A LEGITIMAÇÃO DO INTELECTUAL NEGRO NO MEIO ACADÊMICO BRASILEIRO, NEGAÇÃO DE INFERIORIDADE,...

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    A LEGITIMAO DO INTELECTUAL NEGRONO MEIO ACADMICO BRASILEIRO:

    NEGAO DE INFERIORIDADE,

    CONFRONTO OUASSIMILAO INTELECTUAL?*

    Ari Lima**

    Para Lande e Nelson Maca.Dois intelectuais subalternos.

    One day I learnta secret art,

    Invisible-Ness, it was called.I think it worked

    as even now you lookbut never see me...

    Only my eyes will remain to watch and to haunt,and to turn your dreams to chaos

    Meiling Jin

    Qual o homem negro mais conhecido e admirado no Brasil? Parecebvia a resposta. Este homem Edson Arantes do Nascimento, o Pel,o maior jogador de futebol do planeta, tambm eleito o atleta do scu-lo. Qual mulher negra to conhecida e unanimemente admirada noBrasil quanto Pel? Esta resposta no nada bvia, alis desconfio que

    * Este texto foi originalmente apresentado no GT Desigualdades tnicas e Sociais ocorrido no XICongresso Nacional de Socilogos, em Salvador, maio de 1999, coordenado pelos professoresLivio Sansone (UERJ/CEAA) e Jeferson Bacelar (UFBA) e no Frum Simptica Antropologiaocorrido na 22 Reunio Brasileira de Antropologia, em Braslia, julho de 2000, coordenadopelos professores Livio Sansone (UERJ/CEAA), Maria do Rosrio (UFBA) e Michel Agier(ORSTOM/CNRS). Agradeo aos coordenadores citados pela acolhida e estmulo e aos partici-pantes destes fruns. Agradeo ao parecerista annimo desta revista pelas crticas e sugestes.Tambm agradeo aos colegas do grupo de Estudos de Relaes Raciais no Brasil e no Mundo da

    Unicamp e, por fim, em especial, a Nelson Maca, Lande, Osmundo de Arajo Pinho e Sales A.dos Santos pela ateno, comentrios e sugestes.

    ** Doutorando em Antropologia Social na Universidade de Braslia - UnB.

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    no seja possvel alcan-la. Desconheo qualquer mulher negra brasilei-ra, viva ou morta, cujo nome esteja associado a mpar interveno cultu-ral, talento memorvel nas artes, universalmente celebrada no mundo aca-

    dmico ou em qualquer outra esfera social. Conhecida e unanimementealentada e admirada, acredito que temos no uma mulher negra, mas umasua representao naturalizada ainda que submetida ao arbtrio da hist-ria, uma sua verso biossocial melhorada, piv de uma complexa pro-blemtica racial, germe de uma inusitada questo de gnero genuinamen-te nacional. claro que estou aludindo quela que categorizamos comomulata, smbolo do pas do samba assim como Pel o do pas do futebol.Vitoriosos subalternos, sem nada a declarar uma vez que seus corpos so

    uma verdade visceral de ensimesmada eloqncia. Se masculino e sujeito, uma potncia individualizada, encerrada em um s homem negro. Sefeminino, uma representao coletiva, politicamente estril, descompro-missada com o gnero tanto quanto com a raa.1 Mas existe um outroBrasil possvel para os negros alm do samba e do futebol?

    Acredito que um outro pas possvel para o negro aquele esbo-ado no meio acadmico brasileiro. Entretanto, quando ciente da sua

    subalternidade, o intelectual negro saber dos limites da sua fala umavez que antes de ser agente reflexivo objeto cientfico. Saber quese sua conscincia subalterna lhe autoriza a falar sobre a diferena ne-gra no Brasil, por outro lado, espreita seu grau de incorporao de umaobjetividade cientfica universal, de ajuste a tropos e apelos disciplina-res. Ela seu senhor, a autoridade que o protege, como intelectual, dodescontrole do sentimento de diferena e da insurgncia que isto poderepresentar visto que se possvel registrar a diferena, h que se silen-

    1 Trabalharei aqui com categorias como raa, negro e cultura negra. Esclareo desde j queevitarei us-las em um sentido essencialista. Deste modo, absorvo a discusso de Mireya Surez,Desconstruo das categorias Mulher e Negro,Srie Antropologia, 133 (Braslia, Depto.de Antropologia/UnB, 1991) pp. 1-25, onde a autora afirma que enquanto os homens brancosso classificados como seres culturais, as mulheres de todas as cores e os homens negros tm sidosituados, em alguma medida, no campo da natureza que o campo do dado ao homem, dosubordinvel, do essencialmente imutvel e, portanto, impermevel ao arbtrio da histria. (...) Adominao exercida sobre mulheres e negros causada por interesses prticos e configura rela-es sociais substantivas. Entretanto, essas relaes de dominao somente podem acontecer

    quando existe um imaginrio inteligvel e persuasivo o suficiente para as pessoas poderem en-contrar nele sentidos para as relaes sociais das quais participam, seja enquanto dominadoras,dominadas ou, como mais freqente, dos dois modos, pp. 7;13.

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    ciar sobre as mais profundas compreenses, os mais profundos desejosde reverso da desigualdade racial e injustia social.2

    A condio de subalternidade a condio do silncio. (...) Osubalterno carece necessariamente de um representante por suaprpria condio de silenciado. No momento em que o subalter-no se entrega, to somente, s mediaes da representao desua condio, torna-se um objeto nas mos de seu procuradorno circuito econmico e de poder e com isso no se subjetivaplenamente. (...) Paradoxalmente, sua legitimidade passa a serdada por outra pessoa, que assume o seu lugar no espao pbli-co, essencializando-o como o lugar genrico do outro no poder.

    Da a busca constante por capturar o momento em que a re-presentao se funde a-presentao, pois ele especialmentepropcio para o surgimento de processos de insurreio e demovimentos sociais no cooptados e revolucionrios, na medidaem que as classes subalternas tentaro controlar o modo comosero representadas.3

    Deste modo, embora saiba, como quer uma teoria crtica, que

    constri verdades resultado do fluxo de enunciados compartilhados comseus nativos, de que ao invs de os fazer falar, traduz experinciasvivenciadas num encontro etnogrfico, como quer uma teoria clssica, ointelectual negro subalterno acaba por invisibilizar-se, apassivar e emu-decer sua autoconscincia, seu prprio corpo negro imiscudo no con-texto de pesquisa. Assim, como objeto de estudo, representado por umagrande maioria de pesquisadores brancos locais e estrangeiros vri-os, alis, autores srios e fundamentais , o negro tem sido constitudo

    como excesso etnogrfico4 , resduo de frica e deslocamento so-

    2 Gayatri Spivak, Can the subaltern speak?,in Patrick William & Laura Chrisman (eds). Colo-nial discourse and post-colonial theory. A reader(New York, Columbia University Press, 1994),pp. 66-111.

    3 Jos Jorge de Carvalho, O olhar etnogrfico e a voz subalterna, Srie Antropologia, 167 (Bra-slia, Depto. de Antropologia/UnB, 1999), pp. 1-30.

    4 Michel de Certeau, Etno-grafia. A oralidade ou o espao do outro: Lry, in Michel de Certeau,Aescrita da Histria (Rio de Janeiro, Forense-Universitria, 1989), pp.211-242, aponta o papel e o

    poder da escrita etnogrfica em pr os objetos e identidades em seu devido lugar,fazendo histriadaquilo que se esvanece num corte cultural de alteridade, na oralidade, na inconscincia, naespacialidade ou quadro sincrnico de sistemas sociais sem histria. Neste caso, Certeau ope a

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    cial em relao s branquitudes, que estes mesmos pesquisadoresrepresentam em seus campos de investigao. Como agente reflexivo,o lugar do negro na academia brasileira quase o da absoluta ausncia

    e negao. Este trabalho inicia ento um esforo de reflexo sobre aausncia e negao do negro no meio acadmico, um esforo de enten-der e explicar porque as relaes so como so e assumem uma devidaforma.5 Minha voz subalterna fala ento no apenas de uma opressoeconmica e racial, mas tambm de um passado histrico deinacessibilidade a campos de saber e poder legitimados, da contenode smbolos e valores negro-africanos, da restrio palavra e da difi-culdade do uso de categorias e conceitos que traduzam a minha experi-

    ncia como intelectual negro na academia brasileira.Reelaborando ento a questo ttulo deste trabalho, pergunto: qual

    o lugar do negro como objeto e como agente reflexivo na academiabrasileira? Qual papel tem desempenhado? Como tem sido instaurada asua legitimao? O que ser negro nos corredores e departamentosmais prestigiados da universidade brasileira? Para responder rigorosa-mente estas questes precisaria de muitas pginas, teria que coletar e

    analisar depoimentos de raros estudantes universitrios negros, teria queempreender uma rdua reviso bibliogrfica dos estudos sobre o negrono Brasil. Distante aqui de uma coisa e outra, recortarei a minha faladiscutindo trabalhos importantes de quatro clssicos da Antropologiasobre o Negro no Brasil Nina Rodrigues, Ruth Landes, dison Carnei-ro e Thales de Azevedo.

    Estes autores foram escolhidos, primeiro, pela importante contri-buio que deram ao desenvolvimento do pensamento sobre o negro noBrasil. Segundo, pelo esforo de deslocamento que cada um deles, aomeu ver, prometeram fazer, seja Nina Rodrigues, branco, racista, aristo-

    escrita que invade o espao e capitaliza o tempo palavra que no vai longe e que no re-tm. Dito de outra maneira, se a escrita isola o significante da presena, a palavra o corpo quesignifica, enunciado que no se separa do ato social de enunciao nem de uma presena que sed, se gasta ou se perde na nominao (Certeau, Etno-grafia, p. 217). Neste procedimento, aescrita produz um resto, um excesso etnogrfico ouvido, visto, mas no compreendido, que

    no se escreve, mas tambm define aquele etnografado.5 Joan W Scott, Experience, in Judith Butler e Joan W Scott (eds). Feminists Theorize the

    Political (NY, Routledge, 1992), pp. 22-40.

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    crata, logo aps o fim da escravido, nos primrdios das cincias soci-ais, defendendo a necessidade de se transformar o negro em objetode cincia; seja Ruth Landes lapidando um olhar estrangeiro sobre a

    questo racial brasileira; seja Edison Carneiro, negro de classe mdia,realizando, nos anos 30, bastante inconsciente, uma socioantropologiaauto-reflexiva; seja Thales de Azevedo, minando a reificao que eleprprio fez da democracia racial brasileira emblematicamentepresentificada no cotidiano, nas relaes sociais de uma Bahia hierr-quica, estamental e clientelista da dcada de 50.

    Alm do trabalho destes autores, vou considerar o drama social6

    que tenho vivido como doutorando no Programa de Ps-Graduao emAntropologia Social-PPGAS da Universidade de Braslia(UnB), de-pois de uma injusta e mal versada reprovao numa disciplina obrigat-ria ministrada pelo professor Dr. Klaas Woortmann, eminente nome daAntropologia do Parentesco, no Brasil. Acomodado ao status de exce-lente que adquiriu ao longo dos seus quase 30 anos de existncia, esteprograma um consistente resduo conservador no Brasil. Resiste adiscutir uma questo tabu na sociedade e na academia brasileira como a

    questo racial. No possui sequer um professor negro ou que se apre-sente como tal. Apesar de ser um dos seus raros alunos negros, numauniversidade visivelmente branca7 , o corpo de docentes que controla asinstncias de poder e deciso do PPGAS vem tentando sufocar as ten-ses e os conflitos gerados pela minha presena negra atravs de umdiscurso universalista e meritocrtico. Discurso este, contraditrio umavez que referenda o humanismo parcial que, no Brasil, favorece o seg-mento social branco. Ou seja, a condio, a fala e presena branca

    que se reatualiza como universal, positiva, neutra e contnua. Enquantoa negra parece s poder se inscrever como tal pela afirmao de umconflito de carter histrico e poltico do qual sou personagem.

    6 Victor Turner, Schism and Continuity in an African Society. A Study of Ndembu Village Life,Lusaka/New York, Institute for African Studies/University of Manchester, 1972.

    7 A propsito do alto grau de embranquecimento da UnB, evidente para ns estudantes negros

    autoconscientes, recentemente a indita pesquisa Desigualdades Raciais no Ensino Superior,realizada pela Profa. Delcele M. Queiroz ,do Programa A Cor da Bahia, da UFBA, apontoudados impactantes.

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    Construindo o negro como objeto de cincia

    Para o Negro s h um destino. E estedestino branco. A questo no ser

    Negro, mas s-lo para o Branco. Frantz Fanon

    Nos quatro autores citados possvel nomear alguns tropos e apelos queos norteiam. Nos dois primeiros, por exemplo, o negro um objeto cient-fico enfaticamente distanciado do pesquisador. Em Nina Rodrigues, istose d pela nomeao, aferio da homogeneidade e degenerao do ou-

    tro, atravs da afirmao de uma fora exterior, um saber mdico esocioantropolgico, que em sua certeza e superioridade naturalmenteexplicita uma subjetividade branca obscurecida. Ruth Landes, fragilizadapelo fato de ser mulher e estrangeira, num contexto dominado pelos ho-mens, revaloriza-se enfatizando todo o tempo sua fala de mulher branca.Nos outros dois autores, um compromisso subliminar com a reverso dasdesigualdades de classe e cor, a rejeio da tese da inferioridade atvicados negros no esvanece a ambigidade e nebulosidade de suas identida-

    des raciais refugiadas na assepsia de suas categorias analticas. Almdisso, a propalao da Bahia como uma regio racialmente mestia, atese da nossa radical diferena em relao aos EUA, do nosso mnimo detenso racial, da assimilao doce e firme das manifestaes dos negros um acordo tcito que ratifica uma enunciao branca sobre os negros.

    O esforo intelectual desta Antropologia similar quele que ClaudeLevi-Strauss atribuiu ao pensamento selvagem na sua relao com a

    natureza. Ou seja, os negros, expostos a nveis variados de interao ereciprocidade, so subjugados mediante observao metdica, posteriorclassificao, taxonomizao e representao da sua diferena, procedi-mentos cientficos que conduzem ao conhecimento.8 Estes procedimen-tos se ordenam a mente do selvagem, o fazem tambm em relaoquela do antroplogo, ao discriminar, registrar, colocar tudo aquilo que amente tem conscincia em um lugar seguro e fcil de achar, dando assim

    8 Claude Lvi-Strauss, A Cincia do Concreto, in Claude Lvi-Strauss, O Pensamento Selva-gem (Campinas, Papirus. 1997), pp. 15-50.

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    aos negros algum papel a cumprir na economia de objetos e identidadesque formam um ambiente. Porm, se estes procedimentos tm uma lgi-ca, suas regras no so previsivelmente nem racionais nem universais;

    so acompanhadas por valores histricos e em certa medida puramentearbitrrios.9

    O pioneiro Nina Rodrigues afirmava que no se deve confundir ovalor de certas pessoas homens negros ou de cor de merecimento,estima e respeito, civilizados e domesticados com o fato de que osnegros, como grupo racial, nunca puderam se constituir como povoscivilizados. Nina Rodrigues no via sada para esta raa compensar asua inferioridade e bestializao que no fosse a tutela moral, a condu-o intelectual, a vigilncia e o controle de padres culturais e comporta-mentais. A despeito do valor intelectual de Nina Rodrigues, da sua rele-vncia para a construo de um campo de reflexo, este substrato evo-lucionista e racista que informa a Antropologia sobre o negro no Brasil.10

    Nina Rodrigues, apesar de toda sua empfia, no deixou de serum intelectual lutando contra uma posio subalterna. Ao mesmo tempoem que acreditava e defendia o cosmopolitismo, a impessoalidade e uni-

    versalidade do saber cientfico gestado na Europa, exibia a crescenteabrangncia de seu saber mdico e terico social, atestava a incompati-bilidade e insuficincia deste saber para a anlise e soluo dos proble-mas nacionais num vaivm constante, que no se encerrou nele, entrea afirmao de nossa especificidade e a confirmao da cincia euro-pia como parmetro terico que permitia (ou no) valid-la.11 Assim que ao mesmo tempo que considerava cientficos os critrios deinferiorizao da raa negra, uma vez que para a cincia no estainferioridade mais do que um fenmeno de ordem perfeitamente natu-ral, produto da marcha desigual do desenvolvimento filogentico da hu-manidade na suas diversas divises ou sees12 , considerava anti-ci-

    9 Edward W. Said, O mbito do orientalismo, in Edward W. Said, Orientalismo. O Orientecomo inveno do Ocidente (So Paulo, Companhia das Letras, 1990), p.64.

    10 Mariza Corra,As Iluses da Liberdade: A Escola Nina Rodrigues e a Antropologia no BrasilBragana Paulista, Edusp, 1998.

    11 Corra,As Iluses da Liberdade, p. 10112 Nina Rodrigues, Os Africanos no Brasil, So Paulo/Braslia, Coleo Temas Brasileiros v. 40/

    Brasiliana v. 9, Editora Nacional/Editora Universidade de Braslia, 1988, p. 5

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    entfica e revoltante a explorao que desta raa fizeram os interessesescravistas.

    Estava em questo para Nina Rodrigues, o futuro e a definio do

    brasileiro como povo, a proteo de imagens ideais de uma nao brasilei-ra, a assegurar seu lugar no concerto das naes modernas, promissoras,pujantes. Logo, a presena massiva de negros livres nos centros urbanos,especialmente na Bahia, onde todas as classes esto aptas a se tornaremnegras, era um tema de magnitude. Acompanhando Silvio Romero, Ninaacreditava que, mais do que pea econmica, se tornava dever da inte-lectualidade no Brasil atentar para o valor do negro como objeto de cin-cia. Conhec-lo cientificamente, e de imediato moral e mentalmente, erareconhecer nossos limites inferiores mais baixos, dominar a possibilida-de de compensao diante das naes e povos brancos.

    Os negros que de certa forma entraram na sociedade civil com aabolio, se tornam o grande horror que Nina Rodrigues denun-ciaria sem trguas: a possibilidade da alterao, da transforma-o do branco em outro. As pesquisas de Nina so empreendi-das ento na tentativa de demonstrar essa alterao, j realizada,

    fosse no catolicismo pelas religies negras, fosse nas descen-dncias mestias, degeneradas pela presena do sangue negro.Ele concentrou ento na figura do mestio todas as possibilida-des negativas desta invaso interior. Essa preocupao, no seesgotou na enumerao de falhas biolgicas vistas como o re-sultado inevitvel de cruzamentos desiguais, mas se expressoutambm na denncia do perigo virtual do sangue negro contami-nar culturalmente as outras categorias sociais.13

    Indiretamente, ao estabelecer dois mundos incompatveis, um afri-cano brbaro, outro branco europeu civilizado e um terceiro mestiomanipulvel e degenerado, Nina Rodrigues ofereceu a pista para a legi-timao ideolgica do Brasil culturalmente sincrtico, racialmentemiscigenado e segregacionista. EmAfricanos no Brasil, por exemplo,o negro no existe em si mesmo, ele um objeto de transparncia su-postamente cientfica cujos valores, moral e viso de mundo, esto l

    13 Corra,As Iluses da Liberdade, pp. 168-169.

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    porque o prprio pesquisador os colocou. Negros especficos, eram, emseu gabinete de trabalho, fontes cooptadas, annimas e passivas.

    Um outro caso notvel da presena negra ainda como objeto, o

    livroA Cidade das mulheres, de Ruth Landes, antroploga norte-ame-ricana que chegou Bahia em 1938, enviada pelo Departamento deAntropologia da Universidade de Columbia para estudar a gente docandombl e o modelo racial brasileiro. Normalmente, os autores usamo trabalho de Ruth Landes para referendar suas crticas contra o idea-lismo de frica, a pureza nag ou o tabu da presena destacada dohomossexualismo no Candombl.14 Assim que Peter Fry, ao mesmotempo em que enfatiza o desgosto da autora pela presena dos homos-sexuais masculinos, ou a sua corroborao da opinio de que os homos-sexuais masculinos traem a tradio e a seriedade do culto das gran-des mes de santo, destaca a ousadia de Landes em tocar num tematabu, levantar uma polmica sobre a regularidade da presena de ho-mossexuais nos cultos afro-brasileiros e suscitar um debate sobre osrecortes e contradies da pureza nag.15 Patrcia Birman, por suavez, afirma que, na polmica levantada por Landes, chamava a ateno

    o fato de que a crtica autora ter se apresentado como uma defesado culto, como se o mesmo sofresse um ataque sua legitimidade pelapresena de homossexuais ou como se houvesse uma tentativa deestigmatizao dos j to sofridos negros. Afirma Patrcia Birman queArthur Ramos, Roger Bastide ou Melville Herskovits reagiram, certosde que Landes pecava ao questionar a correspondncia entre gnero esexo biolgico. Isto porque Ruth Landes afirmava a presena no Can-dombl de um papel feminino disponvel, que poderia ser assumido por

    homens desde que estes, homens no plano biolgico, socialmente, fos-sem identificados como mulheres.16 Deste modo, Ruth Landes no s

    14 Peter Fry, Homossexualidade e Cultos Afro-Brasileiros, in Peter Fry, Para Ingls Ver. Identi-dade e Poltica na Cultura Brasileira (Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1982), pp. 54-85; BeatrizGis Dantas, Vov Nag e Papai Branco. Usos e Abusos da frica no Brasil, Rio de Janeiro,Graal, 1982; Patrcia Birman, Fazer Estilo Criando Gneros. Possesso e Diferenas de G-nero em Terreiros de Umbanda e Candombl no Rio de Janeiro , Rio de Janeiro, Relume-Dumar/EdUERJ, 1995; Joclio Teles dos Santos, O Dono da Terra. O Caboclo nos Candom-

    bls da Bahia, Salvador, Sarah Letras, 1995.15 Fry, Homossexualidade e Cultos Afro-Brasileiros, p. 61.16 Birman, Fazer Estilo Criando Gneros, pp. 65-66.

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    acordou todos, para a presena de uma identidade masculina repugna-da, mas evidenciou que o matriarcado independia do sexo biolgico da-queles que o exerciam, era, portanto, um princpio religioso historica-

    mente construdo e legitimado, inclusive, atravs dos arqutipos de de-terminadas entidades msticas associadas aos sacerdotes.

    H, entretanto, outro aspecto de A Cidade das mulheres e daposio no campo de Ruth Landes, negligenciado pelos intrpretes cita-dos acima, que gostaria de enfatizar. Este aspecto diz respeito questoracial na Bahia e no Brasil.17 Landes afirma ter chegado Bahia jimpressionada com prvias informaes de que, ao contrrio do seupas, negros e brancos, conviviam juntamente de maneira civil e provei-tosa. Na introduo do seu livro, adianta que no discute problemas derelaes raciais na Bahia por que no havia nenhum, descrever, sim-plesmente, a vida de brasileiros de raa negra, gente graciosa e equili-brada, cujo encanto proverbial na sua prpria terra e imorredouro naminha memria.18 Por fim conclui, dizendo que

    em retrospecto, a vida de l parece remota e fora do tempo. Fuienviada Bahia para saber como as pessoas se comportam quan-do os negros com quem convivem no so oprimidos. Verifiqueique eram oprimidos por tiranias polticas e econmicas, mas nopor tiranias raciais. Nesse sentido os negros eram livres e podiamlivremente cultivar a sua herana africana. Mas estavam doentes,subnutridos, analfabetos e desinformados, exatamente como a gentepobre de origens raciais diferentes. Era a sua absoluta pobreza queos isolava do pensamento moderno e os obrigava a construir oseu prprio e seguro universo. Viviam no nico mundo que lhes

    era permitido e o tornavam ntimo e amistoso atravs da instituiodo candombl, cujo vigor, fausto e promessas de segurana sedu-ziam outras pessoas na Bahia e eram motivo de exaltao e orgulhopara o resto do Brasil.19

    17 Entre os intrpretes da obra de Landes citados preciso lembrar que Dantas, Vov Nag e PapaiBranco, p. 206, embora no se detenha sobre esta questo em Ruth Landes, constitui uma exce-o quando afirma que a autora percebeu, no seu contexto de pesquisa, a utilizao do negrobaiano como smbolo de identidade nacional, mas termina por proclamar a nossa democracia

    racial e cultural.18 Ruth Landes,A Cidade das Mulheres, Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira 1967, p. 219 Landes,A Cidade das Mulheres, p. 278.

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    Neste sentido, Melville Herskovits observa, numa resenha queescreveu sobre a edio em ingls de A cidade das mulheres, que,apesar das vrias qualidades do trabalho de Landes, a autora estava

    pouco familiarizada e pouco habilitada para lidar com aspectos delica-dos do seu campo de pesquisa:

    H vrias passagens emA Cidades das Mulheres que demons-tram a m preparao da Senhorita Landes. A autora conheciamuito pouco o background africano e perspectivas do seu mate-rial etnogrfico. Isto pode ser constatado tanto em detalhes quantona orientao geral da obra. Explica-se, assim, a m interpretaoou erros no entendimento do significado de dados sutis. (...) ofato que a autora revela pouco treino no manejo do que poderiaser chamado de aspectos diplomticos do trabalho de campo,perde-se, em muitos casos, por causa da no familiaridade com obackground histrico do campo sem corresponder s mais am-plas demandas da pesquisa etnogrfica.20

    Em sua perspectiva malinowskiana, Landes acreditava estar vi-vendo entre os negros baianos, participando de suas vidas, enten-

    dendo-os de fato. A autora percebeu as ambigidades nas relaesentre negros e brancos, entre intelectuais e o povo, entre cor, classe estatus, distncias estruturais entre mulheres e homens negros no Can-dombl, desigualdades sociais e econmicas entre um mundo branco eoutro negro, anotou a perseguio policial e moral s manifestaesculturais e religiosas dos negros, mas termina sua pesquisa confirmandoo que j sabia, ou seja, a suposta harmonia e inexistncia de conflitosentre um mundo negro brbaro e outro branco civilizado. Isto porque,contraditria como Bronislaw Malinowski21 , a autora confessa ter vivi-do entre os negros baianos hospedada num dos melhores hotis da po-ca, pagou praticamente a todos os seus cordiais informantes, no explo-rou mais detidamente suas contradies ou sobre o contexto racial noqual estavam inseridos, poucas vezes investiu ou aproveitou fontes que

    20 Melville J. Herskovits, The City of Women. Ruth Landes,American Anthropology, v. 50, n.1, Part 1 (January-march, 1948), Menasha/Wisconsin/U.S.A, p. 125. Traduo do autor.

    21 Bronislaw Malinowski,Argonautas do Pacfico Ocidental: Um relato do empreendimento eda aventura dos nativos nos arquiplagos da Nova Guin Melansia, SP, Abril Cultural, Co-leo Os Pensadores, 1978.

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    no fossem aquelas intermediadas por dison Carneiro, intelectual nati-vo, estudioso das religies afro-baianas.

    Acomodada s facilidades de acesso que obteve, doura do

    povo baiano22 , incapaz de compreender a posio dos seus informan-tes num sistema racial onde a desigualdade e a discriminao estavaminstitudas, onde a perseguio policial era norma e a sociedade semprehostil, como comprovam suas anotaes de campo, Ruth Landes ostrata como personagens maliciosos, dissimulados, interesseiros e sub-missos ao dinheiro que a pesquisadora usava para obter informaes.De fato, a malcia, a dissimulao, o interesse e a submisso ao dinheiroe prestgio do branco, neste caso representados por uma antroplogaestrangeira branca, foi um articulado estilo de negociao da gente docandombl. Este estilo, infelizmente ainda vigente na Bahia, est mar-cado basicamente por uma interlocuo assentada nas relaes de pres-tgio e interpenetrao de interesses23 , na aproximao e distanciamentocalculado do outro, rotinizado como superior e poderoso. Ao que parece,a autora no participou realmente da vida da gente que pesquisou, me-diou exageradamente seu encontro etnogrfico com os nativos baianos,

    atravs da figura sempre companheira de dison Carneiro.O estudo e registro da cultura e religio dos negros da Bahia foi

    trabalho de toda a vida de dison Carneiro. Ele escreveu sobre o can-dombl Ketu, mas tambm sobre o Angola e o Caboclo, sobre capoeirae samba.24 Desde de muito jovem se empenhou pela liberdade de ex-presso dos cultos afro-brasileiros, num momento de aberta e violentaperseguio policial aos terreiros de candombl, articulando com outros

    22 A propsito de uma discusso sobre a construo ideolgica e racializada de uma idia deBahia e dos baianos na literatura, no pensamento social e no senso comum, ver o excelenteartigo de Osmundo de Arajo Pinho A Bahia no fundamental: notas para uma interpretaodo discurso ideolgico da baianidade,Revista Brasileira de Cincias Sociais, V.13, n. 36, SoPaulo, Anpocs (1998), pp.109-120.

    23 Jlio Braga,Na Gamela do Feitio. Represso e Resistncia nos Candombls da Bahia , Sal-vador, CEAO/EdUfba, 1995, p. 70.

    24 dison Carneiro, Candombls da Bahia, s/l, Edies de Ouro, s/d; dison Carneiro, Ursa Mai-or, Salvador, CEAO/Conselho Editorial da UFBA, 1980; dison Carneiro, Folguedos Tradici-

    onais, Rio de Janeiro, Edies Funarte/INF, 1982; dison Carneiro,Religies Negras. NegrosBantos, Rio de Janeiro, 3a edio, Civilizao Brasileira, 1991.

    25 Dantas, Vov Nag e Papai Branco, p. 203.

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    intelectuais e o povo de santo a Unio das Seitas Afro-Brasileiras.Reconhecia, ainda que de certa forma monitorando-os25, a dignidade eautoridade intelectual de lideranas negras do mundo do Candombl

    baiano, sendo uma demonstrao disso, o convite que fez ao BabalaMartiniano Eliseu do Bonfim para que exercesse a Presidncia de Hon-ra do 2o Congresso Afro-Brasileiro e Ialorix Eugnia Ana dos Santos,conhecida como Me Aninha, do terreiro Ax Op Afonj, para queescrevesse o que se chamou Notas sobre comestveis africanos, apre-sentado aos participantes deste congresso, organizado por Carneiro,Aydano do Couto Ferraz e Reginaldo Guimares, em Salvador, em 1937.26

    Alm disso, sua projeo como intelectual descontente com a injustia

    social e racial, num momento em que o Brasil vivia sob a ditadura doEstado Novo, lhe obrigou a viver, durante os anos de 37/38, fugindo dapolcia poltica caadora de comunistas.27

    Em Candombls da Bahia, Carneiro cita nomes de famosos sa-cerdotes e sacerdotisas de poderosos terreiros da Bahia, com a intimi-dade e naturalidade de quem conviveu muito perto e em muitas circuns-tncias com todos eles. Bastante influenciado por Nina Rodrigues, ab-

    sorveu do mestre o mtodo gentico de procurar a frica na Bahia,mas criticou o exclusivismo sudans deste que, em sua opinio, o teriaimpedido de conhecer os negros bantos, a capoeira, o batuque, umasrie de festas populares de origem banto e os candombls Congo/An-gola.28 Obcecado pela preservao das razes africanas na Bahia, defi-ne o tronco genealgico formado pelos terreiros Jeje-nag/Ketu CasaBranca, Ax Op Afonj e Gantois como a inspirao institucional, fsi-ca, ritual e mtica de todos os candombls, inclusive os Congo/Angola.

    Neste sentido, observa Dantas que, em relao aos cultos afro-brasilei-ros e manifestaes culturais populares, dison Carneiro, tenha muda-

    26 Em relao aos termos iorubanos babala e ialorix, Carneiro, Candombls da Bahia (s/d),pp. 128;149, explica que o primeiro teria sido uma espcie de advinho, conselheiro e sacerdoteantigo que fora do candombl se dedicava ao culto do deus da advinhao If (Nag) ou F(JeJe), representado pelo fruto do dendezeiro. O segundo ainda termo com o qual se chama amulher cuja autoridade espiritual num terreiro de candombl s se curva a dos Orixs.

    27 Waldir Freitas Oliveira e Vivaldo da Costa Lima, Cartas de dison Carneiro a Artur Ramos,So Paulo, Corrupio, 1987, p. 46.

    28 Carneiro, Ursa Maior, p.56.

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    do, no decorrer do tempo, de uma postura de busca da origem e doculturalismo para uma perspectiva mais sociolgica

    Pelo menos enquanto residiu na Bahia (at 1940), sua obra eatuao, em relao aos cultos afro-brasileiros, so muito marca-das pela influncia de Nina Rodrigues e Artur Ramos. dandocontinuidade s preocupaes destes autores que dison Carnei-ro tentar conseguir para os candombls no s legitimidade, mastambm legalizao e, neste processo, faz-se um recorte em que seprivilegia a frica. (...) a linha bsica da argumentao para o pedi-do de legalizao do Candombl o fato de ser ele religio, idiaque vinha sendo trabalhada, desde Nina Rodrigues, restritivamente

    em relao ao nag, e que dison Carneiro alarga para abranger asoutras formas religiosas trazidas da frica. A busca pelo reconhe-cimento legal era circunscrita, pelos limites da herana africana,sobretudo da tradio mais pura. Como a feitiaria, o charlatanismoe a explorao que segundo ele campeavam entre os candom-bls de caboclo eram obstculos ao reconhecimento legal do Can-dombl como religio, era necessrio fiscalizar e controlar a orto-doxia dos cultos.29

    Enfim, a obsesso por uma frica idealizada, a recusa da magiae nfase nos aspectos religiosos do Candombl, a defesa dos terreirosmais tradicionais, como suportes do verdadeiro candombl, a recu-sa da reinterpretao da frica e a desestruturao simblica que osafro-brasileiros no filiados aos terreiros Jeje-nag realizavam, so limi-tes do trabalho de dison Carneiro, criticados por vrios autores.30 Almdisso, Dantas observa que a perspectiva terico-metodolgica de um

    autor como dison Carneiro contribuiu para a exotizao dos cultos afro-brasileiros e transformao do Candombl em smbolo de uma supostademocracia racial e cultural, desejado pelos brancos porque domestica-do.

    29 Dantas, Vov Nag e Papai Branco, p. 190-191.30 Fry, Homossexualidade Masculina; Dantas, Vov Nag e Papai Branco; Birman, Fazer Esti-

    lo Criando Gneros; Santos, O Dono da Terra; Jos Jorge de Carvalho, Violncia e Caos naExperincia Religiosa,Religio e Sociedade, 15/1, Rio de Janeiro, Campus, 1990, pp. 9-67;Clvis Moura, Sociologia do Negro Brasileiro, So Paulo, tica, 1988; entre outros.

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    Ainda em relao a dison Carneiro gostaria de enfatizar nova-mente um mesmo aspecto negligenciado por todos os autores citados,qual seja as implicaes da condio racial do autor, num contexto em

    que tinha como interlocutores referenciais dois autores brancos, NinaRodrigues e Arthur Ramos, e um autor negro, Manoel Querino.31 Tal-vez seja exigir demais que, no final dos anos 30, dison Carneiro, negrointelectualizado, de classe mdia, problematizasse seu status de cor eclasse, por outro lado, possvel conjecturar que estas suas especifici-dades interferiram ou determinaram suas relaes de campo e a cons-truo terica do seu objeto. Este aspecto me parece relevante, consi-derando o fato de que, embora desconhea qualquer meno do prprio

    dison Carneiro a este fato, sua condio racial , vez por outra, denun-ciada por outros autores.32 Ademais, nesta poca, a sociologia do negrono Brasil se consolidava como uma sociologia branca e

    Quando escrevemos branca no queremos dizer que o autor negro, branco, mulato, mas queremos expressar que h subjacenteum conjunto conceitual branco que aplicado sobre a realidadedo negro brasileiro, como se ele fosse apenas objeto de estudo e

    no sujeito dinmico de um problema dos mais importantes parao reajustamento estrutural da sociedade brasileira. Como pode-mos ver, o pensamento social brasileiro, a nossa literatura, final-mente o nosso ethos cultural, em quase todos os seus nveis,est impregnado dessa viso alienada, muitas vezes paternalista,outras vezes pretensamente imparcial.33

    dison Carneiro, em vrias oportunidades, pe no extremo da

    cincia objetiva, inteligente e imparcial, Nina Rodrigues e, por extenso31 Manuel Querino, Costumes Africanos no Brasil, Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1938.32 Vivaldo da Costa Lima in Oliveira e Lima, Cartas de dison Carneiro, p. 40, neste sentido,

    sugere uma conotao curiosa quando afirma que para dison Carneiro as religies africanasde Nina Rodrigues j eram religies negras e que dison Carneiro, ele prprio um negro embora um negro doutor viveu intensamente este tempo e participou (como negro ou comocientista?) da vida de muitas das comunidades religiosas da poca. Ruth Landes, guiada pordison Carneiro durante quase todo o tempo que esteve na Bahia, o define em A Cidade dasMulheres (1967) como um mulato aristocrata, que encarava a gente do candombl como se ofizesse por cima de um abismo, espcimes, embora naturalmente sres humanos com o direito

    inalienvel de viver como quisessem (Landes,A Cidade das Mulheres, p. 69).33 Moura, Sociologia do Negro Brasileiro, p. 9.34 Corra,As Iluses da Liberdade, pp. 207-313.

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    Arthur Ramos, um dos principais articuladores da Escola de Nina Ro-drigues34, e no extremo do empirismo, do erro e falta de inteligncia,Manuel Querino. Reivindica, deste modo, para si, uma linhagem terica

    que passa pela incorporao de argumentos e estabelecimento da con-tinuidade da obra de Nina Rodrigues, alm da cumplicidade com o m-dico e pesquisador Arthur Ramos. Como fez Nina Rodrigues e ArthurRamos, dison Carneiro apostou durante longo tempo na superioridadedos negros sudaneses e na verdade da tradio do Candombl Jeje-nag das tradicionais casas citadas acima. Seus informantes princi-pais e seu campo preferencial de observao, foram os nativos destascasas, em que ele e outros intelectuais da poca, eram amigos e prote-

    gidos. Casas que, necessitadas de proteo poltica e legitimao cultu-ral, estiveram prontas a criar espaos institucionais para brancos, abas-tados e personalidades influentes.35

    Ao meu ver, , portanto, o anseio pela filiao a uma cincia bran-ca, objetiva, paternalista e pretensamente imparcial que explica aextrema severidade, s vezes no limite mesmo da injustia crtica36

    com que dison Carneiro se refere ao pequeno funcionrio pblico,

    Manoel Querino, pesquisador orgnico dos cultos afro-brasileiros, con-temporneo do mestre e cientista racista e evolucionista, NinaRodrigues, com o qual dison Carneiro to complacente:

    Antes de tudo, Nina Rodrigues foi muito unilateral. Para ele, oproblema do negro na Amrica Portuguesa se resumia no proble-ma dos negros nags e jejes, no problema dos negros sudaneses.(...) Culpa de Nina Rodrigues? Talvez no. Foi o governo provi-

    srio da Repblica que mandou queimar os arquivos daescravido...Outro grande erro de Nina Rodrigues que foi,alis, como o acentua bem Artur Ramos, um erro do seu tempo, foi a escola antropolgica de Lombroso e Ferri, que endeusoua raa branca, reduzindo o problema da cultura a uma questo desimples pigmentao de pele e de medidas craniomtricas. Estaescola reacionria (...) muito atrapalhou o curso claro e certo doraciocnio de Nina Rodrigues. (...) Nem mesmo Manuel Querino,

    35 Dantas, Vov Nag e Papai Branco, p.202.36 Oliveira e Lima, Cartas de dison, p. 97.

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    que nasceu do ventre de uma negra, que tinha a cor a ajud-lo,que viveu num ambiente fetichista toda a sua vida de pequenoburocrata da Secretaria da Agricultura, nem mesmo Manuel

    Querino pe a disposio dos estudiosos to grandedocumentrio, tanto material a estudar. (...) Nina Rodrigues, seestivesse vivo, estaria conosco na trincheira, como um camara-da, (...) ele era um dos nossos.37

    Pior do que Nina foi Manuel Querino, que nem sabia dessasdivises dos negros da frica. Ele foi noticiando o que via emtorno de si, com a falta de inteligncia que sempre o caracterizou,sem indagar nada, mas tentando explicaes pueris para os ca-sos observados. De maneira que a gente, hoje, apenas pde uti-lizar o material eterno por ele trazido etnografia e psicologiasocial do afro-brasileiro, reinterpretando tudo, luz dos novosconhecimentos, atuais, sobre o continente africano.38

    Deste modo, temos um dison Carneiro, embranquecido, querecusa a influncia e o controle do mstico sobre os estudos de Querino,e qui dele prprio, que intelectualmente subordinado, superdimensionao distanciamento, aparentemente crtico e cientfico, de Nina Rodrigues

    sobre nativos vistos sempre como dissimulados.39 Insisto emproblematizar, deslocado no tempo e no espao, o que no passado talvezfosse impossvel ao prprio dison Carneiro faz-lo, porque considerofundamental ratificar as contradies de to importante intelectual ne-gro, comunista, defensor de polticas pblicas para os negros, masnada crtico em relao a sua posio enunciadora afinada aos argu-mentos racistas e evolucionistas de Nina Rodrigues. Se Nina Rodrigues,

    salvaguardado no saber cientfico, pretendeu determinar o atavismo in-ferior do negro, o dano moral, a degenerescncia e a falta de integridadedo mestio, apesar de apelar para o embranquecimento como salvao,dison Carneiro, aliado a Nina Rodrigues, escreve que os cultos negros,seja qual for o modo em que se apresentam, so um mundo, todo umestilo de comportamento, uma subcultura, que pode ser vencida (grifo

    37 Carneiro, Ursa Maior, pp. 55-56-57. Editado por mim.38 Carneiro,Religies Negras, p.128.39 Corra,As Iluses da Liberdade; Landes,A Cidade das Mulheres.40 Carneiro, Candombls da Bahia, p. 36.

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    meu) somente atravs de alteraes profundas e substanciais das con-dies objetivas e subjetivas arcaicas de que so certamente o refle-xo.40

    Ao contrrio destes trs primeiros autores, Thales de Azevedono se concentra no estudo da religio. Como fez dison Carneiro, Thalesde Azevedo no defende a inferioridade atvica do negro. Porm, assi-milado como este ltimo autor, Azevedo menos crtico do que poderiaser em seu trabalho de maior impacto, mais repercutido e discutido,sobre o qual farei, finalmente, algumas consideraes.41 A edio queconsultei apresentada e prefaciada por Maria Azevedo Brando, trazem anexo um outro trabalho de Thales de Azevedo, Classes sociais egrupos de prestgio, ausente da primeira edio patrocinada pela Unesco,em 1953.

    No Prefcio, Maria Brando contextualiza a obra, uma solicita-o da Secretaria Geral da Organizao das Naes Unidas, encami-nhada pelo Departamento de Cincias Sociais da Unesco, que sob ostraumas do dio racial e tnico vividos na Segunda Guerra, interessou-se por uma anlise da questo racial no Brasil, pas modelar no que

    dizia respeito a positiva convivncia entre brancos e negros. No incio,o projeto da Unesco contemplava apenas a Bahia, concorrendo paraesta deciso, a tradio de estudos sobre o negro na cidade de Salvadordesde o final do sculo XIX, e a atrao que este lugar e seu modelo derelaes raciais harmoniosas exerceu sobre vrios autores estrangei-ros, nos anos 30 e 40.42 A partir de 1951, Alfred Metraux foi encarrega-do de orientar pesquisas e publicaes sobre o tema realizadas em SoPaulo, Rio, Bahia e Recife. Na Bahia, Ansio Teixeira, ento Secretriode Educao e Sade, coordenou este projeto da Unesco, atravs deum convnio entre o Programa de Pesquisas Sociais do Estado da Bahiae a Columbia University (1949-53). Thales de Azevedo, amigo desde ainfncia de Ansio Teixeira, foi o intelectual escolhido para desenvolvere aplicar o projeto.

    41 Thales Azevedo,As elites de cor numa Cidade Brasileira. Um estudo de Ascenso Social &

    Classes sociais e grupos de prestgio, Salvador, EdUfba/EGBA, 1996.42 Marcos Chor Maio, O Projeto Unesco e a agenda das cincias sociais no Brasil dos anos 40 e 50,Revista Brasileira de Cincias Sociais, V. 14, n 41, So Paulo (Outubro de 1999), pp.141-158.

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    Sobre As elites de cor numa cidade brasileira, Antnio SrgioGuimares, citado por Maria Brando, afirma que do ponto de vistaterico, o estudo pouco inova em relao a Pierson, a quem, de fato,

    toma emprestado a tese de que o Brasil uma sociedade multirracialde classes. Do ponto de vista etnogrfico, entretanto, o ensaio inovamuito ao constatar e documentar a importncia do status atribudo, prin-cipalmente a origem familiar e a cor, sobre o status adquirido, comoaquele proveniente da riqueza e da ocupao.43

    Concordo que a originalidade deAs elites de corcontribuiu muitopara os estudos das relaes raciais no Brasil. Ao anotar e definir cate-gorias nativas de cor branco, preto, mulato, pardo, moreno e caboclo, Thales de Azevedo explicita os imbricamentos entre classe, cor estatus j sugeridos em Ruth Landes e at mesmo em Nina Rodrigues,quando distingue o negro digno de respeito, do negro como grupo racial.Enfatizando estas categorias, institui nos estudos das relaes raciaisum novo backgroundetno-racial que revela o gosto tnico e racialdos seus nativos. Este gosto tnico e racial manifestado sempre deforma ambgua, relacional, num contexto racializado, no qual ainda

    constrangedor falar sobre discriminao racial e preconceito, vai con-duzir Thales de Azevedo a desenvolver, em Classes sociais e grupos deprestgio, a fundamental distino entre status atribudo e statusadquirido.

    Porm, assim como dison Carneiro, Thales de Azevedo no dis-cute nem explicita o seu insiderism no campo de pesquisa, ou seja, atendncia em se acreditar que as melhores ou as nicas interpretaespossveis de um fenmeno sociocultural so aquelas dos nativos, dosinsiders.44 Tanto assim que dados e depoimentos ambguos, durantetodo o livro, so apenas descritos, as falas dos informantes se tornam aconfirmao de uma sociedade multirracial de classes, no qual o mundobranco tende integridade racial e cultural e o negro descontnuo econtraditrio em tantas categorias de cor, atribudas e adquiridas. Neste

    43 Azevedo,As elites de cor, p. 16.44 Livio Sansone, O Olhar Forasteiro: Sedues e Ambigidades das Relaes Raciais no Brasil,

    in Jeferson Bacelar e Carlos Caroso,Brasil: um pas de negros? (Rio de Janeiro/Salvador, Pallas/CEAO, 1999), pp.15-33.

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    sentido, escreve Thales de Azevedo que

    Brancos so, de modo geral, os indivduos de fentipo caucaside;as pessoas mais alvas, de olhos claros, de cabelos igualmente

    claros e finos so, muitas vezes, chamadas de brancos finos porno apresentarem indcios de mistura com tipos de cor. Podemser chamados de brancos tambm os ricos ou pessoas de statuselevado, seja qual for o seu aspecto: quem ouvisse uma pessoahumilde qualquer, uma empregada domstica ou um trabalhadorrural, branco ou preto, referir-se a meu branco, dificilmentepoderia convencer-se de que o termo estaria sendo aplicado aum mestio bastante escuro.45

    Enfim, o negro protegido, escolarizado, economicamente privi-legiado, mas vigiado e embranquecido, que se insere ou inserido nomundo branco que sob o risco de enegrecer-se, como j afirmavaNina Rodrigues diante de tamanha presena fsica e cultural dos negros controla a economia, a poltica, determina os valores do religioso, dacultura e do saber cientfico. Enquadrada, a discusso do autor em tornoda integrao social das pessoas de cor, e da inexistncia de conflito

    racial, to ambgua quanto a fala de seus informantes. Ao mesmotempo em que promove este modelo de acomodao, aponta, original-mente, sutis fontes de conflitos estruturais que no explora. EmAs eli-tes de cor, as relaes interpessoais legitimam a idia da harmonia e domnimo de tenses raciais, ratificam as posies hierrquicas e desi-guais entre brancos e negros. Mas, por outro lado, sugerem a constantesuspeita e ameaa de que o negro assimilado, por seu status adquirido,

    pode reviver seus defeitos de temperamento, posturas corporais, car-ter ou mentalidade desequilibrada.46

    Tal como dison Carneiro, que mesmo ao reconhecer os erros me-todolgicos e o racismo de Nina Rodrigues, continuou tendo-o como umdos nossos, um lutador contra a escravido intelectual do negro naAmrica Portuguesa47, Thales de Azevedo entrev algo mais, porm se

    45 Azevedo,As elites de cor, pp. 34-35.46 Azevedo,As elites de cor, pp. 57-58.47 Carneiro, Ursa Maior, pp. 56-57.48 Donald Pierson,Brancos e Pretos na Bahia, So Paulo, Companhia Editora Nacional. 1967.

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    acomoda no argumento de Donald Pierson48, sobre a assimilao eaculturao do negro ao mundo branco, e na idia de que a Bahia umasociedade multirracial de classes. De fato, naquele contexto, em que um

    autor branco, norte-americano, numa obra de repercusso internacional,j havia corroborado a desigualdade racial,As elites de cor, contrariandoas notas etnogrficas do seu autor, foi uma monografia engajada comuma certa poltica racial e com um programa anti-racista bem definido,encampado pela Unesco. Tratava-se de demonstrar a possibilidade emp-rica de convivncia de raas e etnias diversas, com o mnimo de tenso econflito raciais.49 Este engajamento curioso se lembramos que, em1953, Alfred Metraux, o coordenador das pesquisas da Unesco no Brasil,

    solicitou de Thales de Azevedo a excluso de dois outros artigos da edioem francs deAs elites de core, apenas trs anos depois, o autor publi-cou Classes sociais e grupos de prestgio, nos Arquivos da Universi-dade da Bahia; Faculdade de Filosofia,permitindo a criao da con-trovrsia sobre se, de fato, teria sido este o segundo artigo excludo.50

    Como leva a crer Guimares51 , Thales de Azevedo, j em Aselites de cor, tinha conscincia do forte iderio assimilacionista da po-

    49 Antonio Srgio Alfredo Guimares,Racismo e Anti-racismo no Brasil , So Paulo, Ed. 34. 1999,p. 130.

    50 Na edio de 1996, sobre Classes sociais e grupos de prestgio, anexado a As elites de cornuma Cidade Brasileira, Maria Azevedo Brando escreveu a seguinte nota: Este ensaio foipublicado pela primeira vez em 1956, nos Arquivos da Universidade da Bahia; Faculdade deFilosofia, Salvador, vol.5, p.81-91,1956, porm fora originalmente esboado para integrar, jun-tamente com ndios, brancos e pretos no Brasil Colonial, 1953, o trabalho que viria a ser Aselites de cor. No prefcio a Ensaios de Antropologia, Salvador, Universidade da Bahia, 1959,que inclui esses dois textos, o autor informa que a excluso dos mesmos deLes lites no teria

    ocorrido ...no houvesse desejado Mtraux o tipo de apresentao indicado..., (isto ) um livrosobre uma situao, a das relaes raciais e a da ascenso social das pessoas de cor em umacidade brasileira, que servisse para mostrar a outros povos uma soluo para o problema doconvvio entre tipos tnicos diferentes. Mas a importncia deste ensaio no poderia dispens-lodesta edio (Azevedo Brando, in Azevedo,As elites de cor, p.167). Para Guimares,Racis-mo e Anti-racismo no Brasil, p. 130, se parece bvio que Thales de Azevedo se refere a ndios,brancos e pretos no Brasil colonial: as relaes interraciais na cidade da Bahia como um dosartigos excludos por sugesto de Metraux, de fato, mais difcil aceitar que o outro fosse Clas-ses sociais e grupos de prestgio. Publicado apenas em 1956, traz cinco referncias, do total denove, a obras publicadas depois de 1954. De qualquer modo, Guimares no descarta a possibi-lidade do segundo artigo excludo ter sido realmente Classes sociais e grupos de prestgio.

    Alm disso, tanto Guimares quanto Brando parecem concordar que ndios, brancos e pretosno Brasilcolonial j significava uma nfase no preconceito e discriminao racial.

    51 Guimares,Racismo e Anti-racismo , p. 131.

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    ca, da expectativa que at mesmo intelectuais reforassem a interpreta-o oficial e dogmtica sobre o problema racial no Brasil. Minha ques-to, portanto, que Thales de Azevedo no acreditava realmente que a

    Bahia pudesse ser um exemplo para outras sociedades de como resol-ver o problema do convvio entre tipos tnicos/raciais diferentes. Permi-tiu que sua obra servisse a esse iderio porque no foi capaz de rompercom uma agenda poltica do Estado nacional, da opinio pblica, doscentros acadmicos hegemnicos e da Unesco.

    A crtica que Thales de Azevedo reprimiu em As elites de cor,desenvolveu sofisticadamente em Classes sociais e grupos de prest-gio. Como afirma Antnio Srgio Guimares, neste caso

    (Thales rompe com) a tese piersoniana da democracia racial deum modo que foi a um tempo simples e slido. A inovao deThales consistiu justamente em teorizar a transio do Brasil co-lonial para um Brasil moderno em termos da passagem de umasociedade de status para um sociedade de classes, indicandocomo a associao entre status e cor permanecia inclume nessatransio. Fiel ao texto weberiano, emprega a categoria de status

    como categoria de estrutura social (com o mesmo estatuto declasse e casta), e no apenas como simples categoria de interaosocial. (...) ao empreg-la dessa maneira, Thales de Azevedo en-controu terreno terico onde se poderia propriamente teorizar adureza, a rigidez e a importncia das distines de cor no Brasil.S, portanto, a percepo do status como fenmeno de estruturapermite a formulao radical de que: (segundo Thales) da obser-vao da sociedade da Bahia parece que se pode induzir que o

    status resulta de uma combinao de fatores como nascimento etipo fsico, que se deixam modificar, at certo ponto, pela fortuna,pela ocupao e pela educao. O status de nascimento e a corlimitam a distncia social de mobilidade vertical, quaisquer quesejam os demais elementos condicionantes. Essa foi sem dvidaa contribuio mais duradoura do mestre baiano para os estudosde relaes raciais e para luta anti-racista no Brasil.52

    52 Guimares,As elites de cor, p. 19.53 Thales Azevedo,Democracia Racial, Petrpolis, Vozes. 1975.

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    Mais tarde, em outro trabalho53 , Thales de Azevedo afirma queno Brasil no faltam evidncias de que a interao entre brancos e ne-gros so excepcionalmente tranqilas, de que o preconceito, a discrimi-

    nao, as preteries por motivo de raa so repelidos como antag-nicos aos valores abertamente aceitos e de que a democracia racial,para as elites e o senso comum, mais do que a expresso de uma reali-dade histrica, seria uma virtude prpria, inata, exclusiva e espontneado povo brasileiro. Observa, entretanto, que preciso ver at onde isso inteiramente verdadeiro, at onde na prtica a teoria outra e taldiscusso se torna um tema proibido, ao menos eticamente vedado anlise porque nada importa, nada realmente significa ou, ainda porque

    desperta a ateno para um fenmeno que no deve ser ressaltado pornegar a evidncia ou poder excitar supostas vtimas.54

    Para Guimares, Thales de Azevedo acompanhou, como poucos,as mudanas do cientfico ao politicamente correto: Oriundo do beromais nobre do racismo cientfico brasileiro, ajudou, com seus primeirostrabalhos, a feri-lo de morte, estabelecendo o novo consenso culturalistade negao das raas, de afirmao das cores e de louvao dos ideais

    de democracia racial. No durou muito, todavia, para passar a militarcontra a ideologizao desse novo consenso, desmascarando as racio-nalizaes e revelando as discriminaes e preconceitos raciais e decor.55

    Deste modo, submetido as presses sociais de seu tempo, mascomprometido com uma sociologia branca sobre o negro, realmentecontribuiu duradouramente para os estudos das relaes raciais no Bra-sil,porm,no que diz respeito luta anti-racista, antes que duradoura,sua contribuio foi politicamente comprometedora. Ao publicarAs eli-

    54 Azevedo,Democracia Racial , p. 5.55 Guimares,Racismo e Anti-racismo , p. 145.

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    tes de corisoladamente, em francs e pela Unesco, Thales de Azevedoperdeu a chance de desmitificar para o mundo, num momento estratgi-co, um tema proibido no Brasil. Perdeu a chance de vincular, eticamen-

    te, pensamento cientfico e ao poltica para o benefcio de vtimas docrime de racismo, que no so supostas, mas reais.

    Construindo uma experincia negrano meio acadmico brasileiro

    Ento, converto o branco brasileiro, sfrego de identificao como padro esttico europeu, num caso de patologia social. Ento,

    passo a considerar o preto brasileiro, vido de embranquecer seembaraando com a sua prpria pele, tambm como ser psicologi-camente dividido. Ento descobre-se-me a legitimidade de elabo-rar uma esttica social de que seja um ingrediente positivo a cornegra. Ento, afigura-se-me possvel uma sociologia cientfica dasrelaes tnicas. Ento, compreendo que a soluo do que, nasociologia brasileira se chama o problema do negro, seria umasociedade em que todos fossem brancos. Ento, capacito-me para

    negar validade a esta soluo.Guerreiro Ramos

    No Brasil, 102 anos aps a Abolio da Escravido, dados do Dieese(Departamento Intersindical de Estatsticas e Estudos Socioeconmicos)comprovam que mais de 60% da populao formada por negros querecebem os menores salrios, tm mais baixo nvel de escolaridade, ocu-pam os postos de trabalho mais precrios, convivem mais com o desem-

    prego, tm menor estabilidade em suas vagas e esto mais distantes doscargos de chefia, independentemente do nvel de escolaridade e atributopessoal considerado.56 No que diz respeito s relaes entre professo-res e alunos negros nas salas de aula, as concluses da dissertao de

    56 Ftima Prates, Salrio de negro menor, diz pesquisa, Folha de So Paulo, Caderno 2 Di-nheiro, So Paulo, (20 de outubro de 1999), p. 04.

    57 Eliane dos Santos Cavalleiro, Discursos e prticas racistas na educao infantil: a produo da

    submisso social e do fracasso escolar, in Educao, racismo e anti-racismo (Salvador, NovosToques/Programa A Cor da Bahia/Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais da Faculda-de de Filosofia e Cincias Humanas da UFBA, 2000), pp.193-219.

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    mestrado Do silncio do lar ao silncio escolar: racismo, precon-ceito e discriminao na educao infantil, defendida na FE/USP,pela professora Eliane Cavalleiro, so estarrecedoras. A autora consta-

    tou, em uma pr-escola municipal, num bairro de classe mdia de SoPaulo, que professoras tratam com enorme diferena alunos negros.So mais impacientes, menos carinhosas, chegam a humilhar as crian-as negras com expresses impensveis para quem responsvel poreducar.57 Na Bahia, a regio mais negra do pas, o quadro maisgrave. Cerca de 80% da populao formada por negros. Se 73,2%dos jovens brancos, entre 15 e 17 anos, s estudam, este ndice cai para53,2%, entre os jovens negros. Se, por um lado, tem aumentado a pro-

    poro de estudantes universitrios negros, estes ingressam nos cursosde menor prestgio.58

    Sou aluno regular do PPGAS (Programa de Ps-graduao emAntropologia e Sociologia) da UnB, considerado de excelncia, pelaCAPES. Entretanto, neste programa tenho vivenciado experincias queexatamente no me inscrevem pelo meu mrito intelectual, mas, comosujeito constitudo, sobretudo, atravs da experincia histrica discursi-

    va da minha condio racial. Pensar sobre esta experincia na UnB,portanto, tentar historicizar a identidade daquilo ou daqueles que aproduziram, ordenar e interpretar os domnios e aes sociais que merevelaram como negro inferior, suspeito, estrangeiro, fora de lugar,desestabilizador.59

    Porm, como pode um intelectual negro articular o confronto naacademia sem confundir sua fala com o discurso militante? Como podeincorporar em sua fala a ousadia, a criatividade, a acuidade que muitasvezes os movimentos negros organizados demonstram ter, uma vez quesua subalternidade a categorias de gnero, de raa, tnicas e de perten-cimento, requer do antroplogo negro, no campo, a categorizao ante-

    58 Estes dados esto disponveis no site do Programa A Cor da Bahia, da UFBA. A propsito vertambm, Delcele Mascarenhas Queiroz, Desigualdades raciais no ensino superior: a cor daUFBA in Educao, racismo e anti-racismo (Salvador, Novos Toques/Programa A Cor daBahia/Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais da Faculdade de Filosofia e Cincias

    Humanas da UFBA, 2000), pp. 11-44.59 Scott, Experience.60 Sansone, O Olhar Forasteiro.

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    cipada de si mesmo? Ele provm de um contexto sociocultural, defendeuma agenda poltico-cultural, observa os seus nativos, informado porum backgroundetno-racial. Sua conscincia tnica lanada tantas ve-

    zes de fora para dentro, visibiliza, tanto quanto pode obscurecer, a reali-dade do seu campo de pesquisa e enunciao.60

    O mito da democracia racial, que como mito fundador da socie-dade brasileira no verdade nem mentira, seduz tambm o intelectualnegro em sua vontade de comungar valores, construir solidariedade so-cial, fazer cincia e se legitimar.61 Entretanto, as verdades tcitas e ossilncios desse mito, so um sintoma de sua fragilidade e risco de rever-so da realidade intelectual e emprica que inventa. Vivemos numa de-mocracia racial em que, segundo dados do instituto de pesquisas Datafolha,89% dos brasileiros concordam que a sociedade racista, mas apenas10% se vem como tal, e, pardos e pretos, experimentam a discri-minao e desigualdade racial. Lamentavelmente, dados estatsticos dadcada de 1990 ainda so congruentes com as observaes empricasde Thales de Azevedo, da dcada de 50. O mito da democracia racial,ao tempo em que promete a anulao da cor/raa, no plano biolgico e

    cultural, dissimula a discriminao racial no plano sociolgico. Comodiscriminar algum que no existe? (...). Aqui se manifesta outra carac-terstica do mito da democracia racial brasileira: a invisibilidade da massados negro-mestios. Essa invisibilidade nega a existncia dos negros, oque em ltima instncia retira deles a humanidade e radicaliza a discri-minao contra os mesmos, porque da essncia do racismo adesumanizao do oprimido racialmente.62

    Mas, se o racismo desumaniza o oprimido racialmente, por outrolado, o humaniza parcialmente, ao reconhecer sua dignidade circunstan-cial, ambgua, ao v-lo como sujeito suspeito, inferior ao seu senhor,sempre fora de lugar. Lembro de uma passagem deA Cidade das mu-lheres quando Ruth Landes alerta dison Carneiro a evitar o sul dos61 Jess Souza, Multiculturalismo, Racismo e Democracia. Por que Comparar Brasil e Estados

    Unidos, in Jess Souza (org.),Multiculturalismo e Racismo (Braslia, Ed. Paralelo XV, 1997),pp.23-35.

    62 Dijaci Oliveira, Ricardo B. Lima e Sales A. dos Santos, A cor do medo: o medo da cor, in

    Dijaci Oliveira, Ricardo B. Lima e Sales A. dos Santos (orgs.).A cor do medo (Braslia/Goinia,Editora da UnB/Editora da UFG, 1998), pp. 37-60.

    63 Landes,A Cidade das Mulheres, p. 18.

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    Estados Unidos por causa de sua cor. Segundo Landes, o rosto de disonCarneiro se contorceu como se ela o tivesse chicoteado sobre os olhos.Agoniada, Ruth Landes pensou que um americano branco, acres-

    cento no devia fazer tais coisas a um mulato aristocrata, erudi-to.63 Para mim, a contoro do rosto de dison o receio do intelectualfora de lugar de transformar uma cicatriz (contoro) psicolgica emautovitimizao. E por que evitamos a discusso sobre a cicatriz psico-lgica da identidade negra?

    Um intelectual deve evitar a vitimizao, sob o risco de no sairde si mesmo e fragilizar sua argumentao cientfica. Para o intelectualnegro, evitar, o que de fato um risco, torna-se muitas vezes esquecerque pertence a um segmento social que nunca foi alcanado por polti-cas pblicas que atendessem e reparassem a histrica discriminaoque esse grupo racial sofre no Brasil. Esquecer que este segmento,expressivo na constituio do pas, parece acreditar que s tem a perdercom o enfrentamento poltico e cientfico da questo racial, uma vez quea evocao da harmonia racial, do mnimo de tenso, o desprezo problematizao coletiva de uma situao dramtica, uma soluo que

    atende tanto aos interesses pessoais e imediatos dos brancos, racistas eno racistas, beneficiados por uma determinada ordem racial, poltica,social e econmica que naturaliza, ou racializa, seus poderes e privilgi-os, quanto dos negros, convencidos de que o melhor a busca por satis-fao individual ou da pequena coletividade que pertence.

    No PPGAS da Universidade de Braslia, no ano de 1998, eu era onico doutorando negro e, segundo informaes extra-oficiais, o primeiroem toda a histria do curso de doutorado e o primeiro tambm a ser repro-vado numa disciplina obrigatria. Decidi ir para a UnB, apostando napositividade do deslocamento espacial, temporal e de hierarquia social64 ,no enriquecimento intelectual e humano que um programa tido como deexcelncia, instalado numa cidade atpica e inspita, poderia me ofere-cer. Negro, homossexual, baiano, egresso de outra rea disciplinar, nummeio conservador, tornei-me potencial vtima e agente desestabilizadorde uma estrutura social cujo curso regular das normas, desconhecia.

    64 Claude Lvi-Strauss, Tristes Trpicos, So Paulo, Companhia das Letras, 1996.

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    Minha reprovao gerou uma crise que transcendeu a sala de aula, oDepartamento de Antropologia e a UnB.

    Meu drama comeou no primeiro semestre letivo de 1998 quan-

    do, recm-aprovado no PPGAS da UnB, cursei uma disciplina chamadaOrganizao Social e Parentesco, ministrada pelo professor Dr. KlaasWoortmann. Trabalhei arduamente neste curso. No final do semestre,entretanto, fui sumariamente reprovado. Encaminhei pedidos para a re-viso de meno final, a trs instncias administrativas da UnB, todaselas indeferiram meu recurso. Finalmente, em 19 de maio de 2000, umaquarta instncia, o CEPE-Conselho de Ensino Pesquisa e Extenso discutiu, pela segunda vez, o processo e reconheceu (22 votos a favor x 4contra) que fui injustamente reprovado e me concedeu o crdito devido.

    fato que o professor Klaas Woortmann ditou sua disciplina comseriedade professoral. Mas fato tambm que neste primeiro semestreletivo fui aprovado nas demais disciplinas que cursei com menes SS,equivalente a 10 (dez) numa escala de 0(zero) a 10 (dez). Ainda assim,fui reprovado em Organizao Social e Parentesco sem ter recebidonenhuma indicao prvia de que meu rendimento durante o curso fos-

    se insatisfatrio. Um outro aluno reprovado no realizou todos os traba-lhos parciais durante o semestre, se ausentou de muitas aulas e j tinhauma reprovao em uma disciplina que cursou em semestre anterior.Como se pode constatar foi muito estranho o comportamento do profes-sor e obviamente excessivo o rigor que utilizou para julgar um trabalhoresultado de um semestre letivo inteiro de rduo trabalho. Quais motivoso levaram a se comportar assim?

    O professor Klaas Woortmann no aceitou negociar uma soluopara o caso, como por exemplo, melhorar ou refazer o trabalho. Aocontrrio, na conversa que tive com ele em sua sala, bastante agressivo,disse-me, na presena de vrios colegas, que era uma nulidade, quemeu trabalho era muito ruim mesmo. Alm disso, ao question-lo, noprimeiro pedido de reviso, por que no deu a devida ateno aos meustrabalhos parciais afirmou por escrito que: sobre trabalhos medocresno h o que comentar. Por que o professor, numa atitude antitica e

    antipedaggica, me negou como aluno e interlocutor, independentemen-te da qualidade dos meus trabalhos? O professor demonstrou, todo o

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    tempo, sua incoerncia e inqua avaliao. Por exemplo, a uma alunatambm prejudicada com baixa meno, afirmou que s no a reprovoucom MI (dois) porque seus outros trabalhos, apresentados durante o

    curso, possuam nvel satisfatrio. Ao mesmo tempo, afirmou que ape-nas o trabalho final definia a meno do curso. Esta mesma aluna impetrourecurso em primeira instncia e obteve uma mdia mais alta. Por queum tratamento diferenciado para uma outra aluna cujo trabalho o pro-fessor considerou tambm, a princpio, de nvel MI?

    Ao iniciar o processo do segundo pedido de reviso, a ento Co-ordenadora do PPGAS pediu ao ento Diretor do Instituto de CinciasSociais (ICS), responsvel pela constituio da comisso que julgaria osegundo pedido, que garantisse a iseno do processo, nomeando pro-fessores de departamentos diferentes e distantes do professor questio-nado. Ao contrrio disso, o Diretor do ICS constituiu uma comisso detrs professores do PPGAS, bastante prximos ao professor KlaasWoortmann. Com um deles, inclusive, o referido professor dividia sala.Alm disso, o Diretor do ICS pr-julgou o parecer da comisso, afir-mando, em conversa que tive com ele, que considerava muito difcil,

    quase impossvel que a comisso nomeada revertesse o quadro. Porque tanto desinteresse pela iseno e lisura no processo? Por que umevidente interesse em proteger o professor e me prejudicar? A comis-so nomeada pelo Diretor do ICS produziu um parecer lastimvel, buro-crtico e comprometedor de sua iseno: no considerou o contexto dadisciplina, no avaliou ou fez quaisquer comentrios aos procedimentosantiticos e antipedaggicos do professor Klaas Woortmann. Que esp-cie de futuros pesquisadores e professores este programa pretende for-

    mar? Por que tanto descaso subjetividade de alunos?Desde quando todo este processo estourou, boa parte dos alunos

    e uma grande maioria dos professores do Departamento de Antropolo-gia, foi omissa ou se manifestou no sentido de proteger a si mesmos e corporao a que pertencem. Estes professores perderam a chance de

    65

    A propsito, mais uma vez Guimares,Racismo e Anti-racismo, p.123 observa que na configu-rao do racismo ao modo brasileiro, baiano, mais um epteto que evidencia a naturalizaoda hierarquia social entre brancos e negros.

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    discutir mtodos de avaliao, de estabelecer alguma coerncia entre odebate antropolgico de sala de aula, no que diz respeito dignidade, aoreconhecimento da capacidade intelectual e dialgica de sujeitos margi-

    nais, de admitir o fato de que o professor tambm pode errar; despreza-ram uma carta de solidariedade assinada por um grupo de alunos doPPGAS, encaminhada chefia do departamento, assim como os pro-testos e a indignao de colegas e figuras emergentes do meio acadmi-co brasileiro; desconsideraram a fala perversa do ento Coordenadordo PPGAS, que afirmou que eu s podia ser baiano65 , que estava cri-ando muito problema, que tinha mesmo que ser expulso, pois ningumestava pedindo para que ficasse no PPGAS; ratificaram o imaginrio

    nacional sobre a questo racial no Brasil, ao transformarem uma suspei-ta de racismo, em questo inimaginvel, inominvel, tabu.

    No departamento, os dois nicos professores que se manifesta-ram abertamente contra a corrente e me defenderam, pagaram um altopreo pelo gesto. Um deles, antiga Coordenadora do PPGAS, foi desti-tudo de maneira, no mnimo, confusa, da coordenao, num momentoestratgico. Juntos, estes dois professores, estiveram temporariamente

    sob voto de censura para que no manifestassem suas divergnciasticas e polticas em relao ao grupo hegemnico do departamento,nem comentassem o meu caso fora e dentro da UnB.

    Acredito que se pode ver neste drama social, forte indcio decrime de racismo. Entretanto, como prov-lo? Quais dados, palavras,idias, representaes ou categorias podem sustentar esta suspeita? Oque posso realmente falar sobre isso? Ao contrrio, recebi fortes pres-ses para que me calasse, inclusive de professores do PPGAS. Confes-so que nunca me senti to bloqueado ou repercutindo o abandono hist-rico ao qual o segmento social a que perteno foi relegado. Deusesafro-baianos, se existem, nenhum amparo objetivo puderam me assegu-rar. Tambm a nenhuma voz negra coletiva, institucionalizada, legitima-

    66 No que diz respeito ao apoio de vozes negras institucionalizadas preciso notar que, no incio doprocesso, fiz contatos em Braslia que, pouco a pouco, se mostraram inconsistentes e se dispersa-ram. Muito prximo deciso do CEPE da UnB, que me concedeu o crdito devido, a organiza-

    o no-governamental ENZP-Escritrio Nacional Zumbi dos Palmares - aproximou-se do caso,conversou com meu advogado, teve acesso aos documentos produzidos, mas no interferiu nocaso, preferindo observar o andamento do processo.

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    da pude recorrer em meu favor.66 Qual de fato a minha autonomia,para representar esta experincia, se estou aprendendo a falar sobreraa e racismo no Brasil, justamente com aqueles sobre os quais levanto

    uma suspeita? Esta uma condio de subalternidade que me silencia.Tenho experimentado a inferiorizao, o isolamento, a comprovao dequo perversa qualquer tentativa de insero social de um negro nomeio acadmico brasileiro. Estou comprovando tambm que alegitimao de Pel, da mulata ou a minha prpria, assim como a deoutros jovens intelectuais afro-brasileiros, tende a ser no mnimo tortuo-sa. E no meio acadmico, onde a presena negra no nada naturalou ainda no foi naturalizada como a presena branca, que o sujeito

    negro se debate mais violentamente contra a negao da inferioridadeatvica, a assimilao embranquecedora ou o estabelecimento do con-fronto intelectual.

    Assim que, ao contrrio de outros contra-discursos importantes,como o feminino e o homossexual, no meio acadmico brasileiro, o con-tra-discurso dos negros no gera o mesmo circuito de adeso e solidarie-dade, uma vez que incide diretamente sobre a questo da nacionalidade67

    e a ordenao do poder. No meu caso, a cor da pele, mais natural que ognero ou a sexualidade, gerou uma certa expectativa em torno da minhaintelectualidade, formando um vazio de sentido para todos e para mimmesmo que acreditei na universalidade do conhecimento. Meu desloca-mento no foi apenas espacial, temporal e de hierarquia social, mas foitambm intelectual e poltico. Instaurou na UnB uma identidade negraque no mais confortvel do que aquela de Pel ou da mulata. Fui con-fundido, mais de uma vez, com africanos nos corredores da universidade.

    Estranhei o olhar inquisidor, a cumplicidade incmoda que um ou outrofuncionrio de servios gerais procurou estabelecer comigo. Sou um exem-plo de como a origem tnica e racial bloqueia a interlocuo, determinarelaes substantivas e tende a naturalizar posies, identidades que de-veriam ser relacionais: Assim o racismo brasileiro: sem cara. Travestidoem roupas ilustradas, universalistas, tratando-se a si mesmo como anti-

    67 Fernando Rosa Ribeiro, Ideologia nacional, antropologia e questo racial, Estudos Afro-Asiticos, 31, Rio de Janeiro, CEAA (outubro de 1997), pp. 79-89.

    68 Guimares,Racismo e Anti-racismo , p. 57.

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    racismo, e negando, como anti-nacional, a presena integral do afro-bra-sileiro ou do ndio-brasileiro. Para este racismo, o racismo aquele quesepara, no o que nega a humanidade de outrem; desse modo, racismo,

    para ele, o racismo do vizinho (o racismo americano).68

    Acredito que suposta inferioridade intelectual que me foi atribu-da por um professor doutor, de um Programa de Ps-Graduao emAntropologia Social, classificado como de excelncia, esteve amalga-mada a uma disputa por verdades cientficas sobre a diferena no civi-lizada, incompreensvel, impensvel, impondervel, representada emmeu corpo, em meu texto ainda amadurecendo. Para o outro branco,senhor de si, intocvel em sua experincia e prestgio acadmico, erapreciso me deter com seu desprezo, com seu conhecimento cientficono questionado. Submisso, eu deveria, primeiro, ter apreendido e assi-milado o que este outro enunciou sobre a minha diferena que nunca foiaceita, muito menos considerada discutvel, mas neutralizvel. Ao con-trrio, ciente da minha subalternidade, me apoiando neste outro, quisapontar falsidades ou equvocos, trair idias alheias sobre esta diferenaque certamente so compartilhadas pelo meu adversrio. Assim, antes

    que tocasse na questo, todos pareceram esquecer minha condio ra-cial, minha posio surpreendentemente superior, uma vez que estounum mundo onde o negro escassez, depois frisaram-na explcita eimplicitamente, sem demrito desta mesma condio, agora inferior,diante de um atestado de fracasso.

    Acredito, ento, que se o intelectual negro, um subalterno, noconsegue fugir de um sistema simblico dominante, no pode esquecerque sua fala no mais acadmica do que poltica. Uma vez imersonum sistema simblico onde no tem plena autonomia para representara si mesmo, deve buscar no apenas sua constituio como cientistasuperior, mas o compromisso e a afirmao de verdades que nuncadeixam de ser parciais.