A CRIANÇA INDIGENA NO SEU UNIVERSO LÚDICO

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1 MR 07 – Sociedade e Resistência Indígena Coordenadora: Maria Hilda Baqueiro Paraíso A CRIANÇA INDIGENA NO SEU UNIVERSO LÚDICO Maria das Graças de Souza Teixeira 1 O jogo e a brincadeira estão na origem do pensamento, pois é através de processos como este que se torna possível ao indivíduo fazer a descoberta de si mesmo. É neles que se encontram a possibilidade de experienciar, criar, recriar e transformar o mundo. Ressaltamos que a ludicidade, apesar de ser vivenciada com maior intensidade na infância, é uma necessidade humana em qualquer fase da vida. O desenvolvimento da faculdade lúdica facilita os processos de comunicação, socialização, expressão e construção do conhecimento. “A criança aprende através da brincadeira a encontrar sua própria vida, nas pessoas reais, a complementação para suas necessidades afetivas e cognitivas . Ela não precisa mais deformar a realidade para assimilá-la, ela aprendeu a conviver, a lidar, a compensar e a liquidar através da interação com os outros, com objetos reais”. 2 No entanto, apesar de sua importância, o universo infantil, entendido neste momento como o do jogo e da brincadeira, não teve ao longo dos tempos a mesma atenção que lhe vem sendo dada sobretudo, a partir do século XIX. 32 Desde o século XVIII, pensadores como Rousseau já se preocupavam com os discursos acerca da criança e de suas brincadeiras. De início, alguns lhes atribuíam um valor negativo, pejorativo ao mundo infantil e, consequentemente, tudo o que estava diretamente relacionado a este, recebia, também, um valor depreciativo, bobo, fútil, não digno da atenção da seriedade do adulto. Brougère explica que: 1 Doutoranda em História Social pela UFBA e Professora Assistente do Departamento de Museologia da UFBA. 2 OLIVEIRA, Vera Barros. O símbolo e o brinquedo. A representação da vida. Petrópolis: Vozes, 1992. P. 59. 3 ARIES, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Guanabara, 1981

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MR 07 – Sociedade e Resistência IndígenaCoordenadora: Maria Hilda Baqueiro Paraíso

A CRIANÇA INDIGENA NO SEU UNIVERSO LÚDICO

Maria das Graças de Souza Teixeira1

O jogo e a brincadeira estão na origem do pensamento, pois é através de processos

como este que se torna possível ao indivíduo fazer a descoberta de si mesmo. É neles que se

encontram a possibilidade de experienciar, criar, recriar e transformar o mundo.

Ressaltamos que a ludicidade, apesar de ser vivenciada com maior intensidade na infância,

é uma necessidade humana em qualquer fase da vida. O desenvolvimento da faculdade

lúdica facilita os processos de comunicação, socialização, expressão e construção do

conhecimento.

“A criança aprende através da brincadeira a encontrar sua própria vida, nas pessoas reais,

a complementação para suas necessidades afetivas e cognitivas . Ela não precisa mais deformar a

realidade para assimilá-la, ela aprendeu a conviver, a lidar, a compensar e a liquidar através da

interação com os outros, com objetos reais”.2

No entanto, apesar de sua importância, o universo infantil, entendido neste momento

como o do jogo e da brincadeira, não teve ao longo dos tempos a mesma atenção que lhe vem

sendo dada sobretudo, a partir do século XIX.32

Desde o século XVIII, pensadores como Rousseau já se preocupavam com os

discursos acerca da criança e de suas brincadeiras. De início, alguns lhes atribuíam um valor

negativo, pejorativo ao mundo infantil e, consequentemente, tudo o que estava diretamente

relacionado a este, recebia, também, um valor depreciativo, bobo, fútil, não digno da atenção

da seriedade do adulto. Brougère explica que:

1 Doutoranda em História Social pela UFBA e Professora Assistente do Departamento de Museologia daUFBA.2 OLIVEIRA, Vera Barros. O símbolo e o brinquedo. A representação da vida. Petrópolis: Vozes, 1992. P.59.3 ARIES, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Guanabara, 1981

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“Quanto à origem ideológica, é importante lembrar a mudança de perspectiva, noinício do século XIX, sobre a concepção da criança e, consequentemente, dabrincadeira. De fato, devemos essa mudança de perspectiva à ruptura romântica.Antigamente, a brincadeira era considerada, quase sempre, como fútil, ou melhor,tendo como única utilidade a distração, o recreio(daí o papel delegado à recreação) e,na pior das hipóteses, julgavam-na nefasta. O conceito dominante da criança nãopodia dar o menor valor a um comportamento que encontrava sua origem na própriacriança, através de um comportamento espontâneo. Depois de Rousseau, foi precisoque houvesse uma mudança profunda na imagem da criança e da natureza, para quese pudesse associar uma visão positiva às suas atividades espontâneas”.4

Ao se contrapor às teses racionalistas, os românticos trouxeram um novo pensar ao

valorizarem positivamente os comportamentos naturais. Ressaltavam que a criança traz, em si,

uma forma lúdica e espontânea de contato com o mundo, forma mais importante de conhecer o

mundo do que as verdades racionais dos conhecimentos constituídos. Esta visão estabeleceu

uma outra leitura da brincadeira, inserida num contexto em que é vista como suporte do

processo de socialização e educação.

Já no século XIX, o novo discurso de caráter cientificista tem sua origem no estudo das

experiências realizadas sobre o comportamento dos animais, tratado hoje como etologia5 ou

psicofisiologia dos animais6. K. Groos foi um dos estudiosos precussores em estudar a

brincadeira no mundo animal. Baseando-se no quadro darwiniano da teoria da evolução,

justificava o papel biológico da brincadeira como necessidade para a infância e juventude de

animais superiores.

Apesar das possíveis inferências acerca do papel da ludicidade entre primatas e

humanos, hoje se entende que a brincadeira para a criança tem um papel social.

Diferentemente dos animais, a brincadeira do humano está para além do simples divertimento

pois, ao pertencer à esfera lúdica, participa do universo cultural, interagindo com este através

de sua carga simbólica e suas representações. A valorização do mundo infantil com destaque

para o seu papel no campo da educação e da psicologia, fortaleceu-se no início do século XX,

4 BROUGÈRE, Gilles. Brinquedo e Cultura. São Paulo: Cortez, 1997. p.90.5 Segundo o Dicionário Aurélio, “refere-se ao estudo dos hábitos animais e da sua acomodação às condiçõesdo ambiente”, p. 7336 Sobre etologia ver: OLIVEIRA, Vera Barros. O símbolo e o brinquedo. a representação da vida.Petrópolis: Vozes, 1992.

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“quando psicólogos e pedagogos começaram a considerar a criança como uma criatura

especial com especificidade, características e necessidades próprias”.7

Consequentemente, ao se valorizar dos jogos, brinquedos e brincadeiras, adotou-se

uma nova postura para com a criança e seu mundo: o universo infantil passou a ser visto como

fator imprescindível ao desenvolvimento do ser humano e a criança como sujeito participante

do acontecer histórico.

No Brasil, o tratamento dado à criança e ao seu mundo não foi diferente. Durante o

período da colonização, o universo lúdico foi revelado por meio de crônicas e gravuras, que

descreviam as formas de viver de lusitanos, novos brasileiros, índios e escravos, estes últimos

vistos por aqueles como revelando atitudes bastante curiosas e exóticas. A imagem da criança

foi desvelada por pesquisadores que passaram a se preocupar com esta questão, identificando

o papel da criança na sociedade brasileira nos seus mais variados contextos, seja na aldeia, no

engenho ou na casa grande.

No Império português, a presença dos europeus, representados pelos primeiros

colonizadores, trouxeram para o continente americano outras matrizes culturais. Os

portugueses haviam realizado outros empreendimentos de conquista de regiões dantes

desconhecidos, como na Índia e na África. No Brasil, o “encontro” das várias etnias favoreceu

o surgimento de uma cultura bastante diversificada, rica em suas múltiplas influências.

O Estado português, uma nação marcada por grandes conquistas territoriais a partir do

século XV, passou a incorporar na sua cultura as influências recebidas de seus contatos com

povos habitantes de mundos tão diferentes do seu, possibilitando, desta forma, uma cultura

também rica e diversificada em todos os seus aspectos, podendo-se destacar os folguedos

populares, não ficando os brinquedos e brincadeiras infantis isentos dessas influências.

Logo, muitos dos componentes da memória lúdica brasileira têm sua origem na cultura

de sociedades de continentes distantes. O papagaio, por exemplo, foi trazido para o Brasil

pelos portugueses, que, por sua vez, receberam a influência do Japão e da China. Segundo

folcloristas a exemplo de Câmara Cascudo, a divulgação deste brinquedo pela Europa e

América foi por intermédio dos lusos. No Brasil, este brinquedo também é conhecido como

papagaio, pipa, pandorga, arraia, curica, quadrado e raia.

7 SANTOS, Santa Marli Pires dos (Org.) O lúdico na Formação do Educador. Petrópolis: Vozes, 1997 P.19.

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Entre muitos dos brinquedos identificados no universo lúdico no Brasil, está o jogo de

gude, que é uma variante do folclórico jogo do papão, que consistia em fazer três buracos no

chão, para daí formar um triângulo de uns três metros de lado. O jogador que conseguisse dar

as três voltas seria o papão, dispondo de poderes para “matar” seus adversários e tendo, ainda,

a vantagem de todas a imunidades.

O pião, segundo historiadores portugueses, já estava presente nas brincadeiras dos

meninos lusos naquela sociedade no século XV. De acordo com vários registros, a exemplo do

livro III da Eneida, pode-se verificar a presença do uso do pião entre gregos e romanos. Outros

jogos, como o de botão, as lendas das cucas, bichos-papões e bruxas foram aqui divulgadas

pelas avós portuguesas e pelas amas-de-leite juntamente com os folguedos, cantigas de ninar,

cantigas de roda e muitos outros elementos culturais.

Além do intercâmbio entre as crianças de etnias diferentes, havia também a relação

destas com os adultos, notadamente com as amas, fossem elas negras ou indígenas. Ao se

tornarem amas, essas mulheres passavam todo um referencial cultural de hábitos e costumes

para os filhos de seus senhores, como o faziam em maior escala para seus filhos. Muitas

dessas amas não tinham o direito de amamentar os próprios filhos, devendo reservar seu leite

para os filhos de seus senhores, negando cuidados aos próprios filhos. Lima e Venâncio fazem

referência a esta atitude ao apresentarem anúncios de jornais da época. 8

Câmara Cascudo questiona se o menino africano que fora trazido com os escravos

adultos tivera possibilidade de colocar em prática sua ludicidade, visto que a língua pode

ter sido um dos maiores empecilhos para a difusão do repertório dos brinquedos e

brincadeiras e os negros que aqui nasciam recebiam desde cedo uma forte influência

indígena e portuguesa. Como a criança, por estar em fase de socialização, ainda não está

subordinada ao seu universo social, adaptava seus brinquedos e brincadeiras ao ambiente

local, criando uma lúdica que este lhe permitia.

1. A infância, as brincadeiras e os brinquedos

8 Jornal do Commércio, 3 de agosto de 1850. Citado por LIMA, Lana da Gama, VENÂNCIO, Renato Pinto.O abandono de crianças negras no Rio de Janeiro In:: PRIORE, Mary del (Org.). História da Criança noBrasil. São Paulo: Contexto, 1991. p. 72.

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Para pesquisar a infância indígena, temos como documentação privilegiada os

relatos dos religiosos que foram responsáveis pela missão de catequese indígena,

especialmente os jesuítas, pelo seu papel no projeto colonizador português. Outra fonte de

grande importância são os relatos de viajantes que percorreram o Brasil de norte a sul,

registrando em suas obras, pormenores do cotidiano de vários grupos indígenas, não

deixando de fazer referência às crianças diante da importância que elas possuíam dentro da

sociedade indígena.

Ao estudar o século XIX, devemos nos reportar a registros históricos anteriores,

pois nesse período já encontramos certas práticas lúdicas em processo de fusão das matrizes

lúdicas brasileiras, pois a criança subverte os limites espaciais estabelecidos pelos adultos e

o brinquedo, enquanto objeto de cultura, contribui para a circularidade cultural nos diversos

grupos sociais.9

Desta forma, não podemos estabelecer padrões tipológicos dos diversos suportes

lúdicos com rigidez, pois a capacidade de transformação dessas práticas pelas crianças nos

afastam, cada vez mais, da idéia de uma matriz única ou sem influências externas, a

exemplo do jogo da bola, hoje considerado como uma prática universal, diferenciando-se,

apenas, no uso do suporte lúdico. Neste tipo de jogo, a bola de borracha pode ser também

uma cabeça de animal, um emaranhado de palhas de milho, sementes de frutas ou outro

tipo de material, contanto que dê a forma esférica e possa se movimentar com rapidez e

exigindo-se dos jogadores apenas destreza necessária à continuidade do jogo.

A convivência infantil através dos brinquedos e das brincadeiras foram-se

incorporando a estratos sociais distintos, tanto rurais quanto urbanos, adquirindo porém

outras conotações, além da estrita ludicidade, a partir das transformações sociais pelas quais

passou a sociedade brasileira, diretamente relacionadas ao mundo do trabalho e à crescente

urbanização.

2. A criança indígena

9 BRUGÈRE, Gilles. Brinquedo e Cultura Questões da nossa época. São Paulo: Ccortez, 1997

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De acordo com relatos dos jesuítas, o contato com a criança indígena foi mais fácil

através do processo de catequese. Naquele momento ocorriam as trocas e os acréscimos de

traços culturais das culturas envolvidas no processo, pois a catequese objetiva uma

transformação do indivíduo na sua condição de índio, passando a se comportar como um

homem europeizado, considerado como o índio converso.

O curumim foi um forte elemento na difusão cultural entre os vários grupos

indígenas existentes no Brasil que tomaram contato com os portugueses para o

conhecimento primeiro de sua língua e, depois, para compreender a sua cultura e,

manipulá-los através da catequese.

Os jesuítas utilizaram a música instrumental e teatralizada para atrair as populações

indígenas Sant-Hilaire, em seus registros de viagem, encontrou um grupo indígena, quando:

“ouvindo-lhes os harmoniosos cânticos, as crianças encantadas, e como quefascinadas, reuniam-se ao redor de uma humilde capela e aprendiam a ler, cantar,escrever e a amar a Deus e a seus semelhantes. Pouco a pouco os indígenasrenunciaram aos seus bárbaros costumes; reuniram-se em aldeias e foramcivilizados, tanto quanto o podiam ser.”10

Diante desse e de tantos outros relatos, podemos inferir o quanto os indígenas

brasileiros tiveram na sua cultura interferências significativas quando da utilização da

criança indígena como instrumento multiplicador nas aldeias.

As idéias civilizatórias do homem branco foram apreendidas pelos índios tanto no

convívio com os adultos, jesuítas, quanto no convívio com crianças européias, filhas de

colonos, como também com os órfãos que freqüentavam, muitas vezes, os mesmos espaços

na sociedade brasileira. Sobre essa convivência Del Priore registra que na história dos

curumins e dos filhos dos colonos nas escolas Jesuítas o tempo corria entre brincadeiras,

orações, aulas de latim e banhos de rio.11

Assim, a figura do curumim foi imprescindível para o conhecimento de hábitos e

costumes do indígena brasileiro, deixando este, em nossa cultura, vários elementos

incorporados como o conhecimento da língua, os vários tipos de medos e abusões, diversos

jogos e danças recreativas ainda hoje praticados em nosso país. Freyre, ao analisar registros

de alguns jesuítas como o Padre Cardim, comenta:

10

11 PRIORE, Mary. História do Cotidiano. Contexto: São Paulo, 2001. P. 110.

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“Da tradição indígena ficou no brasileiro o gosto pelos jogos e brinquedos

infantis de arremedo de animais: o próprio jogo de azar, chamado do bicho, tão

popular no Brasil, encontra base para tamanha popularidade no resíduo animista e

totêmico de cultura ameríndia reforçada depois pela africana .”12

Para a construção do universo lúdico da criança indígena, a mãe indígena fora um

elemento importante, pois na sua sociedade cabia-lhe a responsabilidade pelos cuidados

com os filhos na sua primeira infância, implicando uma convivência intensa entre mães e

filhos, com poucos períodos de afastamento, diante da divisão das tarefas nos grupos.

Enquanto as mulheres trabalhavam o barro para produzir seus utensílios cerâmicos,

muitas vezes aproveitavam o barro não cozido para fabricar brinquedos com formatos em

corpo de indivíduos e de animais. Os bonecos fabricados de diversos materiais recebiam o

nome de licocós. Utilizavam, a madeira para o fabrico de remos e outros objetos em

miniatura, buscando assemelhar-se com os de tamanho normal.

O menino indígena tinha o costume de se utilizar de animais domésticos como

instrumentos de brincadeiras. Aves, cobras, pequenos lagartos, mamíferos como o macaco

eram companhias inseparáveis das crianças. Muitos animais eram adestrados, a exemplo

dos papagaios, que eram ensinados a falar e a fazer outras artimanhas.

A criança ampliava seu universo lúdico com o uso de armadilhas para capturar

pequenos pássaros e para criá-los. Câmara Cascudo comenta que entre os séculos XVI e

XVII os meninos indígenas brincavam, logo cedo, com pequenos arcos, flechas, tacapes,

entre outros instrumentos que compunham o arsenal guerreiro dos pais. O divertimento

natural era imitar o adulto do sexo masculino, caçando pequenos animais, abatendo aves

menores, tentando pescar, ou seja, brincadeiras que não tinham o sentido único de

passatempo, servindo como elemento didático, de preparação para a vida adulta13.

Em contrapartida, as meninas não tinham muito tempo livre para o lúdico, pois

desde muito cedo acompanhavam e auxiliavam as suas mães nos afazeres domésticos, tais

como buscar água e lenha, ralar mandioca, preparar a farinha para cozer as tortas de

mandioca e, até nas horas livres, imitar suas mães fazendo pequenas tecelagens.

12Apud Freyre, op.cit.,p.16813 CASCUDO, Câmara.

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Quando brincavam, as meninas usavam bonecas de barro e bonecas de tecidos

grosseiros, muitas vezes transformadas em imagens de adoração, ensinamentos apreendidos

com os missionários que aqui chegaram.

A criança indígena tinha o costume de brincar de montar em animais, iniciando esta

prática montando num irmão maior. Kischimoto relata a observação feita por Koch-

Grunberg de que, quando a criança começa a andar, ela passa a participar do cotidiano do

seu grupo e que

meninos de mais idade rodam pião, entre os taulipáng são encontrados piões quezunem, elaborados em forma graciosa, com uma pequena totuma (fruto) redonda eoca. Com uma abertura mais ou menos redonda de um lado. Em ângulo reto éatravessado por um palito de madeira, duro e vermelho, que é fixado com um poucode cera negra.14

Além das atividades individuais, registram-se os jogos coletivos, também bastante

presentes na atividade lúdica indígena. Esses jogos são aqueles que envolvem

representações de animais como o jogo do gavião, o jogo do Jacami, o jogo do peixe pacu,

o jogo do jaguar, sempre procurando imitar o movimento e o grunhido deste animais.

O jogo da peteca é um jogo bastante apreciado, inclusive pelos adultos, sendo a

peteca feita com palha de milho e tendo o miolo em forma de argola. Há também o jogo do

fio ou cama de gato como também é conhecido15.

A criança indígena participava de todas as atividades junto aos adultos, não

chegando a se destacar uma atitude lúdica apenas vivenciada pelas crianças, visto que,

mesmo com relação às atividades consideradas de trabalho, as crianças participavam desde

a tenra idade como explica Baldus:

“No tocante aos trabalhos, pode-se dizer que as crianças tapirapé aprendem brincando

aquilo que é o trabalho dos adultos. O menino de três anos já tem um pequeno arco com flechas,

cujo tamanho corresponde à estatura do dono. A menina de três anos já possui uma pequena

peneira, cujo tamanho corresponde a estatura da dona. Assim os dois vão pescar como um casal

adulto, o pequeno homem flechando os peixes, a pequena mulher recolhendo-os na peneira.

Naturalmente o tamanho dos peixes corresponde também à estatura dos pescadores. Voltando à

casa põem os peixinhos na brasa, assando-os. Depois os comem, mostrando assim que Tapirapé

14 P. 64 Kischimoto15 P.70

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de três anos já sabe tratar da vida. Crescendo menino e menina, crescem arco e peneira também,

até alcançarem, estando na puberdade, o tamanho dum arco de homem e duma peneira duma

mulher”.16

É dessa forma que ocorre com todos os utensílios manejados por esses índios:

pilões, cestos, instrumentos de guerra dentre outros.

Vale ressaltar que a participação da criança está presente também em várias

atividades sócio-econômicas dos grupos de adultos, com destaque da menina tapirapé, que

diferente do menino, participa mais cedo da atividades econômicas do grupo. A esse

respeito explicita Baldus:

“não significa que os meninos, antes da puberdade, participem tão seriamente da vida

econômica como as meninas que desde pequenas, enquanto os meninos vadiam, ajudam

freqüentemente a mãe, na medida das forças e capacidade de sua idade, representando assim, um

fator cada vez mais produtivo”.17

Na infância indígena predominavam os jogos e brincadeiras junto à natureza - nos

rios, com os bichos e em grupos, sendo esta a mais forte característica do brincar indígena.

.

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IDENTIDADE INDÍGENA EM NOVA VIDA: MEMÓRIAS E LEMBRANÇAS.

OLIVEIRA18, Augusto Marcos Fagundes

“Índio também ouve rádio”

Dona Santa da Aldeia Indígena Nova Vida

1- BREVE TRAJETÓRIA PATAXÓ HÃHÃHÃI- DE CARAMURU-PARAGUAÇU

ATÉ NOVA VIDA.

Tradicionalmente os Pataxó Hãhãhãi não estavam localizados nas imediações

de Camamu, ao norte do Rio de Contas. Essa aldeia surgiu oficialmente em 1985, porém

tomamos como início de análise a criação da Reserva Caramuru-Paraguaçu e sua trajetória

até a criação de Nova Vida e sua efetiva ocupação.

A criação da Reserva Caramuru-Paraguaçu, de onde esse grupo se origina, foi

criada pelo Decreto número 4081 de 19 de setembro de 1925, e pela Lei número 1916 de 09

de agosto de 1926, que lhe assegurava 50 léguas quadradas para gozo dos índios, e que

menciona como tendo direito às terras os Tupinambá e Pataxó ou outros ali habitantes,

fossem Macro-Jê ou Tupi, compreendendo o primeiro as etnias Baenã, Borun, Kamakã-

Mongoyó, Kiriri-Sapuyá e Pataxó19, e o segundo, a etnia Tupinikim. Cabe salientar que

acreditava-se na possibilidade de haver outros grupos indígenas arredios ainda não

conhecidos.

Destes grupos, tanto os Baenã foram contatados no século XX e um último

grupo Pataxó-Hãhãhãi; os Kiriri-Sapuyá, originariamente do norte da Bahia, foram

descidos para a região de Santa Rosa, Jequié, em 1834, e em 1937 levados pelo etnólogo

alemão Curt Unkel Nimuendajú para a Reserva.

O processo histórico vivenciado pelo povo Pataxó pós criação da Reserva

Caramuru-Paraguaçu efetivou-se com a fusão de diversas etnias indígenas e mesmo de

miscigenação com elementos étnicos não-indígenas mesclados como um único povo. Sua

trajetória histórica comum caracteriza-se por uma postura de resistência e de sobrevivência

física e cultural, em face à sociedade dominante e ao extermínio imposto pelo conquistador

18 Bacharel em Ciências Sociais UFBA, mestre em Educação/ UESC/UFBA, professor de Antropologia daUniversidade Estadual de Santa Cruz.

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através de processos genocidas e/ou da convivência forçada com instituições nacionais

voltadas para promover a segurança do processo colonizador, e edificação da sociedade e

do território brasileiros como um todo homogêneo ou, noutras palavras, voltados para a

política da integração nacional.

O Serviço de Proteção aos Índios (SPI), sob o lema da ordem e progresso,

trabalhou no objetivo de enquadrar as comunidades indígenas no sistema de produção

econômica vigente na região sul da Bahia, o florescimento da atividade cacaueira, a leste, e

do pastoreio a oeste. Consoante com a política integracionista implantada pelo SPI, os

arrendamentos das terras da Reserva Pataxó foram justificados pela importância educativa

resultante da convivência com trabalhadores nacionais. Estes, na ótica dominante naquele

momento, introduziriam a modernização das técnicas de trabalho agrícola e o progresso em

áreas de recente conquista e ocupação econômica pela sociedade nacional.

Em 1937 a área da Reserva foi reduzida a 36 mil hectares, tendo ocorrido neste

período diversos levantes indígenas na região sul da Bahia. Acredita-se que isso teria

reforçado a pressão dos grupos hegemônicos não indígenas da região cacaueira e pastoril,

somando-se às acusações de envolvimento dos indígenas e pequenos ocupantes nacionais

localizados na Reserva com um projeto de implantação de uma revolução comunista em

1936, o que gerou forte repressão policial e a dispersão da população indígena ali aldeada.

Na região de Olivença registrou-se ainda o caso do Caboclo Marcelino, acusado de

bandoleiro e ladrão; o ‘bugre que se fez índio’ como noticiam jornais da época.

No período de 1940 a 1967, ainda em tempos em que o SPI administrava a áreaindígena, quando aumentaram os arrendamentos de terras da Reserva a criadores de gado ecacauicultores, provocando a lenta invasão das roças trabalhadas pelos diversos grupos indígenasque ali viviam e sua conseqüente dispersão por cidades vizinhas e até outros estados.

Na década de 40, ocorreu praticamente o arrendamento de todo o polígono sul e

expulsão de quase todos os índios. Alguns mais sábios, ou talvez melhores conhecedores da

política indigenista brasileira, apresentaram-se como arrendatários de suas próprias terras.

Então passaram a pagar arrendamento das terras que eram suas, dentro da reserva, para lá

poderem permanecer (BRASIL. CONGRESSO. CÂMARA DOS DEPUTADOS.

COMISSÃO DO ÍNDIO, 1988).

19 Sobre este tópico Curt Nimuendajú chama a atenção ao parentesco Maxakali e Pataxó, questiona se sãoestes aparentados aos demais Jê, e também chama a atenção à adoção de identidade “neobrasileira” em(NIMUENDAJÚ, 1982 :209-218).

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14

A legislação se revelou insuficiente e deu lugar a interpretações desfavoráveis aosinteresses indígenas. A ‘proteção’ em certas épocas, foi seguida de flutuações às quais se submeteuo prestígio, a autonomia e os efetivos do SPI devido questões de ordem financeira. Para podersobreviver, certas inspetorias regionais deixaram os colonos usufruir das terras legalmentedestinadas aos indígenas, permitindo, então a redução de terras para grupos indígenas já eramconsiderados sob controle.

O SPI se achou diante da seguinte alternativa: indenizar as terras para restituí-las aosseus proprietários legítimos ou transferir os índios de uma região a outra.

Tal processo, por sua vez, revelou manipulações por parte de agentes interessados emtirar proveito e revelou também o despreparo para controlar até mesmo seus advogados que faziamjogo duplo. Um exemplo ocorreu com os índios na região do Toucinho, onde um só advogadodefendeu as duas partes envolvidas numa contenda de posse de terras na região em 195920.

A reformulação da política indigenista pelo Estado brasileiro na década de 60,

foi fruto da Convenção nº 107 (OIT)21, mais conhecida como Convenção de Genebra, de

26-06-1957, que veio entrar em vigor no Brasil promulgada pelo Decreto nº 58 824 de 14

de Julho de 1966; este preocupou-se com a diversidade lingüística e cultural das

comunidades indígenas no Brasil.

Com a extinção do SPI e criação da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) pela

Lei 5.371 de 05 de Dezembro de 1967, a política oficial vai se respaldar na Lei 6001,

conhecida como o Estatuto do Índio, tendo como característica os Programas de

Desenvolvimento Comunitário, instituídos pela ONU no segundo pós-guerra, que

objetivavam melhorar a qualidade de vida nos países do Terceiro Mundo, moldá-los à

política desenvolvimentista da época.

Na década de 1970 observou-se o crescimento nas discussões relativas ao que seconvencionou chamar de ‘questão indígena’, ocorrendo diversos encontros e discussões em nívelnacional e internacional22.

20 O advogado Altamirando Cerqueira Marques, que de acordo com o SPI, defenderia os índios no direito àpropriedade, no mesmo caso defendeu os fazendeiros, e segundo consta no Relatório Pataxó, ‘não se sabecomo os índios perderam o que evidentemente estava ganho’.21 O interesse em reformular a política indigenista em favor da existência de comunidades indígenas, eportanto da pluralidade cultural, levou à criação de um programa cuja característica era de abrangênciamundial. Então a Organização Internacional do Trabalho (OIT) começou a coordenar missões de assistênciatécnica às populações aborígenes através da Organização das Nações Unidas (ONU), Organização das NaçõesUnidas para Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), Organização para Alimentação e Agricultura (FAO), eOrganização Mundial da Saúde (OMS), justificando que o problema das populações indígenas da Américadeveria ser apresentado como de interesse público e continental, e que as medidas legislativas ou práticas emvigor àquele momento, tinham sua origem em concepções fundadas por diferenças raciais de cunho racistas, ede tendências desfavoráveis aos grupos indígenas.

22Dentre tais acontecimentos destacamos as Declarações de Barbados em 1971 e 1977, Declaração deAssunção/Paraguai em 1972, o próprio Estatuto do Índio, em 1973, encontros de pastorais indigenistas ecriação de Organizações Não-Governamentais (ONG) ligadas a atividades em áreas indígenas.

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Na região que compreende a Reserva em estudo, registrou-se a tentativa de retomadado território indígena pelos seus primitivos ocupantes, concomitante à práticas de exclusão dosmesmos por parte dos municípios circunvizinhos. Nesta época houve, inclusive, a expulsão dosíndios em Itaju do Colônia como parte dessa postura de violência, num episódio que nos chama aatenção, pois o município assume oficialmente a expulsão dos índios da sua região. Some-se a isso,invasão da área da Reserva, expulsão e mesmo assassinatos.

Tal postura intensificou-se de tal forma, que nos anos de 1974/1975, foi apresentada àCâmara Federal, pelo então Deputado Henrique Cardoso, pelo Movimento Democrático Brasileiro(MDB/BA), a proposta de extinção da Reserva Indígena, após tentativas de permutas das terras poroutras, em Porto Seguro.

A ocupação das terras da Reserva por fazendeiros e pequenos proprietários cresceu sobos governos estaduais de Roberto Santos (1976) e posteriormente Antônio Carlos Magalhães(1980), tendo ocorrido a distribuição de títulos de propriedade das terras da União, as da ReservaIndígena, o que veio acirrar conflitos sociais.

A situação vivida pelos índios na Fazenda Guarani, em Minas Gerais, onde

alguns grupos estavam confinados, motivou um pequeno grupo a reconquistar a São Lucas

e a partir daí é que se deu a ação da sociedade civil e a lenta reforma que permitiu a

retomada do contato. Segundo Vallely (1992, p.42), encontros diversos entre lideranças

indígenas e elementos da sociedade civil foram organizados no intuito de retomar ações

coletivas, e isso veio a animar, o senso de identidade comunal daquele povo, no qual

alguns não tinham tido nenhum contato por cerca de 30 anos [tradução do autor], gerando

ou reiniciando um processo maior de retomada do território, aqui já não mais o velho

território tradicional, mas o território correspondente à Reserva.

O cotidiano instaurado levou parte do grupo indígena da Reserva Caramuru-Paraguaçua instalar-se, por sugestão da FUNAI em função das crises internas, na Aldeia Indígena Nova Vida,no município de Camamu, fato que é justificado pelos próprios índios como uma tentativa deevitar maiores tensões no grupo, tanto do ponto de vista externo, como interno, face às diversasfacções étnicas e familiares existentes no próprio grupo.

2- EM NOVA VIDA- CONSTRUÇÃO DA ALDEIA E DA PESSOA.

Em 1985 foi criada a Aldeia Indígena Nova Vida (Fazenda Bahiana), em acordo com aprópria FUNAI, mas a ocupação efetiva só veio se consumar a partir de dezembro de 1987.Segundo os próprios índios que lá vivem atualmente, eram 25 famílias, e o processo de adaptaçãofoi muito árduo, “foi difícil se estabelecer devido costume do lugar, o clima”, segundo nos informouo índio Pataxó Valdemir Ribeiro.

A aldeia indígena Nova Vida está situada na região do município de Camamu,

pertencente à Bacia Hidrográfica do Rio Anaraú, ou Bahiano, próxima à Rodovia BA 652,

onde o acesso se dá num desvio do trecho desta rodovia, rumo oeste.

O meio ambiente era outro, lhes pareceu novo e a sobrevivência tinha,obrigatoriamente, que ser readaptada às novas condições, para garantir o sustento de cada família.Dialogando com os moradores da Aldeia, eles chamam a atenção de que o solo ainda é muito pobre,

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a presença de formigas muito grande, pouca caça, e da localização muito afastada da zona urbana,afora a quase total desassistência por parte dos órgãos governamentais, em destaque a FUNAI.

As relações do grupo Pataxó entre si e com o meio ambiente se moldaram

através das mudanças ecológico-bióticas (CHASE-SARDI, 1988) vivenciadas no novo

lugar, gerando outras combinações ecológicas, bióticas e tecnológico-culturais, gerando

outros valores, alterando e recriando tradições, o que chamamos de transfiguração étnica.

Verifica-se que embora longe da violência manifesta, em Nova Vida o grupo se

viu cara-a-cara com a violência noutros tons, nem tão manifesta como nas imediações de

Caramuru-Paraguaçu, mas nem assim menor, passando por período de fome e

desassistência, que gradualmente os fez retornar em grande parte à ‘velha’ Reserva em Pau

Brasil, como é costumeiramente conhecida. Das 25 famílias23 que aí residiam inicialmente,

em 1999 restavam apenas 9 (nove), e agregaram-se mais duas ao cotidiano da Aldeia,

subindo o número total para 11(onze) no ano 2000. Esse padrão reflete uma forma dos Jê

de resolver suas questões, o que se vê como rompimento e recomposição do grupo. Merece

destacar que esta etnia se faz politicamente construída a partir da sua multiplicidade étnica,

melting-pot.

O terreno onde se criou a Aldeia Nova Vida já havia passado por um sistema de

exploração agrícola, desde pastos, cacau e mesmo mandioca, afora a extração de madeira

que, embora sujeita aos rigores da lei, é muito comum ainda naquela região. Destaca-se

também a presença marcante de formigas cortadeiras no local24, o que inviabiliza ou

dificulta a tentativa dos ocupantes atuais em manejar a terra, e já nos aponta outro problema

que é o desequilíbrio do ecossistema local, local este que teve que ser pensado e construído

como aldeia a partir da memória ancestral ainda possível de ser resgatada.

Sobre a distribuição espacial dos Pataxó Hãhãhãi, percebemos uma

peculiaridade. As casas mais “escondidas” são as casas das mulheres mais velhas, que

também são viúvas, guardiãs da memória do grupo e referencial do poder feminino no

grupo. Elas de per se compõem o quadro da matrilinearidade grupal, são tia e mãe dos seus

representantes principais, e dos demais, são avós, tias-avós, parteiras, rezadeiras.

23 As famílias, ou casas, são conhecidas a partir dos seus representantes: Luís e Maria; Carlito e Marilene;Dona Rosa; Deusdete; Estelito e Alvina; Ademir e Rosinha; Valdivo e Janete; Valdeir e Liete; Dona Santa;Antonio Carlos e Sebastiana; Valdemir.24 Saúva e quem-quem.

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As casas mais visíveis são as dos representantes masculinos, embora o poder Jê sejacentrado na figura feminina. Estas situam-se ao longo do caminho, à beira da estrada, representandoo poder para dentro (feminino) e para fora (masculino ).

Quanto às casas, este grupo tem registrado ao longo da sua história diferentes

formas de casa, ou de habitação. Concebem-nas desde feitas de folhas de helicônia, abrigos

de folhas com tarimbas25 e fogueiras, típicos dos Borun e Pataxó, que na língua deste

último denomina-se pâhâi (COMISSÃO PRÓ-ÍNDIO DE SÃO PAULO, 1984) ; até

mesmo uma concepção de casa ovalada, caracterizando tanto a oka do tronco Tupi, quanto

do tronco Jê- o kyjeme, palavra Maxakali26, e a söda e suas variantes déha, diha, dha, em

língua Kamakã (GUÉRIOS, 1944), que mais se assemelham às casas de taipa bastante

encontradas na zona rural.

O espaço “casa” tem um significado para cada etnia. Segundo os próprios

índios o kyjeme tem o sentido de casa onde se trabalha, não apenas o sentido de lar, de

convívio doméstico. Tanto varia a sua concepção, quanto a denominação de casa conforme

as línguas próprias de cada etnia.

As atividades desenvolvidas na área são distribuídas entre seus membros

segundo o esquema de mutirão, e também de produção familiar, onde homens e mulheres,

crianças e adultos, todos participam da colheita, semeadura e manutenção dos plantios, do

fabrico de artesanato, este de caráter familiar, embora de traços comuns a toda comunidade,

e que atuam como exercício diário da educação comunitária dos jovens que acompanham

os pais.

Atualmente o trabalho de caçar é eminentemente masculino, porém o trato com

a caça é de ambos os gêneros. O processo de trabalho com a mandioca é de todos. As

mulheres são encarregadas dos trabalhos domésticos. Em toda a família, só a partir de uma

certa idade, segundo os depoentes, é que os menores se encarregam das roças e da produção

de artesanato. As famílias têm grandes bastões lisos, bordunas, na maioria das vezes

ornamentando a casa, como referência da sua identidade de “guerreiro, caçador, e de

índio27”.

As índias mais velhas de Nova Vida dizem ainda se lembrar que as mulheres

eram encarregadas dos trabalhos domésticos da casa do chefe de posto, ou do missionário.

25 Um único índio de Nova Vida disse que os antigos também usavam redes de dormir, fato singular e nãoverificado nas etnias do sul da Bahia.26 Segundo Emmerich (1985) significa casa em Borun.

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Fiavam algodão e fibras de palmeira, com os quais faziam sacos, bolsas e aventais que

tingiam de vermelho, preto e amarelo. Eram boas ceramistas e também se encarregavam

das roças de mandioca e milho28.

Diz-se que antigamente as mulheres teciam com habilidade cordas, adereços e

roupas de algodão. O avental das mulheres era enfeitado com essas cordas finas e tinham

borlas. Pintavam-nos de vermelho e branco. Também faziam sacolas de algodão trançadas

de cores branca, vermelha e amarelo que usavam no ombro para transportar seus pertences

nos deslocamentos29.

Traço marcante junto a este grupo é a produção artesanal com a madeira tanto

na produção de arte utilitária ou doméstica, quanto gamelas, pratos, objetos zoomórficos,

colares, pulseiras e argolas, além do uso de contas, sementes, e fibra vegetal que utilizam

para decorar o ambiente e para o adorno pessoal.

Informou-se oralmente que costumam pintar o corpo com o urucum e o jenipapo em

dias de festa, e normalmente usam “a roupa do branco, calça, vestido, bermuda, camisa”.

Antigamente, dizem, usavam o estojo peniano30, depilavam-se, faziam pequeno orifício nas

orelhas e pintavam-se com o urucum, o jenipapo e obtinham a cor amarela com a casca da

catuaba31. Dizem que mantinham a aparência física típica dos Tapuia, tendo incorporado alguns

hábitos dos Tupi. O contato os teria obrigado a se tornarem sedentários e agricultores, mas

mantinham alguns dos seus antigos rituais como a corrida de toras32.

Referindo-se ao tempo presente, dizem que a aparência dos índios do grupo é a

comum da gente da região, sendo que alguns se destacam pelo tipo de cabelo, que, informam: “é

cabelo de índio mesmo”.

Quanto ao vestuário, combinam os ornamentos tradicionais com roupas de brancos,

em ocasiões festivas usam cocares variados feitos de penas de diversas aves. Tais penas ainda

são presas a uma rede de algodão, ou de palha trançada, de maneira que na parte mais alta fica

uma espécie de coroa feita com as penas da cauda de papagaio ou de arara, de gavião, ou mesmo

27 Termos utilizados pelos depoentes.28 Os depoimentos coincidem com informações contidas em DENIS (1980, p. 240; 388-390).29 Além dos depoimentos tomados na AI Nova Vida, podemos observar tais características em Wied-Neuwied(1989, p. 429-438).30 Hiranaika- citado por Wied-Neuwied, mas este termo em Língua Kamakã não foi dito na Aldeia.31 Tais informações foram cedidas pelas índias velhas e podem ser vistas também em Wied-Neuwied (1989,p. 443-489).

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de galo, por serem mais longas. A pintura atual, afirmam, não obedece a um padrão específico,

como se verificou antigamente, os motivos variam e geralmente usam retas ou círculos.

Quanto à vestimenta, combinavam os ornamentos tradicionais com roupas de

brancos. As mulheres eram descritas como hábeis tecelãs de algodão33, e como oleiras;

destaca-se também a qualidade de sua cerâmica, de seus tecidos, elegância de suas armas,

do bastão do chefe e no charo, cocar em língua Kamakã34.

Afirma-se que os homens andavam nus e com estojo peniano. As mulheres

vestiam saias de chita multicores fornecidas pelo frade. Depilavam-se totalmente e sua

pintura era em vermelho e preto. A pintura masculina era com listras negras e círculos

concêntricos formados de meias-luas em torno do peito e do rosto. Alguns usavam seus

barretes e penas enfiadas nas orelhas. As mulheres usavam meias-luas nos seios e no rosto.

Maceravam sementes do urucum em água e davam-lhe a forma de quadrados

que eram expostos ao sol para secar. Depois eram dissolvidos em óleos vegetais ou gordura

de animais.

Suas flechas seriam ervadas com o sumo de cipó quando eram destinadas à guerra e

tinham pontas diferenciadas de acordo com o objetivo a que se destinassem. Os arcos eram

grandes, escuros, feitos de Paraúna e com sulco na parte dianteira. Referem–se ao bastão do

chefe como uma vara aguda e bem polida e vermelha35. Atualmente os arcos e flechas são feitos

de madeiras diversas, e observamos que são mais ornamentais; utilizam-se mais do facão e

espingarda quando vão caçar.

Hoje em dia utilizam também da palha para confecção de seus trajes

tradicionais, para as danças e festividades do grupo.

As festividades do grupo geralmente ocorrem no caramanchão, localizado ao

lado do Posto Indígena, espaço aberto, coberto, onde todos os encontros comunitários se

realizam, os diálogos se estabelecem, os acordos se fazem. Representa em si, personifica,

os movimentos do universo e dos viventes do universo.

32 Verificado também em depoimentos das índias Dona Rosa e Dona Santa, além de Carlito e Luís- oCacique- e podem ser confrontados com Denis (1980, p. 240; 388-390).33 Podem-se confrontar com Wied-Neuwied (1989, p. 429-438).34 Descrição que também é encontrada em Denis (1980, p. 240; 388-390).35 Além do gravado dentre as informações obtidas na AI Nova Vida, confirmam as descrições de Wied-Neuwied (1989, p. 429-438).

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Sua estrutura coberta com tablitas, e com um mourão fincado no centro, ligando

céu e terra, e outras madeiras desenhando pontos da sua circunferência, mas que se abrem

aos diversos caminhos para os homens, às diversas direções. Aí acontecem o Toré, as

danças, as festividades. Aqui dialogam os mundos dos humanos, dos espíritos, e dos

humanos com os espíritos, segundo os índios nos informam. Aqui na dança do Toré bebe-

se jurema, cauim ou jatobá e também tem-se o diálogo com Vovó- entidade da mata- e os

demais encantados.

Geralmente o Pataxó Hãhãhãi, assim como os demais índios brasileiros, usam

dois nomes, um da sua própria etnia, e outro brasileiro. Algumas formas, como exemplo, os

nomes de Tamani, Miki, Burunã, Puã, Popotira, Hamikó, Auaí (Away/Awai) reforçam os

nomes pluriétnicos36. Além daqueles que afirmaram ter um nome em “idioma”37, mas não

disseram, tendo apenas acesso aos seus nomes em português. Um ser ou seres de dois

nomes, um nome aos de casa, à sua gente, outro nome aos de fora. Percebe-se neste

contexto a dualidade sociocultural em que vive o grupo.

O Pataxó Hãhãhãi emerge neste diálogo entre culturas diferentes. Mescla de

grupos diversos, dança e canta comungando-se com Cristo e seus santos, e com os espíritos

da mata, e se auto-afirma levando o nome do que representa o último dentre os grupos

contatados.

Na sua aldeia comunica-se através dos búzios, chamando quem está ao longe,

ou no mato, ou para dar notícias, ou mesmo de telefone celular rural- adquirido pela nova

equipe da FUNAI.

Em dias de comemorações— festas do Toré, Reisado e São Sebastião—

homens e mulheres, com os corpos levemente inclinados para a frente, formam um círculo

36 Tamani- segundo o professor Guérios (1944), tamani- em Kamakã hamani, de pronúncia palatal, significacapim/noite/erva/mato. Observe-se que o nome do índio é Tamani, e é conhecido na aldeia pelo seu apelido“Preto”. Perguntados sobre o nome, os índios disseram que Tamani é preto, no sentido de escuro. Ele é umdos que possui a pele mais escura no grupo. Parece haver um deslocamento de significado no próprio nome.Miki- Em Malali- Segundo Sampaio (1987, p.283), significa traseiro, assento, uropígio, ou ponta de lança.Ruçuá- traduzido da língua Kamakã como amigo (GUÉRIOS, 1944, p.298). Puã- palavra de origem Tupi,derivada do verbo a-puã, significa levantar; aquele que levanta (SAMPAIO, 1987). Hamikó- Do Kamakã,barro, areia (GUÉRIOS, 1944, p.302). Auaí (Away/Awai)- do Tupi, "avá" ou "auá"- gente, pessoa, indivíduo(SAMPAIO, 1987, p.83); o uso do "i" ao final do nome costuma designar diminutivo. Burunã- provavelmentede Borun/ãn, ou nã- Borun é gente (SOARES, 1992). Popotira- do Tupi, Potira é flor, bonina (SAMPAIO,1987, p.82); "po" significa mão [tradução do autor].37 Tentamos encontrar as prováveis relações ou correlações dos nomes indígenas a partir das línguas indígenasidentificadas neste território como referenciais dos grupos étnicos que originaram tal grupo.

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desenvolvendo o Toré dançam ao som de chocalhos feitos de cabaças ocas com cabo de

madeira e cheia de pequenas pedras, ou sementes Dançam em torno de uma borduna

fincada no chão. No Reisado e festas para São Sebastião tocam-se também violão, flauta.

Sobre o passado, foi dito pelos depoentes de Nova Vida que os índios antigos

dançavam ao som de um chocalho feito de cascos de bicho amarrados em dois maços por

meio de cordões e de uma cabaça oca com cabo de madeira e cheia de pequenas pedras e

contas. Os homens formavam um círculo com as mulheres, estas se posicionavam umas

atrás das outras e lhes punham a mão sobre o ombro esquerdo. Dançavam em torno do vaso

de cauim e davam muitas voltas até que paravam e se dirigiam ao vaso individual e bebiam

o cauim. Outras vezes formavam duas filas face-a-face e dançavam uns empurrando os

outros.

Bebiam e festejaram por toda a noite. Quando obtinham sucesso nas caçadas

faziam grandes festas com cantos, danças e cauim de milho ou mandioca fermentado no

tronco escavado da barriguda durante mais de meio dia após ter sido mastigado, cuspido e

completado por água quente, pondo-se, então no fogo. Preparavam o cauim em longas

jarras, feitas do tronco da barriguda com o qual levavam a bebida ao fogo para fermentar e

que chamavam de Cunarins; e temos a informação de que preparavam bebidas de jatobá, e

guardavam em jarras de barro38.

Hoje criam animais domésticos, o que não faziam antigamente e ainda

combinam o produto da caça com os obtidos nas roças. Tinham interdição alimentar para o

tatu39 o que hoje não há mais.

As índias mais velhas do grupo também informaram que antigamente os seus

parentes vendiam bolas de cera aromáticas e mel, obtidos da mata, aos colonos, mas hoje

criam abelhas próximo das casas.

Em Nova Vida os depoentes informaram que hoje o doente deve ficar quieto e

se cuidar em casa, ou vai para o médico. As doenças são tratadas com chás e alguns

banhos, além de se buscar o atendimento médico, porém, no tempo da vida na mata40 as

38 Depoimentos das índias Dona Rosa e Dona Santa, do Cacique Awaí (Luís Rodrigues), de Carlito eValdemir Ribeiro e também verificamos referências a este ritual em Wied-Neuwied (1989, p. 429-438) e emDenis (1980, p. 240; 388-390).39 Gravado com as índias Dona Rosa e Dona Santa, e referência também encontrada em Wied-Neuwied(1989, p. 429-438).40 Informação obtida de Dona Rosa e Dona Santa.

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doenças eram tratadas pela fumigação de tabacos e rituais de cura. Caso a doença se

agravasse, o doente seria abandonado à própria sorte, o que não fazia com que não fossem

pranteados quando morriam. Afirma-se que o contato com os colonizadores aumentou o

número de doenças, e por conseguinte, a taxa de mortalidade com a introdução da varíola e

de febres antes desconhecidas.

Sobre a morte, informa-se que o defunto deve ser enterrado logo no outro dia,

mas dependendo da causa, no mesmo dia. O sepultamento ocorre conforme freqüentemente

se observa nas áreas rurais, utilizando caixão de defunto, e a presença de padre, “gente de

igreja”. Destacam o medo de alma, assombração. Os mortos são chorados pelos seus entes

mais próximos.

Em caso de desobedecer o luto, que envolve o desligamento das diversas almas

que compõem a pessoa que morreu- alguns índios afirmaram que as pessoas têm sete almas

ao todo, o que é referência Borun41- atribuem grandes poderes de provocar, inclusive,

desgraças para toda a sua gente. Costumam enterrar colocando alguns pertences do defunto

colocados por baixo do corpo.

Referindo-se à morte no passado, informou-se que o defunto só seria enterrado

depois que seus membros tivessem caído devido ao adianto estado de putrefação em que se

encontrava o corpo na sua cabana- o que nos permite pensar num enterro secundário. O

enterro era feito muitos dias depois quando se encerrava o período de pranto.

Sobre o sepultamento quando o defunto era depositado na cova, era enterrado

com armas e utensílios para que a alma pudesse seguir sua viagem, e devia haver uma

fogueira acesa para afastar os maus espíritos. As crianças eram enterradas em qualquer

local e os adultos nas matas, às vezes de cócoras. A cova era coberta com folhas de

palmeira e eram feitas ofertas com carne fresca. Quando essa carne era consumida por

algum animal, passavam a interditar a carne do animal que fizeram a oferta, daí uma das

justificativas da proibição da carne do tatu citada anteriormente42.

Aos espíritos dos seus mortos atribuem grandes poderes, inclusive o de

provocarem tempestades. Quando não eram bem tratadas as almas voltavam sob a forma

de onça para fazer-lhes mal. Eram enterrados com um vaso de cauim, arco, flechas, que

41 Observar comunicação apresentada no IX Ciclo de Estudos Históricos na Universidade Estadual de SantaCruz-UESC, por Paraíso (1997).42 Informações também encontradas em Spix & von Martius (1976, p. (II) 166-170).

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eram colocados por baixo do corpo. Inicialmente os mortos seriam enterrados em posição

sentada, porém Wied-Neuwied (1989, p. 429-438) afirmou que no tempo da sua estadia no

Brasil esta prática já teria sido abandonada.

Dentre os elementos culturais que os índios destacaram em entrevistas e observações

sobre o perfil Pataxó no passado ainda vivo na memória e os atuais, os do passado nos apontam

para o fato de que dentre os elementos significativos da cultura tradicional deste grupo

encontramos referência étnica marcadamente Kamakã e Borun, embora eles a todo instante

neguem ser Kamakã ou Borun, afirmando-se como Pataxó Hãhãhãi.

A identidade emerge na e da historicidade do grupo, daí sua especificidade43

pois está intimamente vinculada (SILVA, T. 2000, p.14) às condições e contradições

sociais e materiais do grupo, ao seu universo simbólico, seus sistemas de classificação das

coisas, e seu processo histórico único. Auto-afirma-se Pataxó Hãhãhãi e identifica-se na

junção de elementos contraditórios, conforme se vê no Toré, que, segundo dizem: “o Toré é

a madeira de lei da nossa tradição”; e o Toré congrega elementos cristãos e elementos

indígenas imemoriais, além de fundí-los.

O índio cantado no Toré, é o índio recriado na tradição que também é dinâmica, onde

mesclam-se diversos elementos: a lembrança ainda possível; as histórias ouvidas por quem ainda

viveu na condição de gente da mata, ou por quem conheceu os que viveram nesta condição; e os

que, nascidos, já se viram na condição de gente da reserva, além de nesse processo estarem

inseridos elementos cristãos.

O índio Pataxó Hãhãhãi é essencialmente um índio fruto dessa irreversibilidade do

contato (OLIVEIRA, R. 1976), e que ainda nessa condição, como outros povos, assume-se na

sua identidade específica.

Este processo de sobrevivência étnica, é também de trocas simbólicas. Esta

economia de bens simbólicos gerou a mescla como fundamento da identidade do grupo

Pataxó Hãhãhãi através do habitus, modo de ser, que se reproduz neste contexto, e que

responde ao condicionamento, a pessoa torna-se, então, hábil para os padrões sociais que se

43 Berger afirma que “ a sedimentação intersubjetiva só pode ser verdadeiramente chamada social quando seobjetivou em um sistema de sinais desta ou daquela espécie, isto é, quando surge a possibilidade de repetir-sea objetivação das experiências compartilhadas. Só então provavelmente estas experiências serão transmitidasde uma geração à seguinte e de uma coletividade à outra”. BERGER, Peter L. LUCKMANN, Thomas. Aconstrução social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. Petrópolis, RJ : Vozes, 1985. :96

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24

quer imprimir. A dissidência no grupo gerando a Aldeia de Nova Vida ocorrida na década

de 1980 veio reforçar esse hibridismo quando o grupo teve que construir a Aldeia conforme

os modelos ainda vivos na memória, e o que o ambiente físico local lhe permitia

empreender.

Parte-se de uma sociedade onde vínculos étnicos são tornados familiares, não

no sentido de sociedade de linhagem, mas no sentido de famílias isoladas tendo como

referência o acesso à sociedade nacional brasileira. Não estamos falando disso numa visão

de emigrar, de sair do grupo, até pela sua característica endogâmica, mas no sentido de

incorporar referências e atitudes da sociedade circundante, envolvente.

O Pataxó faz-se elo entre o passado e o presente, portanto, faz-se ponte. A idéia deponte é devido o fato de que este ser representa-se como transição entre dois perfis Pataxó Hãhãhãino seu cotidiano vivenciado na aldeia, e que eles mesmos classificam em: os conservadores, outradicionais; e os modernos, ou progressistas44. Porém todos se autodenominam Pataxó Hãhãhãi portrazerem em si o melting-pot que lhes originou não nos moldes tradicionais de gente da mata, mas apartir da dinâmica de transformação em gente da reserva, como um processo de renovação queconsiste na necessidade em reformular signos, difundidos num processo de expansão social e demúltiplas lógicas do conhecimento (DE GRANDIS; BERND, 1995).

A cultura, por conseguinte, compreendida enquanto resultado da práxis e do

trabalho humanos em sua relação dialética com o mundo. Ela compreende o universo

simbólico e “abrangente” em que os homens atuam e interagem nesse processo dialético

em permanente movimento, criado pelo homem, mas que ao mesmo tempo o cria e isto

está incorporado pela dinâmica do terreiro da Aldeia.

Em Nova Vida, a construção da pessoa se faz a partir da (re)construção do

espaço físico/espaço social iniciados quando da chegada do grupo ao local, e da sua

necessidade em sobreviver e, portanto, em reconstruir a sua cultura naquele local até então

desconhecido e sem experiências vivenciadas pelo grupo. A pessoa Pataxó situava-se em

terras estranhas, quando da chegada em Nova Vida, cabia tornar a terra um território de

identidade com a pessoa.

A pessoa que figura na nossa análise é determinada por uma tipificação

histórica e cultural, ela é Pataxó Hãhãhãi; a sociedade é a Pataxó Hãhãhãi criada a partir

das articulações específicas que foram tramadas de maneira a permitir que se pudesse

sobreviver e manter viva a memória dos ancestrais. E ainda que não se pudesse viver como

em tempos ancestrais, remotos, que fosse possível, ao menos, manter vivo seu universo

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simbólico ainda lembrado, este fortalecido pela concepção de sagrado, dos quais os Pataxó

Hãhãhãi compõem um grupo ritual (PARAÍSO, 1994) composto de espíritos que

comandam e coordenam a vida dos homens.

Palavras-chave: Identidade; Índios; Pessoa.

BERGER, Peter L. LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade: tratado de

sociologia do conhecimento. Petrópolis, RJ : Vozes, 1985

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Diretoria Geral de educação. Paraná 1944.

44 Termos encontrados em Coroa Vermelha, Nova Vida e Pau Brasil (Caramuru-Paraguaçu) entre 1995 e2000.

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26

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OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. Identidade, etnia e estrutura social. São Paulo. 1976.

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uma mesma Nação? Uma proposta de reflexão Revista do Museu de Arqueologia e

Etnologia, São Paulo, 4:173-187, 1994.

PARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro Anotações pessoais de palestra da professora Maria

Hilda Baqueiro Paraíso durante o IX Ciclo de Estudos Históricos da UESC, em 1997.

Existem as gravações do dito Ciclo em VHS no CEDOC-UESC.

SAMPAIO, Teodoro. O Tupi na geografia nacional. São Paulo : Editora Nacional :

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Page 27: A CRIANÇA INDIGENA NO SEU UNIVERSO LÚDICO

27

ÍNDIOS, ALDEIAS E ALDEAMENTOS EM ILHEÚS (1532-1880)

Maria Hilda Baqueiro Paraiso45

I. A história dos índios: percalços e dificuldades

Um grande desafio está proposto aos pesquisadores que se aventuram a trabalhar numa

perspectiva histórica com as comunidades indígenas particularmente no período compreendido

entre os séculos XVI e XIX. São muitas as barreiras a serem enfrentadas: caráter fragmentário

das informações e destas serem marcadas pelas atitudes etnocêntricas dos seus autores, quase na

totalidade pertencentes à sociedade dominante.

A superação dessas barreiras exige aos aventureiros que trabalhem com fontes

diversificadas: das primárias às secundárias, das publicadas às inéditas, das mais antigas às

contemporâneas, devendo ser destacadas, particularmente, aquelas que analisam a organização

social dos grupos indígenas estudados.

Algumas dificuldades são comuns às fontes inéditas e publicadas: a dispersão de informações, pois, em

grande parte dos documentos, a questão indígena não é o tema central, exigindo um trabalho cuidadoso de leitura

para identificar os dados de interesse específico, sua articulação com os de caráter mais geral e seu ordenamento a

partir de critérios étnicos, espaciais e temporais.

O caráter etnocêntrico das fontes expressa-se de várias formas: nas referências marginais aos ameríndios,

nas análises e informações que refletem visões negadoras de sua humanidade e nas recomendações de caráter

humanistas que pregam a incorporação dos silvícolas à sociedade dominantes, todas baseadas na crença na

universalização do destino da humanidade tendo como modelo a organização social, política e econômica européia.

Projeto possível de ser alcançado através da aceleração da marcha histórica46 e da negação da historicidade dos

povos "primitivos", vistos como incapazes de pensarem sobre si próprios numa perspectiva temporal segundo os

critérios e padrões definidos como adequados pelo Ocidente.47

Outra questão a ser superada é ausência de dados sobre o período pré-contacto com os colonizadores, o que

se explica pela desqualificação da tradição oral como fonte de conhecimento academicamente reconhecido e pela

grande carência de trabalhos arqueológicos sistemáticos e persistentes. Assim, as informações sobre esses povos

ficam restritas às feitas por europeus que passaram pelos habitats dessas populações ou por registros administrativos,

45 Professora do Departamento de Antropologia da Universidade Federal da Bahia e Coordenadora do Programade Pós-Graduação em História da UFBA e do Mestrado de Cultura e Turismo da Universidade Estadual deSanta Cruz.46 TODOROV, T. Nós e os outros: a reflexão francesa sobre a diversidade humana. São Paulo : Companhia das Letras, 1993.47.

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peças importantes para compreender políticas públicas e atitudes pessoais e justificadoras do processo de construção

de uma ancestralidade nacional mítica configuradora dos direitos dos povos e dos segmentos sociais dominantes.48

Logo, há que se estar atento à consonância dessas fontes com os interesses dos colonizadores, o que nos

permite entender a inclusão ou exclusão dos índios nos relatos e nas obras produzidas por representantes da

sociedade dominante preocupados com estabelecer, de forma indiscutível, a legitimação do Estado-Nação como

unidade ordenadora das relações sociais instituídas, e com a imagem que as elites dominantes desejam veicular

sobre si mesmas, sua atuação e seu direito "natural" de serem detentoras do poder.

Finalmente, é essencial reconhecer a historicidade do passado das sociedades indígenas, as diversidades

grupais, as mudanças históricas vivenciadas por essas comunidades antes, durante e depois do contato com a

sociedade dominante e as especificidades temporais e locais da relação estabelecida tanto com os colonizadores

como com outros povos indígenas.

Há ainda que se ter cuidado com a visão acerca das populações indígenas, particularmente nos dois

primeiros séculos de contacto, vinculadas que estavam a duas grandes vertentes não necessariamente excludentes: as

positivas e as negativas, estas surgidas a partir da intensificação da conquista e das tentativas de colonização.

Ambas as visões produziram descrições de caráter globalizante, nas quais a individualidade não era objeto

de preocupação, sendo as pessoas e os grupos percebidos de forma genérica, diluídos na multidão dos seus

semelhantes. Apenas alguns autores apontam a possibilidade da percepção das diferenças entre os vários grupos

indígenas, destacando-se Fernão Cardim que aventa essa possibilidade, considerando-se, apenas, os distintos cortes

dos cabelos dos vários grupos descritos.

Essa percepção globalizante está clara, por exemplo, na avaliação e identificação dos aliados por excelência

– os vários grupos Tupi do litoral – e dos seus inimigos inconciliáveis – os Tapuias e/ou Aimorés. Da mesma forma,

a importância do aspecto político, das alianças estabelecidas, das inimizades, das resistências e do econômico (neste

caso, a necessidade de designar quais os grupos que poderiam ser escravizados) é percebida pela adoção do

designativo atribuído pelos Tupi e pela reprodução da sua visão etnocêntrica com relação a seus tradicionais

inimigos, os Gren, como se observa nas obras de Gândavo49, Souza50 e nas Cartas Jesuíticas.51

Portanto, o bom e o mau selvagem não eram definidos pelo ser real, mas por figuras míticas que refletiam,

como um espelho, as preocupações e angústias da sociedade produtora desse conhecimento, tornando as imagens, na

verdade, bem mais reveladoras da sociedade dominante que da sociedade dominada. São, portanto, relatos que não

apresentam maiores preocupações com a relativização e a objetividade na seleção e ordenamento das informações.52

Com o crescente agravamento das tensões e das revoltas indígenas, as imagens dos índios tenderam a

desaparecer das crônicas em detrimento das benesses da terra e das possibilidades de nela se enriquecer facilmente.

48 FERRO, Marc. A História Vigiada. São Paulo : Martins Fontes, 1989.49 GÂNDAVO, Pero Magalhães de. Tratado da terra do Brasil e história da Província de Santa Cruz. Belo Horizonte : Ed.

Itatiaia; São Paulo : Edusp, 1980.50 SOUZA, Gabriel Soares de. Notícia do Brasil. São Paulo : Martins Fontes, 1943.51 NÓBREGA, Manoel da. Cartas do Brasil. Belo Horizonte : Itatiaia; São Paulo : Edusp, 1988.NAVARRO, Aspicuelta e outros. Cartas avulsas. Belo Horizonte : Itatiaia; São Paulo : Edusp, 1988.ANCHIETA, José de. Cartas, informações, fragmentos históricos e sermões. Belo Horizonte : Itatiaia; São Paulo : Edusp, 1988.52 DUCHET, Michele. Antropologia y história en el siglo de las luces - Buffon, Voltaire, Rousseau, Helvecio, Diderot. México :

Siglo Veintiuno Editores, 1988.

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Gândavo é um bom exemplo. Preocupado em descrever as riquezas e potencialidades da colônia, suas referências

aos povos aborígines são etnograficamente pobres, relegando-os à condição de seres exóticos que deveriam ser

tratados de forma a não constituírem obstáculo à colonização.

Contrariamente, Gabriel Soares de Souza, apesar de possuir as mesmas preocupações e o mesmo quadro

mental, produziu, etnograficamente falando, uma obra rica em detalhes e nuanças que permite conhecer as

especificidades dos vários grupos, apesar da pouca clareza quanto à sua identificação, nominação e localização.

A partir do século XVII, o interesse pela cultura indígena arrefece. As poucas obras do período são da lavra

dos jesuítas que estão marcadas pela preocupação com questões relativas a aspectos morais, ao modelo de

colonização a ser adotado, às dificuldades de evangelizar e à preservação dos valores cristãos e ocidentais pelos

colonos. Suas reflexões também estão marcadas por imagens generalizantes e preconceituosas.

Os dados produzidos pelos administradores coloniais – categoria que se amplia com solidificação da

conquista - são ricos e problemáticos. Suas marcas principais são as preocupações de caráter administrativo, a

necessidade de garantir e promover a expansão da colonização e a justificação das práticas políticas pessoais,

classistas e estatais. Conseqüentemente, a imagem do dominado é manipulada de acordo com os projetos estatais e

dos segmentos dominantes e com as convicções e valores pessoais dos autores.

Com a implantação da legislação restritiva à escravização generalizada, acentuou-se a tendência a destacar

o caráter hostil e irredutível e a prática da antropofagia por aqueles a quem se queria combater e escravizar. Marca

que se torna mais evidente nos séculos XIX e XX a partir de 1808, quando a Coroa retoma a prática de decretação

de Guerra Justa aos Botocudos do Leste e do Sul, aos Mura da Amazônia e Canoeiros de Mato Grosso, dentre

outros.

Porém, os trabalhos realizados pelos viajantes – naturalistas são os grandes destaques do século XIX.

Envolvidos com a busca de soluções para a crise econômica vivida pelos sistemas coloniais, escolhiam o que

observar a partir do que consideravam como economicamente fundamental num mundo em transformação, com os

novos parâmetros da ciência e com os interesses dos financiadores particulares ou governamentais e dos seus

possíveis leitores. Seu caráter aventureiro também definia os roteiros a serem seguidos ou abandonados.

Cabe destacar, também, a produção dos sócios dos Institutos Históricos e Geográficos, marcada pela

preocupação com justificar a construção de um Estado – Nação segundo o modelo ocidental cristão, de caráter

elitista, autoritário e excludente. Persiste, aqui, a tradicional visão dualista e, embora descrevam o índio como um

entrave à colonização, o que engrandece as lutas pela construção do país, defendem sua perfectibilidade e liberdade

e a viabilidade de projetos de integração ao todo nacional por um processo de civilização imposta e coordenada por

agentes governamentais.53 Expressam, portanto, a crença de ser inevitável e natural a destruição física e cultural dos

povos indígenas á medida em que a civilização se expandisse pelos sertões.54

Cuidados também devem ser adotados com as obras de antropólogos e historiadores. No caso dos

antropólogos, mesmo os que flexibilizam as teorias funcionalistas e estruturalistas incorporaram informações de

53 SCHWARCZ, L. M. O espetáculo das raças - cientistas, instituições e questão racial no Brasil (1870-1930). São Paulo :

Companhia das Letras, 1993.54 DIAS, M. O. da S. O fardo do homem branco - Shouthey, historiador do Brasil - um estudo dos valores ideológicos do

império do comércio livre. São Paulo : Cia. Ed. Nacional, 1974.

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caráter histórico que confirmam a idéia de um passado congelado no período anterior ao contato com a sociedade

ocidental, encarado como o "ponto zero" do processo evolutivo. Só a partir de 1980 passou-se a reconhecer a

dinâmica social como uma característica fundamental também das sociedades indígenas e a reduzir-se a relevância

do contato entre as sociedades indígenas e a ocidental como marco inicial da dinâmica social.55

Para tanto, exigiu-se superar dificuldades56 relacionadas à ausência de dados acerca do período pré-contato,

particularmente no que se refere aos mecanismos mais profundos da organização social da sociedade indígena e à

identificação de papéis sociais ativos, reativos e passivos, sobrevivências, inércias, ressurgências, conservadorismos

deliberados, empréstimos e inovações elaborados a partir do contato.

Porém, os atuais estudos interdisciplinares já permitem identificar as tendências sociais do período pré-

contato, a divisão e dispersão dos grupos, o surgimento de novas identidades, as influências coloniais, as

continuidades e rupturas, os processos de homogeneização cultural advindos de trajetórias históricas compartilhadas

a partir de certo instante, o processo de deslocamentos e associação de muitos povos, antes considerados isolados até

determinado momento, mas que, na realidade, são foragidos de missões ou de outros contatos anteriormente

mantidos com agentes da sociedade nacional e o fracionamento das tribos, o que as levou a acentuarem micro-

diferenças com relação ao grupo original e a constituírem novas identidades étnicas.

Também os historiadores vêem abandonando seus projetos de formulação da história da humanidade, o

paradigma evolucionista e sua preocupação em identificar o avanço do progresso e das "Luzes", superando a visão

etnocêntrica e o uso de silogismos lógicos baseados numa suposta natureza humana universal incapaz de explicar a

diversidade.

As novas metas estabelecidas são a interdisciplinaridade57 e a busca das chaves explicativas das estratégias

peculiares adotadas pelas comunidades, seus sistemas de valores, organizações coletivas e condutas humanas.

Abandonou-se, enfim, a busca das homogeneidades culturais e passou-se a destacar as rupturas e as

heterogeneidades no processo de construção do devenir humano, além de novas camadas sociais, antes

marginalizadas, passarem a ser incluídas na categoria de objeto de estudo, reconhecendo-as como agentes ativos na

construção da sua história e da sua identidade.

No entanto, no Brasil as populações indígenas ainda não se constituíram objeto preferencial dos

historiadores. Camponeses, escravos negros, camadas populares urbanas, operariado, mulheres e libertos têm

concentrado as atenções dos estudiosos, o que se constata em obras de relevância como História da Vida Privada no

Brasil – Cotidiano e vida privada na América portuguesa.58

55 TURNER, T. Ethno-Ethno history: myth and history in native South American Representations of contact with western

society. In: HILL, J. (ed.). Rethinking history and myth - indigenous South American perspectives on the past.Chicago: University of Illinois Press, 1988. p. 235-281.

56 CUNHA, Maria Manuela C. da. Introdução a uma história indígena. In: CUNHA, Maria Manuela C. da (org.). História dosíndios no Brasil. São Paulo : Companhia das Letras, Fapesp/SMC, 1992 . p. 9-24.

57 ARIÈS, P. A história das mentalidades. In: LE GOFF, J. A história nova. São Paulo : Martins Fontes Ltda., 1989. p .153-176.

58 MELLO E SOUZA, Laura de (org). História da vida privada no Brasil – cotidiano e vida privada na América portuguesa.São Paulo: Cia. das Letras, 1997.

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1I. Superando dificuldades: os novos estudos interdisciplinares

Outras armadilhas decorrem de equívocos cometidos pelos primeiros observadores que terminam por ser

considerados verdades inquestionáveis devido a sua constante repetição em documentação secundária e mesmo

primária.

Um desses equívocos refere-se a localizações geográficas dos grupos estudados. Nem sempre essas

localizações são apresentadas com a precisão e o detalhamento necessários. Esses equívocos podem decorrer da

intenção do autor de confundir o leitor, da mudança dos nomes dos acidentes geográficos, do desaparecimento físico

de determinados referenciais e dos próprios grupos ou do seu deslocamento com rapidez inesperada nem sempre

tendo sido registrado. Em alguns casos, ao se deslocarem, os grupos passam a ser referidos por outro nome,

dificultando a reconstituição das rotas de circulação, deixando a impressão de que esses povos desapareceram sem

deixar vestígios.

Há, também, imprecisões quanto á identificação étnica dos grupos indígenas, o que pode ser explicada pelo

desconhecimento das diversidades culturais, pela despreocupação em identificar essas diversidades, pela intenção

em ocultar e confundir as identidades – vide o caso dos chamados Botocudos depois da decretação da Guerra Justa,

em 1808, quando essa identificação significava a garantia de acesso às benesses estabelecidas por lei – e pelo uso de

categorias genéricas para identificar os grupos indígenas, considerando-se o tipo de relação estabelecido com a

sociedade dominante: Tupi, Tapuia, Botocudos, Naknenuk, Jiporok, Pojixá e etc.

Deve-se destacar, ainda, a terrível superposição de nomes atribuídos a um mesmo grupo: sua

autodenominação, vários heterônimos, nome do seu cacique, tipo de relação interétnica que estabeleça naquele

momento, ou por vários acidentes geográficos – rios, montanhas, ilhas - presentes no seu habitat ou no local em que

estejam aldeados.

Há, ainda, a necessidade de enfrentar as diversas grafias dos nomes atribuídos a um mesmo

grupo, como se pode observar no caso de Maxakali: Machacali, Machacaris, Macachacalizes,

Malacaxis, Malacachetas. Diante da ausência de uniformidade na grafia, muitas vezes, o

pesquisador, ao se deparar com algumas denominações, como Pataxó, Kutaxó, Kumanaxó,

Kumanaxó, questiona-se se esta diversidade também não resulta da referida falta de

uniformização de grafia. E pode então cometer um outro tipo de equívoco: ignorar a diversidade

que se esconde sob a suposta uniformidade.

Finalmente, ainda com relação à nominação, ressalte-se que o uso de nomes numa

determinada língua indígena não significa, necessariamente, que esse grupo pertença á etnia

sugerida pelo nome usado. Um caso exemplar é a denominação Naknenuk, palavra da língua

Borun, dos Botocudos, mas que se referia à identificação genérica de grupos não Botocudos e

que, no contexto da Guerra Justa entre 1808 e 1831 na Bahia, Minas Gerais e Espírito Santo,

optaram por aldear-se e inserir-se nas atividades econômicas e militares que lhes eram impostas

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pelos colonizadores dos seus territórios, inclusive as de combater seus inimigos tradicionais: os

Botocudos.

Essa estratégia foi notadamente adotada por grupos conhecidos por Maxakalí, denominação

também genérica originária de uma língua que não é a desses grupos e que significa “reunião de

tribos”, termo surgido no século XIX no vale do Jequitinhonha.59

III. Identificando os grupos indígenas da Capitania de Ilhéus

O primeiro aspecto a ser considerado com relação aos grupos indígenas que viviam na antiga Capitania de

Ilhéus é que, se considerarmos a diferença entre etnias e grupos tribais de uma mesma etnia e se eliminarmos a

superposição de nomes atribuídos aos mesmos grupos, a aparente confusão se simplifica.

Se os classificarmos usando o critério de pertinência a uma determinada família lingüística, veremos que

viviam na Capitania de Ilhéus apenas os Tupi-Guarani e os Macro-Jê, conhecidos genericamente na literatura não

especializada como Tapuias, nome atribuído pelos Tupi aos não falantes de seu idioma.

Dos grupos da família lingüística Tupi-Guarani, apenas os Tupinambá e os Tupinikin ocupavam o litoral da

antiga Capitania de Ilhéus. Os primeiros, após terem expulsado os Macro-Jê do litoral, localizavam-se numa faixa de

terras da Mata Atlântica entre o rio São Francisco e Camamu. As aldeias Tupinikin se espalhavam entre Camamu e o

rio Doce, no Espírito Santo.

Já a diversidade dos grupos falantes da língua Macro-Jê era maior. Há referências a presença de grupos

Kiriri realizando incursões no século XVII na área da baía de Camamu. Esses grupos buscavam as praias onde

tradicionalmente realizavam seus rituais iniciáticos no período da safra de cajus.

Os Kamakã – Mongoió, também referidos como Menian, localizavam-se entre os rios de Una do Norte e o

Pardo, com elevada concentração em torno de Cairú e nas cabeceiras do rio de Contas. Embora haja referências à

presença desse grupo na Capitania de Porto Seguro, tudo indica que esses pequenos grupos, conhecidos por

Mongoió e Canarins, teriam sido deslocados e aldeados nesses locais para serem usados como combatentes e

defender os nascentes povoados daquela capitania.

Os Pataxó/ Patacho, pertencentes ao macro-grupo Maxakali, foram contatados, na área da Capitania de

Ilhéus, entre o rio de Contas e Pardo, além de outras áreas de Porto Seguro. Os Kutaxó/ Cotoxó foram encontrados

entre os rios de Contas e Pardo, os Kopoxó/ Copoxó/ Gotochós , entre o rio de Contas e o Jequitinhonha e os

Monoxó/ Mapox/ Moxot/ Makaxã/ Manaxó na foz do rio Pardo, nas proximidades de Canavieiras.

Já os Aimorés, também conhecidos como Tapuia, Gren, Guerén, Kren, Guaimoré, Emburé, Embaré, Aib-

poré, Aiboré, Aimb-poré e depois Botocudos, localizavam-se, inicialmente, região conhecida por Baixo Sul ou norte

da Capitania de Ilhéus, e, devido aos conflitos com os colonizadores e outros grupos indígenas, foram lentamente se

deslocando nas direções sul e oeste, atingindo, já no fim do século XVI, outras áreas da Capitania de Ilhéus e a de

59 PARAISO, Maria Hilda B. Amixokori, Pataxó, Monoxó, Kumanaxó, Kutaxó, Kutatoi, Maxakali, Malali e

Makoni; povos indígenas diferenciados ou subgrupos de uma mesma nação? Uma proposta de reflexão. Revistado Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, São Paulo, n. 4, p. 173 – 187, 1994.

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Porto Seguro. A partir do século XVIII, já vão ser encontradas referências à sua presença mais ao sul, sendo que sua

expansão nessa direção atingiu, no século XIX, o rio Doce, nas Capitanias do Espírito Santo e Minas Gerais.

As informações sobre os grupos pertencentes às duas famílias linguísticas são bem diferentes. Sobre os

grupos Tupi do litoral há grande quantidade de registros, o que não ocorre aos considerarmos os Macro-Jê. Um

conjunto de fatores explica o fato de esses índios não terem sido molestados nos primeiros anos de conquista. A não-

penetração dos sertões em que habitavam, seu alto grau de mobilidade espacial, em decorrência de serem

predominantemente caçadores e coletores, e o fato de não serem tão bons agricultores quanto os Tupi tornavam-nos

menos desejados como escravos, até que houve a necessidade de substituir os Tupi aldeados e escravizados, que

morriam em decorrência das epidemias e do excesso de trabalho a que eram submetidos.

Sobre os Tapuias pesavam os maiores preconceitos - gente de corso, tragadora de carne, amiga de guerras e

traições, ferozes, selvagens e bestiais - numa reprodução da visão dos Tupi sobre esses grupos, dos quais eram

inimigos irreconciliáveis. É importante considerar, ainda, que essa visão sobre os moradores dos sertões só pode ser

completamente entendida quando associada ao imaginário elaborado pelos europeus acerca dos espaços vazios e

desconhecidos. Os sertões passaram a se constituir no locus das riquezas sonhadas e dos seres monstruosos, que

representavam o Outro tal como era imaginado em oposição ao Eu.

IV. Aldeias e Aldeamentos: um projeto estatal de ressocialização

É essencial esclarecer que, na concepção aqui usada, aldeia é a concentração criada pelos grupos indígenas

autônomos e aldeamentos resultam da intervenção dos colonizadores que definem não só o local de sua instalação,

como sua administração e até mesmo os grupos que ali são instalados. Fruto do projeto colonial, um aldeamento é

um dos mecanismos de solidificação do processo de dominação/subordinação imposto por um grupo a outro povo e

a seu território e são criados com múltiplas finalidades, sendo a aceleração do processo de imposição de novos

padrões culturais aos nativos uma delas.

Ao perderem a autonomia sobre seus antigos territórios, esses grupos aldeados perdem-na também em

termos políticos e até no que se refere aos moradores desses aldeamentos. De acordo com a filosofia portuguesa de

conquista e dominação e considerando-se o caráter estratégico da localização dos aldeamentos – em termos militares

e econômicos -, há que se pensar que a prática comum era a imposição da convivência de vários grupos indígenas

num mesmo aldeamento. O fato de, muitas vezes, esses grupos serem inimigos tradicionais era visto como positivo,

pois não só facilitaria o controle ao evitar possíveis revoltas como aceleraria o processo de ressocialização e

imposição da língua e dos costumes dos colonizadores.

É considerando esse quadro que ressaltamos três aspectos: a convivência forçada entre várias etnias num

mesmo aldeamento, a criação destes espaços estar condicionada ao ritmo da conquista e da incorporação de espaços

ao domínio colonial e o deslocamento de grupos de suas aldeias para locais de interesse dos colonizadores.

Assim sendo, os aldeamentos da Capitania de Ilhéus vão sendo criados á medida em que a presença da

sociedade dominante se expande e sente necessidade de criar muralhas humanas capazes de deter o avanço de tribos

consideradas hostis ou de criar centro de treinamento de trabalhadores a serem usados em empreendimentos estatais

ou particulares.

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Considerando-se os vários aldeamentos criados nas terras da antiga Capitania de Ilhéus

entre os séculos XVI e XX, chegamos a um número impressionante desses espaços. No entanto,

a vida desses aldeamentos muitas vezes era curta, o que se explica por fatores variados como: a

morte dos seus habitantes, o deslocamento dos sobreviventes para outro local, as fugas, a

desativação do aldeamento e a incorporação dessas terras às propriedades dos colonizadores.

Partindo do norte para o sul, encontramos os seguintes aldeamentos:

Bacia do rio Una do Norte

1. São Fidelis, atual município de Taperoá, criada para índios Tupinambá;

Bacia do rio Cachoeira Grande

2. Santarém

Bacia do rio Anaraú ou Baiano

3. Maraú

4. Barcelos

Bacia do Rio de Contas

5. Nossa Senhora dos Remédios do Rio de Contas, fundada para localizar índios Gren.

6. São Miguel da Barra do rio de Contas, na foz do rio de Contas, atual cidade de Itacaré, onde viviam

índios Gren, tendo os Kamakã- Mongoió sido transferidos posteriormente.

7. Nova Almada dos Funis do rio de Contas, onde foram aldeados Kamakã- Mongoió. Localizava-se na

barra do rio Funis no rio de Contas.

8. Santa Rosa, na margem do rio de Contas, próximo a Jequié, onde se refugiaram os Kiriri-Sapuyá

foragidos de Pedra-Branca, na bacia do rio Paraguaçu.

Bacia do Grongogi

9. Espírito Santo de Poções, atual cidade de Poções, onde foram aldeados índios Kamakã-Mongoió pela

família de João Gonçalves da Costa em sua sesmaria.

Bacia do rio Almada

10. Nossa Senhora da Conceição dos Índios Gren, primeiro aldeamento criado para os índios Gren e que

deu origem á atual Almada.

11. Nova de S. José do Boqueirão da Cachoeira da Almada, fundada no século XIX às margens do rio

Almada, onde passaram a viver os Kamakã-Mongoió.

Bacia do rio Salgado

12. Barra do Salgado, aldeamento localizado na foz do rio Salgado no rio Colônia, atual cidade de Itapé,

onde foram localizados índios Kamakã- Mongoió trazidos do rio Pardo para combater os Pataxó,

chamados equivocadamente de Botocudos.

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Bacia do rio Colônia

13. São Pedro de Alcântara ou Ferradas, onde foram localizados Kamakã – Mongoió trazidos do rio

Pardo e os Gren deslocados de Almada. Esses grupos deveriam construir, manter e policiar a estrada

Ilhéus-Minas Gerais.

14. Caramuru- Paraguaçu nos municípios de Pau-Brasil, Camacã e Itajú do Colônia. Criado em 1926

para abrigar os últimos grupos Pataxó e Botocudos, terminou por se tornar refúgio dos Tupinikin,

Kamakã-Mongoió e Tupinambá, dos Kiriri-Sapuyá de Santa Rosa e dos Baenã.

Bacia do rio Cururupe

15. Cocos, localizada a ¼ de légua de Olivença, onde viviam índios Tupinikin e Kamakã-Mongoió e

para onde se deslocaram Tupinambá do aldeamento de São Fidelis, atual município de Taperoá.

16. Nossa Senhora da Escada de Olivença, fundanda em 1700 por jesuítas. Para lá foram deslocados

vários grupos sobreviventes das várias aldeias de Ilhéus: Tupinikin, Botocudos/ Gren, Kamakã-

Mongoió e Tupinambá de Taperoá .

17. Bacia do rio Pardo

18. Barra do Catolé, localizada na foz desse rio no Pardo, onde Antônio Dias de Miranda aldeou os

Kamakã-Mongoió daquela região e onde depois se refugiaram Pataxó e Botocudos que estavam

aldeados em Cachimbo.

19. Lagoa do rio Pardo, situado na foz do rio Jibóia, onde viviam Pataxó aldeados por Antônio Dias de

Miranda.

20. Santo Antônio da Cruz, na foz do rio Vereda, onde viviam Pataxó e Kamakã-Mongoió aldeados por

Antônio Dias de Miranda. Deu origem à cidade de Inhobim.

21. Cachimbo, na foz do rio Verruga, onde foram aldeados Pataxó e Kamakã-Mongoió, aldeados em

1820 por Antônio Dias de Miranda. Atual cidade de Itambé.

22. Catolé na foz do rio Catolezinho, local em que Antônio Dias de Miranda localizou grupos Kamakã-

Mongoió. Atual cidade de Itapetinga.

23. Salto do rio Pardo, localizava-se na foz do rio do Nado, atual cidade de Angelim, para onde foram

transferidos Kamakã-Mongoió do aldeamento de Catolés, tendo passado a conviver com Botocudos

ou Pataxó.

24. Salsa, aldeamento criado nas proximidades do Quartel do rio Salsa, nas proximidades de

Canavieiras, foz do rio Pardo. Ali foram localizados grupos Botocudos e os Monoxó, também

conhecidos por Mapoxó; Moxotó; Makaxã; Manaxó.

Bacia do rio Una

25. Serra dos Boitacaras ou Goitacaras, onde viviam índios Pataxó.

V. Identidade étnica num mundo em transformação

Diante do exposto, convém ressaltar que muito pouco conhecemos da história

desses grupos. Daí porque conclamamos vários especialistas a aprofundar essa temática. O

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nosso intuito, ao apresentarmos esse trabalho, não é simplesmente o de estimular um

avanço na discussão desse tema específico, mas o de demonstrar um possível modelo para a

análise de outras realidades indígenas. É estudando o passado pela ótica do presente e

reconhecendo os fatores de construção, reconstrução, dispersão, alianças, oposições,

construção de alianças que poderemos entender melhor a trajetória desses povos e o modelo

excludente do Estado-Nação brasileiro e a atuação dos remanescentes dessas populações.

BACIA

HIDROGRÁGICA

ALDEAMENTO LOCALIZAÇÃO ETNIAS

Uma do Norte São Fidelis Taperoá TupinambáCachoeira Grande Santo André de Santarém Ituberá TupinambáAnaraú ou Baiano Maraú Maraú Tupinambá -

provavelmenteBarcelos Camamu Tupinambá -

provavelmenteRio de Contas N. Sra. dos Remédios do

Rio de ContasRio de Contas Gren

S.Miguel da Barra do rio deContas

Itacaré. GrenKamakã-Mongoió

Nova Almada dos Funis dorio de Contas.

Barra do rio Funis norio de Contas.

Kamakã-Mongoió.

Santa Rosa Margem do rio deContas - Jequié

Kiriri-Sapuyá

Grongogi Espírito Santo de Poções Poções Kamakã-MongoióAlmada N. Sra. da Conceição dos

Índios GrenAlmada. Gren

Nova de S. José doBoqueirão da Cachoeira daAlmada.

Kamakã-Mongoió

Salgado Barra do Salgado Itapé Kamakã- Mongoió

Colônia São Pedro de Alcântara ouFerradas

Ferradas Kamakã – MongoióGren

Caramuru- Paraguaçu Pau-Brasil, Camacã eItajú do Colônia

Pataxó, Botocudos,Tupinikin, Kamakã-Mongoió, Tupinambá,Kiriri-Sapuyá e Baenã.

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Cururupe Cocos ¼ de légua de Olivença TupinikinKamakã-MongoióTupinambá

Nossa Senhora da Escadade Olivença

Olivença Tupinikin, Botocudos/Gren,Kamakã-MongoióTupinambá

Pardo. Barra do Catolé Foz do Catolé no Pardo Kamakã-MongoióPataxó e Botocudos

Lagoa do rio Pardo foz do rio Jibóia PataxóSanto Antônio da Cruz foz do rio Vereda

InhobimPataxó Kamakã-Mongoió

Cachimbo foz do rio VerrugaItambé

PataxóKamakã-Mongoió

Catolé foz do rio CatolezinhoItapetinga

Kamakã-Mongoió

Salto do rio Pardo foz do rio do NadoAngelim

Kamakã-MongoióBotocudos ou Pataxó.

Salsa Quartel do rio Salsa,Canavieiras

BotocudosMonoxó/Mapoxó/Moxotó/Makaxã/ Manaxó

Uma Serra dos Boitacaras ouGoitacaras

Pataxó