A Importância Da Literatura - Luiz Gonzaga de Carvalho Neto

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A importância da Literatura Luiz Gonzaga de Carvalho Neto Então vamos lá. O tema de hoje seria a importância da literatura ou a importância da leitura de grandes obras de ficção. Este é um tema que não está completamente desligado dos temas das aulas que eu dei para vocês. Vocês devem se lembrar de que no começo das aulas de ética, nós falamos que um dos meios de o sujeito se instruir em matéria de ética é justamente por meio da leitura de biografias e de se informar sobre vidas humanas. E a literatura, ou pelo menos o melhor da literatura, tem como qualidade justamente apresentar ao leitor um horizonte humano mais amplo, que ele dificilmente pode experimentar na sua vida individual. Por exemplo, suponha que você vá trabalhar no serviço diplomático e você terá que tomar decisões acerca de dois países que estejam há cinquenta anos em guerra, num estado constante ou intermitente de guerra. Imagine que essas decisões terão um peso sobre milhares ou até milhões de vidas que estão passando ou têm passado às vezes a vida inteira em situação de guerra. Você não pode tomar essas decisões coerentemente se você não tiver a menor ideia do que é essa experiência. Mas, provavelmente, você nunca vai vive-la. Você já vai tomar essas decisões aos quarenta, cinquenta anos. Ou você tem que tomar, por exemplo, decisões você trabalha no serviço médico e você tem que tomar decisões sobre um paciente terminal. Você provavelmente também não vai ter essa experiência ou pelo menos você não teve essa experiência pessoalmente até aquele momento. Existem inúmeras situações humanas sobre as quais não temos nenhuma experiência direta. A única experiência que nós temos é o testemunho de outras pessoas acerca delas. Por exemplo, nós não temos a experiência direta do que é estar num continente no meio de uma guerra mundial ou viver num país logo depois de uma grande guerra; nós não sabemos o que é isso, existencialmente. Claro, eu posso me informar sobre essa situação lendo números e estatísticas acerca da situação daquele país durante a guerra ou depois da guerra ou lendo a história daquele país macroscopicamente; estudar a história mesmo daquele país e como aquela guerra ou aquela epidemia ou uma situação qualquer afetou o país como um todo. Ainda assim, isso não é experiência humana direta. Você não sabe o que isso significou concretamente para os indivíduos humanos que estavam lá. Como você vai fazer? Você vai entrevistar cada um deles? Você vai entrevistar duzentas, trezentas, quatrocentas, mim, cinco mil pessoas para saber o que era viver naquela guerra? Ou então você vai

Transcript of A Importância Da Literatura - Luiz Gonzaga de Carvalho Neto

  • A importncia da Literatura Luiz Gonzaga de Carvalho Neto

    Ento vamos l. O tema de hoje seria a importncia da literatura ou a

    importncia da leitura de grandes obras de fico. Este um tema que no est

    completamente desligado dos temas das aulas que eu dei para vocs. Vocs devem se

    lembrar de que no comeo das aulas de tica, ns falamos que um dos meios de o

    sujeito se instruir em matria de tica justamente por meio da leitura de biografias e de

    se informar sobre vidas humanas.

    E a literatura, ou pelo menos o melhor da literatura, tem como qualidade

    justamente apresentar ao leitor um horizonte humano mais amplo, que ele dificilmente

    pode experimentar na sua vida individual. Por exemplo, suponha que voc v trabalhar

    no servio diplomtico e voc ter que tomar decises acerca de dois pases que estejam

    h cinquenta anos em guerra, num estado constante ou intermitente de guerra. Imagine

    que essas decises tero um peso sobre milhares ou at milhes de vidas que esto

    passando ou tm passado s vezes a vida inteira em situao de guerra. Voc no pode

    tomar essas decises coerentemente se voc no tiver a menor ideia do que essa

    experincia. Mas, provavelmente, voc nunca vai vive-la. Voc j vai tomar essas

    decises aos quarenta, cinquenta anos. Ou voc tem que tomar, por exemplo, decises

    voc trabalha no servio mdico e voc tem que tomar decises sobre um paciente

    terminal. Voc provavelmente tambm no vai ter essa experincia ou pelo menos voc

    no teve essa experincia pessoalmente at aquele momento.

    Existem inmeras situaes humanas sobre as quais no temos nenhuma

    experincia direta. A nica experincia que ns temos o testemunho de outras pessoas

    acerca delas. Por exemplo, ns no temos a experincia direta do que estar num

    continente no meio de uma guerra mundial ou viver num pas logo depois de uma

    grande guerra; ns no sabemos o que isso, existencialmente. Claro, eu posso me

    informar sobre essa situao lendo nmeros e estatsticas acerca da situao daquele

    pas durante a guerra ou depois da guerra ou lendo a histria daquele pas

    macroscopicamente; estudar a histria mesmo daquele pas e como aquela guerra ou

    aquela epidemia ou uma situao qualquer afetou o pas como um todo. Ainda assim,

    isso no experincia humana direta. Voc no sabe o que isso significou

    concretamente para os indivduos humanos que estavam l. Como voc vai fazer? Voc

    vai entrevistar cada um deles? Voc vai entrevistar duzentas, trezentas, quatrocentas,

    mim, cinco mil pessoas para saber o que era viver naquela guerra? Ou ento voc vai

  • entrevistar mil, dois mil pacientes terminais para saber o que aquilo? Alm de isso

    demandar muito tempo, isso pode no te dar muita informao do que seja aquilo. Por

    qu? Porque as prprias pessoas que voc entrevista podem no ser hbeis em expressar

    a sua experincia; elas podem ser relativamente incapazes de expressar aquela

    experincia. No caso de experincias traumticas ou experincias crticas, mais ainda. A

    prpria experincia pode t-la tornado incapaz de comunicar a experincia. Mesmo

    experincias positivas, quando so extremas, tambm podem tornar o sujeito incapaz de

    express-las. Isso significa que, se ns dependemos exclusivamente da conversao

    diria ou mesmo do trabalho sistemtico de entrevistas, as informaes que obtemos

    sobre a condio humana so muito nfimas, so mnimas. A grande funo, talvez a

    maior funo da literatura de primeira ordem justamente transmitir experincias

    humanas que so difceis de se reproduzirem e cujo entendimento crucial para uma

    melhora na sua prpria vida ou, s vezes, na vida de sua esposa ou de seu irmo ou de

    seu pai ou de seu filho. s vezes, pode ser uma experincia que para voc mesmo no

    crucial compreender, mas s vezes compreendendo-a, voc entende algo sobre o seu

    vizinho ou seu filho ou sua esposa que voc nem imaginava.

    Na maior parte do tempo mesmo, quando convivemos com as pessoas que nos

    so muito prximas, ns vivemos cercados de desconhecidos e ns somos um

    desconhecido para eles tambm. Por qu? Porque no basta a simples convivncia para

    que voc possa compreender um outro, uma outra pessoa. A convivncia vai te dar um

    nmero muito maior de informaes acerca da pessoa; ento voc vai conhecer cada um

    dos hbitos cotidianos dela, do que ela gosta e do que no gosta, mas muitas vezes voc

    no encontra a chave explicativa que unifica todos aqueles hbitos. Voc no sabe por

    que aquela pessoa daquele jeito, voc no encontra o que d coerncia a ela; voc tem

    s uma coleo de informaes. Encontrar o que d coerncia a uma pessoa um

    trabalho que, s na observao, s vezes demanda vinte ou trinta anos. muito comum

    casais, depois de vinte ou trinta anos de casados, descobrirem: nossa, eu no sabia

    quem voc era e, agora que eu sei, no quero estar mais casado com voc. S descobri

    quem era voc agora. Essa uma experincia chocante, mas comum.

    Ns nascemos completamente ignorantes acerca da natureza humana e a simples

    experincia cotidiana no suficiente para nos explicar o que essa situao. Primeiro

    porque a condio humana incrivelmente rica; a diversidade interior que existe nas

    pessoas muito maior do que, por exemplo, a biodiversidade do planeta Terra inteiro. O

    grau de diferenciao das reaes, emoes, pensamentos e vontades das pessoas

  • muito maior do que todas as espcies animais e vegetais que existem na face da Terra.

    um campo de experincia muito vasto. muito comum voc encontrar pessoas que tm

    uma vaga sensao de solido, mesmo quando elas tm amigos s vezes so casadas,

    tm famlia, mas elas tm uma certa sensao meio vaga de solido ou de

    incompreenso. Vocs provavelmente j perceberam isso em pessoas, talvez at em

    vocs mesmos. De onde vem essa sensao? Essa sensao vem justamente do fato de a

    pessoa, apesar de ter todas aquelas informaes sobre as outras pessoas, no saber nada

    sobre elas; ela nunca entendeu uma nica pessoa sequer. Voc pode conhecer muitas

    pessoas e conviver com muitas pessoas e ainda assim no compreender nenhuma.

    Quantas pessoas, por exemplo, compreendem os seus pais ou seus filhos? A maior parte

    no os compreende como pessoas. As reaes das pessoas sempre nos causam alguma

    estranheza, porque no as compreendemos como pessoas. Uma das grandezas da

    literatura justamente isso; as grandes obras da literatura sempre nos do as chaves

    explicativas de um ou dois ou trs tipos humanos. muito raro uma obra que v te dar a

    chave explicativa de trs tipos humanos, mas de um ou dois todas as grandes obras, de

    repente, como se elas te dessem um tipo de lente com a qual voc pode ver um tipo de

    pessoa e entender o que est acontecendo l dentro. O que est acontecendo com a

    pessoa, est acontecendo dentro dela; o que est acontecendo com a pessoa o que est

    acontecendo com as emoes dela, com os sentimentos dela, com as vontades dela, com

    os pensamentos dela. Ento est tudo acontecendo l dentro; voc s sabe disso o que

    ela te fala, mas ela te d indicaes esparsas e imprecisas, porque a maior parte das

    pessoas no consegue expressar o que ela mesmo no de maneira completa.

    Justamente o que as grandes obras de literatura vo, em primeiro lugar, te dar isso:

    chaves explicativas de diversos tipos humanos, que vo como te permitir ver

    determinados tipos humanos de dentro, e no de fora. Ento, antes de verem as decises

    que a pessoa toma ou os sentimentos que ela tem ou as coisas em que ela cr, voc vai

    ver o porqu ela toma essas decises, ela tem esses sentimentos e ela cr nessas coisas e

    no em outras. Isso quer dizer que a literatura, primeiro, vai te dar um senso de

    profundidade para perceber as pessoas. A experincia cotidiana como o sujeito que

    tem um olho s; voc depender da experincia cotidiana para entender uma pessoa

    como o sujeito que tem um olho s. Vocs j perceberam que, com um olho s, voc

    no consegue avaliar distncias? a viso binocular que permite a avaliao de

    distncias. Quando ramos moleques, fazamos uma brincadeira muito fcil, muito

    simples: voc pega, pendura um fio, fala para o outro moleque tapar um olho e d um

  • pregador para ele. Depois de dois minutos com o olho s, fale a ele para encaixar o

    pregador no fio: ele vai por para trs, para frente, no vai achar. Porque voc no tem o

    senso da profundidade com um olho s. Ento o sujeito depender s da experincia

    cotidiana para entender uma pessoa a mesma coisa; voc tem uma viso chapada dela,

    voc no tem ideia do que est afetando-a profundamente ou superficialmente. O outro

    olho justamente o olho da literatura, em que a experincia humana est condensada e

    expressa, primeiro, por pessoas que eram excepcionais, exmias na arte de expressar;

    segundo, por pessoas que passaram por experincias pelas quais talvez voc nunca

    passe. Ento, por exemplo, como voc vai saber o que crescer numa casa em que o pai

    alcolatra? Como voc vai entender uma pessoa que viveu isso? Por que ela te conta

    ainda que ela te conte tudo o que aconteceu l, voc ainda assim no a entende. Voc

    precisa de algum capaz de como te fazer passar por aquela mesma experincia de

    modo imaginativo. Essa a primeira e mais bsica funo da literatura.

    Alm disso, a literatura tem outra grande funo, que a te por em contato no

    apenas com a extenso horizontal da humanidade quer dizer, com a diversidade de

    tipos humanos , como tambm de te por em contato com a humanidade enquanto

    sucesso histrica, enquanto sucesso temporal. Isso tambm quer dizer, a experincia

    de como o passado te afeta muito pequena diretamente. Voc sabe: o que meus pais

    fizeram afetou a minha vida. O que meus avs fizeram afetou a deles e deve ter afetado

    a minha de algum jeito. Mas voc no tem a ideia de como uma grande parte de sua

    vida, hoje, decidida por coisas que foram feitas mil ou dois mil anos atrs. Existem

    certos temas que se colocaram para a humanidade mil ou dois mil anos atrs e as

    propostas de soluo para estes temas determinam as nossas vidas at hoje. Ento, por

    exemplo, as discusses e as decises polticas: todas as discusses e decises e aes

    polticas feitas hoje no Ocidente tm, no mnimo, uma histria de trs mil anos; no

    mnimo. Voc pode retraar as decises e as aes e as posies polticas de hoje, no

    mnimo, at a Bblia. Como, ento, um pensamento se origina trs mil anos atrs e vai

    mudando at chegar deciso que um poltico toma no Brasil hoje e afeta a nossa vida.

    Isso outra coisa que a literatura vai te dar; ela vai te mostrar o processo de

    transformao das ideias em situao. As ideias geralmente demoram sculos para virar

    situao, para virar fato consumado. Quando elas viram fato consumado, parece para

    voc que aquele fato faz parte do cenrio do real; ele to natural quanto uma rvore ou

    quanto um planeta: isso simplesmente existe, voc no pode fazer nada a respeito.

    Mas se voc retraa a origem daquele fato, voc v: espere, isso aqui no um dado da

  • natureza, isso aqui foi um negcio que fulano-de-tal pensou h setecentos anos. Depois

    dele, cem anos depois, teve outro um sujeito que props que aquilo seja deste jeito

    assim. A mais cem anos depois, aconteceu no-sei-o-qu em tal pas e eles propuseram

    isso como lei. E assim a coisa foi indo e hoje em dia ela simplesmente parece um dado

    natural e imutvel, to invencvel quanto as leis da fsica. Voc no pode mudar as leis

    da fsica; voc pode se aproveitar delas para realizar algumas coisas, mas voc no pode

    mud-las. Mas existem muitas coisas na vida humana que parecem to firmes,

    imutveis e estveis quanto as leis da fsica e, no entanto, no so. Foram um dia apenas

    pensamentos.

    Essa outra sensao que as pessoas tm e elas no sabem da onde. A

    inteligncia humana como que tem um faro para a realidade; ela tem uma intuio

    natural do que a realidade. Ento, por exemplo, muitas pessoas tm a impresso ou a

    sensao de estarem aprisionadas ou de serem tiranizadas por um sistema, alguma coisa

    que manda nelas e simplesmente faz parte do real e no tem como elas mudarem.

    Muitas pessoas tm essa sensao muitas vezes. s por que todas elas so paranoicas?

    No ; isso um faro da inteligncia para perceber: espere, tem um monte de coisas

    aqui que estou considerando como peas do real e so s invenes da mente humana.

    E enquanto eu no retraar o processo pelo qual essas invenes passaram de

    pensamento a fato, eu no tenho como modificar esse fato. Ele , de fato, senhor da

    minha vida.

    Existem duas funes bsicas para a literatura universal. A primeira justamente

    isso: voc compreender os seres humanos, compreend-los como pessoas; compreender

    o que est dentro deles, a parte deles a qual voc no tem acesso direto. Nisso a se

    inclui tambm a compreenso das situaes da vida humana. E, por outro lado,

    compreender na vida humana o que criado pelo ser humano e o que no . O que faz

    realmente parte do cenrio natural e realmente um limite objetivo e efetivo ao

    humana e tambm a base para qualquer ao humana e o que no, o que s parece ser

    natural, mas no ; interveno humana sobre o real. Essas duas sensaes

    permanentes que so quase permanentes nas pessoas, elas so quase palpveis , que

    , uma, de uma certa solido ou incompreenso e, a outra, de restrio, aprisionamento,

    de estar submetido a uma espcie de tirania ou de estar dentro de uma espcie de priso;

    essas duas sensaes vagas para as quais as pessoas nunca encontram uma causa

    imediata. Voc pergunta a elas: no, mas por qu? Voc tem tantos amigos No,

    no isso Mas por qu? Seu casamento vai to bem No, no isso. A pessoa

  • no consegue captar o que est causando aquilo nela; ela s sabe que tem alguma coisa

    piorando a vida dela, num nvel muito bsico e profundo. E no sabe o que seja. Essas

    duas sensaes vm, so como que um grito da inteligncia do sujeito: olha, voc no

    completo enquanto no compreender mais sobre a natureza humana. impossvel que

    sua vida seja boa enquanto voc no compreender mais sobre o que a existncia

    humana, porque voc estar sempre s se voc no compreender uma pessoa, pelo

    menos uma. Ccero j dizia: um amigo mais necessrio do que a gua. Mas

    impossvel uma amizade real sem compreender o que o outro. Existe muita, claro,

    simpatia natural, ns simpatizamos com algumas pessoas e antipatiza com outras. E

    assim ns formamos nosso crculo de amigos. Mas quanto de nossos amigos ns

    compreendemos? E mais, quantos de nossos inimigos compreendemos? s vezes,

    aquele sujeito que nosso inimigo o nosso verdadeiro amigo, mas no temos a menor

    ideia de quem ele seja e pensamos: mas eu no gosto dele. s vezes, os fatores que

    levaram inimizade so perfeitamente irrelevantes considerando a realidade como um

    todo. Ento a mesma coisa para os amigos. E ainda: e os membros da nossa famlia, os

    quais fazem parte de nossa vida, querendo ou no; ningum escolheu seus pais nem seus

    irmos, nem seus filhos. Eles so do jeito deles e simplesmente esto l. Mais urgente

    ainda voc ter alguma compreenso de quem eles sejam; eles esto inexoravelmente

    ligados a sua vida.

    A linguagem humana, a linguagem articulada o nico meio at hoje, com todo

    o desenvolvimento da cincia e da tcnica, continua sendo o nico meio pelo qual voc

    sabe o que se passa pela cabea do outro; no tem outro meio. Mas justamente o sujeito

    que est submetido a uma situao humana , muitas vezes, o sujeito menos capaz de

    expressar aquela mesma situao. Mais ainda: a pessoa que voc queira compreender

    pode ela mesmo compreender a si mesma. Pode no se compreender, pode se ignorar

    completamente; ela pode ter uma viso de si mesma que totalmente irreal. Os fatores

    que levam um ser humano a ignorar completamente o que sejam os outros seres

    humanos so muito grandes. por causa disso que o ser humano inventou esse negcio

    que chama cultura; a transmisso para uma gerao de experincias de uma outra

    gerao. Essa transmisso continuada permite que num determinado momento um povo

    ou uma civilizao tenha um certo conhecimento suficiente do que seja a condio

    humana estocado ali. Hoje em dia, a civilizao ocidental tem alguns milhares de anos;

    nesses milhares de anos, eu digo, se produziram obras que transmitem mais do que o

    suficiente sobre a vida humana, sobre a condio humana, sobre os tipos humanos para

  • qualquer pessoa compreender a sua prpria vida e a vida dos que o cercam; qualquer

    um. Na verdade, ela produziu muito mais do que isso. A prpria cultura ocidental nos

    seus dois ou trs mil anos de histria tem matria suficiente para duas ou trs vidas;

    voc no consegue numa vida s assimilar tudo aquilo. Isso quer dizer que, simples,

    voc pode compreender cada vez mais sobre as pessoas em torno e, s vezes, num

    momento por acidente, numa obra voc descobre uma informao crucial sobre as

    pessoas mais prximas de voc. s vezes, sobre voc mesmo; no tem pessoa mais

    prxima a voc do que voc mesmo e, no entanto, pode ser a pessoa que voc mais

    ignora. E ali numa obra de literatura que a pessoa: caramba, eu sou assim. Isto o

    que eu sou e eu no sabia. evidente que nem toda produo literria dos ltimos

    sculos ou milnios chegou a esse patamar. Muito dela, a imensa maior parte na

    verdade, perfeitamente irrelevante e tem um prazo de validade de uma ou duas

    semanas. Tem menos validade do que um copo de iogurte. No vale a pena ler isso. Mas

    nesse tempo ns conseguimos acumular algumas centenas de obras que no

    brincadeira, eu digo todos os seres humanos deveriam ler. Pelo menos todos os seres

    humanos que vivem sob a civilizao ocidental. Porque essas obras vo dar a ele os

    meios de viver uma vida plenamente humana.

    Existe, no mundo em que vivemos, uma fora natural que nos atrai para

    vivermos como animais. Claro, a nossa maneira de viver como animais diferente da

    maneira dos cachorros ou dos lees ou das baleias. Mas existe uma dimenso animal na

    nossa vida e que no menos animal do que a dos animais s porque do nosso tipo.

    Ento o animal l no meio da floresta s pensa: eu preciso de uma toca, eu preciso de

    uma fmea e eu preciso de comida. Tenho trs necessidades bsicas. Pois , existe uma

    fora que nos arrasta na mesma direo; todo dia, ns: preciso de pagar as contas,

    preciso de no-sei-o-qu. No assim? Todos os dias vocs no esto com essa

    preocupao? Preciso de mandar algum para consertar isso aqui, preciso de limpar

    aquilo l, preciso de organizar no-sei-o-qu, preciso de pagar as contas. Pois , essa

    a nossa animalidade. Parece tudo tremendamente civilizado e bonito e humano, mas

    isso exatamente a mesma coisa do que um boi procurando grama; no mais nobre ou

    mais excelente. exatamente a mesma coisa. Claro, natural, ns temos um corpo, isso

    parte da nossa vida, mas isso no toda a nossa vida. Um boi nunca vai poder parar

    para refletir por que os bois agem daquele jeito e no de outro. Ah, por que os bois so

    diferentes dos cachorros? Um boi nunca vai entender outro boi, ele nunca vai entender

    a si mesmo, ele nunca vai entender nem a vaca. Ele no tem essa possiblidade. Ento, o

  • que acontece? Quando ele no realiza essa possibilidade, ele no se frustra, ele no

    sente que tem alguma coisa estranha. Para ele, perfeitamente natural: existe eu, existe

    grama e pronto. Thats all. Quando no tem grama ruim e quando tem grama bom.

    Ele no tem problemas existenciais; ele pode ter apenas problemas ecolgicos. Neste

    lugar no tem grama ou neste lugar no tem vacas. Srios problemas, mas no so

    problemas interiores. Ns podemos ter tambm estes problemas que o boi tem, e muitas

    vezes temos. Quando temos uma conta: ih, meu carto de crdito est estourado; essa

    a mesma coisa, o mesmo problema que o boi tem quando no tem grama, exatamente

    o mesmo. Parece um pouco mais humano ou sofisticado, parece civilizado, mas no ,

    no isso que civilizao. Isso o modo humano de ser animal; isso s o jeito da

    nossa espcie. Se isso em algo melhor do que a situao do boi quando procura a

    grama, por influncia justamente dessa outra parte da vida humana e do ser humano,

    que a possibilidade de compreender. Se a nossa situao material em algo melhor do

    que a do boi, e ela , por influncia dessa outra parte da vida humana que no tem

    quase nenhuma ligao com a parte material: que a necessidade real e efetiva de

    compreender os seres humanos. Essa necessidade pode no ser sentida, s vezes voc

    no a sente do mesmo jeito que s vezes voc no sente fome e s vezes voc no

    sente vontade de ir ao banheiro , mas no quer dizer que essa necessidade no exista.

    O que acontece que o objeto dessa necessidade indefinido em sua prpria

    mente. Ento voc a sente de maneira vaga. Quando ramos bebs, as necessidades

    fsicas eram a mesma coisa: todas elas eram indefinidas. Quando um beb sente uma

    coisa, ele no sabe se aquilo fome, se aquilo frio, se aquilo vontade de fazer xixi,

    ele no sabe. Ele s sabe: tem alguma coisa me incomodando. Eu no sei exatamente o

    que . Vocs j se viram diante desta situao? O beb est chorando e voc quer dar

    alguma coisa a ele; a voc faz tudo para ele e nada resolve. porque ele mesmo ainda

    no sabe o que ele quer, ele mesmo no sabe o que est o incomodando. E ns

    chegamos aos dois, trs, quatro anos e j compreendemos direitinho os diversos tipos de

    necessidades materiais; quando temos uma: isso aqui fome. Aquele l frio. Esse

    aqui dor. E assim por diante. Mas com as necessidades intelectuais demora muito

    mais tempo. Ns comeamos a ter uma ideia geralmente aos trinta anos, se dermos

    sorte. Muita gente vai passar a vida toda s sentindo algo que o perturba, que o

    incomoda e nunca vai identificar. Ele s vai pensar: isso deve ser um defeito estrutural

    da realidade. Ou de algum, exatamente: culpa do Presidente. Geralmente,

    tambm [risos]. Ento o que acontece justamente isso: as primeiras vezes em que

  • sentimos uma necessidade, ela aparece de maneira vaga e indistinta. Ela no vai

    aparecer como uma ideia em sua mente: preciso compreender o ser humano. Preciso

    compreender a vida humana. No vai aparecer assim. Do mesmo jeito que no aparece

    ao beb: voc agora precisa mamar. Ou agora voc precisa fazer xixi. Ou agora voc

    precisa de um cobertor. No lhe aparece assim; aparece como um vago e indistinto

    sentimento de insatisfao.

    Ento outra coisa que as pessoas sentem: um desejo de realizao. Elas sentem:

    parece que estou fazendo menos da minha vida do que ela poderia ter sido. Este

    outro sentimento frequente. Talvez nove entre dez pessoas que voc entrevistar e

    perguntar acerca disso, elas vo falar: puxa, mesmo. Eu podia ser tanto e estou sendo

    to pouco Por qu? Em parte, pelo menos metade desse sentimento est simplesmente

    mal direcionado; ela pensa que precisa fazer alguma coisa, realizar alguma coisa.

    Porque metade disso que voc s precisava compreender, e como voc no satisfez

    essa parte, voc ficou infeliz. E a outra parte consequncia de voc no ter

    compreendido. Por qu? Se voc realizou menos com sua vida do que poderia realizar

    porque voc no conhece o prprio instrumento de realizao, que voc mesmo. Se

    voc no conhece, voc no compreende as ferramentas de que voc dispe para

    realizar os seus objetivos, porque voc no conhece voc. Ento, por exemplo, voc no

    sabe quais so as dificuldades que voc capaz de suportar e quais so as que voc no

    . Das diversas coisas que voc quer, voc no sabe realmente quais so aquelas sem as

    quais voc no vai poder viver e quais so aquelas que, na verdade, eram dispensveis.

    Voc vai tomando as suas decises tateando: no, eu acho isso, eu acho aquilo, eu acho

    aquilo outro. Mas voc tambm se conhece to pouco que voc no pode aproveitar

    esse instrumento que voc para realizar sua vida. Como se fosse um mecnico que, de

    repente, entra na oficina do marceneiro e tenta usar aquelas ferramentas para consertar o

    carro; ele no compreende aquelas ferramentas. Ele vai fazer o melhor que ele pode,

    mas ele no vai fazer nada muito bom.

    Essas sensaes que temos acerca do mundo no existem porque o mundo

    injusto; estou dizendo a vocs, no porque existe um defeito estrutural na realidade

    que impede os seres humanos de serem felizes; no mesmo. Existe um axioma da

    filosofia natural que toda natureza que naturalmente frustrada inexiste; no existe

    nenhuma natureza naturalmente frustrada. No existe nada nesse mundo que tenha um

    propsito natural que seja naturalmente impossvel de alcanar. Essas sensaes no

    existem porque existe um defeito geral na realidade; elas existem porque ns no

  • lanamos mo dessa propriedade comum que a cultura. verdade que um nico

    indivduo humano, por si mesmo, sozinho, no poderia satisfazer todas essas

    necessidades; existe cultura justamente por causa disso. Sozinho, no vai dar, ele no

    vai conseguir. Claro que isso vlido at para a satisfao das necessidades biolgicas:

    sozinho, tambm no vai dar. Algum teve que te ensinar tudo do zero. O processo de

    satisfao das necessidades intelectuais ou espirituais semelhante, anlogo em tudo ao

    processo da satisfao das necessidades fsicas ou biolgicas. Qual a nica diferena?

    A diferena que progredimos muito nas ltimas centenas de anos, avanamos muito

    no meio de satisfao das necessidades naturais. Hoje em dia, como ns dissemos

    noutro dia, somos muito mais ricos do que os reis medievais. Qualquer um aqui nesta

    sala tem mais do que Lus IX. Para voc ter ideia, Lus IX foi um rei medieval ele no

    tinha nem uma empregada que arrumasse o quarto dele, porque no tinha dinheiro para

    isso. O nvel de conforto hoje em dia muito maior do que a humanidade podia

    imaginar. Mas para a satisfao das necessidades intelectuais e espirituais, ns

    continuamos tendo um nico instrumento, que a linguagem articulada. No se

    progrediu nenhum centmetro, nenhum milmetro nisso a. E, na verdade, praticamente

    impossvel que se progrida muito nesse sentido; mesmo no dia em que inventarem uma

    mquina que voc ponha na cabea do outro e saiba exatamente o que ele est sentindo

    voc sente o que ele est sentindo, voc pensa o que ele est pensando , esta mquina

    no vai te dar os meios de compreender o outro, vai te dar apenas uma experincia mais

    intensa do que o outro. Ento, at hoje, o nico meio de voc entender o outro ser

    humano por meio da linguagem; portanto, por meio da literatura. Os seres humanos

    no escreveram os livros apenas por diverso; verdade, muitos escritores escreveram

    apenas por diverso, porque era divertido para eles escrever ou porque eles queriam que

    voc se divertisse lendo o que eles escreveram. E, claro, de vez em quando devemos nos

    dedicar a isso tambm, muito embora esse tipo de literatura tenha sido superado em

    muito pelo cinema, pela televiso etc. A internet d muito mais diverso do que

    qualquer livro escrito apenas para divertir; mesmo porque geralmente voc encontra

    esse livro l tambm. Mas tambm muitos autores no escreveram porque era divertido

    escrever ou com a finalidade de divertir o leitor, mas escreveram porque eles tinham

    captado algo crucial sobre a vida humana e tinham uma necessidade intensa de

    transmitir isso para as geraes futuras. Opa, isso aqui faz uma grande diferena na

    vida das pessoas e elas no percebem. s vezes, elas percebem de modo to tnue que a

    ateno delas no consegue se fixar naquilo. Ento, me deixe tentar transmitir essa

  • experincia, esse fato sobre a vida humana de maneira estvel. Antes da literatura, os

    povos todos tinham tradies de contadores de histrias que possuam uma memria

    fenomenal; um dado comprovado pelos antroplogos que os povos que no possuem

    linguagem escrita tm uma memria do discurso muito mais aguada, muito mais forte.

    Praticamente, qualquer tribo de ndios possui uma tradio literria quase to vasta

    quanto qualquer outro povo que viveu no mesmo tempo que eles, mesmo que este outro

    povo tenha literatura, possua uma linguagem escrita. Mas ainda assim a mesma coisa,

    porque a linguagem escrita s o registro fsico da linguagem falada. A literatura, a

    linguagem escrita tem a vantagem de permitir que a experincia seja retraada depois de

    um lapso de tempo. Um sujeito escreve um livro hoje, talvez ningum o leia durante

    cem anos, esqueam aquilo, mas daqui a cem anos algum o descubra e leia e perceba

    de novo. Essa uma vantagem sobre a tradio oral; a tradio oral, uma vez

    interrompida, no pode ser retomada. Talvez o nico advento tecnolgico na

    transmisso do conhecimento humano tenha sido justamente a inveno da linguagem

    escrita; esse foi o nico salto, o nico avano tecnolgico na vida espiritual humana.

    Depois disso, no inventaram nada que melhorou ainda o negcio.

    O que eu estou tentando dizer a vocs aqui simplesmente que impossvel

    viver uma vida completamente humana sem lanar mo dessa herana. Isto no

    brincadeira: impossvel. Do mesmo jeito que teria sido impossvel a sobrevivncia se

    nos primeiros anos da nossa vida algum no tivesse cuidado de ns. Ns sempre

    pensamos: no, mas com essa parte interior eu me viro. Todo mundo possui uma

    espcie de complexo de Moiss ou complexo de Buda: a parte interior, a parte de

    compreenso do ser humano, eu sento aqui e entendo. Eu tiro de letra. O que todo

    mundo esquece que Buda, antes de fazer isso, se beneficiou passando quatorze lendo

    toda a tradio hindu acerca do que era a vida humana; e Moiss, a mesma coisa. Antes

    de eles sentarem agora eu vou resolver o problema da humanidade por mim mesmo,

    sozinho aqui , eles passaram dcadas assimilando toda a tradio cultural do seu povo,

    lendo. Eles passaram dcadas lendo e pensando. claro, dificilmente algum de ns aqui

    nesta sala vai passar algumas dcadas lendo e pensando e depois disso vai mudar o

    mundo como Buda mudou ou como Moiss mudou ou como Jesus Cristo mudou. Mas o

    nosso objetivo, na verdade, muito mais modesto: ns no queremos mudar o mundo,

    queremos mudar apenas a nossa prpria vida.

    Aluno: [?]

  • Exatamente. Mas que ele provavelmente estava sendo ensinado justamente da

    tradio cultural judaica. Embora o pai dele no exercesse o ofcio de sacerdote, no

    podemos esquecer que ele era da casta sacerdotal. Jos pertencia justamente tribo

    sacerdotal. No h nenhum caso na histria da humanidade em que um sujeito resolveu

    tudo do nada; na ndia, existe um dito: do nada, voc vira lobo. Porque na ndia tem

    muitos casos de crianas abandonadas na selva por famlias pobres e que foram criadas

    por lobos; existem at uns casos recentes da dcada de 60 e 70 que foram filmados e

    estudados por antroplogos. O que acontece? O sujeito vira lobo. Ele no sabe andar,

    no anda de p, s anda de quatro; ele s come carne crua; ele no sabe falar e no

    aprende mais. Para ns nos tornamos um ser humano, no do nada. Quando falamos

    essas coisas, no queremos diminuir a grandeza do Buda, de Moiss ou de Jesus Cristo;

    s estamos a enquadrando na realidade, mostrando que at esses caras fizeram isso, nem

    eles estavam dispensados desse trabalho. Logo, no sou eu aqui, Luiz Gonzaga no

    Brasil que estarei dispensado dele. mais ainda.

    Como falamos, o propsito deste trabalho para cada um tem que ser, primeiro,

    mudar a sua prpria vida, melhorar a sua prpria vida, identificar as causas exatas

    dessas insatisfaes. Entendam bem, ser humano conhecer; ser humano no pagar as

    contas, isso qualquer minhoca faz. Evidentemente, as minhocas pagam as contas delas

    com o real, tanto que elas vivem. Ser humano compreender e o principal objeto desse

    estudo o prprio ser humano. Claro, conhecer a fsica, a qumica, a matemtica

    muito bonito, maravilhoso. Mas tudo isso no serve para nada se o sujeito no

    compreender o ser humano. Existe uma obra notvel sobre isso, a obra chamada A

    defesa de um matemtico, de Thomas Hardy [G. H. Hardy]; foi um grande matemtico

    do sculo XX. Nesse livro, ele vai escrever o seguinte eu vou dar o resumo da obra :

    olha, matemtica um negcio maravilhoso, genial, incrvel. Eu passei a minha

    vida toda s estudando matemtica e a minha vida foi uma merda. No valeu a pena,

    no entendi sobre mim mesmo. Tudo o que eu quis, deu errado. Todas as pessoas de

    quem eu gostava se afastaram de mim. No entendi nada, ningum gosta de mim. A

    vida do matemtico uma droga. Porque essa foi a nica coisa que eu quis compreender

    da realidade ele mesmo fala eu posso at ter sido uma pessoa brilhante porque

    foi de fato um matemtico brilhante mas eu deveria ter usado essa inteligncia para

    um objeto mais interessante, mais til, que o ser humano. A obra interessantssima,

    porque tem vrios detalhes autobiogrficos e vrias coisas sobre matemtica por

    exemplo, nessa obra tem um captulo, um ensaio sobre a apreciao esttica das

  • frmulas matemticas. Provavelmente, a pessoa que tenha gostado um pouco de

    matemtica aquilo l um negcio brilhante, o sujeito era um gnio mesmo. Mas est

    l um registro de que isso aqui no basta. Vocs podem ser tornar um sujeito perfeito,

    um excelente profissional, um grande mdico, um grande matemtico, um grande

    poltico, um grande advogado, um grande ator; eu digo que isto no valer nada.

    Quando chegar ao final, voc ir dizer: no valeu a pena. Por qu? Porque o ser

    humano, enquanto ser humano, s serve para uma coisa: compreender. E ele no deve

    gastar essa vocao com ninharias. Essa uma vocao to sublime que est abaixo da

    dignidade dela ser desperdiada exclusivamente com objetos pequenos e mesquinhos.

    Essa coisa, que a inteligncia humana, voc a usa para entender do ser humano para

    cima; do ser humano para baixo, no vale. Para entender o ser humano ou coisas

    melhores. Menos do que isso, voc est jogando fora o seu talento.

    ****************************************************

    Tomando um cafezinho, eu estava conversando com alguns dos alunos e

    levantou-se uma questo interessante que o quanto a vida humana curta para esse

    trabalho da inteligncia; o quanto oitenta, noventa anos pouco para isso. E a se

    levantou uma questo: mas se h uma vida depois da morte, voc pode continuar. Esta

    uma questo interessante, porque se h uma vida depois da morte, ela puramente

    espiritual. Ento, se voc levou uma vida como a do boi, s pensando em pagar as

    contas e resolver esses problemas, na hora em que esta vida te for tirada, vai ser muito

    pior para voc se tiver outra vida depois dessa; se tiver uma vida puramente espiritual,

    na qual essa vida no existe mais. Tudo o que te definia como pessoa no existe mais,

    voc perdeu. Ento, havendo uma vida aps a morte, ela s de alguma maneira

    interessante para quem durante a sua vida nesse mundo se interessou de algum modo

    por uma atividade que fosse ela mesma tambm puramente espiritual. justamente s

    para a pessoa que dedicou a vida dela todo dia, uma ou duas horas por dia para esse

    trabalho da inteligncia, s para essa pessoa uma vida espiritual depois da morte tem

    algum interesse. Para as outras pessoas, essa vida seria um tormento, seria s um

    sofrimento.

    O prprio Cristo falou que o seu corao est onde esto os seus tesouros. O que

    um tesouro? uma coisa que sua mente acalenta como valiosa; uma coisa para a

    qual a ateno de sua mente se volta naturalmente. Se a sua mente est o tempo todo

    ocupada tenho que pagar a conta disso, tenho que fazer no-sei-o-qu, tenho que

  • arrumar aquilo , est s na vida biolgica, quando voc morrer ela vai continuar na

    vida biolgica. Se ela continua funcionando depois da morte, ela vai continuar no

    mesmo processo, porque esse o seu tesouro; s que esse tesouro estar longe de voc.

    Isto o inferno. A meditao tem que ter como base um tema que chamou a ateno.

    Existe um clssico sobre a meditao, uma grande obra sobre a meditao chamada

    Opsculo sobre a arte de aprender e de meditar, de Hugo de So Vtor. Hugo de So

    Vtor foi um pensador que viveu no sculo XI, passagem do sculo X ao XI. Ele fala:

    sim, uma das atividades mais importantes da vida humana meditar. A vida humana

    meditar. Mas ele mesmo fala: mas a meditao impossvel sem voc recoletar certo

    material acerca do tema da meditao, porque toda meditao acerca de algo. Onde

    voc vai achar esses temas? Ele dizia: s tem duas fontes de temas para a inteligncia

    humana: a natureza e os livros. No tem outras. Claro, se voc tiver a felicidade de

    morar no meio de um bosque maravilhoso, voc pode tomar como base para a maior

    parte de suas meditaes esse cenrio idlico. Voc sai da sua casa, senta do lado do

    riacho, fica ouvindo o barulhinho, v as rvores, o ventinho passando e a voc vai usar

    isso como temas de meditao. Se voc vive em um apartamento em Curitiba, eu sugiro

    que voc compre alguns livros; mais barato do que comprar o bosque.

    Aluno: [?]

    Sim, esse exerccio diz que s isso vida. O resto no vida, o resto um

    mecanismo cclico que nunca avana. Ns pensamos assim: se eu tiver mais dinheiro, o

    problema das contas vai sumir. Mentira. Se eu tiver mais dinheiro, o problema das

    contas vai mudar de escala e vai continuar existindo do mesmo jeito; se eu tiver um

    bilho de reais, o problema de contas ser na escala de um bilho de reais. Por qu?

    Porque isto um mecanismo cclico que no tem sada. como a necessidade de

    alimento, a necessidade de sono ou a necessidade de sexo tudo isso a so mecanismos

    cclicos. Vai dar uma volta no relgio e voc vai precisar disso de novo. E depois vai

    acontecer de novo, de novo, de novo, de novo e assim vai ser sua vida toda. Isso no

    vida, isso um mecanismo. somente na parte intelectual e espiritual que voc possui

    uma vida, quer dizer, um processo de desenvolvimento que no se repete, mas que se

    abre para universos cada vez mais amplos. Somente a existe um desenvolvimento real.

    Alis, esse um dos temas favoritos dos orientais em meditao: este mundo samsara;

    uma srie de ciclos que se repetem e que no se resolvem nunca. Essa a figura que o

    oriental tem do mundo natural e essa figura verdadeira, porque o mundo natural

  • assim mesmo, ele uma indicao que no se resolve. Existe inclusive um grande

    clssico sobre o pensamento oriental a respeito disso em lngua portuguesa: A doutrina

    zen da no-mente, de D. T. Suzuki. Este livro foi traduzido para o portugus e est uma

    traduo at razovel. Da quem se interesse por coisas orientais o que o oriental acha

    o que a meditao, o que ele acha o que o mundo, o que ele acha o que o ser

    humano d uma lida nesse livro. Foi um dos maiores pensadores orientais do sculo

    XX. Ele era considerado um sujeito to avanado nesse negcio de Budismo e Zen que,

    apesar de ser um leigo pai de famlia, ele era o diretor espiritual de muitos monges;

    muitos mosteiros o convidavam para instru-los acerca do que era meditao oriental, do

    que era vida espiritual.

    Diga.

    Aluno: [?]

    A mente o sujeito do pensamento. A mente o lugar onde se do os

    pensamentos; de maneira que a sala o lugar onde se d a aula, a mente o lugar onde

    se do os pensamentos. Os pensamentos e sentimentos vivem na mente do mesmo jeito

    que ns vivemos na Terra. Quem tem interesse sobre doutrinas orientais pode ler esse

    livro com grande proveito. Apesar de ser um livretinho, cento e vinte ou centro e trinta

    pginas, um negcio que pode acompanhar o sujeito pela vida toda; ele pode ler e

    reler e reler aquilo que sempre vai sair frutos.

    Isso a que pe o sujeito na dimenso realmente humana; s isso que nos

    distingue dos animais. No o nosso jeito de pagar as contas com o real. Os animais

    pagam com o esforo fsico; o boi tem que andar at a grama para pegar. E ns pagamos

    com um pedao de papel, mas esse pedao de papel significa esforo fsico, a mesma

    coisa. E pensem nisso: se existe uma vida aps a morte, ela um tormento para quem

    no viveu uma vida intelectual e espiritual antes da morte. Ela s perder o que voc

    tinha. Ento, com este pensamento, eu vos deixo. Se existe uma vida aps a morte, ela

    um tormento para quem no tinha uma vida intelectual e espiritual antes da morte; ela

    s perder tudo. Boa noite a todos.