A Fábrica Nas Tramas Da Memória Narrativas e Imagens Na Construção de Um Diálogo Sobre o Mundo...

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A FÁBRICA NAS TRAMAS DA MEMÓRIA: NARRATIVAS E IMAGENS NA CONSTRUÇÃO DE UM DIÁLOGO SOBRE O MUNDO DO TRABALHO EM SOBRAL- CEARÁ 1 Cid Morais Silveira 2 Telma Bessa Sales 3 Resumo: O presente artigo tem por objetivo analisar a construção visual e narrativa de Sobral, com enfoque no mundo do trabalho, a partir das recordações de interlocutores e de imagens sobre as fábricas Companhia Industrial de Algodão e Óleo – CIDAO, e a Fábrica de Tecidos Sobral. Pretende-se aqui articular em uma mesma pesquisa, perspectivas e práticas diferentes dentro do universo da temática do ambiente fabril, refletindo sobre a historicidade do espaço urbano de Sobral, enfocando as transformações da paisagem citadina com a presença das fábricas e dos trabalhadores que praticam os lugares. Buscamos considerar novas abordagens e outros sujeitos atentando para as pulsações que brotam da própria realidade com uma opção teórico-metodológica que põe em diálogo palavras e imagens – fotografias e depoimentos. Palavras-chave: Narrativas; Imagens; Memórias. Abstract: This articleaims to analyzethe construction of narrative and visual Sobral, focusing on the world of work, from 1 Artigo apresentado como conclusão da pesquisa “Palavras e Imagens: Narrativas e Fotografias do Mundo do Trabalho em Sobral”, durante o período de 2011 a 2012, sob a orientação da professora Dra. Telma Bessa Sales, tendo como bolsista o graduando Cid Morais Silveira, com apoio financeiro do CNPq. 2 Graduando em História pela Universidade Estadual Vale do Acaraú – UVA. Bolsista do CNPq.Email: [email protected] 3 Doutora em História pela PUC-SP. Professora adjunta da Universidade Estadual Vale do Acaraú - UVA.Email: [email protected]

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Esse artigo trata da questao dos trabalhadores de fábrica e suas memórias e narrativas

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A FBRICA NAS TRAMAS DA MEMRIA: NARRATIVAS E IMAGENS NA CONSTRUO DE UM DILOGO SOBRE O MUNDO DO TRABALHO EM SOBRAL-CEAR[footnoteRef:1] [1: Artigo apresentado como concluso da pesquisa Palavras e Imagens: Narrativas e Fotografias do Mundo do Trabalho em Sobral, durante o perodo de 2011 a 2012, sob a orientao da professora Dra. Telma Bessa Sales, tendo como bolsista o graduando Cid Morais Silveira, com apoio financeiro do CNPq.]

Cid Morais Silveira[footnoteRef:2] [2: Graduando em Histria pela Universidade Estadual Vale do Acara UVA. Bolsista do CNPq.Email: [email protected]]

Telma Bessa Sales[footnoteRef:3] [3: Doutora em Histria pela PUC-SP. Professora adjunta da Universidade Estadual Vale do Acara - UVA.Email: [email protected]]

Resumo:O presente artigo tem por objetivo analisar a construo visual e narrativa de Sobral, com enfoque no mundo do trabalho, a partir das recordaes de interlocutores e de imagens sobre as fbricas Companhia Industrial de Algodo e leo CIDAO, e a Fbrica de Tecidos Sobral. Pretende-se aqui articular em uma mesma pesquisa, perspectivas e prticas diferentes dentro do universo da temtica do ambiente fabril, refletindo sobre a historicidade do espao urbano de Sobral, enfocando as transformaes da paisagem citadina com a presena das fbricas e dos trabalhadores que praticam os lugares. Buscamos considerar novas abordagens e outros sujeitos atentando para as pulsaes que brotam da prpria realidade com uma opo terico-metodolgica que pe em dilogo palavras e imagens fotografias e depoimentos.Palavras-chave: Narrativas; Imagens; Memrias.

Abstract:This articleaims to analyzethe construction of narrative and visual Sobral, focusing on the world of work, from thememoriesandimagesof actorson the Company's factories and Industrial Cotton Oil Cidao and Textile Factory Sobral. The intention here is to articulate the same research, different perspectives and practices with in the universe of the theme of the manufacturing environment, reflecting on the historicity of the urban space of Sobral, focusing on the transformation of the city scampering the presence of factories and workers who practice the places. We seek to consider new approaches and other subjects attending to the pulsations that spring from reality with an option theoretical and methodological dialogue that puts in words and images- photographs and testimonials.Keywords: Narratives, Images, Memories.

INTRODUOQuem quer conhecer algo o faz para fazer alguma coisa. Se afirma desejar conhecer pelo puro prazer de conhecer, significa que ele quer conhecer para no fazer nada. Umberto EcoNos dizeres de Umberto Eco, em seu livro Tratado geral da Semitica[footnoteRef:4], que comeo este texto. Quis conhecer algo, para fazer algo. Quis conhecer os trabalhadores, assim como seus lugares de trabalho, para mostrar, atravs de palavras e imagens, suas trajetrias, seu cotidiano, suas vitrias e derrotas, seus anseios e desejos, alm das transformaes urbanas ocasionadas pela implementao da fbrica. Claro que reconheo a limitao deste texto e no meu desejo abarcar todo o universo plural dos trabalhadores, mas compreender uma parcela do seu mundo j se torna algo satisfatrio. [4: ECO, Umberto. Tratado geral da Semitica. So Paulo. Perspectiva. 1980.]

Antes de comear o nosso dilogo entre fotografias e narrativas, importante entender um pouco sobre a fotografia, de como a mesma passou a ser utilizada como instrumento de anlise e como fonte histrica. Seus usos e abusos por parte de Clio.

Clio e a fotografia: Significados e usos historiogrficosTodavia, porque era uma fotografia, eu no podia negar que eu tinha estado l. Roland BarthesO evidente desenvolvimento historiogrfico proporcionou ao historiador uma dilatao no que se diz respeito aos campos e possiblidades de estudos. Superando uma histria feita com textos e documentos timbrados, Marc Bloch e Lucien Febvre deram incio a uma reformulao de enfoques, que at ento estavam ligados a uma Histria factual, dita positivista. Desde ento, tem ocorrido uma expanso nos limites da produo historiogrfica, seja no nmero de pesquisas e na quantidade de temas.A revista Annales serviu, ao historiador, como um grande laboratrio, onde foi possvel estabelecer contatos com vrios setores de pesquisa. Atravs de resenhas e comentrios percebeu-se que esta poca possibilitou-lhe uma srie de reflexes referentes investigao de um fundamento para o conhecimento em Histria. Propiciou uma construo metodolgica, baseada na tentativa de uma interdisciplinaridade que beneficiasse a pesquisa.[footnoteRef:5] [5: RAMINELLI, Ronald. Lucien Febvre no caminho das mentalidades. In: R. Histria, So Paulo, n. 122. Pg. 100. ]

Quando surgiu, a fotografia foi alvo intenso de disputas e discusses. Uma verdadeira serva das cincias. A meu ver, a ideia central, que inclusive defendida por muitos historiadores, apresentar a fotografia como uma mensagem que se elabora atravs do tempo, tanto como imagem/monumento, quanto como imagem/documento[footnoteRef:6], tanto como testemunho direto quanto como testemunho indireto do passado.[footnoteRef:7]A discusso de Le Goff sobre documento/monumento veio como possibilidade de tomar a fotografia e utiliz-la no seu sentido simblico, material e funcional. O carter simblico levaria em considerao a construo de sentidos partilhados, ou seja, a representao da fotografia. J os sentidos materiais e funcionais estariam direcionados ao conceito de fonte de pesquisa, levando em considerao as tramas e jogos de interesses envolvendo a imagem e, consequentemente, o sujeito que a produz. Com isso, a fotografia seria um objeto responsvel por desencadear memrias.[footnoteRef:8] [6: LE GOFF, Jacques. Documento /monumento, In: Memria-Histria, Enciclopdia Einaudi, vol. I. Lisboa,Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1985.] [7: BLOCH, Marc. Introduo histria, 5 ed., Lisboa, Coleo Saber, Pub. Europa-Amrica, s/d.] [8: FERREIRA, Luciana de Moura. Histria, memrias e imagens: perspectivas metodolgicas. In: JUC, Gisafran Nazareno Mota. Memrias entrecruzadas: experincias de pesquisas. Fortaleza. EdUECE, 2009. Pg. 207.]

Na segunda metade do sculo XIX, a fotografia foi logo percebida como um retrato fiel da realidade, um recurso encontrado pela cincia para a representao do fato. O carter de prova irrefutvel do que realmente aconteceu, atribudo imagem fotogrfica pelo pensamento da poca, transformou-a num duplo da realidade, num espelho, cuja magia estava em perenizar a imagem que refletia.[footnoteRef:9] Isso justifica a escolha da epgrafe de Roland Barthes, presente nas pginas inebriantes de seu livro, A Cmara Clara.[footnoteRef:10] [9: MAUAD, Ana Maria. Atravs da imagem: fotografia e Histria interfaces. In: Tempo, Rio de Janeiro, vol. 1, n . 2, 1996, pg. 73-98.] [10: BARTHES, Roland. A cmara clara. So Paulo: Nova Fronteira, 1984.]

Qual seria ento o papel da fotografia na expresso visual do sculo XIX? O poeta francs Baudelaire, citado no livro de Phillipe Dubois, nos fala qual era o seu verdadeiro lugar.Se permitido fotografia completar a arte em algumas de suas funes, cedo a ter suplantado ou simplesmente corrompido, graas aliana natural que achar na estupidez da multido. necessrio que se encaminhe pelo seu verdadeiro dever, que ser a serva das cincias e das artes, mas a mais humilde das servas (...).Que ela enriquea rapidamente o lbum do viajante e d aos olhos a preciso que faltaria sua memria, que orne a biblioteca do naturalista, exagere os animais faltaria sua memria, que orne a biblioteca do naturalista, exagere os animais microscpicos, fortifique mesmo alguns ensinamentos e hipteses do astrnomo; que seja enfim a secretria e bloco-notas de algum que na sua profisso tem necessidade duma absoluta exatido material. Que salve do esquecimento as runas pendentes, os livros as estampas e os manuscritos que o tempo devora, preciosas coisas cuja forma desaparecer e exigem um lugar nos arquivos de nossa memria; ser gratificada e aplaudida. Mas se lhe permitido por o p no domnio do impalpvel e do imaginrio, em tudo o que tem valor apenas porque o homem lhe acrescenta a sua alma, mal de ns.[footnoteRef:11] [11: DUBOIS, Phillipe. O ato fotogrfico. Lisboa, Vega, 1992, p.23.]

Baudelaire enfatiza a separao arte/fotografia, concedendo a primeira um lugar na imaginao criativa e na sensibilidade humana, prpria essncia da alma, enquanto segunda reservado o papel de instrumento de uma memria documental da realidade, concebida em toda a sua amplitude.[footnoteRef:12] [12: MAUAD, Ana Maria. Op. Cit. Pg. 72.]

Com a relevncia que detinha o pensamento positivista do sculo XIX, no de se esperar que a imagem, assim como a fotografia, figurasse em segundo plano, enquanto os documentos textuais eram as fontes privilegiadas, no que diz respeito ao campo historiogrfico. O valor de prova ou testemunho da fotografia, quando lastreada pelas fontes textuais, servia como documento complementar para a construo de narrativas de cunho positivista, baseada no encadeamento factual e biogrfico.[footnoteRef:13] [13: Cf. TURAZZI, Maria Inez. Quadro de Histria Ptria: fotografia e cultura histrica oitocentista. In: FABRIS, Annateresa; KERN, Lcia Bastos (org.). Imagem e conhecimento. So Paulo. Edusp. 2006. Pg. 231-253. ]

Ao longo do sculo XX, o mercado fotogrfico ampliou-se e especializou-se. A prtica fotogrfica de carter documentarista tornou-se marca da produo fotogrfica destinada aos meios de comunicao impressa[footnoteRef:14], ao mesmo tempo em que a Sociologia e Antropologia utilizaram de modo tcnico a fotografia, na qual era tida como carter testemunhal do fato. [14: LIMA, Solange Ferraz de; CARVALHO, Vnia Carneiro. Fotografias: Usos sociais e historiogrficos. In: PINSKY, Carla Bassanezi; LUCA, Tania Regina de (org.). O historiador e suas fontes. 1. Ed. So Paulo. Contexto. 2011. Pg. 34.]

Como podemos constatar, a fotografia difundiu-se no seio da sociedade contempornea, na qual propiciou aquilo que Jos de Souza Martins chamou de cultura popular da imagem. As grandes celebridades, antes observadas de longe pela populao, podiam ser colecionadas em casa, nos lbuns.[footnoteRef:15] Apesar de ser smbolo de modernidade e urbanidade, a fotografia foi absorvida por sociedades tradicionais, que a transformaram em instrumentos de atualizao moderna de antigos valores, normas e costumes.[footnoteRef:16] [15: Ibidem. Pg. 30, 31.] [16: MARTINS, Jos de Souza. Sociologia da fotografia e da imagem. So Paulo. Contexto, 2008. Pg. 17.]

Para os historiadores do primeiro quartel do sculo XX, os laos adquiridos com a imagem foram se constituindo, em grande parte, pelos seus usos no museu, usos esses estrategicamente planejados pelos historiadores de tornar hegemnicas as representaes de identidades nacionais vinculadas a interesses de grupos polticos e econmicos.[footnoteRef:17] A partir da dcada de 90, os historiadores e demais cientistas das cincias humanas, dilataram seus interesses pela fotografia, pois fruto disso o aumento considervel de dissertaes e teses acadmicas envolvendo a imagem como objeto de pesquisa. [17: LIMA, Solange Ferraz de; CARVALHO, Vnia Carneiro. Op. Cit. Pg. 37. ]

guisa de concluso da primeira parte deste texto, outras histrias sobre fotografias comearam a ser produzidas, levando-se em considerao o como e seus vrios efeitos naqueles que produzem e consomem a fotografia. Vamos agora comear a escrever uma dessas histrias, abrindo brechas com a finalidade detranspor o silncio das fontes ao reavivar palavras esquecidas.[footnoteRef:18]. [18: LANGUE, Frdrique. O sussurro do tempo: ensaios sobre uma histria cruzada das sensibilidades Brasil/Frana. In: ERTZOQUE, Marina Haizenreder; PARENTE, Temins Gomes. Histria e Sensibilidade. Braslia. Paralelo 15. 2006. Pg. 22.]

Sobral entre fios, tecidos e ns: A formao de uma cidade industrial.(...) organizou o comboio com trs burros, e outros tantos cavalos de sela, e partiu na direo de Sobral, a cidade intelectual, rica e populosa, emprio do comrcio do Norte da provncia, na qual o governo estabelecera opulentos celeiros Domingos OlmpioA segunda metade do sculo XIX marcada pelo aumento e propagao das atividades algodoeiras no Cear. Fortaleza enriqueceu com o ouro branco e Sobral tambm reforou sua economia, virando centro poltico e cultural da regio norte cearense. Ambas transformaram seus ncleos urbanos, adquirindo a fisionomia de cidades comerciais.A vinda de Ernesto Deocleciano de Albuquerque, de Acarati para residir em Sobral, montando uma indstria txtil, em 1895 marcou o incio das atividades industriais sobralenses, que experimentou grande crescimento econmico graas exportao dos fios e tecidos, atravs da Estrada de Ferro de Sobral. Outros tipos de indstrias sobralenses foram as extrativistas de produtos vegetais eminerais, cuja matria-prima era comum na regio, como a oiticica, palha e cera decarnaba, mamona, argila, calcrio, dentre outras.[footnoteRef:19] [19: AGUIAR JNIOR, Paulo Rocha. A Cidade e o Rio: Produo do Espao Urbano em Sobral - CE.Dissertao (Mestrado) em Desenvolvimento e Meio Ambiente-Universidade Federal do Cear, Fortaleza, 2005. Pg. 35,36.]

Em Sobral, no dia 14 de Julho de 1895 inaugurada a fbrica de tecidos Sobral de propriedade da firma Ernesto, Sabia & Cia. (...) Na realidade a produo consistia em mesclas de roupas masculinas. Posteriormente a fbrica ingressa no fabrico de sacos. (...) A fbrica dispe ainda de uma vila operria, comportando dezenas de casas, alegres e bem repartidas com farta canalizao de gua.[footnoteRef:20] [20: ARAGO, Elizabeth Fiza. A trajetria da indstria txtil no Cear: Setor de fiao e tecelagem 1880 1950. NUDOC. Fortaleza, 1989. Pg. 55, 56.]

Fonte: Arquivo Nirez[footnoteRef:21] Fonte: Arquivo Paulo Rocha[footnoteRef:22] [21: Foto da Fbrica de Tecidos Sobral, presente no arquivo Nirez. Coletada em AGUIAR JNIOR, Paulo Rocha. Op. Cit. Pg. 36.] [22: Foto da antiga estao de trem de Sobral, presente no arquivo Paulo Rocha. Coletada em AGUIAR JNIOR, Paulo Rocha. Op. Cit. Pg. 87.]

O fato de as primeiras indstrias txteis terem surgido aps 1880 tem levado muitos autores cearenses a superestimar a disponibilidade da matria-prima como elemento casual do aparecimento das primeiras indstrias txteis no Cear[footnoteRef:23], ou seja, a necessidade que se tinha do uso do algodo no exportado, por conta da Guerra de Secesso, e estocado foi uma condio primacial para a implantao dos primeiros investimentos txteis no estado. [23: ARAGO, Elizabeth Fiza. Op. Cit. Pg. 57.]

Sobral, como carrefour da Zona Norte, viveu momentos ureos em sua economia bafejadapelos ventos advindos do ciclo do couro, do comrcio e da industrializao ento nascente nadcada de cinquenta. A fbrica CIDAO Companhia Industrial de Algodo e leo era osmbolo do progresso, do desenvolvimento e da modernidade. O apito ressoava pela cidadecomo prenncio da esperana.[footnoteRef:24] [24: SOARES, Jos Teodoro. A Ideia de Modernidade em Sobral. Edies UFC/Edies UVA. Fortaleza. 2000. Pg. 69.]

Fundada pelo senhor Trajano Saboya Viriato de Medeiros, em 1921, a CIDAO beneficiava o algodo, a mamona e a oiticica, extraindo-lhe o leo que era, posteriormente, exportado produzindo divisas para o desenvolvimento de Sobral e da Zona Norte. Com a estagnao da economia cearense provocada pela depreciao dos produtos primrios, mormente com a dizimao do algodo, a CIDAO, aps mudar de proprietrios numa tentativa de sobreviver crise sempre ameaadora, foi falncia, mas ainda conseguiu respirar, mesmo com dificuldade at 1980, ano em que cerrou as portas.

Fonte:Arquivo Herbert Rocha[footnoteRef:25] [25: Foto da CIDAO ainda em funcionamento, presente no Arquivo Herbert Rocha. Coletada em AGUIAR JNIOR, Paulo Rocha. Op. Cit. Pg. 80.]

Como nos fala Arago, o perodo de 1927 a 1940 nem se ganhava muito, nem tambm se perdia, outros guardam na memria, sobretudo os anos secos, trazendo dificuldades para o comrcio, e h outros que se recordam de mecanismos de defesa utilizados para enfrentar a crise, entre eles a diversificao para outras linhas de produo, tais como xadrezes, riscados, brins...[footnoteRef:26] [26: ARAGO, Elizabeth Fiza. Op. Cit. Pg. 77 ]

A passagem da dcada de 40 para a de 50 marca os momentos decisivos para a indstria txtil local. Aquelas fbricas que reinvestiram em modernizao, troca de maquinaria,diversificao de produtos, conseguiram atravessar o decnio de 50 de forma razovel. J asque mantiveram as mesmas condies tecnolgicas foram fadadas a desaparecer.[footnoteRef:27] [27: Ibidem. Pg. 80.]

A Saudade dos fios, tecidos e ns: Fotografias e Falas em dilogo.E por pouco no entronizei o retrato na cabeceira de minha cama, como lembrana daquela sem a qual eu simplesmente no sabia viver. Fernando SabinoFernando Sabino escreveu o trecho acima em um livro chamado A falta que ela me faz.[footnoteRef:28] Partindo disso, podemos nos questionar: Do que sentimos falta? Pra que serve um retrato em um momento em que algo, ou algum, est ausente? Ser que os ex-trabalhadores sentem falta e saudade do seu lugar de trabalho? [28: SABINO, Fernando. A falta que ela me faz. Rio de Janeiro: Record, 1985,p. 44]

Podemos sentir falta de muitas coisas. A Histria necessita da ausncia. A nossa falta vai depender do que somos e da leitura de mundo que temos. Logo, uma criana pode sentir falta de uma boneca; um homem pode sentir falta de sua companheira ou de um amigo e o poeta sente falta de sua musa, que quase sempre est ausente. Da mesma forma que um operrio pode sentir falta de seu tear, do convvio com os amigos e do lugar onde ganhava o po. E quando no existir volta, o que fazer pra suprir essa dor presente da ausncia? Memrias e, como no se podia deixar de lembrar, uma foto. Como j dizia Roberto Carlos, as fotos no negam os fatos do que se passou.[footnoteRef:29] [29: Msica chamada Coisas que no se esquece, composio de Mauro Motta e Eduardo Ribeiro. Interpretao de Roberto Carlos.]

A fotografia, dessa forma, teria a caracterstica de maximizar ou minimizar a saudade de um passado que no volta. Porm, para que a foto realmente seja sentida, preciso preparao. De acordo com Francisco Rgis Lopes Ramos, o envolvimento entre o que dado viso e quem v necessita de atividades preparatrias, com o intuito de sensibilizar aquele que vai v. Do contrrio, no se v, ou pouco se v.[footnoteRef:30] [30: RAMOS, Francisco Rgis Lopes. A danao do objeto - o museu no ensino da histria.Chapec: Argos, 2004.]

Fonte: Acervo de Telma Bessa Sales[footnoteRef:31] [31: Nesta foto recente temos o antigo cassino da fbrica. Imagem do acervo de Telma Bessa Sales.]

O cassino, na foto acima, um dos lugares mais presentes nas falas dos ex-trabalhadores. Local onde ocorriam os principais eventos da fbrica, tal como festas, comemoraes de datas festivas, desfiles, dentre outros.O Cassino era bom, tinha festa, tinha. Era festa de chito, chito, carnaval tinha tarde, domingueira nra. A tarde era, botava uma banda de msica e ele dana l depois de duashoras at seis da tarde, sete horas...[footnoteRef:32] [32: Entrevista com Pedro, ex-operrio, concedida a Telma Bessa Sales, em 04/05/2011]

Fonte: Acervo de Telma Bessa Sales[footnoteRef:33] [33: Foto da chamin da fbrica, presente no acervo de Telma Bessa Sales.]

Noel Rosa escreveu um dos sambas mais importantes da msica popular brasileira, Trs Apitos, na qual reclama sua companheira que o apito da fbrica tem mais importncia do que a buzina de seu carro. Ao mesmo tempo, a lembrana de um amor perdido se faz sempre presente quando o apito ressoa em seus ouvidos. Nos dizeres de Noel, cada samba que fao para um amor que eu esqueo. Porm, a fbrica, atravs de um apito que hoje emite o silncio, ainda faz barulho nas memrias dos ex-trabalhadores, fazendo-os rememorar.Era na caldeira, quando era, o apito comeava a apitar cinco horas da manh um apito longo o pessoal acordava... [risos] Era, ai apitava cinco e meia o outo apito, ai quinze pa seis era dois apito ai que era pa pessoa e chegando no era, ai seis horas apitava de novo, o ltimo apito era dez hora da noite.[footnoteRef:34] [34: Ibidem.]

O apito, como nos fala o senhor Pedro, se fazia ouvir por toda cidade. O movimento comercial, em determinados horrios, era regido pelo apito da fbrica. O som que saia da caldeira nem sempre simbolizava a chegada, mas tambm a partida.(...) exatamente at o comrcio se regia pelo apito. Quando morria uma pessoa importante em Sobral, vixe Maria. Era, era. Ela apitou ave Maria!Apitava, era apitava, quando falecia alguma pessoa de destaque ave Maria,apitava.[footnoteRef:35] [35: Ibidem.]

Os diversos depoimentos demonstram que a memria da vida na fbrica ainda est presente, de maneira nica, para cada trabalhador.A experincia dos sujeitos acaba interferindo no passado, dando ele um valor que o torna vivo.[footnoteRef:36] [36: ALBERTI, Verena. Ouvir e Contar: textos em histria oral. Rio de Janeiro: Editora FGV. 2004.]

Em determinados momentos, percebemos que a saudade, as recordaes so unilaterais. Mas ao aprofundar o dilogo, percebemos um tom de discordncia, produzindo assim a ideia de que o tempo do trabalho foi sempre muito bom. J os assuntos mais sensveis so ditos em um tom mais baixo. Palavras so pronunciadas e acompanhadas de medo e receio.Eu gosto muito nunca me arrependi nem nada, sai com boasamizades, nunca botei ningum em questo, nunca botei em advogado ou emcoisa nenhuma gostei de muito do meu servio graas Deus, adorei o meuemprego. (...) eu gostava; eu no sei se os outro gostava, mas eu sei que euadorava o meu trabalho e a minha merendinha eu nem tinha mermo comida emcasa, comia era l.[footnoteRef:37] [37: Entrevista com Maria de Lourdes, concedida a Telma Bessa Sales, em 04/05/2011]

Como nos diz Telma Bessa Sales, cada narrativa expresso das tramas individuais vividas por cada um. Numa experincia compartilhada, valiosas vivncias e reflexes sobre suas histrias de vida s vezes se completam, s vezes se contradizem.[footnoteRef:38] Dessa forma, a maneira que cada depoente faz sua interpretao do vivido de forma heterognea, diferente. [38: SALES, Telma Bessa. Canudenses na cidade de So Paulo. In: JUC, GisafranNazarenoMota. Memriasentrecruzadas: experincias de pesquisas. Fortaleza. EdUECE, 2009.Pg.178.]

A fbrica no foi s fabrica, logo o trabalho no era s trabalho. Diversas comemoraes aconteciam no cho do ambiente fabril. Diverso e lazer se faziam presentes, principalmente em datas festivas, como o dia do trabalhador, onde havia festas, torneios de futebol, etc. A fbrica disciplinava, mas tambm criava mecanismos de lazer para os operrios.Dona Maria Gilca ainda conserva na memria e em objetos, sua trajetria na Fbrica de Tecidos Sobral. A lembrana de sua participao em um desfile ocorrido no cassino da fbrica, com a finalidade de socializar o artefato txtil produzido na fbrica, se faz vivo em suas memrias.Quando eu entrei, com pouco tempo, foi que o gerente me chamou pra mim participar do desfile, n, do cassino, que era um clube que tinha l. Ento eles queria inaugurar e amostrar o tecido da fbrica, n. Foi escolhido seis moa e de cada uma tinha sua madrinha p ensinar, p tomar de conta. Passamo mais de um ms aprendendo n, a desfilar. A eu desfilei e ganhei um vestido, n. De cada uma tinha o tecido diferente n, a cor diferente.[footnoteRef:39] [39: udio da entrevista retirado do documentrio Entre fios, tecidos e ns, sob direo de Telma Bessa Sales.]

Fonte: Acervo Maria Gilca[footnoteRef:40] [40: Foto de Maria Gilca durante o desfile promovido pela fbrica. Foto presente no acervo Maria Gilca e cedida a Telma Bessa Sales.]

A saudade falta, e a falta daquilo que gostamos se torna saudade. A memria dialoga com os tempos. Hoje, as lembranas das vivncias na fbrica de tecido so contadas por sujeitos que viveram e sentiram a fbrica. Lembranas boas, outras nem tanto. Uma faz rir, outra faz chorar. Uma traz alegria, outra traz tristeza e medo. No s o medo de falar, mas antes de tudo, o medo de lembrar. Nos dizeres de Luciana de Moura Ferreira, ouvir um depoimento comprar uma passagem para o desconhecido, percorrer o passado sem sair do lugar.[footnoteRef:41] [41: FERREIRA, Luciana de Moura. Op. Cit. Pg. 212]

A guisa de conclusoUm trabalho, sobretudo em Cincias Humanas, jamais efetivamente concludo. Novas questes so levantadas, problematizadas, produzindo concluses. Agora este trabalho se tornar fonte, fazendo com que novas pesquisas envolvendo o mundo do trabalho sobralense sejam fomentadas.O relato oral e a fotografia estabeleceram uma relao dialgica fundamental para a construo do corpus de anlise, que, de forma alguma, limita-se a uma justaposio de imagens. Texto oral e visual complementam-se na elaborao do material.[footnoteRef:42] [42: MAUAD, Ana Maria. Fragmentos de Memria: Oralidade e visualidade na construo de trajetrias familiares.In: Projeto Histria. So Paulo. Junho/2001. Pg. 167]

No dilogo com estes trabalhadores, observamos que atravs de suas memrias so contadas histrias significativas. A pluralidade das narrativas, as diferentes experincias destes demonstram as diversas maneiras de viver e interpretar o vivido.[footnoteRef:43] Aps tanto tempo vale pensar a pluralidade de motivaes em realizar este dilogo com os trabalhadores, pois, em certa medida, muito contribui para problematizar e demonstrar a heterogeneidade das vivncias e dos conflitos frente explorao no cotidiano da fbrica e a constituio de modos de vida na Sobral fabril. [43: SALES, Telma Bessa. Trabalhadores da Fbrica de Tecidos Sobral Muitas histrias e outras memrias.Revista Historiar Universidade Estadual Vale do Acara v.4. n. 4 (jan./jun. 2011). Pg. 7]

REFERNCIAS BIBLIOGRFICASAGUIAR JNIOR, Paulo Rocha. A Cidade e o Rio: Produo do Espao Urbano em Sobral - CE. Dissertao (Mestrado) em Desenvolvimento e Meio Ambiente-Universidade Federal do Cear, Fortaleza, 2005.ALBERTI, Verena. Ouvir e Contar: textos em histria oral. Rio de Janeiro: Editora FGV. 2004.ARAGO, Elizabeth Fiza. A trajetria da indstria txtil no Cear: Setor de fiao e tecelagem 1880 1950. NUDOC. Fortaleza, 1989.BARTHES, Roland. A cmara clara. So Paulo: Nova Fronteira, 1984.BLOCH, Marc. Introduo histria, 5 ed., Lisboa, Coleo Saber, Pub. Europa-Amrica, s/d.DUBOIS, Phillipe. O ato fotogrfico. Lisboa, Vega, 1992.ECO, Umberto. Tratado geral da Semitica. So Paulo. Perspectiva. 1980.FERREIRA, Luciana de Moura. Histria, memrias e imagens: perspectivas metodolgicas. In: JUC, Gisafran Nazareno Mota. Memrias entre cruzadas: experincias de pesquisas. Fortaleza. EdUECE, 2009.LANGUE, Frdrique. O sussurro do tempo: ensaios sobre uma histria cruzada das sensibilidades Brasil/Frana. In: ERTZOQUE, Marina Haizenreder; PARENTE, Temins Gomes. Histria e Sensibilidade. Braslia. Paralelo 15. 2006.LE GOFF, Jacques. Documento /monumento, In: Memria-Histria, Enciclopdia Einaudi, vol. I. Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1985.LIMA, Solange Ferraz de; CARVALHO, Vnia Carneiro. Fotografias: Usos sociais e historiogrficos. In: PINSKY, Carla Bassanezi; LUCA, Tania Regina de (org.). O historiador e suas fontes. 1. Ed. So Paulo. Contexto. 2011.MARTINS, Jos de Souza. Sociologia da fotografia e da imagem. So Paulo. Contexto, 2008.MAUAD, Ana Maria. Atravs da imagem: fotografia e Histria interfaces. In: Tempo, Rio de Janeiro, vol. 1, n . 2, 1996.RAMINELLI, Ronald. Lucien Febvre no caminho das mentalidades. In: R. Histria, So Paulo, n. 122.RAMOS, Francisco Rgis Lopes. A danao do objeto - o museu no ensino da histria.Chapec: Argos, 2004.SABINO, Fernando. A falta que ela me faz. Rio de Janeiro: Record, 1985.SALES, Telma Bessa. Canudenses na cidade de So Paulo. In: JUC, Gisafran Nazareno Mota. Memrias entre cruzadas: experincias de pesquisas. Fortaleza. EdUECE, 2009.Pg.178.SOARES, Jos Teodoro. A Ideia de Modernidade em Sobral. Edies UFC/Edies UVA. Fortaleza. 2000.TURAZZI, Maria Inez. Quadro de Histria Ptria: fotografia e cultura histrica oitocentista. In: FABRIS, Annateresa; KERN, Lcia Bastos (org.). Imagem e conhecimento. So Paulo. Edusp. 2006.