A Formação e o Trabalho do Agente de Saúde

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Polticas de Sade: organizao e operacionalizao do Sistema nico de Sade

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FUNDAO OSWALDO CRUZ Presidente Paulo Buss Vice-Presidente de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnolgico Jos Rocha Carvalheiro Coordenador da rea de Fomento e Infra-Estrutura Win Degrave Coordenadora do Programa de Desenvolvimento e Inovao Tecnolgica em Sade Pblica (PDTSP) Mirna Teixeira ESCOLA POLITCNICA DE SADE JOAQUIM VENNCIO Diretor Andr Malho Vice-Diretora de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnolgico Isabel Brasil Pereira Vice-Diretor de Desenvolvimento Institucional Sergio Munck

Coleo Educao Profissional e Docncia em Sade: a formao e o trabalho do agente comunitrio de sade Coordenadora Mrcia Valria G. C. Morosini

Esta publicao contou com o apoio do PDTSP/Fiocruz2

Polticas de Sade: organizao e operacionalizao do Sistema nico de SadeOrganizadoras Gustavo Corra Matta Ana Lcia de Moura Pontes

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Projeto Grfico e Editorao Eletrnica Marcelo Paixo Capa Gregrio Galvo de Albuquerque Diego de Souza Incio Reviso Janana de Souza Silva Soraya de Oliveira Ferreira Reviso Tcnica Ana Lcia de Moura Pontes Anamaria DAndrea Corbo Gustavo Corra Matta Mrcia Valria G. C. Morosini

Catalogao na fonte Escola Politcnica de Sade Joaquim Venncio Biblioteca Emlia Bustamante M435p Matta, Gustavo Corra. Polticas de sade: organizao e operacionalizao do sistema nico de sade. / Organizado por Gustavo Corra Matta e Ana Lcia de Moura Pontes. Rio de Janeiro: EPSJV / Fiocruz, 2007. 284 p. : il. , graf. ; - (Coleo Educao Profissional e Docncia em Sade: a formao e o trabalho do agente comunitrio de sade, 3). Coordenadora da coleo Mrcia Valria G. C. Morosini. ISBN: 978-85-98768-23-6 1. Sistema nico de Sade. 2. Poltica de Sade. 3. Brasil. 4. Avaliao em Sade. 5. Agente Comunitrio de Sade. 6. Livro Didtico. I. Ttulo. II. Pontes, Ana Lcia de Moura. CDD 362.10425

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AutoresAna Lcia AbrahoEnfermeira sanitarista, doutora em Sade Coletiva Sade pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), professora e pesquisadora da Escola de Enfermagem da Universidade Federal Fluminense (UFF).

Arlinda B. MorenoPsicloga, doutora em Sade Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/Uerj), professora e pesquisadora da Escola Politcnica de Sade Joaquim Venncio da Fundao Oswaldo Cruz (EPSJV/Fiocruz).

Carlos Gonalves SerraCirurgio-dentista, doutor em Sade Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/Uerj) e professor do Mestrado de Sade da Famlia da Universidade Estcio de S.

Cludia Medina CoeliMdica, Docente do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina e Instituto de Estudos em Sade Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IESC/Ufrj).

Cristiani Vieira MachadoMdica sanitarista, doutora em Sade Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/Uerj), professora e pesquisadora do Departamento de Administrao e Planejamento em Sade da Escola Nacional de Sade Pblica Sergio Arouca da Fundao Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz).

Elaine Silva MirandaFarmacutica, doutoranda em Sade Pblica na Escola Nacional de Sade Pblica Sergio Arouca da Fundao Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz), pesquisadora do Ncleo de Assistncia Farmacutica do Departamento de Cincias Biolgicas da Escola Nacional de Sade Pblica Sergio Arouca da Fundao Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz). 5

EDUCAO E SADE

Elizabeth Moreira dos SantosPh.D Community Health UI USA, pesquisadora titular do Departamento de Endemias Samuel Pessoa da Escola Nacional de Sade Pblica Sergio Arouca da Fundao Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz) e coordenadora do Laboratrio de Avaliao de Situaes Endmicas Regionais(LaserEnsp/Fiocruz.

Gabriela Costa ChavesFarmacutica, mestre em Sade Pblica pela Escola Nacional de Sade Pblica Sergio Arouca da Fundao Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz) e pesquisadora do Ncleo de Assistncia Farmacutica do Departamento de Cincias Biolgicas Escola Nacional de Sade Pblica Srgio Arouca da Fundao Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz).

Gustavo Corra MattaPsiclogo, doutor em Sade Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/Uerj) e professor pesquisador da Escola Politcnica de Sade Joaquim Venncio da Fundao Oswaldo Cruz (EPSJV/Fiocruz).

Kenneth Rochel de Camargo Jr.Mdico, doutor em Sade Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/Uerj), professor adjunto do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado Rio de Janeiro (IMS/Uerj).

Luciana Dias de LimaMdica sanitarista, doutora em Sade Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/Uerj), professora e pesquisadora do Departamento de Administrao e Planejamento em Sade Escola Nacional de Sade Pblica Sergio Arouca da Fundao Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz).

Marly Marques da CruzPsicloga, doutora em Sade Pblica pela Escola Nacional de Sade Pblica Sergio Arouca da Fundao Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz) e pesquisadora visitante do Departamento de Endemias Samuel Pessoa (Ensp/Fiocruz). 6

Orenzio SolerFarmacutico, doutor em Cincias Socioambientais, profissional nacional em Assistncia Farmacutica da Organizao Pan-Americana da Sade (Opas).

Paulo Henrique RodriguesSocilogo, doutor em Sade Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/Uerj) e professor do Mestrado de Sade da Famlia da Universidade Estcio de S.

Tatiana Wargas de Faria BaptistaPsicloga, doutora em Sade Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da Universidade do Rio de Janeiro (IMS/Uerj), professora e pesquisadora do Departamento de Administrao e Planejamento em Sade da Escola Nacional de Sade Pblica Sergio Arouca da Fundao Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz).

Vera Lucia LuizaFarmacutica, doutora em Sade Pblica pela Escola Nacional de Sade Pblica Sergio Arouca da Fundao Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz), pesquisadora e coordenadora adjunta do Ncleo de Assistncia Farmacutica do Departamento de Cincias Biolgicas da Ensp/Fiocruz.

Waldir da Silva SouzaSocilogo, mestre em Sade Pblica pela Escola Nacional de Sade Pblica Sergio Arouca da Fundao Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz), doutorando em Sociologia pelo Instituto Universitrio de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj) e professor da Universidade Estcio de S.

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SumrioApresentao da Coleo Apresentao do Livro Histria das polticas de sade no Brasil: a trajetria do direito sade Tatiana Wargas de Faria Baptista Princpios e Diretrizes do Sistema nico de Sade Gustavo Corra Matta O Legislativo e a Sade no Brasil Tatiana Wargas de Faria Baptista e Cristiani Vieira Machado Participao Popular e Controle Social na Sade: democratizando os espaos sociais e agregando capital social Waldir da Silva Souza Configurao Institucional e o papel dos gestores no Sistema nico de Sade Cristiani Vieira Machado, Luciana Dias de Lima e Tatiana Wargas de Faria Baptista Notas sobre o Planejamento em Sade Ana Lcia Abraho O Financiamento da Sade no Brasil Carlos Gonalves Serra e Paulo Henrique Rodrigues 11 23 29

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O Medicamento na Poltica de Sade no Brasil: como os agentes comunitrios de sade podem contribuir para a promoo do acesso e do uso racional dos medicamentos? Vera Lucia Luiza, Gabriela Costa Chaves, Elaine Silva Miranda e Orenzio Soler Informao e Avaliao em Sade Kenneth Rochel de Camargo Jr., Cludia Medina Coeli e Arlinda B. Moreno Avaliao de Sade na Ateno Bsica: perspectivas tericas e desafios metodolgicos Marly Marques da Cruz e Elizabeth Moreira dos Santos

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Apresentao da ColeoEducao Profissional e Docncia em Sade: a formao e o trabalho do Agente Comunitrio de Sade A coleo Educao Profissional e Docncia em Sade: a formao e o trabalho do Agente Comunitrio de Sade, organizada pela Escola Politcnica de Sade Joaquim Venncio da Fundao Oswaldo Cruz (EPSJV/Fiocruz), dirigida aos docentes das instituies responsveis pela formao dos agentes comunitrios de sade, em particular s Escolas Tcnicas do Sistema nico de Sade (ETSUS). Estas escolas pblicas da rea da sade, majoritariamente ligadas s Secretarias de Sade dos estados e municpios, dedicam-se educao profissional dos trabalhadores de nvel mdio e tcnico do SUS, estando organizadas em mbito nacional, desde 2000, na Rede de Escolas Tcnicas do SUS (RETSUS), da qual a EPSJV faz parte. A idia de uma coleo de textos de referncia bibliogrfica para os docentes que se dedicam educao dos ACS surge do reconhecimento da necessidade de sistematizar e socializar os saberes fundamentais formao desses profissionais, saberes estes que transcendem o nvel local e conformam uma base comum ao trabalho. A coleo buscou tambm contemplar o entendimento de que o ACS realiza um trabalho complexo, cujas bases tcnicas no podem ser descontextualizadas das relaes sociais e polticas que as atravessam e condicionam. Tal premissa marca a concepo de educao profissional promovida pela EPSJV/Fiocruz, que entende o trabalho como princpio educativo e a formao docente como um processo contnuo no qual pesquisa e ensino se articulam em objetos de trabalho e investigao permanentes. As discusses abordadas nos livros que compem a coleo emergiram dos debates realizados com docentes, ACS, gestores e especialistas (representantes das coordenaes municipais e estaduais da Sade da Famlia) em oficinas regionais desenvolvidas em trs escolas da Retsus no Centro de Formao de Pessoal para os Servios de Sade Dr. Manuel da Costa Souza (Natal-RN), na Escola Tcnica em Sade Maria Moreira da Rocha (Rio BrancoAC) e na Escola Tcnica de Sade de Blumenau (Blumenau-SC) , contemplando as trs macrorregies geoeconmicas do pas, respectivamente, Nordeste, Amaznia e Centro-Sul. Nestas oficinas, participaram tambm o Centro11

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de Formao de Pessoal Caetano Munhoz da Costa, do Paran, a Escola de Formao em Sade de Santa Catarina e o Centro de Formao de Recursos Humanos da Paraba. Nesses encontros, almejou-se reconhecer as condies do trabalho dos ACS, buscando a interlocuo necessria construo da coleo. Esse processo se deu no mbito do projeto Material Didtico para os Docentes do Curso Tcnico de ACS: melhoria da qualidade na Ateno Bsica, coordenado pela EPSJV/Fiocruz, realizado em parceria com Escolas Tcnicas do SUS, e financiado pelo Programa de Desenvolvimento e Inovao Tecnolgica em Sade Pblica: Sistema nico de Sade (PDTSP-SUS) da Fiocruz, edital 2004. A coleo foi viabilizada, assim, pelo dilogo j constitudo no interior da Rede, apresentando-se, desta forma, tambm, como uma contribuio ao seu fortalecimento e ao processo de colaborao e parceria entre estas escolas. Para melhor localizarmos a coleo no contexto da formao tcnica dos ACS, devemos, ento, remetermo-nos, em primeiro lugar, s questes relativas ao seu trabalho e sua profissionalizao e, em segundo lugar, ao projeto do qual a coleo resulta, incluindo suas concepes sobre trabalho, conhecimento e material didtico. A Formao do ACS e a Relevncia desta Coleo Em meados de 2004, o Ministrio da Sade e o Ministrio da Educao publicaram o Referencial Curricular do Curso Tcnico de Agente Comunitrio de sade, instituindo a formao tcnica deste trabalhador e trazendo uma contribuio fundamental regulamentao desta profisso, estratgica para a reorganizao da ateno bsica no SUS, por meio da Sade da Famlia. Entretanto, a operacionalizao da formao em nvel tcnico dos ACS no constitui tarefa simples. Esta operacionalizao se depara com as complexidades inerentes prpria configurao da atividade dos ACS, no que diz respeito natureza inovadora da atividade, fragilidade de sua identidade profissional e regulamentao incipiente. Alm disso, a formao dos ACS transcende o setor da sade. Reconhecidamente o trabalho do agente comunitrio de sade lida com questes relativas cidadania, poltica, s condies de vida e organizao dos grupos e suas relaes, incluindo a famlia. Assim, exige o aporte de conhe12

cimentos que extrapolam o campo da sade, e que precisam estar sistematizados na formao dos ACS, alm dos saberes especficos que perpassam a prtica cotidiana da sua atuao. Independentemente da realidade local em que o ACS se encontra, estes eixos so estruturantes para o desenvolvimento de um trabalho com qualidade no campo da sade. A produo de material didtico no est descolada desta complexidade. Porm, o material produzido para apoiar a capacitao dos ACS, que se desenvolveu predominantemente em servio, vem-se caracterizando predominantemente por centrar-se no desempenho das atividades e atribuies especficas desses trabalhadores. Este tipo de material, embora tenha uma aplicao justificada em algumas circunstncias especficas de qualificao, pode, por outro lado, reforar a simplificao do trabalho do ACS e reduzi-lo sua dimenso operacional, no contemplando, de forma satisfatria, a abrangncia requerida por uma formao tcnica congruente com a complexidade congruente com a complexidade inerente s diversas etapas do trabalho em sade. O nvel tcnico, em nossa perspectiva, introduz a oportunidade de elaborao de um projeto poltico pedaggico que fundamente o saber sobre o trabalho e recupere as bases tcnicas que o estruturam e o qualificam, constituindose na possibilidade de domnio pelo trabalhador do conhecimento cientfico construdo pela humanidade. Este conhecimento permite ao sujeito a apropriao dos fundamentos tericos e tcnicos do seu trabalho, ampliando-lhe a compreenso do processo em que se insere. A partir da atuao das ETSUS na formao tcnica dos agentes comunitrios, estas escolas iniciaram a produo de material didtico dirigido para tal formao. A diretriz que prevaleceu foi que este material deveria ser sensvel realidade local em que se desenvolve o trabalho e a formao do ACS, em ateno s diferenas regionais. Entretanto, de se considerar que tais diferenas expressam tambm desigualdades socialmente produzidas e que se ater a elas pode implicar a sua reproduo. Alm disso, mesmo se considerando que h contextos e prticas culturais particulares, partimos do princpio que h conhecimentos que constituem uma base comum para a produo da sade, e, portanto, para o trabalho e a formao do ACS. Neste cenrio, coloca-se a pertinncia e a necessidade da presente proposta. Primeiro, por objetivar constituir um referencial bibliogrfico sistematizado e tematizado a partir de um projeto formativo norteado por diretrizes13

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nacionais. Segundo, por buscar articular as diretrizes nacionais realidade local, atravs da integrao das escolas tcnicas que concebem os planos de curso orientados pelas diretrizes nacionais e que realizam a formao dos ACS locais. Terceiro, por visar o docente que participa dessa formao tcnica e que participar ativamente da elaborao do prprio material, ensejando um duplo processo de qualificao desse docente: no prprio processo de produo do material e na sua utilizao posterior.

Concepes Terico-Metodolgicas de Construo do Material Didtico Quanto aos referenciais terico-metodolgicos, destacamos a orientao de pautar a produo do material didtico pela considerao dos diferentes discursos em disputa histrica sobre temticas centrais formao dos agentes comunitrios: trabalho, educao e sade. A concepo aqui defendida a de que no h forma de tratar tais temticas sem problematizar as noes, scio-historicamente produzidas, a respeito destas. A metodologia experimentada no est circunscrita adaptao dos conhecimentos das tecnologias de base fsica e organizacional para a realidade dos agentes comunitrios de sade. Em certa medida, tal adaptao poderia significar o reforo da concepo de processo de trabalho como soma de funes executadas e do agente comunitrio como ltimo nvel na hierarquia da diviso social e tcnica do conhecimento. Assim, na perspectiva da presente coleo, uma forma de colocar em xeque a diviso social e tcnica do trabalho colocar os conceitos acima apontados em sua historicidade via noes em disputa no discurso dos docentes, dos ACS, dos trabalhadores da sade da famlia, enfim, em todos os sujeitos envolvidos na configurao da formao e do trabalho do ACS. Ou seja, o conhecimento no neutro; o conhecimento se define como tal porque implica formas de ao e de existncia no caso, dos trabalhadores da sade. Neste sentido, a diversidade de temas e questes tratadas pela presente coleo ao longo dos seis volumes no constitui um adendo ou uma busca de iluminar os docentes atuantes na formao dos ACS. Parte-se do princpio que a historicidade do conhecimento que passa por analisar14

suas condies de produo e de disputa est no cerne da compreenso e da construo do trabalho e da formao do ACS, tanto quanto o conhecimento mais imediatamente associvel prtica desse trabalhador. Note-se tambm que a compreenso de material didtico, construda no mbito dessa coleo, no se confunde com aquela que concebe este tipo de texto unicamente como instrumento in loco do processo ensino-aprendizagem. Ao contrrio, compreende o processo ensino-aprendizagem de forma ampliada, abrangendo a formao do docente e a concepo do docente como um investigador. Destarte, nosso material didtico formata-se como textos de referncia que articulam ensino e pesquisa como dimenses indissociveis da educao profissional, podendo constituir-se em uma biblioteca de consulta. Est tambm presente em nossa concepo de material didtico a necessidade de considerar e colocar em confronto a realidade cotidiana dos servios e o conhecimento socialmente acumulado como ponto de partida da formao da classe trabalhadora. Entendemos esse confronto entre os significados como uma dinmica profcua, na medida em que os contextos diferenciados, quando em interao, estabelecem uma relao no apenas de justaposio ou de indiferena, mas, sobretudo, de interao e conflito. Nesta relao pode-se estabelecer o dilogo, havendo tantas significaes possveis quantos os projetos histrico-sociais em disputa. Neste sentido, a construo do material didtico de apoio aos docentes atuantes na formao dos agentes comunitrios de sade orienta-se pela idia de dilogo como condio de linguagem, dilogo entendido aqui como a inexorvel inscrio de sujeitos e discursos na histria para que se produza sentido, conhecimento, saber. Logo, o dilogo, na perspectiva aqui adotada, constitutivo da prpria linguagem e do conhecimento. No entanto, esta condio de linguagem chamada por ns aqui de dilogo se realiza e se manifesta historicamente nas mais diferentes formas, inclusive naquela que busca negar sua prpria existncia: ou seja, aquela que tenta reprimir, na superfcie do texto, o carter histrico e social dos conceitos. O resultado disto, no mbito do material didtico, a idia de que o conhecimento ali apresentado e construdo se confunde com o real. A presente coleo almeja alcanar o horizonte oposto, buscando incorporar a noo de livro didtico como um processo e um texto em que mltiplas vozes esto representadas e, algumas vezes, em conflito. Alm da prpria for15

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ma de implementao do projeto de pesquisa do qual este material didtico emerge, este atravessamento de temticas no trabalho do ACS ganha materialidade no tratamento editorial da coleo, no qual buscou-se explicitar, atravs de notas remissivas cruzadas em cada texto, a abordagem de conceitos e noes tratadas por outros textos tambm publicados na coleo. Esta direo constitui um dos passos para construir os contedos curriculares centrais formao do agente comunitrio e para colocar como questo o resgate e a produo de conhecimento envolvidos neste trabalho. Nesta perspectiva, portanto, entendemos o livro didtico como um artefato que tambm pode potencializar que os sujeitos-leitores vivenciem a leitura como um ato que permita a compreenso da dimenso histrica da produo do conhecimento, abrindo espao para o questionamento e a resignificao do texto. Enfim, entendemos o material didtico como uma tecnologia educativa que pode problematizar a naturalizao de conceitos e noes que atravessam o trabalho e a formao do ACS, entendendo que estes tambm so fruto de um processo em que o trabalhador foi subalternizado e expropriado da criao do trabalho. Mais que uma devoluo, no entanto, os textos aqui publicados consistem de um questionamento direto da invisibilidade e da simplicidade deste trabalho, explicitando sua inevitvel inscrio histrica nas prticas e nos saberes do trabalho em sade. Mrcia Valria G. C. Morosini Carla Macedo Martins

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Equipe do projeto Material Didtico para os Docentes do Curso Tcnico de ACS: melhoria da qualidade na ateno bsica Coordenao do Projeto:Mrcia Valria Guimares Cardoso Morosini Laboratrio de Educao Profissional em Ateno Sade EPSJV/Fiocruz

Equipe de pesquisa: Integrantes da equipe no mbito da EPSJV/Fiocruz:Laboratrio de Educao Profissional em Ateno Sade: Ana Lcia Pontes Anglica Ferreira Fonseca Carla Macedo Martins Gustavo Corra Matta Laboratrio de Educao Profissional em Gesto em Sade: Adriana Ribeiro Rice Geisler Valria Lagrange Vice-direo de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnolgico: Isabel Brasil Pereira Secretaria Tcnica da RET-SUS: Renata Reis Assessoria da Vice-direo de Ensino e Informao: Anakeila de Barros Stauffer Coordenao de Cooperao Internacional: Anamaria DAndrea Corbo

Integrante do projeto em outra instituio:Universidade Federal Fluminense Faculdade de Enfermagem Ana Lcia Abraho Secretaria administrativa do projeto: Glucia Martins 17

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Relao dos colaboradores, participantes das oficinas regionais do projeto Material Didtico para os Docentes do Curso Tcnico de ACS: Melhoria da Qualidade na Ateno Bsica, etapa fundamental para a construo da pauta de temas dos livros da Coleo Educao Profissional e Docncia em Sade: a formao e o trabalho do agente comunitrio de sade1.

Participantes da Oficina em Blumenau SC:Alade Maria Correa Agente Comunitrio de Sade Secretaria Municipal de Sade Blumenau Arlete Barzenski Enfermeira Coordenadora pedaggica do Curso Tcnico de ACS Centro Formador de Recursos Humanos Caetano Munhoz da Rocha (CFRH Curitiba) PR. Cludia Vilela de Souza Lange Pedagoga Coordenadora Geral Escola Tcnica de Sade de Blumenau (ETS Blumenau) SC Ktia Lcia Brasil Pintarelli Cirurgi Dentista ETS Blumenau SC Lorete Margarida Bernardes Pedagoga Coordenadora Administrativa ETS Blumenau - SC Luis Carlos Kriewall Veterinrio SMS Blumenau Maria de Ftima Campos Enfermeira Coord. CursoTcnico de Enfermagem ETS Blumenau - SC Maria de Lourdes dos Santos Enfermeira Coordenadora PSF SMS Blumenau SC Nanci Aparecida da Silva Enfermeira Coordenadora PSF SMS Blumenau SC Nuria da Silva Guimares Pedagoga da ETS Blumenau SC Nilcia Bastos dos Santos Agente Comunitrio de Sade SMS Blumenau SC Rosana A. Antunes Nunes Pedagoga Escola de Formao em Sade (EFOS) SC Rosete de Jesus Rosa Boenner Assistente social Coordenadora Regio Garcia SMS Blumenau - SC Sandra Marli Buttei Assistente Social ETS Blumenau SC 18

Solange Melo de Liz Agente Comunitrio de Sade SMS Blumenau SC Stella Maris Duarte Enfermeira Gerente PSF/UAS SMS Blumenau SC Susana Maria Polidrio dos Santos Pedagoga EFOS SC Tereza Miranda Rodrigues Enfermeira Coordenadora pedaggica do Curso Tcnico de ACS CFRH Curitiba PR Coordenadores da oficina em Blumenau: Marcia Valria Guimares Cardoso Morosini; Ana Lcia Abraho; Anamaria D Andra Corbo; Anakeila de Barros Stauffer; Renata Reis Cornlio (EPSJV/Fiocruz)

Participantes da Oficina em Natal - RN:Aldeci Padilha Honrio Pedagoga Coordenadora pedaggica do Curso Tcnico de ACS Centro de Formao de Pessoal para os Servios de Sade Dr. Manuel da Costa Souza (Cefope) RN Ana Dilma da Silva Agente Comunitria Secretaria Municipal de Sade de So Gonalo do Amarante RN Aura Helena Gomes Dantas de Arajo Enfermeira Coordenadora pedaggica de Curso de Auxiliar de Enfermagem CefopeRN Brbara C. S. Farias Santos Dentista PSF Secretaria Estadual de Sade Pblica RN Carolene de Ftima O. Estrela Pedagoga Coordenadora Pedaggica Centro Formador de Recursos Humanos (Cefor RH) PB Divaneide Ferreira de Souza Enfermeira Coordenadora Pedaggica do Curso de Aux. Enf. Cefope RN Francisco Djairo Bezerra Alves Agente Comunitrio de Sade SMS Natal RN Maria das Graas Teixeira Sociloga - SMS Natal RN Ivaneide Medeiros Nelson Pedagoga Asessora CefopeRN Jacira Machado Alves Arajo Dentista Docente do Curso de Formao de ACS Cefor RHPB Jeovanice Borja da Silva Agente Comunitria de Sade SMS Natal 19

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Lda Maria de Medeiros Dentista Coordenadora do Curso de THD e do Curso Tcnico de ACS CefopeRN Marco Aurlio Azevedo de Oliveira Dentista PSF SMS Natal docente CefopeRN Maria Bernadete Almeida Cavalcanti Enfermeira Coordenadora Pedaggica do Curso de formao de ACS CeforPB Maria da Assuno Rgis Enfermeira Coordenadora pedaggica dos Cursos de Qualificao do ACS - Cefope-RN Maria da Conceio Jales de M. Guedes Enfermeira SMS de So Gonalo do Amarante RN Maria das Graas Leite Rebouas Enfermeira Coordenadora do Curso de Aux.Enfermagem CefopeRN Maria dos Remdios de Oliveira Macedo Agente comunitria de sade PACS SMS de So Gonalo do Amarante RN Maria Luciene B. da Costa Agente comunitria de sade SMS Natal RN Maria Neusa da Nbrega Almintas Enfermeira Coordenadora pedaggica do curso de Enfermagem e Hemoterapia Cefope-RN Neuma Lucia de Oliveira Dentista - PSF SMS Natal Docente Cefope-RN Maria das Graas da Silva Lucas Historiadora Tcnica do Setor de Desenvolvimento de Pessoal SMS Natal RN Maria das Neves M. Maia (Nevinha) Administradora Coordenadora pedaggica da formao do ACS Cefope-RN Solane Maria Costa Enfermeira Coordenadora local dos ACS PACS/PSF Secretaria Estadual de Sade Pblica RN Assessora do COSEMS RN Uiacy Nascimento de Alencar Assistente social Coordenadora do PSF/PACS Estado-RN Secretaria Estadual de Sade Pblica RN Vera Lucia da Silva Ferreira Enfermeira Diretora Cefope-RN Vernica Maria e Silva Enfermeira Coordenadora pedaggica do curso de Aux. Enfermagem Cefope-RN Coordenadores da oficina em Natal: Mrcia Valria Guimares Cardoso Morosini; Anglica Ferreira Fonseca; Anamaria D Andra Corbo; Anakeila de Barros Stauffer (EPSJV/Fiocruz) 20

Participantes da oficina em Rio Branco AC:Analdemira da Costa Moreira Enfermeira rea Tcnica de Leishmaniose Superviso das U.S.F. SEMSA Coordenao Local do PROFAEAcre Escola Tcnica de Sade Maria Moreira da Rocha ETSMMR Aurlio Fernandes de Lima Bilogo mediador ETSMMR Secretaria de Estado de Sade do Acre SESACRE Elza Fernanda Leo de Assis Biloga/Enfermeira mediadora ETSMMR rica Fabola Arajo da Silva Enfermeira rea Tcnica de Tabagismo Supervisora das U.B.S. SEMSA mediadora ETSMMR Francisca Lima do Nascimento Pedagoga Assessora Pedaggica Francisca Viana de Arajo ACS PSF Secretaria Municipal de Sade de Rio Branco SEMSA Gerncia de Educao Profissional GEPRO Secretaria de Estado de Educao Glacimar Alves de Nazar Pedagoga assessora pedaggica ETSMMR Herleis Maria de Almeida Chagas Enfermeira coordenadora de Sade Comunitria (PACS/PSF) - SEMSA Jarderlene Borges de Matos ACS PACS SEMSA Joo Batista Francalino da Rocha Enfermeiro Gerncia de Aes Bsicas de Sade (GABS) SEMSA Joo Bosco Moreira Martins Pedagogo Assessor Pedaggico ETSMMR Ldia Maria Lopes da Silva Licenciada em Letras mediadora Assessora de Portugus ETSMMR Maria Estela Livelli Becker Enfermeira mediadora ETSMMR Maria Zulnia da Silva Sousa ACS SEMSA Marlene Campos dos Reis Enfermeira rea Tcnica Hipertenso e Diabetes SEMSA mediadora ETSMMR Marlene da Silva de Oliveira Pedagoga Coordenadora de Aprendizagem ETSMMR Mirtes da Silva Andrade Ribeiro Enfermeira mediadora ETSMMR 21

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Neidiany Vieira Jovarini Psicloga mediadora ETSMMR Patrick Noronha Dantas Enfermeiro mediador ETSMMR Raimundo Jesus Pinheiro Enfermeiro Coordenador Local ETSMMR Rosa Maria da Silva Costa Rocha Biloga sanitarista Coordenadora Tcnica do Curso de Agentes Comunitrios de Sade ETSMMR Roseane da Silveira Machado Enfermeiro ETSMMR SESACRE Rosinei de Queiroz ACS PSF SEMSA Silene Ferreira da Silva ACS PSF SEMSA Associao dos Agentes Comunitrios de Sade de Rio Branco Simone Maria de Souza do Nascimento ACS Associao dos Agentes Comunitrios de Sade de Rio Branco Talita Lima do Nascimento Enfermeira Coordenao Geral ETSMMR Valria Cristina de Moraes Pereira Histria Coordenao de Recursos Administrativos ETSMMR Vnia Maria Lima da Silva Enfermeira Coordenadora Tcnica da rea de Enfermagem PROFAE Acre Coordenadores da Oficina em Rio Branco: Mrcia Valria Guimares Cardoso Morosini; Anakeila de Barros Stauffer; Carla Macedo Martins; Gustavo Corra Matta.

Os crditos institucionais referem-se situao dos colaboradores poca da realizao das oficinas.1

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Apresentao do LivroSobre o que um livro de polticas de sade deve versar? Que poltica ou polticas estamos a produzir nesses textos? Apesar da simplicidade das perguntas, suas respostas apresentam diferentes significados em diferentes contextos. A proposta deste livro discutir de forma integrada o campo de relaes entre o Estado e a sociedade na construo de polticas pblicas, e a organizao e operacionalizao do setor sade no Brasil. Tem-se o objetivo de possibilitar uma compreenso das polticas de sade sem dissociar o processo e a arena poltica dos contedos que informam o desenho da poltica. Ou seja, no se trata de um manual de orientaes tcnicas e legais, mas de um conjunto de processos sociais que se materializam em leis, procedimentos, orientaes, princpios e diretrizes que do forma e contedo ao sistema de sade brasileiro com suas proposies e contradies, prprias do processo de construo social. O livro Polticas de Sade: organizao e operacionalizao do Siste-

ma nico de Sade o terceiro volume da coleo Educao Profissional e Docncia em Sade: a formao e o trabalho do Agente Comunitrio de Sade. Os textos que compem este volume enfocam especificamente a temtica das polticas de sade e o Sistema nico de Sade, e materializam a consolidao de polticas pblicas fundadas no direito sade e os desafios, impasses e contradies na efetivao desse direito. O texto que abre o livro, Histria das polticas de sade no Brasil: a trajetria do direito sade, de Tatiana Wargas de Faria Baptista, descreve a trajetria das polticas de sade,tomando como eixo de anlise o direito sade no Brasil. Esta perspectiva ao mesmo tempo em que analisa criticamente os contextos histricos, polticos e as propostas de ateno sade no pas em cada perodo, expe as contradies e os desafios presentes no Sistema nico de Sade (SUS), seu fortalecimento e consolidao. A autora aponta para o compromisso social de cada trabalhador da sade, de cada cidado em fazer o SUS avanar na defesa do direito sade. O texto traz ferramentas e anlises fundamentais para a compreenso histrica das mazelas atuais do sistema de sade e para as discusses presentes em todos os textos que fazem parte deste livro.23

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O texto Princpios e diretrizes do Sistema nico de Sade, de Gustavo Corra Matta, apresenta uma proposta de leitura a partir de uma perspectiva histrica, poltica e epistemolgica. Argumenta que os princpios do SUS representam valores que escolhemos para a organizao do sistema de sade e mostra os avanos e obstculos do SUS tendo por referncia esses mesmos valores. O texto apresenta ainda o desafio crtico de seguir defendendo o SUS ao mesmo tempo em que denunciamos suas imperfeies. O autor se prope a organizar didaticamente a compreenso sobre os elementos que compem a base do SUS, tornando o texto um instrumento de uso didtico-poltico para trabalhadores e cidados que lidam diariamente ou no com a luta pelo direito sade. O artigo O legislativo e a sade no Brasil, de Tatiana Wargas de Faria Baptista e Cristiani Vieira Machado, faz uma importante contribuio para a compreenso da atuao do poder Legislativo na construo e formulao das polticas de sade no Brasil, a partir do perodo da redemocratizao do Estado na dcada de 1980. Em uma primeira parte, as autoras discutem a organizao dos Poderes no Brasil, o papel do Legislativo e o formato institucional atual, regras e comisses de trabalho relacionadas sade. Em seguida, discutem como, no mbito do Legislativo, deu-se a construo do sistema de seguridade social e ampliao do direito sade. Em uma terceira parte, abordam a legislao em sade aprovada no perodo de 1990 a 2004 e as principais caractersticas e especificidades da relao Executivo-Legislativo na definio da poltica pblica de sade brasileira. A partir do conceito de capital social, Waldir da Silva Souza no texto Participao popular e controle social na sade: democratizando os espaos sociais e agregando capital social, faz um histrico das noes de participao popular e controle social, tendo como referncia as polticas pblicas e o Estado democrtico. O autor afirma que apesar da conquista da participao da comunidade no SUS isso no assegura que o cidado margem dos processos de representao social e institucional participem da formalidade das instncias de representao da comunidade no SUS, comprometendo muitas vezes as reivindicaes e posies daqueles que mais necessitam. Entretanto, os esforos para constituir uma arena de participao nas polticas pblicas trazem um sentimento de pertencimento e responsabilidade dos diversos atores sociais na construo da democracia e da cidadania.24

O texto Configurao Institucional e o papel dos gestores no Sistema nico de Sade, de Cristiani Vieira Machado, Luciana Dias de Lima e Tatiana Wargas de Faria Baptista, tem o objetivo de apresentar o papel dos gestores no SUS a partir da anlise legal e poltica das instncias de pactuao e gesto nas trs esferas de governo. Ao tomar como ponto de partida o federalismo poltico brasileiro e a descentralizao da sade no SUS, o artigo aborda as funes e as contradies do processo poltico de gesto da sade defendida pela Reforma Sanitria brasileira e a agenda neoliberal em voga nos anos 90. Dessa forma, as autoras expem de forma clara e didtica os avanos e desafios da complexa gesto poltica e administrativa do sistema de sade brasileiro e suas relaes com o cenrio poltico nacional. Tomando o planejamento como uma forma de o homem atuar em sociedade buscando a soluo de problemas coletivos, o texto Notas sobre o planejamento em sade, de Ana Lcia Abraho, apresenta as principais teorias e modelos de interveno que influenciam o planejamento em sade. Enfocando os desafios da gesto na Estratgia Sade da Famlia e o papel de cada trabalhador, em especial o agente comunitrio de sade (ACS), o artigo mostra a importncia da identificao e formulao de aes que busquem atender s demandas da populao de forma estratgica e democrtica. A autora ressalta o papel fundamental do planejamento, em especial do planejamento estratgico situacional, na busca permanente de dispositivos que ampliem a participao e a transformao das prticas de sade nas equipes de sade da famlia. No texto O financiamento da sade no Brasil, de Carlos Gonalves Serra e Paulo Henrique Rodrigues, considerando o destaque dado s questes financeiras na explicao dos problemas do sistema de sade brasileiro, os autores fazem uma anlise histrica do financiamento da sade no Brasil desde o incio do sculo XX, acenando principalmente para a relao dessa questo com aos fatos sociais, econmicos e polticos ocorridos no pas. Dessa forma, correlacionam o contexto poltico-econmico com a conformao do modelo de financiamento das polticas de sade implementadas em cada perodo, com destaque para o perodo da construo do SUS. A partir dessa contextualizao, os autores fazem uma anlise crtica das normas legais do SUS, das normas operacionais (Noas e Nobs), do financiamento de procedimentos de alta complexidade e das fontes de financiamento do SUS.25

POLTICAS DE SADE

O artigo O medicamento na poltica de sade no Brasil: como os agentes comunitrios de sade podem contribuir para a promoo do acesso e do uso racional dos medicamentos?, de Vera Lucia Luiza, Gabriela Costa Chaves, Elaine Silva Miranda, Orenzio Soler, realiza uma abrangente e profunda discusso acerca das questes relacionadas ao uso e polticas de medicamentos. Os autores destacam questes socioculturais, polticas e econmicas dos interesses envolvidos no uso dos medicamentos. Apresentam tambm questes sobre os princpios frmaco-qumicos dos mesmos, e o processo de regulamentao pela Agncia Nacional de Vigilncia Sanitria (Anvisa). Assim, constroem uma anlise da assistncia farmacutica no Brasil e da Poltica Nacional de Medicamentos, destacando questes relacionadas ao acesso, qualidade e uso racional dos medicamentos. Desse modo, o texto apresenta algumas possibilidades de contribuies dos ACS para a assistncia farmacutica A partir do entendimento da avaliao como parte fundamental do processo de trabalho das equipes de sade no sentido de consolidar a reestruturao da ateno bsica, o texto Informao e avaliao em sade, de Kenneth Rochel de Camargo Jr., Cludia Medina Coeli e Arlinda B. Moreno, discute a produo e uso dos sistemas de informao. O trabalho correlaciona as questes relativas coleta, armazenamento e processamento de dados com a difuso das informaes. Ademais, os autores realizam uma anlise crtica dos principais sistemas de informao em sade no Brasil, tais como SIM, SINASC, SIAB, SINAN, SIH-SUS, APAC, entre outros, assim como detalha os principais indicadores que constituem esses sistemas. Dessa forma, os autores apresentam questes fundamentais para a discusso sobre o preenchimento de formulrios desses sistemas e o uso das informaes produzidas no cotidiano de trabalho dos ACS. necessrio tambm destacar a contribuio dos autores para uma discusso sobre o uso de base de dados e sistemas de informao para a avaliao do sistema e servios de sade. Tendo em vista alguns desafios da construo do SUS, tais como a reorientao do modelo assistencial e a garantia do acesso universal com qualidade na ateno bsica, Marly Marques da Cruz e Elizabeth Moreira dos Santos, autoras do texto Avaliao de sade na ateno bsica: perspectivas tericas e desafios metodolgicos, abordam a questo da avaliao em sade. O texto procura facilitar a tematizao e problematizao sobre as bases conceituais e metodolgicas da avaliao em sade, considerando que a mesma constitui26

uma prtica social que auxilia a nortear as prticas de sade e a gesto na tomada de deciso. So discutidos alguns desenhos e abordagens da avaliao em sade, com destaque para a avaliao participativa. A questo da institucionalizao da avaliao na ateno bsica outro ponto de destaque, sendo que as autoras procuram discutir as possibilidades de pactuao de critrios e padres nesse processo. Este livro contribui para uma formao crtica e abrangente dos ACS no Brasil, convidando cada docente, cada trabalhador, a levar para a sua realidade regional, comunitria, os temas aqui abordados. O convite se desdobra em uma investigao permanente sobre a organizao e operacionalizao do SUS em cada estado, em cada municpio, atualizando e reformulando incessantemente os artigos deste livro e da poltica como processo e participao.

Gustavo Corra Matta Ana Lcia de Moura Pontes

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Histria das Polticas de Sade no Brasil: a trajetria do direito sadeTatiana Wargas de Faria Baptista

Introduo Antes de iniciarmos a leitura sobre a histria das polticas de sade no Brasil, fao um convite reflexo: Qual a importncia da sade para o indivduo e para a sociedade? Quem ou deve ser responsvel pela sade dos indivduos e da sociedade? Que direitos e garantias os Estados devem prover a seus cidados? Os Estados devem atuar na proteo sade das comunidades? Se entendermos que os Estados tm um papel fundamental na garantia do direito sade, qual deve ser a extenso desse direito? Os Estados devem proteger todos os indivduos ou apenas aqueles que contribuem financeiramente para um sistema de ateno? Ou apenas os mais necessitados? Qual deve ser a abrangncia da proteo ofertada? O Estado deve prover todos os tipos de assistncia sade ou somente aes coletivas de preveno e promoo sade? Estas questes tm permeado o debate das polticas de sade em todos os pases desde pelo menos o final do sculo XIX. Desde ento, cada pas buscou solues e modelos de polticas que atendessem a suas necessidades e respondessem s reivindicaes de cada sociedade, conformando modelos de proteo social de maior ou menor abrangncia. No Brasil, a garantia do direito sade1 e a configurao de uma poltica de proteo social em sade abrangente (para todos e de forma igualitria) se configuraram muito recentemente, com a promulgao da Constituio FederalSobre direito e cidadania, ver Reis, texto Cultura de direitos e Estado: os caminhos (in)certos da cidadania no Brasil, no livro Sociedade, Estado e Direito Sade, nesta coleo (N. E.).1

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de 1988 e a instituio do Sistema nico de Sade (SUS). Contudo, ainda hoje (2007) as questes anteriormente apontadas se apresentam no debate poltico e social, tensionando interesses e somando problemas para a consolidao do modelo de proteo social. Fato que o SUS legal no ainda uma realidade nacional e muito h que se fazer para se alcanar a proposta constitucional. Basta dizer que o gasto pblico em sade no Brasil, no ano de 2006 (gastos do Ministrio da Sade, dos governos estaduais e municipais), foi menor que o gasto privado em sade. Neste mesmo ano eram beneficirios de planos de sade 36 milhes de brasileiros (ANS, 2007). O que esses dados revelam um paradoxo, pois, apesar da existncia de um sistema de sade pblico e universal, h uma boa parcela da populao que optou por outro tipo de sistema de sade, o privado. Tal situao fragiliza o modelo de proteo definido em 1988 e levanta questionamentos acerca da extenso dos direitos desde as formas de financiamento do sistema protetor at quem dever ser protegido pelo Estado. O objetivo central deste texto apresentar a histria das polticas de sade no Brasil, tendo como principal eixo de anlise o direito sade conhecer como e por que no se tinha o direito sade at um perodo da nossa histria e quando isso mudou a fim de avanar em uma compreenso crtica sobre os desafios e dilemas do SUS na atualidade. A Formao do Estado Brasileiro e as Primeiras Aes de Sade Pblica A histria das polticas de sade no Brasil est inserida em um contexto maior da prpria histria do Brasil como Estado-Nao. As primeiras aes de sade pblica implementadas pelos governantes foram executadas no perodo colonial com a vinda da famlia real para o Brasil (1808) e o interesse na manuteno de uma mo-de-obra saudvel e capaz de manter os negcios promovidos pela realeza. Muitas doenas acometiam a populao do pas, doenas tropicais e desconhecidas dos mdicos europeus, como a febre amarela e a malria, alm das doenas trazidas por estes, como a peste bubnica, a clera e a varola. O conhecimento acerca da forma de transmisso, controle ou tratamento dessas doenas ainda era frgil, possibilitando diferentes intervenes ou vises sobre as molstias.30

HISTRIA DAS POLTICAS DE SADE NO BRASIL

O povo brasileiro constitua-se de portugueses, outros imigrantes europeus e, principalmente, ndios e negros escravos. Cada um desses grupos era detentor de uma cultura prpria, costumes e tradies e um conhecimento tambm prprio acerca das doenas e da forma de trat-las. At a chegada da famlia real, o assistir sade era uma prtica sem qualquer regulamentao e realizada de acordo com os costumes e conhecimento de cada um desses grupos. A populao recorria, em situaes de doena, ao que fosse vivel financeiramente ou fisicamente. Existia o barbeiro ou prtico, um conhecedor de algumas tcnicas utilizadas pelos mdicos europeus, tais como as sangrias, que atendia populao capaz de remuner-lo. Existiam os curandeiros e pajs, pertencentes cultura negra e indgena, mais acessveis maioria da populao, que se utilizavam das plantas, ervas, rezas e feitios para tratar os doentes. Havia tambm os jesutas, que traziam algum conhecimento da prtica mdica europia utilizando-se principalmente da disciplina e do isolamento como tcnica para cuidar dos doentes. A vinda da famlia real para o Brasil possibilitou tambm a chegada de mais mdicos e o aumento da preocupao com as condies de vida nas cidades, possibilitando o incio de um projeto de institucionalizao do setor sade no Brasil e a regulao da prtica mdica profissional. Foi assim que, no mesmo ano da chegada da famlia ao Brasil (1808), foi inaugurada a primeira faculdade de medicina, a Escola mdico-cirrgica, localizada em Salvador Bahia, com vistas institucionalizao de programas de ensino e normalizao da prtica mdica em conformidade aos moldes europeus. A regulamentao do ensino e da prtica mdica resultou em um maior controle das prticas populares e na substituio gradativa dos religiosos das direes dos hospitais gerais, especialmente a partir da Repblica. Outro resultado da poltica de normalizao mdica foi a constituio de hospitais pblicos para atender algumas doenas consideradas nocivas populao e de necessrio controle pelo Estado, como as doenas mentais, a tuberculose e a hansenase. Assim, em 1852 inaugurado o primeiro hospital psiquitrico brasileiro no Rio de Janeiro Hospital D.Pedro II com o objetivo de tratar medicamente os denominados doentes mentais (Costa, 1989).31

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Nesse perodo, o interesse pela sade e pela regulamentao da prtica profissional esteve estritamente relacionado ao interesse poltico e econmico do Estado de garantir sua sustentabilidade e a produo da riqueza, seguindo uma velha poltica, j aplicada com sucesso em outros pases da Europa, desde o incio do sculo XVIII (Costa, 1985; Rosen, 1979), de controle da mo-deobra e dos produtos, com aes coletivas para o controle das doenas, disciplina e normatizao da prtica profissional (Foucault, 1979). Assim, as primeiras aes de sade pblica (polticas de sade) que surgiram no mundo e que tambm passaram a ser implementadas no Brasil colnia voltaram-se especialmente para:

proteo e saneamento das cidades, principalmente as porturias, responsveis pela comercializao e circulao dos produtos exportados;

controle e observao das doenas e doentes, inclusive e principalmente dos ambientes;

teorizao acerca das doenas e construo de conhecimento paraadoo de prticas mais eficazes no controle das molstias. A preocupao maior era a sade da cidade e do produto; a assistncia ao trabalhador era uma conseqncia dessa poltica. Nesse sentido, algumas campanhas voltadas para os trabalhadores comeavam a ser implementadas, mas ainda eram pouco resolutivas, como a quarentena afastamento por quarenta dias do doente do ambiente que habita e circula , principal estratgia utilizada para evitar a propagao de doenas entre os trabalhadores, sem uma preocupao mais efetiva com o tratamento do doente. A proclamao da Repblica em 1889 inicia um novo ciclo na poltica de Estado com o fortalecimento e a consolidao econmica da burguesia cafeeira. As polticas de sade ganham ainda mais espao nesse contexto, assumindo um papel importante na construo da autoridade estatal sobre o territrio e na conformao de uma ideologia de nacionalidade, configurando um esforo civilizatrio (Lima, Fonseca & Hochman, 2005). A lavoura do caf e toda a base para armazenamento e exportao do produto, dependentes do trabalho assalariado, necessitava cada vez mais de mo-de-obra, e as epidemias que se alastravam entre os trabalhadores, devido s pssimas condies de saneamento, prejudicavam o crescimento da economia.32

HISTRIA DAS POLTICAS DE SADE NO BRASIL

Comeava a busca por conhecimento e aes na rea da sade pblica, com a criao, em 1897, da Diretoria Geral de Sade Pblica (DGSP), o incentivo s pesquisas nas faculdades de medicina e no exterior (no Instituto Pasteur) e a criao de institutos especficos de pesquisa, como o Instituto Soroterpico Federal, criado em 1900, renomeado Instituto Oswaldo Cruz (IOC) um ano depois. A partir de 1902, com a entrada de Rodrigues Alves na presidncia da Repblica, ocorreu um conjunto de mudanas significativas na conduo das polticas de sade pblica. A primeira ao mais concreta levou concepo de um programa de obras pblicas junto com o prefeito da capital Guanabara, Pereira Passos, na primeira tentativa mais sistematizada de organizao e saneamento da cidade capital. As aes de saneamento e urbanizao foram seguidas de aes especficas na sade, especialmente no combate a algumas doenas epidmicas, como a febre amarela, a peste bubnica e a varola. A reforma na sade foi implementada a partir de 1903, sob a coordenao de Oswaldo Cruz, que assume a diretoria geral de sade pblica. Em 1904, Oswaldo Cruz prope um cdigo sanitrio que institui a desinfeco, inclusive domiciliar, o arrasamento de edificaes consideradas nocivas sade pblica, a notificao permanente dos casos de febre amarela, varola e peste bubnica e a atuao da polcia sanitria. Ele tambm implementa sua primeira grande estratgia no combate s doenas: a campanha de vacinao obrigatria. Seus mtodos tornaram-se alvo de discusso e muita crtica, culminando com um movimento popular no Rio de Janeiro, conhecido como a Revolta da Vacina (Costa, 1985; COC, 1995). O cdigo sanitrio foi considerado por alguns como um cdigo de torturas, dada a extrema rigidez das aes propostas. A polcia sanitria tinha, entre outras funes, a tarefa de identificar doentes e submet-los quarentena e ao tratamento. Se a pessoa identificada como doente no tivesse recurso2

Durante os sculos XVIII e XIX, os cientistas europeus buscavam explicaes para os quadros de morbidade que acometiam a populao. As pesquisas acerca das doenas baseavam-se na observao da morbidade com registro contnuo dos quadros de adoecimento e morte (evoluo da doena e acompanhamento dos casos) e na busca de causualidade e formas de transmisso das doenas (Costa, 1985). Uma referncia interessante o livro de Snow (1967) publicado em 1849 no qual o autor demonstra o raciocnio e a conduta de investigao de um cientista para compreender a forma de transmisso do clera. No Brasil, a pesquisa epidemiolgica (o estudo das doenas) tem incio de forma mais sistemtica no sculo XX, sendo seu principal executor Oswaldo Cruz (mdico, especialista em microbiologia, formado pelo Instituto Pasteur na Frana).2

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prprio para se isolar em fazendas distantes e pagar mdicos prprios, era enviada aos hospitais gerais conhecidos no perodo como matadouros ou simplesmente isolada do convvio social, sem qualquer tratamento especfico, o que significava a sentena de morte para a grande maioria, uma prtica que causou revolta e pnico na populao. O isolamento dos doentes e o tratamento oferecido nos hospitais eram o maior temor do perodo. Alm disso, a ignorncia da populao sobre o mecanismo de atuao da vacina no organismo humano associada ao medo de se tornar objeto de experimentao pelos cientistas e atender interesses polticos dos governantes fez com que surgissem reaes de grupos organizados (Costa, 1985).3 Em contrapartida, com as aes de Oswaldo Cruz conseguiu-se avanar bastante no controle e combate de algumas doenas, possibilitando tambm o conhecimento acerca das mesmas. Em 1907, a febre amarela e outras doenas j tinham sido erradicadas da cidade do Rio de Janeiro e Belm. Outros cientistas, como Emlio Ribas, Carlos Chagas, Clementino Fraga, Belisrio Penna, estiveram, juntos com Oswaldo Cruz, engajados na definio de aes de sade pblica e na realizao de pesquisas, atuando em outros estados e cidades do pas. Nas dcadas de 1910 e 1920 tem incio uma segunda fase do movimento sanitarista com Oswaldo Cruz, e a nfase passou a estar no saneamento rural e no combate a trs endemias rurais (ancilostomase, malria e mal de Chagas). A partir de expedies pelo pas, os mdicos sanitaristas tiveram um conhecimento mais amplo da situao de sade no territrio nacional e do quanto era necessrio desenvolver uma poltica de Estado nesta rea (Hochman & Fonseca, 1999). As expedies revelaram um Brasil doente e suscitaram o questionamento do discurso romntico sobre os sertes como espao saudvel. A repercusso dos relatrios mdicos sobre as condies de sade nos sertes propiciou intenso debate sobre a questo nacional, e a doena generalizada passou a ser apontada como razo para o atraso nacional (Lima, Fonseca & Hochman, 2005). As expedies foram acompanhadas por escritores como Euclides da Cunha que, mais tarde, atravs da sua obra Os Sertes, expressou as mazelas vividas pelo povo brasileiro nesta regio. interessante como ainda existe no imaginrio social do povo brasileiro o temor em relao s vacinas e a desconfiana acerca das intenes dos governantes quando instituem uma nova vacina no calendrio oficial, como ocorreu nos anos 90 no caso da vacina contra a gripe para os idosos.3

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Durante a Primeira Repblica, o movimento sanitarista trouxe a situao de sade como uma questo social e poltica o grande obstculo civilizao. Um dos efeitos polticos do movimento, nesse perodo, foi a expanso da autoridade estatal sobre o territrio, ao mesmo tempo em que se criavam as bases para a formao da burocracia em sade pblica. Em 1920, criada a Diretoria Nacional de Sade Pblica (DNSP), reforando o papel do governo central e a verticalizao das aes (Hochman & Fonseca, 1999). Mas o fato de as aes de sade pblica estarem voltadas especialmente para aes coletivas e preventivas deixava ainda desamparada grande parcela da populao que no possua recursos prprios para custear uma assistncia sade. O direito sade integral no era uma preocupao dos governantes e no havia interesse na definio de uma poltica ampla de proteo social. Cidadania Regulada e Direito Sade Na dcada de 1920, incio do sculo passado, o Estado brasileiro sofria mais agudamente a crise do padro exportador capitalista. Os pases importadores tornavam-se cada vez mais exigentes com a qualidade dos produtos e muitas represlias surgiam com relao aos produtos brasileiros, pois os navios e portos ainda mantinham nveis de higiene insalubres, exportando doenas. Novas aes foram implementadas no controle das doenas, tanto na rea da sade pblica quanto na da assistncia mdica individual (Costa, 1985). As revoltas populares, os movimentos anarquistas e comunistas pressionavam por aes mais efetivas do Estado na ateno sade. Foi a partir desses movimentos que o chefe de polcia, Eloy Chaves, props, em 1923, uma lei que regulamentava a formao de Caixas de Aposentadorias e Penses (Caps) para algumas organizaes trabalhistas mais atuantes poltica e financeiramente, como os ferrovirios e os martimos, ligados produo exportadora (Oliveira & Teixeira, 1985). As Caps eram organizadas por empresas e administradas e financiadas por empresas e trabalhadores, em uma espcie de seguro social. Nem toda empresa oferecia ao trabalhador a possibilidade de formao de uma Caixa esse era um benefcio mais comum nas empresas de maior porte. O Estado em nada contribua financeiramente e muito menos tinha responsabilidade na administrao dessas Caixas sua atuao restringia-se legalizao de uma organizao, que j se vinha dando de maneira informal desde a dcada de35

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1910, e ao controle a distncia do funcionamento dessas caixas, mediando possveis conflitos de interesses (Oliveira & Teixeira, 1985). Os benefcios que os segurados recebiam eram: socorros mdicos (para o trabalhador e toda a famlia, inclusive amigados), medicamentos, aposentadorias e penses para os herdeiros. Com as Caps, uma pequena parcela dos trabalhadores do pas passava a contar com uma aposentadoria, penso e assistncia sade. Assim, o direito assistncia sade estava restrito, nesse perodo, condio de segurado. Note-se que apesar de o Estado no ter definido um sistema de proteo abrangente e de se ter mantido parte dessa forma de organizao privada, restringindo-se a legaliz-la e a control-la a distncia, esse modelo serviu de base para a constituio de um primeiro esboo de sistema de proteo social no Estado brasileiro, que se definiu a partir dos anos 30 no contexto do governo de Getlio Vargas.4 O Estado assume ativamente, a partir de 30, o papel de regulador da economia (Fiori, 1995) e define um projeto econmico baseado na industrializao. Investe na rea de energia, siderurgia e transportes, implantando uma infra-estrutura produtiva, absorvendo a mo-de-obra advinda do campo e alavancando a economia nacional. Assistia-se a um gradativo fortalecimento do projeto poltico-ideolgico de construo nacional, acompanhado de medidas que favoreceram sua implementao (Lima, Fonseca & Hochman, 2005). Duas mudanas institucionais marcaram a trajetria da poltica de sade e merecem ser aprofundadas: a criao do Ministrio da Educao e Sade Pblica (Mesp) e do Ministrio do Trabalho, Indstria e Comrcio (MTIC). O Mesp trazia para o centro do debate duas polticas sociais importantes na configurao de qualquer modelo de proteo. No entanto, os primeiros anos do Mesp foram marcados pela inconstncia e indefinio de projetos e propostas, enquanto o MTIC reunia proposies claras e bastante especficas de proteo ao trabalhador, inclusive na rea da sade. Desenvolveu-se de um lado um arcabouo jurdico e material de assistncia mdica individual previdenciria, a ser garantida pelo MTIC, e, de outro, a definio de aes de sade pblica de carter preventivo atribudas ao Mesp. Como resumem Lima, Fonseca & Hochman (2005: 41)4

O governo Vargas tem incio no cerne de uma crise mundial, efeito da quebra da bolsa de Nova Iorque em 1929, e a partir de uma revoluo poltica interna, Revoluo de 1930, que encerra a Repblica Velha (1889-1930).

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muito alm de uma simples diviso e especificao de funes em razo da rea de atuao de cada rgo, em um contexto de reestruturao e consolidao de polticas sociais, a separao correspondeu a um formato diferenciado de reconhecimento de direitos sociais. A poltica de proteo ao trabalhador iniciada no governo Vargas marca uma trajetria de expanso e consolidao de direitos sociais. Algumas polticas foram importantes: a obrigatoriedade da carteira profissional para os trabalhadores urbanos, a definio da jornada de trabalho de oito horas, o direito a frias e a lei do salrio-mnimo. Getlio, o pai dos trabalhadores, como passou a ser conhecido, inicia no Estado brasileiro uma poltica de proteo ao trabalhador, garantindo, com isso, uma mo-de-obra aliada ao projeto de Estado, mantendo sua base decisria na estrutura estatal centralizada e atendendo aos seus interesses econmicos. nesta fase que so criados os Institutos de Aposentadorias e Penses (Iaps ), ampliando o papel das Caps, constituindo um primeiro esboo do sistema de proteo social brasileiro. Os Iaps passam a incluir em um mesmo instituto toda uma categoria profissional, no mais apenas empresas instituto dos martimos (IAPM), dos comercirios (IAPC), dos industriais (Iapi) e outros , e a contar com a participao do Estado na sua administrao, controle e financiamento. Com os Iaps, inicia-se a montagem de um sistema pblico de previdncia social mantendo ainda o formato do vnculo contributivo formal do trabalhador para a garantia do benefcio. O trabalhador que no contribusse com os institutos estava excludo do sistema de proteo. Portanto, estavam excludos: o trabalhador rural, os profissionais liberais e todo trabalhador que exercesse uma funo no reconhecida pelo Estado. A proteo previdenciria era um privilgio de alguns includos, o que fazia com que grande parcela da populao, principalmente os mais carentes, fosse vtima de uma injustia social. Para Santos (1979), essa forma de organizao do sistema protetor brasileiro reforou um padro de regulao do Estado que valoriza o trabalhador que exerce funes de interesse do Estado, atribuindo apenas a estes um status de cidado, uma cidadania regulada e excludente, pois no garante a todos os mesmos direitos. Outra caracterstica desse modelo era a discriminao dos benefcios de acordo com a categoria profissional. Cada IAP organizava e oferecia a seus contribuintes um rol de benefcios compatvel com a capacidade de contribuio e organizao de cada categoria, o que fez com que algumas categorias pro37

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fissionais tivessem mais privilgios que outras. As categorias com maior poder econmico, como os industriais, os bancrios, tinham maior disponibilidade de verbas, e por isso podiam oferecer a seus contribuintes um leque maior de benefcios. No que diz respeito sade, tal fato significava um padro melhor de assistncia mdica e hospitalar, diferenciado por categoria e mantenedor da desigualdade social mesmo entre os trabalhadores. Quem no se inseria na medicina previdenciria estava tambm excludo do direito assistncia sade prestada pelos institutos e contava com alguns servios ofertados pelo Mesp em reas estratgias (sade mental, tuberculose, hansenase e outros), alm da caridade e do assistencialismo dos hospitais e de profissionais de sade. O Mesp promovia tambm as aes de sade pblica, cuidando do controle e preveno das doenas transmissveis. Anos 50: desenvolvimento e sade A partir da dcada de 1950, mudanas ocorreram no sistema de proteo sade. O processo de acelerada industrializao do Brasil determinou um deslocamento do plo dinmico da economia. At ento, o Brasil tinha sua economia assentada na agricultura, mas, a partir dessa dcada, com o processo de industrializao, os grandes centros urbanos passaram a ser o plo dinmico da economia, o que gerou uma massa operria que deveria ser atendida pelo sistema de sade (Mendes, 1993). Tal fato levou a uma expanso progressiva e rpida dos servios de sade, instaurando a prtica de convnios-empresa para suprir as demandas cada vez mais crescentes. Surgem os grandes hospitais, com tecnologias de ltima gerao e com a incorporao da lgica de especializao dos recursos humanos. A assistncia torna-se mais cara, e o hospital, o principal ponto de referncia para a busca de um atendimento em sade. O modelo de sade que passa a se definir baseado no hospital e na assistncia cada vez mais especializada tambm seguia uma tendncia mundial, fruto do conhecimento obtido pela cincia mdica no ps-guerra. 5 O conheA guerra possibilitou um grande quantitativo de experimentos com humanos utilizados como cobaias nos campos de concentrao e nos hospitais militares e, conseqentemente, um maior conhecimento acerca das drogas, tcnicas mdicas e seus efeitos no homem.5

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cimento mais detalhado da fisiologia e da fisiopatologia permitiu o desenvolvimento de drogas modernas6 e possibilitou uma revoluo na prtica mdica, bem como o incio de um processo de mudana nos nveis de sade das populaes, que passam progressivamente a viver mais (aumenta a expectativa de vida) e a sofrer de doenas mais complexas (crnicas) ou tpicas da modernidade, como os acidentes de carro, violncias, entre outras. 7 Nos principais pases desenvolvidos da Europa, constituem-se, no psguerra, os Estados de Bem-Estar Social (tambm conhecidos como Welfare State) com o objetivo de reerguer as economias afetadas pela guerra e configurar Estados fortes e compromissados com a democracia e a justia social uma forma de combater o comunismo e manter as economias europias no padro competitivo mundial (Esping-Andersen, 1995). Os Estados de Bem-Estar consistem em uma poltica sustentada e pactuada entre a rea econmica e a rea social com o objetivo de garantir o bemestar da populao e manter a produo econmica. Os pilares dessa poltica eram: o pleno emprego, a proviso pblica de servios sociais universais como sade, educao, saneamento, habitao, lazer, transporte etc. e a assistncia social para aqueles no includos no sistema produtivo (Faria, 1997). No Brasil, no se configurou nesse perodo (anos 50) uma poltica de bem-estar social, mas ganhou espao a ideologia desenvolvimentista que apontou a relao pobreza-doena-subdesenvolvimento, indicando a necessidade de polticas que resultassem em melhora do nvel de sade da populao como condio para se obter desenvolvimento este foi o primeiro passo para uma discusso mais aprofundada sobre o direito sade e proteo social como poltica pblica. O sanitarismo desenvolvimentista, que tinha como representantes Samuel Pessoa, Carlos Gentile de Melo e Mrio Magalhes, reagia ao campanhismo da sade pblica, centralizao decisria, fragilidade dos governos locais e ao baixo conhecimento do estado sanitrio do pas e propunha aComo exemplos, podemos citar os betabloqueadores, para a preveno das dores cardacas; os medicamentos contra lcera e Parkinson; a quimioterapia do cncer, os antidepressivos. 7 Fenmeno que se consolidar especialmente nos pases desenvolvidos, em trs dcadas (de 1950 para 1980), e que ser denominado transio demogrfica para explicar a mudana no perfil populacional, com pessoas mais idosas e maior controle da natalidade e transio epidemiolgica para explicar a mudana no perfil das doenas, com uma diminuio das doenas infecciosas e parasitrias e o aumento das doenas degenerativas, crnicas e tpicas da modernidade. Nos pases em desenvolvimento (ou perifricos), h uma grande variedade de situaes com transies mais ou menos avanadas, convivendo novas e antigas doenas.6

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compreenso das relaes entre sade e doena e sua importncia para a transformao social e poltica do pas (Lima, Fonseca & Hochman, 2005). Foram acontecimentos importantes deste perodo e que marcaram a trajetria da poltica de sade: a criao do Ministrio da Sade em 1953, atribuindo um papel poltico especfico para a sade no contexto do Estado brasileiro; e a reorganizao dos servios nacionais de controle das endemias rurais no Departamento Nacional de Endemias Rurais (Deneru) em 1956, possibilitando o incremento nas aes e nos programas de sade voltados para o combate s doenas endmicas na rea rural. Na prtica, os anos do desenvolvimentismo mantiveram a lgica de organizao do modelo poltico em vigor para a sade, com as aes e servios de sade pblica de um lado e o sistema previdencirio de outro, com polticas isoladas de sade que atendiam a diferentes objetivos. Uma poltica de sade pblica universal e com nfase na preveno das doenas transmissveis, e uma poltica de sade previdenciria, restrita aos contribuintes da previdncia e seus dependentes, com nfase na assistncia curativa. O direito sade integral ainda no era um direito do cidado brasileiro. Mas o desenvolvimentismo gerou riqueza e mobilizou recursos, o que levou a mudanas concretas nas cidades e novas demandas para o sistema previdencirio e para a sade pblica. A partir de ento, as polticas de sade configuram-se em um importante instrumento do Estado, no mais apenas pelo controle a ser exercido no espao de circulao dos produtos e do trabalhador, mas principalmente pelo quantitativo de recursos que passou a mobilizar postos de trabalho, indstrias (de medicamentos, de equipamentos), ensino profissional, hospitais, ambulatrios e tantos outros. Estava constituda a base para a expanso do sistema de sade e para a consolidao de um complexo produtivo, como veremos no tpico a seguir. Expanso e Consolidao do Complexo Mdico-Empresarial O golpe militar, em 1964, e a nova forma de organizao do Estado trouxeram mudanas para o sistema sanitrio brasileiro, dentre elas a nfase na assistncia mdica, o crescimento progressivo do setor privado e a abrangncia de parcelas sociais no sistema previdencirio. A primeira ao significativa no sistema previdencirio brasileiro ocorreu em 1966 com a unificao dos Iaps e a constituio do Instituto Nacional da40

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Previdncia Social (INPS). A criao do INPS permitiu uma uniformizao dos institutos, principalmente em termos dos benefcios prestados, causando certa insatisfao naqueles contribuintes com mais benefcios; afinal, com a unificao, a assistncia dos institutos mais ricos podia tambm ser usufruda pelos contribuintes de outros institutos, que contribuam com valores menores e no apresentavam uma assistncia de to boa qualidade. Tal fato ocasionou uma migrao de pacientes de alguns institutos e a superlotao de alguns hospitais, gerando filas, demora no atendimento e outros problemas, o que culminou em uma insatisfao geral. Alm disso, a unificao levou centralizao do poder dos Iaps no Estado e ao afastamento dos trabalhadores das decises a serem tomadas. Com isso, fortaleceu-se a tecnocracia8 e reforaram-se as relaes clientelistas do Estado, como a troca de favores, a barganha de interesses e o jogo de benefcios para os aliados do poder. No incio da dcada de 1970, a poltica proposta pelo INPS levou incluso de novas categorias profissionais no sistema trabalhadores rurais, empregadas domsticas e autnomos , e, a cada nova categoria includa, aumentava ainda mais a procura por servios e os gastos no setor sade. O Estado respondeu demanda com a contratao dos servios privados, permitindo a formao do que ficou conhecido como complexo mdico-empresarial (Cordeiro, 1984). Os gastos com a sade dobraram de valor, com uma tendncia clara para o atendimento hospitalar. A poltica de sade estava subordinada organizao do INPS, que manteve a estrutura de funcionamento anteriormente proposta pelos Iaps e oferecia servios apenas para aqueles que comprovavam o vnculo com o INPS as pessoas levavam suas carteiras de trabalho ou carn de contribuio previdenciria quando procuravam os hospitais ou qualquer outro tipo de assistncia, a fim de comprovar sua incluso no sistema. Mesmo com a incluso de novas categorias no sistema de proteo, muitos ainda no tinham o direito ateno sade. Os ndices de sade mostravamA tecnocracia expressa uma forma de atuar do burocrata que se utiliza do argumento tcnico no processo de construo de estratgias de ao do Estado. O tecnocrata, assim como o tcnico, parte da competncia e tem em vista a eficincia. No um especialista, mas um perito em idias gerais, e com isso acumula um conhecimento global das variveis de ao. ele quem coordena e reelabora o processo decisrio, com o argumento da legitimidade e neutralidade da cincia. Outras interpretaes sobre esse conceito so apresentadas no Dicionrio de Poltica organizado por Bobbio, Matteuci e Pasquino (1995).8

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a situao alarmante vivida pelo pas. Apenas para citar alguns dados: a esperana de vida ao nascer na dcada de 1970 era de 52,7 anos, a taxa de mortalidade infantil era de 87,9 bebs para 1.000 nascidos-vivos, e as doenas infecciosas e parasitrias constituam uma das principais causas de bito. A transio demogrfica e epidemiolgica ocorrida nos pases desenvolvidos ainda estava longe de ser alcanada na realidade brasileira, mesmo em face de todo desenvolvimento econmico obtido pelo pas desde os anos 50 at o milagre econmico do perodo 1968-1974. A principal razo para o quadro de estagnao social foi o total descaso dos governantes com relao s polticas pblicas comprometidas com o desenvolvimento social. Durante todo o regime militar autoritrio, o investimento na rea de sade pblica foi precrio, doenas antes erradicadas voltaram, doenas controladas apareceram em surtos epidmicos, o saneamento e as polticas de habitao populares foram desprezados, aumentou a pobreza e, principalmente, a desigualdade social. A partir de meados da dcada de 1970, finalizado o milagre econmico e em um cenrio de crise poltica, institucional e econmica iminente do governo militar comeam a se definir novas estratgias para a garantia de manuteno do governo, dentre elas a definio do II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND) e a poltica de abertura do governo. O II PND significou a composio de uma poltica de desenvolvimento que tinha como meta bsica a formulao de estratgias de desenvolvimento social, buscando a integrao e a interdependncia das polticas estatais um avano na poltica de Estado, pois selava o compromisso de conjugao da poltica econmica e social. O processo de abertura, em outra medida, possibilitou a expanso e expresso gradativa dos movimentos sociais, at ento, sob forte represso e sem espao para vocalizar as demandas. Para a sade, esse contexto significou a possibilidade de fortalecimento do movimento sanitrio, que estabelecia sua base de apoio em instituies acadmicas com forte respaldo terico Universidade de So Paulo (USP), Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/Uerj), Escola Nacional de Sade Pblica Sergio Arouca da Fundao Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz), dentre outras. A intelectualidade pertencente ao setor sade divulgava estudos sobre as condies sociais e de sade com crticas contundentes conduo poltica do Estado brasileiro e reinvidicava mudanas efetivas na assistncia sade no Brasil.42

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O movimento sanitrio buscava reverter a lgica da assistncia sade no pas apresentando quatro proposies para debate: A sade um direito de todo cidado, independente de contribuio ou de qualquer outro critrio de discriminao; As aes de sade devem estar integradas em um nico sistema, garantindo o acesso de toda populao a todos os servios de sade, seja de cunho preventivo ou curativo; A gesto administrativa e financeira das aes de sade deve ser descentralizada para estados e municpios; O Estado deve promover a participao e o controle social das aes de sade. O cenrio era de excluso de uma boa parcela da populao do direito sade, haja vista o fato de que apenas poucos tinham garantido, nesse momento, o direito assistncia mdica prestada pelo INPS, e que os servios de sade, do Ministrio da Sade, das secretarias estaduais e municipais, no absorviam a demanda de ateno gerada pelo restante da populao. No havia de fato se constitudo, at ento, no Brasil, uma poltica de Estado cidad no sentido mais abrangente; uma cidadania substantiva que desobrigasse qualquer espcie de vnculo com o processo produtivo e que reconhecesse o cidado simplesmente pelo valor que tem como membro daquela comunidade. Prevalecia a lgica da cidadania regulada, em que cidado era aquele que se encontrava localizado em qualquer uma das ocupaes reconhecidas e definidas por lei. Portanto, a proposta de reforma do setor sade apresentada pelo movimento sanitrio tambm se inseria em uma lgica maior de reestruturao do prprio Estado e de afirmao de uma cidadania substantiva para o povo brasileiro (Baptista, 2003). As presses por reforma na poltica de sade possibilitaram transformaes concretas ainda nos anos 70, mudanas que se efetivaram de forma incipiente e resguardando os interesses do Estado autoritrio. Dentre as polticas implementadas, destacam-se: a criao do Fundo de Apoio ao Desenvolvimento Social (FAS), em 1974, que distribuiu recursos para o financiamento de programas sociais; a formao do Conselho de Desenvolvimento Social (CDS), em 1974, que organizou as aes a serem implementadas pelos diversos ministrios da rea social;43

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a instituio do Plano de Pronta Ao (PPA), em 1974, que consistiu emuma medida para viabilizao da expanso da cobertura em sade e desenhou uma clara tendncia para o projeto de universalizao da sade; a formao do Sistema Nacional de Sade (SNS), em 1975, primeiro modelo poltico de sade de mbito nacional, que desenvolveu ineditamente um conjunto integrado de aes nos trs nveis de governo; a promoo do Programa de Interiorizao das Aes de Sade e Saneamento (Piass), em 1976, que estendeu servios de ateno bsica sade no Nordeste do pas e se configurou como a primeira medida de universalizao do acesso sade; a constituio do Sistema Nacional da Previdncia e Assistncia Social (Sinpas), em 1977, com mecanismos de articulao entre sade, previdncia e assistncia no mbito do Ministrio da Previdncia e Assistncia Social (MPAS) e a criao do Instituto Nacional de Assistncia Mdica da Previdncia Social (Inamps), que passou a ser o rgo coordenador de todas as aes de sade no nvel mdico-assistencial da previdncia social. Este conjunto de medidas favoreceu a construo de polticas mais universalistas na rea da sade priorizando a extenso da oferta de servios bsicos e fortalecendo a perspectiva de reforma do setor. Foi tambm neste perodo que o setor mdico-empresarial comeou a se fortalecer institucionalmente, beneficiando-se igualmente das polticas de investimento na rea social. O FAS, por exemplo, repassou grande parte dos recursos para investimento na expanso do setor hospitalar, onde 79,5% dos recursos foram destinados para o setor privado e 20,5% para o setor pblico. O aumento gradativo dos convnios com o setor privado significou o desinvestimento progressivo na criao de servios pblicos, e as medicinas de grupo surgiram tambm como mais uma opo de ateno populao (Cordeiro, 1984). A concesso de privilgios ao setor privado e a mercantilizao da medicina sob o comando da previdncia social foram duramente criticados pelo movimento sanitrio. Os reformistas buscavam a universalizao do direito sade, a unificao dos servios prestados pelo Inamps e Ministrio da Sade em um mesmo sistema e a integralidade das aes (com a garantia do acesso a aes de preveno e assistncia mdica). A partir desse momento, ampliavase o debate sobre o direito sade no Brasil, a comear pela prpria concepo de sade.44

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A sade passava a assumir um sentido mais abrangente, sendo resultante das condies de alimentao, habitao, educao, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso a servios de sade, dentre outros fatores. Portanto, o direito sade significava a garantia, pelo Estado, de condies dignas de vida e de acesso universal e igualitrio s aes e servios para promoo, proteo e recuperao, em todos os nveis, de todos os habitantes do territrio nacional. Nesse sentido, a proposta de reforma para a sade era tambm uma proposta de reforma do Estado, Estado este que se havia constitudo sob uma base fundada no patrimonialismo, poltica de clientela, centralizao decisria e excluso social modos de fazer poltica que se reproduziam no s no mbito de organizao do setor sade como em todos os demais setores, mas que foram explicitados no debate da sade, talvez por ser este um setor que criticava com muito mais dureza a situao de injustia social que se havia consolidado (Baptista, 2003). Os 100 anos de histria do Brasil tinham enraizado uma cultura poltica de Estado enfaticamente concentradora do poder decisrio nas mos de uma parcela pequena da sociedade (poder oligrquico), ou dos recursos produzidos no mbito do Estado, mantendo um grande fosso entre grupos sociais e regies, reproduzindo, dessa forma, uma situao de desigualdade. Assim, o processo poltico tambm estava comprometido em uma rede imbricada de poder institudo na burocracia estatal, na organizao poltica e partidria e na cultura social. O ideal da Reforma Sanitria exigia, nesse contexto, uma reviso do modo de operar do Estado, da lgica burocrtica que concentrava poder e uma disposio social para repartir a renda (redistribuir) e participar ativamente da construo desse novo Estado, agora de inteno democrtica. Redemocratizao e Direito Sade A dcada de 1980 iniciou-se em clima de redemocratizao, crise poltica, social e institucional do Estado Nacional. A rea social e, em especial, a previdncia social vivia uma crise profunda, assumindo medidas de racionalizao e reestruturao do sistema. No mbito da sade, o movimento da Reforma Sanitria indicava propostas de expanso da rea de assistncia mdica da previdncia, intensificando os conflitos de interesse45

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com a previdncia social e envolvendo poder institucional e presses do setor privado. Neste contexto, foi realizada a VII Conferncia Nacional de Sade (1980), que apresentou como proposta a reformulao da poltica de sade e a formulao do Programa Nacional de Servios Bsicos de Sade (PrevSade). O Prev-Sade consistia em uma proposta de extenso nacional do Programa de Interiorizao das Aes de Sade e Saneamento (Piass), que havia sido desenvolvido no perodo compreendido entre 1976/79 no Nordeste do Brasil. O Piass foi uma experincia bem-sucedida que possibilitou uma melhoria no nvel de sade da populao da regio Nordeste a partir da implantao de uma estrutura bsica de sade pblica nas comunidades de at 20.000 habitantes. O Prev-Sade visava, na mesma medida, dotar o pas de uma rede de servios bsicos que oferecesse, em quantidade e qualidade, os cuidados primrios de proteo, promoo e recuperao da sade, tendo como meta a cobertura de sade para toda a populao at o ano 2000 (Conferncia Nacional de Sade, 1980). No entanto, o Prev-Sade acabou no sendo incorporado pelo governo e muito menos estabelecido na prtica, dadas as resistncias intraburocrticas assentadas no Inamps, a forte oposio das entidades do segmento mdicoempresarial e ainda as presses oriundas do campo da medicina liberal e do setor privado contratado (Cordeiro, 1991). Este conjunto de foras conformou um sem-nmero de razes para que o Prev-Sade no se concretizasse. Os conflitos em torno dos encaminhamentos da poltica de sade ganhavam o espao da arena institucional. Em contrapartida, e significativamente, o PrevSade tambm revelou um momento indito de entrada do discurso reformista na arena de discusso institucional estatal da sade. As idias reformistas defendidas por diversos grupos de discusso comeavam a se integrar em uma proposta abrangente de definio da poltica de sade. Existiam, contudo, divergncias de postura no encaminhamento das propostas entre os grupos de reformistas, o que tambm influiu na conduo da poltica de sade. Em 1980, outros mecanismos de reformulao comearam a ser encaminhados. A primeira medida tomada foi a formao, em 1981 na esfera de atuao do MPAS e do Conselho Consultivo de Administrao da Sade Previdenciria (Conasp) um grupo de trabalho especfico criado no contexto46

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da crise da previdncia com a inteno de buscar respostas concretas que explicassem as razes da crise do setor. O diagnstico do Conasp identificou um conjunto de distores no modelo de sade ento vigente, a saber: servios inadequados realidade; insuficiente integrao dos diversos prestadores; recursos financeiros insuficientes e clculo imprevisto; desprestgio dos servios prprios; superproduo dos servios contratados. O diagnstico apontava para uma rede de sade ineficiente, desintegrada e complexa, indutora de fraude e de desvio de recursos. A relao do Inamps rgo responsvel pela assistncia mdica previdenciria com os demais servios de assistncia promovidos pelo Estado, via estados e municpios, era opaca e pouco operativa. Os servios oferecidos pelo Ministrio da Sade (secretarias estaduais e municipais, inclusive) funcionavam independente e paralelamente aos servios oferecidos pelo MPAS/Inamps, o que formava uma rede pblica desintegrada sem a prvia programao do sistema. Tal fato conformava uma dificuldade a mais no planejamento dos investimentos e gastos no setor (Cordeiro, 1991). A partir deste diagnstico, foram elaboradas propostas operacionais bsicas para a reestruturao do setor, mas no para desmontagem do sistema. Dentre as propostas apresentadas, destacaram-se: o Programa das Aes Integradas de Sade (Pais), a Programao e Oramentao Integrada (POI), o Programa de Racionalizao Ambulatorial (PRA) e o Sistema de Assistncia Mdico-Hospitalar da Previdncia Social (SAMHPS). O Pais, posteriormente denominado apenas Aes Integradas de Sade (AIS), revelou-se como a estratgia mais importante para a universalizao do direito sade e significou uma proposta de integrao e racionalizao dos servios pblicos de sade e de articulao destes com a rede conveniada e contratada, o que comporia um sistema unificado, regionalizado e hierarquizado para o atendimento.9 A proposta resumia-se na assinatura de convnios entre oUnificado nas aes propostas pelo Ministrio da Sade, secretarias de sade e pelo Inamps. Regionalizado, compondo a organizao de um sistema em que municpios se comunicam e planejam juntos a assistncia sade. Hierarquizado por nvel de ateno, do mais simples ao mais complexo.9

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Inamps e os estados e municpios para o repasse de recursos destinados construo de unidades da rede com o compromisso dos governos de oferecer assistncia gratuita toda populao e no s para os beneficirios da previdncia. Com essa proposta, as AIS retomavam a estratgia apresentada no Prev-Sade e conquistavam um avano expressivo na conformao de polticas que levaria reforma do setor sade, fortalecendo o princpio federativo (coordenao de aes entre a unio e os estados) e a incorporao do planejamento prtica institucional. O programa era executado a partir da gesto tripartite MS/Inamps/Secretarias Estaduais. O processo de coordenao interinstitucional e gesto colegiada concretizou-se a partir da Comisso Interministerial de Planejamento (Ciplan), envolvendo os ministrios da Sade, da Previdncia e Assistncia Social e da Educao e Cultura. Formaram-se tambm as comisses interinstitucionais estaduais (CIS), regionais (CRIS), municipais (CIMS) e locais (Ceaps) respectivamente, construindo um amplo contingente de tcnicos nas secretarias estaduais e municipais envolvidos com o projeto de reforma. A POI consistiu na criao de mecanismos para programao e oramentao dos recursos para sade de forma integrada, ou seja, na concepo de um instrumento integrador da poltica de recursos do Inamps e dos servios estaduais e municipais. O PRA pretendia estabelecer uma hierarquia de prioridades assistenciais entre os postos de assistncia mdica (PAM do Inamps) e o conjunto de consultrios e laboratrios privados e credenciados. J o SAMHPS visou ao controle de recursos para o setor privado, a partir da introduo de um instrumento gerencial e de pagamento de contas hospitalares baseado nos procedimentos mdico-cirrgicos a Autorizao de Internao Hospitalar (AIH). Com este sistema foi possvel alcanar uma informatizao inicial do controle das internaes e, conseqentemente, maior controle das fraudes. A AIH ainda hoje utilizada, tendo sido empregada no controle das internaes tambm no setor pblico a partir de 1991. Dos quatro programas apresentados, apenas o Pais e o SAMHPS expressaram a conformao dos princpios bsicos para uma poltica de sade unificada, integrada e descentralizada. Estas propostas avanaram na discusso sobre o funcionamento do setor previdencirio e sua articulao com48

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a sade e criaram condies para a discusso sobre a democratizao e universalizao do direito sade, especialmente a partir do governo da Nova Repblica. A Poltica de Sade na Nova Repblica No governo da Nova Repblica, a partir de 1985, a estratgia das AIS foi retomada, promovendo, junto com uma nova POI, a reformulao do sistema de sade na lgica de uma rede unificada. Integrantes do movimento sanitrio passaram a ocupar cargos de expresso no mbito poltico-institucional do Estado (no Ministrio da Sade, no Inamps, na Fiocruz), coordenando as polticas e negociaes no setor da sade e previdencirio. No ano de 1986, o Ministrio da Sade convocou tcnicos, gestores de sade e usurios para uma discusso aberta sobre a reforma do sistema de sade, realizando, assim, a VIII Conferncia Nacional de Sade (VIII CNS). Esta conferncia foi um marco histrico da poltica de sade brasileira, pois, pela primeira vez, contava-se com a participao da comunidade e dos tcnicos na discusso de uma poltica setorial. A conferncia reuniu cerca de 4.000 pessoas nos debates, e aprovou, por unanimidade, a diretriz da universalizao da sade e o controle social efetivo com relao s prticas de sade estabelecidas. Aps 20 anos de ditadura, conquistava-se o direito participao; aps sculos de desassistncia, falavase na definio de um modelo protetor com a garantia do direito sade integral (Faria, 1997). No relatrio da VIII Conferncia consta: Sade como Direito em seu sentido mais abrangente, a sade a resultante das condies de alimentao, habitao, educao, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso a servios de sade. , assim, antes de tudo, o resultado das formas de organizao social da produo, as quais podem gerar grandes desigualdades nos nveis de vida. Direito sade significa a garantia, pelo Estado, de condies dignas de vida e de acesso universal e igualitrio s aes e servios de promoo, proteo e recuperao de sade, em todos os seus nveis, a todos os habitantes do territrio nacional, levando ao desenvolvimento pleno do ser humano em sua individualidade.49

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Este relatrio, com todas as afirmaes nele contidas, serviu como instrumento de presso poltica no contexto da Nova Repblica. E mais: serviu de referncia na discusso da Assemblia Nacional Constituinte em 1987/88,10 sendo reconhecido como um documento de expresso social. As propostas da VIII CNS no foram concretizadas de imediato. Aps a conferncia, por iniciativa do MPAS/Inamps, foi constitudo o Sistema Unificado e Descentralizado de Sade (Suds), que se apresentou como estratgiaponte na construo do SUS. O Suds surgiu como uma proposta poltica formulada no interior da burocracia do Inamps, contando com o apoio dos ministros da Previdncia, da Sade e da Educao, que assinaram juntos a exposio de motivos para a criao do Suds, em julho de 1987. O Suds avanou na poltica de descentralizao da sade e, principalmente, na descentralizao do oramento, permitindo uma maior autonomia dos estados na programao das atividades no setor; deu prosseguimento s estratgias de hierarquizao, regionalizao e universalizao da rede de sade e retirou do Inamps a soma de poder que ele centralizava. Mas o Suds tambm foi motivo de controvrsias entre os dirigentes e reformistas dos ministrios da Sade e da Previdncia.