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A eficácia ou ineficácia da “Lei Seca” e sua inaplicabilidade.
Por Caroline G. Passetto e Sérgio Henrique Pedrinha Veloso.
RESUMO:
O presente artigo propõe uma análise bem sucinta das questões referentes ao
advento da Lei do Álcool ao volante de 2008, que estabelece tolerância zero para a
concentração de álcool no sangue dos motoristas. Essa nova legislação apresenta medidas
administrativas e penalidades um tanto mais rigorosas aos motoristas transgressores, com o
intuito de amenizar o índice de acidentes e mortes no trânsito. Bem como expor a
cronologia das legislações sobre o assunto, o artigo também procura apresentar dados que
revelam os pontos positivos da lei, cujos resultados esperados se fazem presentes.
Contudo, apesar dos inquestionáveis benefícios sociais da norma em questão, há que se
questionar se a população está preparada para mecanismos punitivos tão severos e se a
aplicação da norma se faz presente da maneira como deveria.
1. Introdução
O trânsito, como espaço de relação e circulação de pessoas e veículos, deveria ser
exemplo de igualdade e respeito. Entretanto, essa relação pacífica entre motoristas,
pedestres e ciclistas, em sua grande maioria, está longe da realidade. O que pode ser visto
nas ruas de hoje é exatamente o contrário. É no trânsito que centenas de pessoas são feridas
ou perdem a vida todos os dias, vítimas de acidentes. Uma parte importante a ser
considerada entre as causas desses acidentes e que hoje têm sido frequentemente estudada,
é a ligação do número de acidentes e mortes ao crescente consumo de álcool na população.
O consumo de bebidas alcoólicas, sempre estimulado pela própria cultura da sociedade,
tem trazido consequências cada vez mais devastadoras. Além de causa comprovada de
várias doenças e complicações de saúde, “estudos revelam que o uso do álcool provoca e
reforça os comportamentos de transgressão, de agressividade e de risco no trânsito.”
(CHAGAS; FILHO; MELCOP, 2011, p. 12).
Ainda que desde 1997, o Código Brasileiro de Trânsito determinasse certa
repressão aos motoristas embriagados, diante dos números crescentes de mortes no
trânsito, se fez urgente a potencialização das políticas públicas e formulação de novas
legislações que caminhassem com as condutas da sociedade. Sendo assim, em 2008, o
Governo Federal propôs mudanças ao presente Código e instituiu tolerância zero ao
consumo de álcool por motoristas.
É a partir dessas mudanças que o assunto toma destaque social e começa a ser
objeto de discussões políticas, sociais e jurídicas, presentes na mídia e “na boca do povo”.
Discussões sobre liberdade pessoal, constitucionalidade, aceitação da população são alguns
exemplos. Com um assunto tão difundido como esse, se faz necessário uma análise
cronológica da legislação referente ao assunto e, sobretudo, de como ela se dá na prática.
2. Histórico das legislações acerca da influência do consumo de álcool ao volante
No Código de Trânsito Brasileiro, instituído pela Lei nº 9.503/1997, alguns artigos
são encontrados relacionados à condução de veículos sob a influência de álcool ou
qualquer substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica. Em
2008, com o intuito de diminuir os acidentes de trânsito relacionados à utilização de
bebidas alcóolicas por motoristas, foi sancionada a Lei nº 11.705, conhecida como “Lei do
Álcool”, que modifica algumas redações originárias. Posteriormente, em 2012, diante da
redução dos resultados pretendidos, foi sancionada a Lei nº 12.760, à qual acrescenta nova
redação à lei anterior.
Na redação de 1997, o art.165 e o art. 276 determinavam como infração de trânsito
dirigir sob a influência de uma concentração de mais de seis decigramas de álcool por litro
de sangue. Com a implementação da nova legislação, apelidada pela população de “Lei
Seca”, o ato de dirigir sob influência de álcool tornou-se infração gravíssima passível de
multa e suspensão do direito de dirigir por doze meses, independente da quantidade
ingerida. Essa multa prevista em R$ 957,70, com o advento da lei de 2012, é aumentada
para R$1.915,40 e, consequentemente, esse último valor é dobrado em caso de
reincidência.
Em relação aos crimes em espécie, o art. 306 do Código de Trânsito, previa o ato de
“Conduzir veículo automotor, na via pública, sob a influência de álcool ou qualquer
substância de efeitos análogos, expondo a dano potencial a incolumidade de outrem”. Esse
artigo prescrevia ao transgressor detenção de seis meses a três anos, além de multa e
suspenção ou proibição de se obter a Carteira Nacional de Habilitação (CNH). Na nova
legislação, essa sanção é aplicável a condutores que apresentam concentração de álcool por
litro de sangue igual ou superior a seis decigramas, ou igual ou superior a três décimos de
miligramas de álcool por litro de ar alveolar.
Pelo Código de Trânsito, exigia-se a utilização de técnicas científicas para a
comprovação de alcoolemia. Sendo assim, em caso de recusa, não haveria a certificação da
embriaguez. O advento da lei de 2008 modificou essa norma de forma que, além dessas
provas citadas, qualquer sinal indicativo de alteração da capacidade psicomotora do
condutor, também é válido, bem como vídeos e fotografias, de acordo com o incremento
da redação de 2012.
3. Números da “Lei do Álcool”
Os principais motivos para a implementação de uma legislação mais rigorosa
quanto à ingestão de bebidas alcoólicas por motoristas são perfeitamente visíveis no dia a
dia da população. A mídia constantemente cita um caso ou outro de violência no trânsito,
assuntando ainda mais população. O número de vítimas de acidentes no trânsito e casos
não fatais cresce a cada dia. Felizmente, pesquisas e coleta de dados referentes ao assunto
têm sido ampliadas e podemos compreender melhor as melhorias da nova lei.
Em 2007, estudos divulgados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) apontam
a responsabilidade dessa mortalidade elevada ao consumo de álcool, sendo que o Brasil
apresentava a maior taxa entre os países analisados, ou melhor, aproximadamente 45% dos
casos de acidentes fatais apresentam o álcool como fator dos acidentes de trânsito.
(CHAGAS; FILHO; MELCOP, 2011).
No mesmo ano, a Secretaria Nacional Antidrogas desenvolveu uma análise com
pessoas que dirigiam e que afirmaram ter consumido bebida alcoólica em algum momento
do ano anterior. O 1º Levantamento Nacional sobre os padrões de consumo de álcool na
população brasileira constatou que 30% dessas pessoas já beberam e dirigiram pelo menos
duas vezes, sendo que a maioria havia bebido mais do que o limite permitido pelo Código
de Trânsito. Além disso, dentre todas as pessoas entrevistadas, 34% afirmaram já ter pego
carona com alguém alcoolizado.
Um estudo de 2011 que visa relacionar o consumo de álcool e os acidentes de
trânsito afirma que, até 2008, o Brasil apresentava uma média anual de 1,5 milhão de
acidentes no trânsito, o que significa que cerca de 7,5 milhões de pessoas estariam
envolvidas. Decorrente desses acidentes, estima-se que 45 mil pessoas morrem por ano.
Entre as vítimas, 41% estão na faixa etária entre quatorze e trinta e quarto anos e 70% são
do sexo masculino. Essa mesma pesquisa traçou um perfil das vítimas de trânsito em
grandes cidades brasileiras, Brasília, Curitiba, Fortaleza, Manaus, Recife e São Paulo.
Dentre as vítimas que haviam consumido álcool pelo menos duas horas antes dos
acidentes, 36% eram motociclistas e 8% motoristas de carros de passeio. Em relação aos
tipos de acidentes, o estudo afirma que 29% foram quedas, 24% colisão e 4% capotamento.
(CHAGAS; FILHO; MELCOP, 2011).
Embora os dados apresentados não sejam generalizados e, ainda que, possam
parecem ínfimos, se levarmos em consideração o número concreto, são milhões de pessoas
que morrem em média por ano, sem contar com os acidentes que deixam vítimas com
sequelas irreversíveis. Esses são apenas alguns exemplos dos inúmeros estudos que
procuram relacionar trânsito e álcool. Assim, a partir de dados como esses, podemos
estabelecer comparações dos efeitos em decorrência da vigência da nova lei.
Pesquisas feitas pelo DETRAN-DF mostram que, do ano de 2007 para 2008, a “Lei
Seca” diminuiu em 17% o número de acidentes com morte no território do Distrito
Federal, assim como o número de vítimas caiu de quarenta e duas vítimas por mês, para
trinta e cinco por mês. Ademais, as taxas não se limitam apenas a capital do país. O
Ministério da Saúde divulgou uma queda de, aproximadamente, 6,2% do número de
mortes em acidentes após a “Lei Seca” ter sido sancionada em relação ao ano anterior, o
que significa uma redução de 2.302 mortes no Brasil.
4. Inaplicabilidade prática?
Seguindo pelos dados apresentados, pode-se deduzir que a aplicação da lei e a
fiscalização oriunda da mesma alcançaram os efeitos desejados e imaginava-se que nos
próximos anos essas taxas poderiam ser ainda mais reduzidas. No entanto, nos anos
subsequentes, o contrário se fez presente, ou melhor, ocorreu aumento do número de
acidentes com mortes e do número de vítimas. Entre os anos de 2008 e 2010, a redução no
número de acidentes com morte foi de apenas 4% e o número de vítimas cresceu dos trinta
e cinco apresentados anteriormente para quarenta mortes por mês, cujo índice se aproxima
ao apresentado antes da vigência da lei.
Essa diminuição de resultados pode ser explicada pela queda no foco
governamental e, principalmente, da mídia no assunto “Lei Seca”. Essa “saída de cena”
tem como consequência certa falta de comprometimento dos órgãos responsáveis em
manter, ou ainda aumentar, a fiscalização - geralmente realizada por meio de “blitz” da
Polícia Militar - além de não realizar campanhas educativas eficientes para conscientizar
ainda mais a população.
Apesar de grande parte da população aprovar a legislação mais rigorosa e que 97%
apoiam as multas impostas aos motoristas flagrados e 81% apoiam a perda da habilitação,
ainda existe uma parcela da sociedade que ou não aprova a lei ou ainda que aprovem não a
seguem e procuram modos de burlar a pouca fiscalização existente. Dentre esses modos
destacamos a malandragem e o famoso “jeitinho brasileiro” de agir.
(...) não há no Brasil quem não conheça a malandragem, que não é só um
tipo de ação concreta situada entre a lei e a plena desonestidade, mas também, e, sobretudo, é uma possibilidade de proceder socialmente, um modo tipicamente
brasileiro de cumprir ordens absurdas, uma forma ou estilo de conciliar ordens
impossíveis de serem cumpridas com situações específicas, e – também – um
modo ambíguo de burlar as leis e as normas sociais mais gerais. (DAMATTA,
1986, p. 103)
Hoje existem mecanismos diversos utilizados pelos indivíduos, seja através de
aplicativos de celular, medicamentos que acelerem a metabolização do álcool, o simples
aviso de conhecidos sobre a localização de blitz, ou ainda a apresentação de documentos
de identificação de autoridades buscando a liberação da fiscalização.
A forma mais discrepante de burlar a “Lei Seca” de 2008, entretanto, é a brecha
apresentada pela lei na forma de se determinar crime. O princípio constitucional da
Inexigibilidade de Autoincriminação prevê que nenhum cidadão abordado em qualquer
tipo de fiscalização é obrigado a se constranger ao criar provas contra si próprio, ou, nos
moldes da “Lei Seca”, não é obrigado a realizar qualquer teste de alcoolemia (ARRUDA,
2011). Assim, condutores que possuírem consciência de estarem com mais de seis
decigramas de álcool por litro de sangue têm a possibilidade de se negarem a realizar os
testes referidos e não serem enquadrados no art. 306 da “Lei do Álcool”, sendo
sancionados apenas pelo art. 165, em acordo com o art. 277.
Essa redução na eficácia da “Lei seca” conduziu a norma a um estado apenas
simbólico, ou seja, as diversas formas de se burlar a lei, aliadas a falta de
comprometimento dos órgãos responsáveis fez com que a norma fosse apenas um fantasma
sobre a sociedade, aplicando esporadicamente seus efeitos sobre uma pequena parcela dos
infratores, resultando no oposto do que era proposto, tendendo a um estado próximo ao que
vigorava antes de sua implementação. (TAFFARELLO, 2009)
Felizmente, a “Lei do Álcool” passa atualmente por outro momento de alta na
mídia e na sociedade. Com a recente vigência da lei nº 12.760 de 2012, alterando
rigorosamente alguns fatores como o valor das multas, os dados estatísticos analisados
anteriormente, com destaque aos relacionados ao trânsito do Distrito Federal, voltaram a
mostrar resultados positivos no número de acidentes com mortes e vítimas. Houve redução
para 16,5% e trinta e seis mortes por mês respectivamente, entre os anos de 2010 e 2012,
além de um grande crescimento no número de carteiras nacionais de habilitação
apreendidas, foram quatro mil e quatrocentas carteiras apenas em 2012.
Essa volta da “Lei seca” ao cenário nacional gerou maior movimentação por parte
dos órgãos administrativos, que se organizaram desta vez ao criarem operações conjuntas
como, por exemplo, a Operação Lei Seca, e a Operação Funil, grandes responsáveis
segundo o DETRAN-DF para os resultados positivos apresentados atualmente pela norma.
5. Conclusão
Tércio Sampaio Ferraz Junior, em Introdução ao Estudo do Direito,
conceitua eficácia normativa segunda a dogmática como:
“eficácia é uma qualidade da norma que se refere à possibilidade de
produção concreta de efeitos, porque estão presentes as condições fáticas
exigíveis para sua observância, espontânea ou imposta, ou para a satisfação dos
objetivos visados (efetividade ou eficácia social), ou porque estão presentes as
condições técnico-normativas exigíveis para sua aplicação (eficácia técnica)”
(FERRAZ JUNIOR, 2003, p.203).
A partir dessa conceituação, conclui-se que a “Lei Seca” é extremamente eficaz,
principalmente no âmbito da sua eficácia social – reduzir o número de vítimas e acidentes
de trânsito – se, e somente se, a lei obtiver o apoio do governo através da utilização do
poder de polícia administrativo do mesmo, seja mantendo a quantidade e principalmente a
qualidade da fiscalização, promovendo operações conjuntas de órgãos responsáveis, e mais
importante, conscientizando fortemente a população e punindo apropriadamente os
infratores. Para que esse último seja melhor garantido, é necessária mais um revisão na
legislação atual, de modo a garantir a maior sanção possível aos que se recusarem à serem
fiscalizados.
Percebe-se também, principalmente a partir dos dados de 2010 e 2011, que esse
apoio governamental não está sempre presente, dessa forma, é necessário maior
comprometimento dos órgão responsáveis para influenciar positivamente a população em
favor da lei, pois como foi visto, sem esse apoio a tendência é o esquecimento e a
banalização da legislação tornando-a simbólica e ineficaz.
Referência Bibliográfica
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<http://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/6973/Inaplicabilidade-pratica-da-Lei-Seca>
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DAMATTA, Roberto. O que faz o Brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 1986.
FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão,
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LARANJEIRA, Ronaldo. [et al]. I Levantamento Nacional sobre os padrões de consumo
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Gráfica e Editora, 2011.
SIENA, David Pimentel Barbosa. Embriaguez no volante e mortes no trânsito: “novas”
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<http://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/7025/Embriaguez-ao-volante-e-mortes-no-
transito-novas-polemicas-antigas-discussoes>
TAFFARELLO, Rogério Fernando. Lei seca: simbolismo penal e ineficácia social. 2009.
Última Instância.
<http://ultimainstancia.uol.com.br/conteudo/artigos/4502/artigos+ultimainstancia.shtml>