, ele afirma que se trata ali de um destaque às pessoas que “nos fazem ser

quem somos”; já no livro de Suzana – uma dessas pessoas –, afirma-se que quem faz de

nós o que somos é o cérebro. O leitor que passa pelas duas publicações vai sendo

direcionado a uma verdade sobre si, cristalizado no discurso científico e depois em um

órgão do corpo humano.

Nestas primeiras linhas o leitor já é apresentado ao projeto do livro, mas também

a uma perspectiva muito específica a respeito do que faz de cada indivíduo o que ele é:

o que somos e fazemos é um produto direto do nosso cérebro. Ainda que o conteúdo e o

vocabulário apresentado não escapem da linguagem esotérica que caracteriza toda

forma de conhecimento especializado – afinal, como entender e visualizar exatamente o

que é a glia, ou o glutamato ou mesmo termos mais conhecidos do público leigo como

neurônio ou sinapses –, o texto procura manter-se em um registro acessível aos não-

especialistas, mesmo que o vocabulário não necessariamente o seja, e sempre se conecta

com alguma questão relacionada à vida cotidiana.

Continuando a apresentação do projeto, no primeiro livro, a autora fala desta

preocupação com o estilo da divulgação que ela tenciona fazer:

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Tomei cuidado para que as informações originais fossem apresentadas de forma simples, mas não simplificada, e num tom descontraído de conversa de varanda. Quis também evitar a construção empregada por tantos outros livros, que parecem acreditar que antes de mais nada é preciso dar ao leitor minicurso de neurociência básica. Por isso, preferi deixar para explicar os conceitos fundamentais somente à medida que eles foram aparecendo. (Herculano-Houzel, 2002:16)

Expressões como “conversa de varanda” (no 1º livro) ou ainda “filosofia de rede

na varanda” (no mais recente, lançado em 2009) – como ela define o tom que gostaria

de imprimir aos seus textos – desenham um cenário de intimidade crescente entre leitor

e autora, assim como entre leitor e conteúdo. Reforçar essa cena de ‘intimidade’ entre

leigo e ciência, mediada pela tradução da neurocientista, consiste em uma estratégia de

sedução. O ‘canto da sereia’ da popularização neurocientífica, enquanto um produto que

pode ou não ter sucesso em sua mensagem e comercialização, consiste em convencer o

público leigo de que os saberes sobre o cérebro, naquele formato, são acessíveis; e

depende também do sucesso da ideia de que aquele saber de fato diz alguma coisa sobre

quem somos e o que fazemos em nosso cotidiano.

Minha hipótese de análise é a de que esse ‘tom de intimidade’ foi avançando até

o ponto em que é possível perceber algumas tendências. Uma delas é a de que a autora

passa a flertar com o estilo da auto-ajuda, com um tom mais claramente normativo, que

propõe uma espécie de higiene cotidiana relacionada ao cérebro, no sentido em que uma

‘saúde cerebral’ está relacionada ao bem estar geral de todo o organismo112. A segunda é

que os textos vão ficando cada vez mais distantes de suas referências de base, artigos

científicos mais áridos nos quais o público leigo em busca da linguagem mais leve que

caracteriza este tipo de divulgação não teria interesse. Este movimento pode ser

percebido ‘fisicamente’ nos livros: aqueles lançados pela Vieira e Lent, seus primeiros

112 Isso pode ser percebido até nos títulos dos livros com este perfil, lançados pela editora

Sextante. Refiro-me ao “Fique de bem com o seu cérebro: guia prático para o bem-estar em 15 passos” e ao “Pílulas de neurociência para uma vida melhor”, lançados respectivamente em 2007 e 2009.

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lançamentos (em com primeiras edições em 2002 e 2003), traziam referências

bibliográficas ao final de cada pequeno artigo, estabelecendo uma relação direta entre

cada tópico abordado e sua origem em artigos publicados em periódicos da área de

neurociência; em livros mais recentes, as referências passam a constar no final do livro;

já em seu último lançamento, em 2009, chamado “Pílulas de neurociência para uma

vida melhor”, não há referências bibliográficas – o que parece ser significativo de um

lugar de autoridade alcançado pela autora.

É possível traçar um paralelo entre este movimento e a forma como Boltanski

(2004) analisa a difusão do conhecimento de uma ciência médica legítima a alimentar

uma medicina familiar, e a circular internamente entre uma camada leiga; sobre este

tema, afirma ele que

(...) os diversos tipos de conhecimentos parecem difundir-se hoje tanto mais facilmente quanto menos nitidamente for reconhecido seu caráter científico, ou se preferirmos, quanto menos evidente for seu caráter técnico e mais se aproximarem eles dos conhecimentos familiares utilizados na administração da vida cotidiana; pois seu poder de evocação será menor, imporão menos respeito e poderão mais facilmente ser descontextualizados, fazer com que seja esquecida sua origem científica e integrar-se no conjunto dos conhecimentos de classe, enfim, quanto menos esmagadora for sua legitimidade. (Boltanski, 2004, p.147)

No caso de meu material de campo, há que se observar algumas diferenças. É

fato que a origem científica das ideias vai se afastando gradualmente dos textos de

divulgação científica de Suzana Herculano-Houzel. O movimento no rumo de uma

abordagem cada vez mais leve de temas ligados à “neurociência do cotidiano” vai

despindo os textos de aridez científica e de um vocabulário mais técnico. Mas a posição

de prestígio ocupada pela neurociência hoje é constantemente reafirmada, e não

enfraquecida, ainda que se trate de um processo explícito de simplificação de uma

linguagem cifrada em sua origem. Aqui, uma boa administração da vida cotidiana é

proposta através de um conjunto de sugestões cuja justificativa está diretamente

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relacionada ao prestígio alcançado pela neurociência. É preciso lembrar que estamos

lidando, ao menos no caso dos livros, com a difusão letrada de uma concepção de

‘pessoa’, que circula entre um público no qual um modelo científico de explicação do

organismo é bem visto. Sua legitimidade emana justamente de uma valorização de suas

bases científicas, ainda que a apresentação das ideias seja adaptada a uma leitura leve,

de fácil aceitação, próxima ao leitor não iniciado em neurociência; este é o tom de uma

leitura de “rede na varanda”. Trata-se de um projeto consciente de difusão de um

conjunto de ideias e da sua aplicabilidade prática cotidiana no sentido da busca por

maior bem-estar. Ou seja, há aqui um processo de tradução e simplificação de uma

linguagem científica em nível controlado, para que a mensagem e a sua ciência de base

não percam legitimidade. Muito pelo contrário, é através desses mecanismos que a

neurociência aproxima-se de uma linguagem de senso comum e passa a moldar, ainda

que não exclusivamente, uma “atitude sociopsicológica prevalente”, para retomar o

vocabulário de Fleck (1975).

Os livros de divulgação lançados por Suzana Herculano-Houzel são

particularmente sintomáticos da direção que o discurso neurocientífico toma no rumo de

uma ciência que também se ocupa de aspectos corriqueiros do comportamento

cotidiano. O primeiro e segundo livros foram lançados pela editora Vieira e Lent113 em

2002 e 2003, e guardam entre si uma estrutura em comum. São compostos por pequenos

capítulos com não mais do que quatro páginas e não menos do que duas cada um,

113 Um dos membros do conselho diretor da editora é o neurocientista Roberto Lent. No sítio

virtual da editora, afirma-se que a empresa nasce com a vocação de divulgação cientifica: a editora foi criada em 2002, “com o objetivo editorial de promover a aproximação entre ciência e sociedade. Levar ao grande público leitor o conhecimento produzido nos laboratórios brasileiros, em todas as áreas do conhecimento, inclusive estudos sobre cultura, arte e literatura”. (www.vieiralent.com.br) Em seu primeiro livro, Suzana Herculano reconhece o papel de Roberto Lent como um “padrinho” no campo da divulgação, o que nos mostra uma conexão entre os projetos dos dois e a relação entre esta sessão e a anterior. O primeiro livro de divulgação de Suzana Herculano-Houzel foi também o primeiro livro lançado pela editora.

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divididos em seções temáticas. Cada pequeno capítulo é seguido diretamente de uma

referência bibliográfica, textos publicados em revistas científicas de prestígio como

Science, Nature, European Journal of Neuroscience, Nature Neuroscience e outras, a

fonte de onde aquela relação entre neurociência e vida cotidiana teria sido retirada. Esta

informação pode soar pouco relevante, mas não o é: como já disse, os livros posteriores

vão vendo as referências científicas ficarem mais distantes dos textos, ao final do livro

(caso do livro publicado pela editora Zahar, em 2007 e do primeiro lançamento pela

Sextante, também em 2007) ou sequer ao final (caso do seu livro mais recente, lançado

pela Sextante em 2009, onde se repete um perfil mais próximo ao da auto-ajuda).

O primeiro livro reúne 47 textos com curiosidades variadas a respeito do

cérebro, agrupadas nas sessões “o cérebro em números”, “sentir”, “agir”, “sono e

sonhos”, “drogas”, “aprendizado e memória”, “cognição e consciência”, “na saúde e na

doença” e “novas terapias”. Em termos gerais, o livro procura desfazer o que seriam

alguns mitos a respeito do cérebro – alguns deles já parte do senso comum –, como o de

que usamos apenas 10% de nossa capacidade cerebral ou o de que o tamanho do cérebro

teria uma relação direta com a capacidade cognitiva.

A estrutura dos textos é semelhante: cada pequeno capítulo tem um formato

circular, que se inicia com alguma questão simples relacionada ao cotidiano, caminha

por alguma hipótese encontrada no campo das neurociências e termina com alguma

referência ao mote que abre o texto, quase sempre de uma forma lúdica. Por exemplo:

Título: Esse bocejo irresistível... Por que o bocejo é contagioso? Início: Vamos fazer uma aposta? A aposta é que você não vai conseguir chegar até o ponto final deste texto sem bocejar? Fácil? Ou só de ler esta frase você já começou a bocejar?

Seguem-se explicações científicas a respeito do tema. Neste caso, a queda súbita

de oxigenação no cérebro levaria ao bocejo; por sua vez, o contágio aconteceria porque

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“quando observamos uma ação ou imaginamos ações ou objetos, nosso cérebro ativa

exatamente os mesmos circuitos utilizados quando realizamos nós mesmos aquela ação,

ou quando de fato percebemos o objeto”.

Conclusão: Por analogia, ver um bocejo talvez ative os mesmos circuitos que provocam um bocejo espontâneo. No entanto, ao contrário das ações voluntárias os circuitos que controlam esse reflexo provavelmente não sofrem o mesmo controle inibitório. Resultado: no que concerne ao bocejo, somos verdadeiros macacos de imitação! Falando nisso... ganhei a aposta? (Herculano-Houzel, 2002, p. 94-5)

Na sessão sobre as “drogas”, especialmente em um texto a respeito da cafeína e

a possibilidade de que a substância gere um vício, já se anuncia um tema que será

central para o livro seguinte de Suzana e para reflexões posteriores. A dinâmica da

construção de vícios é explicada da seguinte forma:

Hoje já se sabe que as principais substâncias de abuso viciam através de sua ação no sistema motivacional do cérebro. Esse sistema inclui o núcleo acumbente, uma estrutura cerebral antiga que recompensa comportamentos importantes para a vida do indivíduo, fazendo com que ele volte a buscar o que proporcionou aquela sensação boa – de saciedade, realização ou êxito. Drogas como a cocaína ativam esse núcleo, fazendo com que a pessoa volte a querer usá-las. Mas também deixam o núcleo acostumado, como que “anestesiado”, de modo que da próxima vez é necessário usar uma dose maior da droga para atingir o efeito original. Daí a bola-de-neve que é o vício. (Herculano-Houzel, 2002, p.107)

Este sistema de motivação e recompensa é um foco importante de seu discurso a

respeito da relação entre “o cérebro e os prazeres da vida cotidiana”, tema de seu

segundo livro de divulgação, lançado também pela editora Vieira e Lent, em 2003, um

assunto que ganha destaque também em entrevistas e no curso que frequentei sobre a

“neurociência do cotidiano”. Em sua apresentação a este segundo livro, o neurocientista

Roberto Lent já mostra que o sistema de recompensa do cérebro atua para muito além

das ‘drogas’, e ajuda a explicar outros “prazeres da vida cotidiana”:

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Sexo, drogas, rock’n’roll... & chocolate [o título do livro] é uma coletânea de ensaios sobre a base neurobiológica daqueles atos e fatos que a gente mais curte em nosso cotidiano: um chopinho com os amigos no final do dia, uma incursão a um show de música à noite, um namoro bem caliente mais tarde, e quem sabe, depois de todos esses prazeres, um doce antes de dormir! Tudo tão natural e prazeroso, que nem parece que o cérebro está por trás com seus neurônios e circuitos, seus sinais elétricos e suas moléculas neurotransmissoras.

Neste momento, o sistema de recompensa pode soar como uma explicação

neurocientífica para o hedonismo, uma justificativa biológica para a busca por prazer ou

mesmo explicar uma certa dinâmica de consumo. A autora define o tema principal deste

seu segundo livro através da pergunta “o que nos faz querer sempre mais?” (Herculano-

Houzel, 2003, p.16), estabelecendo este desejo como um pressuposto do modo de

funcionar da espécie humana – afinal, a quem se refere o “nos” e o “sempre”, senão a

uma perspectiva universalista? A resposta para esta pergunta estaria no citado sistema

de recompensa e motivação do cérebro, “o responsável por atribuir valência positiva –

em outras palavras, prazer – a comportamentos que surtem bons efeitos, sejam eles

esperados ou surpreendentes. O resultado é a garantia de que voltaremos a fazer ou

procurar algo que foi bom”. (ibidem) Motivação é o nome que ela dá à antecipação

deste prazer, “um gostinho do prazer que logo deve chegar”. Mas veremos que este

sistema, no qual estão envolvidas algumas estruturas do cérebro, com destaque para o

núcleo acumbente, está relacionado a uma ideia de prazer e satisfação em sentido

amplo, que pode ser ativado também através de um trabalho bem feito – através da

recompensa que isso pode trazer – e está envolvido em atividades cotidianas

corriqueiras (ao menos, em princípio, para o público alvo deste tipo de literatura, é

importante salientar). O cérebro estaria envolvido nos prazeres mais intensos das

‘drogas’ proibidas, nos mais aditivos, mas também em atividades mais prosaicas como

beber um chope. Tais prazeres, que a autora subsume sob os itens sexo, drogas, música

e comida, seriam

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presenças constantes em nossa vida, em suas formas mais extremadas ou em simples paqueras, café ou cerveja, canções de ninar e lanches rápidos, e não poderiam deixar de ser. O que eles representam é a razão da nossa existência, é o que nos tira da cama a cada novo dia: a expectativa de um novo prazer. Isso não é dizer que o ser humano seja um animal hedonista, que só faz o que lhe dá prazer (embora você possa ter certeza de que conhece alguns ótimos exemplos!). Mas o contrário é certamente verdade: tudo o que dá prazer será feito tantas vezes quanto for possível, e à exaustão se for o caso. Quem garante é o sistema de recompensa do cérebro, calibrado e aprovado ao longo de muitos anos de evolução. Hora, então, de atualizar os livros didáticos que afirmam que o papel principal do cérebro é coordenar sensações e movimentos. Sem um prazer para associar como recompensa, o show dos sentidos não teria a menor graça. Não acha? (Herculano-Houzel, 2003, p. 218) (grifos da autora)

A centralidade do sistema de recompensa no discurso de Suzana neste segundo

livro abre alas para um novo passo: falar sobre o cérebro não inclui apenas curiosidades

sobre o funcionamento do órgão, seja ele adequado e saudável ou não; conhecer melhor

este cérebro nos possibilitaria uma gestão da vida e de seus pequenos prazeres. O órgão

da civilização e da razão é também o mesmo que nos anima cotidianamente a seguir em

busca de uma recompensa biologicamente determinada, fruto da evolução. Abre-se

espaço para o cérebro nas mais prosaicas cenas cotidianas O livro a respeito dos

“prazeres da vida cotidiana” antecipa uma virada editorial e discursiva que parece se

solidificar alguns anos depois, quando a autora passa a publicar livros pela Sextante,

uma editora especializada no gênero conhecido como autoajuda, o que será assunto da

próxima sessão.

Em paralelo a esta virada discursiva, um outro livro foi publicado pela Jorge

Zahar Editor, em 2007, com foco em curiosidades a respeito da relação entre o cérebro e

a vida cotidiana. O fator contagiante do bocejo repete-se aqui em destaque, e vai dar

título ao livro “Por que o bocejo é contagioso?: e outras curiosidades da neurociência no

cotidiano”. Trata-se do primeiro de uma coleção dirigida pela própria Suzana, chamada

“Ciência da vida comum”, apresentada como a “nova coleção de divulgação científica

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da Zahar, que apresenta para o leitor as aplicações da ciência e da tecnologia em nossa

vida cotidiana”.

A estrutura do livro está toda montada sobre perguntas e respostas, somando um

total de 77 pequenos capítulos, distribuídos em quatro sessões: sentidos, sono e sonhos,

memória e aprendizado, e comportamento e sociedade. Nesta obra, o ponto de partida

são perguntas que vão de “Por que sentimos saudade?” a “Por que sentimos dor?”,

passando por “Por que é tão difícil guardar um segredo?”. Os textos trazem explicações

que remetem ao funcionamento de determinadas áreas do cérebro. Em relação à última

pergunta aqui citada, por exemplo, a resposta estaria em uma “proibição” articulada

pelo córtex pré-frontal:

Por uma razão semelhante à que torna mentir trabalhoso: seu cérebro lembra do assunto secreto, prepara todos os circuitos adequados para mencioná-lo, como faz com qualquer outro assunto que venha à mente, mas na hora H... não pode executar o programa preparado, porque o córtex pré-frontal, sede do controle executivo, lembra que aquele programa foi proibido. A proibição pelo córtex pré-frontal de falar no assunto coloca o córtex cingulado anterior em alarme, monitorando suas palavras para ter certeza de que você não dará com a língua nos dentes – mas também deixando você terrivelmente angustiado com o segredo a manter. (Herculano-Houzel 2007a, p. 132)

Em média, neste livro os textos são um pouco mais curtos do que nos dois

lançados pela Vieira e Lent, entre 1 e 2 páginas, com raras exceções. As referências

bibliográficas aparecem apenas no final do livro, e não logo após cada texto, como era o

caso dos primeiros livros. Essas características mostram uma tendência no modelo de

divulgação que parece deixar o texto ainda mais palatável, se imaginamos que ao leitor

leigo interessa a informação no formato de divulgação, e não o acesso às fontes

utilizadas pela autora; em alguns capítulos, uma nota remete o leitor às referências

bibliográficas – mais uma vez textos publicados em revistas de referência no campo das

neurociências – ao final do livro, mas não em todos.

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As dinâmicas cerebrais explicam temas que podem, com ressalvas, ser definidos

como de caráter mais exclusivamente físico como a coceira, os espirros e soluços. Mas

também avançam sobre questões que envolvem uma ordem mais evidentemente

simbólica, como a de “por que sentimos nojo?”. Trata-se de um bom exemplo de um

discurso que naturaliza e universaliza noções como o gosto e o nojo, o que atrai e o que

causa repulsa, tema de larga abordagem em mais de uma vertente das ciências humanas

e sociais, que mostram o seu caráter histórica e culturalmente variado.114 Para responder

esta pergunta, Herculano-Houzel explica que

Assim como o cérebro tem regiões que cuidam de cada um dos gostos que sentimos, ele possui também outra região cuja especialidade é registrar gostos desagradáveis, que provocam o tal desgosto, ou nojo. Informações de vários sentidos podem disparar um sinal nessa região cerebral do desgosto, a porção anterior do córtex da ínsula. (...) Sentir nojo é tão importante que o mesmo alarme de desgosto, disparado no cérebro quando você já cheirou ou comeu algo ruim, é acionada quando você recebe uma proposta injusta (e faz você recusá-la), e também à simples visão de uma cara de nojo em outra pessoa. Isso é muito importante porque a expressão de nojo é universal: embora cada povo tenha sua lista de comidas preferidas ou desagradáveis, pessoas em todas as culturas e de todas as etnias torcem o nariz de uma mesma maneira, com a mesma careta, contraindo o músculo corrugador da face, quando não gostam do que comem. E se eles não gostaram, o mais seguro é você ficar longe daquela comida. O problema é que as crianças, em geral muito sensíveis a sabores amargos, e adultos cheios de frescura protegem bem demais seus cérebros e estômagos e torcem o nariz para qualquer comida que não seja perfeitamente segura, ou que eles vejam outra criança recusar. O que explica, aliás, porque o “prato infantil” é universal. Quero ver alguma criança torcer o nariz para o famoso bife com batata frita... (Herculano-Houzel, 2007a, p.34-5)

Apesar da um tanto vaga menção a “culturas” e a “etnias”, o que prevalece no

texto são ideias a respeito de um caráter universal dos gostos, das emoções e sua

expressão facial. É mais do que evidente que esta perspectiva a respeito da ‘natureza

humana’ – presente também no mesmo livro em textos sobre a timidez, a emulação, a

114 Para apenas três exemplos na antropologia e na história, ver Douglas (1976), Elias (1994) e

Vigarello (1996).

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saudade, a rebeldia juvenil e o ato de presentear – entra em choque com a perspectiva

antropológica que me guia. As mais diversas camadas das sensações e sentimentos

humanos ganham uma roupagem de objetividade científica. Cada pequeno texto é uma

nova peça em um quebra-cabeça cujo resultado final é uma concepção de ‘pessoa’ mais

aproximada ao seu cérebro; isso, é claro, se assumirmos que o leitor tomas essas

verdades científicas para si e as utiliza como um elemento na constituição do seu self-

objetivo (cf. Dumit, 2003, 2004)

Entre os 77 textos – pensando somente a respeito deste livro em particular –, não

é difícil encontrar ideias a respeito do cérebro que tragam algum conforto pelo fato de

explicar uma ou outra reação humana. No dia em que comecei a redigir esta sessão do

capítulo, apesar de ter acordado muito cedo para trabalhar no horário em que produzo

melhor, não conseguia achar um gancho para começar a escrever. Quem já passou pelo

processo de confecção de uma tese, ou exerce qualquer função que envolva esforço

mental/cerebral/intelectual, sabe o quanto essa sensação pode ser angustiante. Com o

passar das horas, a mistura de frustração com a primeira linha que insiste em não

aparecer no papel e um cansaço que pode ser sentido no corpo, como se se tratasse de

um trabalho braçal, vai se tornando extenuante. Por um momento, pensei em como seria

bom se isso tivesse uma explicação que não colocasse em jogo minha competência, ou,

em termos mais gerais, não envolvesse a minha subjetividade. E se, realmente, naquela

manhã específica, algum mecanismo cerebral pudesse explicar porque eu não conseguia

escrever e me sentia cansado após algum tempo tentando?

Na verdade, tal explicação existe, e está acessível mesmo para quem pouco

entende a respeito do funcionamento do cérebro. Já que a primeira linha não surgia,

comecei a folhear o livro “Por que o bocejo é contagioso?”. Acabei encontrando uma

resposta possível justamente no capítulo “Por que pensar cansa?”:

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O culpado é o cérebro, que vai ficando cansado. Ainda não se entende completamente o que é a fadiga mental em termos neuronais, mas ela parece estar associada ao acúmulo de uma pequena molécula liberada pelas células da glia, vizinhas dos neurônios, em locais de grande atividade sináptica neuronal. A liberação de adenosina pela glia acontece em resposta aos neurotransmissores, as substâncias usadas pelos neurônios para passar informação adiante entre si. Por isso, quanto mais intensa for a atividade sináptica em uma região cerebral, mais adenosina será liberada pela glia. Toda essa adenosina se acumula ao redor das células e age sobre os neurônios impedindo que eles fiquem excessivamente ativos – o que também coloca um “teto” na sua capacidade de processamento de informação. Por isso não adianta praticar muitas horas seguidas, e não dá para manter o desempenho trabalhando muito tempo em uma mesma tarefa. (Herculano-Houzel 2007a, p.67)

Não posso dizer que entendi exatamente o que eu li no texto acima. Visualizar o

processo descrito não é uma tarefa simples, mesmo para um leigo interessado nos

discursos da neurociência. Fica-me a impressão de que, apesar da roupagem amigável

da qual os textos estão revestidos, o vocabulário e o trânsito neuronal não são

exatamente de fácil visualização, ainda que imagens do cérebro e de como se dá a

comunicação entre neurônios sejam comuns na mídia de massa.

Ainda assim, admito que o texto trouxe algum conforto. A citação acima é parte

do material que compõe meu corpus etnográfico; ao mesmo tempo, ele apresenta uma

tese que ensina algo sobre mim mesmo, com a qual eu poderia – e deveria, se quisesse

ganhar mais competência na leitura desses textos – aprender. Nesses momentos,

percebia que discursos contemporâneos sobre o cérebro não são de todo estranhos à

minha visão de mundo, ainda que me causem estranhamento. A linguagem escolhida

para representar o cansaço, culpando o cérebro de uma forma que torna a fadiga mental

inevitável, e tratando o órgão como algo extrínseco ao sujeito, ainda que o determine,

deixou-me mais tranquilo. Mas não menos cansado.

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3.3.2 A “auto-ajuda no seu ápice”

Tive uma breve conversa com uma leitora dos livros de Suzana Herculano, longe

de uma situação formal de campo. Eu enfrentava uma fila para conseguir entradas para

o teatro em um centro cultural no Rio de Janeiro quando percebi que uma moça logo

atrás lia uma edição do livro “Fique de bem com o seu cérebro”, o primeiro lançamento

da autora pela editora Sextante, publicado no ano de 2007. Já estava habituado a

encontrar pessoas lendo os livros de divulgação da neurocientista, fosse na praia ou no

metrô, mas esta era a primeira situação que facilitava uma abordagem.

O que despertou particularmente a minha atenção em um primeiro momento é

que a capa do livro era diferente do de minha edição. Meu exemplar traz na capa uma

ilustração com a cabeça de uma pessoa em perfil, e a parte correspondente ao espaço

ocupado pelo couro cabeludo aparece recortada em partes, uma imagem que nos remete

ao localizacionismo cerebral; em volta, outras ilustrações referem-se a exemplos de

temas abordados no livro como exercício físico (representado por um tênis), a

importância de dormir bem (representado por uma cama) e também de cultivar boas

relações, dando e recebendo carinho (representado por um casal de namorados). A

chamada logo abaixo do nome de Suzana diz “autora de O cérebro nosso de cada dia”,

seu primeiro livro de popularização científica. A edição que a moça lia trazia a foto da

autora, e a chamada trazia uma nova indicação, “apresentadora do quadro Neurológica

do Fantástico”. Àquela altura, o material de Suzana Herculano já tinha uma versão para

a televisão, e a divulgação de neurociência passa a ter um rosto, além de um nome.

A longa fila, e o meu interesse em olhar a nova capa e conversar a respeito do

livro propiciaram uma interação, mais um momento etnográfico casual e não

programado, uma oportunidade rara, de ter algum contato com a atitude mental dos

consumidores do material que eu analisava. A moça – cuja idade poderia girar em torno

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dos 30 anos – comentou que gostava de “ler tudo o que cai na mão sobre ciência para

leigos”, e cita as áreas de psiquiatria e psicologia, além de neurociência. Ela me disse

ser formada em história por uma universidade pública do Rio de Janeiro, mas estar

trabalhando atualmente em uma livraria. Aquele livro de Herculano-Houzel, segundo

ela, estava na prateleira de auto-ajuda, gênero do qual ela afirmou não ser leitora,

enquanto outros da mesma autora estariam em prateleiras dedicadas à divulgação

científica. A moça comentou que “muita gente não lê [o livro em questão] porque tem

preconceito com [o gênero] auto-ajuda”. Eu não escondo minha opinião, e afirmo que

“por outro lado, muita gente lê justamente porque esta relação foi estabelecida”.

A cena deixou-me mais atento a este deslizamento entre os diferentes gêneros

literários. As curiosidades e aplicações da neurociência na vida cotidiana publicadas por

Suzana Herculano mudaram de prateleira nas livrarias, migrando de sessões com nomes

como “ciência” ou “divulgação científica” para a parte de auto-ajuda. Mais do que uma

mudança de prateleira, trata-se de uma mudança de estatuto, que multiplicou o público

leitor das mensagens neurocientíficas, agora em um formato híbrido que aproxima

ciência e auto-ajuda. Em seu último livro de divulgação até o momento, intitulado

“Pílulas de neurociência para uma vida melhor”, também lançado pela Sextante, em

2009, informava-se que acima de 60.000 cópias já teriam sido vendidas para o total dos

livros de divulgação da autora. Cerca de metade do total diz respeito às vendas somente

de “Fique de bem com o seu cérebro”, o primeiro livro que assume um tom voltado ao

desenvolvimento pessoal. Eu ainda não tinha essa informação – fornecida pela própria

autora – quando tive a oportunidade de conversar na fila do teatro com uma leitora. Mas

os dois tinham razão: o rótulo auto-ajuda pode despertar algum preconceito e ressalvas

entre os não adeptos; mas levou a divulgação de neurociência a um novo patamar de

sucesso comercial e multiplicou o número de leitores.

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Se em “Por que o bocejo o contagioso?” (lançado também em 2007 pela Zahar),

o foco são “curiosidades da neurociência do cotidiano” em um modelo pergunta-

reposta, em “Fique de bem com o seu cérebro: guia prático para o bem-estar em 15

passos”, os capítulos se estruturam em conselhos afirmativos para que o leitor tenha

uma vida melhor, baseados em uma espécie de higiene cerebral que atravessa o

cotidiano. A comparação com a chamada literatura de auto-ajuda é por demais óbvia

para deixar de ser notada. O livro foi publicado pela editora Sextante, especializada

nessa linha de publicações. Cada capítulo – o que não parece ser casual – começa com

um verbo no imperativo, como “cuide bem da sua saúde física”, “sorria e busque a

felicidade”, “identifique e cultive os seus prazeres”, “ouça as suas emoções”, “tenha

uma atitude positiva”, “aprenda a lidar com a ansiedade”, “exercite-se regularmente”,

“durma bem e bastante” e “faça as pazes com os remédios”.

Apenas a título comparativo, é bom lembrar que esse tipo de publicação voltada

ao público leigo com uma proposta de higiene, treinamento e cuidados cotidianos com o

cérebro (e com o corpo) tem um equivalente em seu aparentado discurso dos nervos.

Duarte (1986), a partir de uma consulta às entradas da Biblioteca Nacional, mostra que

o vocabulário em torno do nervoso “tem mantido uma intensa capacidade de

sobrevivência”, especialmente em “uma produção de nível intermediário, muito voltada

para o público não especializado (...) e que reiteram as fórmulas do discurso do nervoso

como veículo de moralização” (p.67-8). A semelhança entre os títulos que ele cita –

todos publicados entre 1966 e 1976 – e alguns livros mais recentes de neurociência para

o público leigo é evidente: “Viva em paz com os seus nervos”, “É fácil dominar os

nervos”, “Nervos fortes e sadios: libertação radical dos distúrbios nervosos”, “Nervos,

tensão e fadiga em perguntas e respostas” (ibidem, p.68).

Por semelhança, não seria demais afirmar que o discurso que aproxima o

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cerebralismo da autoajuda também funciona como um veículo de moralização. No caso

do livro de Herculano-Houzel, o foco para atingir os objetivos determinados em cada

capítulo passa por uma espécie de tomada de consciência do que o seu cérebro e os

conhecimentos acumulados pelas neurociências podem fazer por você, desde que o

leitor mostre disposição para colocar em prática alguns conselhos e acatar determinadas

mudanças de estilo de vida.

O que mais de um século de pesquisa sobre o cérebro pode fazer por você? Muito, eu diria – e cada vez mais. Embora por muito tempo boa parte dos estudos nesse campo tenha se concentrado nas doenças e nas causas variadas da infelicidade e do mal-estar, uma bem-vinda ampliação do enfoque nos últimos anos fez com que a neurociência passasse a se interessar também pelo normal: como o cérebro se mantém saudável, o que nos causa prazer e felicidade, o que é o bem-estar e como alcançá-lo. (Herculano-Houzel, 2007b:11)

Este enfoque mostra sintonia com uma visão ampliada do que seja saúde e bem-

estar, e do papel possível que o discurso das neurociências pode ocupar na busca por

uma maior “qualidade de vida”:

Assim como a saúde é mais do que a ausência de doença, o bem-estar é mais do que a ausência de mal-estar: trata-se de um conjunto de sensações positivas de satisfação, prazer, motivação, auto-estima, força física, relacionamentos sociais benéficos, independência e controle sobre a própria vida. O bem-estar depende do cérebro. Mesmo com o corpo em perfeitas condições, se não nos sentirmos mentalmente bem-dispostos – se estamos ansiosos, preocupados, tristes ou raivosos –, o bem-estar não é possível. Isso só existe quando, além de o cérebro julgar que a nossa vida mental é rica, agradável e satisfatória, ele recebe informações do corpo que este último também vai bem. (...) Nossa capacidade de sermos felizes depende do bem-estar simultâneo do cérebro e do corpo. (Herculano-Houzel, 2007b:17)

Estados mentais, psicológicos ou físicos são todos tratados como um

epifenômeno do cérebro. A frase “o bem-estar depende do cérebro” resume bem essa

perspectiva. Trata-se de um conjunto de regras de ascese corporal, dietética, gestão do

estresse e cultivo dos relacionamentos, indicados porque gerariam uma resposta positiva

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no cérebro. Cuidados com o corpo e a mente teriam um efeito direto sobre este órgão,

que por sua vez se reflete em um bem-estar generalizado, já que tudo depende do

funcionamento do cérebro. Neste livro temos freqüentes menções à estrutura que

chamei de um dualismo fisicalista, no qual o cérebro faz par com o corpo, como se

forem duas entidades interligadas, interdependentes, mas ainda assim diferentes. No

capítulo “cuide bem da sua saúde física”, que abre o livro, Suzana Herculano afirma que

Manter o cérebro saudável não significa apenas evitar AVCs e microderrames que comprometem as funções mentais e o envelhecimento saudável. O bem-estar depende de uma ciranda contínua entre o corpo e o cérebro, como duas crianças brincando de roda: a diversão não começa com uma delas apenas, mas somente quando as duas se dão as mãos. Do mesmo modo, tanto o estado de ânimo do cérebro se reflete no estado do corpo quanto o estado do corpo influencia os ânimos do cérebro, e, portanto, a atividade mental. (ibidem, p.24)

Para atingir um estado de bem-estar, gerando um círculo virtuoso nesta ciranda

contínua, indica-se uma escuta atenta do próprio corpo. Este mecanismo de controle, na

verdade, também está determinado biologicamente. Não se trata de uma escuta de uma

consciência algo desprendida do próprio corpo e que pode observar a si mesmo, atento a

qualquer problema. Um de nossos sentidos é que teria essa função:

Pare um minuto e pergunte a si mesmo: “Agora, neste exato momento, como estou me sentindo? Bem? Mal? Um pouco angustiado? Atento e pronto para o que der e vier?” Se conseguimos encontrar uma resposta para essa pergunta, é graças a um sentido não muito divulgado e, na verdade, conhecido há pouco tempo que não se encaixa no esquema tradicional dos cinco sentidos – visão, tato, audição, paladar e olfato. Trata-se da interocepção, que informa ao cérebro a cada instante sobre o estado de funcionamento do corpo através de nervos presente em todos os órgãos. (ibidem, p.25)

Os mecanismos de controle, como se pode ver, estão aqui interiorizados, mas de

uma forma peculiar: estão biologicamente interiorizados e se somam aos outros cinco

sentidos do “esquema tradicional”. Uma escuta interior é de responsabilidade do próprio

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indivíduo, ao mesmo tempo em que se trata de uma atribuição ‘natural’ do cérebro, um

centro de informações do estado de bem-estar ou de que alguma coisa vai mal. A

consciência de si, através deste novo sentido, passa a ser um mecanismo inerente à

nossa biologia, a qual temos acesso através de uma escuta atenta dos sinais que o

cérebro decodifica. Trata-se de uma variação peculiar da lógica de uma sociedade

confessional, conforme tratado por Foucault (1997): a confissão é feita a si mesmo, e é

o próprio sujeito o encarregado de um questionamento interior – ainda que direcionado,

tanto na formulação de tais perguntas, quanto a respeito de quais seriam as respostas

consideradas adequadas, pelo discurso (neuro)científico. Mas toda essa mecânica fica

submetida ao funcionamento e gestão do cérebro, o verdadeiro arquiteto da situação.

Sennett (Foucault e Sennett, 1981) afirma que poucas pessoas concordariam na

sociedade moderna com a frase de Brillat-Savarin, “diga-me o que comes, e eu te direi

quem és”, mas afirma ser adequado uma adaptação da frase para tempos em que a

sexualidade ocupa um lugar central nos questionamentos a respeito da subjetividade, no

formato “know how you love, and you will know who you are”. Como sexualidade,

alimentação e qualquer aspecto do comportamento humano parecem estar hoje

submetidos aos ditames do cérebro – ao menos assim quer um discurso neurocientífico

que se propõe a falar sobre “a vida, o universo, e tudo mais”, como se afirma no blog de

Suzana Herculano-Houzel –, talvez se possa propor um novo movimento na mesma

frase: conheça o seu cérebro, e você saberá quem você é.

Esta transição para um registro vinculado a uma editora e a um registro de auto-

ajuda não acontece sem alguma tensão. De certa forma, a breve conversa que tive na fila

de teatro com uma leitora do livro “Fique de bem com o seu cérebro” ilustra isso. Na

verdade, no que se refere ao conteúdo, muitos dos assuntos que Suzana Herculano

aborda neste novo momento editorial – no qual já publicou dois livros, e outros estariam

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a caminho – já haviam sido trabalhados antes. A importância dos cuidados com o corpo,

alimentação, sono, cultivo dos prazeres, gestão do estresse, da ansiedade e de uma

atitude positiva são assuntos que já circulavam pelos livros anteriores. Mas não se pode

subestimar a autoridade de uma retórica de caráter mais aconselhativo, no qual a

neurociência e a neurocientista assumem uma vocação mais claramente

intervencionista.

O rótulo de ‘auto-ajuda’ para o livro de Suzana Herculano lançado pela editora

Sextante foi motivo de um debate durante uma entrevista de Suzana ao tradicional

programa Roda Viva, que vai ao pela TV Cultura nas segundas à noite115. A entrevistada

foi questionada por Mariluce Moura, diretora de redação da revista Pesquisa FAPESP.

Para não perder o contexto do debate, permito-me transcrever um trecho relativamente

extenso.

Mariluce Moura: ... Preocupou-me um pouco, lendo o seu livro, esse último, Fique de bem com o seu cérebro, se ele não joga um pouco aquilo que deveria ser a divulgação científica para um clima de auto-ajuda. E, ao jogar para um clima de auto-ajuda, se isso não coloca toda a questão do debate da ciência – aquilo que ainda são avanços, mas que podem ter discussões, debates possíveis, divergências –, se não coloca no plano das certezas absolutas. E, aí, as pessoas teriam uma informação, como se não houvesse nenhuma dúvida mais sobre aquele campo e, em seguida, que elas podem, de fato, atuar. Atuar facilmente para se livrar da dependência de drogas, para se livrar de maus hábitos, enfim, não há uma excessiva "facilitação", entre aspas, que você propõe com esse livro? Suzana Herculano-Houzel: Não. Eu acho que não. É claro que o tom da linguagem tem que ser adequado e tem que deixar claro o que é, digamos, hoje, considerado fato. Ênfase no hoje, porque isso muda, inclusive. E o que é uma interpretação bastante razoável que a gente pode... O que é resultado de pesquisa, o que é interpretação, o que é especulação em cima desses resultados. Mas deixa eu voltar para o

115 A transcrição e o vídeo podem ser encontrados na internet no endereço

http://www.rodaviva.fapesp.br/materia/311/entrevistados/suzana_herculanohouzel_2008.htm A entrevista foi ao ar em 17 de março de 2008, quando já havia sido lançado o livro “Fique de bem com o seu cérebro”, a primeira incursão da autora por este gênero misto entre divulgação científica e auto-ajuda.

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começo da sua pergunta. Eu não vejo problema na ideia de auto-ajuda. Pelo contrário, eu acho que esse é, no final das contas, o propósito da divulgação científica, que as pessoas possam usar os conhecimentos da ciência, que não deve, de modo algum, ser domínio exclusivo do pesquisador, né? E, mais do que isso, elas possam usar aquele conhecimento em benefício próprio. A ciência é especialmente interessante para a gente, para cada um de nós, cidadãos, pessoas na medida em que ela se torna útil de alguma forma. [Quando] ela pode explicar alguma coisa, trazer algum consolo, algum conforto, alguma melhoria de qualidade de vida, de saúde, de relacionamento com os outros. Então, se auto-ajuda é a literatura que apresenta ideias de uma maneira que as pessoas possam usá-las em benefício próprio para melhorar o desenvolvimento pessoal, o nome alternativo da auto-ajuda... Então, que seja. E eu acho que considerar que a divulgação científica tem, sim, um lado de auto-ajuda e pode ser, digamos, a auto-ajuda na sua... no seu ápice, digamos. Ela não reflete simplesmente a opinião de uma pessoa: “a minha receita de vida é beber não sei quantos litros de água por dia, andar não sei quantos quilômetros”. A auto-ajuda que é baseada em divulgação científica de fato, que é o que eu faço, ela tem o intuito, ela tem o objetivo que toda a divulgação científica tem. E, de certa forma, eu fico... quando eu comparo esse último livro Fique de bem com o seu cérebro com os meus livros anteriores, se você olhar com cuidado, o formato do texto principal é exatamente o mesmo. Eu comento descobertas de resultados de pesquisas, como aquilo pode ser interpretado em termos do cotidiano. A diferença é que esse livro, depois de cada texto, traz um bloquinho com sugestões, não verdades absolutas, mas sugestões.

No debate acima, uma categoria de início utilizada de forma crítica é

rapidamente ressignificada. Suzana Herculano atribui um sinal positivo ao deslizamento

entre uma retórica de divulgação científica e de auto-ajuda, de certa forma utilizando os

dois termos ao seu favor. O conteúdo de seu material reuniria o melhor da divulgação

científica – aquela que possui alguma utilidade e interesse ao público amplo, e que pode

trazer mais qualidade de vida – com o melhor da auto-ajuda – aquela que está baseada

em fatos científicos, e não seria reflexo de opiniões pessoais sem embasamento sólido.

É a isso que ela chama a “auto-ajuda no seu ápice”, expressão que emprestei

para o título desta sessão. O rótulo é aceito, mas com ressalvas; trata-se sim de auto-

ajuda, mas não uma qualquer. De categoria algo acusatória, a noção de auto-ajuda passa

a ser capitalizada, desde que a sua referência sejam verdades, ou “sugestões”,

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estabelecidas cientificamente.

Este deslizamento retórico na direção de sugestões para o desenvolvimento

pessoal multiplicou a o trânsito da divulgação de neurociência entre um público leigo,

como parece atestar o sucesso comercial do livro lançado pela Sextante, bastante

superior aos lançamentos anteriores. Um novo livro foi lançado pela mesma editora,

baseado nas colunas que Suzana Herculano manteve no jornal Estado de São Paulo, e

mantém atualmente na Folha de São Paulo, quinzenalmente, no caderno Folha

Equilíbrio, voltado para assuntos relacionados à saúde, bem-estar e qualidade de vida.

Neste último, o sistema de recompensa do cérebro, um “conjunto de estruturas

especializadas em cuidar da motivação, que nos faz sentir prazer e querer mais de tudo o

que foi bom” (Herculano-Houzel, 2009, p.39), ou ainda “o sistema que nos traz prazer,

bem-estar e felicidade” (ibidem, p.44), continua sendo a estrela do discurso

neurocientífico voltado a um público amplo116.

Este estilo híbrido de discurso sobre o cérebro favoreceu o trânsito de saberes

entre um restrito círculo esotérico e um hoje muito mais amplo círculo exotérico (cf.

Fleck, 1979) de interessados na relação entre neurociência e vida cotidiana. Ao ganhar

um tom mais normativo e aconselhativo, a mensagem da neurociência ganhou em poder

de sedução, o que se reflete na conquista de novos espaços importantes na mídia de

massa, como veremos na sessão a seguir. Quando o foco passa a ser sobre a gestão e

melhoramento da vida comum, e nos sistemas neurológicos relacionados ao prazer, à

saúde e a felicidade, não se limitando a patologias cerebrais/mentais, ampliam-se as

fronteiras temáticas que podem ser abordadas, ao ponto que a neurociência se torna um

sistema explicativo que pode opinar virtualmente sobre qualquer assunto que diga

116 A respeito do imperativo da busca por prazer e felicidade, caberiam maiores

desenvolvimentos etnográficos (já que o material de neuro-autoajuda que encontrei vai além do que pude comentar aqui) e teóricos (a bibliografia é vasta e importante); ver Cambbell, 2001; Sahlins, 2004; Bruckner, 2002.

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respeito ao cérebro, ao corpo e à mente, todos subsumidos de alguma forma à

autoridade do primeiro. A neurociência torna-se um modelo explicativo do mundo

quando se debruça também sobre a “vida normal”, como Suzana coloca em um trecho

de sua entrevista ao programa Roda Viva:

eu acho que esse livro deixa bem claro que tem um mundo enorme se abrindo para a gente graças à neurociência. Graças à possibilidade que a gente tem de olhar para o cérebro da gente funcionando e usar esses conhecimentos para entender o que é vida saudável, normal, porque eu acho que é um desvio muito feliz da tradição, justamente, que a ciência, como um todo, teve no século XX de se concentrar em patologias. Vamos usar as doenças para entender como o cérebro funciona normalmente. (o grifo é meu)

Parece-me estar aqui uma ideia chave para compreender o movimento de

ampliação da divulgação neurocientífica e do seu aparente sucesso entre o público leigo.

Um dos aspectos deste discurso é fazer parte de um corpo mais amplo de divulgação de

práticas de “neuroascese”, termo definido por Ortega e Vidal (2007, p. 260) como “uma

autodisciplina cerebral que tem por objetivo maximizar o desempenho do cérebro”.

Segundo os mesmos autores, existiria uma ampla gama de produtos relacionados a esta

ideia de uma disciplina cerebral,

Um mercado crescente de produtos neuroascéticos, que incluem, entre outros, manuais de auto-ajuda para o cérebro, softwares de exercícios para o cérebro e programas de computador que se transformam em verdadeiras “academias cerebrais”, e vitaminas de todos os tipos de suplementos alimentares que se propõem a melhorar o desempenho do cérebro. (ibidem)

Estou de acordo com a ideia de que uma bula de cuidados e disciplinas

relacionadas ao cérebro – que envolvem, como já deve estar claro, o resto do corpo –

são um traço central do que venho chamando aqui de um cerebralismo. Mas estaria

somente nestas práticas e produtos relacionados a uma neuroascese a chave para

entender o sucesso e a ampliação da divulgação de neurociência?

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Ao que parece, o grande salto no que diz respeito à ampliação do círculo de

interessados em saberes sobre o cérebro – tomando como base o tema desta sessão, os

trabalhos de uma divulgadora neurocientista que se tornam referência no Brasil –

acontece quando a neurociência centraliza o seu discurso em práticas voltadas para o

prazer e a conquista de mais qualidade de vida, tratando práticas ascéticas ou temas

relacionados ao binômio saúde/doença como coadjuvantes. O cérebro, como é

constantemente salientado nos livros de divulgação de Suzana Herculano, possui um

sistema pronto para nos trazer felicidade e bem-estar, desde que o sujeito siga

determinadas normas de conduta físicas e morais. O cérebro deve ser mais produtivo,

atento, máquina de melhor memória e aprendizagem; mas ele deve, em paralelo, ser

uma máquina cujo bom funcionamento nos mostra os caminhos do prazer, da felicidade

e da qualidade de vida. A chave, assim se divulga, está no sistema de recompensa, que

nos presenteia sempre que algo vai bem com mais motivação, o mecanismo cuja

antecipação é apresentado como o grande motor do dia-a-dia. Foi com esta retórica, de

mãos dadas com um discurso sobre curiosidades da vida cotidiana, que a divulgação

neurocientífica ganhou espaço em horário nobre na TV, ampliando em progressão

geométrica a sua esfera de influência.

3.3.3Um “órgão fantástico”

Com a exposição na TV, o cérebro passa a ter um rosto; e uma imagem do

cérebro passa a fazer parte do trabalho da “neurocientista de plantão”. Em 2008, Suzana

Herculano passa a apresentar um quadro no programa Fantástico, da Rede Globo, aos

domingos à noite, chamado Neurológica117. No quadro, ela aparece acompanhada de um

117 Os episódios estão disponíveis para download na internet, e podem ser assistidos online na

página virtual do programa Fantástico, no endereço http://fantastico.globo.com/Jornalismo/FANT/0,,JOR222-15607,00.html

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grande cérebro, que ela pode manipular e girar, mostrando partes específicas do órgão

que se ‘acendem’, indicando determinados setores ou estruturas que seriam envolvidas

nos temas abordados. Até o momento no qual escrevo, quatorze episódios já foram ao ar

e um número semelhante já estaria já pronto esperando veiculação. O quadro no

Fantástico multiplica a exposição de uma “neurociência do cotidiano”, chegando a um

público ainda mais amplo do que aquele consumidor dos livros.

As mais recentes edições de livros lançados anteriormente ao início do quadro

no Fantástico trazem agora na capa uma foto da neurocientista, o que não ocorria antes.

A credencial da TV, que aumenta exponencialmente o público atingido pela divulgação

neurocientífica reverbera nos produtos anteriores, e as capas dos livros passam a ser

impressas com a chamada “apresentadora do quadro Neurológica do Fantástico”. Na

apresentação à 3ª edição do livro “Por que o bocejo é contagioso?”, já com sua foto na

capa, a autora brinca com a ideia de que o cérebro seria mesmo um “órgão fantástico”,

referência explícita ao programa de TV.

É justamente o formato deste livro que será aproveitado como animador inicial

do quadro, já que sempre se lança um “Por quê?” pouco antes da neurocientista entrar

em ação. Em cada episódio, a estrutura dos roteiros se repete no sentido em que o

espectador é guiado por um ‘desencantamento do mundo’, na direção de um

‘encantamento do/pelo cérebro’118. Explicando melhor: assuntos relacionados ao

cotidiano vão sendo de alguma forma explicados pelo funcionamento do cérebro,

desvendados pelo discurso neurocientífico; em movimento inversamente proporcional,

o cérebro, presente fisicamente na tela da TV, ganha uma aura mística, já que encarna

118 Luna (2007), em sua pesquisa sobre as novas tecnologias reprodutivas, faz uso do termo

“encantamento pela ciência” em um sentido próximo ao qual quero conferir aqui: “O objetivo de analisar as tecnologias reprodutivas não é demonizar a técnica ou assumir uma metafísica anticiência (...). A intenção é discutir de que forma a opção por tratamento de reprodução assistida e a linguagem de eficácia e de risco utilizada por médicos, pacientes e analistas sociais integram o contexto de encantamento pela ciência.” (Luna, 2007, p. 100) (o grifo é meu)

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todos as respostas dos ‘por quês?’ formulados para animar os programetes. Não se trata,

então, exatamente de um ‘desencantamento do mundo’, mas sim de um deslocamento

deste encantamento, que passa a girar em torno do cérebro e de sua principal porta voz

no Brasil, no que diz respeito a esforços de divulgação neurocientífica.

Trago este tema aqui não gratuitamente. Em seu último livro, “Pílulas de

neurociência para uma vida melhor” – lançado em 2009 também pela Sextante –, no

último texto, intitulado “Abrindo a mente”, a própria Suzana aborda a questão,

defendendo-se, de certa forma, de acusações de que sua abordagem da “neurociência do

cotidiano” retira do mundo a sua magia.

Os caminhos da mente humana – ela afirma – são um assunto delicioso, embora ocasionalmente espinhoso. Várias vezes, no período de perguntas após palestras, em programas de rádio ou em e-mails motivados por algo que escrevi, recebo a crítica de que a ciência (e a neurociência, em especial), ao reduzir a mente a um punhado de matéria, remove o divino da existência, despe a vida de poesia e de mistérios. (Herculano-Houzel, 2009, p. 189)

Ela discorda dessa crítica e a rebate da seguinte forma ao final do texto:

Eu discordo que a ciência dispa a vida de poesia, mistério e encantamento. Minha convicção surgiu no dia em que, sentada à mesa da sala para fazer um trabalho de bioquímica para a faculdade, levantei os olhos para observar minhas primas, crianças, pulando às gargalhadas sobre o sofá-cama aberto. Naquele momento entendi que a bioquímica do livro estava nos corpinhos das minhas primas – e passei a enxergá-las como dois punhados de moléculas organizadas de uma maneira tão maravilhosa que os transformava em crianças capazes de brincar, rir, ganhar consciência – e me fazer amá-las. Se a ciência mostra que somos punhados de moléculas organizados de maneiras tão específicas que nos tornam capazes de nos apaixonar, querer o bem e até achar nossa existência um milagre, então ela só torna a vida ainda mais extraordinária. Moléculas não pensam – mas se de sua organização nasce a mente, então isso não é poesia pura? (ibidem, p. 190)

O mundo continua algo encantado, mas isso se explica através da ciência; é

assim que uma determinada organização de “moléculas” pode se tornar “poesia pura”.

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Ainda que vários dos temas abordados por Suzana se repitam em seu movimento por

diferentes veículos de comunicação, o formato sofre pequenas adaptações. Em um dos

capítulos do livro “Por que o bocejo é contagioso?”, a pergunta de partida é “por que

sofremos com filmes que sabemos ser de ficção?” (Herculano-Houzel, 2007, p.143-44).

A resposta nos remete ao que seria a “base fisiológica da empatia”. Segundo esta

tese, “observar ou mesmo imaginar uma pessoa em um certo estado emocional ativa

automaticamente a representação daquele estado no córtex insular anterior do

observador”, uma área que representa “a sensação subjetiva de dor”. Sem esse

mecanismo fisiológico de empatia, “o cinema não passaria de imagens coloridas se

mexendo na parede”. Ao ser adaptado para a televisão, o mesmo tema tem como ponto

de partida a emoção do público ao assistir novelas – não seria necessário sublinhar o

alcance que as novelas possuem no Brasil, um dos produtos mais importantes da

emissora que veicula o quadro Neurológica. Ficamos sabendo no quadro o porquê de

continuar assistindo a uma cena triste ou a filmes de terror, ainda que isso traga uma

sensação incômoda:

Por que, então, você não para de assistir esse sofrimento todo? Porque, ao mesmo tempo, outra porção do córtex da ínsula se ocupa das sensações do seu próprio corpo - e sabe que ele vai muito bem, obrigado, seguro e íntegro no escurinho do cinema ou no sofá da sua casa. Assim conseguimos ter empatia com os outros, na tela ou na vida real, e sentir o que eles estão sentindo, mas sem misturar as sensações dos personagens com as nossas. O resultado, quando as emoções dos outros nos afetam, é uma vida mais harmoniosa em sociedade. E também diversão garantida, quando a ínsula em nosso cérebro transforma a ficção em um pouquinho de realidade. (quadro Neurológica, veiculado no programa Fantástico em 13/09/2009)

A empatia não seria fruto de um processo subjetivo qualquer, mas sim um

reflexo automático do cérebro. Além de explicar a emoção frente à ficção como um

fenômeno biológico, o quadro vai mais longe e constrói uma ligação direta entre a

fisiologia cerebral e níveis de harmonia, coesão e solidariedade social, em um modelo

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de causa e consequência. Não só a saúde da sociedade é função da saúde dos cérebros

que a formam (cf. Taylor, 2008), mas também níveis de harmonia social estariam

determinados neurologicamente, dependentes do grau de empatia gerido por certas

partes do cérebro.

*

É possível que, no formato apresentado aqui, o determinismo neurológico que

ganhou espaço na mídia de massa soe como uma lógica todo-poderosa, que não

encontra aqui e ali focos de resistência. É fato que a divulgação de saberes médico-

científicos a respeito do funcionamento do cérebro está em franca expansão, e ocupa um

espaço dominante na criação de novas verdades sobre a ‘natureza humana’. Mas

hegemonia não é sinônimo de monólogo. No capítulo anterior, descrevi uma cena na

qual uma pintura coletiva no estande de divulgação de um medicamento em um

congresso médico recebe, com tom de pichação, uma intervenção com o texto “viva a

psicanálise”, numa clara manifestação que parece opor mente e cérebro, e diferentes

práticas de construção de si. Deparei-me com uma cena aparentada quando frequentei

um mini-curso intitulado “neurociência do cotidiano”, oferecido pela professora

Suzana-Herculano, em uma escola chamada POP (Pólo de pensamento contemporâneo),

no Rio de Janeiro. Um folheto publicitário da escola, que divulgava os cursos do mês,

foi-me entregue por um amigo que sabia de meu interesse no tema. Lá se explicava que

o curso tratará das aplicações à vida cotidiana das descobertas recentes da neurociência sobre o funcionamento do cérebro, abordando temas como a memória e o aprendizado, o sono e os sonhos, o prazer e o bem-estar, as vantagens do estresse agudo e as complicações do estresse crônico.

A primeira impressão é de uma casa transformada em espaço educativo. Os

cursos oferecidos, pelo seu preço – paguei R$300, cerca de U$160 –, são voltados para

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as camadas médias e altas da cidade, que podem arcar com estes custos e possuem

interesse nos temas abordados. Naquele momento, além do curso que eu freqüentaria,

no mesmo mês, os temas passavam por “economia ambiental”, “tropicalismo”, jazz,

oficina de roteiro e cinema, mas podem passar também por teatro, psicanálise e

filosofia.

Em quatro aulas, com cerca de duas horas cada, era oferecida uma síntese de

temáticas abordadas nos livros de divulgação que já haviam sido lançados, temperados

por dicas básicas de neurofisiologia. Como já disse, os assuntos se repetem entre livros

– que estariam à venda durante aulas seguintes –, o curso, colunas de jornal e o próprio

quadro na TV.

Em primeiro lugar, antes de começar a expor o conteúdo, Suzana perguntou qual

seria a área de atuação das pessoas que ali estavam. Imaginei que entre os alunos

haveria curiosos de vários tipos, mas esperava uma maioria ligada à área biomédica.

Não foi o caso. A sala destinada ao curso estava cheia, com 25 pessoas ao todo. Quando

Suzana começou a questionar sobre a atuação profissional da audiência, iniciando pela

área da saúde, três pessoas levantaram a mão, duas psicólogas e um terceiro cuja

especialidade me escapou. Havia também pessoas da ‘educação’, uma arquiteta,

aposentados e um rapaz na faixa dos 20 que depois me disse praticar esgrima e ter

recebido um diagnóstico de hiperatividade e transtorno de déficit de atenção (e por esta

ambiguidade entre esporte e diagnóstico, ele estaria interessado em entender melhor os

mecanismos do cérebro).

A primeira aula tinha como tema ‘a organização do comportamento’. Tivemos

ali uma introdução ao modus operandi do cérebro. Um dos temas era “a forma como o

cérebro aprende”. A professora fez conosco testes de memorização, que deveriam

mostrar os limites e o funcionamento de nossa memória; frente a uma lista de 10

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palavras, ditas por ela em voz alta, os de melhor performance lembravam entre 5 e 7

palavras, entre listas de cores ou conceitos, o que demonstraria estarmos todos limitados

a uma média comum.

Após estes testes, um homem presente, contando por volta dos 50 anos,

perguntou à professora sobre Freud e a ‘atenção flutuante’ do analista. Ela respondeu

com uma negativa simpática, simplesmente dizendo que esta ideia não fazia sentido

para a neurociência, para quem atenção estaria ligada a ‘foco’. Um pouco mais tarde,

este mesmo homem questionou a respeito de certas sensações (um dos temas da aula era

‘percepção’) e sentimentos que, segundo ele “emburrecem a gente, como o medo e a

neurose”. Mais uma vez ela disse que não, que na verdade se tratam de sensações

importantes, como veríamos durante o curso. O mais interessante foi a reação de um

outro aluno, que eu também situaria em seus 55-60 anos, que pediu ao primeiro que não

insistisse nessas temáticas, já que “isso aqui não é psicanálise, é neurociência”. O

primeiro argumenta que gostaria de ouvir o que a neurociência tem a dizer sobre a

psicanálise. O debate entre os dois não foi além, é verdade, mas saí dessa primeira aula

com uma sensação curiosa: na zona sul do Rio de Janeiro com uma assistência de classe

média-alta, alguém que fazia uso de um vocabulário psicanalítico viu-se fora de lugar,

silenciado. Também esta cena, como outras apresentadas no capítulo anterior,

mostravam uma tensão entre dois temas que foram objeto de ampla popularização em

momentos históricos diferentes: o discurso psicanalítico, cujas marcas de longo prazo

ainda reverberam, e o discurso da neurociência de caráter mais radicalmente fisicalista.

Este homem que falou em ‘neurose’ e ‘atenção flutuante’ não voltou para as aulas

seguintes. Tampouco o tema voltou à tona durante o resto do curso.

A divulgação neurocientífica do gênero aqui analisado confere uma atenção

especial – como já ficou claro – às curiosidades do cotidiano em sua relação com o

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funcionamento do cérebro. Dá-se mais atenção ao dia-a-dia e a um discurso ‘positivo’

sobre a saúde e a boa gestão do cérebro e do corpo, da que ao caráter ‘negativo’ das

doenças, abordados somente no sentido de técnicas sobre como evitá-las.

Na linha “Fique de bem com o seu cérebro”, a neurociência – ou ao menos uma

certa neurociência – avança sobre uma gestão da vida, sobre um bom gerenciamento do

cérebro, cuidados com a saúde cerebral e, como procurei demonstrar, sobre um discurso

a respeito dos mecanismos de prazer e felicidade. Trata-se de um conjunto de técnicas

de si, justamente intervindo sobre o órgão no qual se pretenda que este ‘si’ resida. No

limite, qualquer área do comportamento humano pode ser visada e adestrada por alguma

dica de gestão da neurociência. Estamos lidando, no caso da concepção de sujeito

desenhada pela neurociência com

um tipo de conhecimento que, estando na órbita da medicina e das ciências do comportamento, tem uma vocação “intervencionista” – isto é, um conhecimento que, para além de uma pura interpretação dos fatos, produz propostas de intervenção na vida das pessoas e das coletividades. (...) Neste sentido, poderíamos dizer que temos aí não apenas a produção de teorias sobre a pessoa, mas de verdadeiros modos de construção da pessoa. (Russo e Ponciano, 2002, p. 349)

Ocupando um espaço entre a divulgação científica e a auto-ajuda, o fato é que os

trabalhos de Suzana Herculano ganharam um espaço surpreendente na mídia, se

levarmos em conta a fama de que sempre gozaram as neurociências de um saber

altamente especializado, com um vocabulário esotérico a respeito de um órgão

misterioso, muitas vezes tratado como a grande caixa-preta do corpo humano. Uma

neurociência mais palatável e traduzida em termos acessíveis aos não-especialistas vem

se mostrando, além de um discurso poderoso, que encontra eco e campo fértil entre o

público leigo, um produto de sucesso no mercado editorial e na mídia em geral.

O lugar que o trabalho de Herculano-Houzel ocupa a transcende. Ele é espírito

do tempo, não por acaso iniciado em um período de entroncamento entre o que se

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anunciou e se anuncia como década e século do cérebro. A produção científica, assim

como a produção artística, é tanto fruto do esforço de quem a produz, como do tempo

no qual surge – e que gera as condições de possibilidade para que determinados pares de

perguntas e respostas sejam formuladas. O discurso produzido pela neurocientista cai

como uma luva sobre o que estou chamando de cerebralismo – nada mais do que um

fisicalismo exacerbado e com foco no cérebro como órgão central e hierarquicamente

superior em relação ao resto do corpo. Some-se o lugar social ocupado pelo cérebro na

cultura contemporânea como um órgão definidor do humano – o cérebro como pessoa –

com uma certa mística a respeito da complexidade do funcionamento deste órgão e

temos como resultado um espaço sob medida para diversos níveis de tradução entre um

saber altamente codificado e os circuitos leigos.

É a esta tarefa que a produção da autora se propõe: o de desmistificar os saberes

e descobertas neurocientíficas; mas, ao fazer isso ela justamente alimenta a mística em

torno do cérebro, da neurociência e de si mesma.

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Capítulo 4 - Fragmentos de um órgão midiático: o cérebro no jornalismo, na publicidade e no cinema

O que poderiam ter em comum o desfile da escola de samba carioca Porto da

Pedra em 2009, a campanha publicitária de uma universidade particular e o filme

Avatar? Este conjunto, que talvez não pudesse soar mais heterogêneo, compartilha a

presença de neurônios, sinapses e/ou neurocientistas em situações e representações

diversas. Segundo os críticos, a escola de samba não foi bem em seu desfile. O enredo

falava sobre a criatividade humana, a curiosidade que leva a novas invenções e

ressaltava a importância da educação para o futuro do país. A sua comissão de frente

teve destaque positivo, mesmo entre uma série de problemas; ela era composta por 15

homens que vestiam uma fantasia nas cores preta e prata, e se chamava “Os neurônios”.

A coreografia incluía momentos nos quais os membros se davam as mãos, formando

uma espécie de rede. Ao se tocarem, os neurônios abrem alas para o pensamento, e

assim – essa parece ser a mensagem da comissão – nasceria a criatividade, como

resultado direto de ‘conexões neurais’ entre estes corpos-células.

A lista no início do parágrafo anterior poderia ser mais extensa. O “dia do

canhoto”, que se comemora em 13 de agosto, e o início do horário de verão foram

motivos para entrevistas em jornais televisivos com especialistas no cérebro. Caberia a

um neurologista explicar, como questionou a apresentadora do jornal, “o que faz uma

pessoa ser canhoto, o que isso representa no cérebro, qual a mudança genética que faz a

pessoa ser canhoto?”.119 A reportagem ganha um tom jocoso, que termina em futebol,

devido a uma crença corrente nesse esporte de que os canhotos tendem a ser muito 119 Não voltarei ao tema, mas no primeiro capítulo comentei o texto de Hertz (1980[1909]), que

discute a possibilidade de questões simbólicas, religiosas e culturais serem também determinantes no que diz respeito à preeminência da desteridade. A reportagem/entrevista citada aconteceu no jornal Bom dia Rio, que vai ao ar pelas manhãs na Rede Globo de Televisão.

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habilidosos. A questão a se destacar é que os saberes científicos sobre o cérebro passam

a ser chamados a opinar sobre os mais diversos temas, em grandes reportagens ou em

aparições pontuais como estas.

A tarefa deste capítulo final é destacar o caráter midiático do cérebro em suas

inúmeras manifestações, a partir de exemplos etnográficos, cuja fonte são veículos de

comunicação de massa, como revistas e jornais, além de peças publicitárias e do

cinema. Trata-se de uma presença de tal modo abrangente que qualquer pretensão a dar

conta do fenômeno como um todo seria frustrada; por isso sublinharia a exemplaridade

dos dados etnográficos selecionados entre um mar de outras possibilidades.

O texto é composto por fragmentos etnográficos que podem parecer, em um

primeiro momento, distantes entre si, mas que, assim pretendo, compõem o pano de

fundo que justifica falar-se em um traço neurocêntrico da cultura ocidental

contemporânea e também permite estabelecer pontes entre o que se diz sobre o cérebro

e valores mais amplos relacionados a uma certa noção de pessoa. Se abrirmos o ângulo

da lente com a qual miramos, percebe-se que dados em princípio isolados estão,

também eles, conectados, formando uma grande rede. Assim, o que pode parecer um

mero conjunto de artefatos isolados em circulação entre uma cultura leiga mostra-se um

produto social, que reflete e afeta o ethos cultural (cf. Nelkin e Lindee, 1995, p. ix).

Minha aposta é a de que tais fragmentos podem ser dados etnográficos tão

importantes quanto qualquer levantamento mais sistemático, desde que fique claro o

que possuem em comum e a razão pela qual este formato se impôs à coleta de dados

para a pesquisa. Em nenhum momento me propus a um levantamento limitado a

somente uma publicação ou a um determinado período de tempo. A extensão de um

cerebralismo e a recente ampliação da autoridade da neurociência, como um discurso

autorizado a explicar o comportamento humano em suas mais diversas faces,

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impuseram outra postura etnográfica, na qual era necessário manter um radar atento em

relação a reportagens, entrevistas, publicidade e filmes diversos que lançassem mão, em

sentido amplo, do cérebro. Muitos dados foram ativamente procurados por mim,

enquanto outros me caíam nas mãos no que parecia ser obra do acaso. Mas não acredito

ser o ‘acaso’ uma boa explicação para o conjunto de dados que fazem referência – direta

ou mais tangencialmente – ao cérebro humano, às suas partes ou aos seus especialistas.

Estes ‘personagens’ fazem hoje parte da cosmologia espontânea que atravessa uma certa

visão de mundo, o que se reflete na comunicação de massa. O que soa casual, frente a

tantas repetições, aproxima-se mais de uma regra do que de uma exceção.

Uma coleta não sistemática, neste caso, fala sobre a natureza do objeto de

análise. É claro que este formato está relacionado ao meu recorte etnográfico. Tivesse

escolhido trabalhar com artigos publicados nos periódicos científicos de neurociências,

apenas para citar um exemplo, e os caminhos seriam, obviamente, outros. Mas a opção

de trabalhar com a difusão dos saberes da neurociência em um sentido amplo, o que

inclui as representações do cérebro e neurônios na mídia, levou-me a uma etnografia

mais irregular em seus contornos. Eu estava sempre em busca dessas ‘aparições’ do

cérebro e, ainda assim, elas surgiam em momentos e formatos inesperados. Mas

também esta característica fala da ampliação de um discurso cerebralista, como veremos

mais adiante, já que nem sempre ele está em destaque nas manchetes de uma

reportagem, mas sim como um argumento de sustentação, que demonstra através de

uma ‘verdade científica’ algum ponto relacionado ao tema abordado. Por vezes eu

estava munido de meu diário, em uma situação premeditada de trabalho de campo; em

outras, era pego de surpresa em um momento de lazer ou descanso. Alguns dados eram

encontrados através de movimentos conscientes; outros caíam em minhas mãos em

alguma leitura casual ou presenteados por amigos que sabiam do meu interesse pelo

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tema.

4.1 Notícias do cérebro

Com o tempo, comecei a perceber que qualquer reportagem sobre

comportamento humano em uma revista semanal de grande tiragem – como Veja,

Época ou Isto É – poderia trazer alguma menção ao cérebro, o mesmo valendo para os

jornais diários, especialmente aqueles que dão destaque à divulgação de descobertas

científicas, com páginas específicas sobre o tema, caso, por exemplo, de O Globo e do

jornal Folha de São Paulo. Ainda assim, não cessava de me surpreender com a

freqüência dessas aparições, especialmente aquelas menos antecipáveis, que não

estavam previstas em letras grandes nas manchetes, quando o assunto abordado é de

fato o cérebro, seu funcionamento e suas doenças, ou alguma nova descoberta da

neurociência.

Em corpo de texto, bem mais discreto, as explicações que remetem ao cérebro já

têm um formato de “caixa preta” (cf. Latour, 2000), já é um dado da ‘natureza humana’

que apenas ajuda a ilustrar ou reforçar os mais variados argumentos. Um exemplo,

tomado a partir de um evento trágico, ajuda-me a explicar este mecanismo. Em junho de

2009, um voo da Air France que fazia a rota Rio de Janeiro-Paris caiu no Atlântico,

ceifando a vida de todos a bordo. Houve extensa cobertura pelos veículos de

comunicação, inclusive uma matéria de capa Revista Veja, que falava sobre estatística

de segurança no espaço aéreo, como era a vida de alguns daqueles passageiros, entre

outras questões. A reportagem informa que 13 milhões de pessoas voam por dia, e os

números mostrariam que é mais fácil morrer em decorrência da picada de uma abelha

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do que em um desastre aéreo. Mas, explica a revista,

Ocorre que a dor e o medo são processados em áreas do cérebro bem distantes daquelas que analisam os números. E, mesmo informados de que o acidente do vôo AF 447 é o primeiro naquela rota em sessenta anos, os passageiros continuarão tendo medo de voar, a estremecer de pavor durante as turbulências...120

Durante a reportagem, o tema não será mais abordado através deste prisma

cerebral. Não há qualquer outra menção a localizacionismos como este, e não se lança

mão de qualquer argumento – neuroimagem, ou alguma entrevista com um especialista

– para sustentar o que foi dito. Com isso não quero dizer que o cérebro cai de

‘paraquedas’ na reportagem, mas sim que uma afirmação dessa natureza pode ser

lançada como fato, sem maiores justificativas. O tema é uma tragédia aérea; a menção

ao cérebro é um coadjuvante para explicar um medo que não se justifica

matematicamente. Não estivesse interessado especialmente nestas menções ao cérebro

na mídia, teria passado por estas linhas da mesma forma como por outros parágrafos

apresentados na reportagem.

A propósito de uma reportagem sobre o Kindle, em outra edição da revista

Veja121, um leitor de livros digitais lançado pela empresa Amazon em 2007, o cérebro se

faz presente mais uma vez. Discute-se em duas páginas se a leitura neste formato é

confortável, o volume de livros disponíveis, como ter acesso ao dispositivo e às obras, o

seu preço e capacidade de armazenamento. Ao final da matéria de duas páginas, uma

entrevista com Maryanne Wolf, apresentada como “uma das maiores especialistas na

área da neurociência que estuda os efeitos da leitura no cérebro”, tem quase o mesmo

tamanho do restante do texto. Vemos aqui se repetirem algumas das estruturas já

indicadas em capítulos anteriores. Uma delas é a proximidade entre afirmações mais ou

120 Veja, edição 2.116, ano 42, n.23, 10/06/2009, na reportagem “A dor, o medo... e os

números”, p. 76-88. 121 Veja, edição 2.139, 18/11/2009, caderno especial sobre tecnologia, p.178-79.

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menos taxativas e declarações que mostram ainda não haver comprovação dos dados;

isso ocorre quando a revista questiona a neurocientista a respeito de suas pesquisas, que

demonstram haver diferenças entre a leitura de um livro em formato digital e no papel:

A observação sistemática mostra que, com o e-book, as pessoas tendem a acelerar o ritmo de leitura e absorver menos conteúdo. Isso porque a tela remete à ideia de que é preciso vencer etapas a cada instante, antes que a bateria termine ou que se perca a conexão. Ainda faltam, no entanto, evidências baseadas na neurociência, como as que já existem sobre a internet.

O discurso da neurocientista aponta para uma possibilidade de dados científicos

futuros, mas “ainda” não existentes. Se eles existem para o caso da relação entre

cérebro, indivíduo e internet, não haveria por que não imaginar que dados possam ser

aferidos na mesma linha no que diz respeito à leitura no Kindle. Em perguntas

seguintes, a neurocientista destaca os valores do treino e do melhoramento contínuo

expressos na dinâmica de plasticidade cerebral.

Veja: O que já se sabe sobre a leitura na rede? Maryanne Wolf (MW): Ela é mais superficial, segundo revelam as imagens dos neurônios quando alguém está diante do computador. As fotos mostram, com nitidez, que o circuito formado entre as áreas do cérebro envolvidas na leitura não chega, nesse caso, àquela região em que ela seria processada de maneira mais analítica. Veja: Por que isso acontece? MW: A internet provê um excesso de estímulos que acabam atrapalhando. Enquanto você lê Shakespeare, não param de aparecer na tela pop-ups e e-mails. É naturalmente difícil manter a concentração e fazer uma leitura de padrão mais elevado, que abra espaço para um alto grau de processamento de ideias. A habilidade para ler deve ser treinada. Veja: Como, exatamente? MW: Simples: lendo todo dia. Não existe no cérebro nada como uma estrutura previamente concebida para a leitura – é preciso construí-la e aprimorá-la. Funciona como no esporte: quanto mais se pratica, melhor é o resultado. Veja: Como a neurociência explica a formação de tal estrutura no cérebro? MW: A repetição da leitura faz o cérebro desenvolver um circuito que passa a conectar, em questão de milésimos de segundo, três áreas distintas: a da visão, a da linguagem e uma que se encarrega de dar

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sentido às palavras. Esse mesmo roteiro pode levar até 100 vezes mais tempo, caso a pessoa não tenha o hábito de ler. Seu cérebro fica tomado com a tarefa básica de decodificar o texto – e não consegue ir muito além disso.

As imagens do cérebro em funcionamento produzidas por meio de máquinas em

laboratórios são retratadas pela neurocientista como uma ‘foto nítida’, o que transmite a

ideia de imagens que falam por si e retratam uma realidade auto-evidente, quase como

se não precisasse ser interpretada. Seria possível, então, ver no cérebro os efeitos dos

diferentes tipos de leitura, assim como se pode ver o medo acontecendo, no caso da

reportagem anterior. Os temas são o medo de avião e a leitura em um novo aparato

tecnológico; de diferentes formas, saberes sobre o cérebro são lançados para explicar a

natureza destes fenômenos e sensações.

Algo semelhante se passa em reportagens sobre vários outros assuntos. Em um

texto sobre a respiração, indica-se respirar de forma lenta e profunda, porque assim se

reduz (...) a atividade da amígdala, estrutura no cérebro que comanda as reações a situações de perigo e stress. Quando acionada, a amígdala desencadeia um sistema de defesa que se traduz em sintomas como taquicardia, sudorese e sensação de falta de ar. Ao se alterar o ritmo da respiração, envia-se uma mensagem tranquilizadora ao cérebro, contribuindo para o restabelecimento do equilíbrio.122

Como afirmei anteriormente, vai se estabelecendo uma higiene cotidiana de

cuidados com o cérebro que passam por cuidados com o corpo. Assim como uma

respiração mais lenta, certos alimentos são indicados para preservar a saúde deste órgão.

Dicas de comportamento, que incluem novas posturas tanto físicas quanto morais,

acumulam-se, dando forma a uma pedagogia cerebral cotidiana, um conjunto de

cuidados e atitudes quanto à gestão do cérebro que podem garantir mais saúde e

produtividade a esse órgão, pelos quais o indivíduo é responsável. Em uma reportagem

122 Revista Veja, ano 42, n.49, na reportagem “Pausa para respirar”, p.182-190.

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de capa sobre a importância da alimentação para manter uma boa saúde, a revista Época

correlaciona uma lista de alimentos com quatro itens para os quais eles podem ou não

ser indicados: prevenir o câncer, proteger o coração, proteger o cérebro e fortalecer a

imunidade.123 O único item para o qual todos os alimentos apresentados seriam

benéficos é justamente a “proteção do cérebro”; para ela concorrem, por diferentes

motivos, grupos de alimentos cujos representantes principais na matéria são alho,

castanha-do-pará, brócolis, cúrcuma, amora, laranja e sardinha.

Tão comuns quanto as reportagens sobre temas diversos que trazem, de alguma

forma, o cérebro como um coadjuvante são aquelas nas quais ele é a manchete. Mais

uma vez, os exemplos e entradas poderiam se multiplicar, e multiplicam-se a cada

semana, inclusive enquanto esta tese é finalizada. Neste sentido, o trabalho de campo

nunca acabou. Em um dos exemplos mais recentes, a revista Veja traz em sua capa o

rosto de um homem jovem, com uma ‘entrada’ em sua testa para um pen-drive. A

manchete anuncia, em um formato que mostrarei ser comum, que foram descobertos

“Os segredos da memória: a ciência desvenda os mecanismo do cérebro que nos fazem

lembrar ou esquecer”124. A ideia da memória como um “mecanismo do cérebro” permite

antever um quadro semelhante ao apresentado em filmes como Brilho eterno de uma

mente sem lembrança, citado anteriormente, no qual uma empresa presta serviços para

apagar lembranças indesejáveis de seus clientes. A ciência, afirma-se na reportagem,

“vem avançando no conhecimento dos mecanismos da memória e de como fazer para

preservá-la. Pesquisas recentes permitem vislumbrar o dia em que será uma realidade a

manipulação da memória humana”, o que já estaria sendo testado em animais.

Assim como a memória, o prazer estético e a inteligência são temas de outras

123 Revista Época, n.574, na reportagem “Comer bem para viver melhor”, p.72-80. 124 Revista Veja, edição 2.147, ano 43, n.2, 13/01/2010. Esta chamada de capa refere-se a uma

reportagem interna chamada “A conquista da memória”.

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reportagens de capa em revistas semanais, com uma apresentação semelhante. Em uma

delas, se anuncia na capa “como o cérebro processa as emoções, o prazer estético e a

linguagem”, sob a manchete central “A mente e o espírito”. Esta manchete será

modificada na parte interna da revista em que se encontra a matéria, agora como uma

afirmação em formato não dualista, mas monista: “O cérebro é o espírito”. Em destaque,

apresenta-se uma síntese que repete temas recorrentes em material de divulgação

científica:

A nossa cultura fala do cérebro como se fosse um computador. Ele é a sede da razão, e a arte é reservada ao espírito. Mas agora a neurociência estuda a música e outras atividades que definem a essência humana. (...) Por vários séculos, o cérebro foi considerado sobretudo a sede da razão. Mas os avanços recentes da neurociência abriram uma porta para que se investiguem estados subjetivos. Novas pesquisas vasculham o cérebro para compreender a arte e até os sentimentos religiosos.

Uma ilustração interna mostra duas cabeças lado a lado: na primeira, estão

engrenagens, a fórmula da energia, um relógio, números em sequência e um código de

barras; na segunda, um instrumento musical, um crucifixo, um livro e material de

pintura. Aí está uma ilustração da pretensão bilíngue da neurociência, como afirma

Greenfield (op. cit.). Na reportagem, destaca-se uma crítica ao localizacionismo

conforme preconizado nos séculos XVIII e XIX, em nome da hipótese de “cascatas

neurais”, a ideia de que várias áreas, por vezes distantes entre si, estão envolvidas em

atos complexos como a fala.

“O cérebro – assim começa a matéria – nunca recebeu o devido crédito pelas

criações artísticas. Aplicado à pintura ou à música, o adjetivo ‘cerebral’ tem inclusive

conotações negativas. Implica frieza ou cálculo – como se o mesmo órgão não fosse

responsável por processar as emoções”. Por certo, neste aspecto, cérebro e coração

ainda parecem manter uma instável diarquia enquanto órgãos responsáveis, nesta

ordem, pela razão e pela emoção. Trata-se de uma representação poderosa, que não

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parece abandonar nossa visão de mundo mesmo frente aos esforços da neurociência

para demonstrar que ambos são gerados no cérebro. O termo ‘cerebral’ ainda guarda

uma conotação específica, que por vezes não inclui as emoções ou as improvisações,

como podemos ver em dois exemplos. Um deles encontrei em uma, por assim dizer,

‘fonte interna’, já que é produção de uma antropóloga e diz respeito a um antropólogo.

Por ocasião do falecimento de Lévi-Strauss, Manuela Carneiro da Cunha publicou um

texto no jornal Folha de São Paulo no qual afirma:

Descrito como cerebral por quem não vê mais longe do que o próprio nariz, ao contrário, Lévi-Strauss tinha uma sensibilidade rara para o mundo material. As descrições que faz em Tristes Trópicos [Cia. das Letras], a minúcia com que conhece bichos, plantas e constelações e os faz figurar nas suas análises de mitologia, sua recuperação da lógica do sensível no livro O Pensamento Selvagem [Papirus], tudo isso atesta, para quem o sabe ler, a convergência rara da inteligência e da sensibilidade.125

Em outro tom, um artigo na revista Piauí define assim as inovações do trompetista

Miles Davis em um de seus discos mais importantes:

Se hoje Birth of the Cool é item obrigatório em qualquer discoteca jazzística, é porque suas faixas condensaram inovações que vinham sendo observadas isoladamente – como o uso de tuba e trompa no jazz, a execução mais cerebral em contraposição ao jorro intuitivo do bebop, a elegância contida dos arranjos, não exatamente frios como a palavra “cool” pode dar a entender, mas nunca atingindo altas temperaturas. 126

No primeiro exemplo, ser “cerebral” é um atributo negativo quando comparado

a uma convergência entre inteligência e sensibilidade. No segundo, uma performance

musical mais “cerebral” recebe sinal positivo, em contraste ao “jorro intuitivo” de uma

tendência anterior. De uma forma ou de outra, lá está um contraponto entre, por um

lado, razão e inteligência, e, por outro, intuição e sensibilidade. Como afirmou Martin

125 Manuela Carneiro da Cunha, em texto especial para a Folha de S. Paulo, publicado em

8/11/2009, intitulado “Grande homem, grande pensador”. 126 Revista Piauí, n.30, março de 2009, no artigo “Milhas à frente”.

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(2000), uma visão de mundo não se modifica somente porque uma batalha parece ter

sido ganha no campo científico.

A presença do cérebro em veículos de comunicação dá-se muitas vezes

acompanhada por imagens produzidas por equipamentos de ressonância magnética ou

tomografia computadorizada, trazendo resultados de pesquisas diversas.127 Estas

imagens, via de regra, mostram diferenças entre cérebros, argumentando que se trata de

uma expressão de diferenças entre tipos de pessoas (cf. Dumit, 2004). Algumas destas

pesquisas são amplamente divulgadas na mídia. Uma delas tem como chamada

principal uma frase que sintetiza bem a pretensão destas imagens coloridas do cérebro

que equivalem a certos tipos de comportamentos: “A diferença se vê no cérebro”128. Sob

esta chamada, anuncia-se uma pesquisa que teria “descoberto que os homossexuais são

mais parecidos com pessoas do sexo oposto”, justificando biologicamente, ou, mais

especificamente, neurologicamente, a orientação sexual. As imagens ‘mostram’,

traduzidas por legendas, que “nos homens homossexuais e nas mulheres heterossexuais,

há mais atividade dos neurônios na amígdala esquerda”, e menos atividade nesta mesma

área em seus ‘opostos’ em termos de orientação sexual.

Alguns temas abordados neste formato mereceriam, apenas para a sua discussão,

toda uma tese. Estão sendo “mapeadas” em pesquisas que envolvem técnicas de

neuroimagem as áreas do cérebro ativadas no momento da compra, da paixão amorosa,

da experiência religiosa e diferenças que estariam na base de doenças como a depressão

– no caso desta última, a sua origem física no cérebro tem sido especialmente objeto de

divulgação pela mídia de massa.

Concluo esta sessão afirmando, mais uma vez, os seus limites. Um levantamento

127 Não pretendo me estender sobre este tema, que foi amplamente analisado por Joseph Dumit

(2004). 128 Revista Veja, ano 41, n.25, 25/06/08, p.168-69.

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exaustivo na mídia poderia renovar, a cada mês, o volume de exemplos citados aqui.

Minha pretensão é tão somente mostrar o potencial midiático do cérebro.

4.2 O cerebralismo em peças publicitárias

Algumas peças publicitárias também fazem parte do que se apresenta aqui como

um traço ‘cerebralista’ da cultura ocidental contemporânea. Entre o material de campo,

acumulei anúncios de jornal e revista, comerciais de televisão e páginas da internet nas

quais o cérebro, neurônios e mesmo um neurocientista são as estrelas de material

publicitário. Também nesta linguagem se reproduzem certas concepções de pessoa que

têm no cérebro um órgão crucial, ainda que seja importante levar em conta as nuanças

apresentadas, conforme os produtos ou ideias que estão sendo divulgadas. Com isso

quero dizer que tais mensagens se aproximam, em graus diferentes, de uma concepção

fisicalista de pessoa, podendo oferecer um contraponto ao discurso científico que, por

exemplo, situa a mente no cérebro ou, pelo contrário, celebrá-lo. De qualquer forma, em

sendo um tema que passa a fazer parte mais frequente e importante em nossas

referências culturais, alimentado por uma difusão abrangente do discurso

neurocientífico, estes ‘neuropersonagens’ tornam-se um símbolo de forte apelo em

mensagens da publicidade, que constituem um importante veículo de circulação de

ideias e valores.

Também através desta linguagem ocorre uma difusão do conhecimento

científico, em uma versão adaptada ao contexto, obviamente simplificado, mas

veiculado em um formato sedutor, como cabe a uma mensagem publicitária. Por outro

lado, como já procurei demonstrar, não se trata de uma especificidade contemporânea a

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divulgação de ideias da ciência sobre o cérebro e a sua circulação entre o público leigo.

Atento a isso, Dumit lembra que “None of us really come as strangers to the brain, since

the foundational metaphors of brain science pervade popular culture, and have for some

time” (Star, 1992, p. 205 apud Dumit, 2004, p. 141). A publicidade não cria relações

com o cérebro a partir do nada; nestas mensagens, cristalizam-se noções que já circulam

entre o público amplo, apenas organizadas e repaginadas em mensagens cujo objetivo é

vender um produto ou divulgar uma ideia. A presença deste órgão, seja em qual

apresentação se der, em veiculações rápidas e sedutoras, como é o caso da dinâmica do

discurso publicitário, demonstra que a sua identificação pelo possível consumidor é

fácil e direta. Fosse o cérebro um estranho ao público leigo, ele sequer seria utilizado

em mensagens desse gênero.

Os formatos e as razões para esta presença são vários, assim como os produtos e

ideias às quais estão relacionados. Em um caso, incita-se em um sítio na internet ao

consumo de um conjunto de produtos relacionados ao cérebro, como alimentos e jogos;

em outros, a figura de um cérebro animado ou a presença de um neurocientista podem

funcionar como garotos-propaganda para divulgar produtos não diretamente

relacionados ao bem-estar deste órgão, mas por representar um discurso de autoridade;

ainda em outro registro, neurônios ‘preguiçosos’ podem ajudar a divulgar uma

faculdade, e uma rede neural pode ser apresentada em um contexto no qual se valoriza

uma concepção de pessoa que nega uma determinação neurológica para a relação entre

o sujeito e o seu próprio corpo.

Apresentei no capítulo anterior uma peça de teatro infantil na qual atores davam

voz e movimento a neurônios. Em um comercial de televisão da Coca-Cola Zero, um

produto mais recente da mundialmente conhecida linha de refrigerantes, é o cérebro ele

mesmo quem ganha vida e pode se manifestar. Trata-se de um comercial de veiculação

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mundial, adaptado para o Brasil por uma agência de propaganda que atua no país.

No comercial, uma língua e um olho discutem a respeito do novo sabor desta

nova variedade do refrigerante, mas parecem não chegar a um acordo a respeito das

propriedades do produto. O olho, que diz “saber ler”, afirma se tratar de uma “coca-cola

zero” a garrafa do produto em sua frente; duas línguas retrucam que o sabor “é de coca-

cola”. Obviamente, trata-se de uma estratégia para divulgar a ideia de que esta versão do

refrigerante não difere em sabor do seu original. Os olhos veriam uma diferença no

rótulo que o paladar não pode acusar. Interrompendo este breve debate, entra em cena

então um cérebro, que apresenta uma face humana, com olhos, boca e mesmo pequenos

braços, com movimentos arrastados e um ar entre o ameaçador e o professoral, com um

tom de voz grave, reclamando: “Vocês estão me dando dor de cabeça. Se vocês não se

entenderem, você vai lamber sabão e você descascar cebola. É o sabor de Coca-Cola

com zero açúcar. Fui claro, inúteis?”. Aparentando uma certa vergonha, olho e língua

viram-se de costas, cabisbaixos. Em sua conclusão a respeito do novo produto, que

fecha a discussão, o cérebro desautoriza os órgãos que discutiam, mas sem desmentir as

conclusões às quais eles chegaram, em separado, a respeito do rótulo com um novo

nome, e do paladar com, supostamente, o sabor de sempre. Em um nível hierárquico

superior, o cérebro ‘recebe’ as duas percepções e as organiza. O que se mostra aqui é

um regime de autoridade do cérebro sobre os sentidos, uma hierarquia em termos de

quem, no limite, pode definir com maior precisão no que consiste uma determinada

experiência sensória.129

O formato apresentado acima está longe de ser uma representação unívoca do

cérebro na publicidade. Em outra situação, a autoridade da rede neural como um

determinante do que se passa no organismo é justamente contestada. É o caso de um

129 O comercial da Coca-Cola zero está disponível na internet em

http://www.youtube.com/watch?v=nk7fWDLkIRc

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comercial institucional de televisão da Associação Desportiva para Deficientes, que

inicia com uma animação do que seria o ambiente interno do cérebro, mostrando um

espaço onde se conectam os neurônios. A câmera passeia por neurônios que se

comunicam, o que é representado por uma espécie de brilho ou luz que vai atravessando

o corpo das células, seus dendritos e axônios. Enquanto isso, o áudio apresenta ruídos

que lembram pequenas descargas elétricas, enquanto ouvimos uma locução em off:

A ciência diz que o cérebro humano tem 100 bilhões de neurônios. A ciência diz que os neurônios são as células responsáveis pela condução dos impulsos nervosos. A ciência diz que os impulsos nervosos têm a função de transmitir estímulos para os músculos. A ciência diz que os músculos devem obedecer às ordens dos neurônios. Mas o que a ciência diz, os meus 100 bilhões de neurônios fazem questão de ignorar. Porque para mim o que move uma pessoa não são os músculos... [uma pequena pausa] é a força do pensamento.

A partir desta última frase, saímos do ‘ambiente cerebral’ e o comercial mostra

um atleta deficiente em uma cadeira de rodas. Neste caso, o que se destaca é a

incapacidade de comunicação entre cérebro e músculos – neste caso, as pernas –, tendo

como contraponto “a força do pensamento” como um equivalente da força de vontade

do indivíduo que supera uma situação adversa. “Força do pensamento” não seria o fluxo

de informação entre o cérebro e uma determinada parte do corpo, ali de fato

interrompida, mas sim a capacidade de superação de um indivíduo fisicamente

desafiado. Note-se ainda que, nesta representação muito peculiar das relações entre

cérebro, corpo e capacidade individual, diz-se que aquilo que “a ciência diz os meus 100

bilhões de neurônios fazem questão de ignorar”. O conjunto de células responde por um

‘eu’ nesta frase, o que sugere a noção do cérebro como pessoa. Mas, ao mesmo tempo,

constrói-se a ideia de uma polaridade entre aquilo que diz “a ciência” e as capacidades

específicas do indivíduo para superar a deficiência. Na estrutura discursiva aqui

montada, “força do pensamento” não seria um sinônimo da atividade das moléculas ou

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neurônios, mas sim algo que diz respeito a uma dimensão subjetiva representada pela

ideia de “pensamento”, o que me parece como uma nuance complexa da determinação

fisiológica entre cérebro e corpo.130

Mas o comercial da Associação Desportiva para Deficientes, em sua

apresentação nuançada desta determinação direta, está mais próximo de uma exceção do

que da regra. Em outra campanha publicitária, reforça-se mais uma vez uma

equivalência entre indivíduo e neurônio, através de uma personalização da unidade

fundamental do sistema nervoso. É com humor e com o cérebro que uma faculdade

particular construiu uma campanha publicitária divulgando o seu processo de seleção.

Um anúncio de jornal mostra um homem relativamente gordo, com a barba por fazer,

deitado em um sofá, bocejando, com um controle remoto nas mãos, como se estivesse

assistindo à televisão. Ele veste uma espécie de pijama branco em duas peças, que

recobre todo o corpo, deixando de fora somente a cabeça e as mãos. Na parte superior

da roupa, na altura do peito, lê-se a palavra “neurônio”, numa clara alusão à ideia de que

se trataria de um neurônio preguiçoso. Atrás do sofá, há duas frases emolduradas, como

se fossem quadros na parede, com os dizeres “O ensino é de qualidade, a infraestrutura

é completa e a mensalidade cabe no bolso”, e ao lado “Está esperando o que para

colocar esses neurônios para trabalhar?”.

Na mesma campanha, um comercial de televisão faz uma paródia do filme

Rocky, um lutador, especialmente de uma conhecida cena na qual o personagem central,

interpretado por Sylvester Stallone, aparece treinando para uma luta, em uma sequência

de grande esforço físico, que culmina na subida de uma escada. Desta vez, trata-se de

um ‘neurônio’, no mesmo formato sugerido pelo anúncio descrito acima: um homem

todo vestido de branco, desta vez mais magro, carrega no peito a palavra ‘neurônio’, a

130 Também este comercial pode ser visto na internet em

http://www.youtube.com/watch?v=e7_5tqOHMxY

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única coisa que o identifica enquanto tal. Finda a sequência de imagens de esforço

físico, uma voz em off afirma que “Está na hora de colocar esses neurônios pra

trabalhar”, e anuncia o vestibular da universidade.131

Trata-se de mais um caso no qual a unidade funcional do cérebro é singularizada

e antropomorfizada; além disso, ao neurônio se atribui características morais: ele pode

ser preguiçoso, algo descuidado e obeso (a gordura corporal aqui está atravessada pelo

sinal negativo que a marca, ao menos entre as classes médias), ou levantar-se desta

letargia, neste caso muito mais magro, estudar e ‘trabalhar’. Vale para o neurônio o que

vale para o público-alvo da faculdade.

Esta campanha da faculdade Unisuam atravessou o meu caminho mais uma vez,

em uma ação de marketing que estava sendo conduzida como parte deste esforço de

divulgação. Um grupo de promotores entrou em um bar onde eu estava e abordou a

mesa ocupada por mim e alguns amigos. Eles vestiam uma camiseta com a palavra

“neurônio”, o que, por motivos óbvios, me interessou. O grupo de promotores propôs

que um de nós participasse de um quiz, o que eu aceitei prontamente; se a pergunta feita

por eles fosse respondida corretamente, eu ganharia uma camiseta semelhante à que eles

vestiam. A questão era simples, e eu voltei para casa com um souvenir deste inesperado

momento de trabalho de campo. A brincadeira, assim como a campanha, está baseada

na ideia de que o neurônio seria a sede da inteligência, ou, eventualmente, seria uma

‘célula preguiçosa’; e, é claro, está baseada em uma identificação entre neurônio e

pessoa.

Assim como um cérebro animado e um neurônio preguiçoso (ou esforçado)

podem virar tema de campanhas publicitárias, um conhecido neurocientista pode virar

garoto-propaganda, o que por certo sinaliza o espaço midiático que vem sendo

131 Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=m5HpWWqGWQo

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conquistado por alguns profissionais da área. Entre os comerciais que compunham uma

campanha do sistema de telefonia Nextel, um deles trazia o neurocientista Miguel

Nicolelis, cujas pesquisas a respeito de possíveis interfaces entre cérebro máquina vêm

ganhando grande notoriedade, a ponto do cientista ser cotado para receber o prêmio

Nobel e escolhido para estrelar uma campanha publicitária. Nicolelis foi considerado

pela revista Época um dos 100 brasileiros mais influentes do ano de 2009, e vem

frequentando capas de publicações voltadas ao público amplo, como a própria Época e a

Caros Amigos.

No comercial, ele aparece caminhando em uma espécie de cânion. Frente a uma

câmera, que ele inclusive ajusta em um certo momento, manipulando o foco, ele diz:

“Minha avó me dizia: nunca desista, transforme os seus sonhos em vôos, como Santos

Dumont. Infelizmente, pra voar na ciência, eu tive que voar pra longe do Brasil, mas fiz

descobertas que podem fazer um dia uma pessoa voltar a andar ou tratar o mal de

Parkinson. Falta agora usar a ciência para transformar a realidade social do meu país.

Vó, estou voando; desistir...” e o neurocientista faz sinal negativo com a cabeça.132 Em

off, ele continua a sua fala, dizendo “essa é a minha vida, esse é meu clube”, seguido

por uma locução complementar do anunciante, que afirma “Nextel é inteligente,

ilimitado e pode ser pra você”, enquanto se lê na tela “Nextel, bem-vindo ao clube”.

O caráter inovador das pesquisas encabeçadas por Nicolelis é relacionado à

tecnologia de comunicação que ele está representando na peça publicitária. Para além de

questões de conteúdo, o fato mesmo de um neurocientista estrelar uma campanha

publicitária já é sintomático do lugar social ocupado por este discurso científico

específico. Nicolelis empresta o prestígio da sua imagem a uma empresa de telefonia; na

direção contrária, pode-se imaginar que isso consiste em uma valorização do próprio

132 Em uma entrevista concedida a revista Caros Amigos, Nicolelis afirma ser a avó uma

inspiradora intelectual.

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trabalho científico, como comentou a neurocientista Suzana Herculano em seu blog:

“Isso é que é valorização da neurociência: Miguel Nicolelis estrela o novo anúncio da

Nextel, dizendo um texto simpático sobre a sua avó a respeito de seguir seus sonhos”133.

De uma forma bastante casual, acabei encontrando na internet uma rede de

produtos relacionados a uma proposta de gestão do cérebro. Neste caso, não se trata do

uso do cérebro ou neurônios como motivos que animam uma mensagem comercial, mas

do consumo de produtos ‘para o cérebro’. No dia 19 de outubro de 2008, acessei o sítio

da Amazon em busca de informações a respeito de um livro que me interessava. Talvez

devido aos meus constantes acessos neste sítio fazendo uso de palavras-chave como

‘cérebro’ e ‘neurociência’, surgiu na tela uma publicidade com o seguinte texto: “Quer

dicas sobre como manter o seu cérebro em forma? Visite a academia do cérebro”.134

Uma ilustração mostrava um senhor com aspecto de cientista ou professor, com cabelos

brancos, óculos e jaleco apontando para as palavras “brain gym” (ginásio ou academia

do cérebro). O link disponível nestas palavras me levava à publicidade de uma barra de

cereal da empresa Kellogg, chamada “Live Bright” (viva com brilho), uma “brain health

bar” (barra de saúde do cérebro), “uma maneira gostosa de ajudar o seu cérebro a se

manter em forma”. Incentivando o consumo do produto da Kellogg, um texto

questionava, mas quase soando como uma afirmação,

Quem não quer um pouco mais de força cerebral? Ajude a manter o seu cérebro em forma com livros, palavras-cruzadas, estimulantes cerebrais (brain teasers), e, claro, nutrição apropriada. As barras Live Bright™ da Kelloggs™ são um ótimo início. Cada barrinha contém 100 mg de DHA Omega-3, um nutrient importante que ajuda no apoio à saúde do cérebro.

133 A fonte pode ser encontrada pela ligação

http://www.suzanaherculanohouzel.com/journal/2009/9/10/neurocientista-agora-e-garoto-propaganda.html

134 Fui levado então à seguinte url: http://www.amazon.com/gp/feature.html?ie=UTF8&docId=1000256971&ref=dsp_adv_206888875_28318173)

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Mas o que considerei mais interessante é que esta nova página, também do site

amazon.com, além da publicidade do produto da Kellogg’s, trazia novos links. A página

era patrocinada pelo produto da Kellogg’s e se chamava “Brain gym”. O mesmo

professor/cientista da página anterior indicava um quadro negro no qual se liam novas

frases com novas ligações, como se lê abaixo:

Dicas para manter o seu cérebro em forma... Quebra-cabeças e estimulantes cerebrais – como Sudoku – mantêm o seu cérebro ativo. Nutrição apropriada, incluindo DHA Omega-3. Exercício – bom para o cérebro e o corpo. Aprenda coisas novas – trivialidades, fatos ou um instrumento musical.

As palavras sublinhadas no quadro acima indicam as novas hiperligações que

encontrei na página, cada uma levando a um novo produto que poderia ser encontrado

no site da amazon.com: livros, halteres, instrumentos musicais e a própria “barra de

saúde cerebral” da Kellogg’s. Casualmente, deparei-me com uma cascata de produtos

relacionados à saúde e à gestão do cérebro, que incluía técnicas de treinamento cerebral

e linhas dos chamados alimentos funcionais. Uma nova série de itens era indicado a

partir da chamada “Desafie o seu cérebro”, como palavras-cruzadas e sudoku, e de uma

outra chamada “Tome a sua porção diária de DHA”, que levava a salmão, vitaminas e,

mais uma vez, à “barra de saúde cerebral”. Essa experiência na internet mostrou-me o

quanto a ideia de saúde cerebral parece ter se tornado um bem passível de consumo, a

partir do momento em que passa a ser encarada como um aspecto da saúde que pode ser

gerido ao longo da vida.

Procurei mostrar, nestes exemplos, como variações sobre o cérebro e mesmo um

neurocientista passam a figurar entre mensagens publicitárias, incentivando ao consumo

de determinados produtos – ou em uma divulgação institucional. Não apenas o cérebro

ilustra campanhas publicitárias de outros produtos, como já se divisa um conjunto de

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produtos voltados para o cérebro, o que inclui o material encontrado no site da Amazon,

com destaque para uma grande indústria editorial de livros que trazem curiosidades,

dicas ou modelos de auto-ajuda, que podem estar mais identificados ao que Ortega

(2009) chama de ‘neuro-ascese’ – o que envolveria um esforço paralelo ao ‘físico’ para

manter o cérebro em boa forma –, mas que pode estar relacionado também à ideia do

cérebro como o órgão cuja fisiologia está diretamente ligada ao prazer, como

demonstrei no capítulo anterior a partir do sucesso da mensagem dos livros da

neurocientista Suzana Herculano.

4.3 Avatar: neurônios e sinapses em um blockbuster

Em dezembro de 2009, chegou aos cinemas o filme Avatar, dirigido por James

Cameron, responsável por películas de grande orçamento e ainda maior bilheteria. No

início de 2010, Avatar superou grandes sucessos de público que o antecederam, e se

tornou a maior bilheteria da história do cinema, seguido por Titanic, do mesmo diretor.

Quando vi o trailer do filme, programei uma sessão como trabalho de campo, porque o

enredo indicava o uso de ideias e de um vocabulário relacionados ao cerebralismo

contemporâneo. Esta impressão se confirmou e superou as minhas expectativas: a maior

bilheteria da história do cinema está permeada pelo vocabulário da neurociência

moderna. Resolvi então inserir neste último capítulo um esforço descritivo e analítico

do filme, visto se tratar de uma mensagem que chegou a milhões de pessoas no mundo,

rendendo cerca de 1,85 bilhão de dólares até ao presente momento.

Trata-se de uma ficção científica com estrutura de épico e mensagens

ambientalistas, que se passa no ano 2154, quando os humanos já teriam esgotado boa

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parte dos recursos naturais na Terra (apesar deste planeta não aparecer em nenhum

momento no filme, sendo apenas mencionada essa situação devastadora). Insinua-se

ainda que o planeta estaria atravessando uma crise econômica de grandes proporções, o

que de fato ocorria no ‘real’ planeta Terra quando do lançamento do filme. Frente a este

quadro apocalíptico, as tecnologias de exploração espacial já avançaram largamente, e

‘estamos’ presentes em outros planetas.

Os seres humanos estabeleceram um posto militar e científico em um planeta

chamado Pandora, ambos submetidos aos interesses de uma corporação que dita ordens

e paga as contas. O principal motivo seria a exploração de um minério precioso que tem

o nome – não sem ironia – de unobtainium, o que poderia ser traduzido como ‘algo que

não pode ser obtido’. O minério em si não parece ter o mesmo valor para uma

civilização nativa local, os Na’vi; mas a necessidade de que estes últimos fossem

deslocados de sua vila, uma árvore-casa sob a qual se descobrira a maior jazida de

unobtainium, será motivo de tensões, desacordos e violência por parte dos exploradores

alienígenas.

Entre os humanos, parece haver somente executivos da corporação que explora o

metal, militares e cientistas contratados. Empresários e militares135 serão os vilões do

filme, e fica claro desde o início que eles não economizariam no uso da força; por sua

vez, os cientistas têm uma postura diplomática e, de alguma forma, antropológica: eles

procuram se aproximar dos nativos, aprendendo o idioma local e ensinando o seu,

buscando entender a sua forma de vida e os traços essenciais daquela cultura. Mas fica

claro que o objetivo desta postura é, no limite, ganhar a confiança dos nativos para

facilitar a exploração do metal. No decorrer do filme, militares e cientistas vão entrar

em desacordo quanto aos métodos a serem empregados.

135 Com exceção do protagonista central do filme, Jake Sully, o fuzileiro que será convertido à

causa dos Na’vi, e uma piloto do grupo.

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Entre as técnicas utilizadas para se aproximar e ganhar a sua confiança, os

cientistas desenvolvem um projeto chamado Avatar, o que dá nome ao filme. Eles

mantêm contato com os nativos encarnados não em seus corpos, mas em “avatares”,

corpos semelhantes aos dos habitantes de Pandora (de pele azul, maiores em tamanho e

mais fortes que os humanos, com os ossos ‘naturalmente’ reforçados com fibra de

carbono), produzidos geneticamente a partir de uma fusão entre DNA humano e Na’vi.

Esses corpos são controlados apenas pelo humano que emprestou seu material

genético ao experimento, o que limita a possibilidade de comando de cada avatar, ligado

necessariamente a apenas um indivíduo. Ou seja, há uma conexão biológica, de material

genético, entre um humano e um avatar – que guardam inclusive traços faciais

semelhantes – que impediria que estes fossem, por assim dizer, ‘pilotados’ por outro

humano. Em outras palavras, uma pessoa é igual a um avatar. E aqui começam mais

diretamente os meus interesses.136

Um fuzileiro paraplégico, chamado Jake Sully, é levado a Pandora para ocupar o

lugar de seu recém-falecido irmão gêmeo, um cientista (“PhD”, informa o filme) que

estava sendo treinado para operar um desses avatares. Com a morte acidental do irmão,

o seu gêmeo é convidado a substituí-lo, inclusive porque ele seria o único a poder fazer

isso, devido à coincidência de material genético. A conexão entre humano e avatar dá-se

através de um aparato tecnológico que captaria de alguma forma a ‘mente’ do ‘piloto’ e

a lançaria no corpo do avatar. A cientista responsável pelo projeto, também ela um

136 Não havia tempo para uma longa pesquisa a respeito da origem etimológica do termo

‘avatar’. Mas encontrei uma referência que indica uma conotação de caráter religioso: “Avatar é o boneco de Deus na Terra. Do sânscrito Avatara (que significa "Descida", no sentido "do céu para a terra"), esse nome se refere à manifestação de uma deidade em nosso mundo. Há duas formas de Avatar: o direto e o indireto. Direto (sakshat) é quando o Deus aparece diretamente, seja como Vishnu, seja como o arbusto flamejante pra Moisés. Indireto (avesa) quando investe de poderes uma pessoa, como ocorre com Jesus, Krishna, Buda, Vasudeva, etc.” (disponível em http://somostodosum.ig.com.br/ conteudo/conteudo.asp?id=09439) (acessado em 25/01/2010) O termo tem sido amplamente utilizado para designar uma representação de um indivíduo em superfícies virtuais, sejam redes sociais ou jogos; cria-se um personagem que é o seu ‘avatar’.

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‘piloto’ que tem o seu avatar, antes da primeira conexão do principal protagonista, pede

que ele “esvazie a sua mente”, com um tom de ironia, já que ela o considera

despreparado para a missão, alguém sem treino e potencialmente truculento. Tão logo o

herói Jake Sully ‘acorda’ em seu avatar, um cientista o saúda com a frase “bem-vindo

ao seu novo corpo”. Explica-se então que esta conexão só é possível quando os sistemas

nervosos do humano e do avatar estão em “perfeita sincronia”. Ou seja, a semelhança de

material genético entre o humano e avatar é apenas parte da história; é necessário

especificamente uma sincronia entre cérebros e sistemas nervosos como um todo. Não

se trata de um cérebro transplantado, mas de uma unidade entre dois corpos diferentes,

possibilitada através da unidade neural estabelecida, mediada por uma máquina. Eles só

serão um e o mesmo se forem os mesmos os seus cérebros, e, de forma mais ampla, o

seu sistema nervoso. No momento tenso em que se dá esta primeira conexão, um dos

cientistas tem nas mãos uma tela onde se vê de forma isolada o cérebro do protagonista

central do filme, e ele afirma “gostei deste cérebro, tem muita atividade”.

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Figura 15 – acima, o personagem central do filme ‘acorda’ pela primeira vez em seu avatar, o seu “novo corpo”; abaixo, a semelhança de traços faciais entre uma das cientistas e o seu avatar, entre os quais se diz haver uma sincronia entre sistemas nervosos. Duas questões são interessantes para se pensar o filme como parte de uma

cultura cerebralista.137 A primeira é a forma como a mente de um ser humano é lançada

dentro do corpo do avatar. Sem qualquer explicação mais refinada, percebemos que há

uma chave explicativa no sistema nervoso central: na primeira conexão entre o ‘herói’

do filme e seu avatar, há um claro destaque para a coincidência biológica entre ‘corpo

humano’ e ‘corpo avatar’, o segundo desenvolvido a partir de material genético

137Este aspecto não é, em representações cinematográficas, exclusividade de Avatar. Na

verdade, o cinema americano tem sido fértil em produzir histórias nas quais cérebro equivale à mente, e onde aspectos como a memória têm uma localização clara e material, podendo inclusive ser apagados, como é o caso de Brilho eterno de uma mente sem lembrança. Para uma análise de alguns destes filmes, ver Ortega, 2006.

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aparentado ao primeiro, mas é através do cérebro que de fato transita a comunicação e

se dá a identidade entre dois corpos diferentes.

Há quem veja em construções de ficção científica como esta uma espécie de

“extrapolação fantástica” de recentes avanços em pesquisas realizadas no campo da

neurociência. Esta é a perspectiva que encontrei em comentários na internet tanto sobre

Avatar quanto sobre filmes com pressupostos tecnológicos parecidos. Em um filme

chamado Substitutos (Surrogates, estrelado por Bruce Willis), que teve sua estréia em

data próxima a Avatar, os seres humanos já não se relacionam mais a partir de seus

corpos originais, que ficam seguros em casa conectados a uma máquina, mas sim por

meio de robôs comandados à distância, que poderiam ser considerados seus avatares. A

aparência destes robôs-avatares pode ser ou não semelhante ao do seu dono, o que

permite ter substitutos mais jovens, ou onde correções físicas do corpo ‘original’

possam ter sido feitas. Não entrarei em detalhes a respeito da trama policial deste filme;

o que me chamou a atenção após tê-lo assistido foi um comentário postado no blog do

professor Stevens Rehen, do Instituto de Ciências Biomédicas da UFRJ, a respeito de

coincidências entre a proposta do filme e pesquisas científicas em andamento:

o enredo de Substitutos é uma extrapolação fantástica do trabalho pioneiro de Miguel Nicolelis sobre a interface cérebro-máquina. A narrativa introdutória tenta explicar como a humanidade decidiu trocar a vida real pela virtual e é acompanhada por cenas reais, incluindo a de um macaco controlando um braço biônico "com a força do pensamento". É justamente aí que se vê o dedo do neurocientista brasileiro, o primeiro a demonstrar que a atividade elétrica de neurônios pode ser convertida em códigos matemáticos que movimentam braços e pernas mecânicos.138

A mesma relação é construída em outro sítio na internet, em texto não assinado, entre a

pesquisa de Nicolelis e o filme Avatar:

138http://www.sidneyrezende.com/noticia/62547+o+que+bruce+willis+tem+em+comum+com+u

m+neurocientista+brasileiro [postado em 02/11/2009] [acessado em 03/12/2009]

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O primeiro passo desse processo, a criação de uma interface cérebro-máquina, é a grande ambição de projetos como o liderado pelo neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis na Universidade Duke, no estado americano da Carolina do Norte: a equipe de Nicolelis vem trabalhando no desenvolvimento de uma "neuroprótese" - um aparato que, "vestido" por uma pessoa paralisada e comandado por seu cérebro, permita que ela se movimente. Em 2008, eles obtiveram um avanço impressionante. Treinaram um macaco Rhesus para andar ereto numa esteira. Eletrodos captaram os sinais neuronais do animal enquanto ele caminhava e os enviaram via internet a um laboratório no Japão, onde um robô usou esses sinais para sincronizar seus movimentos com os do macaco. A partir daí, os pesquisadores vêm ensinando os macacos a controlar seus próprios avatares.139

No primeiro texto, afirma-se que o filme Substitutos teria o “dedo” das pesquisas

desenvolvidas por Nicolelis; no segundo, tal pesquisa seria um possível primeiro passo

na direção da situação colocada em Avatar. Os filmes estariam baseados, segunda estas

leituras, em promessa da neurociência contemporânea para o futuro, ainda que sejam

extrapolações totalmente fantasiosas, de embasamento científico duvidoso, como, aliás,

cai bem em filmes de ficção científica. O que tais comentários parecem perder de vista é

que alguns dos temas de fundo trabalhados por estes filmes, como a coincidência entre

mente e cérebro, e a redução da pessoa a este órgão, não seriam novidades do início do

século XXI. Nestes casos, mais uma vez, o pressuposto é o de que uma figura

antropológica da ‘cerebralidade’ (brainhood) é consequência dos avanços da

neurociência contemporânea, e não, como defende Vidal (2005, 2009), uma figura

inerente à modernidade, que antecede em muito qualquer espécie de revolução

tecnológica dos últimos anos.

A coincidência entre mente e cérebro em Avatar é bastante óbvia. Mas as

questões cerebrais no filme não param por aí. O segundo ponto a destacar é o de que a

metáfora cerebral de maior impacto do filme está relacionada a uma questão de ordem

coletiva, e diz respeito à própria ‘natureza’ do planeta, aí se incluindo os Na’vi, os

139 http://www.acidezmental.xpg.com.br/a_ciencia_do_filme_avatar.html

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nativos de Pandora.

No capítulo 1, explorei a frequência com a qual a neurociência contemporânea

apresenta a equivalência do cérebro como pessoa. A neurocientista Susan Greenfield

faz uso também da imagem de uma grande cidade para explicar como funciona a rede

neuronal, onde temos então a comparação do cérebro como metrópole; na mesma

passagem, ela menciona ter abandonado a ideia de que o cérebro pode ser comparado à

floresta amazônica, em nome dessa escolha mais urbana.

No caso de Avatar, dá-se mais um passo nessas comparações, e uma explicação

científica vai construir uma equivalência entre a ‘natureza’ do planeta Pandora – de

certa forma isso vai incluir também toda organização social dos Na’vi – e uma rede

neural. É importante destacar que Pandora é uma espécie de paraíso idílico, no qual os

Na’vi vivem em uma espécie de conexão biológica com o meio ambiente natural. Além

de altos e azuis, outra característica central de seus corpos é uma espécie de feixe de

fibras que saem de seus cabelos (no limite, da própria cabeça), através do qual eles

estabelecem uma conexão com os cavalos que montam e com animais alados com os

quais estabelecem uma relação pessoal. Os feixes que saem dos Na’vi e dos animais se

entrelaçam, e assim eles estabelecem uma conexão. A partir desse momento, os

comandos passam a ser dados mentalmente, o que nos remete mais uma vez a uma

conexão de algum gênero no nível do sistema nervoso.

Em defesa dos Na’vi, e de sua resistência em se deslocarem do local onde vivem

e praticam seus rituais, a cientista vivida pela atriz Sigourney Weaver explica aos

investidores e militares como funciona a biologia da floresta naquele planeta, após uma

investida agressiva dos ‘colonizadores’ sobre a vila:

Caso você não saiba, aquelas árvores eram sagradas para os Omaticaia [o nome de um grupo específico entre os Na’vi] (...) Eu não estou falando de algum tipo de “religião pagã”, estou falando de uma coisa

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real, de uma coisa mensurável pela biologia da floresta. (...) O que nós deduzimos é que há algum tipo de comunicação eletroquímica entre as raízes das árvores... como as sinapses entre os neurônios. E cada árvore tem 10 mil conexões com as árvores em volta; e deve haver um trilhão de árvores em Pandora. (...) São mais conexões do que o cérebro humano. Entendeu? É uma rede, uma rede global, e os Na’vi podem acessá-la, eles podem fazer upload e download de dados... memórias, em lugares como os que você acabou de destruir.

Este discurso é entrecortado com reações do responsável pela empresa

investidora, que ironiza o fato de cada árvore ser sagrada naquele local. Não se trata de

entender os rituais coletivos dos Na’vi em torno de certas árvores nos seus próprios

termos, mas sim em termos científicos. Os rituais passam a fazer sentido para a cientista

quando ela consegue encontrar uma explicação de caráter científico para o que está

acontecendo; ou seja, uma explicação na qual razões são subsumidas a cadeias causais

demonstráveis pelo método experiental.140 O tom pejorativo com o qual se fala de uma

“religião pagã” é substituído por uma teoria científica a respeito de uma relação

mensurável: a natureza é como uma rede neural, na qual as árvores se comunicam nos

mesmos termos que neurônios e sinapses. Mais do que isso, a própria população local

conecta-se a este universo eletroquímico, em uma rede de troca de “dados”. Isso

possibilita pensar que, na ficção Avatar, é como se todo o material vivo do planeta

compartilhasse uma conexão comparável a um cérebro, e que foi assim explicada a

milhões de espectadores mundo a fora. O maior sucesso da história do cinema faz parte,

em sentido amplo, dos variados fenômenos de difusão neurocientífica explorados nesta

tese.

140 Esta redução do ritual à ciência foi uma análise emitida pelo meu irmão Rafael Azize, a

quem deixo crédito e uma dívida aqui.

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4.4 O cérebro como sujeito do capitalismo

A neurociência, como procurei demonstrar, é uma formulação relativamente

recente, como afirmam os próprios praticantes, historiadores e divulgadores desta

abrangente disciplina. Ao olhar para trás, e refletir sobre as origens das pesquisas

científicas que se ocuparam do cérebro, é comum encontrar, entre esforços para

construir uma linha com continuidades e descontinuidades no tempo, leituras que

relacionem discursos sobre o cérebro com aspetos religiosos e políticos (Changeux,

1985; Clarke e Jacyna, 1992; Finger, 2000; Herculano-Houzel, 2002; Abraham, 2005;

Valenstein, 2005). Um dos meus objetivos aqui é aplicar, ainda que de forma

superficial, a mesma lógica ao discurso neurocientífico contemporâneo (em sua face

aqui analisada), buscando compreender justamente em que sentido ele pode reproduzir e

ao mesmo tempo realimentar uma visão de mundo na qual a própria ideia de uma

equivalência entre cérebro e indivíduo ocupa uma posição importante, senão central.

Já em tom conclusivo, destaco nesta última sessão o que acredito ser uma

afinidade eletiva entre duas ordens de discurso cujo parentesco não é evidente: o da

neurociência contemporânea – refiro-me especialmente ao discurso de divulgação ou

popularização aqui analisado – e aquele relacionado tanto à lógica do gerenciamento

empresarial, por um lado, quanto, por outro lado, à postura que se espera de um

indivíduo trabalhador e produtivo, dentro da lógica do atual sistema de acumulação e

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organização do trabalho no capitalismo contemporâneo141.

Explicando melhor, a afinidade a que me refiro dá-se em dois registros: o

primeiro é um paralelo entre a tese em voga para explicar o funcionamento do cérebro e

de suas unidades funcionais, por um lado, e o funcionamento de uma empresa, de uma

corporação e mesmo do sistema capitalista como um todo, por outro (Malabou, 2008)142;

o segundo registro seria uma coincidência entre certas qualidades e competências

esperadas de um sujeito ideal dentro da lógica corporativa (esteja ele empregado ou

desempregado), por um lado, e por outro a forma como idealmente um sujeito deve

gerir o seu cérebro – e, por conseguinte, a si mesmo.

Uma aproximação inspiradora, em um sentido próximo, foi feita pela

antropóloga Emily Martin (2007), ao desenvolver a hipótese de que haveria uma

afinidade entre o comportamento cultivado e cultuado na cultura corporativa norte-

americana, e os sintomas relacionados ao pólo maníaco do diagnóstico hoje conhecido

como transtorno bipolar. Neste sentido, inovação, competição, intensa energia,

adaptabilidade e mobilidade seriam características comuns entre um diagnóstico e um

tipo de comportamento incentivado e premiado em certos contextos. Analisando

141 Estou pensando no momento que Boltanski e Chiapello (1999) chamam o “terceiro espírito

do capitalismo”, que seria “isomorfo ao capitalismo mundializado” (p.57), sistema no qual a renovação tecnológica é central e reengenharia, fusões, cortes, flexibilidade, terceirização e rápidos movimentos de adaptação a novas circunstâncias de mercado são palavras e valores centrais. Para a dupla de autores, não existiria somente um “espírito do capitalismo”, mas vários, e o conceito consiste em um “conjunto de crenças associadas à ordem capitalista, que contribuem para justificar esta ordem e a sustentar, legitimando-as, os modos de ação e as disposições que são coerentes com elas” (ibidem, p.46). Procurei demonstrar em um artigo (Azize, 2009) que o cinema contemporâneo tem sido fértil em produções que criticam este momento do “terceiro espírito”, denunciando a ampliação da insegurança profissional na direção dos quadros executivos das empresas, atingindo extratos médios e altos.

142 Quando boa parte desta sessão já estava avançada, encontrei no livro de Catherine Malabou (2008) uma perspectiva muito semelhante, e passei então a lhe ser devedor. Um exemplo interessante a respeito do caráter político e cultural de representações sobre o cérebro – e problemas que elas podem trazer – foi já trabalhado aqui e está também citado por Marc Jeannerod justamente no prefácio ao livro de Catherine Malabou: “Lembramos as dificuldades enfrentadas no período napoleônico por Franz Josef Gall. O seu sistema, subdividindo a mente em faculdades distribuídas entre diferentes áreas do cérebro, era visto pelos poderes dominantes como uma ameaça à unidade e à estabilidade do estado” (Jeannerod, 2008: xi).

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especificamente o universo norte-americano, mas com uma imagem que se assemelha

ao quadro na Europa e no Brasil, ela afirma que

Ondas sucessivas de downsizing arrastaram, além dos desfavorecidos, um número significativo de pessoas de ocupações e classes que não estavam habituadas a uma queda dramática nas suas perspectivas e padrões de vida. O imperativo de se tornar o tipo de trabalhador flexível, que pode operar bem em circunstâncias extremamente competitivas, intensificou-se, e aumentaram muito as consequências por se falhar. Um dos sinais da natureza inclemente do aumento de competição é a multiplicação de referências à “sobrevivência do mais apto” nos meios de comunicação populares desde o início dos anos 1980 (Martin, 2007, p. 40).

Para o padrão corporativo contemporâneo, os mais “aptos” seriam aqueles que

conseguem evoluir

com a ajuda de estudos autodidatas, de cursos de treinamento e de uma insistência em autogestão quando têm a sorte de estar empregados numa corporação e, ao mesmo tempo, empreendedorismo agressivo durante os períodos frequentes que supõem, hoje em dia, vir a passar fora dela. (idem, p. 41)

O trabalho de Martin faz eco com a tese de Lópes Ruiz (2004), na qual ele

define da seguinte forma qual seria a posição subjetiva valorizada no mercado

corporativo:

uma ética do trabalho individualizado segundo a qual se espera que cada indivíduo se comporte como se ele estivesse conduzindo seu próprio negócio dentro de um negócio maior, que se sinta dono (ou sócio) da empresa na qual trabalha, que pense em seu trabalho como um produto ou serviço a ser vendido. Trata-se de uma ética do trabalho empresarial (do trabalho entendido em termos de “empreendimento”) que o orienta e estimula para atuar como seu próprio chefe, para assumir plena responsabilidade pela direção de sua própria “empresa” (geralmente, sua carreira), para se pensar como “proprietário de si”, de suas capacidades, destrezas e talentos, para estar disposto a investir neles e empreender constantemente novos desafios (idem, p. 327) (grifos do autor)

Neste ambiente, o indivíduo é uma espécie de “empresa em si mesmo”, alguém

que é responsável pela sua carreira, que pode “investir” bem ou mal nela, que pode

cultivar o seu “capital destreza” (Lópes Ruiz, 2004), como se fosse “o proprietário de si

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mesmo como um portfólio de ações” (Martin, 2007). Minha hipótese é a de que este

conjunto de valores de alguma forma está presente também em discursos de difusão dos

saberes sobre o cérebro, sejam eles de caráter midiático ou mais especificamente de

divulgação científica realizada por profissionais da área.

Tomarei como exemplo etnográfico uma reportagem publicada na revista

Época143, na qual uma série de características são atribuídas ao cérebro, em um contexto

no qual o assunto central são softwares e jogos eletrônicos para o que se chama

“treinamento cerebral”. Na capa, o cérebro é representado como um quebra-cabeça e

uma última peça está sendo encaixada pela mão de uma pessoa. Na manchete, lê-se, em

formato de pergunta e resposta: “Você pode virar um gênio? O que há de verdade nos

novos jogos que prometem melhorar o desempenho do seu cérebro – e são cada vez

mais vendidos”. O princípio por trás destes jogos, conforme se afirma no texto da

matéria, é o de que “seu cérebro funciona como um músculo. Quanto mais usá-lo, mais

forte ele ficará”, e a prática de esportes é utilizada como um exemplo de referência144.

Especialistas na área são citados para sustentar a ideia de que “Qualquer forma de

atividade de aprendizado é boa, pois ela desafia o cérebro, e o cérebro gosta de ser

desafiado”. Em outra passagem, um neurocientista afirma que “Quase tudo pode ser

melhorado. O cérebro é maciçamente moldável – se for trabalhado da maneira correta”.

Um jogo eletrônico tem o objetivo de treinar os usuários para “extrair o máximo de seu

córtex pré-frontal”, região do cérebro, afirma a revista, “considerada como sede da

personalidade e da vida intelectual”.

Não se trata de características quaisquer, mas de um conjunto de atributos que

fazem ressonância entre si. O órgão passa a ter determinadas características positivadas

143 Revista Época, n. 512, 10 de março de 2008, p.66-72. 144 Não me deterei sobre esta relação entre uma bio-ascese e uma espécie de neuro-ascese, que

mostra um paralelo da cultura do culto ao corpo com a do culto ao cérebro. Sobre este ponto, ver Ortega (2009).

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em nosso tempo: o cérebro “gosta de desafios”, é “plástico”, “gosta de novidades”, pode

e deve ser exercitado para aperfeiçoar as suas possibilidades. O cérebro é humanizado, e

a ele são atribuídos determinados valores que recebem um sinal positivo em nosso

tempo, especialmente, ao que me parece, no que diz respeito ao mercado de trabalho.

Isso mostra que a produção de discursos científicos sobre o cérebro não está fora de um

fluxo de metáforas que estão em circulação muito para além dos muros dos laboratórios,

como afirma Dumit:

Expressões e metáforas (e.g. flexibilidade, eficiência, circutidade (circuitry) e inibição) são produzidas em parte por usos culturais e viajam de volta para os laboratórios. É a partir desta ativa intersecção de fluxos técnicos, sociais e culturais que os cientistas procuram estabilizar e conduzir os seus experimentos, e é de volta à intersecção que os seus resultados devem ir. (Dumit, 2004, p.9)

No texto “O mito dos 10% do cérebro”, primeiro artigo do livro de divulgação O

cérebro nosso de cada dia (2002), Suzana Herculano-Houzel tenta desconstruir o

“mito” de que só usamos 10% do nosso cérebro, tentando também identificar de onde

essa crença teria partido. Em sua opinião, a dificuldade em aceitar a ideia de que na

verdade usamos todo o nosso cérebro pode estar na “pergunta inevitável de quem estava

convencido do contrário: se tudo é usado, como então é possível desenvolver nossas

habilidades?”. Concordo com ela, mesmo que partindo de outras referências para

abordar a questão. De fato, o progresso, o melhoramento, o aprimoramento

(improvement, enhancement) são valores que atravessam a cultura ocidental e podem

estar aí refletidos nesta teoria hoje superada sobre o percentual que usamos do nosso

cérebro. Mas o texto sobre neurociência suscita ainda outras reflexões possíveis

Façamos agora uma pequena experiência com a resposta que a própria autora fornece:

A resposta está na mais maravilhosa e característica propriedade do sistema nervoso: a capacidade de fazer novas combinações entre seus elementos, e de mudar a eficiência das conexões – as sinapses – já existentes. Quando a eficiência aumenta, a conexão entre dois neurônios

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fica “fortalecida”; quando diminui, a conexão fica “enfraquecida”. Além do mais, nenhuma conexão é fixa; uma conexão enfraquecida demais pode ser eliminada, e uma nova pode ser feita em outro lugar, com outro neurônio. (Herculano-Houzel, 2002:25) (grifo meu)

Quando me deparei com essa explicação, tive a impressão de já tê-la lido em

outro lugar. Na parte sublinhada, troquemos neurônios por pessoas. Agora, lembremos

a forma como alguns ensaístas comentam as dinâmicas contemporâneas de construção

dos laços humanos. Neste novo formato, se ele fosse possível, o trecho de Suzana

Herculano poderia se encaixar, por exemplo, em livros como Modernidade Líquida ou o

Amor líquido, ambos de Zygmunt Bauman, no qual o autor analisa a fluidez dos laços

humanos contemporâneos e as suas consequências. Neurônios ou indivíduos, o que há

em comum é uma leitura de como laços são estreitados ou desfeitos com maior fluidez

em nosso tempo.

Parece longe de ser casual o fato de que uma neurocientista como Suzana

Herculano, cujos trabalhos mais recentes de popularização oscilam entre a difusão

científica e a auto-ajuda, passe a ser requisitada como palestrante em empresas;

conceitos relacionados à lógica atual do gerenciamento e conceitos em voga na

neurociência parecem ecoar entre si. Não tive acesso às palestras elas mesmas, mas o

fato mesmo de existirem palestras de neurociências em um ambiente empresarial já é

significativo. Temas como “plasticidade neuronal” e a importância de um “sistema de

recompensa” parecem servir como uma luva ao espírito do tempo. O cérebro, como já

disse Le Breton sobre o corpo, é rascunho, passa a ser visto como algo da ordem do

moldável, do gerenciável.

Plasticidade é uma palavra-chave para a neurociência contemporânea;

flexibilidade é uma palavra-chave para o universo do gerenciamento contemporâneo.

Motivação, por sua vez, é uma palavra-chave em ambos os casos. Na entrevista ao

programa Roda Viva, já citada anteriormente, a neurocientista Suzana Herculano

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destaca a centralidade do sistema biológico de motivação:

Suzana Herculano-Houzel: Eu, quanto mais leio, mais eu acredito mesmo que, por trás disso tudo, a chave é a motivação, é o que move a gente, literalmente. É a razão que a gente tem para levantar da cama de manhã, para procurar essa comida e não aquela, para fumar ou não fumar, para fazer exercício ou não. E a grande diferença é a informação só pela informação e a motivação que você associa, pessoalmente, àquela informação. Pega o caso do fumo. Todo mundo sabe, hoje em dia, a gente tem informação maciça de saúde pública, de educação, campanhas de educação e tudo mais. Então, todo mundo sabe perfeitamente que fumar faz mal de várias maneiras. Mas usar essa informação para mudar a sua vida exige motivação. Depende da sua motivação.

Você pode ter o controle do seu cérebro, assim como é importante não perder o

controle da sua carreira. Este cérebro moldável é passível de auto-gestão, assim como os

caminhos profissionais. Para Suzana Herculano, os sistemas de motivação e recompensa

são um aspecto central do cérebro, explorados com frequência em seus trabalhos de

popularização. Talvez essa relação entre valores explique por que a neurocientista mais

conhecida no país entre o público leigo venha sendo convidada a dar palestras para

grandes corporações. Motivações, o uso do bom estresse, evitar o mau estresse e outros

temas frequentes em seus livros soam semelhantes aos discursos de treinamento no

mundo corporativo. Auto-gerenciamento – não é exatamente o que os livros de auto-

ajuda relacionados ao cérebro propõem? Neste caso, um nível refinado e muito

específico de auto-gerenciamento, já que cérebro equivale à pessoa – logo, estamos no

gerenciamento daquilo que as ciências do cérebro afirmam ser a grande fonte do self.

Tanto em relação àquilo que as neurociências contemporâneas dizem que o

cérebro é, quanto àquilo que se diz que podemos – e devemos – fazer com ele, há uma

forte afinidade entre tais discursos e um outro que diz respeito aos ideais de

comportamento do sujeito no mercado de trabalho e na gestão da vida. E talvez não haja

melhor lugar para pensar esta relação do que os espaços – objetos, lugares – de

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popularização de uma “neurociência do cotidiano”. Afinal, é ali que se manifesta um

corpo organizado de regras para uma higiene cerebral, e de como isso pode influenciar o

nosso ‘estilo de vida’. Há uma afinidade eletiva entre conceitos centrais para a

neurociência hoje, como o de plasticidade neuronal, e a organização do mercado neo-

liberal, as políticas de organização e gestão do trabalho, e mesmo o que se espera de um

sujeito produtivo. Refiro-me especialmente à coincidência entre o vocabulário utilizado

para se falar do cérebro, neurônios e neurotransmissores – tanto em termos da agência

que se atribui a eles, quanto a certas metáforas utilizadas para explicar o que esse órgão

faz – e certos valores positivados na cultura contemporânea. O cérebro seria, então, uma

espécie de espelho daquilo que se espera do indivíduo no capitalismo contemporâneo:

plástico, adaptável, presta-se a desafios, passível de ser melhorado. O questionamento

da centralidade, através de uma ideia de ‘redes’ e ‘conexões’ mais fluidas, é um ponto

marcante em comum entre o discurso neurocientífico e o discurso do gerenciamento

(Malabou, 2008:40).

A questão não é simplesmente, então, afirmar que cérebro se confunde com

indivíduo ou pessoa em nosso tempo, mas sim mostrar através de que equivalências

esse processo se instala. Não basta dizer que o cérebro está sendo humanizado, no

sentido em que se fala dele como um indivíduo sujeito autônomo; temos que pensar a

qual ideia de indivíduo o cérebro contemporâneo se equivale. Não se trata de perguntar

se o vocabulário das novas ciências do cérebro é uma caricatura de uma determinada

lógica de mercado, ou vice-versa, se o que ocorre é uma naturalização do social ou uma

socialização do natural; são sim ambas devedoras de valores que correm no espírito do

tempo, e que aparecem mais claramente condensados aqui e ali.

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Considerações finais

A centralidade do cérebro na cultura ocidental moderna – seja como o órgão da

razão, motor da civilização, sítio da alma ou da mente, a essência do indivíduo, aquilo

que faz de nós o que somos – prescinde de qualquer oficialidade que tenha declarado

um determinado período como a “década do cérebro” ou anunciasse o mesmo para o

século XXI. Uma leitura físico-moral, quer do cérebro em si (Vidal, 2005, 2009), quer

do sistema nervoso em termos mais amplos (Duarte, 1986), antecede o ufanismo que

marca a divulgação das descobertas da neurociência contemporânea acerca de correlatos

neurais entre a fisicalidade do cérebro e quaisquer características do ser humano.

Mas isso não significa que não seja pertinente investigar novas faces de um

fenômeno nem tão jovem assim. Pelo contrário, o que procurei sublinhar aqui é que os

discursos científicos sobre o cérebro em momentos históricos diferentes podem ter

pretensões em comum (por exemplo, a redução da mente, ou da pessoa, ao cérebro),

mas as suas resoluções, projetos, formas, representações e vocabulário variam

imensamente, isso sem falar nas relações que podem ser estabelecidas com o espírito de

cada tempo.

A tese do bilinguismo da neurociência – que pretende falar o idioma da

fisiologia do cérebro, mas também pretende construir discursos sobre a subjetividade

humana (cf. Greenfield, 2000) – como um projeto a ser estabelecido, e que

eventualmente pode substituir outras concepções de pessoa, está longe de ser uma

novidade no campo das investigações sobre o cérebro, mas conta hoje com novas

ferramentas tecnológicas que pretendem oferecer evidências em forma de imagens e

ideias que circulam frequentemente pela mídia de massa – e apontam projetos anteriores

com objetivos semelhantes como pseudo-científicos. Em um momento no qual se

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ouvem aqui e ali críticas ao excesso de especialização disciplinar, a neurociência – uma

formulação recente, como demonstrei – tem a forma de uma super disciplina que serve

de guarida a várias outras especialidades, desde que haja interesse no cérebro por parte

dos profissionais envolvidos. De certa forma, é como se a ciência autorizada para falar

do cérebro e o próprio órgão tivessem algo em comum: a neurociência pode falar sobre

“a vida, o universo e tudo o mais” porque o cérebro seria responsável por tudo aquilo

que o ser humano faz e sente. Uma ciência hegemônica para um órgão hegemônico.

É claro que esforços anteriores no tempo, voltados para a construção de alguma

espécie de neurobiologia do espírito, estavam a olhar para outros cérebros; não porque o

órgão em si tenha mudado, mas porque por certo mudou todo o contexto simbólico que

o cerca. Não se trata, é claro, de uma característica exclusiva dos discursos sobre o

cérebro; Laqueur (1987) demonstrou algo semelhante a respeito da criação científica da

diferença sexual como produto de uma agenda política nova, em um mundo no qual era

preciso justificar a diferença entre os gêneros em novas bases. O órgão permanece, mas

os olhares lançados sobre ele são outros, o que faz toda a diferença.

Procurei aqui investigar concepções de pessoa que emanam destas

representações cerebralistas, tanto na divulgação de neurociência quanto na de uma

idéia de ‘doenças do cérebro’. A pretensão ‘nativa’, de certa forma, inverte a ordem

desta investigação, no sentido em que propõe ser o cérebro a própria fonte do nosso

sentido de pessoa. Nesta estrutura epifenomenal, não se trata de negar a idéia de mente,

mas sim submetê-la e localizá-la em um órgão específico, equivalendo o pensamento e

os sentimentos a algo visível, desde que estejam disponíveis as tecnologias certas, no

cérebro.

A mensagem aqui é clara: a neurociência se insere no mercado das ideias

fazendo uso das ideias disponíveis no mercado, ponto que talvez tenha sido

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exaustivamente sublinhado nesta tese, não por descuido, mas pela sua importância.

Como sublinha Jeannerod (2008, p. XIV), “The brain itself has not changed. (…) What

changes is the organization of society, the outcome of organizational forces and

macroscopic interactions over which the brain has little influence”. As metáforas para

falar do funcionamento do cérebro, dos neurônios, sinapses e neurotransmissores têm

como matéria-prima o acervo semântico e simbólico que nos rodeia; isso vale

especialmente (ou ao menos fica mais evidente) para os momentos em que um corpo de

conhecimentos e um vocabulário esotérico passam por um processo de popularização,

com o objetivo de seduzir um público leigo e ampliar um “coletivo de pensamento”

(Fleck, 1979).

Quando a neurociência quer ser lida como “filosofia de rede na varanda”, faz-se

necessário construir pontes entre um vocabulário cifrado e a linguagem cotidiana;

neurônios passam a ser “bolinhas cheias de fios” (para crianças), o cérebro passa a ser

como uma metrópole ou como uma floresta, corpo e cérebro dançam uma ciranda de

mútua influência. No sentido inverso, como vimos na análise que propus para o filme

Avatar, é uma floresta que passa a ser como o cérebro. Seja qual for a direção na qual

caminha a metáfora, o cérebro fica parecido com a natureza, com nossas cidades ou com

as relações que se estabelecem numa metrópole entre as pessoas.

A afirmação de Emily Martin (2000) de que o cérebro seria o novo disfarce da

nossa natureza – neste aspecto o determinismo neurológico e o determinismo genético

complementam-se – ganha uma manifestação quase evidente no material publicitário

dos laboratórios farmacêuticos. É possível que a centralidade do cérebro na publicidade

de psicofármacos criada e difundida pelos laboratórios farmacêuticos seja um resultado

já esperado. Não me parece ser essa a grande novidade apresentada aqui, ainda que

sempre seja pertinente um levantamento e uma descrição etnográfica do fenômeno. O

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aspecto que me parece mais interessante é a conexão entre essa idéia de ‘doenças do

cérebro’ e as imagens da natureza. Meu esforço foi o de demonstrar uma ligação direta

entre imagens de uma natureza equilibrada e amigável ‘lá fora’ e a idéia de um

reequilíbrio natural ‘cá dentro’ das pessoas, a ser atingido justamente por uma

intervenção no cérebro. Trata-se de um aparato simbólico que torna mais palatável, mais

‘natural’ a gestão do cérebro, do humor, da ansiedade, por via de intervenções químicas.

O que se insinua, e agora quero afirmar de forma mais taxativa, é a relação entre este

tipo de esforço de marketing sobre as ‘doenças do cérebro’ e um borrar de fronteiras

que vem tornando diagnósticos como depressão e ansiedade tão comuns, e já

considerados epidêmicos. O cérebro tem sido apontado como o lócus de fato da

‘natureza humana’; a publicidade de psicofármacos transforma habilmente esta conexão

em imagens. De certa forma, a crença na idéia de uma interioridade é um valor que

continua sendo ali reproduzido; mas, desta feita, se trata de uma interioridade

neurológica, no sentido em que as suas determinações, o seu próprio controle, assim

parecem dizer as imagens, passam por algo que se dá no cérebro e possui algum grau de

materialidade.

Repetem-se ao ponto em que se tornam evidência etnográfica as ilustrações de

praias, jardins e pássaros livres de uma gaiola, que relacionam o uso de psicofármacos a

uma noção de liberdade, bem-estar e encontro com um verdadeiro eu. Nesta

apresentação, o self-neuroquímico não está em oposição à natureza; ele é a sua natureza.

O trabalho de campo no congresso brasileiro de psiquiatria, onde coletei boa parte do

material publicitário da indústria farmacêutica analisado no capítulo 2, foi essencial

também para a percepção de que um neurocentrismo, que inclui a divulgação de que

certos males seriam ‘doenças do cérebro’, não se dá sem oposições, mais ou menos

explícitas, como procurei demonstrar através de experiências nos estandes de

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divulgação, mas também em conversas com profissionais da área. A noção do cérebro

como pessoa viceja não sem resistências, ou, melhor dizendo, em convivência tensa

com outras perspectivas.

Procurei demonstrar que a pretensão a uma explicação científica da mente não é

nova, assim como não o é o fenômeno da sua divulgação entre um público amplo. Já a

neurociência, esta sim, seria uma formulação relativamente recente; um vocabulário

hoje já com raízes profundas em nosso cotidiano foi na verdade plantado na transição

entre os séculos XIX e XX. Em outras palavras: por um lado aquilo que é apresentado

como novidade pela neurociência contemporânea – o acesso, para simplificar, à

subjetividade humana – não é pretensão recente; por outro, todo um vocabulário que já

hoje parece incrustado em nossa ‘natureza cerebral’ e entrou para a linguagem cotidiana

surgiu já às portas do século XX, cercado ainda por dúvidas a respeito do

funcionamento do cérebro.

A este respeito, é possível desde já antecipar alguns espaços em branco deixados

por esta tese, que eu mesmo poderia chamar de falhos, mas prefiro encará-los como

possibilidades para a continuidade deste trabalho em um novo contexto. Assim como

existem esforços sólidos de levantamento da semântica em torno dos nervos, talvez

fosse importante investir de forma mais concentrada sobre o período no qual os

neurônios e as sinapses estão sendo ‘descobertos’. São relativamente recentes os livros

de história da neurociência – como não poderia deixar de ser – e mais recentes ainda os

esforços antropológicos de compreensão destes fenômenos. Valeria a pena fazer novos

investimentos que incluíssem uma análise mais refinada do contexto social e político no

qual estas pesquisas aconteceram, as disputas científicas entre diferentes correntes e

mesmo a biografia de alguns pesquisadores centrais. Seria demasiado para este

momento, mas o assunto e o trabalho estão longe de se esgotar.

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Ao olhar para o material de campo acumulado, percebo que escolhas tiveram

que ser feitas, e muito resta ainda sobre o que trabalhar. O material analisado de

divulgação de neurociência, por exemplo, é apenas a ponta de um grande iceberg.

Procurei concentrar esforços sobre material produzido no Brasil. Mas, nesta linha, há

muito material acumulado em minha estante, e por certo muito mais fora dela,

especialmente no que diz respeito à ponte que se estabelece entre a divulgação científica

e a autoajuda, sob títulos como “mantenha o seu cérebro vivo”, “deixe seu cérebro em

forma”, “transforme seu cérebro, transforme sua vida”, e muitos outros. Um diálogo

com a bibliografia antropológica que analisa os manuais de autoajuda (por exemplo,

Salem, 1992) é um esforço ainda por ser feito. Na última sessão do capítulo 4 ensaiei os

primeiros passos nesta direção.

Explorar o que seriam as diversas manifestações de um cerebralismo, mesmo

que limitando grande parte da pesquisa a concepções letradas, incluindo as veiculadas

na mídia, mostrou-se um desafio maior do que eu imaginava a princípio. O próprio

cérebro como se apresenta hoje é uma boa metáfora para o que encontrei: cada ponto

parecia levar a novas conexões, que se multiplicaram ao limite do tempo e do espaço

disponível para a confecção desta pesquisa.

Afinal, o que busquei em todos os aspectos desta etnografia foi este espaço no

qual o discurso científico e o leigo quase se tocam, como se fosse uma conexão

sináptica. Também esta forma de comunicação soa contígua, mas não contínua (ou um

aperto de mão com luva, como definiu Greenfield), no sentido em que, por mais que se

busque metáforas para apaziguar a aridez do discurso especializado, sempre há um

vocabulário esotérico em jogo, palavras que entram para a vida cotidiana, mas cujo

significado permanece de acesso limitado.

Procurei demonstrar no decorrer destes capítulos como um cerebralismo – como

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face específica do fisicalismo – ganha forma na cosmologia espontânea da cultura

moderna ocidental. A opção por não priorizar formas mais eruditas de discurso a

respeito do cérebro e tampouco somente as formas mais populares e diluídas divulgadas

na mídia de massa foi consciente: era justamente a amplitude da difusão de idéias sobre

o cérebro, e como este órgão ganha hegemonia nas representações de uma suposta

‘natureza humana’ que se quis sublinhar. Trata-se de um fenômeno que tem em

discursos médico-científicos um foco central, mas os ultrapassa em muito; um discurso

que usa e ressignifica saberes neurocientíficos passa a fazer parte do acervo semântico

do qual fazemos uso no cotidiano para falar sobre saúde e doença, assim como emoções,

sentimentos, sexualidade e as mais diversas frentes do comportamento.

As representações do cérebro são sempre produto do seu tempo, por mais que

todas elas pareçam inscritas em uma suposta natureza das coisas, assentadas em uma

fisiologia que sempre foi assim. Política, religião, economia, mundo do trabalho são

alguns dos temas com os quais a noção de ‘pessoa’ que emana de discursos sobre o

cérebro dialoga, de forma tensa, ou em mútuas confirmações a respeito do

cérebro/indivíduo ideal. Talvez, como afirma Geertz (1989), não faça sentido perguntar

quem nasceu primeiro, o córtex frontal ou a cultura e uma ampliação da capacidade de

simbolização; mas parece fazer sentido afirmar que as representações do cérebro – mais

ou menos próximas ao discurso científico –, essas sim, são devedoras do sistema

simbólico no qual estão inseridas. Pois, se uma hegemonia do cérebro não é nova no

que diz respeito a quem dita as ordens no corpo, a divulgação de novas idéias sobre este

órgão, amparadas pela autoridade do discurso científico, faz circular concepções

particulares sobre a pessoa que influenciam a visão de mundo do público leigo, as

concepções populares de um self-objetivo, nos termos de Dumit (2004).

Neste momento, há um processo de popularização de uma neuro-visão de mundo

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em marcha. Trata-se de uma concepção letrada e científica de pessoa, mas que parece

estar em ampliação para círculos cada vez mais abrangentes. É isso que tentei mostrar

aqui: longe dos fóruns científicos, o cérebro e as ciências que dele se ocupam ganham

espaço e autoridade como um sistema explicativo que interpreta e explica qualquer

fenômeno humano; além disso, as ciências do cérebro passam a produzir uma espécie de

bula para o bem viver, um conjunto de regras para quem queira buscar mais

produtividade, inteligência, felicidade e qualidade de vida. Ou seja, a neurociência deixa

de ser somente uma prática de laboratório para se tornar um modelo explicativo do

mundo, assumindo assim uma vocação intervencionista (cf. Russo e Ponciano, 2002).

Assim como uma psicologização da vida cotidiana já foi tema de estudos

antropológicos, especialmente a respeito das classes médias onde vicejaria uma cultura

individualista nas áreas urbanas, hoje não me parece exagero falar em uma

neurologização da vida cotidiana. Em alguns aspectos, os fenômenos são algo

similares: constituem um modelo explicativo do mundo e do comportamento individual

e social, que passa a informar com um vocabulário e saberes específicos uma forma de

entender as mais diversas faces do comportamento. É claro que, no caso dos discursos

sobre o cérebro que atravessam o dia-a-dia, existe uma óbvia tendência a um

determinismo biológico, ou melhor, um determinismo neurológico, no qual o cérebro é

visto como o grande culpado de tudo o que fazemos e sentimos.

Autores argumentam que uma visão cerebralizada da pessoa substituiria noções

mais internalizadas, nas quais se aceita um ponto inerentemente mais vago para a

localização da personalidade, responda ele pelos termos mente, alma ou como se queira.

De forma coerente com uma sociedade na qual o discurso científico ocupa uma posição

hegemônica, veicula-se hoje versões renovadas (e mais complexas, já que costumam

salientar o envolvimento de várias partes do cérebro) de um localizacionismo cerebral

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que avança pelos sentimentos e emoções. Mas neste trabalho fiz uma ressalva que

acredito ser importante a estas hipóteses. Não se trata de substituir certas linhas mestras,

certos fios condutores, valores centrais da chamada cultura ocidental moderna.

Liberdade, autonomia, interioridade, a valorização de uma expressividade do sujeito

continuam operantes como ideais no discurso neuro-psiquiátrico, mas eles são usados

no contexto de uma linguagem fisicalista que tem hoje no cérebro um foco, e por isso

insisti na noção de um cerebralismo como traço importante. O ponto de aplicação da

metáfora passa a ser o cérebro, mas seguem operantes os valores da liberdade, da

autonomia do sujeito e da construção de si como uma possibilidade e como um projeto.

As políticas da subjetividade são também uma política dos neurotransmissores, e estes

discursos não estão necessariamente em oposição. Fazer escolhas em relação à gestão

do cérebro pode ser representado como uma forma de auto-invenção.

Tanto no caso da publicidade relacionada às doenças e medicamentos do

cérebro, quanto no que diz respeito aos esforços de popularização/divulgação de

neurociência, trata-se de importar certos valores para dentro de uma linguagem

fisicalista. Cérebro e neurônios são personificados, sendo atribuídas a eles agência e

vontade; neurônios são apresentados como indivíduos agentes autônomos, que podem

fazer escolhas, interagir e ter intencionalidade. Logo, sublinho, é importante perceber

que esta linguagem cerebralista não prescinde de valores caros ao sujeito

contemporâneo.

Ao ser “mapeado”, e se tornar mais transparente ao escrutínio científico, o

cérebro passa a ser lócus de uma série de cuidados de si. Neste caso, as chamadas

tecnologias do self ganham uma faceta bastante peculiar, com um desenho quase literal,

já que self e cérebro se confundem no discurso que gera equivalências entre órgão e

pessoa. Ao migrar para o cotidiano e para a autoajuda, o discurso científico sobre o

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cérebro propõe um imperativo da saúde cerebral. O avanço midiático na direção de

espaços cada vez mais prestigiosos, e que atingem um público cada vez mais abrangente

– e, possivelmente, mais heterogêneo – é conseqüência, ao mesmo tempo em que atesta

e reproduz este imperativo.

Desenha-se um modelo de vigilância sobre o cérebro. Mas como se tornar

vigilante sobre um órgão que se mostra com alguma relutância às novas tecnologias? É

aí que entra a importância de uma perspectiva que trata a mente e seus ‘produtos’ como

epifenômenos. Metáforas são construídas para que se tenha acesso a uma imagem

possível de como o ‘órgão do espírito’ funciona; o cérebro, então, pode ser ‘como um

músculo’ – e não por acaso se escolhe como equivalente algo que pode ser exercitado,

que podemos ver crescer (ou não), de manifestação claramente física, e justamente em

tempos no quais é evidente uma cultura de construção do corpo. O cérebro, como o

corpo, passou a ser um rascunho sobre o qual podemos fazer escolhas, e não mais um

destino biológico. Ao mesmo tempo em que somos determinados neurologicamente em

uma série de aspectos, seríamos também a expressão das tensões entre nature e nurture.

Ao avançar pelo tom de auto-ajuda – não qualquer uma, mas a “auto-ajuda no

seu ápice”, por vir acompanhada da chancela e autoridade do discurso científico -, a

neurociencia não se limita mais a dizer quem nós somos, e passa a difundir idéias sobre

como devemos ser, se quisermos esticar nossa saúde no tempo, ou ganhar mais

qualidade de vida.

Uma neuroascese é um aspecto importante do cerebralismo contemporâneo; mas

é o neuroprazer que possibilita uma ampliação ainda maior de discursos neurocêntricos

sobre o cotidiano, e que possibilitou uma ampliação dos círculos interessados. Em um

sistema de divulgação científica como o que foi analisado aqui, o foco não está nos

males do cérebro, tampouco em um esforço equivalente ao ginástico para aumentar a

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produtividade do sujeito ou sua memória, mas destaca os circuitos cerebrais

responsáveis pelo prazer que sentimos nas ações as mais corriqueiras, através de

circuitos neurológicos de recompensa e motivação. Se, ao afirmar que o cérebro é o

órgão da civilização, naturaliza-se esta noção, além da de progresso e trabalho, agora se

naturaliza a busca por prazer.

Para além da neurociência como disciplina, é o discurso neurocentífico em

termos mais abrangentes que instaura uma nova pedagogia. Ela pode ser explícita, como

é o caso do material de popularização para crianças tratado no capítulo 3 (e, neste

sentido, soa como um projeto consciente), ou estar já incorporada a uma cosmologia

espontânea que se manifesta, por exemplo, em algumas reportagens na grande mídia.

A busca pelo bem-estar e pela qualidade de vida, por se manter motivado e por

manter o corpo saudável por dentro e por fora, que marcam a cultura urbana ocidental

como um dever cotidiano, ganha uma expressão de caráter neurológico. A divulgação

neurocientífica confunde-se, ao menos em casos aqui analisados, com a autoajuda

neurocientífica.

É no nosso acervo semântico, simbólico e ideológico, disponível em certo

tempo, que temos que buscar as fontes do discurso científico sobre o cérebro. Se cérebro

é quase hoje um sinônimo para pessoa em certas esferas discursivas, questionar-se sobre

representações a respeito do órgão é também se questionar a respeito de nossa

representação de pessoa. De fato, em um sentido para além da possibilidade de novas

conexões sinápticas se estabelecerem, fortalecerem ou enfraquecerem, de novas células

surgirem mesmo em um cérebro adulto, trata-se de um órgão historicamente plástico.

As paredes de um laboratório são permeáveis à cultura mais ampla, e por isso,

eventualmente, é possível perceber coincidências entre o que se diz do cérebro e o que

se espera de um indivíduo produtivo no sistema capitalista, ou entre o cérebro e a

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organização política de um Estado. Um cérebro plástico, que gosta de desafios, com

uma identidade, em certo sentido, mais fluida, que pode se reinventar conforme novas

circunstâncias para ser um cérebro bastante adequado ao espírito do nosso tempo.

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