A Correção Como Estratégia de Reformulação Textual

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1308 SIMPÓSIO 28 GRAMÁTICA, DISCURSO E ENUNCIAÇÃO Este simpósio tem interesse na discussão de resultados de pesquisas que tratem da relação entre Gramática, Discurso e Enunciação. Um pressuposto natural desse interesse é a necessidade da consideração da língua em uso efetivo, com ênfase na observação da relação entre a gramática e a construção de sentidos e efeitos no quadro mais amplo do discurso e da enunciação. Assumindo que a diversidade de uso da linguagem está associada à diversidade das práticas sociais, buscamos identificar correlações entre forma e função, colocando em evidência o condicionamento da língua pelos propósitos de quem enuncia e por um conjunto de informações de toda ordem disponíveis no momento da interação verbal. Na análise, as formas não devem ser vistas como meros traços, itens ou construções, mas consideradas em relação aos processos de que participam (referenciação, predicação, junção, modalização), de natureza dinâmica, multifuncional e estratégica na construção dos sentidos (NOGUEIRA, 2004).São bem-vindas as propostas que, com esse pressuposto, se voltem para a descrição e análise linguística com orientação teórica em alguma abordagem baseada no uso, que destaque o papel do contexto em seus aspectos sociais, cognitivos, interacionais. COORDENAÇÃO Márcia Teixeira Nogueira Universidade Federal do Ceará [email protected] Maria Auxiliadora Ferreira Lima Universidade Federal do Piauí [email protected]

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lingusitica funcional

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    SIMPSIO 28

    GRAMTICA, DISCURSO E ENUNCIAO

    Este simpsio tem interesse na discusso de resultados de pesquisas que tratem da relao

    entre Gramtica, Discurso e Enunciao. Um pressuposto natural desse interesse a

    necessidade da considerao da lngua em uso efetivo, com nfase na observao da relao

    entre a gramtica e a construo de sentidos e efeitos no quadro mais amplo do discurso e da

    enunciao. Assumindo que a diversidade de uso da linguagem est associada diversidade

    das prticas sociais, buscamos identificar correlaes entre forma e funo, colocando em

    evidncia o condicionamento da lngua pelos propsitos de quem enuncia e por um conjunto

    de informaes de toda ordem disponveis no momento da interao verbal. Na anlise, as

    formas no devem ser vistas como meros traos, itens ou construes, mas consideradas em

    relao aos processos de que participam (referenciao, predicao, juno, modalizao), de

    natureza dinmica, multifuncional e estratgica na construo dos sentidos (NOGUEIRA,

    2004).So bem-vindas as propostas que, com esse pressuposto, se voltem para a descrio e

    anlise lingustica com orientao terica em alguma abordagem baseada no uso, que

    destaque o papel do contexto em seus aspectos sociais, cognitivos, interacionais.

    COORDENAO

    Mrcia Teixeira Nogueira

    Universidade Federal do Cear

    [email protected]

    Maria Auxiliadora Ferreira Lima

    Universidade Federal do Piau

    [email protected]

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    A CORREO COMO ESTRATGIA DE REFORMULAO TEXTUAL

    NO DISCURSO PARLAMENTAR

    Maria Rodrigues de OLIVEIRA (PUC-SP)527

    Resumo: Embasado em pesquisas voltadas aos estudos do texto e do contexto bem como dos

    procedimentos de reformulao textual com destaque para a correo e em manuais de retextualizao de casas legislativas, este artigo tem o objetivo de discutir as correes de

    discursos parlamentares provocadas por interlocutores em textos orais e sua representao e

    seus efeitos nos discursos retextualizados.

    Palavras-chave: Reformulao textual. Correo. Discurso parlamentar.

    1. Consideraes iniciais

    A correo um recurso bastante usado nos discursos parlamentares, seja para o

    simples ajuste de palavras ou de expresses seja para a substituio de informaes incorretas.

    H, porm, um tipo especial de correo que se destaca nesses discursos, que aquela

    provocada por terceiros e autorizada por um outro (o presidente da sesso). Essa correo,

    cujo objetivo principal o apagamento, no texto escrito, de termos considerados ofensivos,

    acaba no cumprindo esse papel, j que, na verso escrita, restam marcas que denunciam os

    atos corretivos. Alm disso, os pedidos de correo nesse contexto nem sempre so atendidos,

    pois h ocasies em que o presidente no autoriza a mudana ou, ento, o orador solicita que

    o termo seja mantido no texto escrito na forma como foi pronunciado. Nesse caso, observa-se

    o prenncio de um conflito que pode tomar rumos inesperados, como a exacerbao da ofensa

    ou at mesmo questionamentos no mbito judicial. Coloca-se, assim, a seguinte questo: As

    correes solicitadas no discurso oral cumprem o papel corretivo desejado quando

    representadas no texto escrito?

    Este trabalho tem a finalidade de responder a essa questo e, para tanto, analisaremos

    um discurso proferido na Cmara dos Deputados na 82 Sesso Ordinria da Cmara dos

    Deputados, realizada em 27 de abril de 2009. Assim, este artigo ser composto, alm destas

    consideraes iniciais e das consideraes finais, de trs partes: na primeira, apresentaremos

    consideraes tericas acerca do texto e do contexto; na segunda, trataremos do tema

    reformulao textual; na terceira, discutiremos a forma com que so representadas as

    correes objeto deste artigo no texto escrito e seus efeitos, tendo em vista a diferena entre

    os contextos da oralidade e da escrita.

    2. Algumas consideraes tericas sobre texto e contexto

    1.1 O texto e o contexto na fala e na escrita

    A Lingustica Textual, a partir de sua segunda fase (dcada de 70 do sculo XX),

    como afirma Jubran (2009), pautando-se pela concepo de linguagem como interao social,

    passou a ver o texto como uma unidade de comunicao, levando em conta a pessoa a quem

    nos dirigimos, a situao em que estamos e o assunto de que tratamos. Esses so fatores pragmticos, isto , fatores ligados ao contexto no qual se d o ato de comunicao, que

    527

    Pontifcia Universidade de So Paulo (Programa de Estudos Ps-Graduados em Lngua Portuguesa), So

    Paulo, Brasil. E-mail: [email protected].

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    interferem no modo como usamos a linguagem para interagirmos uns com os outros (2009, p. 3). Ainda de acordo com a autora, h situaes que nos colocam um ritual que estabelece

    normas a serem seguidas nas relaes entre os participantes de um ato comunicativo e

    algumas dessas situaes so significativas tanto para a produo quanto para a compreenso

    de um texto.

    Nos primrdios das pesquisas sobre o texto, na fase da anlise transfrstica, o contexto

    era visto apenas como o entorno verbal. Koch & Elias (2006) assinalam que a evoluo desse

    ponto de vista partiu dos estudos da Pragmtica e que, a partir desse momento, o contexto

    passou a englobar, alm do co-texto, a situao de interao imediata, a situao mediata e o

    contexto cognitivo dos interlocutores, sendo que esse ltimo diz respeito a todos os tipos de

    conhecimentos arquivados na memria dos atores sociais, mobilizados por ocasio do

    intercmbio verbal. Para essas autoras, um estudo do texto sem a considerao do contexto

    altamente insuficiente pelo fato de certos enunciados serem ambguos e demandarem ateno

    a aspectos contextuais para a desambiguizao.

    O contexto essencial para a formao de sentidos e abrange uma srie de aspectos

    que envolvem processos interacionais, como atesta Marcuschi (2003b) ao informar que os

    sentidos e as respectivas formas de organizao lingustica dos textos se do no uso da lngua,

    como atividade situada, tanto no caso da fala como da escrita. Em ambos os casos, a

    contextualizao necessria para a produo e a recepo, ou seja, para o funcionamento

    pleno da lngua.

    Para que a lngua funcione plenamente, o conhecimento partilhado uma das chaves

    para a construo de sentidos pelos participantes de um evento comunicativo, porm, aspectos

    subjetivos podem influenciar nesse processo devido aos modelos mentais dos interlocutores,

    acarretando entendimentos equivocados. Desse modo, conforme van Dijk (2012), embora na

    maioria das formas de discurso entre membros de uma mesma comunidade os modelos

    mentais sejam suficientemente semelhantes para garantir o sucesso da comunicao, esses

    modelos incorporam necessariamente elementos pessoais que tornam nicas todas as

    produes e, portanto, possibilitam mal-entendidos mesmo quando h muitos elementos

    socialmente compartilhados.

    2.1. O contexto no discurso parlamentar

    O parlamento um cenrio tpico de interao que envolve conhecimentos particulares

    e partilhados na discusso de tpicos variados, sob diversos pontos de vista. Nesse contexto,

    os domnios discursivos so vrios e os conhecimentos so mltiplos, mas isso no impede

    que os oradores se expressem e se compreendam. De acordo com van Dijk (2001), os

    parlamentares compartilham grande parte de seus conhecimentos e crenas sobre os contextos

    que constroem e, alm disso, sabem como os outros parlamentares definem a situao em

    curso em termos de seus prprios modelos mentais.

    O contexto muitas vezes leva os parlamentares a agirem de forma diferente daquela

    que agiriam fora do plenrio, pois so presos a regras partidrias e regimentais que os

    obrigam a ajustar seus comportamentos. Como afirma van Dijk, mesmo que os contextos

    sejam, por definio, pessoais e nicos, comprovado que tambm tm dimenses sociais e

    polticas. Assim, os parlamentares sabem que os outros polticos se apresentam como

    membros de algum partido e, por conseguinte, como correligionrios ou adversrios polticos. Esse conhecimento, representado no modelo mental chamado contexto,

    tambm pode estar ritualmente expresso ou formulado como nas situaes

    em que, na Cmara dos Comuns britnica528

    , os parlamentares do mesmo

    528

    Embora o autor se refira ao contexto da Cmara dos Comuns britnica, as caractersticas contextuais dos atos

    parlamentares mencionadas por ele so comuns na maioria das Casas Legislativas, inclusive nas brasileiras.

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    partido dirigem-se uns aos outros com o vocativo meu prezado amigo, ainda que em outras situaes sociais possam ser inimigos implacveis

    (2001, traduo nossa).

    Alguns fatores que conduzem os parlamentares quando no exerccio da palavra no parlamento a comportamentos padronizados so decorrentes de orientaes partidrias e de normas regimentais, conforme se observa no Artigo 73 do Regimento Interno da Cmara dos

    Deputados529

    que, no Inciso X, estabelece a quem o deputado deve se dirigir em sua fala e, no

    inciso XI, cuida da forma de tratamento que deve ser usada entre os pares no plenrio: X o Deputado, ao falar, dirigir a palavra ao Presidente, ou aos Deputados de modo geral;

    XI referindo-se, em discurso, a colega, o Deputado dever fazer preceder o seu nome do tratamento de Senhor ou de Deputado; quando a ele se dirigir, o

    Deputado dar-lhe- o tratamento de Excelncia;

    O termo discurso parlamentar definido pelo glossrio da Cmara dos Deputados530

    como pronunciamento pblico de parlamentar na tribuna da Casa legislativa sobre assunto determinado. Nessa definio, esto implcitos o tpico (assunto determinado), a situao (pronunciamento pblico), os papis dos participantes (parlamentar) e o meio do discurso

    (tribuna da Casa legislativa). Esses quatro itens devem ser respeitados para o bom andamento

    dos trabalhos; porm, no so raras as oportunidades em que se observam desrespeito a esses

    itens, acarretando protestos entre os pares e advertncias do presidente da sesso.

    3. Reformulao textual

    O texto, tanto na modalidade oral quanto na escrita, admite ou mesmo exige

    reformulaes no decorrer de sua construo, com as estratgias prprias de cada modalidade.

    Nesse sentido, Hilgert (2003) observa que a inteno comunicativa construda na e pela

    formulao e, desse modo, o planejamento de uma atividade comunicativa s se completa

    depois de concludo o enunciado. O autor ressalta que precisamente essa preocupao

    simultnea com o dizer e com o que dizer que deixa evidente, no texto falado, uma srie de

    marcas responsveis pela caracterizao especfica de sua formulao.

    Nas marcas indicadas por Hilgert, incluem-se procedimentos de reformulao como a

    repetio, a parfrase e a correo. Desses trs processos, devido peculiaridade de seu uso

    no discurso parlamentar e forma de sua concretizao no texto falado e no texto escrito,

    interessa-nos a correo. Sendo assim, passaremos a uma reflexo sobre esse tipo de

    reformulao textual nas duas modalidades da lngua.

    3.1. A correo no texto oral

    Correo, conforme Barros (2003), um procedimento de reelaborao do discurso

    que visa a consertar seus erros, os quais devem ser entendidos como uma escolha do falante j

    posta no discurso que, por razes diversas, ele e/ou seu interlocutor consideram inadequada.

    Leite & Peruchi (2003), na mesma linha de Barros, afirmam que correo uma reelaborao

    do discurso que suspende temporariamente o andamento da frase para consertar formulaes

    consideradas inadequadas pelo falante ou por seu interlocutor. Alm disso, as autoras afirmam

    que, nesse tipo de reformulao, o falante anula, total ou parcialmente, a formulao anterior,

    com a finalidade de garantir a boa compreenso entre os participantes da conversao.

    As correes podem ser de responsabilidade do orador, do interlocutor ou de ambos ao

    529

    Disponvel em: . Acesso em: 17 jun. 2013. 530

    Disponvel em: . Acesso em 10 jun. 2013.

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    mesmo tempo. Desse modo, Marcuschi (2003a), fundamentado nos estudos de Schegloff,

    Jefferson e Sacks (1977)531

    , apresenta os seguintes tipos de correo: autocorreo

    auto-iniciada (feita pelo falante logo aps a falha); autocorreo iniciada pelo outro (feita

    pelo falante, mas estimulada pelo interlocutor); correo pelo outro e auto-iniciada (o falante

    inicia a correo, mas quem a faz o parceiro); correo feita pelo outro e iniciada pelo

    outro (o falante comete a falha e quem a corrige interlocutor). Quando a correo de

    iniciativa do interlocutor, ela nem sempre bem vinda, como se observa, com frequncia, em

    discursos parlamentares. A esse respeito, Aquino (1997) salienta que a hetero-correo pode

    se colocar como elemento promotor de conflito, pois os participantes podem no aceitar a

    correo ou ela pode no ser adequada.

    Sobre as funes da correo, Fvero et al (1999) postulam que esse tipo de

    reformulao textual tem a funo geral de carter interacional no que diz respeito busca de

    cooperao, intercompreenso e ao estabelecimento de relaes de envolvimento entre os

    interlocutores. Jubran (2009), por seu turno, apresenta, como funes da correo, o ajuste de

    palavras s informaes que esto sendo transmitidas e a substituio de uma informao

    dada por outra, no caso de a informao no corresponder verdade dos fatos referidos.

    3.2. A correo no texto escrito

    Nessa modalidade de texto, a correo apresenta marcas diferentes daquelas do texto

    oral. Tal diferena explica-se pelo contexto de produo das duas modalidades textuais,

    conforme ensina Barros (2003) ao afirmar que possvel, na escrita, reelaborar o texto sem

    deixar marcas, ao passo que, na fala, isso no acontece, pois elaborao e produo coincidem

    no eixo temporal.

    Apesar de infrequente a exposio de correes no texto escrito, h casos em que isso

    ocorre, como nas anotaes pessoais e nos trabalhos escolares, por exemplo. Como afirmam

    Dionsio & Hoffnagel (2007), em algumas situaes de prtica de escrita, deixamos as nossas

    correes mostra. As autoras alertam que, apesar de marcas de correo em documentos

    poderem invalid-los, as correes podem ser legalmente aceitas se atestadas pelo emissor,

    em outro espao do documento, sem rasura e com assinatura no local da alterao. A seguir, o

    exemplo apresentado pelas autoras:

    A correo no diploma assim explicada por Dionsio & Hoffnagel: No verso de um diploma de concluso do curso de Doutorado em Letras,

    exemplo (15), a correo feita No anverso onde se l Campina Grande PB, leia-se Paraba, antecedida do termo Apostila (acrscimo feito em diploma

    ou ttulo oficial para efeito legal) e seguida da data em que a correo foi

    feita (Recife, 04 de julho de 2001), alm de contar com o visto e a assinatura

    do chefe do Servio de Registro de Diplomas (2007, p. 112).

    531

    SCHEGLOFF, E.; JEFFERSON, G.; SACKS, H. The Preference for Self-correction in the Organization of

    Repair in Conversation. Language, 1977, 55(2):361-382.

  • 1313

    Um exemplo semelhante ao apresentado pelas autoras, com grande repercusso nos

    meios de comunicao, a correo de erros de transcrio de gravao de escuta telefnica

    na qual a palavra raciocinar foi transcrita por assassinar, alm de equvoco na identificao

    de um dos falantes. Como se trata de documento oficial assinado e inserido em processo, a

    correo aparece na forma de corrigenta, conforme se observa no recorte da transcrio532

    :

    No contexto legislativo, podemos considerar as emendas, cujo objetivo a alterao

    de projetos de lei em andamento ou de leis j promulgadas ou sancionadas, como ilustrativas

    de correo a posteriori em textos escritos. A definio que encontramos para emenda no

    Glossrio de termos legislativos da Cmara dos Deputados corrobora nossa afirmao:

    Proposio apresentada como acessria de outra, destinada a alterar a forma ou contedo da principal, podendo ser supressiva, aglutinativa, substitutiva, modificativa ou aditiva.533 Os exemplos mais populares desse tipo de correo so as emendas Constituio (ECs),

    apresentadas por meio de Projetos de Emenda Constituio (PECs), as quais, quando

    aprovadas, tm efeito corretor sobre a Carta Magna. A ttulo de ilustrao, transcrevemos o

    artigo 6 da Constituio Federal534

    , que foi alterado pelas Emendas 26 de 2000 e 64 de 2010.

    Artigo original: Art. 6 So direitos sociais a educao, a sade, o trabalho, o lazer, a segurana, a previdncia social, a proteo maternidade e infncia, a assistncia aos

    desamparados, na forma desta Constituio. Artigo emendado: Art. 6 So direitos sociais a educao, a sade, a alimentao, o

    trabalho, a moradia, o lazer, a segurana, a previdncia social, a proteo maternidade e

    infncia, a assistncia aos desamparados, na forma desta Constituio. No artigo emendado, foram includos os itens alimentao e moradia. Essas alteraes

    so justificadas no texto constitucional, logo aps o fim do artigo, com a seguinte informao:

    (Artigo com redao dada pela Emenda Constitucional n 26, de 2000) e (Artigo com nova redao dada pela Emenda Constitucional n 64, de 2010).

    3.3. A correo no discurso parlamentar: uma anlise ilustrativa

    A correo no discurso parlamentar, em se tratando daqueles proferidos na tribuna do

    parlamento e transcritos para insero nos anais das casas legislativas, alm das caractersticas

    descritas pelos autores para as modalidades oral e escrita, apresenta marcas prprias, algumas

    532

    Disponvel em: . Acesso em: 12 jun. 2013. 533

    Disponvel em: . Acesso em: 10 jun. 2013. 534

    Disponvel em: < http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao>. Acesso em 12 jun. 2013.

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    das quais sero apresentadas a seguir.

    O texto selecionado para demonstrao um extrato da 82 Sesso Ordinria da

    Cmara dos Deputados, realizada em 27 de abril de 2009535

    . O tpico de discusso um veto

    aposto pelo ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso ao Projeto de Lei n 1.745/99, de

    autoria do ex-Deputado Paulo de Almeida, que trata de complementao de aposentadoria dos

    empregados da Empresa Brasileira de Correios e Telgrafos. O texto est disposto em duas

    colunas numeradas: na primeira, encontra-se o discurso transcrito pela pesquisadora (TP), sem

    alteraes; na segunda, est o discurso publicado pela Cmara dos Deputados (PC), com as

    alteraes solicitadas. Os destaques em itlico so do original e aqueles em negrito so da

    pesquisadora, para facilitar a localizao dos itens comentados.

    Transcrio da pesquisadora (TP) Publicao da Cmara (PC)

    1 2 3 4 5 6 7 8 9

    10 11 12 13 14

    15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27 28 29 30

    31 32 33 34 35 36

    O SR. CHICO LOPES (Bloco/PCdoB-CE.

    Pela ordem. Sem reviso do orador.) Senhor Presidente, Chico Lopes, do

    PCdoB, e sua bancada vai reparar essa

    estupidez feita pelo Fernando Henrique

    Cardoso com esse jovem que j deram a

    sua contribuio e poder passar fome

    depois de aposentado. (Palmas) O SR. PROFESSOR RUY PAULETTI

    (PSDB-RS. Questo de ordem. Sem reviso

    do orador.) O Professor... o Deputado Chico Lopes chamou o ex-Presidente de

    estpido. Esse deve ser... deve se retratar e

    retirar dos Anais desta Casa as palavras

    ofensivas ao Senhor Presidente da

    Repblica.

    O SR. CHICO LOPES (Bloco/PCdoB-CE.

    Pela ordem. Sem reviso do orador.) Deputado, o seguinte: a Lngua

    Portuguesa de uma riqueza, que cada

    um d a sua interpretao como quer. Eu

    no o chamei de estpido. Nem ele nem

    ningum porque eu fui educado para

    respeitar autoridade. O ato dele que foi

    uma estupidez que est a o resultado,

    mas se isso motivo de uma divergncia

    e criar dificuldade para o veto, peo que

    retire, mas no queira defender um ato

    no escorrego de uma palavra, que

    sempre isso: eles foram os responsvel

    pelos estado mnimo e de prejudicar os

    funcionrio, mas eu peo para retirar a

    palavra, mas eu no disse isso que o

    Deputado quer botar na minha boca.

    O SR. PRESIDENTE (Francisco

    Rodrigues) - Determino a retirada da

    expresso. Fica deferido inclusive a

    solicitao do nobre Deputado.

    1 2 3 4 5 6 7 8 9

    10 11 12 13 14 15 16 17 18

    19 20 21 22 23 24 25 26 27 28

    29 30 31 32 33 34 35 36 37

    O SR. CHICO LOPES (Bloco/PCdoB-CE.

    Pela ordem. Sem reviso do orador.) Sr. Presidente, o Deputado Chico Lopes, do

    PCdoB, e a bancada do partido nesta Casa

    vo reparar o que fez o ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso com esses que

    j deram sua contribuio ao Pas e que

    podero passar fome depois de aposentados.

    (Palmas.) (Texto escoimado de expresso, conforme

    art. 17, inciso V, alnea b, do Regimento

    Interno.)

    O SR. PROFESSOR RUY PAULETTI

    (PSDB-RS. Questo de ordem. Sem reviso

    do orador.) O professor e Deputado Chico Lopes deve se retratar e retirar dos Anais

    desta Casa as palavras ofensivas a um ex-

    Presidente da Repblica. [...]

    (Texto escoimado de expresso, conforme

    art. 17, inciso V, alnea "b", do Regimento

    Interno.) O SR. CHICO LOPES (Bloco/PCdoB-CE.

    Pela ordem. Sem reviso do orador.) Sr. Deputado, a Lngua Portuguesa tem

    grande riqueza, e cada um interpreta as

    palavras como quer. Mas, se isso motivo

    de divergncia e pode criar dificuldades

    para a apreciao do veto, peo que se

    retire a expresso. No queira V.Exa.

    defender um ato no escorrego de uma

    palavra. Eles foram os responsveis pelo

    Estado mnimo e por prejudicar os

    funcionrios. Peo Mesa que retire a

    expresso. Mas no proferi a palavra que

    o Deputado quer pr na minha boca.

    (Texto escoimado de expresso, conforme

    art. 17, inciso V, alnea b, do Regimento

    Interno.)

    535

    Disponvel em: .

    Acesso em 17 jun. 2013.

  • 1315

    38 39 40

    O SR. PRESIDENTE (Francisco Rodrigues)

    - Determino a retirada da expresso.

    Deferida a solicitao do nobre Deputado.

    Nesse trecho, fazendo-se um cotejo da transcrio da pesquisadora com a publicao

    da Cmara, observa-se que, em decorrncia do pedido de correo, foram efetuados os

    seguintes ajustes:

    1. Linhas 4-5/TP: o termo essa estupidez foi substitudo pela locuo pronominal o

    que, como se verifica na linha 5/PC;

    2. Linhas 12-13/TP: a expresso chamou o ex-Presidente de estpido foi eliminada,

    conforme se verifica na linha 16/PC;

    3. Linhas 20-24/TP: o segmento Eu no o chamei de estpido. Nem ele nem ningum,

    porque eu fui educado para respeitar autoridade. O ato dele que foi uma estupidez que est

    a o resultado foi eliminado, como se observa na linha 26/PC;

    4. Ao final das falas dos oradores, linhas 10-12/PC, 19-21/PC e 35-37/PC, consta a

    informao de que o texto sofreu alteraes abonadas pelo Regimento Interno da Casa: (Texto

    escoimado de expresso, conforme art. 17, inciso V, alnea b, do Regimento Interno).536

    Na primeira correo, foi usada a estratgia de substituio, com a troca de essa

    estupidez pela locuo pronominal o que, acarretando a indefinio do dito e no seu

    apagamento, conforme pretendia o solicitante da correo. A segunda e a terceira correes

    so decorrentes da primeira. A estratgia utilizada nos dois casos foi a eliminao de trechos

    das falas dos oradores, mas a parte remanescente deixa claro que houve palavras ofensivas,

    quem as proferiu e a quem foram direcionadas.

    A fala do presidente da sesso (linhas 38-40/PC), nico autorizado regimentalmente

    para determinar correes em discursos proferidos no plenrio, abona as alteraes feitas na

    transcrio, mas deixa marcas da existncia de expresses no publicveis nos Anais da Casa.

    Finalmente, cabe observar que a informao (Texto escoimado de expresso, conforme

    art. 17, inciso V, alnea b, do Regimento Interno), usada como pista da responsabilidade pelas

    alteraes efetuadas, contribui para a demonstrao de que o texto no corresponde, em sua

    totalidade, ao dito na tribuna.

    4. Consideraes finais

    No desenvolvimento deste artigo, buscamos respostas para a seguinte questo: As

    correes solicitadas no discurso oral cumprem o papel corretivo desejado quando

    representadas no texto escrito?

    Vimos, nas consideraes tericas, que o contexto tem influncia tanto na produo

    quanto na recepo do texto e que ele envolve aspectos subjetivos que podem interferir nesse

    processo devido aos modelos mentais dos interlocutores, possibilitando mal-entendidos. Esses

    aspectos sobressaem-se no discurso parlamentar, pois, nesse contexto destinado

    exclusivamente ao exerccio da palavra, encontram-se oradores que detm conhecimentos,

    ideologias e comportamentos variados, partilhados ou no.

    A correo, estratgia usada no discurso oral para ajuste da fala ao contexto de

    produo e de uso, pode ser de iniciativa tanto do orador quanto de terceiros e, quando ela

    provocada pelo interlocutor, pode no ser bem recebida e provocar conflitos, como se observa

    em discursos parlamentares. No texto escrito, por sua vez, a correo tem aplicao

    diferenciada e tanto pode ser invisvel quanto aparente aos olhos do leitor. Um exemplo para

    536

    Art. 17. So atribuies do Presidente, alm das que esto expressas neste Regimento, ou decorram da

    natureza de suas funes e prerrogativas: [...] V - quanto s publicaes e divulgao: [...] b) no permitir a

    publicao de pronunciamento ou expresses atentatrias do decoro parlamentar.

  • 1316

    esse ltimo caso so as emendas a leis, como as emendas Constituio.

    No discurso parlamentar, observa-se preocupao dos oradores em impedir que termos

    considerados ofensivos fiquem registrados no texto escrito. Entretanto, apesar de efetuadas as

    correes solicitadas, restam marcas que revelam a presena de termos controversos

    proferidos no discurso, prejudicando o intuito da correo.

    Como resposta nossa questo, observamos que as correes objeto deste artigo,

    quando aplicadas ao texto escrito que analisamos, deixam marcas que despertam mais a

    ateno do leitor que se o termo corrigido fosse mantido no texto tal como proferido. Sendo

    assim, em vez de ter solicitado a retirada do termo, como usualmente ocorre no parlamento,

    caberia melhor a exigncia de uma retratao.

    Referncias bibliogrficas

    AQUINO, Zilda Gaspar Oliveira de. Conversao e conflito: um estudo das estratgias

    discursivas em interaes polmicas. 1997, 367p. Tese (Doutorado em Semitica e

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  • 1317

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    So Paulo: Contexto, 2012.

  • 1318

    A SIGNIFICAO EM SEU PROCESSO DINMICO: ANLISE

    ENUNCIATIVA DO VERBO CORTAR EM PB

    Soraia Assis GARCIA (PG-UNIFESP537

    )

    Resumo: A proposta deste artigo apresentar resultados parciais da pesquisa sobre o

    processo de construo da significao em enunciados com o verbo cortar. As anlises

    partem da premissa de que a estabilizao semntica da unidade provisria e se desenha nas

    interaes com os contextos evocados. O referencial terico adotado prev que a variabilidade

    subjacente unidade possui uma regularidade, e que os elementos do enunciado so

    convocados pelo verbo e delimitam seus modos de funcionamento. Os resultados at ento

    obtidos indicam que cortar tende a marcar uma desestabilizao da relao entre elementos

    antes apresentados de modo linear ou integrados.

    Palavras-chave: Lingustica da Enunciao. Identidade e variao semnticas. Verbo cortar.

    1. Introduo

    A Teoria das Operaes Enunciativas (TOE), posicionamento terico adotado neste

    trabalho e inserido no campo da Lingustica da Enunciao, parte do princpio de que no h

    contedos atribudos s unidades lingusticas fora da lngua em funcionamento. H, entre as

    unidades lingusticas e seu contexto (entendido, aqui, como o material verbal constitutivo do

    enunciado produzido) uma relao dialtica, na qual o contexto , ao mesmo tempo,

    determinado pelo funcionamento enunciativo da unidade lingustica e seu determinante.

    Isso no significa que a unidade lingustica deixe de apresentar materialidade

    semntica. Essa materialidade simplesmente no da ordem de traos de contedos. A

    identidade semntica de uma unidade lexical deve ser buscada no movimento atravs do qual

    ela evoca contextos que, construindo enunciados no quaisquer, lhe estabilizam um valor

    semntico (o que se conhece por sentido). Estes contextos, que s conferem um sentido x ou y

    ao enunciado por conta dos elementos da sequncia enunciativa, so, portanto, ao mesmo

    tempo, externos a ela e dela integrantes (ROMERO, 2010). o modo como a unidade abarca

    e delimita seus prprios contextos que define a natureza de sua identidade, que abstrata e

    descrita por uma formalizao conceitual denominada forma esquemtica.

    Sob essa tica, no h sentido em se falar em polissemia, a menos que se desconstrua

    sua definio. Melhor do que dizer que uma palavra polissmica seria dizer que

    polissmicas so as relaes entre os elementos do enunciado e entre ele e seu contexto.

    Romper com a lgica de que as palavras tm significados imanentes requer uma nova

    postura ante aos fenmenos lingusticos. Um verbo, ento, possuiria um sentido? O que dizer

    dos sentidos que lhe so atribudos na apresentao de seus variados empregos, como fazem

    os dicionrios?

    Acerca dessas questes, Romero incisiva: Ao refutarmos qualquer tipo de contedo inerente, postulamos, consequentemente, uma unidade lingustica cujo mago de natureza

    varivel e definido pelo papel especfico que desempenha nas interaes das quais participa.. (2010, p.480-481).

    A construo do sentido entendida sob diferentes modelos semnticos, os quais,

    ainda que se diferenciem quanto ao modo de analisar as unidades lingusticas e suas variaes

    537

    Mestranda da Universidade Federal de So Paulo (SP), Brasil. E-mail: [email protected].

  • 1319

    de sentido, se aproximam quanto concepo subjacente de que haja nelas um valor

    semntico de base, cabendo ao contexto a funo de selecionar, entre os valores semnticos

    que lhe so inerentes, o mais adequado situao representada pelo enunciado. Por outro

    lado, a polissemia que permeia a lngua vista por algumas correntes pragmticas como um

    fenmeno inteiramente influenciado pelo contexto extralingustico, caracterizao que remete

    o sentido a algo externo ao signo.

    O que diferencia a TOE dessas concepes , em primeira instncia, a recusa em se

    atribuir um contedo semntico inerente a qualquer unidade da lngua, seja ela lexical ou

    gramatical. A no dicotomizao contexto-enunciado outro ponto que mostra nosso

    posicionamento diverso de outras teorias. A nosso ver, inerente unidade a variao, e a

    identidade semntica que buscamos est no desenrolar do processo enunciativo, nas

    interaes entre as unidades lingusticas e os seus respectivos contextos, que no deixa de ser

    por elas desencadeadas.

    A concepo culioliana da construo de sentido possui uma abordagem

    construtivista538, segundo a qual o contexto ou a situao no exterior ao enunciado, mas

    gerado (a) pelo prprio enunciado (FRANCKEL, 2011, p.109). Assim, ainda no dizer de Franckel, o contexto no constitui um conjunto de dados externos a uma sequncia, sendo a prpria forma da sequncia a responsvel por determinar as condies de sua constituio em

    um enunciado contextualizado. (2011, p. 109). Voltando questo da identidade semntica, ao falarmos no papel especfico que

    desempenha nas interaes das quais participa, percebemos que o nico modo de fazer com

    que a dinmica enunciativa invariante (ou forma esquemtica) da unidade lingustica seja

    revelada ver como ela apreende os termos com os quais se constri e por eles apreendida.

    Desconstruir esse funcionamento, descortinando essas apreenses, ser o caminho percorrido

    na anlise do verbo cortar, nos contextos nos quais se insere.

    Nosso propsito, ao confrontar enunciados em que cortar esteja presente, o de

    buscar regularidades de funcionamento, procurando entender quais as propriedades

    manifestadas pelos elementos com que o verbo se combina e de que modo essas propriedades

    evidenciam sua natureza enunciativa.

    Atingida essa dinmica enunciativa invariante, ser possvel propor uma

    sistematizao do funcionamento, na lngua integrada ao uso, dessa unidade lexical.

    Este trabalho tem, portanto, como objetivo geral analisar e descrever os modos de

    funcionamento do verbo cortar em seus diferentes empregos (contextos de uso), bem como

    buscar compreender os processos pelos quais se constri sua identidade semntica.

    A escolha do verbo cortar como unidade lexical a ser analisada se deu, em primeiro

    lugar, pela possibilidade de ampliao do alcance de estudos j em andamento539

    acerca de

    outras unidades que podem substitu-la em determinados contextos de uso, e, em segundo

    lugar, pelo fato de muitas de suas construes enunciativas serem de uso frequente na

    linguagem cotidiana, o que pode facilitar o desenvolvimento de eventuais propostas

    direcionadas rea da semntica lexical em sala de aula540

    .

    Como objetivos especficos, propomo-nos, nesta etapa de nosso trabalho, a:

    Apresentar um levantamento de enunciados nos quais se percebem as possibilidades de variao semntica do verbo cortar;

    538

    O termo construtivista, aqui, nenhuma relao tem com os sentidos que lhe so conferidos no campo da

    Pedagogia. 539

    Estudos conduzidos por integrantes do Grupo Gramtica operatria e enunciao, coordenado por nossa

    orientadora, Prof Mrcia Romero. 540

    Como professora do Ensino Fundamental II e Ensino Mdio, questes referentes ao campo pedaggico em

    muito nos interessam.

  • 1320

    Analisar as interrelaes travadas entre essa unidade lexical e os outros termos dos enunciados, de modo a construir uma hiptese de sua forma esquemtica, a partir das

    regularidades observadas.

    2. Procedimentos Metodolgicos

    O corpus, constitudo por levantamento de enunciados na web541

    e anlise de fontes

    lexicogrficas, tem como metodologia de anlise o processo de reformulao de enunciados

    como fundamento para elaboraes de glosa.

    Tal metodologia de reformulao consiste em desconstruir e reconstruir sequncias

    enunciativas por meio de uma observao minuciosa dos elementos lingusticos que as

    constituem.

    Observar minuciosamente uma sequncia enunciativa significa considerar cada unidade de uma sequncia em um contexto (o resto da sequncia), e mais amplamente, em um

    ambiente textual (FRANCKEL, 2011, p.107). Glosar as sequncias um caminho para que se perceba a dinmica enunciativa

    invariante do verbo e, assim, sua forma esquemtica, conceito que se inscreve em um modelo

    de representao de identidade semntica que se afasta de uma definio em termos de um

    valor semntico primeiro ou de base. Como j observamos, a forma esquemtica concebe a

    caracterizao da unidade por meio de um modo peculiar de funcionamento que abarca os

    prprios contextos nos quais ela se insere.

    Esse procedimento permite desvelar os traos que remetem aos esquemas de operao

    da ordem da linguagem sustentando os enunciados, evidenciando o que ou no generalizvel

    no modo de funcionamento do verbo cortar.

    Nas anlises que apresentaremos, as observaes se concentraram em alguns

    elementos lingusticos, como os complementos verbais, o sujeito da frase (cuja forma de

    apreenso nos interessou, sobretudo quanto construo intransitiva da unidade lexical

    estudada). Procuramos perceber que propriedades dessas unidades se destacavam em sua

    interao com o verbo cortar, de que maneira ele as mobilizava, sob que tica tais unidades

    poderiam ser interpretadas a partir dele.

    A perspectiva construtivista remete a uma considerao do sentido no como

    inesgotvel, mas como sempre negocivel. essa negociao de sentido travada na

    elaborao das glosas que permite delimitar o que invariante num enunciado. Uma das

    reformulaes que fizemos, a fim de trazer tona essa negociao de sentido, foi efetuar

    substituies no interior de alguns enunciados, como experimentar o efeito de um emprego

    transitivo numa sequncia em que o verbo cumpria um papel intransitivo (como no primeiro

    exemplo apresentado).

    Outra estratgia de reformulao, prevista nos procedimentos de glosa de enunciados,

    que utilizamos foi a substituio do verbo cortar por outros verbos, como forma de observar

    as mudanas de apreenso de outros elementos do sintagma que tal mudana ocasionou.

    Para demonstrarmos a aplicao da perspectiva da Teoria das Operaes Enunciativas

    na prtica, passemos, ento, aos resultados parciais a que chegamos com nossas anlises, as

    quais apresentaremos na prxima seo.

    3. Funcionamento enunciativo do verbo cortar

    541

    Para este artigo, foram selecionados 16 enunciados, dentre os 50 que compem o corpus neste estgio de

    pesquisa. O levantamento partiu de pesquisa, em sites de busca, das ocorrncias de sequncias no estabilizadas

    semanticamente, tais como Ele cortou; Cortou-me; Cortei. A partir dos empregos listados, selecionamos os mais

    frequentes no uso cotidiano, com exceo da sequncia O rio cortou, selecionada pela pouco comum forma

    intransitiva do verbo.

  • 1321

    A unidade lexical em questo parece desestabilizar, de diferentes modos, uma relao

    entre elementos que poderiam ser apresentados de modo linear (ou contnuo). Veremos de

    que modo o que, no presente estado da pesquisa, representamos por linear ou contnuo e de

    que modo cortar, ao mesmo tempo em que evoca tais representaes, as desestabiliza.

    Cortar, do ponto de vista sinttico, costuma aparecer nos enunciados como verbo

    transitivo direto, embora se verifique sua forma intransitiva registrada em fontes

    lexicogrficas. Um dos significados do verbo cortar apresentado pelos dicionrios secar, em

    sequncias como O rio cortou. Embora nossa reflexo no parta da premissa de que haja um

    significado inerente ao verbo, o valor semntico registrado cumpre um papel em nossa

    anlise, pois, ainda que o enunciado em questo no nos fornea muitos dados empricos, ele

    nos d uma pista importante do que possa ser invariante em um de seus modos de

    funcionamento.

    Como o fluxo de um rio, h enunciados que apresentam uma linearidade que se (des)

    constri a partir da interao do verbo cortar com outras unidades lingusticas.

    A mesma invarincia parece acompanhar os movimentos de cortar em sequncias

    como esta:

    (1) Foi tanto o calor, que o rio cortou.

    interessante apontar a rara forma intransitiva do verbo cortar, que incide sobre o

    termo rio como o prprio curso das guas, o curso em si. Uma vez cortado o fluxo, i.e. sua

    essncia, o rio se debilita, mina, da o valor de secar, que se constri nesse movimento

    enunciativo.

    Reformulando o enunciado para O rio corta a rocha542

    , a forma transitiva do verbo

    incide sobre o termo a rocha ao apreend-lo como um conjunto de matrias orgnicas que

    compem a superfcie rocha. Cortada a linearidade desse conjunto, desestabiliza-se a rocha

    enquanto um todo compacto.

    Observemos, agora, o enunciado:

    (2) Kristen Stewart cortou o p 'gravemente' com cacos de vidro.

    Neste exemplo, o verbo cortar apreende o termo p sob a tica da pele que o constitui.

    Isso facilmente percebido se o compararmos com Ele quebrou o p, em que o termo p

    passa a ser apreendido como parte do corpo humano (ou como parte da estrutura que constitui

    o corpo humano). Assim, cortar o p remete diviso de uma unidade, visto que a pele a

    partir do qual p apreendido evoca um rgo inteirio, o tecido que recobre o corpo, mais

    especificamente, que recobre a estrutura ssea do p. Da, justamente, a incidncia do verbo

    cortar, em enunciados com tais complementos, evocar tomar ou levar pontos, que indica,

    justamente, a reconstituio da pele como unidade inteiria.

    Contextos envolvendo a ideia de linearidade tambm so convocados pelo

    verbo em enunciados como o que se segue:

    (3) Fernando Prass cortou o joelho e levar pontos.

    Assim como na sequncia cortar o p, joelho interpretado a partir de pele, e sobre

    a linearidade das clulas que compem essa membrana que o verbo incidir, interrompendo o

    encadeamento das camadas desse tecido.

    542

    O rio corta a rocha no por causa de sua fora, mas por causa de sua persistncia. - Jim Watkins. Disponvel

    em http://www.frasesnofacebook.com.br/frases-famosas/o-rio-corta-a-rocha-nao-por-causa-de-sua-forca-7187/

  • 1322

    Ampliando nosso raciocnio, podemos explorar mais um pouco o substantivo

    tecido, observando os movimentos que esto em jogo em enunciados como o que veremos:

    (4) O estilista cortou e costurou o tecido.

    Neste caso, tecido interpretado a partir do conjunto de fios que constri suas tramas,

    e o verbo incide sobre a linearidade dessa superfcie, que rompida. O contexto evocado pelo

    verbo de uma ruptura controlada.

    A fim de testar essa ltima afirmao, tomemos uma construo como Rasgou? No

    jogue fora! Remende: a ruptura da trama de um tecido que se rasga evoca a ideia de estrago, o

    que se evidencia pelo termo remendar como possibilidade de reconstruo.

    Substituindo o verbo cortar por mastigar, temos outro enunciado que revela um

    contexto diferente do evocado pelo verbo cortar na interao com tecido: Levei a tesoura

    junto pra faculdade pra cortar tecido e acabamos cortando plstico bolha com ela, depois

    disso s mastigou o tecido!

    Tais substituies conduzem associao de cortar a um movimento atravs do qual

    se interrompe uma linearidade, preservando os pontos de conexo dos fios da trama do tecido

    cortado.

    Tambm percebemos um contexto de linearidade evocado no prximo enunciado:

    (5) Marta corta palavra de Suplicy no Senado.

    Aqui, o termo palavra tomado enquanto cadeia sintagmtica, sobre a qual o verbo

    incide, interrompendo sua sequncia.

    Tomemos agora como objeto de anlise uma sequncia que apresenta um

    complemento bastante frequente para o verbo cortar:

    (6) Acusado de matar rapaz que cortou pipa condenado.

    Percebemos dois movimentos solicitados pela representao construda: num primeiro

    momento, o verbo cortar faz com que haja uma continuidade entre pipa e a pessoa que a

    empina. Essa continuidade representa-se pela prpria linha da pipa. Vale observar que, em

    cortar a pipa, no h a representao da pipa entendida sob a tica do papel a partir do qual

    ela feita; em um segundo momento, essa mesma continuidade, solicitada por seu

    funcionamento, deixa de se verificar, uma vez que cortar a pipa remete a uma representao

    em que pipa deixa de estar vinculada quele que a empina (a pipa pode, inclusive, plainar

    sozinha no ar).

    Outro exemplo em que podemos perceber a linearidade sendo convocada pelo verbo

    cortar o seguinte:

    (7) Cortou a luz do cortio pra expulsar os inquilinos.

    O termo luz interpretado como uma corrente eltrica cuja linearidade interrompida.

    O verbo cortar incide sobre o fluxo de partculas eletrizadas que compem essa corrente,

    desestabilizando sua ordenao.

    Focando nossa ateno no substantivo luz, consideremos o prximo enunciado:

    (8) O Forro Corta-Luz Bella Janela ideal para decorar a sala da sua casa.

  • 1323

    Neste caso, o termo luz apreendido como a luminosidade gerada pelos raios solares,

    e o verbo cortar incidir sobre essa luminosidade, evocando contextos em que a noo de

    barreira est envolvida. Como outro exemplo que envolve representaes de linearidade, apresentamos a

    sequncia

    (9) Tarsila Crusius, e demais apoiadores da iniciativa cortaram a fita dando

    abertura ao evento.

    O verbo cortar mobiliza fita enquanto um dispositivo de ordem abstrata, ou seja, fita

    no evoca a representao de um objeto em si, mas o ineditismo, o novo a ser inaugurado. O

    verbo, nessa sequncia, incide sobre o vnculo de proteo que a fita conferia ao evento,

    formando, com ele, uma unidade. A proteo, ao deixar de existir, faz com que o evento se

    manifeste.

    Num movimento diverso, em Eu cortei a fita crepe com a tesourinha, o verbo cortar

    mobiliza fita enquanto um dispositivo de ordem concreta, o objeto em si, incidindo sobre a

    linearidade de sua extenso.

    Passemos agora a outra sequncia, que traz um emprego muito comum do verbo

    cortar:

    (10) O ator (Edson Celulari), que atualmente interpreta o Felipe em "Guerra dos

    Sexos", cortou o cabelo em um salo de beleza em um shopping na Barra da Tijuca.

    Neste enunciado, o termo cabelo no representado como um conjunto de fios

    tomados um a um, mas enquanto um todo uniforme, uma mesma unidade que sofre uma

    modificao de alguma ordem (na forma ou em sua extenso). O que se apresentava sob uma

    dada uniformidade, passa, a partir do corte, a se apresentar separadamente daquela

    uniformidade que antes a constitua.

    Tal movimento enunciativo se percebe em enunciados como A docente pousou o

    baralho na mesa, e deslizou metade para o lado, cortando-o, em que as cartas que compem

    o baralho no so apreendidas como unidades; a ideia de parte se perde; o que visto, o

    baralho como algo inteirio. sobre o inteirio que atua cortar.

    Em nossas anlises sobre a unidade lexical em questo, a observao de seu

    funcionamento em enunciados cujo sentido considerado, pelas obras gramaticais, como

    conotativo ainda que discordemos dessa classificao mostrou-se bastante interessante, como poderemos atestar na sequncia que se segue:

    (11) A hora que eu vi o beb, me cortou o corao.

    O verbo, neste exemplo, faz com que corao seja interpretado a partir do fluxo

    sanguneo que posto em circulao por esse msculo, ao mesmo tempo em que mobiliza o

    substantivo enquanto o conjunto de emoes que ele representa. Cortado o fluxo dessas

    emoes, h a desestabilizao de uma linearidade que estava em curso.

    No enunciado em questo, a sequncia me cortou o corao se estabiliza com A hora

    em que eu vi o beb. O verbo pe assim em jogo o equilbrio e o caos que comporiam um

    conjunto de emoes. Corao, aqui, remeteria a um dispositivo de ordem sensorial.

    Como se pode notar, o fato de cortar, na interao com o termo corao, no

    apreend-lo, nesse enunciado, enquanto um dispositivo de ordem concreta (ou seja, corao,

    aqui, no interpretado como um rgo no qual se fez uma inciso) em nada afeta a

    invarincia que temos percebido em seu funcionamento. Isso refora nossa afirmao de que

  • 1324

    no h, na unidade, um sentido de base, o denotativo, e outro, decorrente dele, o conotativo. O

    que h um sentido instantneo, estabilizado fugazmente numa sequncia cujos elementos em

    interaes no quaisquer determinam tal configurao.

    No decorrer de nossas anlises, percebemos outros elementos postos em jogo quanto

    ao comportamento do verbo cortar, cujos exemplos apresentaremos a seguir.

    4. Outros movimentos enunciativos

    At o momento, apresentamos cortar como uma unidade que convoca uma relao de

    linearidade. Mostraremos agora que esse verbo pode tambm evocar outro tipo de relao, na

    qual esto envolvidos elementos que constituem um grupo, formando uma unidade. Pensemos

    na sequncia que vir:

    (12) Cortei o acar e o sal da alimentao.

    Os termos acar e sal so mobilizados pelo verbo como alimentos integrantes de um

    conjunto, sem que a prpria particularidade de cada elemento que o integra seja levada em

    conta (da o emprego do prprio termo alimentao). O emprego de cortar faz com que esses

    elementos, antes integrados ao conjunto e que dele no mais se distinguiam, deixem de fazer

    parte dele.

    Dando continuidade a esse raciocnio, analisemos o enunciado a seguir:

    (13) Ela cortou a pinga dele. Hoje ele no bebe nem sequer refrigerante.

    Neste caso, o termo pinga interpretado a partir de um amplo conjunto de bebidas

    alcolicas, que ela representa genericamente. O verbo incide sobre esse conjunto genrico,

    marcando sua dissoluo.

    Vejamos de que forma cortar desestabiliza a relao de integrao dos elementos que

    interagem no enunciado que veremos:

    (14) Beyonc conta que caminhou e cortou calorias para voltar antiga forma.

    O substantivo calorias interpretado enquanto uma quantidade, um valor atribudo a

    cada um dos elementos do conjunto de alimentos que constituem uma dieta. O verbo cortar

    incide sobre esse valor, enfraquecendo-o e modificando a unidade representada por esse

    conjunto, que a prpria dieta.

    Como nos exemplos anteriores, a relao entre elementos de um grupo o que se pe

    em jogo nesta sequncia:

    (15) Gameloft corta preos de diversos jogos para o fim do ano.

    Neste enunciado, graas ao emprego do verbo cortar, o termo preo passa a ser

    definido por meio de um conjunto de caractersticas econmicas associadas a um produto.

    Preo aqui apreendido pelo verbo como um dispositivo relacional, de ajuste, que se

    modifica a partir das oscilaes das caractersticas que atuam sobre sua construo, de forma

    que cortar evoca um elemento cotextual que remeta a um parmetro, papel cumprido pela

    locuo adverbial para o fim do ano.

    Como ltimo exemplo para anlise, apresentamos o seguinte enunciado:

  • 1325

    (16) O banco central da Austrlia cortou a taxa de juros para uma mnima

    recorde nesta tera-feira.

    O termo taxa interpretado como um dispositivo de sustentao financeira, uma

    unidade constituinte de um sistema. O verbo cortar incide sobre esse sistema, num

    movimento de regulao, evocando contextos que remetam a ndices referenciais. A locuo

    para uma taxa mnima cumpre, aqui, esse papel referencial.

    As anlises desenvolvidas nesta seo no so definitivas, e demonstram que as

    variaes do verbo cortar no so quaisquer, no sendo seus valores semnticos passveis de

    aplicao a qualquer outra unidade da lngua.

    5. Consideraes Finais

    A hiptese de forma esquemtica levantada, no estgio atual das anlises do corpus,

    aponta que a unidade lexical investigada evoca valores de linearidade ou de unidade entre

    termos que so mobilizados enquanto dispositivos de diferentes ordens; ao mesmo tempo,

    num movimento de imbricao dialtica entre contexto e enunciado, cortar incide sobre

    algum elemento que representa esses valores, desestabilizando-os.

    A manipulao dos enunciados comprova que nenhum dos sentidos verificados vem

    unicamente do verbo; eles so sempre provisrios e se constroem por sua interao com as

    outras unidades do sintagma e entre elas e o contexto evocado.

    Com a ampliao do corpus de anlise e a continuidade dos procedimentos de glosas

    dos enunciados, pretendemos descortinar outros esquemas de funcionamento verbal de cortar,

    delimitando sua invarincia, a fim de elaborar uma sistematizao que descreva sua

    identidade semntica.

    Referncias Bibliogrficas

    CULIOLI, A. Pour une linguistique de l'nonciation. Oprations et reprsentations. Paris,

    Ophrys, 1990, T.1.

    FRANCKEL, J.-J. Da interpretao glosa: por uma metodologia da reformulao. In. DE

    VOG, S.; FRANCKEL, J.-J.; PAILLARD, D. (2011) Linguagem e Enunciao:

    representao, referenciao, regulao. So Paulo: Contexto, 2011.

    PERINI, M. A. Estudos de gramtica descritiva: as valncias verbais. So Paulo: Parbola

    Editorial, 2008.

    ROMERO LOPES, M. C. Processos enunciativos de variao semntica e identidade lexical:

    a polissemia redimensionada. Estudo dos verbos jouer e changer. 342 fls. Tese de

    Doutorado, USP FFLCH, So Paulo, 2000.

    ROMERO LOPES, M. C. Estudo Semntico do Pretrito Perfeito: variaes interpretativas e

    regularidade de funcionamento. In: REZENDE, L. M.; ONOFRE, M. B. (orgs.). Linguagem e

    Lnguas Naturais Diversidade Experiencial e Lingustica. So Carlos: Pedro & Joo Editores, 2006.

    ROMERO, M. Um possvel dilogo entre a Teoria das Operaes Enunciativas e a

    Aquisio: identidade semntica e produtividade discursiva. Alfa, So Paulo, n.54, v.2,

    p.475-503, 2010.

  • 1326

    UMA PROPOSTA DE ANLISE DA DINMICA ENUNCIATIVA DOS VERBOS

    ROMPER E QUEBRAR

    Vanessa Santana LIMA543

    (PG-UNIFESP)

    Mrcia ROMERO544

    (UNIFESP)

    Resumo: Apresentamos, neste trabalho, uma abordagem de anlise semntica que discute e

    analisa o funcionamento enunciativo dos verbos romper e quebrar, com a finalidade de

    verificar os sentidos produzidos em diferentes contextos de insero e evidenciar em que

    medida os processos enunciativos destas unidades se aproximam e se distanciam. Para tanto,

    fundamentamo-nos na Teoria das Operaes Enunciativas (TOE) e adotamos como

    metodologia analtica a prtica de elaborao de glosas, operao sustentada pela atividade

    epilingustica constitutiva da linguagem cujo propsito a reformulao controlada do

    material verbal, com vistas identificao dos processos de construo de sentido das

    unidades lexicais selecionadas.

    Palavras-chave: Teoria das operaes enunciativas, atividade epilingustica, anlise

    contrastiva de romper e quebrar.

    1. Introduo

    Tradicionalmente, os estudos voltados para a compreenso do sentido das unidades

    lexicais encontram-se, de modo geral, centrados na existncia de campos semnticos,

    princpio que grosso modo busca estabelecer redes de relaes semntico-lexicais entre

    unidades da lngua, culminando na identificao de palavras caracterizadas como

    polissmicas, sinnimas, hipernimas/hipnimas etc. Tal procedimento tem em sua base a

    compreenso de que os sentidos das palavras so frutos, no nvel intrassistmico, de

    acordos sancionados por definies, que instituem e garantem sua validade (TAMBA-MECZ, 2006, p.128). Se, como ainda observa o autor, os paradigmas relacionais lexicais esto longe de ser integralmente determinados e absolutamente fixados (TAMBA-MECZ, 2006, p.129), isso no exclui o fato de que as palavras so entendidas como dotadas de um ou

    mais sentidos que lhes (so) intrnseco(s) e que antecede(m) a prpria produo lingustica.

    Na contramo dessa concepo, o quadro referencial no qual este trabalho se

    fundamenta, a saber, a Teoria das Operaes Enunciativas, entende o sentido como produto

    da materialidade verbal, das relaes que a unidade lingustica entretm com os enunciados

    nos quais se insere e ajuda a construir. Tendo em vista esse posicionamento, propomo-nos,

    assim, por meio de uma anlise contrastiva do funcionamento enunciativo de duas unidades

    lingusticas consideradas sinnimas em determinados ambientes textuais, romper e quebrar,

    refletir sobre o conjunto de relaes semnticas por elas estabelecido a fim de identificar suas

    caractersticas prprias e singulares dentro do sistema lingustico. Ao examinar o modo como

    se articulam para construir os enunciados em que se inserem, bem como as determinaes

    atribudas aos termos ocupando as funes sintticas de sujeito e complemento, buscamos

    543

    Mestranda da Universidade Federal de So Paulo, PPG em Educao e Sade na Infncia e na Adolescncia

    (NT Linguagem e Cognio), SP, Brasil; professora da rede pblica do municpio de So Paulo. Email:

    [email protected] 544

    Docente da Universidade Federal de So Paulo, Departamento de Educao, PPG Educao e Sade na

    Infncia e na Adolescncia (NT Linguagem e Cognio), SP, Brasil. Email: [email protected]

  • 1327

    delinear a natureza de seu funcionamento invariante, invarincia que lhes permite produzir

    variados valores semnticos (ou sentidos). Para tanto, tomamos como ponto de partida os resultados obtidos por meio da

    manipulao de enunciados, tal como exposto na metodologia analtica fundamentada na

    elaborao de glosas (FRANCKEL, 2011b), que tem por princpio a reformulao controlada

    do material verbal ao qual as unidades selecionadas se integram com vistas identificao de

    seu funcionamento enunciativo. Sustentada pela atividade epilingustica (CULIOLI, 1990),

    esses procedimentos metodolgicos trazem, em sua base, um olhar diferenciado para a

    atividade de linguagem e os processos de articulao lxico-gramatical envolvidos na

    produo de sentido, o que nos permite, de um lado, repensar as questes vinculadas ao

    trabalho com a significao e problematizar conceitos oriundos das redes de relaes

    semntico-lexicais (polissemia, sinonmia, sentido denotativo e conotativo etc.) e, de outro,

    assumir uma abordagem para qual a linguagem, capacidade intrinsecamente humana, remete a

    um potencial enunciativo por meio do qual somos capazes de simbolizar e significar o mundo.

    2. A Teoria das Operaes Enunciativas e prtica de reformulao de enunciados

    De acordo com a Teoria das Operaes Enunciativas (TOE), o estudo da

    significao deve pautar-se no modo como as unidades lxico-gramaticais se relacionam, i.e.

    nos mecanismos de natureza da linguagem postos em jogo por tais unidades na construo

    dos enunciados nos quais se inserem. O sentido , nessa perspectiva, o resultado de um

    conjunto de operaes prprias s unidades lingusticas que se organizam de um modo especfico para efetuar os enunciados e linguagem em si. Deste modo, as unidades s constroem significaes quando em funcionamento, quando enunciadas.

    Vale dizer ainda que, nesta abordagem, as unidades lexicais so compreendidas

    como esquemas de regulao da constituio dos enunciados, no possuindo, portanto, um

    contedo semntico definido a priori. O que as identifica semanticamente um potencial

    enunciativo, uma forma dinmica invariante que ordena e orienta sua produo de sentido,

    sua variao semntica. J a enunciao apreendida como o processo de construo do

    enunciado, resultado da articulao estabelecida entre as unidades lingusticas que, por meio

    de seu comportamento, de suas caractersticas nicas, fazem emergir a significao nos mais

    diversos contextos lingusticos. Sendo assim, a viso de que a palavra isolada, por si s, dotada de traos de contedo intrnsecos a ela atribudos fora do jogo enunciativo no condiz

    com a abordagem terica na qual nos inscrevemos, e isto porque, como observamos acima,

    uma unidade lingustica s significa, s adquire um valor semntico quando posta em uso.

    Esse posicionamento faz com que se repense igualmente o conceito de polissemia,

    que passa a ter uma acepo diversa da que lhe comumente atribuda e que se fundamenta

    na existncia de um sentido primeiro da unidade (comumente, de natureza denotativa) que

    daria origem a outros sentidos, os chamados conotativos ou figurados.

    Notemos, por fim, que as relaes a partir das quais se constri a significao no

    ocorrem revelia, nem so quaisquer: so relaes autorizadas e orientadas pelas

    caractersticas prprias de cada unidade que compe o enunciado. Seu funcionamento

    enunciativo (ou sua forma dinmica invariante representativa de sua identidade semntica)

    lhes confere, ao mesmo tempo, o potencial de significar e de constituir certos contextos

    enunciativos, mas tambm restringe seu uso, fazendo com que determinados empregos sejam

    mais custosos. Esta identidade apresentada por Franckel (2011a) como uma unidade que se

    define:

    [...] no por algum sentido de base, mas pelo papel especfico que ela

    desempenha nas interaes constitutivas do sentido dos enunciados nos quais

  • 1328

    ela posta em jogo. Esse papel apreensvel no como um sentido prprio

    da unidade, mas atravs da variao do resultado dessas interaes (p.22-23).

    Em consonncia com nosso referencial terico, como vimos apontando, os processos

    metodolgicos aqui adotados baseiam-se na atividade de reformulao de enunciados, tal

    como proposta por Franckel (2011b), cujo fundamento repousa na prtica de elaborao de

    glosas. Essa prtica consiste em um modo especfico de parafrasagem de enunciados, cujo

    propsito realizar reformulaes minuciosas e controladas com vistas identificao dos

    processos de construo de sentido de uma dada unidade lexical, processos comuns a todos os

    enunciados nos quais ela se insere. Assim, no se trata de buscar uma rede de sinnimos

    locais para a unidade em cada um dos enunciados ou sequncias lingusticas por ela

    construdas, uma vez que o objetivo no o de mobilizar uma ou outra unidade de sentido prximo em que um contexto dado para estabelecer uma reformulao, mas pelo contrrio, de

    considerar seus sinnimos como lugar de anlise do que os distingue da unidade considerada (FRANCKEL, 2011b, p.121).

    Na realidade, a reformulao controlada ou glosa pode ser definida como uma

    atividade metalingustica que permite, ainda que de forma restrita e hipottica porque

    elaborada pelo analista, formalizar operaes lingusticas e cognitivas realizadas de modo no

    consciente ao produzirmos enunciados. Trata-se, pois, da tentativa de tornar consciente um

    saber lingustico do qual fazemos uso sem que dele tenhamos conscincia, um saber

    sustentado por nossa atividade epilingustica, atividade que consiste, por fim, na prpria

    atividade de linguagem (CULIOLI, 1990; CULIOLI, NORMAND, 2005). De acordo com

    Franckel (2011b), a concepo:

    [...] de glosa fundamenta-se no postulado de que lngua constitui um sistema

    autnomo, munido de uma organizao prpria, que s apreensvel por

    meio de si mesma, nas suas manifestaes formais. As formas da lngua

    tornam possveis sua prpria formalizao em uma reduplicao incessante,

    mas constituda como lugar de ressonncia e de raciocnio. (p.122)

    Esta metodologia promove, portanto, a possibilidade de estudo e anlise dos possveis efeitos

    de sentido produzidos pela unidade. Isso se d por meio da identificao dos contextos

    lingusticos que a prpria unidade lingustica convoca para funcionar dentro da lngua, mais

    especificamente, da identificao dos termos que com ela interagem e tendem a estabiliz-la

    semanticamente, de um lado, e das determinaes por ela conferidas a esses termos, de outro.

    Trata-se, antes de tudo, de uma atividade reflexiva acerca dos fatos da lngua, que permite o

    acompanhamento da progresso do raciocnio lgico efetuado na ao, bem como a ativao

    de processos cognitivos especficos atividade de linguagem. Nas palavras de Franckel

    (2011b), nesta metodologia da reformulao, o que est em jogo o estabelecimento de procedimentos controlveis, que passam por uma argumentao e que se apoiam em fatos da

    lngua reproduzveis (p.107). Um dos principais objetivos que impulsiona o desenvolvimento deste estudo a

    possibilidade de evidenciar que, atravs da variao do sentido das unidades, possvel destacar as regularidades na maneira pela qual se organiza essa variao (FRANCKEL, 2011a, p.19), possvel delinear o que se mantm estvel dentro da variao que lhe

    constitutiva. Da a anlise e observao do comportamento enunciativo de duas unidades

    lingusticas precisas, os verbos romper e quebrar, que, em determinados contextos, so

    tomados por sinnimos sem que haja reflexes sobre seu funcionamento prprio. Nossa

    finalidade , assim, verificar em que medida os processos enunciativos destas unidades se

    aproximam e se distanciam e os caminhos que conduzem a esta aproximao ou

    distanciamento.

  • 1329

    Para tanto, na continuidade do texto, realizamos atividades de reformulao

    envolvendo tais verbos em contextos idnticos. Os objetivos destas atividades so dois:

    evidenciar os mecanismos de funcionamento prprios a cada verbo e o fio condutor que

    orienta sua articulao com outras unidades para compor os enunciados (a sua identidade

    semntica).

    3. Sobre a dinmica enunciativa de romper e quebrar

    Uma primeira consulta a fontes lexicogrficas diversas (BORBA, 1990;

    HOUAISS, VILLAR, 2009) nos possibilitou identificar as mltiplas acepes atribudas ao

    verbo romper545

    , que, de maneira geral, o aproximariam, a depender do emprego, dos verbos

    quebrar, partir, rasgar, atravessar, infringir, raiar, surgir etc. J o verbo quebrar546

    seria

    semanticamente prximo, tambm conforme o emprego, dos verbos reduzir a pedaos,

    fragmentar, despedaar, partir, romper, fraturar, interromper, cortar, infringir, violar,

    acabar, enguiar, anular, entrar em falncia etc.

    Nesta seo, buscamos mostrar de que modo o funcionamento destes verbos esto

    para alm dessas acepes, que, embora nos deem pistas acerca de sua variao semntica,

    no explicam quais propriedades fazem com que os contextos em que so empregados, no

    caso daqueles em que so apreendidos como semanticamente prximos, desencadeiem cenas

    enunciativas a cada vez nicas.

    Para a realizao desta atividade de reformulao e parafrasagem, selecionamos

    pares de enunciados que permitem contrastar o funcionamento dos verbos ao mesmo tempo

    em que trazem tona no s suas especificidades, mas tambm as determinaes por eles

    conferidas aos termos com os quais se combinam para compor os enunciados.

    Como primeiro par de exemplos, temos:

    A1) O cano dgua rompeu. A2) O cano dgua quebrou.

    Em A1, construdo com o verbo romper, notamos que a interpretao do termo o cano

    evoca a perda de sua capacidade enquanto continente, apreendendo cano como incapaz de

    manter sob seus limites o que deveria ser contido e conduzido at determinado ponto (por

    exemplo, a gua, o gs etc). A interpretao tende igualmente a evocar uma causa para o

    rompimento, por exemplo, o fato de o que est contido exercer uma presso sobre o que o

    cano que o contm. J em A2, o termo o cano apreendido de modo bem diverso, uma vez

    que quebrar faz com que ele seja delimitado por meio de suas caractersticas slidas. A nfase

    da interpretao recai, portanto, sobre a estrutura do cano, que, ao ser quebrado, perde sua

    solidez ou sua integridade. Um cano quebrado pode ser um cano que no estava sequer em

    uso, que nada continha, diferente do que se observa em A1, em que no apenas o cano estava

    em funcionamento, como se espera que sua funcionalidade seja restabelecida.

    Consideremos o segundo par de enunciados:

    B1) Eles romperam o contrato.

    B2) Eles quebraram o contrato.

    545

    As anlises do verbo romper vm sendo desenvolvidas por Lima e encontram-se em sua dissertao de

    Mestrado, em fase de finalizao. 546

    Remetemos a Romero (2010) e Romero & Vvio (2011) para anlise do verbo quebrar.

  • 1330

    Em B1, o termo o contrato apreendido como um conjunto de clusulas que

    determina as funes, direitos e obrigaes de cada uma das partes nele envolvidas,

    funcionando como elemento regulador das aes dos envolvidos e, tambm, como o que

    garante a proteo de seus interesses. Deste modo, as aes das partes esto condicionadas s

    clusulas nele estipuladas. Romper o contrato implica, destarte, que o que condicionava ou

    regulava determinados modos de ao no mais se verifica.

    interessante observar que, em B2, o termo o contrato tambm apreendido como

    um documento formal composto por clusulas que devem ser seguidas por todos. Porm, a

    nfase, neste enunciado, recai sobre a perda da unidade do contrato: o que era visto como um

    conjunto coeso de clusulas estabelecidas uma em funo da outra e que garantia a existncia da solidariedade do contrato simplesmente deixa de existir (porque, por exemplo, uma de suas clusulas no foi respeitada). Essa nfase se verifica, alis, no prprio emprego

    da voz passiva, visto aceitarmos muito mais facilmente o enunciado O contrato foi quebrado,

    em que se evidencia o fato de o contrato no ser mais vlido, do que O contrato foi rompido.

    Neste ltimo caso, o apagamento do responsvel pelo rompimento no permite mais que se

    evidencie quem se submetia ao contrato, fator primordial para o funcionamento deste verbo.

    Por fim, observemos os enunciados:

    C1) Eles romperam o silncio.

    C2) Eles quebraram o silncio.

    Em C1, o termo o silncio tende a ser interpretado como o perodo em que algum se

    recusava a falar sobre determinado assunto e inesperadamente passa a se pronunciar sobre ele.

    Neste caso, o silncio traz o peso de uma coero, de algo que retinha a palavra. Romper faz

    com que essa palavra retida passe a se manifestar livremente. J em C2, o silncio pode ser

    tanto um estado de silncio (de ausncia de barulho) que toma um dado ambiente (As crianas

    quebraram o silncio sepulcral que imperava naquela casa), quanto o silncio da palavra

    ausente. Na primeira interpretao referente a C2, o instante ou perodo apreendido por uma

    circunstancialidade (o estado de silncio) cessa; na segunda, o estado de ausncia de fala

    que cessa. Em suma, romper, para poder funcionar, faz do termo o silncio algo que pesa

    sobre eles, coagindo-os a se calarem, enquanto quebrar faz de o silncio um estado

    circunstancial que se manifesta em um dado ambiente ou algum, tornando-os algo uno (o

    ambiente ou algum o silncio que neles se manifesta).

    Para melhor ilustrar as caractersticas especficas dessas duas unidades, trazemos

    agora exemplos de enunciados em que a substituio de romper por quebrar inaceitvel,

    como observamos em:

    D1) As lgrimas rompiam dando vazo tristeza.

    D2) A fora do vento quebrou os galhos das rvores.

    Em D1, as lgrimas so apreendidas como algo que estava represado, contido.

    Dada a intensidade da tristeza que se abateu sobre o ser, este torna-se, no entanto, incapaz de

    mant-las contidas, criando a imagem de lgrimas que desguam, que caem em abundncia,

    revelando a dimenso da tristeza que se abateu sobre aquele que chora. Notamos que no

    possvel dizer *As lgrimas quebravam dando vazo tristeza, posto que o termo as lgrimas

    no pode ser apreendido como algo que possua uma unidade trazendo qualquer forma de

    solidariedade a ser desfeita.

    J D2, pelo fato de o termo os galhos poder ser apreendido como parte de um

    todo, como elementos constitutivos da rvore, admite perfeitamente o verbo quebrar, que

    remeteria, aqui, perda da integridade, da unidade da rvore em si. Notamos que, em

  • 1331

    contrapartida, dificilmente diramos O vento rompeu os galhos da rvore. O que talvez

    pudssemos elaborar Os galhos se romperam com a fora do vento, enunciado cuja

    representao evocaria os galhos como elementos que se mantm presos s arvores, como que

    sustentados por elas, sofrendo, abruptamente, uma tenso que ultrapassa sua capacidade de

    manter essa sustentao.

    4. Anlise do funcionamento dos verbos romper e quebrar

    A partir da realizao das glosas acima descritas, foi possvel observar que tanto o

    verbo romper quanto quebrar desencadeiam modos de construo de sentido bastante

    distintos, que remetem aos mecanismos de funcionamento especficos de cada um. Com essa

    atividade e outras dessa natureza, pudemos propor uma descrio da forma esquemtica de

    ambas as unidades, dinmica invariante que, em nosso referencial terico, representa a

    identidade semntica do lexema verbal.

    O verbo romper nos parece ser mobilizado sempre que se busca evocar a dissoluo de

    um elemento (X) que funciona como uma reteno para que um outro elemento no caso, (Y) se mostre, tome outra forma, siga outro rumo etc.

    Desta forma, como primeira hiptese para explicar o funcionamento enunciativo deste

    verbo, propomos, como forma esquemtica, a seguinte formulao:

    Dado um elemento X que funciona como retentor de Y, romper conduz

    dissoluo de X fazendo com que Y siga outro curso.

    A partir dessa forma esquemtica, observam-se trs grupos de funcionamento em que:

    a) X aprendido como elemento que desempenha funo de continente e/ou condutor ou que se impe como limite que no deveria ou no poderia ser ultrapassado

    (romper o cano, o tubo, a adutora, a represa etc.);

    b) X um elemento cerceador ou que condiciona aes (romper as velhas alianas, o pacto, mitos, o contrato, preconceitos etc.);

    c) X um elemento circunstancial (romper o crescimento, o crculo vicioso, o imobilismo, a guerra etc.).

    Para melhor elucidar esses modos de funcionamento do verbo romper, tomemos

    mais alguns exemplos que colaboram para uma melhor compreenso dessa representao

    metalingustica.

    Comecemos pela anlise de E1) Um violento ataque de avio rompeu a guerra.

    Neste enunciado, o termo a guerra aprendido como uma situao conflituosa. Romper

    marca, portanto, o momento em que a situao se encontrava de uma determinada maneira e

    passa a ter outra caracterstica. Assim, um violento ataque de avio pode tanto ter posto fim

    ao perodo de conflitos, quanto ao perodo de paz. O mais interessante que a guerra vista

    ora como estando incubada (ela est prestes a eclodir, faltando apenas um fator para que seja desencadeada, no caso um violento ataque de avio), ora como algo que estava

    acontecendo (e, portanto, cercando e reprimindo a todos), e um violento ataque de avio faz

    com que ela cesse.

    Consideremos, por sua vez, F1) Os noivos romperam.

    Neste enunciado, o termo os noivos apreendido como duas pessoas ligadas por

    um relacionamento afetivo em que ambas assumem um compromisso, um para com o outro e

    com suas famlias. Evocam-se, portanto, um envolvimento sentimental e, tambm, um

    compromisso social, fato que as obriga a agir dentro dos parmetros do que a sociedade a que

    pertencem entende como comportamentos aceitveis para quem desempenha o papel social de

  • 1332

    noivo e noiva. O verbo romper, neste caso, marca o fim de uma relao, cuja existncia estava

    condicionada a uma srie de atitudes recprocas que delimitam o modo de agir de ambos,

    tanto no que diz respeito ao trato de um para com o outro, quanto no que tange ao meio social

    do qual fazem parte.

    Nota-se que a interpretao de que, o que chegou ao fim, foi o noivado, deve-se

    ao verbo romper, pois se o substitussemos por quebrar, teramos F2) Os noivos quebraram,

    sequncia que nos permite trs diferentes estabilizaes interpretativas:

    1. O termo os noivos evoca uma representao de uma pea inteiria, de porcelana ou outro material quebrvel (tal como se verifica, tradicionalmente, em enfeites de

    bolo de casamento), que se desfaz em pedaos;

    2. o termo os noivos apreendido enquanto uma unidade socioeconmica, evocando uma relao de interdependncia financeira que os coloca como indivduos que,

    juntos, desempenham um papel de consumidores potenciais. O verbo quebrar,

    neste enunciado, marca a perda da solidariedade econmica que existia entre eles,

    ou seja, os recursos monetrios que os mantinham em uma representao de

    consumidores potenciais j no existe mais, eles esto falidos. 3. Constri-se uma representao de os noivos enquanto indivduos, organismos

    vivos sendo organismo por si s um conjunto integrado de partes interdependentes (constituio orgnica) (ROMERO, VVIO, 2011, p.90). Deste modo, Os noivos quebraram remeteria ideia de exausto, de indivduos que esto

    excessivamente cansados (por conta, digamos, da prpria situao que envolve a

    organizao de um casamento) e, por isso, sua composio orgnica, ou seja, a

    totalidade do corpo, j no capaz de desempenhar todas as suas potencialidades

    (apresenta leses, disfunes, comprometimentos que os impedem de dispor da

    integralidade de suas funes).

    A partir da observao desses trs modos de funcionamento do verbo quebrar,

    possvel identificar o que caracteriza sua forma esquemtica:

    Quebrar marca a perda de uma relao que une elementos

    constituindo X ou a perda de uma unidade slida (conjunto formal de relaes que constitui X).

    Esta perda, tal como vimos acima, pode ser apreendida de trs maneiras

    diferentes:

    a) X, apreendido por sua inteireza, deixa de s-lo (h ruptura, partio) (quebrar o salto do sapato, a pgina, o vaso, o cano, a empresa etc.).

    b) X no mais vlido (X anulado) (quebrar a promessa, o contrato, a palavra etc.); c) X, apreendido por suas manifestaes temporais, no mais ocorre (X cessa) (quebrar a

    rotina, a tradio, o ritmo, o silncio etc.).

    5. Consideraes finais

    Ao longo deste trabalho, defendemos uma proposta de anlise lingustica que prima

    pelo estudo da significao partindo da materialidade lingustica que compe os enunciados.

    Por meio da atividade de parafrasagem e reformulao, pudemos evidenciar as aproximaes

    e os distanciamentos existentes entre o funcionamento enunciativo dos verbos romper e

    quebrar e apresentar uma proposta analtica de natureza notadamente reflexiva envolvendo a

    construo da significao. Tal proposta, se parte, a princpio, de enunciados nos quais as

    unidades se aproximam semanticamente, s o faz com o intuito de explicar a singularidade

    prpria a cada termo da lngua, uma vez que, como pudemos observar, toda e qualquer

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    substituio de um termo em uma dada sequncia ou enunciado implica produes de sentido

    distintas.

    Essas produes de sentido, como vimos, no ocorrem revelia, no surgem de

    maneira imprevista, mas so orientadas por dinmicas enunciativas especficas que definem

    seu funcionamento e determinam suas possibilidade se significar. A essa dinmica

    enunciativa invariante que parte integrante e essencial da identidade semntica do verbo

    denominamos forma esquemtica. Responsvel por formalizar, metalinguisticamente e

    hipoteticamente, operaes cognitivas e o modo como as representaes so construdas pelo

    material verbal, a forma esquemtica influencia e orienta diretamente a maneira como

    operamos a lngua que falamos. Ela se apresenta como a descrio do papel singular que cada

    unidade lexical desempenha dentro da lngua e, sendo assim, condensa a natureza semntica

    da unidade, restringe seus empregos, determina seus contextos de insero. , por fim,

    produto de um trabalho de manipulao que exige um operar da linguagem, com a linguagem

    e sobre a linguagem, sendo, antes de tudo, um convite reflexo sobre a lngua, a linguagem,

    os processos de construo de sentido e todos os mecanismos neles envolvidos.

    Referncias Bibliogrficas

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