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A CONSTRUÇÃO DA REUNIÃO ESPECIALIZADA SOBRE AGRICULTURA FAMILIAR DO MERCOSUL (REAF): UMA DÉCADA DE DIÁLOGOS POLÍTICOS PARA O DESENHO, FORMULAÇÃO E IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS Paulo Andre Niederle Julho de 2015.

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A CONSTRUÇÃO DA REUNIÃO ESPECIALIZADA SOBRE

AGRICULTURA FAMILIAR DO MERCOSUL (REAF):

UMA DÉCADA DE DIÁLOGOS POLÍTICOS PARA O DESENHO, FORMULAÇÃO E

IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS

Paulo Andre Niederle

Julho de 2015.

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Agradecimentos

Esta publicação não teria sido possível sem a colaboração de Catia Grisa, que auxiliou a

sistematizar as informações, leu e comentou as versões preliminares do documento,

aportando elementos fundamentais à compreensão da trajetória da agricultura familiar e

das políticas públicas de desenvolvimento rural.

Agradeço igualmente a colaboração dos representantes dos governos e dos movimentos

sociais que compõem a REAF, os quais abriram suas portas, permitiram amplo acesso

às informações e, de maneira muito altruísta, compartilharam suas ideias, percepções e

avaliações.

Destaca-se ainda o empenho da Secretaria Técnica da REAF e a gestão do Escritório

Regional da FAO América Latina e Caribe, os quais não mediram esforços para

viabilizar a realização e a publicação deste estudo.

Somos igualmente gratos a Carlos Adalberto Mielitz Netto, Caio Galvão de França e

Lautaro Viscay pelas orientações iniciais para adequada condução do estudo em face de

um histórico tão complexo de eventos e discussões que marca a trajetória da REAF.

Finalmente, agradecemos ainda a um amplo conjunto de atores sociais que nos

concederam gentilmente seu tempo e conhecimento: Alberto Riella, Alessandra Lunas,

Álvaro Ramos, Amílcar Mamani Gonzales, Antonio Vadell, Calixto Zárate, Carolina

Albuquerque da Silva, Cristina Timponi Camiaghi, Claudia Herrera,

Daniel Cordeiro Vieira, Eduardo Polcan, Fabián Mila, Favio Pirone, Fernando López,

Fernando Sganga, Francesco Maria Pierri, Gladys Martínez, Guilherme Brady,

Guilherme Cassel, Hugo Dutan, Jackson Nagornni, Javier Vernengo, Jorge Pedregosa,

José Carlos Zukowski, José Ignacio Olascuaga, Juan Guido Vidal Acuña, Karla Hora,

Laudemir Muller, Luiz Vicente Facco, Marcelo Miná Dias, Marciano Toledo da Silva,

Maria Quiroga, Octavio Sotomayor, Regis da Cunha Belém, Renata Leite, Rita Zanotto,

Ursina Leguizamon, Úrsula Zacarias, Vicente Marques e William Clementino da Silva

Matias.

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Lista de Siglas

ABC - Agência Brasileira de Cooperação do Ministério das Relações Exteriores

ACU - Asociación de Colonos de Uruguay

AECID - Agencia Espanhola de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento

AEGRE - Assessoria Especial de Gênero, Raça e Etnia do MDA, Brasil

AGU - Advocacia Geral da União, Brasil

ALADI - Associação Latino-Americana de Integração

ALALC - Associação Latino-Americana de Livre Comércio

ALBA - Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América

ALCA - Área de Livre Comércio das Américas

ALIANZA - Aliança para a Soberania Alimentar da América Latina e do Caribe

AMR - Alianza de Mujeres Rurales, Argentina

AMRU - Associação de Mulheres Rurais do Uruguai

ARP - Associação Rural de Paraguay

ARU - Associação Rural de Uruguay

ATALC - Amigos de la Tierra América Latina y del Caribe

ATER - Assistência Técnica e Extensão Rural

BIRD - Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento

BRICS - Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul

CAH - Crédito Agrícola de Habilitación, Paraguai

CAMEX - Câmara Brasileira de Comércio Exterior

CAOI - Coordinadora Andina de Organizaciones Indígenas

CCM - Comissão de Comércio do Mercosul

CCMAS - Comissão de Coordenação de Ministros de Assuntos Sociais do Mercosul

CCP - Central Campesina do Peru

CCT - Comitê de Cooperação Técnica do Mercosul

CELAC - Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos

CEPACCOP - Central Paraguaia de Cooperativas

CEPAL - Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe

CEPRU - Centro de Promoción Rural, Argentina

CIARA - Fundación de Capacitación e Innovación para Apoyar la Revolución Agraria, Venezuela

CIOEC - Coordenador de Integração de Organizações Econômicas Campesinas da Bolívia

CIPAF - Centro Nacional de Investigação e Desenvolvimento Tecnológico para a Pequena Agricultura Familiar, Argentina

CITI - Consejo Internacional Tratados Indios

CLOC - Coordinadora Latinoamericana de Organizaciones del Campo

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CMC - Conselho do Mercado Comum

CMDRS - Conselho Municipal de Desenvolvimento Rural Sustentável, Brasil

CNA - Confederação Nacional da Agricultura, Brasil

CNFR - Comissión Nacional de Fomento Rural, Uruguai

CONAB - Companhia Nacional de Abastecimento, Brasil

CONASUR - Consejo Consultivo de Cooperación Agrícola de los Países del Area Sur

CONDRAF - Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável e Solidário, Brasil

CONFEAGRO - Confederación Nacional de Agricultura de Bolivia

CONFEPESCA - Confederación de Pescadores Artesanales de Centro América

CONSEA - Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional, Brasil

CONTAG - Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura, Brasil

COPROFAM - Coordinadora de Organizaciones de Productores Familiares del Mercosur

CPAI - Comitê Permanente de Assuntos Internacionais do CONDRAF, Brasil

CPC - Comissão Parlamentar Conjunta

CPLP - Comunidade dos Países de Língua Portuguesa

CRA - Confederación Rural Argentina

CSA - Comitê Mundial de Segurança Alimentar

CUT - Central Única dos Trabalhadores, Brasil

DAP - Declaração de Aptidão ao PRONAF, Brasil

DCEA - Dirección de Censos y Estadísticas Agropecuarias, Uruguai

DEAg - Dirección de Extensión Agraria, Paraguai

DGDR - Dirección General de Desarrollo Rural, Uruguai

DGJR - Direção de Gênero e Juventude Rural, Paraguai

DGP - Dirección General de Planificación do MAG, Paraguai

DINCAP - Dirección Nacional de Coordinación y Administración de Proyectos do MAG, Paraguai

DNTR - Departamento Nacional de Trabalhadores Rurais da CUT, Brasil

DVGT - Diretrizes Voluntárias para uma Gestão Responsável da posse da Terra, Pescas e Florestas

EMAPA - Empresa de Apoio à Produção, Bolívia

EUA - Estados Unidos da América

FAA - Federación Agrária Argentina

FAF - Fundo da Agricultura Familiar do MERCOSUL

FAO - Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação

FARM - Federação das Associações Rurais do Mercosul

FCES - Foro Consultivo Econômico-Social do Mercosul

FETAET - Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Tocantins, Brasil

FETRAF - Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar, Brasil

FIAN - Rede de Ação e Informação Alimentação Primeiro

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FIDA - Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola

FMI - Fundo Monetário Internacional

FNC - Federación Nacional Camponesa, Paraguai

FNDE - Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, Brasil

FOCEM - Fundo de Convergência Estrutural e Fortalecimento Institucional do Mercosul

FONAF - Foro Nacional de la Agricultura Familiar, Argentina

FR - Federación Rural de Uruguay

FSM - Fórum Social Mundial

FTV - Federación de Tierra, Vivienda y Habitat, Argentina

FUNAI - Fundação Nacional do Índio, Brasil

GATT - Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio

GGPAA - Grupo Gestor do PAA, Brasil

GMC - Grupo Mercado Comum

GT - Grupo Temático

ICMBio - Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, Brasil

IDH - Índice de Desenvolvimento Humano

IEPS - Instituto de Economia Popular e Solidária, Equador

IICA - Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura

IIRSA - Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana

INC - Instituto Nacional de Colonización, Uruguai

INCOOP - Instituto Nacional de Cooperativismo, Paraguai

INCRA - Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, Brasil

INDAP - Instituto de Desarrollo Agropecuario, Chile

INDERT - Instituto Nacional de Desarrollo Rural y de la Tierra, Paraguai

INFONA - Sistema Nacional de Monitoreo Forestal del Paraguay

INIA - Instituto Nacional de Investigação Agropecuária, Uruguai

INSA - Instituto del Seguro Agrario, Bolívia

IPL - Intergremial de Produtores de Leite, Uruguai

IWG-FF - FAO International Working Group for Definitions and Typologies for Family Farming.

MAELA - Movimiento Agroecológico de América Latina y El Caribe

MAGyP – Ministerio de Agricultura, Ganadería y Pesca, Argentina

MAPA - Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Brasil

MCNOC - Mesa Coordenadora Nacional de Organizações Camponesas, Paraguai

MDIC - Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio, Brasil

MDS - Ministério do Desenvolvimento Social, Brasil

MERCOSUL – Mercado Comum do Sul

MGAP - Ministerio de Ganadería, Agricultura y Pesca, Uruguai

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MNCI - Movimento Nacional Campesino Indígena, Argentina

MRE - Ministério de Relações Exteriores, Brasil

MSA - Monotributo Social Agropecuário, Argentina

MSC - Mecanismos da Sociedade Civil do Comitê de Segurança Alimentar da ONU

MTUR - Ministério do Turismo, Brasil

MUCCAR - Mujeres Campesinas y Aborígenes Argentinas

MUCHECH - Movimento Unitário de Campesinos e Etnias do Chile

NAFTA - Tratado Norte-Americano de Livre Comércio

OECAS - Organizações Econômicas Campesinas, Bolívia

OMC - Organização Mundial do Comércio

ONC - Organização Nacional Campesina, Paraguai

ONG - Organização Não Governamental

ONU - Organização das Nações Unidas

PAA - Programa de Aquisição de Alimentos, Brasil

PEAS - Plano Estratégico de Ação Social do Mercosul

PGPAF - Programa de Garantia de Preço da Agricultura Familiar, Brasil

PIB - Produto Interno Bruto

PNAE - Programa Nacional de Alimentação Escolar, Brasil

PNHR - Programa Nacional de Habitação Rural, Brasil

PNPB - Programa Nacional de Produção de Bicombustíveis, Brasil

PNUD - Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento

PPA - Programa de Fomento à Produção de Alimentos da Agricultura Familiar, Paraguai

PPA - Programa de Provisão de Alimentos, Equador

PPIGRE - Programa de Promoção de Igualdade de Gênero, Raça e Etnia, Brasil

PPR - Projeto Paraguai Rural

PROCISUR - Programa Cooperativo para o Desenvolvimento Tecnológico Agroalimentar e Agroindustrial do Cone Sul

PAE Programa de Alimentação Escolar, Chile

PROINDER - Programa de Desenvolvimento de Pequenos Produtores Agropecuários, Argentina

PRONAF - Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar, Brasil

RALLT - Enlace Continental Mujeres Indígenas; Red Por una América Latina Libre de Transgénicos

RAP-AL - Red de Acción contra los Plaguicidas de América Latina

REAF - Reunião Especializada sobre Agricultura Familiar do Mercosul

REBRIP - Rede Brasileira pela Integração dos Povos

RECM - Reunião Especializada das Cooperativas do Mercosul

REDCASSAN - Red de Soberanía Alimentaria de Centro América

REDPO - Reunião Especializada de Defensores Públicos Oficiais do Mercosul

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RedTAF - Rede de Técnicos e Investigadores sobre Tecnologias para a Agricultura Familiar, Argentina

REM - Reunião Especializada de Mulheres

RENAF - Registro Nacional de Agricultura Familiar, Argentina

RENAOH - Registro Nacional de Organizaciones Habilitadas, Uruguai

RENOAF - Registro Nacional das Organizações da Agricultura Familiar, Argentina e Paraguai

RIMISP - Centro Latinoamericano para el Desarrollo Rural

RMAAMM - Reunião de Ministras e Altas Autoridades de Mulheres do Mercosul

SAF - Secretaria da Agricultura Familiar do MDA, Brasil

SAGPyA - Secretaria de Agricultura, Ganaderia, Pesca e Alimentos, Argentina

SAM - Secretaria Administrativa do Mercosul

SAMEP - Seguro Agrario para Municipios con Mayores niveles de Extrema Pobreza, Bolívia

SDRyAF - Secretária de Desenvolvimento Rural e da Agricultura Familiar, Argentina

SEAF - Seguro da Agricultura Familiar, Brasil

SNJ - Secretaria Nacional de Juventude, Brasil

SENAF - Comision de Agricultura Familiar del SENASA, Argentina

SENASA - Serviço Nacional de Sanidade e Qualidade Alimentar, Argentina

SERNAM - Servicio Nacional de la Mujer, Chile

SGT - Sub-grupo de Trabalho do Mercosul

SMPR - Secretaria da Mulher da Presidência da República, Paraguai

SNA - Sociedad Nacional de Agricultura de Chile

SRA - Sociedad Rural Argentina

SRB - Sociedade Rural Brasileira

ST - Secretaria Técnica da REAF

UAN - Unión Agrícola Nacional de Paraguai

UCAR - Unidad para el Cambio Rural, Argentina

UCR - Unidade de Coordenação Regional do FIDA

UDELAR – Universidad de la Republica

UFRGS – Universidade Federal do Rio Grande do Sul

UITA - Regional Latinoamericana de la Unión Internacional de Trabajadores de la Alimentación

UNASUL - União de Nações Sul-Americanas

UGR - Unidad de Gestion del Riesgo, Paraguai

UNILA - Universidade da Integração Latino-Americana

UNOPS - United Nations Office for Project Services

UPS - Unidade de Apoio à Participação Social do Mercosul

URAF - Unidade de Registro Nacional da Agricultura Familiar, Argentina

VMG - Viceministerio de Ganadería, Paraguai

WFF - Foro Mundial de Pescadores y Trabajadores de la Pesca

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Sumário

Agradecimentos ............................................................................................................................. 2

Lista de Siglas ............................................................................................................................... 3

Apresentação ................................................................................................................................. 9

PARTE I – Um novo formato de ação pública .............................................................................. 12

1. A Reunião Especializada sobre Agricultura Familiar do MERCOSUL (REAF) ................ 13

2. Uma experiência para ser documentada e analisada ..................................................... 18

3. Agricultura familiar no Mercosul ...................................................................................... 23

4. Um novo fórum de diálogos para a construção das políticas públicas ............................ 30

PARTE II – A construção institucional da REAF .......................................................................... 34

5. Diálogos políticos para uma nova agenda no MERCOSUL ............................................ 35

6. A construção de um espaço para a Agricultura Familiar ................................................. 49

7. Uma nova institucionalidade para o fortalecimento da Agricultura Familiar .................... 71

PARTE III – O desenho de políticas para a agricultura familiar ................................................... 97

8. Da definição normativa aos Sistemas Nacionais de Registros Voluntários..................... 98

9. Estrangeirização e novos mecanismos de governança da terra ................................... 110

10. A construção da igualdade de gênero nas políticas para a agricultura familiar ............. 117

11. A formação da juventude rural e o investimento em uma nova agenda de políticas ..... 128

12. Novos mercados para a agricultura familiar: os programas de compras públicas ........ 140

13. As iniciativas de cooperação bilateral: o exemplo das políticas de seguro agrícola ..... 153

PARTE IV – Transições, desafios e prospecções ...................................................................... 159

14. Uma experiência singular de produção de políticas públicas ........................................ 160

15. A ampliação do fórum e dos diálogos políticos ............................................................. 175

16. Como os atores interpretam os próximos passos e desafios ........................................ 187

Referências ................................................................................................................................ 210

Anexos ................................................................................................................................... 216

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Introdução

Este livro apresenta os resultados de um trabalho de sistematização e análise da

experiência de diálogos políticos para construção de políticas públicas no âmbito da

Reunião Especializada sobre Agricultura Familiar do MERCOSUL (REAF). O foco

recai sobre os conteúdos e as formas emergentes de interação entre Estado e Sociedade

Civil no processo de construção e harmonização dos dispositivos institucionais, e de

desenho e implementação dos instrumentos de políticas para a agricultura familiar. Não

se trata, portanto, de uma avaliação das políticas vigentes em cada país, mas da

reconstrução analítica de um momento anterior, aquele da formulação de entendimentos

e compromissos entre gestores governamentais e lideranças sociais para arquitetar

novos mecanismos de ação pública.

A publicação foi incitada pela preocupação esboçada pela Organização das Nações

Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO-ONU) em compreender a singularidade

desta experiência sul-americana. Que ensinamentos a REAF pode aportar para aquelas

organizações que, em todo o mundo, estão empenhadas em construir novas trajetórias

de desenvolvimento rural, tendo como alicerce as formas familiares de produção

agropecuária? Se a especificidade do contexto político, econômico e cultural do

MERCOSUL não permite replicar esta experiência alhures, pode-se, ao menos,

aprender com o exemplo, extraindo dele aquilo que ele efetivamente oferece: a história

de uma improvável conjunção de atores e interesses que resultou na construção de um

espaço público absolutamente original, complexo pela sua simplicidade.

Não obstante, de antemão deve-se alertar que este livro pode desapontar aqueles que

procuram aqui uma análise rebuscada de um suposto modelo de ação pública. A REAF

não criou um modelo. Aquilo que os próprios atores denominam “método REAF” é,

antes de tudo, a expressão heterogênea e mutável de um conjunto de princípios

democráticos e republicanos, de valores éticos e cívicos que orientam os diálogos

políticos no interior de um fórum cuja marca mais característica é a diversidade.

Para chegar a esta compreensão foi imperativo conferir voz aos protagonistas da

história. Procuramos recolher depoimentos e interpretações de inúmeras pessoas que

estiveram à frente deste processo em diferentes momentos. O foco acabou se centrando

nos representantes das organizações e governos dos quatro países signatários do Tratado

de Assunção que criou o MERCOSUL (Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai). No

entanto, atualmente, a REAF constitui um fórum muito mais amplo e diverso,

abarcando novas organizações e novos países membros e associados ao bloco. Sempre

que possível, apresentamos informações relativas aos mesmos, priorizando situações em

que esses países ocuparam uma posição mais destacada na construção da agenda

política e na implementação de determinados programas discutidos regionalmente.

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O livro está estruturado em quatro partes. A primeira inicia com uma breve

caracterização da REAF e da sua estrutura organizacional (Capítulo 1). Em seguida,

apresenta-se uma espécie de justificativa geral do estudo, onde se elencam ainda

algumas pistas iniciais que podem ajudar a compreender a singularidade desta

experiência de diálogos entre Sociedade Civil e Estado (Capítulo 2). A isto segue uma

breve apresentação acerca do universo da agricultura familiar no MERCOSUL,

abarcando tanto os aspectos normativos de definição, quanto as informações básicas de

caracterização e distribuição territorial (Capítulo 3). Esta primeira parte é finalizada

com uma análise introdutória e igualmente sucinta do modo como a REAF foi capaz de

construir, a partir da diversidade que caracteriza os espaços rurais sul-americanos, uma

definição comum de agricultura familiar, que hoje orienta os países na construção de

políticas diferenciadas de desenvolvimento rural (Capítulo 4).

A segunda parte inicia com uma análise da trajetória histórica do MERCOSUL,

destacando as principais mudanças institucionais vivenciadas pelo bloco, com destaque

para a construção de uma agenda que acrescenta às negociações comerciais uma pauta

focada em políticas sociais e no incremento da participação cidadã (Capítulo 5). Segue-

se a isso uma sociogênese da REAF, demonstrando os principais fatos que antecederam

a criação deste fórum, os quais explicam a emergência de uma nova cultura política que

se tornou um elemento central para orientar a construção de sua estrutura organizacional

(Capítulo 6). Esta parte é encerrada com um resgate dos principais eventos e decisões

que marcaram os dez anos de existência da REAF, ao que se soma uma breve

apresentação dos avanços nas agendas de cada Grupo Temático (Capítulo 7).

A terceira parte focaliza os principais resultados da REAF no que tange à

institucionalização de políticas para a agricultura familiar. Neste sentido, inicia-se

discutindo a construção dos Sistemas Nacionais de Registros Voluntários da Agricultura

Familiar e suas implicações para o acesso às políticas diferenciadas de desenvolvimento

rural (Capítulo 8). O capítulo subseqüente focaliza os avanços regionais na

regulamentação e imposição de limites ao fenômeno da estrangeirização da propriedade

e do uso da terra (Capítulo 9). Em seguida, a atenção volta-se à construção do Programa

Regional de Fortalecimento de Políticas de Igualdade de Gênero na Agricultura

Familiar do MERCOSUL e suas conseqüências para o reconhecimento e

empoderamento das mulheres rurais (Capítulo 10). Esta discussão é sucedida por um

debate sobre o processo de afirmação dos jovens como atores imprescindíveis dos

diálogos sobre políticas públicas para a agricultura familiar e a contribuição do Curso

Regional de Jovens Rurais à formação de uma nova geração de lideranças sociais

(Capítulo 11). O penúltimo capítulo desta terceira parte focaliza a ação inovadora da

REAF, associada a outras entidades e fóruns públicos, no impulso a programas de

compras públicas de alimentos da agricultura familiar, o que vem fortalecendo uma

agenda de diálogos a partir do eixo da segurança alimentar e nutricional (Capítulo 12).

Por fim, a análise concentra-se em um resultado mais difuso que está associado com a

capacidade da REAF em potencializar projetos de cooperação bilateral entre os países

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sul-americanos, com destaque para as ações de intercâmbio na área de seguro rural e

gestão de riscos (Capítulo 13).

A partir deste esforço de reconstrução histórica e da análise do modo como se

desenrolaram os diálogos na REAF para a construção de determinadas ações, programas

e políticas públicas, a quarta e última parte do documento inicia discutindo os principais

aspectos organizacionais que viabilizam a existência da REAF como um sistema

suficientemente aberto e flexível para se adaptar a situações contingentes e a

incorporação de novos temas, atores e países (Capítulo 14). Esta discussão é

complementada por uma análise das mudanças recentes nos diálogos em virtude da

incorporação de novos atores e temas, com destaque para a aproximação com outros

países e blocos políticos latino-americanos (Capítulo 15). O livro é finalizado com uma

sistematização daquilo que foi recorrentemente apontado pelos entrevistados como os

principais desafios que se interpõem à continuidade dos diálogos regionais para a

construção de políticas públicas para a agricultura familiar (Capítulo 16).

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PARTE I – Um novo formato de ação pública

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1. A Reunião Especializada sobre Agricultura Familiar do MERCOSUL (REAF)

A Reunião Especializada sobre Agricultura Familiar (REAF) é um fórum de diálogos

políticos entre governos e organizações sociais constituído formalmente no âmbito do

Mercado Comum do Sul (MERCOSUL), cuja finalidade é fortalecer as políticas

públicas para a agricultura familiar e facilitar o comércio regional da produção oriunda

deste segmento social. Sua criação ocorreu em 25 de junho de 2004, a partir da

publicação da Resolução 11/2004 do Grupo Mercado Comum (GMC), a qual também

estabelece os objetivos, as condições de participação e o modo de funcionamento deste

espaço público.

Assim como as demais reuniões especializadas, a REAF constitui um órgão auxiliar e

assessor do GMC, instância executiva do MERCOSUL vinculada diretamente ao

Conselho do Mercado Comum (CMC), o qual é o espaço supremo de decisões que

conduz politicamente o processo de integração regional. As deliberações aferidas pela

REAF constituem propostas e recomendações sobre políticas que, para se tornarem

efetivas, necessitam a aprovação do GMC ou CMC. Uma vez acatadas, estas passam a

compor um conjunto de instrumentos normativos1 que orientam as ações dos Estados

Membros (Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai e Venezuela) e Associados (Bolívia,

Chile, Colômbia, Equador e Peru) no que se refere a um amplo conjunto de

instrumentos de políticas.

Para além das reuniões bianuais em âmbito regional, a estrutura organizacional da

REAF envolve o trabalho intenso das Seções Nacionais, consideradas como elemento

essencial do ponto de vista político e metodológico. Estabelecidas em todos os países

membros, com formatos e modos de organização que respeitam as características de

cada Estado, as Seções Nacionais também reúnem representantes dos órgãos

governamentais e das organizações sociais da agricultura familiar, camponesa e

indígena. Os encontros nacionais constituem uma instância anterior à reunião regional,

onde são previamente debatidos os temas da pauta com vistas a orientar a intervenção

dos representantes que ali são escolhidos para participar da plenária regional.

Outro espaço prioritário de diálogo encontra-se nos Grupos Temáticos (GT),

estabelecidos tanto nacional quanto regionalmente. Os grupos foram criados justamente

para dinamizar as discussões em torno de temas considerados prioritários à agenda

regional. Os mesmos são igualmente formados por delegados escolhidos dentre os

representantes oficiais e membros da sociedade civil. É a partir deste espaço que é

encaminhada a maioria das sugestões para deliberação da seção plenária regional.

Atualmente, a REAF abriga cinco GTs: (i) Políticas fundiárias, acesso à terra e reforma

1 Podem ser aprovadas Decisões, Resoluções e Diretrizes (de caráter obrigatório para os Estados

Membros) ou Recomendações (de caráter não obrigatório para os Estados, de modo que sua incorporação

aos ordenamentos jurídicos nacionais é opcional).

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agrária; (ii) Facilitação do comércio; (iii) Equidade de gênero; (iv) Gestão do risco e

mudança climática; e (v) Juventude Rural. Complementarmente, também foi criado um

Grupo Técnico específico para discutir os Sistemas de Registro Nacional da Agricultura

Familiar.

Uma particularidade importante da REAF em relação a outras reuniões especializadas

do MERCOSUL é que, previamente a sua abertura formal e ao trabalho dos GT, ela

abriga reuniões da sociedade civil organizada. Trata-se de um espaço de diálogo entre as

organizações sociais a partir do qual é redigido um documento que reúne as principais

reivindicações dos agricultores familiares, camponeses e indígenas no que diz respeito

ao desenho das políticas públicas. Encaminhado para leitura na Seção Plenária Final,

este documento contribui para balizar os diálogos políticos entre os representantes dos

governo e dos movimentos sociais, abrindo caminho para a incorporação de novos

temas à agenda pública.

Paralelamente às reuniões da sociedade civil e dos GT, a REAF comporta ainda um

espaço específico de diálogo entre os Coordenadores Nacionais de cada um dos Estados

membros e associados. Este constitui o espaço institucional onde os representantes

escolhidos para representar os governos de cada país perante esta instância do

MERCOSUL debatem e selam compromissos para assegurar a adequada condução da

plataforma de diálogos políticos. Ali são discutidos aspectos como a metodologia dos

debates, as formas de tratamento de determinados temas, o programa da seção plenária

final, as atividades levadas à cabo coletivamente entre os governos (seminários, cursos,

programas etc.) e as propostas de cooperação entre a REAF e as organizações

multilaterais com atuação relacionada à agricultura e ao desenvolvimento rural.

Figura 1 – Visão esquemática do ‘Sistema REAF’.

Fonte: Elaboração própria.

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Em que pese o foco em ações regionais, o êxito da REAF depende fundamentalmente

do modo como os diversos Estados se apropriam desse espaço de diálogo, tornando-o

um fórum privilegiado para formulação e avaliação das políticas públicas. Isso acontece

de forma muito variada de um contexto para outro e em diferentes momentos históricos.

Em alguns países, por exemplo, as Seções Nacionais também se tornaram um dos

principais espaços de debate não apenas da agenda regional, mas das políticas

domésticas. Em outros, contudo, já houve momentos de um protagonismo constrangido

da Seção Nacional em virtude de divergências locais que afastaram do processo

determinados atores, bloqueando a construção de compromissos mais amplos para a

formulação de políticas ativas de desenvolvimento rural.

Seja como for, ao longo dos seus dez anos de funcionamento, a REAF influenciou de

modo substancial a institucionalização da agricultura familiar em diferentes países e no

âmbito regional. Sua criação corroborou o reconhecimento, por vezes contestado, de

uma categoria específica de agricultores que mereciam um olhar diferenciado do Estado

e da Sociedade. Neste sentido, a criação da REAF constituiu em si mesma um avanço

significativo na medida em que contrariou a idéia outrora acolhida por alguns governos

de que em seus países “existia uma única agricultura”, o que geralmente resultava no

privilégio concedido aos setores do agronegócio2. De outro modo, a construção da

REAF tornou imperioso reconhecer formas específicas de produção, gestão e trabalho

que tem como fundamento a estrutura e a dinâmica das famílias rurais (Ramos et al.,

2014).

A criação deste fórum resultou fundamental para promover uma mudança de paradigma

no que diz respeito à compreensão do lugar e do papel das formas familiares de

produção. Antigamente relegadas à representação de uma ‘pequena agricultura’,

marginal e incapaz de constituir uma via para a ‘modernização do meio rural’, esse

segmento passou a ser visto como legítimo porta-voz dos modelos mais inovadores de

desenvolvimento rural sustentável. Como destaca Eduardo Polcan, do Ministerio de

Agricultura, Ganadería y Pesca (MAGyP) da Argentina, a REAF colaborou para a

criação de estruturas específicas que atendem a uma nova geração de políticas públicas:

Desde el punto de vista institucional, en Argentina, en 2004, no se

hablaba en agricultura familiar. El término no estaba en el escenario

de Argentina. Se hablaba de pequeños productores, pequeños y

medianos productores; poco de campesinado. Y de ahí en adelante

tenemos el CIPAF, SENAF, RENAF, RENOAF, todos para la

agricultura familiar. O sea, todo eso son instituciones que se fueron

2 No âmbito regional, esses setores são representados pela Federação das Associações Rurais do Mercosul

(FARM). Como aponta Riella (2002), diferentemente das organizações da agricultura familiar, esses

setores raramente apresentaram interesse em constituir um espaço de diálogo político para a construção

de políticas públicas no âmbito regional, haja vista que possuem vínculos bastante consolidados com o

poder institucionalizado em cada país.

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creando. Hoy tenemos una Secretaria de Agricultura Familiar y una

Secretaría de Desarrollo Rural. (Eduardo Polcan).3

Em alguma medida, a REAF contribuiu para consolidar uma mudança que já estava em

curso em alguns países desde meados dos anos 1990, mas que se tornou mais evidente

na década seguinte. Trata-se de uma mudança de orientação ideológica que reconhece a

agricultura familiar como segmento estratégico para o desenvolvimento social e

econômico (Mielitz Netto, 2011). A agricultura familiar não apenas deixou de ser vista

como sinônimo de pobreza, para tornar-se parte ativa da solução para esse fenômeno,

assim como para os problemas relacionados à segurança alimentar e nutricional, à

garantia de renda e qualidade de vida para as populações rurais, à valorização dos bens

públicos, das formas culturais e dos modos de vida rurais; à preservação do patrimônio

natural e cultural dos territórios latino-americanos.

Estas justificativas passaram a ser utilizadas como propulsores de um processo de

harmonização das políticas públicas para a agricultura familiar no contexto regional.

Com efeito, mesmo naqueles países onde a criação de políticas mais incisivas foi

parcialmente freada pela resistência imposta por setores conservadores, geralmente

vinculados ao chamado “agronegócio”, a REAF conseguiu ao menos cumprir um papel

central para legitimar as lutas sociais pelo reconhecimento das agriculturas familiares,

camponesas e indígenas. Ao longo dos últimos dez anos, diferentes organizações sociais

passaram a utilizar este fórum e as propostas ali construídas como um elemento de

reforço discursivo em suas lutas para justificar o apoio ou a oposição a determinadas

políticas e regulamentações locais e regionais (Riella, 2002).

O modo como os Estados se apropriam desta experiência também repercute nas

condições de ação da REAF. Hoje seu funcionamento conta com recursos do Fundo de

Agricultura Familiar (FAF)4, o qual é formado por aportes obrigatórios e/ou voluntários

dos países membros e associados. Esses recursos são fundamentais para garantir a

presença de atores da sociedade civil nas reuniões e para sustentar as atividades da

Secretaria Técnica, órgão operacional que, em conjunto com os Estados, atua na

organização das reuniões e de um amplo conjunto de ações empreendidas a partir das

decisões da REAF (cursos, seminários, oficinas, programas, publicações, divulgação

etc.). A rigor, contudo, os recursos do FAF compõem apenas uma parte do investimento

que não apenas os Governos, mas também as organizações sociais realizam para

viabilizar a presença dos seus representantes nos diversos fóruns e atividades. Mais do

que uma reunião especializada, hoje a REAF se constitui como uma ampla rede de

3 Eduardo Polcan. Director de Negociaciones Regionales y Controversias do Ministerio de Agricultura,

Ganadería y Pesca (MAGyP). Coordenador Nacional Alterno da REAF na Argentina. Estrato de

entrevista concedida ao autor em dezembro de 2014.

4 Criado pela Decisão 45/2008 e regulamentado pela Decisão 06/2009, ambas do CMC, o próprio FAF

pode ser considerado uma importante inovação institucional no âmbito do MERCOSUL. Como veremos

à frente, a criação do fundo demandou importante debate político, revelando-se um componente central

para a consolidação financeira e política da REAF.

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ações políticas com abrangência regional, algo singular na história agrária sul-

americana.

Finalmente, é imprescindível destacar nesta breve caracterização inicial o vínculo

estreito que a REAF estabelece com um conjunto de organizações multilaterais, em

especial com o Programa Regional FIDA-MERCOSUL. Como veremos à frente, o

mesmo foi essencial ao longo de todo o processo de constituição da REAF, seja do

ponto de vista do aporte de recursos financeiros, seja no que diz respeito à assessoria

permanente para a formatação da estrutura organizacional e dos princípios

metodológicos que orientam a plataforma de diálogos políticos. Mais recentemente

também nota-se um movimento de ampliação da cooperação com a Organização das

Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO-ONU), a qual inclusive se

tornou a gestora financeira dos recursos do FAF em virtude da inexistência de um

marco jurídico que permita à própria REAF fazê-lo.

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2. Uma experiência para ser documentada e analisada

Há meio século, um dos principais estudiosos das economias latino-americanas, Albert

Hirschman (1961), sugeriu que “o desenvolvimento não depende tanto de encontrar

ótima confluência de certos recursos e fatores de produção, quanto de provocar e

mobilizar, com propósito desenvolvimentista, os recursos e as aptidões que se acham

ocultos, dispersos ou mal empregados”. Diferentemente dos demais economistas

heterodoxos da época, em particular daqueles que acentuavam os bloqueios impostos

pelo modelo dependentista que havia se consolidado na região, Hirschman procurava

reconhecer como determinadas mudanças sociopolíticas, algumas imperceptíveis aos

olhos dos gestores e dos acadêmicos, poderiam conter o embrião de profundas

transformações societárias.

Avesso às receitas prontas que os países centrais buscavam inapropriadamente replicar

no restante do mundo, Hirschman refutava uma ideia do desenvolvimento enquanto o

resultado final alcançado por um esquema de planejamento racional ou o saldo global

de ações individuais movidas por interesses egoístas. Trata-se, de outro modo, de um

processo de escolhas políticas em que se busca gerir uma cadeia de desequilíbrios,

tratando desigualmente os desiguais. Nesta perspectiva, o desenvolvimento pressupõe

um compromisso moral com a governança dos bens comuns e uma ação proativa para a

inclusão social, a participação cidadã e a garantia das liberdades e direitos individuais e

coletivos. Por sua vez, dentre as condições fundamentais para que este processo seja

desencadeado está a imprescindibilidade de ‘bons governos’ cercados por ‘boas

pressões sociais’, em um ambiente democrático propício ao diálogo e à concertação

política (Maluf, 2015).

No período recente, a importância do diálogo político para a promoção do

desenvolvimento tornou-se objeto de interesse de inúmeras organizações, sejam aquelas

implicadas nos conselhos constituídos localmente para a gestão de políticas públicas,

sejam aquelas atuando no plano das relações internacionais multilaterais. Há uma razão

para isso: ao mesmo tempo em que as instituições foram alçadas como fatores centrais

para compreender as diferentes trajetórias dos países e regiões (Chang, 2002; Ostrom,

1990; Evans, 2003), termos como governança, participação e accountability tornaram-

se conceitos recorrentes na literatura acadêmica, mas também nos programas dos

governos e nas agendas dos movimentos sociais. A partir desses termos tem-se

procurado explicar a emergência de novos formatos de “ação pública”. Em oposição ao

modelo clássico de políticas concebidas por um Estado altamente centralizado, atuando

sobre setores bem definidos e delimitados, a idéia de ação pública sugere interações

mais abertas e dinâmicas entre os vários atores que participam da construção,

implementação, monitoramento e avaliação das políticas em seus mais variados níveis

(Lascoumes e Le Galès, 2009; Massardier, 2008; Hassenteufel, 2008).

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Diferentemente do que se pode imaginar à primeira vista, estes novos formatos de

interação para a gestão das políticas não reduzem o papel do Estado. Mas este é

redefinido em vista de sua interface cada vez mais evidente com outras

institucionalidades. As novas políticas públicas são construídas em fóruns híbridos,

onde a fronteira entre Estado e Sociedade Civil torna-se permeável e nebulosa.

No contexto latino-americano a emergência destes novos modelos de ação pública é

resultado, dentre outras coisas, dos avanços democráticos que foram logrados nas

últimas décadas (fim de ditaduras militares, reabertura política, eleições diretas e

universais), associados à reorganização da estrutura administrativa dos Estados

nacionais, em particular aos processos de descentralização da formulação, execução e

avaliação das políticas públicas. Estes processos fizeram proliferar inúmeras instâncias

de participação social e de construção da cidadania. Conselhos, câmaras, comitês e

colegiados foram criados em diferentes níveis de governança, da escala local à nacional,

incluindo ainda uma referência mais recente aos “territórios”. Assim, ao mesmo tempo

em que foram estabelecidos mecanismos para melhorar a transparência na gestão dos

recursos públicos, ampliaram-se os mecanismos de controle social do Estado.

É verdade que na década de 1990 uma parcela destas mudanças já estava em curso, mas

transcorreu como parte de uma “confluência perversa” (Dagnino, 2002), a qual fez com

que as reivindicações da sociedade civil por participação caminhassem ao encontro de

uma estratégia deliberada de redução da intervenção governamental em pleno contexto

de desregulamentação neoliberal, seguindo a receita de Reforma do Estado sugerida

pelos organismos financeiros internacionais com vistas a amenizar a crise da dívida

pública. De outro modo, nos anos 2000 a ampliação da participação social e a melhoria

dos mecanismos de gestão descentralizada também revelaram potencial para fortalecer a

ação estatal. Historicamente, a experiência de vários países já havia mostrado que uma

presença ativa do Estado em diferentes domínios da vida social não era incompatível

com o incremento da participação e a garantia das liberdades democráticas (Chang,

2002).

Para além das mudanças macropolíticas que ocorreram em todo o MERCOSUL, o

crescente entendimento entre Estado e Sociedade Civil se tornou possível em virtude

das alterações operadas nas redes de políticas públicas no decorrer da última década.

Em diversos países, a chegada ao poder de ex-lideranças sindicais ou de gestores e

legisladores com diálogo mais próximo com as organizações sociais, levou para dentro

do Estado novos atores, os quais se tornaram porta-vozes de valores, referenciais e

ideias inovadores. Assim, por um lado, acentuou-se o trânsito dos mesmos atores entre

as esferas do Governo e da Sociedade Civil e, por outro, constituíram-se novos fóruns

públicos de diálogo permanente, no interior dos quais organizações até então marginais

ou com pouca expressividade nas arenas de decisão pública passaram a interagir de

maneira dinâmica entre elas e com as entidades governamentais. Rompida a

desconfiança inicial sobre os usos que seriam conferidos aos espaços de concertação

social, eles passaram a potencializar a produção de entendimentos e, acima de tudo,

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legitimaram as lutas por reconhecimento que, ao longo do tempo, tornaram visíveis

grupos sociais antes marginalizados do acesso ao Estado e às políticas públicas, como é

o caso da agricultura familiar, camponesa e indígena.

No plano regional, a REAF pode ser considerada um exemplo particularmente exitoso

deste novo momento e destes novos modelos de diálogo para a construção de políticas

públicas para a agricultura familiar. Sua construção responde às mudanças em curso na

geopolítica do MERCOSUL processadas desde a criação do bloco, em 1991, em

particular a partir da ocasião em que se configura uma maior aproximação entre as

agendas políticas governamentais. Como resultado da coalizão programática entre

governos comprometidos com mudanças democráticas, ampliação da participação social

e crescimento econômico com equidade social, a partir do início dos anos 2000, o

MERCOSUL deixa de ser apenas um acordo comercial com sérias dificuldades

econômicas para se tornar um bloco político5, que procura fortalecer práticas de

reciprocidade entre os países e uma identidade comum sul-americana, respeitada a

diversidade econômica, cultural e política dos diferentes Estados membros e associados.

Assim, mesmo situada junto às discussões comerciais e tarifárias que ainda predominam

no Grupo Mercado Comum (GMC), a pauta da REAF distingue-se ao evidenciar uma

das experiências mais bem estruturadas deste novo processo de diálogo político no

âmbito regional. Por conseguinte, a compreensão da sua dinâmica tornou-se objeto de

interesse não apenas dos atores presentes nos demais fóruns estabelecidos no âmbito do

MERCOSUL, mas também de representantes de outros países e blocos. A presença nas

reuniões de entidades governamentais e da sociedade civil de países centro-americanos,

da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC), da União de

Nações Sul-Americanas (UNASUL) e da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa

(CPLP) é uma das evidências de que este processo de integração política (mais do que

comercial) tem obtido amplo reconhecimento e potencial para extrapolar os limites

regionais.

Uma das razões para isto deve-se ao modo particular como a REAF incorpora a

Sociedade Civil a uma discussão que, alhures, em outros fóruns multilaterais, inclusive

dentro do próprio MERCOSUL, é conduzida prioritariamente, senão exclusivamente,

por órgãos do Estado. Neste sentido, cabe notar que a criação de um espaço próprio para

discutir alternativas para a agricultura familiar em face dos processos de abertura do

comércio regional foi, antes de tudo, uma reivindicação da sociedade civil organizada.

Em resposta ao aumento da vulnerabilidade econômica ocasionada por processos de

liberalização comercial levados à cabo nos anos 1990, organizações da agricultura

familiar, em particular a Coordinadora de Organizaciones de Productores Familiares del

5 Como afirmam Ramos et al. (2014, p. 475), “Luego de la crisis política, económica y financiera de los

años 2000 al 2002, la conducción del Bloque se alineó bajo la premisa que lo comercial era instrumental a

lo político.”

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Mercosur (COPROFAM)6, passaram a reivindicar do MERCOSUL um conjunto de

políticas diferenciadas de desenvolvimento rural.

Desde a criação da REAF, a sociedade civil nunca mais saiu da mesa de negociações.

Mais do que isso, as organizações passaram a reivindicar este fórum como uma

conquista dos movimentos sociais, mais do que o resultado da integração entre os

governos. Hoje, agricultoras e técnicos governamentais, jovens camponeses e ministros

de Estado; indígenas e consultores das organizações internacionais, estão sentados à

mesma mesa de diálogo, em posições que, se não são exatamente iguais – haja vista as

condições diferenciadas de acesso aos recursos políticos e discursivos necessários para

sustentar as posições –, são menos assimétricas do que em outros fóruns com objetivos

similares. Como afirma Alessandra Lunas, representante da Confederação Nacional dos

Trabalhadores na Agricultura do Brasil (CONTAG), “la REAF en si es un gran logro

porque es una conquista de las organizaciones de la sociedad civil del Mercosur... Tener

un espacio de construcción conjunta de diálogo entre la sociedad civil y los gobiernos

para pensar políticas públicas para la agricultura familiar es una experiencia única en el

mundo”7.

Mas como pode funcionar tal experiência em face das disparidades que seguramente

existem entre as realidades dos países do bloco (membros efetivos e associados), e que

se expressam nas formas de organização, nas agendas políticas, nos interesses e nos

discursos tanto das entidades do Estado quanto da Sociedade Civil? De fato, como

afirmou Guilherme Cassel, ex-ministro brasileiro do Desenvolvimento Agrário, por

ocasião do seminário comemorativo aos dez anos da REAF que antecedeu a abertura da

XXII Reunião, realizada em Montevidéu em dezembro de 2014, “a REAF era um

espaço improvável”. Em face das condições em que se encontrava o MERCOSUL

enquanto bloco econômico e do peso de uma histórica cultura de embates comerciais

muito mais do que de diálogo político, tudo sugeria que a trajetória desta experiência

poderia ser abreviada. Hoje, ao contrário, fala-se em consolidação, renovação,

ampliação e qualificação.

Isto parece exequível quando se analisa o modo como ocorreu a criação de um espaço

público onde, por meio de um esforço insistente e continuado de “ação comunicativa”

(Habermas, 2001), foi possível produzir entendimentos e compromissos entre atores

com muito interesses diversos. Mais do que isto, o diálogo produziu confiança,

6 Compuseram a entidade na sua criação, em 1994, as seguintes organizações: Federação Agrária

Argentina (FAA – Argentina), Confederação Nacional de Trabalhadores na Agricultura (CONTAG –

Brasil), União Agrícola Nacional, (UAN – Paraguai), Mesa Coordenadora de Organizações de Produtores

Familiares (Argentina), Comissão Nacional de Fomento Rural (CNFR – Uruguai), Intergremial de

Produtores de Leite (IPL – Uruguai), Associação de Colonos (ACU – Uruguai), Coordenadora de

Integração de Organizações Econômicas Campesinas (CIOEC - Bolívia).

7 Alessandra Lunas. Secretária de Mulheres Trabalhadoras Rurais da CONTAG – Brasil. Também foi

Vice-Presidente e Secretaria de Relações Internacionais da CONTAG. Depoimento publicado em

“REAF, 10 años cambiando realidades”, 2014.

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reciprocidade e cumplicidade. Ao longo destes dez anos os atores aprenderam a mediar

as divergências por meio de um comportamento que preza pelo respeito à diferença,

sabendo que os avanços na direção da construção das políticas para a agricultura

familiar não podem sobrepujar as variadas realidades políticas, econômicas e

institucionais de cada país. Isto envolve um processo de aprendizagem que se expressa

na vaga ideia que os atores possuem sobre um “método REAF”. Apesar da rotatividade

e da renovação dos representantes, incluindo novos países, reproduz-se uma

metodologia assentada em regras formais que estruturam os diálogos, mas, sobretudo,

em convenções tácitas coletivamente acordadas que parecem cumprir uma função

primordial para o funcionamento deste espaço. São regras informais que não estão

escritas e que raramente são verbalizadas, mas que são incorporadas pelos atores ao

longo do próprio processo de interação, o qual ocorre dentro e fora dos ambientes mais

formalizados da Reunião.

Para alguns analistas, esta compreensão inicial já pode soar demasiadamente otimista

com os resultados do processo. Afinal, onde estão os conflitos que transformam o fórum

em uma arena política? Eles estão imersos neste mesmo processo de diálogo. Fazem

parte das negociações, da formação dos acordos, da criação do espaço público. E são tão

importantes para o funcionamento da REAF quanto a cooperação, de modo que opor

diametralmente conflito e cooperação resultaria na incapacidade de compreender a

complexidade das relações sociais que ali se processam. Portanto, os embates políticos

devem ser analisados como parte inseparável da construção do diálogo, dos acordos e

entendimentos, e não como um momento distinto, como se compusesse uma etapa

diferente das interações políticas.

Para interpretar esta experiência é necessário reconhecer e analisar os percalços, as

dificuldades e os desafios que marcam a trajetória da REAF. Quais foram os momentos

críticos do diálogo? Quais decisões tiveram que ser postergadas? Que assuntos foram

retirados da pauta? Quem esteve ausente dos debates? Como as divergências foram

trabalhadas? Como a sociedade civil pode manter sua autonomia ao mesmo tempo em

que dialoga com os governos? Como os governos podem responder às reivindicações

sociais em face dos constrangimentos institucionais e financeiros dos Estados? Como é

possível reduzir as assimetrias entre os interlocutores do debate evitando que a presença

se transforme apenas em legitimação? Quais são as condições para que os atores

participem de forma qualificada dos diálogos, incidindo sobre o desenho das políticas

públicas? Como incorporar novos membros (organizações e países) abarcando maior

diversidade social sem colocar em risco os acordos já constituídos? Como aproximar as

discussões do contexto mais próximo à realidade dos agricultores que estão sendo

representados? São questões deste tipo que merecerão nossa atenção ao longo deste

esforço de sistematização e análise de uma década de diálogos políticos.

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3. Agricultura familiar no Mercosul

Os últimos dois anos constituíram um período particularmente profícuo para as

discussões sobre agricultura familiar e políticas de desenvolvimento rural. Motivadas

pelos debates em torno do Ano Internacional da Agricultura Familiar (AIAF, 2014),

várias publicações institucionais e acadêmicas apresentaram importantes contribuições

acerca da caracterização deste segmento social e das políticas públicas a ele dirigidas

(FAO, 2015; CEPAL/FAO/IICA, 2014; Sabourin, Samper e Sotomayor, 2014; Salcedo

e Guzmán, 2014; Lowder, Skoet e Singh, 2014; Niederle, Fialho e Conterato, 2014).

Nesta seção retomamos brevemente alguns elementos de caracterização apenas com a

finalidade de situar o contexto mais geral dentro do qual as discussões da REAF são

conduzidas. Afinal, todo o processo de diálogo para a produção de novos formatos de

ação pública não representa um fim em si mesmo. Ele se legitima na medida em que as

políticas conectam-se à realidade daqueles grupos sociais que conferem sentido à

categoria “agricultura familiar”.

Diversidade é a palavra-chave para acessar o conteúdo desta categoria sociopolítica.

Todos os esforços de definição conceitual e operacional se deparam com o desafio de

reconhecer uma forma de produção lastreada por relações socioculturais familiares e

comunitárias que guarda inúmeras especificidades territoriais (Craviotti, 2012;

Schneider, 2011; Piñero, 2005). Se isso já é evidente dentro de um mesmo país, o que

dizer quando a escala amplia-se para o nível regional ou global? O investimento que a

FAO vem realizando, a partir de um grupo de trabalho internacional (IWG-FF) que

busca critérios comuns para orientar a identificação e tipificação da agricultura familiar

em âmbito mundial, revela a atualidade desta discussão, ao mesmo tempo em que

ratifica não ser possível nem desejável delimitar uma única direção conceitual (FAO,

2015).

A REAF é constantemente desafiada a trabalhar com esta diversidade. A expressão mais

evidente disso é o modo como as formas camponesas e indígenas demandam o

reconhecimento de suas identidades particulares. Soma-se a isso a situação de inúmeros

outros povos e comunidades tradicionais que também exigem um olhar específico do

Estado e da Sociedade. Nos seus dez anos de existência, o primeiro saldo da REAF está

associado ao interconhecimento das múltiplas realidades dos atores do diálogo. De fato,

na origem etimológica do termo, diálogo remete a compartilhamento de significados

por meio de um coletivo. É isso que a REAF possibilita: o reconhecimento de que,

apesar da marcante heterogeneidade regional, existe um “air de famille” entre o

camponês ecologista do departamento paraguaio de San Pedro e o indígena do altiplano

boliviano; entre o pequeno pecuarista do chaco argentino e o assentado do semi-árido

brasileiro; entre o viticultor artesanal chileno e o horticultor uruguaio de Canelones.

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Compreender esta diversidade é fundamental para reconhecer que cada país necessita

construir uma definição condizente com suas particularidades históricas, sociais,

políticas, econômicas e ambientais. Isso não impede, contudo, a construção de

entendimentos sobre parâmetros mínimos de identificação. A agricultura familiar é o

resultado de um processo político construído na intersecção entre a ação reivindicatória

dos movimentos sociais, a renovação dos estudos rurais e o protagonismo do Estado na

criação de novas políticas de desenvolvimento rural. É compreensível que em cada país

esse processo tenha assumido temporalidades e características específicas. Mesmo

assim, a unificação dos discursos tem a ver com o modo como a noção foi capaz de

orientar uma agenda de mudanças para o mundo rural.

A seguir, o Quadro 1 sintetiza as denominações e os critérios de delimitação da

categoria. Dentre os países membros do MERCOSUL, com exceção da Venezuela que

ingressou no bloco mais recentemente, as denominação oficiais utilizadas nos Censos

Agropecuários exibem um entendimento sobre a natureza familiar que unifica este tipo

de agricultura que, outrora, era mais claramente identificada por outro tipo de

adjetivação: pequenos produtores, minifundiários, produtores de subsistência,

população rural de baixa renda. As novas definições institucionalizam um novo olhar

sobre este grupo social, o qual já não focaliza prioritariamente os limites de

propriedade, a incompletude das relações mercantis ou a incapacidade de aferir renda

monetária, ainda que critérios deste tipo continuem recorrentes nas definições.

De modo geral, os países trabalham com cinco critérios básicos. Em primeiro lugar,

nota-se que a unidade entre trabalho e gestão familiar constitui o cerne conceitual da

categoria. No caso do trabalho, as diferenças normativas dizem respeito,

fundamentalmente, aos limites para incorporação de mão de obra externa ao

estabelecimento. Já no que tange à gestão, as discussões estão associadas à

possibilidade de individualização do processo, que não precisa envolver o conjunto do

núcleo familiar.

Do mesmo modo, a extensão da propriedade sempre constituiu um parâmetro-chave

para diferenciar a agricultura familiar no universo dos estabelecimentos agropecuários.

Isso é decorrência da própria origem das discussões políticas sobre a categoria, a qual

esteve parcialmente associada às reivindicações dos pequenos agricultores minifundistas

e dos movimentos de luta pela terra e por políticas de reforma agrária. Este critério

permanece presente nas legislações brasileira e uruguaia, mas nada consta a respeito nos

casos argentino e paraguaio, pelo menos não neste nível normativo.

O parâmetro rendimento também é recorrente nas discussões conceituais. Inicialmente,

havia uma preocupação tanto dos gestores públicos quanto das próprias organizações da

sociedade civil para que as políticas diferenciadas não fossem apropriadas por atores

com maior poder econômico. Os exemplos históricos advindos das políticas de

modernização agrícola, criadas a partir dos anos 1960, ratificavam este tipo de

inquietude. Deste modo, alguns países passaram a estabelecer limites máximos de renda

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por estabelecimento. Se, atualmente, as legislações que concernem à definição da

agricultura familiar não retomam este tipo de limite, à frente veremos que ele ainda é

recorrente nas regras para acesso às políticas públicas.

Uma preocupação igualmente presente aos gestores no momento de institucionalização

da categoria esteve associada com a garantia de que os rendimentos fossem

predominantemente provenientes do estabelecimento familiar – o que se torna ainda

mais estrito nos países que estipulam a prevalência de rendas com origem nas atividades

agropecuárias. Este tipo de regra tem produzido importantes discussões no período

recente, sobretudo em virtude dos constrangimentos que cria ao desenvolvimento da

pluriatividade e da multifuncionalidade da agricultura familiar.

Quadro 1 – Denominação e critérios de delimitação da agricultura familiar nos países selecionados.

País Norma Denominação Superfície e

capital Trabalho

Gestão ou atividade

Renda Residência

Argentina

Lei 27.118/2015 Agricultor Familiar Nada consta

Predominantemente familiar

Gestão pelo produtor ou membro da família

Principalmente da atividade agropecuária no estabelecimento

No meio rural ou localidade mais próxima

Brasil Lei 11.326/2006 Lei 12.512/2011

Agricultor Familiar

Até 4 módulos fiscais

Predominantemente familiar Gestão familiar

Percentual mínimo oriundo do estabelecimento Nada consta

Paraguai

Lei 2.419/2004

Agricultor Familiar Campesino Nada consta

Predominantemente familiar Nada consta

Ingresso extra-estabelecimento complementar Nada consta

Uruguai Res. 527/2008 Res. 219/2014 Res. 387/2014

Produtor Familiar

Até 500 ha (índice 100 CONEAT)

Familiar e até 2 assalariados permanentes ou 500 jornadas/ano

Gestão familiar ou chefe da família

Ingresso extra-estabelecimento inferior a 14 BPC

No estabelecimento ou até 50 Km

Fonte: Argentina, Lei 27.118/2015. Brasil, Lei 11.326/2006 e Lei 12.512/2011. Paraguai, Lei 2.419/2004. Uruguai, Res. 527/2008, Res. 219/2014 e Res. 387/2014.

Finalmente, há um parâmetro associado ao local de residência da família, o qual é

relevante, sobretudo, naquelas regiões que presenciaram a migração para os centros

urbanos de agricultores que, sem residir no estabelecimento rural, mantiveram a posse e

o uso da terra para fins agropecuários e em regime de economia familiar. Embora não

esteja presente em todas as definições adotada pelas legislações citadas no Quadro 1,

geralmente os países procuram estabelecer um perímetro dentro do qual o(a)

agricultor(a) e sua família devem residir – o que teoricamente atestaria a possibilidade

do(s) mesmo(s) continuarem desempenhando normalmente a gestão e o trabalho na

unidade familiar de produção.

Dentre todas as normativas acima apresentadas, o caso mais destoante é o do Paraguai,

cuja regra acentua o caráter campesino e minifundista de grande parte da sua agricultura

familiar. A legislação paraguaia define conceitualmente a agricultura familiar como

aquela que possui sua “producción básicamente de autoconsumo y parcialmente

mercantil, completando los ingresos a partir de otras producciones de carácter artesanal

o extra predial.” (Lei 2.419/2004). Note-se ainda que nada consta a respeito de

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parâmetros como superfície e capital, gestão familiar ou local de residência. No entanto,

é imprescindível considerar que, neste caso, estamos tratando da Lei 2.419 de 2004, a

qual criou o Instituto Nacional de Desenvolvimento Rural e da Terra. Como veremos à

frente, posteriormente, o país também incorpora critérios mais específicos, mas isso já é

fruto das discussões conduzidas no âmbito da Seção Nacional da REAF com vistas à

implantação do Registro Nacional de Agricultores Familiares (o que será analisado no

Capítulo 8).

O caso uruguaio merece destaque por dois motivos. O primeiro tem a ver com o fato de

que sua regulamentação exibe critérios mais estritos que nos demais casos. De modo

geral, um nível muito alto de especificações pode resultar em algumas dificuldades caso

exista uma demanda futura por readequações dos critérios de enquadramento para

acesso às políticas públicas diferenciadas. No entanto, esta situação não é agravada no

caso uruguaio porque a normatização em vigor remete a Resoluções do Ministerio de

Ganadería, Agricultura y Pesca (MGAP), as quais são manejadas no interior deste

órgão. De outro modo, na Argentina e no Brasil, onde foram aprovadas Leis que

necessitam tramitar nos Congressos Nacionais, existem parâmetros mais gerais de

definição – mas, como veremos à frente, estes países também lançam mão de critérios

mais específicos em seus instrumentos de registro (RENAF e DAP, respectivamente).8

A segunda particularidade do caso uruguaio decorre da definição institucionalizada. A

noção de “Produtor Familiar” reconhece que a maioria dos seus agricultores familiares

dedica-se fundamentalmente à pecuária, característica singular da história agrária deste

país. Como destaca Fernando Sganga, gestor público na Direção Nacional de

Desenvolvimento Rural do MGAP,

Nosotros hablamos de Productores Familiares y no de agricultores

familiares. Porque hablamos de Productores Familiares? Respectamos

el hecho de que la mayoría de nuestros agricultores familiares son

ganaderos. Este es el resultado del diálogo que se generó con todos los

actores que trabajaban en el Ministerio de Agricultura y también en la

sociedad civil, en la Sección Nacional. Además, fue realizada una

consulta nacional para las organizaciones sociales. (Fernando

Sganga).9

8 Voltaremos a esta discussão e às definições normativas no Capítulo 8, momento em que as mesmas

serão comparadas com os critérios estabelecidos para operacionalização dos Registros Nacionais

Voluntários de Agricultores Familiares. Para evitar uma confusão recorrente, desde já é importante

ratificar que os Registros podem se basear em regulamentos específicos que conferem maior objetividade

à identificação do público beneficiário das políticas de desenvolvimento rural. À título de ilustração,

enquanto no Brasil a Lei 11.326/2006 exige apenas a necessidade um percentual mínimo da renda ser

proveniente do estabelecimento familiar, as normas para acesso dos agricultores à Declaração de Aptidão

ao PRONAF (DAP) estabelecem que, no mínimo, 50% da renda bruta deve ser originada da exploração

agropecuária e não agropecuária do estabelecimento, bem como um limite máximo de R$ 360 mil de

renda bruta anual familiar.

9 Fernando Sganga. Assessor técnico da Direção Nacional de Desenvolvimento Rural do MGAP -

Uruguai e ponto focal do país no Grupo Técnico de Registros Nacionais da Agricultura familiar da

REAF. Estrato de entrevista concedida ao autor em março de 2015.

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Integrando os países do Cone Sul, o Chile trabalha com critérios muito próximos

àqueles apresentados acima, exceto talvez pela importância da questão do acesso à água

em face das suas condições geográficas. Membro associado do MERCOSUL e

participante ativo da REAF, o país exibe um longo percurso institucional no que diz

respeito à discussão sobre a agricultura familiar. Atualmente, seguindo a Lei 18.910 de

1990, o INDAP reconhece dentre os “agricultores familiares campesinos” dois públicos:

(a) Pequeno produtor agrícola: pessoa que trabalha a terra em uma superfície não

superior a 12 ha de “irrigação básica”10, cujos ativos não superem 3.500 Unidades de

Fomento, e que seu ingresso seja principalmente proveniente do estabelecimento

agrícola; (b) Campesino: pessoa cujas atividades sejam oriundas fundamentalmente da

atividade silvoagropecuária sempre que suas condições econômicas não sejam

superiores àquelas de um pequeno produtor agrícola.

A Venezuela, país recém ingressante no MERCOSUL e na REAF, conta com um

conceito de “agricultura familiar comunal” que se estrutura a partir da família ampliada

de caráter matriarcal, a qual predomina nas comunidades campesinas e indígenas. Trata-

se de um modelo de economia associativa do tipo comunitário que traz para os diálogos

da REAF uma nova realidade. Juntamente com Bolívia e Equador, as particularidades

do caso venezuelano podem impulsionar uma nova rodada de discussões em torno da

definição conceitual da agricultura familiar, quiçá fortalecendo o reconhecimento de

segmentos sociais que não se enquadram facilmente nos parâmetros acima referidos.

De modo geral, as legislações nacionais já buscam ser flexíveis para reconhecer a

diversidade social desta categoria. Com efeito, a Lei 27.118/2015 de “Reparación

Histórica de la Agricultura Familiar para la Construcción de una Nueva Ruralidad em

Argentina” também classifica como agricultores familiares os pequenos produtores,

minifundiários, campesinos, chacareros, colonos, meeiros, pescadores artesanais,

produtores familiares, produtores sem terra, produtores periurbanos e as comunidades

de povos originários. Já no Brasil, a Lei 11.326/2006, complementada pela Lei

12.512/2011, mesmo não os equiparando diretamente ao conceito de agricultor familiar,

estabelece que também são beneficiários da Política Nacional da Agricultura Familiar:

(a) silvicultores que cultivem florestas nativas ou exóticas e que promovam o manejo

sustentável daqueles ambientes; (b) aqüicultores que explorem reservatórios hídricos

com superfície total de até dois hectares ou ocupem até 500m³ de água; (c) extrativistas

que exerçam atividade artesanalmente no meio rural, excluídos os garimpeiros e

faiscadores; (d) pescadores artesanais; (e) povos indígenas; e (f) integrantes de

comunidades remanescentes de quilombos rurais e demais povos e comunidades

tradicionais.

Como veremos à frente, o ingresso dos países andinos na REAF reforça a atenção para

as particularidades de determinados grupos até então tratados de maneira mais periférica

10 Riego Básico: trata-se de uma superfície equivalente à potencialidade de produção de uma área física

padrão estipulada a partir do Vale do Rio Maipo (ver Lei 18.910 de 1990).

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nos demais países. É caso dos povos originários e das comunidades campesinas

tradicionais que possuem modos de produção e propriedade diferenciados daqueles

usuais nas definições oficiais de agricultura familiar, sobretudo no que diz respeito à

posse e gestão comunal dos recursos naturais. Essa nova realidade desafia os

formuladores de políticas, mas também as organizações sociais, os pesquisadores e

todos aqueles que, ao longo das duas últimas décadas, estiveram implicados na

construção sociopolítica da noção de “agricultura familiar”.

As definições normativas acima elencadas (Quadro 1) tornaram possível identificar e

quantificar a agricultura familiar. Segundo dados tabulados pela Secretaria Técnica da

REAF (2014), dentre os países do Cone Sul, a categoria representa 84% (5.169.124) de

um universo total de 6.144.650 estabelecimentos agropecuários. Esta representatividade

média varia entre 91% (264.821 estabelecimentos) no Paraguai, que convive com um

enorme contingente de campesinos explorando pequenas superfícies de terra, e 56%

(25.285) no Uruguai, onde o Censo Agropecuário Nacional exclui do recenseamento

produtores com menos de um hectare. Em valores absolutos, o destaque fica por conta

do Brasil que, sobretudo em virtude de sua extensão territorial, contabiliza 85%

(4.367,902) de todos 5,2 milhões de estabelecimentos familiares da região (Tabela 1).

Tabela 1 – Estabelecimentos e área agrícola ocupada nos países do Cone Sul segundo dados dos Censos Agropecuários Nacionais.

País Estabelecimentos

agropecuários

Estabelecimentos agropecuários

familiares Área Agrícola

Total (ha)

Área Agrícola AF (ha) % Área AF

Área Média

AF (ha)

Argentina 333.477 251.116 (75%) 174.808.048 35.658.472 20,4 142,0

Brasil 5.175.489 4.367.902 (85%) 329.941.393 80.250.000 24,3 18,4

Chile 301.254 260.000 (86%) 37.112.500 4.420.000 11,9 45,0

Paraguai 289.649 264.821 (91%) 31.086.894 1.960.081 6,3 7,4

Uruguai 44.781 25.285 (56%) 16.357.298 2.252.506 13,8 89,0

Cone Sul 6.144.650 5.169.124 (84%) 589.306.133 145.870.868 21,1 28,2

Fonte: REAF. Informe sobre los Registros Nacionales de la Agricultura Familiar em el Mercosur. Dezembro de 2014.

A Tabela 1 apresenta ainda um dado preocupante com referência à área ocupada pelos

estabelecimentos familiares. Como resultado de um processo histórico de concentração

da propriedade da terra pelos grandes proprietários, e apesar de representar 84% de

todos os estabelecimentos agropecuários, a agricultura familiar ocupa apenas um quinto

da área agrícola total dos países do Cone Sul. A desigualdade é mais marcante no

Paraguai, onde 91% dos agricultores detêm apenas 6,3% da área agrícola do país. Mas a

situação dos demais países não pode ser considerada menos inquietante, haja vista que

em nenhum dos casos o segmento ocupa mais do que um quarto da área total, mesmo no

Uruguai e na Argentina, países onde a área média das unidades familiares pode,

respectivamente, se aproximar ou ultrapassar consideravelmente os 100 hectares.

Para além das dificuldades relacionadas ao acesso à terra e demais recursos naturais,

inúmeros estudos já destacaram fatores restritivos ao desenvolvimento da agricultura

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familiar no contexto sul-americano. Dentre os mais recorrentes encontram-se desde as

causas demográficas relacionadas, por exemplo, ao envelhecimento da população rural;

até os baixos níveis de produtividade como decorrência da insuficiência de recursos e

tecnologias adequadas à realidade dos agricultores. Somam-se a isso a reduzida

escolaridade da população rural; a precariedade das condições de saúde; a dificuldade

de acessar/construir mercados; a manutenção de mecanismos arcaicos de exploração do

trabalho; a pressão institucional exercida pelos grandes produtores, empresas

agroindustriais e agentes financeiros; e a inadequação dos instrumentos de política

agrícola.

Tudo isso faz persistir altos índices de vulnerabilidade social, pobreza e insegurança

alimentar no meio rural, exigindo dos governos e dos movimentos sociais o

aprimoramento contínuo de suas ações. Na última década, uma nova geração de

políticas diferenciadas de desenvolvimento rural produziu resultados animadores,

sobretudo no que tange à redução da pobreza extrema e à melhoria das condições

alimentares e nutricionais – contribuições maiores que a agricultura familiar também

parece emprestar ao conjunto da população mundial (FAO, 2013). Mesmo assim,

inúmeros problemas persistem; sejam aqueles que adentraram mais recentemente na

agenda pública – relacionados, por exemplo, à sustentabilidade dos modelos de

agricultura e ao uso excessivo de agrotóxicos –, sejam antigas questões que recuperam

um espaço inaudito no debate político e acadêmico – dentre as quais os efeitos

perversos que o avanço do agronegócio, da produção de commodities, dos processos de

financeirização, do fenômeno da estrangeirização e da concentração da terra ocasiona à

reprodução da agricultura familiar, campesina e indígena (Schmitt e Maluf, 2010).

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4. Um novo fórum de diálogos para a construção das políticas públicas

Apesar da diversidade dos contextos nacionais, nos últimos dez anos foi possível

construir inúmeros entendimentos comuns acerca do reconhecimento da agricultura

familiar em todo o mundo e, talvez de forma ainda mais pronunciada, no MERCOSUL.

Isto é fruto de um processo de concertação social entre atores do Estado e da Sociedade

Civil. A REAF cumpriu um papel de destaque neste processo, impulsionando os países

a dialogar para a construção de parâmetros comuns para definição da agricultura

familiar, o que, posteriormente, permitiu avançar na caracterização, quantificação e

suporte público deste segmento. Em âmbito regional, o principal marco da consolidação

institucional da agricultura familiar é a Resolução 25/2007 do GMC, a partir da qual

El MERCOSUR reconoce que es necesario establecer y perfeccionar

políticas públicas diferenciadas para la agricultura familiar, que

promuevan el desarrollo sustentable del medio rural desde el punto de

vista socioeconómico, cultural y ambiental. En cumplimiento de lo

que antecede, los gobiernos de la región consideran conveniente

promover la producción y facilitar el comercio de los productos de la

agricultura familiar, dado que éstos tienen una participación relevante

en la seguridad alimentaria de la región y en sus cadenas

agroproductivas. Los gobiernos de los países del Bloque entienden

que resulta necesario contar con instrumentos adecuados de

reconocimiento e identificación de agricultores familiares, que

permitan que las políticas públicas para El sector lleguen

efectivamente a los destinatarios, reconociendo a tales efectos en

igualdad de condiciones a las mujeres y los hombres rurales.

(MERCOSUL, GMC. Resolução 25/2007).

Várias publicações têm reconhecido e relatado a influência da REAF para a construção

de instrumentos de políticas públicas para a agricultura familiar na região (Juárez et al.,

2014; Álvarez et al., 2014; Ramos et al., 2014; FIDA, 2013a; Carvalho, 2014; Programa

Fida Mercosul Claeh, 2015). Em documento recente, alusivo aos seus dez anos, a

própria REAF destaca algumas de suas principais conquistas: a criação de critérios

comuns de definição da agricultura familiar, o estabelecimento dos Registros Nacionais

voluntários e a criação do Fundo da Agricultura Familiar (FAF). De modo mais amplo,

acentua ainda que este espaço “tem sido fundamental no apoio a processos nacionais de

consolidação da institucionalidade pública e de políticas diferenciadas para a agricultura

familiar” (REAF, 2014).

Um passo essencial neste sentido foi a delimitação das características da categoria social

objeto de reflexão e intervenção deste fórum. Para desenhar políticas públicas é

necessário definir um público beneficiário. Assim, foi preciso construir uma “identidade

comum para a agricultura familiar”, estabelecendo critérios mínimos e comuns que

permitissem uma intervenção mais equitativa entre os países membros, sem descuidar a

heterogeneidade que marca a presença destes grupos nos territórios rurais. Como

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resultado desta reflexão, a Resolução 25/2007 estabeleceu o público ao qual se destinam

as políticas dirigidas à “agricultura familiar”:

Art. 1 – Los Agricultores/as destinatarios de las políticas públicas

diferenciadas dirigidas al sector de la Agricultura Familiar serán

aquellos cuyos establecimientos cumplan, como mínimo, con todos y

cada uno de los siguientes criterios:

I) la mano de obra ocupada en el establecimiento corresponderá

predominantemente a la familia, siendo limitada la ocupación de

trabajadores contratados;

II) la familia será responsable directa de la producción y gestión de las

actividades agropecuarias y residirá en el propio establecimiento o en

una localidad próxima;

III) los recursos productivos utilizados serán compatibles con la

capacidad de trabajo de la familia, con la actividad desarrollada y con

la tecnología utilizada, de acuerdo con la realidad de cada país.

Son también parte de la Agricultura Familiar, siempre que se respeten

los criterios enumerados supra, los productores/as rurales sin tierra,

los beneficiarios/as de los procesos de reforma agraria o programas de

acceso y permanencia en la tierra, como también las comunidades de

productores/as que hacen uso común de la tierra.

De modo geral, a Resolução é parametrizada pelas normas já existentes em alguns

países, abarcando, centralmente, a unidade entre gestão e trabalho familiar. Somam-se a

isso critérios relacionados à contratação de mão de obra externa e ao local de resistência

da família. Mas, para além disso, ela é inovadora ao estabelecer a compatibilidade dos

recursos produtivos com a capacidade de trabalho familiar, com a atividade

desenvolvida e com a tecnologia utilizada, critérios de difícil aferição e que, como

veremos à frente, ainda estão sendo incorporados pelos países. Finalmente, é importante

notar que a norma regional reproduziu a estratégia da lei brasileira no que diz respeito à

incorporação de outros segmentos sociais que não possuem acesso à terra ou fazem uso

coletivo da mesma, assim como os assentados de reforma agrária.

O estabelecimento desta definição institucionalizou o reconhecimento político e

institucional da agricultura familiar e passou a orientar a atuação dos Estados no que

tange à identificação do público das políticas diferenciadas de desenvolvimento rural.

Atualmente, todos os países do bloco contam com um conjunto de ações, instrumentos,

normas e/ou espaços públicos de participação social direcionados especificamente para

esta categoria social.

Na Argentina, a denominação “agricultura familiar” apareceu como tal na agenda

política dos órgãos públicos a partir de 2004. Dentre o conjunto de eventos que marcam

a trajetória institucional das políticas para este segmento destaca-se: a organização do

Fórum Nacional da Agricultura Familiar (FONAF) e seus fóruns provinciais; a

construção de critérios que separam o setor da agricultura familiar de outros setores da

economia agrária (como o pequeno empresário agropecuário ou agroindustrial); a

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criação da Secretaria de Desenvolvimento Rural e da Agricultura Familiar vinculada ao

Ministério da Agricultura, Pecuária e Pesca; o estabelecimento do Registro Nacional da

Agricultura Familiar (RENAF); a formulação do Programa Nacional de Investigação e

Desenvolvimento Tecnológico para a Pequena Agricultura Familiar (CIPAF); a criação

da Comissão de Agricultura Familiar (SENAF) no Serviço Nacional de Sanidade e

Qualidade Alimentar (SENASA); a construção da Rede de Técnicos e Investigadores

sobre Tecnologias para a Agricultura Familiar (RedTAF); a criação do Programa de

Apoio a Pequenos e Médios Produtores (PAPyMP); e as mudanças em ações que já

vinham ocorrendo no âmbito do Programa de Desenvolvimento de Pequenos Produtores

Agropecuários (PROINDER) (Juárez et al., 2014, p. 54; Lattuada, Nogueira e Urcola,

2015).

No Uruguai, a construção de políticas para a agricultura familiar também é

relativamente recente. Álvarez et al. (2014, p. 281) afirmam que a agenda da agricultura

familiar no país tem sido influenciada pelos países vizinhos a partir da criação da REAF

e com a incorporação de um eixo de investigação sobre a agricultura familiar no

Programa Cooperativo para o Desenvolvimento Tecnológico Agroalimentar e

Agroindustrial do Cone Sul (PROCISUR). Segundo os autores, a partir de 2005 foi

estabelecido um conjunto de ações do Estado voltadas para o segmento, destacando-se:

a criação da Direção Geral de Desenvolvimento Rural (DGDR) no Ministério da

Pecuária, Agricultura e Pesca (MGAP); as mudanças na regulação do mercado e na

política de terras por meio da atuação do Instituto Nacional de Colonização (INC); o

processo de Registro de Produtores Familiares; a incorporação de uma linha de trabalho

sobre agricultura familiar, com um enfoque de co-construção da demanda de

conhecimento, pelo Instituto Nacional de Investigação Agropecuária (INIA); o processo

de descentralização do Estado que, dentre outras medidas, estabeleceu Mesas de

Desenvolvimento Rural em todo o país; o debate e a institucionalização de mecanismos

de compras públicas da agricultura familiar, e as ações de crédito rural, seguro agrícola

e política de assistência técnica e extensão rural.

Um marco importante no Paraguai foi a institucionalização da Lei 1.863/2001, a qual

estabeleceu o Estatuto Agrário, reconhecendo a importância de incorporar a agricultura

familiar no desenvolvimento nacional. Três anos depois, a partir da promulgação da Lei

2.419/2004, foi criado o Instituto Nacional de Desenvolvimento Rural e da Terra

(INDERT) e institucionalizada uma definição de agricultura familiar campesina

(Quadro 1, supra). Além do reconhecimento político e normativo, o governo paraguaio

também desenvolveu outras ações e políticas ao longo dos últimos anos, como o

Programa de Fomento à Produção de Alimentos da Agricultura Familiar (PPA); o

Programa Nacional de Apoio à Agricultura Familiar (PRONAF); o Programa

Agricultura e Economia Indígena (PAEI); o Programa de Fomento e Promoção da

Equidade de Gênero e Juventude Rural; o Projeto Paraguai Rural – que focaliza a

inserção da agricultura familiar em cadeias de valor (sésamo, leite e mandioca) –, e a

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criação de mecanismos de mercados institucionais para esta categoria social (FIDA,

2013b).

No Brasil, desde meados dos anos 1990 vem sendo criadas institucionalidades, políticas

públicas e instrumentos para o reconhecimento e promoção da agricultura familiar. O

Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF), a vinculação

da Secretaria da Agricultura Familiar (SAF) ao Ministério do Desenvolvimento Agrário

(MDA), a Declaração de Aptidão ao Pronaf (DAP), a Lei da Agricultura Familiar, o

Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), o Seguro da Agricultura Familiar (SEAF),

o Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável (CONDRAF), o Programa

Garantia Safra, o Selo da Agricultura Familiar e o Programa de Garantia de Preço da

Agricultura Familiar (PGPAF), são alguns exemplos que convergem no esforço que o

país demonstra para fortalecer a agricultura familiar como um segmento estratégico à

economia nacional, à segurança e soberania alimentar e ao desenvolvimento social.

Conjuntamente, os instrumentos institucionais criados pelos países do bloco elucidam as

repercussões que, sobretudo nesta última década, os diálogos políticos regionais

desencadearam para a construção e harmonização das políticas públicas para a

agricultura familiar. Obviamente, a REAF não é o único fórum que organiza e promove

este diálogo. Cada país desenvolveu seus próprios espaços públicos, com maior ou

menor nível de formalização, abertura à participação social e capacidade de formulação.

Mas a REAF cumpre um papel importante para ampliar a escala deste processo; para

legitimar as “lutas por reconhecimento” (Honneth, 2003) travadas no interior dos países,

dos governos e das organizações sociais; para promover novas formas de aprendizagem

institucional por meio do compartilhamento de conhecimentos e experiências; e para

fortalecer os processos democráticos, inclusive mediando conflitos políticos que,

internamente, podem criar dificuldades para o funcionamento dos espaços nacionais de

concertação social. Para compreender estes e outros efeitos da ação da REAF, nas

próximas três partes deste livro focalizaremos sua sociogênese, os principais resultados

alcançados na construção de uma agenda comum entre governos e movimentos sociais,

e as reconfigurações em curso no funcionamento deste fórum.

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PARTE II – A construção institucional da REAF

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5. Diálogos políticos para uma nova agenda no MERCOSUL

O MERCOSUL foi formalmente constituído no dia 26 de março de 1991, quando os

presidentes de Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai assinaram o Tratado de Assunção.

O documento estabelece como objetivo a criação de uma zona de livre comércio que

implicaria em: (a) livre circulação de bens, serviços e fatores produtivos; (b) tratamento

alfandegário e tributário similar com relação a países terceiros; (c) coordenação de

políticas macroeconômicas e setoriais entre os Estados membros; (d) compromisso dos

Estados em harmonizar suas legislações nas áreas pertinentes com vistas a fortalecer o

processo de integração.

Desde então, além da inserção de novos Estados Membros (Venezuela) e Associados

(Bolívia, Chile, Peru, Equador e Colômbia), diversos protocolos foram assinados com o

intuito de ajustar a estrutura institucional do bloco. Dentre os mais importantes, em

1994 o Protocolo de Ouro Preto ofereceu personalidade jurídica e definiu o arranjo

organizacional inicial do MERCOSUL11, constituído por: (i) Conselho do Mercado

Comum (CMC); (ii) Grupo Mercado Comum (GMC); (iii) Comissão de Comércio do

Mercosul (CCM); (iv) Comissão Parlamentar Conjunta (CPC); (v) Foro Consultivo

Econômico-Social (FCES) e (VI) Secretaria Administrativa do Mercosul (SAM).12 Em

seu artigo primeiro, parágrafo único, o documento também discorre sobre a criação de

“órgãos auxiliares”. A Reunião Especializada sobre Agricultura Familiar (REAF)

constitui um desses órgãos, situado no interior do GMC, juntamente com outras

quatorze Reuniões Especializadas e um conjunto de Grupos e Subgrupos de Trabalho.

Para compreender a formação, a institucionalização e os mecanismos de ação da REAF

é importante analisar a conformação e a trajetória institucional do MERCOSUL

enquanto bloco comercial e político. As possibilidades e os constrangimentos que

recaem sobre as discussões da REAF são influenciadas pela sua inserção neste cenário

mais amplo, seja em virtude dos acordos assinados em fóruns regionais

hierarquicamente superiores (GMC, CMC), seja em virtude das interfaces que as

decisões desta Reunião possuem com aquelas oriundas de outros órgãos auxiliares; ou

ainda, em razão da própria estrutura operacional do MERCOSUL, que cria

possibilidades e limites aos processos de gestão dos recursos humanos, físicos e

financeiros da REAF.

No entanto, para o escopo deste estudo não é necessária, nem pertinente, uma discussão

exaustiva da trajetória do MERCOSUL. Neste capítulo apenas destacamos alguns

11 Conservando a proposta inicial, essa estrutura sofreu algumas alterações ao longo do tempo, o que

resultou em um arranjo institucional mais completo e complexo (Ver Anexo 1).

12 Enquanto os três primeiros (CMC, GMC e CCM) são órgãos de natureza deliberativa, a CPC e o FCES

reúnem, respectivamente, autoridades legislativas e representantes da sociedade civil, de natureza

intergovernamental, que encaminham recomendações para apreciação dos fóruns decisórios. Por sua vez,

a SAM constitui o órgão operacional.

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aspectos que chamam a atenção no que diz respeito ao modo como o processo de

integração regional condiciona os diálogos políticos na REAF.

O processo de integração dos países do Cone Sul inicia muito antes da década de 1990.

Dentre as experiências precedentes, cabe destacar as discussões que já estavam em

curso nos anos 1960 em torno da constituição de um mercado regional a partir da

Associação Latino-Americana de Livre Comércio (ALALC), a qual se tornou o embrião

da Associação Latino-Americana de Integração (ALADI), esta fundada em 1980, e

contando atualmente com treze países membros: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile,

Colômbia, Cuba, Equador, México, Panamá, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela.

Em pleno processo de reabertura democrática nos países latino-americanos, a década de

1980 também catalisou uma série de acordos bilaterais de comércio, como aqueles que

estabeleceram Argentina e Brasil por meio da Declaração do Iguaçu, de 1985, e do

Tratado de Integração, Cooperação e Desenvolvimento, de 1988. Este último definiu o

objetivo de, no prazo máximo de uma década, constituir um espaço econômico comum

por meio da liberalização do comércio recíproco, eliminando barreiras tarifárias e não

tarifárias no comércio de bens e serviços.

Em certa medida, estes acordos, assim como o próprio MERCOSUL, são expressões do

espírito de uma época marcada, por um lado, pelos processos de liberalização

econômica e, por outro, pela formação de novos blocos geopolíticos regionais, em

reação ao processo de globalização e na esteira do exemplo consolidado pela União

Europeia.13 O MERCOSUL emergiu, portanto, não apenas como um anseio histórico de

cooperação, mas, e talvez principalmente, como uma resposta à nova geopolítica

mundial que estava sendo desenhada, ainda sob o domínio norte-americano e europeu.

Seria difícil uma proposta de regionalização deste tipo não ser crivada de contradições.

Afinal, como conciliar o objetivo da abertura comercial, desregulamentação dos

mercados e enxugamento dos Estados Nacionais com a legitimidade política que se

esperava atribuir a um conjunto de países para que seus governos tomassem decisões

soberanas (em certa medida protecionistas) em resposta aos efeitos da globalização

(financeirização, oligopolização, deslocalização etc.)? Conseqüentemente, o

MERCOSUL também passou a ser expressão das próprias prioridades assimétricas que

existiam não apenas em âmbito regional, mas no interior dos países, entre grupos de

interesse que defendiam diferentes vias de integração nas cadeias globais de valor.

Dentre esses grupos, talvez o mais relevante seja aquele que congrega os setores

agroindustriais exportadores (ainda que o setor automotivo tenha sido o maior

beneficiário da abertura dos mercados). Competitivos no cenário internacional, desde o

início do processo de integração regional, segmentos do chamado ‘agronegócio’

13 Ademais, embora o NAFTA (Tratado Norte-Americano de Livre Comércio) entre em vigor somente a

partir de 1992, já em 1988 EUA e Canadá haviam assinado um acordo de liberalização econômica, dando

partida ao acordo ao qual depois ainda seria incorporado o México.

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colocaram os países e o bloco como um todo à prova de interesses liberalizantes. Estes

atores defendiam acordos bilaterais com os países capitalistas centrais, com vistas a tirar

proveito das vantagens comparativas no comércio de commodities. O MERCOSUL

seria apenas uma rota alternativa para a mesma plataforma liberal (Delgado, 1995). Esta

lógica “aberturista”, como denomina Riella (2002), associa-se à idéia de que os países

membros poderiam inserir-se no mercado mundial de forma mais competitiva por meio

de uma estratégia que utilizaria o MERCOSUL como um mecanismo de pressão

conjunta frente aos demais países e blocos, forçando-os a abrir seus mercados, derrubar

as barreiras tarifárias e não tarifárias, e reduzir os subsídios agrícolas.

Um episódio central deste debate esteve associado à negociação da Área de Livre

Comércio das Américas (ALCA). Embora a proposta norte-americana inicialmente

tenha encontrado adeptos nos governos e empresários latino-americanos, sobretudo

dentre os representantes dos setores agroexportadores, ela encontrou resistências entre

segmentos que, mesmo favoráveis à agenda liberal, preferiam apostar em uma agenda

mais setorializada, evitando soluções que pudessem incorrer na criação de áreas

irrestritas de livre comércio. Muitos desses atores concebiam o MERCOSUL como uma

alternativa salutar para esse tipo de negociação, propondo, ao invés da ALCA, uma

agenda de negociações mais pontuais com os EUA e, principalmente, a União Europeia.

Esta estratégia acabou prevalecendo em virtude de uma série de fatores que

convergiram para o fim das negociações da ALCA. Além da resistência de alguns

segmentos empresariais preocupados com os potenciais impactos negativos que a

ALCA poderia trazer para os seus negócios, soma-se um amplo movimento de

contestação popular conduzido por inúmeras organizações sociais, em particular os

movimentos sociais e sindicais do campo. Esses visualizavam na ALCA (e,

inicialmente, também no MERCOSUL) uma proposta de aprofundamento das políticas

liberalizantes, as quais já vinham apresentando conseqüências sociais desastrosas para

amplos segmentos da população latino-americana, incluindo os pequenos agricultores.

Desde a perspectiva desses movimentos, a ALCA não foi simplesmente retirada da

agenda; ela foi “derrotada” pela mobilização popular contra a plataforma do Consenso

de Washington que, naquele momento, prevalecia dentre os governos nacionais e nas

organizações multilaterais. Nada obstante, a essa interpretação cabe acrescentar que isto

talvez não tivesse ocorrido se, a partir dos anos 2000, a América Latina não vivenciasse

uma significativa guinada política, com a ascensão ao poder de partidos e grupos que

estavam ao lado desses movimentos sociais na crítica à estratégia neoliberal. No interior

dos novos governos de coalizão de centro-esquerda, diversos atores passaram a conferir

amparo institucional para a crítica aos processos de liberalização que estavam em curso,

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e, para tanto, necessitavam propor uma nova estratégia de integração na economia

globalizada.14

Neste momento a história do MERCOSUL passa por uma inflexão fundamental. A

partir dos anos 2000, inicia um novo projeto de integração política regional a partir da

eleição dos presidentes Luiz Inácio Lula da Silva (Brasil), Néstor Kirchner (Argentina),

Tabaré Vásquez (Uruguai), Fernando Lugo (Paraguai), Evo Morales (Bolívia), Rafael

Correa (Equador), Michelle Bachelet (Chile) e Hugo Chavez (Venezuela), dentre outros

que os sucederam. Uma série de mudanças no processo de integração latino-americana

foi catalisada em virtude da crescente afinidade nas agendas políticas dos novos

governos, os quais passaram a apostar na América Latina como um espaço privilegiado

de articulação para construir e legitimar novos modelos de desenvolvimento. Ao invés

da agenda dos ajustes estruturais, desregulamentação e privatização, o foco voltou-se a

reorganização dos Estados com vistas a fomentar políticas de crescimento econômico

com inclusão produtiva, participação social e redução das assimetrias regionais.

O principal divisor de águas deste novo momento histórico é o ingresso, em 2003, de

Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência do Brasil. A centralidade do caso brasileiro

deve-se a vários fatores. Primeiro, à própria novidade que a chegada ao poder do Partido

dos Trabalhadores representava no contexto sul-americano, ainda marcado pela

hegemonia de coalizões conservadoras de centro-direita. Em segundo lugar, cabe

destacar o forte vínculo que o novo governo mantinha com os movimentos sociais, os

quais já vinham demandando mudanças substanciais nas políticas domésticas, mas

também de comércio internacional.

Soma-se a isso o novo posicionamento que o Brasil passou a assumir não apenas em

âmbito regional, mas também em fóruns multilaterais e na construção de novos blocos,

em especial no G20 e nos BRICS. Nestes fóruns, a legitimidade cada vez maior do

discurso em favor de uma nova geração de políticas sociais e pró-reformas das

instituições multilaterais, tornou o presidente Lula um ator-chave no cenário global.

Associada a isto está uma mudança na postura da diplomacia brasileira. Sob o comando

do embaixador Celso Amorim, e respondendo à nova repartição do comércio global,

com a ascensão dos chamados “emergentes”, o Itamaraty assumiu uma postura política

menos belicosa nas relações internacionais. Mas, mais do que isso, encaminhou o país

para a defesa do multilateralismo e do investimento nas relações Sul-Sul, para o que a

integração regional passou a ser uma prioridade, inicialmente no âmbito do

MERCOSUL, mas hoje também na UNASUL e na CELAC. Como destaca Francesco

Pierri, ex-Coordenador Nacional Alterno do Brasil na REAF e, naquele momento,

membro da Assessoria Internacional do MDA:

14 Nesta contextualização cabe destacar a relevância dos Fóruns Sociais Mundiais para o processo de

concertação entre movimentos sociais e governos. Os FSM serviram como espaços de formulação da

crítica à agenda neoliberal e de articulação de uma agenda alternativa de desenvolvimento social, o que

culminou, em 2005, com a realização da IV Cúpula das Américas, realizada em Mar Del Plata, Uruguai.

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A política externa brasileira no tema do desenvolvimento rural, da

agricultura familiar e do direito à alimentação, em 2003, ela se abre a

partir de um ato destrutivo, que é a destruição do projeto da ALCA.

Isso a gente consegue fazer. A partir dali se configura uma fase de

construção. E essa fase de construção ela tem... ao mesmo tempo em

que se constituía a política do Lula, que era algo mais global, esse

tema ele tinha duas configurações principais: primeiro, buscar um

processo de integração regional e, segundo, reforçar o

multilateralismo, o que também significava, por exemplo, fazer da

FAO uma agencia tão importante quanto o Banco Mundial e a OMC.

(Francesco Pierri).15

No que diz respeito especificamente ao MERCOSUL, a posição brasileira também

merece destaque em razão da própria assimetria territorial, econômica e demográfica

que caracteriza o bloco. Com um território de 8,5 milhões de km², que abriga uma

população de mais de 200 milhões de pessoas, e responsável por um PIB de U$S 2,2

trilhões, em 2013 o Brasil respondia sozinho por 58%16 (U$S 242,2 bilhões) das

exportações do MERCOSUL (U$S 415,5 bilhões) e por 49,7% (U$S 29,5 bilhões) do

total das transações comerciais intrabloco (U$S 59,3 bilhões) (Brasil, MRE, 2014).17

Neste sentido, é esperado (e exigido) que o país assuma uma posição de liderança

regional. O que está em discussão é o modo como isso deve ser feito. Enquanto os

espectros políticos mais liberais defendem uma postura comercial mais agressiva (talvez

egoísta), a posição prevalecente na última década tem sido pautada pela cooperação em

temas estratégicos, associando à agenda do comércio regional uma preocupação com

investimentos em áreas como educação, saúde e desenvolvimento social.

Principal sócio comercial brasileiro na esfera regional18, a Argentina sempre

desempenhou uma posição de destaque nas negociações do MERCOSUL. Trata-se de

um país com expressiva extensão territorial (3,7 milhões de km²) que abriga 42 milhões

de habitantes. Ademais, é o segundo maior PIB da região, contabilizando U$S 610

bilhões. A importância do país também se deve à sua liderança econômica em vários

setores, em particular em cadeias agroindustriais onde os produtos argentinos são

competitivos no mercado regional e internacional: trigo, vinho, carne e soja. O país

também possui uma posição estratégica no contexto regional em função de sua

proximidade cultural com os demais países hispanohablantes, o que lhe confere uma

espécie de “liderança qualitativa” no bloco. Finalmente, no âmbito político pode-se

destacar o papel das medidas heterodoxas adotadas pelos governos de Néstor e Cristina

15 Francesco Pierri. Ex-Coordenador Nacional Alterno do Brasil na REAF e ex-chefe da Assessoria

Internacional do MDA. Atualmente atua na FAO. Estrato de entrevista concedida em março de 2015.

16 Contabilizados apenas os países membros.

17 Dentre os principais produtos exportados pelo Brasil para os demais países do bloco estão: automóveis,

máquinas mecânicas, carnes, plásticos, máquinas elétricas e combustíveis.

18 Em 2013, a Argentina foi o destino de 66% (U$S 19,6 bilhões) de toda exportação brasileira intrabloco

e a origem de 80% (U$S 16,4 bilhões) do montante de importação do Brasil dentre os países do

MERCOSUL (MRE, 2014).

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Kirchner em face da instabilidade econômica do país. Em que pese à forte crítica dos

mercados internacionais, e as pressões sociais internas em virtude do aumento da

inflação e do controle das divisas cambiais, no plano da retórica política essas ações

mantiveram-se fieis à agenda neodesenvolvimentista19 em construção no contexto sul-

americano.

Quanto ao Uruguai, se a sua posição é relativamente menos expressiva em termos

econômicos (PIB: U$S 56 bilhões), demográficos (População: 3,4 milhões) e

comerciais (4,2% das exportações intrabloco em 2013), ela é particularmente relevante

na esfera política. Desde 2005, a sucessão de governos da Frente Ampla abriu novas

perspectivas para o processo de integração regional, aproximando governos e

movimentos sociais. A adoção de novos mecanismos de participação cidadã e a

ampliação das políticas sociais voltadas aos segmentos mais vulneráveis aproximou a

agenda do governo Uruguaio daquela em curso no Brasil e na Argentina. Ademais, a

implementação de alguns programas originais serviu para potencializar debates

intrincados nos demais países do bloco. Mesmo sob uma forte contestação interna e

abordando questões polêmicas, o país avançou em políticas de caráter laico e

republicano, como a lei de interrupção da gravidez, a institucionalização do casamento

igualitário e a regulamentação do uso da maconha. No plano da retórica política, essas

ações somam-se a um discurso democratizante que aproximou o governo uruguaio de

muitos movimentos sociais. Adiciona-se a isso o carisma do presidente José Mujica

(2010-2015), o qual passou a integrar a lista de personalidades latino-americanas com

capacidade de projetar simbolicamente um conjunto de transformações sociopolíticas

com crescente repercussão social.

O Paraguai também apresenta uma série de fatores limitantes à sua participação

comercial no bloco, haja vista a limitada capacidade de produção e comércio. Com

efeito, em 2013, o país foi responsável por apenas 6,4% (U$S 3,8 bilhões) do montante

das exportações intrabloco. Não obstante, o maior problema do país talvez seja sua

trajetória institucional ao longo das duas últimas décadas, marcada por graves

instabilidades políticas. O fato mais marcante ocorreu em 2012, com a suspensão do

Paraguai do MERCOSUL em decorrência dos acontecimentos relacionados à

destituição – por alguns considerada como Golpe de Estado – do presidente Fernando

Lugo, o qual mantinha boas relações diplomáticas e políticas com os presidentes dos

países vizinhos, e sua substituição por Federico Franco.

A retomada da presença do Paraguai no MERCOSUL foi oficializada em 2013, após a

realização de novas eleições presidenciais que elegeram o presidente Horacio Cartes.

Mesmo assim, o processo de reingresso ainda está em curso. Se a instabilidade

institucional é latente, as controvérsias políticas retornam com alguma freqüência ao

debate, sobretudo com relação às decisões que foram tomadas pelo bloco durante a

19 Embora, na prática, vários países tenham lançado mão de uma política macroeconômica muito mais

ortodoxa, incluindo o Brasil em diferentes momentos da história recente.

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ausência do país. No entanto, mesmo contrariado pelas decisões do bloco, o governo do

Paraguai deteve pouca margem de manobra e, ao fim e ao cabo, o próprio ingresso da

Venezuela – um dos principais pontos de atrito – acabou sendo ratificado no parlamento

paraguaio.

O governo paraguaio chegou a afirmar que, em face da situação do MERCOSUL, o país

procuraria novos aliados extra-regionais. Mas dois motivos principais o fizeram buscar

uma reaproximação. Primeiro, o país precisava re-legitimar suas instituições

democráticas internacionalmente, para o que a participação no MERCOSUL torna-se

relevante. Um dos grandes ativos do bloco é o modo como tem contribuído para

consolidar a democracia na região. Segundo, porque as dificuldades infraestruturais do

país, com 6,9 milhões de pessoas e um PIB de apenas U$S 29 bilhões, faz com que o

país não possa abrir mão dos recursos e investimentos que consegue acessar através dos

fundos regionais e da cooperação bilateral com os países vizinhos. Note-se, ademais,

que o comércio intrabloco representa 40% das exportações totais paraguaias (Tabela 2).

Por outro lado, é notório o interesse do restante do bloco na participação ativa do

Paraguai. Isso se deve à relevância que o país possui em termos de fronteiras territoriais

e comerciais, mas, sobretudo, à percepção de que o país é indispensável à unidade sul-

americana. Neste sentido, há uma clara decisão política de integrar e viabilizar

institucionalmente a participação do Paraguai. As divergências ideológicas são

superadas pela abertura de um diálogo que prioriza a construção regional. Isso

demonstra que, a despeito da opinião dos analistas que sugerem o abandono do

MERCOSUL em prol de relações comerciais com as economias mais dinâmicas, deve-

se compreender que a construção do bloco é portadora de um esforço político para a

integração sul-americana.

Fechando a listagem dos Estados Membros, a Venezuela representa uma população de

31 milhões de habitantes distribuída por 912 km². O país conta com um PIB de U$S 227

bilhões, conformado, sobretudo, pela exploração do petróleo, commodity que lhe

confere um papel estratégico para a integração regional, sobretudo em termos de

segurança energética, bem como para as relações comerciais do MERCOSUL com os

demais países e blocos. O país demandou o ingresso no MERCOSUL em 2006, mas o

mesmo não se concretizou em virtude da resistência de alguns grupos que criticam a

política bolivariana dos governos dos presidentes Hugo Chaves e Nicolas Maduro.

Durante algum tempo, a principal oposição proveio justamente do Paraguai. Por

conseguinte, foi a suspensão deste país que abriu as portas para o ingresso venezuelano,

oficializado em 2012. Em virtude do pouco tempo transcorrido desde a oficialização de

seu ingresso, a participação do país ainda está sendo construída. Sua posição mais

setentrional, fazendo divisa com uma região brasileira até hoje pouco associada ao

MERCOSUL, constitui um desafio logístico para a integração comercial. Por outro

lado, no que tange aos diálogos políticos, o ingresso da Venezuela amplia a capacidade

de interação com outros blocos, como é o caso da Aliança Bolivariana para os Povos da

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Nossa América (ALBA), fortalece outros fóruns como UNASUL e CELAC, e anima a

participação nos espaços regionais de determinados movimentos sociais que possuem

proximidade ideológica com o governo venezuelano.

O Quadro 2 sintetiza alguns dos principais indicadores econômicos referentes aos países

membros. Os dados evidenciam a heterogeneidade que caracteriza o bloco, uma

constatação relevante na medida em que este se torna um elemento primeiro para

projetar políticas públicas no âmbito regional. Há, por exemplo, uma desproporção

manifesta na capacidade dos países em implementar investimentos que, em alguns

contextos, podem parecer triviais, mas em outros tornam-se inviáveis em face da

escassez de recursos. Isto torna a redução das assimetrias uma condição essencial para

avançar no processo de integração regional, e um objetivo prioritário para a agenda de

negociações do MERCOSUL.

Quadro 2 – Indicadores socioeconômicos selecionados para os países membros do MERCOSUL.

Argentina Brasil Paraguai Uruguai Venezuela

População total (milhões de habitantes)

41,4 200,4 6,8 3,4 30,4

Área (km²) 2.736.690 8.459.420 406.752 175.020 882.050

PIB (U$S bilhões) 610 2.246 29 56 227

PIB per capita 14.709 11.173 4.281 16.421 7.576

IDH (2013) 0,808 0,744 0,676 0,790 0,764

Exportações intrabloco em 2013 (U$S bilhões)

21,5 29,5 3,8 2,8 1,7

Exportações intrabloco / Exportações totais (%)

28,0 12,2 40,1 30,9 2,2

Fonte: Brasil, MRE (2014).

Dentre os países associados, a Bolívia é aquele mais próximo de consolidar seu ingresso

no bloco, o que incluirá um novo aliado aos defensores de reformas políticas mais

agudas em direção a uma nova estratégia de desenvolvimento regional. Juntamente com

Equador, Peru e Colômbia, o país compõe a Comunidade Andina, outro bloco

econômico – já estabelecido em 1969 enquanto Pacto Andino – com importância

estratégia para o processo de integração. A aproximação com esses países repercute

positivamente não apenas na organização do MERCOSUL, mas também para a

consolidação das experiências mais recentes da UNASUL e da CELAC.

O Chile chegou a participar do Pacto Andino até 1976, quando o governo militar

decidiu se desvincular em virtude de outras prioridades comerciais e políticas. Desde

então, o Chile tornou-se um dos países de economia mais aberta na América Latina, o

que, por muitos anos, o levou a preterir o processo de integração regional em favor da

possibilidade de explorar seu potencial agroexportador em cadeias globais, assinando

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tratados comerciais bilaterais com EUA, União Europeia, China e outros grandes

compradores mundiais. As conseqüências das políticas liberalizantes logo se revelaram

em diversos setores, catalisando movimentos de contestação social. A partir da eleição

da presidente Michelle Bachelet, o país voltou a olhar com mais atenção para o

MERCOSUL, tornando-se um parceiro estratégico para o bloco em virtude do seu

crescimento econômico na última década, da estabilidade do seu regime institucional e

da posição geopolítica estratégica na costa do Pacífico.20

Do ponto de vista estritamente comercial, o processo de integração regional ensejado

desde a assinatura do Tratado de Assunção tem sido objeto de intensas controvérsias.

Alguns analistas acentuam o “fracasso econômico” do MERCOSUL em virtude do

limitado volume de fluxos comerciais intrabloco. No entanto, ainda que o crescimento

desses fluxos não tenha respondido a algumas projeções iniciais, uma leitura mais

otimista poderia acentuar o fato de que, somente no período recente, entre 2009 e 2013,

as exportações intrabloco passaram de U$S 39,2 bilhões para U$S 59,3 bilhões.

Portanto, não parece adequado desprezar o espaço aberto pelo mercado regional. Mas

também é verdade que essa expansão apenas acompanhou o crescimento das

exportações totais dos países membros. Por conseguinte, neste mesmo período, a razão

entre exportações regionais e totais manteve-se praticamente inalterada no Brasil

(12,7% em 2009 e 12,2% em 2013), na Argentina (26,7% e 28,0%), no Uruguai (31,8%

e 30,9%) e na Venezuela (2,6% e 2,2%) e, em virtude da instabilidade institucional, teve

uma importante redução no caso do Paraguai (52,3% e 40,1%).

Seja como for, independentemente dos resultados comerciais, parece adequado afirmar

que o MERCOSUL está longe de se consolidar como uma “área de livre comércio” e,

mais ainda, como uma ampla união econômica e política regional. Neste sentido, a

comparação com a União Europeia geralmente é trazida à tona por alguns analistas para

corroborar a fragilidade da experiência sul-americana. Mas, para além de todas as

diferenças históricas que tornam esse tipo de comparação desmesurada, aqui se deve

ponderar pelo menos dois aspectos. Em primeiro lugar, a União Europeia, que hoje

enfrenta sérios desafios à sua unidade, foi construída durante um período de expansão

econômica – os chamados “trinta anos gloriosos” – o que favoreceu substancialmente o

processo de integração. A entrada mais recente de novos países do leste europeu, em um

contexto de arrefecimento da economia global e regional, já não tem se dado com a

mesma tranqüilidade. De outro modo, desde o inicio, o MERCOSUL foi arquitetado

sobre areia movediça, em um período de crise das economias latino-americanas e

desregulamentação neoliberal que retirava capacidade dos Estados.

20 Exemplo disso é o projeto do Corredor Bioceânico levado à cabo pela Iniciativa para a Integração da

Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA). São quatro mil quilômetros de estradas que atravessarão

o continente sul-americano a partir do porto brasileiro de Santos, cortando a Bolívia e chegando aos

portos chilenos de Arica e Iquique.

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Em segundo lugar, para além das assimetrias sociais mais acentuadas intrabloco,

comparativamente ao caso europeu a situação do MERCOSUL revela maior

coincidência das pautas de exportação, em particular no segmento agrícola, o que limita

os fluxos comerciais regionais, e cria concorrência entre exportadores de bens

primários. É por isso também que o ingresso de novos países torna-se particularmente

interessante, permitindo explorar complementaridades produtivas e comerciais. Como

destaca o pesquisador Carlos Mielitz Netto da Universidade Federal do Rio Grande do

Sul,

O MERCOSUL, como ele foi concebido na sua origem, é um acordo

de livre comércio. É um acordo comercial. Neste sentido, há

argumentos para todos os lados. Tem gente que acha que foi uma

desgraça. Tem gente que acha que foi um sucesso. Os fluxos

comerciais intrabloco multiplicaram por quatro ou cinco. Então, neste

sentido, foi um sucesso. Só que nesse processo houve conseqüências

complicadas em todos os países. A indústria argentina sumiu. O trigo

gaúcho padeceu na concorrência com o trigo argentino. A suinocultura

e avicultura do Paraguai, Uruguai e Argentina não agüentaram a

concorrência da produção brasileira. A ideia de integração parte do

pressuposto de complementariedade. O sul do Brasil e o restante do

MERCOSUL acabam juntando sujeitos muito iguais, o que dificulta

as trocas. [...] Nesse sentido, se previa que o MERCOSUL progredisse

em uma velocidade muito maior do que ele progrediu em termos de

liberalização comercial.(Carlos Mielitz Netto).21

De modo geral, as principais críticas ao MERCOSUL provêm de setores sociais que

demandam maior abertura comercial dos países sul-americanos. Em vista dos

empecilhos que há anos bloqueiam a negociação de um acordo bilateral do bloco com a

União Europeia, organizações multilaterais como a OMC e o FMI, aliadas a

investidores internacionais, aumentam o coro liberal de grupos locais que se opõem aos

governos de centro-esquerda. Em nome do ajuste macroeconômico para controlar a

inflação, da recuperação da balança de pagamentos, do controle das finanças públicas e

da atração de investimentos estrangeiros, sobretudo por meio da abertura para o capital

privado, estes setores passaram a atacar as medidas de regulamentação dos mercados

que foram adotadas por vários governos na última década.

Questionando a eficácia comercial do MERCOSUL e, de modo geral, o esforço de

integração regional, estes setores passaram a defender uma espécie de negociação em

duas velocidades: enquanto aguardam o desfecho da demorada negociação dos acordos

bilaterais, pressionam os países para que abram mais rapidamente os mercados sem se

prenderem às ‘amarras’ políticas que o acordo regional impõe. Para tornar isso efetivo,

muitos agentes financeiros retaliaram atitudes julgadas nacionalistas e intervencionistas.

Exemplo disso é o fato de que alguns credores importantes, como o Clube de Paris,

21 Carlos Guilherme Adalberto Mielitz Netto. Professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação

em Desenvolvimento Rural da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PGDR-UFRGS). Estrato de

entrevista concedida em dezembro 2014.

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impuseram limites para a ajuda externa nos momentos de maior instabilidade que se

sucederam à crise financeira de 2008.22

É verdade que, na sua origem, o MERCOSUL definia objetivos muito claros com

relação à abertura comercial e à ampliação do comércio intrabloco, o que foi apenas

parcialmente alcançado. Os resultados ficaram aquém do que pretendiam os

negociadores no começo dos anos 1990. No entanto, o novo contexto econômico global

sugere um pouco mais de prudência antes de condenar mesmo os resultados

econômicos. A desaceleração da economia global contribuiu para arrefecer o processo

de integração comercial e, sobretudo, os acordos conjuntos do bloco com outras

economias. Ao mesmo tempo, a reorientação política de vários países da América

Latina em direção à centro-esquerda trouxe consigo uma ‘correção’ da pauta de

negociações. O MERCOSUL não pode mais ser avaliado exclusivamente como um

acordo comercial. As exportações tornaram-se um elemento específico (ainda

predominante nas reuniões do CMC) em uma teia de mudanças institucionais que inclui

uma preocupação mais ampla com a integração política, social e cultural da América

Latina.

Neste caso, contudo, as críticas recaem sobre a dificuldade do MERCOSUL para

estabelecer sólidas estruturas institucionais que permitam ampliar o processo de

integração política. Ou seja, a controvérsia já não é mais sobre o sucesso ou fracasso

econômico do bloco, mas sobre seu resultado institucional. Se, por um lado, admite-se a

fragilidade do aparato normativo regional – em particular a ação limitada do Parlamento

do MERCOSUL, mas também de muitos grupos, subgrupos e reuniões especializadas –,

por outro, nota-se a ampliação da solidariedade política entre os países sul-americanos,

o que contribui para consolidar os regimes democráticos na região; ampliar os processos

de intercâmbio e aperfeiçoamento das políticas públicas; desenvolver uma nova geração

de políticas de desenvolvimento e inclusão social; gerar novos mecanismos para

combater as assimetrias econômicas intrabloco; e fortalecer os fóruns públicos

envolvendo não apenas os governos, mas também, e cada vez mais, as organizações

sociais.

Há quem sustente que, sem esses resultados que se conjugam na gramática dos diálogos

políticos regionais, esta experiência de integração sul-americana não se sustentaria, haja

vista os bloqueios que se perpetuam há mais de uma década nas negociações

comerciais. Isso não significa, porém, que o MERCOSUL deva caminhar para se tornar

apenas um bloco político. Há reconhecidamente um desafio de ampliar o intercâmbio

comercial regional e dinamizar acordos bilaterais com outros blocos e países. Os

objetivos iniciais não foram abandonados. Mas, atualmente, eles são contrabalanceados

por um esforço mais amplo de integração política e social – envolvendo ainda o

fortalecimento da UNASUL e da CELAC –, o que não permite que o diálogo regional

22 Não é em vão que, dentre os países em desenvolvimento, ampliaram-se às críticas às instituições

financeiras internacionais, o que recentemente desembocou na criação do Banco dos BRICS.

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permaneça refém dos conflitos comerciais. Pelo contrário, parece que avanços mais

substanciais nas transações comerciais poderão ser efetuados somente à medida que se

consolide um novo regime de diálogos políticos para o desenvolvimento latino-

americano.

Neste sentido, três temas ganham destaque na construção de um MERCOSUL Social e

Participativo (Brasil, 2007). Em primeiro lugar está o reconhecimento de que o avanço

do processo de integração passa pela redução das assimetrias regionais. Para além da

preocupação estritamente comercial, que resultava na ampliação da heterogeneidade, e

colocava em risco o próprio processo de negociação, hoje se projeta uma série de

investimentos que visam facilitar a integração regional por meio da melhoria das

capacidades infraestuturais e institucionais dos países. O principal exemplo disso é a

criação, em 2008, do Fundo de Convergência Estrutural e Fortalecimento Institucional

do MERCOSUL (FOCEM). Trata-se do financiamento a programas de integração

física, desenvolvimento da competitividade das economias menores e regiões menos

desenvolvidas, promoção da coesão social e funcionamento da estrutura institucional do

MERCOSUL. O Brasil aporta 70% dos recursos do FOCEM, a Argentina 27%, o

Uruguai 2% e o Paraguai 1%.

Em segundo lugar destaca-se o avanço na agenda das políticas sociais, onde cabe

mencionar a criação, em 2008, da Comissão de Coordenação de Ministros de Assuntos

Sociais do MERCOSUL (CCMAS), do Instituto Social do MERCOSUL (criado em

2007, mas em funcionamento desde 2011) e a construção do Plano Estratégico de Ação

Social do MERCOSUL (PEAS).23 O foco dessa nova institucionalidade é identificar e

promover ações para impulsionar a inclusão produtiva; consolidar direitos trabalhistas e

previdenciários; reduzir a pobreza e melhorar a atenção à saúde; garantir a segurança

alimentar e nutricional; promover a diversidade cultural dos povos; fortalecer o

cooperativismo e a economia solidária; ampliar as políticas de gênero e geração;

garantir os direitos humanos e a igualdade racial; dentre outras ações. Essa mudança de

rumos é o resultado de uma escolha política dos governos de centro-esquerda com vistas

ao fortalecimento da dimensão social no processo de integração regional.

Nesta mesma direção, o terceiro tema está vinculado à ampliação dos processos de

participação social em escala regional. Na esteira das iniciativas promissoras

construídas nacionalmente, o MERCOSUL vem incrementando os mecanismos de

diálogo entre os governos e as organizações da sociedade civil. Há reconhecidamente

23 Em 2011, o CMC aprovou o documento “Eixos, Diretrizes e Objetivos Prioritários do Plano Estratégico

de Ação Social do MERCOSUL (PEAS)”, o qual contempla dez eixos temáticos: (1) Erradicar a fome, a

pobreza e combater as desigualdades sociais; (2) Garantir os Direitos Humanos, a Assistência

Humanitária e a igualdade étnica, racial e de gênero; (3) Universalização da Saúde Pública; (4)

Universalizar a Educação e Erradicar o Analfabetismo; (5) Valorizar e Promover a diversidade cultural;

(6) Garantir a Inclusão Produtiva; (7) Assegurar o acesso ao Trabalho decente e aos Direitos

Previdenciários; (8) Promover a Sustentabilidade Ambiental; (9) Assegurar o diálogo Social; (10)

Estabelecer mecanismos de cooperação regional para a implementação e financiamento de políticas

sociais.

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um déficit de participação social no bloco, agravado inicialmente pela priorização da

pauta econômico-comercial que afastou os movimentos sociais. De outro modo, a

recente ampliação da agenda social incentiva a participação da sociedade civil, e os

movimentos sociais passam de uma postura estritamente crítica ao processo de

integração regional, para uma posição mais proativa de diálogo para a construção de um

novo modelo de integração. Dentre as iniciativas que merecem destaque neste sentido

estão o Programa Somos Mercosul, as Cúpulas Sociais do Mercosul e a criação, em

2010, da Unidade de Apoio à Participação Social (UPS).

O Programa Somos Mercosul é uma iniciativa estabelecida em 2005, durante a

presidência pro tempore do Uruguai, a qual teve por finalidade ampliar a cidadania no

processo de integração regional por meio da promoção de espaços de diálogo entre

sociedade civil e governos. No âmbito deste Programa, a Argentina sediou o I Encontro

por um Mercosul Produtivo e Social, no qual as organizações sociais reuniram-se pela

primeira vez nos marcos de uma reunião presidencial e apresentaram as bases do que

conformaria uma agenda para o bloco, agora voltada para as políticas de

desenvolvimento social e participação democrática. O encontro acabou se tornando um

precursor para a convocação da I Cúpula Social do Mercosul (BRASIL, 2007).

As Cúpulas Sociais constituem fóruns de discussão dos quais participam representantes

dos movimentos sociais e dos governos. A Declaração Final da I Cúpula Social,

realizada em 2006 na cidade de Brasília, apontou o sentido principal das reivindicações:

participação direta da sociedade civil.

Propomos que os governos apóiem e estimulem a participação direta

das organizações da sociedade civil em todos os Subgrupos de

Trabalho e nas Reuniões Especializadas do Mercosul, e que sejam

criados mecanismos para incorporá-las como observadoras no Grupo

Mercado Comum (GMC) e no Conselho Mercado Comum

(Declaração Final da I Cúpula Social do MERCOSUL).

Em 2012, a Decisão 56/12 do CMC tornou as Cúpulas Sociais um evento regular e

oficial, realizadas semestralmente de forma coordenada com a Cúpula de Chefes de

Estado. As sugestões oriundas dos debates das Cúpulas Sociais são remetidas à

apreciação dos Chefes de Estado. Mesmo assim, a incorporação da ampla participação

social no conjunto de subgrupos de trabalho e reuniões especializadas do MERCOSUL

ainda é um anseio a ser concretizado. Na maioria dos casos, esses espaços continuam

centrados basicamente no diálogo institucionalizado entre órgãos de Estado, abarcando

pontualmente representantes sociais de acordo com a pauta da negociação em vigência.

Finalmente, a Unidade de Apoio à Participação Social (UPS) foi criada a partir da

Decisão 65/2010 do CMC. A mesma trabalha em coordenação com as instâncias do

MERCOSUL na área social, em particular com a Reunião de Ministros e Altas

Autoridades de Desenvolvimento Social, com o Instituto Social do Mercosul e com a

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Comissão de Coordenação de Ministros de Assuntos Sociais do Mercosul. A Unidade

atua como um canal institucional de diálogo com as organizações e movimentos sociais.

Em síntese, a trajetória do MERCOSUL pode ser resumida por uma espécie de

transição incompleta de uma lógica inicial quase estritamente voltada para a negociação

de acordos comerciais, que seguia uma perspectiva liberalizante, em direção a um novo

tipo de compromisso político que, sem abandonar o componente econômico, adiciona

uma preocupação central com a construção de um projeto regional para a consolidação

da democracia, para a retomada do papel dos Estados – em estreito diálogo com a

sociedade civil –, e para a inclusão social por meio de uma nova geração de políticas

públicas. Como veremos à frente, esta é uma conclusão importante para compreender o

lugar e o papel que a REAF assume no atual contexto de integração regional.

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6. A construção de um espaço para a Agricultura Familiar

A agricultura sempre foi um dos setores mais afetados pelas medidas de abertura

comercial ensejadas globalmente desde o pós-guerra, sobretudo a partir da criação, em

1947, do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT). No âmbito regional, a

criação do MERCOSUL respondeu ao ideário liberal que pautou a Rodada do Uruguai

(1986-1994), precursora da Organização Mundial do Comércio (OMC), criada em 1995.

Naquele momento os países do bloco não apenas absorveram o discurso hegemônico na

época, mas estiveram à frente de um grupo de países agroexportadores (Grupo de

Cairms) que reivindicava a abertura dos mercados agrícolas e a retirada dos subsídios e

das barreiras não tarifárias de comércio.

Embora os objetivos da OMC não tenham sido integralmente cumpridos, haja vista o

fracasso da Rodada de Doha (iniciada em 2001), as conseqüências das políticas de

liberalização ainda repercutem fortemente na agricultura sul-americana. Desde o final

dos anos 1980, um processo abrupto de reestruturação dos sistemas agroindustriais foi

colocado em marcha na região. Isso se deu, em grande medida, como resposta direta à

criação do MERCOSUL, mas também como efeito das expectativas que foram geradas

dentre os agentes econômicos em vista das medidas de desregulamentação que os

governos passaram a aplicar em inúmeras cadeias produtivas. Como vimos acima, o

processo de regionalização compôs um cenário mais amplo de negociações

internacionais.

Dentre todos os efeitos econômicos, sociais e tecnológicos que este processo

desencadeou, pode-se destacar a desestruturação dos sistemas agrários locais e, como

conseqüência, a crise da pequena produção de base familiar, exposta à concorrência de

produtores estrangeiros mais competitivos. Ao longo dos anos 1990, muitos

agricultores, cooperativas e empresas que haviam sobrevivido relativamente bem em

virtude do fechamento dos mercados domésticos nas décadas anteriores, foram

subitamente expostos a condições de mercado que não lhes permitia competir em

condições de igualdade com unidades de produção que se beneficiavam de maior escala

e produtividade, acesso a tecnologias mais adequadas, menores custos de produção em

vista das condições edafoclimáticas diferenciadas, e condições facilitadas de acesso aos

mercados, sobretudo como decorrência das novas estruturas de integração agroindustrial

que foram estabelecidas à montante e à jusante da agricultura.

Isoladamente, a criação do MERCOSUL não explica o conjunto das transformações da

agricultura e do meio rural nos países do Cone Sul, mas ela se tornou um dos fatores

relevantes para compreender a crise social de um modo de vida que estava na base das

cadeias produtivas mais afetadas pela abertura dos mercados: leite e derivados,

triticultura, avicultura, suinocultura e vitivinicultura. Embora os produtores de todos os

países tenham sentido os efeitos da integração regional, em um primeiro momento foi

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dentre os pequenos produtores do sul do Brasil que as conseqüências das políticas

liberais se mostraram mais evidentes. Ao menos foi esta região que se tornou o

epicentro de um conjunto de mobilizações de ampla repercussão social (ocasionadas

não apenas pela criação do MERCOSUL) que reivindicavam políticas diferenciadas

para a pequena produção e que deram vazão ao surgimento de uma nova categoria

sociopolítica no meio rural, a agricultura familiar (Picolotto, 2014; Grisa e Schneider,

2015).

A primeira metade dos anos 1990 constituiu um período de ebulição social no meio

rural brasileiro. Aos tradicionais movimentos camponeses de luta pela terra constituídos

nas décadas anteriores, somaram-se novos movimentos sindicais rurais pautando

políticas agrícolas e agrárias para os “pequenos agricultores” ou “agricultores em

regime de economia familiar”. Crédito diferenciado, seguro agrícola, previdência rural,

garantia de preços, extensão rural e criação de assentamentos de reforma agrária

compunham as principais reivindicações (Romano, 1996). As lutas locais confluíram

para manifestações mais amplas, desembocando no Grito da Terra Brasil de 1994,

capitaneado pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG),

logo em seguida filiada à Central Única dos Trabalhadores (CUT)24. Na pauta de

reivindicações o movimento sindical também exigia alterações substanciais nas relações

comerciais que afetavam a integração regional. Os movimentos da agricultura familiar

passaram a se posicionar criticamente ao MERCOSUL e a reivindicar políticas que

pudessem reverter a tendência de marginalização da pequena produção, o que pode ser

verificado em inúmeros documentos da época:

Posicionar-se contra as medidas de importação de produtos

agropecuários do governo federal, denunciando em especial o

processo pelo qual está sendo criado o MERCOSUL, que impede a

participação dos trabalhadores rurais e libera a importação de produtos

agropecuários. (CONTAG, 1991, p. 88).

No MERCOSUL prevalece uma visão baseada exclusivamente na

abertura comercial e na desregulamentação financeira, impulsionadas

por setores neoliberais que desejam que a integração regional seja

apenas uma forma de ampliação de mercados e escalas produtivas,

facilitando as complementaridades comerciais entre empresas

transnacionais nos quatro países. Essa ótica conservadora representa

graves riscos às conquistas sociais e trabalhistas. (CUT, 1995, p. 11).

24 É importante lembrar que este foi um período de unificação da CUT e da CONTAG. Desde a criação

do Departamento Nacional de Trabalhadores Rurais - DNTR/CUT, em 1988, o sindicalismo cutista viveu

uma situação ambígua entre construir uma estrutura autônoma e, portanto, negar a estrutura oficial

(CONTAG) ou aceitar em sua base os sindicatos oficiais e disputar a estrutura contaguiana. Em 1991, as

forças políticas que dirigiam a CUT decidiram compor a diretoria da CONTAG e, em 1995, esta se filiou

àquela. A unificação contribuiu para dar maior visibilidade e poder de reivindicação ao sindicalismo dos

trabalhadores rurais e ao debate sobre agricultura familiar. No entanto, no final da década de 1990, os

“rurais da CUT” do Sul do Brasil iniciaram um novo processo de rompimento com a CONTAG, criando,

em 1999, a Frente Sul da Agricultura Familiar e, em 2001, a Federação dos Trabalhadores na Agricultura

Familiar da Região Sul do Brasil (FETRAF-SUL). Desta iniciativa foram criadas Federações em outros

estados, culminando na criação da FETRAF-Brasil, em 2005 (Picolotto, 2014; Favareto, 2006).

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No contexto brasileiro, os efeitos do processo de integração passaram a compor uma das

justificativas centrais para a necessidade de políticas diferenciadas de desenvolvimento

rural.25 As políticas que surgiram em meados da década de 1990, em particular o

Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF), visaram

enfrentar um problema que não era apenas efeito do processo de integração – haja vista

que os ajustes macroeconômicos internos tiveram conseqüências talvez ainda mais

devastadoras para a renda dos agricultores –, mas foi influenciado pelas discussões que

se processaram a partir das mobilizações sociais em oposição ao mesmo. A pauta do I

Grito da Terra Brasil explicita o foco das reivindicações:

Garantir a ampliação do prazo para a desregulamentação total das

tarifas do setor primário, buscando garantir a reestruturação e/ou

reconversão produtiva dos pequenos produtores. (...) Em conseqüência

da fragilidade em que se encontram os pequenos agricultores do

Brasil, frente à concorrência com os países do MERCOSUL, o

financiamento acima referido [manifesto na pauta de reivindicações],

terá também como objetivo central contribuir para a reestruturação

e/ou reconversão deste segmento. Deverão ser priorizadas as regiões

que sofrerão os maiores impactos a curto prazo, como por exemplo, a

região sul. (Grito da Terra Brasil, 1994, p. 9).

Nos demais países, as medidas de liberalização ensejadas pela criação do MERCOSUL,

aliadas a medidas domésticas de desvalorização das moedas nacionais, também

desestabilizaram pequenos produtores que se encontravam vinculados a mercados que

foram ocupados por produtos baratos provenientes de outros países, como é o caso do

mercado paraguaio e argentino de carnes, ocupado pelos produtos oriundos dos novos

sistemas de integração implementados no Brasil pelas agroindústrias de aves e suínos. O

estrato de uma entrevista realizada por Carvalho (2011) com um dirigente da União

Agrícola Nacional (UAN) do Paraguai expõe com clareza os impactos deste processo de

abertura comercial em face das assimetrias existentes no bloco:

O Paraguai depende muito das políticas que implementam o Brasil, a

Bolívia, a Argentina. Há necessidade de harmonizar políticas. (...) O

Tratado de Assunção é iniciativa de livre-comércio, uma união

aduaneira imperfeita, mas a agricultura familiar ficou de fora. Nos

diziam que os paraguaios teríamos um mercado de 200 milhões de

habitantes, mas as assimetrias nas políticas foram muito grandes.

Quando o Brasil desvalorizou o Real, o frango, que custava 5 mil

guaranis, foi a 500. Em [produção de] leite e de porco, o Brasil nos

liquidou. A Argentina desvalorizou o Peso e o preço do seu leite caiu.

Os brasileiros liquidaram os argentinos com carne. (Ottmar Hann,

citado por Carvalho, 2011, p. 96).

25 Mais do que isso, na medida em que esses efeitos atingiam sobretudo os agricultores sulistas, a criação

do MERCOSUL (somada a outros fatores internos à relação sindical e à conformação socioeconômica da

agricultura familiar nacional) legitimou a formulação de políticas que respondiam mormente às

necessidades de alguns segmentos da agricultura familiar que acabaram se tornando a principal referência

para a ação do Estado brasileiro.

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Ressalvadas as particularidades de cada contexto, nos demais países do Cone Sul

também houve um recrudescimento da ação dos movimentos sociais do campo a partir

dos anos 1990. No Paraguai, após 35 anos da ditadura de Alfredo Stroessner (1954-

1989), que reprimiu fortemente os movimentos sociais, os mesmos começaram a se

rearticular em âmbito nacional, ainda sob os constrangimentos de um instável ambiente

institucional.26 Na pauta das organizações estavam questões mais gerais como as

conseqüências da redução da intervenção estatal, os efeitos da crise econômica, os

processos de privatização e os altos níveis de desemprego, além dos problemas mais

diretamente vinculados ao meio rural, com destaque para o tema da ocupação e

concentração da propriedade da terra, bem como as políticas de comercialização dos

principais produtos agrícolas nacionais: algodão e soja (Riquelme, 2003).

Na Argentina, neste período observa-se igualmente um movimento de expansão

territorial da Federação Agrária Argentina (FAA), de fortalecimento dos seus vínculos

com associações de minifundistas, campesinos e pequenos produtores, além de

articulações internacionais com outras organizações agrárias do MERCOSUL

(Schiavoni, 2010). A FAA esteve na linha de frente da representação dos pequenos

produtores desde as primeiras discussões relativas à criação do bloco, cumprindo um

papel fundamental para a formação e consolidação de uma rede regional de

organizações sindicais rurais. Foi a partir dessa crescente influência e articulação que a

agricultura familiar começou (ainda que não com esta denominação) a entrar na agenda

pública do Estado argentino, primeiramente com ações direcionadas para a redução da

pobreza rural e, em seguida, demandando políticas agrícolas ativas. De um segmento

periférico e marginal, a agricultura familiar também se legitimou como um segmento

relevante à economia nacional, sobretudo nos momentos em que o país vivenciou

graves problemas de abastecimento alimentar.

No caso do Uruguai, Vassallo (2010) avalia que o período de 1985-1998 foi um “claro

exemplo de crescimento sem desenvolvimento”, apoiado mais em condições externas

conjunturais e na compreensão do “transbordamento” dos frutos do crescimento do que

em políticas internas e em ações ativas de distribuição dos resultados econômicos. Neste

período, após a redemocratização, também se observaram mudanças políticas nos

movimentos sociais de representação dos pequenos produtores, com um diálogo mais

próximo às bases sociais e capacitação das lideranças políticas. Na década de 1990,

estas organizações se opuseram fortemente à reforma tributária proposta pelo governo,

expressando igualmente reservas diante das reformas da assistência social e da

educação, reivindicando ações relativas à habitação, saúde, educação, acesso à terra e

emprego. Neste período também se destacou a proposta de criação de políticas

diferenciadas para a pequena produção, com esforços para definir suas bases de

representação. Fernando López, Secretário Geral da centenária Comissão Nacional de

26 Dentre as principais entidades estão a Federação Nacional Camponesa (FNC), a Mesa Coordenadora

Nacional de Organizações Camponesas (MCNOC), a Organização Nacional Camponesa (ONC), a União

Agrícola Nacional (UAN) e a Central Paraguaia de Cooperativas (CEPACCOP).

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Fomento Rural (CNFR), a mais importante estrutura sindical rural do país, assim

resume o cenário dos anos 1990 no Uruguai e no MERCOSUL:

La década de 90 fue una década terrible para la agricultura familiar.

Coincide con un conjunto de transformaciones que se van dando, de

liberalización de los mercados, desmantelamiento de las políticas

públicas, de los sistemas de atención y otro conjunto de políticas,

sumado a la firma del Tratado de Asunción y la creación del

MERCOSUR. También es un momento de privatización de las

empresas públicas, y de caída de los precios agropecuarios. En el

principio de los 90, en Uruguay, no se generó un principio de

adaptación para participar del nuevo escenario regional. Solamente se

firmó y, bueno, entramos. […] Para los productores exportadores de

Uruguay, no les afectaba, pero, para la pequeña producción la apertura

sin aranceles, con una asimetría macroeconómica entre los países,

hizo que la producción de grande escala de Brasil y Argentina

inundara el mercado chico uruguayo. Los pequeños productores, de un

día para otro, se enfrentaran a la concurrencia externa de grandes

empresas con productos a precios de ruina. (Fernando López).27

A crescente insatisfação social fortaleceu os movimentos sociais agrários na demanda

por políticas diferenciadas. Logo estes passaram a reivindicar uma atenção particular do

MERCOSUL à agricultura e, em particular, àquela realizada em pequena escala.

A rigor, antes mesmo da criação do bloco, os países do Cone Sul já haviam instituído o

Consejo Consultivo de Cooperación Agrícola de los Países del Area Sur (CONASUR),

o qual deveria atuar como mecanismo institucional de “consulta y coordinación de los

Ministerios de Agricultura, en asuntos que conciernen al desarrollo rural, agropecuario,

forestal, pesquero y de conservación de los recursos naturales”. Este espaço absorveu as

discussões relativas à agricultura, incluindo em sua dinâmica a participação de entidades

não governamentais. Mas a representação da “sociedade civil” foi constituída

basicamente por segmentos empresariais, com algumas poucas exceções dentre as duas

principais organizações nacionais dos pequenos e médios produtores do Uruguai e da

Argentina, respectivamente, a Comissão Nacional de Fomento Rural (CNFR) e a

Federação Agrária Argentina (FAA).

Como era esperado em vista de sua composição, o CONASUR se mostrou um espaço

fortemente hegemonizado pelos interesses dos grandes produtores agroindustriais, cujas

organizações representativas já estavam associadas às coalizões de poder que

controlavam os Ministérios de Agricultura (Riella, 2002). A rigor, sequer havia

necessidade de uma participação mais efetiva das entidades do agronegócio neste

espaço na medida em que seus atores, discursos e justificativas já estavam enraizados

nos próprios órgãos do Estado. Juntamente com isso, a predominância de um enfoque

27 Fernando López. Secretário Geral da CNFR e atual presidente da COPROFAM. Estrato de entrevista

concedida em abril de 2015.

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setorial e de uma pauta essencialmente voltada para questões técnico-normativas

contribuía para legitimar a exclusão das organizações sociais das instâncias decisórias.

Esta situação levou a CNFR e a FAA a articular fóruns paralelos de diálogo, incluindo

gradativamente representantes dos agricultores familiares e camponeses dos demais

países vizinhos, em particular a CONTAG do Brasil. Constituiu-se, assim, uma rede

supranacional de movimentos sociais rurais que, em agosto de 1994, na cidade de Porto

Alegre, realizou a assembléia de fundação da Coordinadora de Organizaciones de

Productores Familiares del Mercosur (COPROFAM). Abarcando alguns dos principais

movimentos da agricultura familiar, campesina e indígena da América Latina, esta

entidade-rede logo se tornou a principal interlocutora dos governos quando a pauta

envolve os interesses dos pequenos e médios produtores nas instâncias regionais. Como

destaca Luiz Vicente Facco, assessor da presidência da CONTAG,

A COPROFAM surgiu da necessidade das organizações dos pequenos

serem escutadas pelos governos no processo de integração. No

processo de integração se discutia na época a história da

competitividade e as chamadas cadeias e produtos sensíveis. E

geralmente as cadeias e produtos mais sensíveis que eram objeto de

negociação no MERCOSUL eram exatamente aqueles em que

estavam os agricultores familiares. E nas mesas de negociação estava

a representação dos grandes produtores e das empresas rurais... no

SGT 8 que tratava da agricultura..., e a agricultura familiar estava

fora. Então nós tratamos de fazer uma articulação no âmbito do

MERCOSUL e sentimos a necessidade de criar uma organização que

tenha uma articulação e que pudesse exercer uma certa pressão sobre

os governos. Ou seja, esse setor que não estava sendo ouvido, e que

recaía sobre ele o problema maior... nós tínhamos que ter uma

representação e um espaço no processo de negociação no

MERCOSUL. (Luiz Vicente Facco).28

O protagonismo da COPROFAM

A trajetória da Coordinadora de Organizaciones de Productores Familiares del Mercosur

(COPROFAM) se confunde com a própria história do MERCOSUL e da REAF. Foram as

conseqüências do processo de abertura comercial, associados aos bloqueios impostos à

participação das organizações da agricultura familiar nas estruturas institucionais do bloco, que

catalisaram o surgimento de uma articulação regional das entidades da agricultura familiar.

Apesar de suas inúmeras diferenças (público, estrutura, espaço de atuação, capacidade de

intervenção política), essas entidades unificaram-se em torno de um objetivo comum: o

reconhecimento público de que seus países abrigam distintas formas de fazer agricultura,

algumas delas correspondendo a unidades familiares de produção que, em vista de suas

características econômicas, sociais e culturais, demandam um tratamento diferenciado por parte

dos Estados.

28 Luiz Vicente Facco. Assessor da presidência da CONTAG. Estrato de entrevista concedida em abril de

2015.

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Em torno deste objetivo geral, há mais de duas décadas a COPROFAM sustenta uma das

experiências mais exitosas de articulação internacional de movimentos sociais, abarcando

atualmente doze organizações: Uruguai - Comissão Nacional de Fomento Rural (CNFR),

Associação de Mulheres Rurais do Uruguai (AMRU), Associação de Colonos do Uruguai (ACU),

Intergremial de Produtores de Leite (IPL); Paraguai - União Agrícola Nacional (UAN); Chile -

Movimento Unitário de Campesinos e Etnias do Chile (MUCHECH), Confederação Nacional da

Agricultura Familiar Campesina Voz del Campo; Bolívia - Coordenador de Integração de

Organizações Econômicas Campesinas da Bolívia (CIOEC); Peru - Central Campesina do Peru

(CCP); Argentina - Federação Agrária Argentina (FAA); Mesa Coordenadora de Organizações de

Produtores Familiares da Argentina; Brasil - Confederação Nacional dos Trabalhadores na

Agricultura (CONTAG).

A unidade entre essas organizações dá-se em torno de princípios como a defesa da segurança

alimentar; a reivindicação, formulação e harmonização das políticas para a agricultura familiar; a

defesa do desenvolvimento sustentável e a inclusão de mulheres e jovens. São esses princípios

que orientam a intervenção da COPROFAM junto aos espaços institucionais em que atua,

particularmente na REAF, mas também a ação de cada uma das organizações afiliadas em

âmbito nacional e local. Cabe notar que, vinculadas às entidades nacionais, a COPROFAM

aglutina ainda 125 organizações de segundo grau (confederações e federações) e mais de cinco

mil sindicatos, associações e agremiações de base. Por sua vez, estima-se que estes

representem cerca de 35 milhões de agricultores familiares, campesinos e indígenas nos países

do MERCOSUL Ampliado.

Esse amplo lastro de ação mostra-se simultaneamente sua principal força e fragilidade. Em

primeiro lugar, porque a capacidade de intervenção da COPROFAM depende fundamentalmente

do empenho das entidades que a compõe, inclusive no que tange à alocação de recursos

financeiros e humanos. Com efeito, ao longo da sua trajetória podem-se destacar diferentes

momentos no que diz respeito ao estoque de recursos que a mesma dispunha para incidir sobre

as agendas públicas, com fases de maior ou menor protagonismo. Em segundo lugar, é

inevitável que, ao reunir movimentos imersos em contextos tão heterogêneos, essa rede regional

tenha que conviver com a complexa tarefa de mediar distintos interesses e posicionamentos.

Também neste caso pode-se identificar como a história da COPROFAM é marcada por inúmeros

momentos críticos em que as diferenças vieram à tona.

Essas características exigiram da COPROFAM um esforço contínuo para gerar um espaço plural

de diálogos entre os movimentos sociais. Foi necessário aprender a respeitar as características

de cada sujeito desse processo, construir entendimentos a partir dos objetivos e princípios

comuns e encaminhar aquilo que era consensuado, sem tolher a possibilidade dos atores

manterem suas posições e expressarem suas discordâncias. Como veremos à frente, esse

aprendizado constituiu um elemento fundamental para a construção dos diálogos políticos

quando esses movimentos se encontram com os governos dentro da REAF.

Embora o processo de integração regional, em um primeiro momento, não tenha

favorecido a participação efetiva das organizações sociais da agricultura familiar, ele

também não bloqueou a construção de uma rede de movimentos que mais tarde

assumiria um papel-chave na REAF. Como sustenta o Alberto Riella (2012, p. 6), “la

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respuesta de las organizaciones rurales es una muestra elocuente de la capacidad de la

sociedad civil regional, que se resiste a quedar marginada de las decisiones en el

proceso de integración.” Ainda de acordo com o professor uruguaio da Universidad de

la República (UDELAR),

La REAF de alguna manera comienza antes [de 2004]. Comienza

cuasi diez años antes con la lucha de las organizaciones por tener un

espacio en el MERCOSUR. Hacía diez años que las organizaciones

venían presionando los grupos donde se estaban discutiendo las

políticas de MERCOSUR para participar. Diez años después esto

generó frutos en la creación de la REAF. […] No sólo es una defesa

corporativa de un grupo de agricultores familiares. Es un reclamo […]

del reconocimiento de la pequeña y la mediada producción rural. Los

gobiernos y las organizaciones crearon un espacio en MERCOSUR

que refleja una histórica demanda sobre un tratamiento específico para

la pequeña producción agropecuaria. (Alberto Riella).29

Desde então, esta rede de movimentos sociais ampliou-se, conquistou legitimidade

perante os Estados e consolidou uma nova plataforma de diálogos políticos, por meio da

qual a articulação supranacional também passou a ser utilizada como elemento de

reforço discursivo nas lutas para a construção de políticas públicas em cada um dos

países. Trata-se de uma espécie de “efeito boomerang” (Keck e Sikking, 1998), em que

as demandas, reivindicações e denúncias das organizações nacionais são remetidas para

a instância regional com a intenção de retornar e retroalimentar o debate interno,

pressionando os governos por novas ações.

Como vimos anteriormente, alguns anos após a criação do MERCOSUL, já em um

contexto de maior estabilidade política e econômica nos países do bloco, o mesmo

começou a consolidar sua arquitetura institucional. Em 1995, o GMC criou um

conjunto de órgãos assessores, dentre os quais o SGT 8, Subgrupo de Trabalho que

agrega as discussões relacionadas à agricultura (Resolução GMC 20/1995). A partir de

então, sobretudo em virtude da pressão exercida pela COPROFAM, este subgrupo

incluiu marginalmente em sua agenda as discussões sobre os impactos da integração

regional para os agricultores familiares. No entanto, o predomínio das discussões

comerciais setoriais, que afetavam mais diretamente os grandes grupos agroindustriais,

demonstrou que este também seria um fórum de limitadas possibilidades para a

construção de um diálogo efetivo com a representação da agricultura familiar.

A partir de los primeros sígnales dese libre mercado, es que

empezamos a ver que la problemática no era solamente nuestra. En

los demás países de la región, para los pequeños estaba pasando lo

mismo. Ahí empezaron las primeras conversaciones a principio de los

90. Después, durante un tiempo, en uno de los grupos del

MERCOSUR que es el SGT 8, teníamos una instancia de reuniones e

intercambios que al principio era, de alguna manera, cada sector de

29 Alberto Riella. Professor e pesquisador da Universidad de la República. Estrato de intervenção no

Seminário “10 anos da REAF”, Montevidéu, dezembro de 2014.

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cada país venia con su grupo defender sus intereses. Era una guerra de

todos contra todos. El mensaje era liberalización total. (Fernando

López, op. cit.).

Mais uma vez, transparecia a inabilidade dos governos regionais para constituir um

fórum democrático com ampla participação das organizações sociais. É verdade que

existia (e ainda existe) uma forte dependência de caminho que restringia avanços

institucionais mais expressivos. Por um lado, não fazia parte da cultura política dos

negociadores internacionais a ideia de que as intrincadas pautas comerciais pudessem

ser discutidas em espaços públicos ampliados. Por outro, essa também não era a regra

no interior da maioria dos Estados Membros. Foi somente no final dos anos 1990 que

começaram a se consolidar experiências de democracia participativa na América Latina,

o que resultou na proliferação de conselhos, comitês, câmaras e mesas de discussão

sobre a gestão das políticas públicas. Em grande medida isso ocorreu em virtude da

pressão exercida pelos movimentos sociais, mas também como efeito das novas teorias

sobre participação, accountability, governança, capital social e desenvolvimento local,

as quais foram adotadas pelas organizações multilaterais e disseminadas para os

governos nacionais.

Embora a ação do SGT 8 não tenha repercutido em soluções para os problemas da

agricultura familiar, a inclusão desta pauta representou uma importante vitória

simbólica dos movimentos sociais. Tratava-se, afinal, do reconhecimento institucional

em âmbito supranacional não apenas de uma nova categoria social (agricultura familiar)

e de seus interlocutores (em especial a COPROFAM), mas também dos efeitos

corrosivos que o processo de integração havia desencadeado sobre uma parcela

expressiva da população rural. Os negociadores não podiam mais desconsiderar as

conseqüências que os acordos comerciais produziam para cerca de 4,9 milhões de

propriedades familiares distribuídas nos quatro países do bloco (ou seja, 83% do total de

estabelecimentos agropecuários).30

Mesmo assim, no final da década de 1990, o agravamento da vulnerabilidade social e

econômica dos pequenos produtores, e a incapacidade de resposta dos governos

nacionais – e do MERCOSUL enquanto bloco –, exacerbou a necessidade de uma ação

mais incisiva, o que a estrutura institucional então existente parecia não ter condições de

atender. Após um seminário regional intitulado “As Assimetrias nas Políticas

Econômicas e Agrícolas dentro do Mercosul”, realizado paralelamente à reunião do

CMC, em 15 de dezembro de 2003, a COPROFAM encaminhou ao Conselho a “Carta

de Montevidéu”. Marco fundamental na história da REAF, o documento demanda “la

creación de un grupo “ad hoc” especializado en el marco del SGT 8, con participación

de representantes de los gobiernos y de la COPROFAM, que en un plazo de seis meses

30 Ademais, abria-se uma discussão sobre os efeitos indiretos da abertura comercial para as economias

nacionais na medida em que esta agricultura de base familiar era a principal responsável por abastecer os

mercados internos; garantir segurança e soberania alimentar; contribuir para o combate à inflação e

absorver uma parcela do excedente de mão de obra.

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presente resultados y proponga una agenda para la política diferencial sobre la

agricultura familiar” (COPROFAM, 2003). Ainda de acordo com a Carta, os objetivos

deste grupo seriam:

a. Analizar las condiciones de participación de la agricultura familiar

en las Cadenas Productivas que actualmente constituyen la estructura

productiva de los países o que se fomenten hacia el futuro.

b. Evaluar los impactos sobre la agricultura familiar de las medidas de

integración vigentes y las que se adopten en el futuro.

c. Intercambiar información sobre las políticas agrícolas y de

comercialización en el ámbito del MERCOSUR y analizar sus

impactos sobre la agricultura familiar y el desarrollo territorial y local.

d. Los aspectos analizados por este grupo de trabajo relativos a la

agricultura familiar deberán ser tenidos en cuenta en las negociaciones

del MERCOSUR en el ámbito del ALCA, OMC y Unión Europea.

(COPROFAM, Carta de Montevidéu, 15 de dezembro de 2003).

Com o apoio do Programa FIDA Mercosul, cuja sede já se localizava no Edifício

Mercosul, onde era realizada a reunião de chanceleres, as organizações sociais da

agricultura familiar conseguiram encontrar interlocutores para intermediar a

apresentação de suas reivindicações ao CMC. Um interlocutor mostrou-se

particularmente sensível à proposição, o ministro brasileiro de relações exteriores. Celso

Amorim articulou a leitura da Carta de Montevidéu às demais autoridades regionais, ato

realizado por Alberto Broch, então presidente da COPROFAM e atual presidente da

CONTAG. A reação imediata do CMC foi incumbir o governo brasileiro a apresentar

uma proposta que pudesse adequar-se à estrutura institucional do MERCOSUL. A

tarefa foi repassada ao Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) que, com apoio

do Ministério de Relações Exteriores (MRE), desenhou o primeiro formato de uma

Reunião Especializada sobre Agricultura Familiar (REAF). A mesma foi apresentada

por Laudemir Muller, então coordenador da Assessoria Internacional do MDA, à

Reunião Ordinária do GMC em fevereiro de 2004.

A colaboração e o aprendizado do Programa FIDA Mercosul

O Programa FIDA Mercosul foi criado após a decisão do Fundo Internacional de

Desenvolvimento Agrícola (FIDA) de apoiar a institucionalização de novas políticas de

desenvolvimento rural e de redução da pobreza no contexto sul-americano. Sua origem remete

ao Seminário “Combate a pobreza com regras de mercado no contexto do Mercosul”, realizado

em 1997 na cidade de Montevidéu. Neste seminario foi apresentada a proposta de criação de

uma Unidade de Coordenação Regional (UCR) do FIDA cuja ação se voltaria à “coordinación,

enlace y asesoramiento a los gobiernos del MERCOSUR y los países asociados, con el objetivo

de maximizar el impacto de los recursos nacionales e internacionales invertidos por los Estados,

en la superación de la pobreza rural y en las estrategias para insertar eficazmente a las

pequeñas economías rurales en el marco de una economía de mercado, de una sociedad

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moderna y equilibrada y del proceso de consolidación y profundización del MERCOSUR.”

Em 1999, o FIDA aprovou uma doação financeira para os governos do MERCOSUL para instalar

a UCR junto ao Edifício Mercosul. A partir da instalação do Comitê Técnico da UCR, em

setembro do mesmo ano, iniciou-se a execução do Programa FIDA Mercosul, o que

desencadeou um processo de aproximação da entidade com os governos da região, mas

também com as organizações sociais do meio rural, em particular aquelas mais diretamente

implicadas com os objetivos do combate à fome e inclusão produtiva das pequenas unidades

familiares. Desde então, alguns países passaram a contar com programas públicos amparados

financeira e tecnicamente pelo Programa FIDA Mercosul, os quais estão na origem de algumas

das atuais políticas para a agricultura familiar.

Com a criação da REAF, em 2004, criaram-se novas demandas para a operacionalização dos

diálogos políticos entre governos e organizações. Em primeiro lugar, há uma demanda financeira

para viabilizar as reuniões e as demais atividades da REAF (estudos técnicos, secretaria,

representações). Sem aporte de recursos do próprio bloco, a REAF contou com duas doações

do Programa FIDA Mercosul (em 2005 e 2008) direcionadas para manter a Secretaria Técnica,

executar os planos de atividades e garantir a participação de representantes das organizações

da agricultura familiar nas reuniões regionais.

Já a segunda demanda era de caráter mais operacional e estava associada com a estruturação

de uma Secretaria Técnica. Tratando-se de uma atividade-chave na condução do processo de

diálogos políticos, em uma fase inicial de formação da REAF, onde os atores não se conheciam

e o clima de desconfiança predominava, era necessário contar com atores capacitados a um

processo de mediação muito delicado. Neste momento, Álvaro Ramos, coordenador do

Programa FIDA Mercosul, ex-ministro da agricultura e ex-chanceler do Uruguai, com contatos

privilegiados no âmbito regional, mostrou-se a pessoa adequada para coordenar a ação do que

posteriormente viria a conformar a Secretaria Técnica da REAF, cargo que exerceu até 2012,

quando foi substituído por Lautaro Viscay, o qual também já atuava na equipe do FIDA Mercosul.

A terceira demanda estava associada à condução dos diálogos políticos na REAF, afinal não

havia experiência similar para orientar a formatação da arquitetura institucional dos debates

entre governos e sociedade civil. A experiência dos gestores do Programa FIDA Mercosul na

construção de uma plataforma de diálogos políticos (veja FIDA, 2013a; 2001) contribuiu para a

formatação de um “método REAF”, o qual foi complementado pelas experiências de participação

e governança social já existentes nos países do bloco e continuamente aprimorado ao longo do

tempo. Além disso, em virtude da capacidade técnica dos seus operadores, em vários países o

Programa FIDA Mercosul desempenhou importante papel na mediação dos diálogos entre

governos e organizações sociais, aproximando atores com históricos conflitos políticos,

permitindo assim a estruturação das Seções Nacionais da REAF.

Nós propusemos ao FIDA que ele ajudasse financeiramente as organizações que tinham mais necessidade, e mais que isso que o FIDA ajudasse tecnicamente na construção da pauta e dos temas. Isso evoluiu bem e o Programa FIDA Mercosul tomou muito bem isso. Assim nós conseguimos transformar este em um apoio técnico, conformando uma espécie de secretaria técnica para a REAF. Mas era fundamentalmente o FIDA apoiando as organizações a participar. E eles vieram e foram ajudando... Quem senta ali para construir a ata? Não é governo nem organização. Se para o governo está bem o FIDA, para nós também está. Porque era uma entidade mais isenta. Porque tinha toda uma questão de desconfiança. [...] O FIDA ajudou muito. Teve um papel muito importante na sensibilização dos governos e na

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construção das seções nacionais. (Luiz Vicente Facco. Assessor da presidência da CONTAG. Entrevista concedida em abril de 2015).

A ação do Programa FIDA Mercosul foi decisiva não apenas para a criação da REAF, mas

também para o seu posterior funcionamento.

A principal razão da REAF ter obtido sucesso é que ela gerou confiança entre quem participava. Foi correto então ter um organismo internacional como o FIDA para fazer o secretariado da REAF, porque nós sabemos como é o dia a dia de movimento social e de governo. Se você não tem um grupo que faz a parte operacional, que marca a reunião, que prepara a ata, não funciona. Desse ponto de vista o FIDA foi muito eficiente. [...] Eles ganharam uma enorme confiança, seja dos governos, seja dos movimentos sociais. (Guilherme Cassel. Ex-Ministro Brasileiro do Desenvolvimento Agrário. Entrevista concedida em dezembro de 2014).

Ao mesmo tempo, a experiência de diálogos políticos da REAF fomentou a reorganização do

próprio FIDA, o qual viu incorporada à sua lógica financeira novos parâmetros de ação política

participativa. Hoje, a experiência sul-americana engendrada pela REAF tem sido utilizada pelo

Fundo como uma referência e um exemplo a ser analisado, servindo inclusive para readequar os

projetos que o mesmo financia em todo o mundo.

El FIDA Mercosur como herramienta facilitadora/catalizadora de eso... fue el papel que jugamos. El Fida que viene de atrás. El FIDA vio uno problema y generó la oportunidad. Pero no compró el dialogo político inmediatamente. Porque el FIDA es un banco. El FIDA es un organismo financiador. ¿Como llega el FIDA a visualizar el dialogo político? Llega por la via de que quiere que sus operaciones financieras en los países sean más efectivas. […] Esa fue la grande preocupación de FIDA. Entonces el FIDA incorpora el dialogo político como una herramienta a más de su ciclo de proyectos. […] Nosotros tenemos una situación sui generis como programa, porque nosotros tenemos dos destinatarios: la REAF, a través de sus organizaciones sociales y de los gobiernos, y tenemos el FIDA […] que utiliza la experiencia que se genera acá. Si vos miras los formatos de los proyectos de FIDA entre el 2000 y el 2007 son unos; del 2007 al 2010, son otros; y después de 2010, son otros. Es decir, han cambiado, han incorporado innovaciones que se fueron generando desde esta región. Y el FIDA ha ayudado a llevar el tema del dialogo político de la REAF hacia otras regiones. (Álvaro Ramos. Coordenador do Programa FIDA Mercosul. Estrado de entrevista concedida em abril de 2015).

A convergência entre a reivindicação dos movimentos sociais e a proposta capitaneada

pelo governo brasileiro revela a mudança política que estava em curso desde a eleição

do Presidente Lula, a qual foi reforçada com alterações políticas nos demais Estados

membros. Essa mudança permitiu que não apenas as pautas, mas os próprios

representantes das principais organizações sindicais rurais brasileiras, adentrassem à

esfera governamental, influenciando diretamente o processo de construção das políticas

públicas. Ao longo do tempo, uma nova cultura política foi instalada no que diz respeito

ao diálogo entre governo e sociedade civil. O objetivo do MDA era, em primeiro lugar,

estimular a criação de um espaço público que ampliava para a escala regional as

experiências de participação social que estavam rendendo frutos na construção de

políticas diferenciadas de desenvolvimento rural. Em segundo lugar, o Ministério

também objetivava constituir um espaço onde pudesse ter uma ação mais incisiva, haja

vista que, desde a sua criação, em 1999, é obrigado a rivalizar posições nas negociações

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internacionais com o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), o

qual geralmente sustenta um discurso pró-liberalização dos mercados.31

Há ainda outros eventos adjacentes, mas importantes, para compreender a posição

brasileira. Em virtude das escolhas políticas processadas para a formação do primeiro

Governo Lula, o MDA passou a ser conformado por atores políticos com estreita

relação com os movimentos sociais e sensíveis aos debates sobre democracia,

participação e internacionalismo32. Antes de assumir o ministério, Miguel Rosseto havia

sido vice-governador do Estado do Rio Grande do Sul, onde participou ativamente,

juntamente com vários membros que comporiam sua equipe, da organização de duas

experiências que projetaram novos modelos de governança dos problemas públicos, o

Orçamento Participativo e o Fórum Social Mundial. Ambas as iniciativas aproximaram

os atores governamentais com os movimentos sociais, em especial com a Rede

Brasileira pela Integração dos Povos (REBRIP).

Quando estes atores adentraram à esfera governamental, eles se depararam com o

desafio de construir políticas para a agricultura familiar, mas também de gerir uma

complicada agenda internacional que estava sendo consumida pelas discussões sobre a

ALCA, onde a agricultura ocupava um lugar de destaque. Para tanto, o MDA criou um

grupo de trabalho com participação dos movimentos sociais, o qual se reunia

bimestralmente para tratar da pauta internacional. Este se tornou um dos poucos espaços

que congregava sociedade civil e governo para discutir temas importantes da política

externa. A partir desse grupo originou-se inclusive uma delegação oficial para a

Reunião da OMC de 2003, em Cancun, onde foram incluídos representantes da

sociedade civil. Deste momento em diante, de um ministério que não possuía expressão

significativa nas delegações internacionais brasileiras, o MDA tornou-se um dos

principais porta-vozes do governo perante a Sociedade Civil.33 Como aponta Guilherme

Cassel, este diálogo entre governo e movimentos sociais foi primordial para a

construção de entendimentos sobre o modo como a agricultura familiar deveria ser

tratada na agenda internacional.

31 Esta situação resultava em um posicionamento ambíguo por parte do governo brasileiro nos fóruns

regionais. Enquanto um ministério (MDA) posicionava-se a favor dos interesses da agricultura familiar e,

portanto, na defesa de um processo de integração que considerasse as assimetrias intra e interregionais,

outro (MAPA) priorizava uma agenda de negociações comerciais que tenciona constantemente pela

ampla abertura dos mercados, o que teria como efeito o aumento da desigualdade entre as formas

empresariais e familiares de produção agrícola.

32 No que tange a este “viés internacionalista”, poderia se destacar, por exemplo, o fato de que poucos

ministérios criaram um espaço similar e com a mesma capacidade de ação da Assessoria Internacional do

MDA.

33 Isto acabou projetando esses atores no interior do governo. Evidencia disso é que, atualmente, no

segundo mandato de Dilma Roussef, o mesmo grupo político está frente da Secretaria Geral da

Presidência, um ministério do chamado “centro de governo” que coordena, dentre outras coisas, a Política

Nacional de Participação Social.

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A gente tinha saído da experiência do Fórum Social Mundial no

governo do Rio Grande do Sul. Então a gente vinha muito forte nessa

batida relacionada ao internacionalismo. Tinha esse ambiente. Tinha a

REBRIP, as agendas internacionais, a ALCA. Mas nós não tínhamos

nenhuma estrutura no MDA de assessoria internacional. Aí a gente

cria um GT.[...] No começo o MDA não tinha nenhuma estrutura de

assessoria internacional. A gente acaba montando um GT, que na

verdade era um grande fórum [...]. Não tinha precedente uma reunião

desse tipo com o Ministro lá no meio dando pitaco. Esse clima, esse

ambiente, começa lá atrás. E quando tu crias um ambiente destes, tu

não para mais. Na segunda reunião aquilo já é uma conquista.

(Guilherme Cassel).34

Gradualmente, o MDA também assumiu um papel de levar para dentro do governo

algumas pautas da sociedade civil. O crescente reconhecimento dessa interlocução

permitiu, mais tarde, a inclusão do mesmo no Conselho de Ministros da Câmara

Brasileira de Comércio Exterior (CAMEX), o que lhe possibilita intervir sobre todos os

assuntos da agenda de negociações internacionais do governo brasileiro. Trata-se de

uma importante exceção à regra na medida em que, nos demais países, os interlocutores

governamentais presentes na REAF possuem pouco conhecimento do que se passa nos

demais fóruns multilaterais e, portanto, dos acordos em discussão em outras áreas que

podem ter impactos para a agricultura familiar.

Além das mudanças no âmbito governamental brasileiro, para compreender este

momento de gênese da REAF é imperativo citar a relevância de outros três eventos que

antecedem o Seminário de dezembro de 2003 organizado pela COPROFAM em

Montevidéu. O primeiro deles é o Seminário “Os acordos inter-regionais e o desafio

camponês”, organizado em junho do mesmo ano no Paraguai, juntamente às atividades

da IV Assembléia Geral da COPROFAM. O objetivo do evento era debater os desafios

abertos pelas mudanças traçadas a partir das negociações em curso no MERCOSUL e

na ALCA para a agricultura regional, em especial para os camponeses. A este encontro

seguiu-se o Seminário Internacional sobre “Agricultura Familiar e Negociações

Internacionais” realizado em Brasília em agosto de 2003 pelo MDA, MRE e REBRIP.

Os termos do convite elaborado para este encontro deixam evidente o foco da discussão

sobre o lugar da agricultura familiar nas negociações internacionais.

1. a agricultura é um dos temas centrais da agenda das negociações

internacionais, estando presente no processo negociador da OMC e

nas discussões sobre a criação da ALCA; 2. Em toda a América Latina

e Caribe, a agricultura familiar, seja camponesa, indígena ou de

comunidades negras, cumpre papel fundamental respondendo pela

maior parte dos empregos no meio rural e por significativa parte do

abastecimento alimentar; 3. Por esse motivo, são necessários o

diálogo, a elaboração e a ação conjunta de governos e sociedade civil,

34 Guilherme Cassel. Ex-Ministro do Desenvolvimento Agrário, Brasil. Estrato de entrevista concedida

em dezembro de 2014.

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para que os interesses desses segmentos possam ser representados nas

negociações econômico-comerciais internacionais. (MDA, 2003).

A Declaração de Brasília resultante deste seminário foi assinada por representantes de

governos de onze países, entre eles Argentina, Uruguai e Brasil, além de inúmeras

organizações da sociedade civil. O texto sublinha a importância da agricultura familiar e

camponesa para a estabilidade social, para a sustentabilidade ambiental, para o

desenvolvimento social e para garantia da segurança alimentar. Sustenta, ademais, que o

segmento participa ativamente nos fluxos comerciais e dinamiza as relações econômicas

regionais; o que justifica atenção diferenciada à mesma na agenda de negociações e na

formulação de políticas públicas. A Declaração também sugere que sejam feitos

esforços para garantir a participação da sociedade civil, particularmente das

organizações de trabalhadores e produtores rurais familiares, nas negociações

internacionais. Segundo Carvalho (2014), pode-se afirmar que este seminário revelou a

entrada definitiva da noção de agricultura familiar nas negociações internacionais

latino-americanas. Também foi um momento importante na aproximação entre a

COPROFAM e o Programa FIDA Mercosul, o que facilitou os entendimentos para levar

adiante a posterior redação e entrega da Carta de Montevidéu ao CMC.

O terceiro evento relevante neste momento está associado com a organização, em

dezembro de 2003, pela CONTAG e com apoio da Oxfam e da Action Aid Brasil, do

“Seminário Agrícola Internacional: Avaliando as negociações da OMC, da ALCA e

seus reflexos na agricultura familiar da América Latina”. O evento reuniu representantes

do movimento sindical rural, de organizações não governamentais, do GT Agricultura

da Rebrip, do MDA e do MRE. O objetivo era fortalecer a articulação das organizações

dos agricultores familiares e camponeses da América Latina na perspectiva de

“estabelecer uma estratégia regional comum e coordenar ações para uma harmonização

de políticas públicas de fomento ao desenvolvimento rural sustentável, principalmente,

nos países do Mercosul” (CONTAG, 2003). Novamente, em vista do contexto, a pauta

focalizou as negociações da OMC, em especial as implicações da Reunião Ministerial

de Miami, a partir da qual os governos abandonaram as negociações da ALCA, o que

abriu uma nova fase de discussões sobre as relações comerciais no MERCOSUL.

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Figura 2 – Eventos que marcaram o processo inicial de construção da REAF entre 2003 e 2004.

À medida que a agenda da ALCA foi superada e as atenções voltaram-se para as

relações sul-sul, com prioridade para o processo de integração regional, o MDA também

passou a fomentar a criação de um fórum ampliado regional entre governos e sociedade

civil, o qual também responderia à necessidade de construir e legitimar políticas

públicas para o fortalecimento da agricultura familiar no próprio país, caminhando ao

encontro das reivindicações da COPROFAM. A sugestão para isso ocorrer via uma

Reunião Especializada surgiu entremeio às discussões dentro e fora das salas de

reuniões dos seminários acima relatados e dos gabinetes ministeriais do governo

brasileiro, que havia sido incumbido de apresentar uma proposta formal ao CMC.

Se a idéia especifica de criar uma Reunião Especializada – espaço formalmente

condizente com a estrutura do MERCOSUL –, deve-se muito às tratativas entre o

Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e o Ministério de Relações Exteriores

(MRE), a rigor, ela é tributária deste caldo de cultura proporcionado pelos inúmeros

debates entre governos e movimentos sociais que se desenrolaram em um contexto

muito particular de mudanças na agenda de negociações internacionais. É isso que

destacam Laudemir Muller e Guilherme Brady, dois ex-gestores do MDA que estiveram

à frente da Assessoria Internacional do Ministério e também foram, um sucedendo o

outro, os primeiros Coordenadores Nacionais Alternos do Brasil na REAF:

A REAF nasceu de uma conjuntura política que se criou no Brasil e

muito especialmente no MERCOSUL. Nasceu de uma visão contra

uma integração pautada pelo livre comércio, ou seja, contra a ALCA

do jeito que ela estava colocada, e a partir de uma visão de integração

na região a partir dos povos, a partir das pessoas. [...] A gente

começou a se perguntar: se nós não queremos a integração do ponto

de vista comercial do jeito que a ALCA estava sendo proposta, qual é

a integração que nós queremos? Então saímos da ideia de ser contra

alguma coisa, para ser a favor de outra coisa. A REAF nasceu neste

ambiente. [...] Se a gente quer uma integração a partir das pessoas, por

onde a gente começa? A gente começa a partir das políticas públicas,

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do fortalecimento do Estado, e da ideia de cooperação e integração e

diálogo sobre políticas públicas e também sobre uma relação

comercial diferenciada. Uma relação comercial a partir da

complementaridade e da integração e não só baseada no interesse

empresarial. (Laudemir Muller).35

Você tinha de fato um tecido social que estava procurando capitalizar,

discutir e criar espaços dentro do MERCOSUL para discutir uma

agenda diferente de agricultura familiar, e a COPROFAM teve um

papel muito importante nisso desde o final dos anos 90. [...] Ela já

estava demandando esse tipo de espaço, mas não era exatamente a

REAF. A construção institucional da REAF foi muito estruturada a

partir do governo brasileiro. Pensando também no Programa FIDA

Mercosul, que já existia. Havia uma semente que já estava plantada.

[...] Se eu for pensar o desenho institucional, a colocação disso dentro

do MERCOSUL e a briga diplomática que teve que ser feita, isso foi,

sobretudo, a partir do governo brasileiro, mas isto não funcionaria sem

a demanda e à pressão social que já existia, sem articulação que a

COPROFAM conseguiu constituir dentro dos demais países,

pressionando os demais governos para aceitar isso também. E também

não seria possível nada disso se não tivesse os mecanismos

financeiros, técnicos e de sustentação do Programa FIDA Mercosul.

(Guilherme Brady).36

Mas a criação da REAF não foi acolhida sem questionamentos. O principal deles esteve

associado à dificuldade de inúmeros atores e organizações reconhecerem a agricultura

familiar como uma categoria específica, que merecia um espaço diferenciado daquele já

existente no MERCOSUL para tratar dos assuntos relativos à agricultura. Como recorda

Laudemir Muller (op. cit.), “o embaixador abriu espaço lá no meio da reunião [do

CMC, em fevereiro de 2004], me chamou à mesa e lá eu apresentei a proposta. Aí todo

mundo me olhou... Alguns países disseram que não tinham agricultura familiar. Nós

insistimos e começamos a negociar. A sociedade civil também ajudou e fomos fazendo

a negociação até que a gente aprovou.” 37

Conforme salientem Ramos et al. (2014), naquele momento alguns gestores públicos

também argumentaram, questionando a justificativa para criação da REAF, que seus

países abrigavam uma única agricultura, com características, problemas e desafios

similares. Esse tipo de argumento associava-se ao modo como o enfoque setorializado

estava enraizado na concepção de mundo rural que prevalecia dentre esses atores. Em

muitos contextos sociais, os pequenos e médios produtores estavam amplamente

35 Laudemir Muller. Ex-Ministro do Desenvolvimento Agrário do Brasil. Ex-Coordenador Nacional

Alterno do Brasil na REAF. Estrato de entrevista concedida em março de 2015.

36 Guilherme Brady. Ex-Coordenador Nacional Alterno do Brasil na REAF. Estrato de entrevista

concedida em abril de 2015.

37 De acordo com Carvalho (2014), ao longo do processo de diálogos e trocas políticas para criação da

REAF, um tema que também entrou na pauta foi a proposição argentina de criação de uma Reunião

Especializada de Defensores Públicos Oficiais do Mercosul (REDPO), a qual também foi aprovada pelo

CMC em 2004.

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inseridos nas cadeias produtivas, assim como os grandes produtores rurais. Portanto,

acreditava-se que seus problemas remetiam a ajustes nas estruturas de governança das

cadeias de valor, atacando os entraves comerciais, logísticos, institucionais e

tecnológicos que limitavam a produtividade e a apropriação do valor agregado. Neste

caso, não haveria necessidade de criar um fórum específico para a agricultura familiar,

mas tornar mais efetivas as discussões já em curso no SGT 8.

No entanto, se alguns governos ainda eram reticentes com relação à incorporação da

categoria em seus países, a discussão dentre as organizações sociais já estava mais

avançada, mesmo que cercada de controvérsias. Parcela importante do movimento

sindical já havia adotado a agricultura familiar em seus discursos, inclusive definindo-a

em oposição à agricultura de base empresarial. Com efeito, este já era o tom esboçado

na própria Carta de Montevidéu: “En el ámbito del MERCOSUR hay dos agriculturas

diferenciadas, la de base empresarial y la agricultura de base familiar. Los

emprendimientos familiares rurales necesitan un tratamiento especial.”.

Para que a agricultura familiar se consolidasse como uma noção guarda-chuva, capaz de

unificar os discursos e interesses políticos no contexto regional, esses movimentos

também precisaram recorrentemente afirmar a heterogeneidade deste segmento,

conferindo visibilidade e voz para uma miríade de populações que lutam pelo

reconhecimento de identidades mais específicas. É por isso que, junto com a agricultura

familiar, gradativamente passou-se a incorporar as noções “campesina” e “indígena”,

abarcando um leque mais amplo de realidades socioculturais dos povos rurais latino-

americanos. Isto mostrava que as organizações estavam aprendendo a manejar a

heterogeneidade do mundo rural, criando condições para que o fortalecimento da

agricultura familiar resultasse, ao mesmo tempo, no reconhecimento de outras

identidades socioculturais. Posteriormente, quando a REAF foi constituída, esta

abertura à diversidade tornou-se um ingrediente relevante dos diálogos políticos.

Isso não significa que todos os atores sociais da sociedade civil se apropriaram e

participaram nas mesmas condições. Houve, e ainda há, diferentes graus e formas de

engajamento político. Enquanto alguns movimentos sindicais e gremiais adotaram uma

postura mais proativa na criação e na formatação da REAF, outros preferiram manter

uma posição mais externa, às vezes questionando os rumos das discussões e os acordos

estabelecidos. Esse é o caso, por exemplo, de muitas organizações vinculadas à Via

Campesina, as quais preferiram ratificar a centralidade de uma identidade “campesina”

como alicerce de suas lutas políticas, questionando a coalizão mais híbrida e

contraditória que se formava em torno da noção de agricultura familiar. Esta é uma das

razões que explica porque os movimentos associados à Coordinadora Latinoamericana

de Organizaciones del Campo (CLOC) possuem uma presença menos destacada no

processo de construção da REAF. A outra razão, ainda mais relevante nos primeiros

anos, está associada com a crítica que esses movimentos sustentavam em relação ao

MERCOSUL e sua pauta comercial. Como veremos à frente, é somente no período mais

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recente que a maior parte dos movimentos da Via Campesina se incorpora aos debates

regionais.38

Para além da identificação da categoria, somam-se neste momento de gênese da REAF

outras duas preocupações. Em primeiro lugar, algumas entidades possuíam o receio de

que a priorização da agricultura familiar poderia acirrar conflitos políticos com efeitos

potencialmente perigosos para governos que vivenciavam uma frágil estabilidade

institucional – ou melhor, cuja governabilidade dependia em grande medida de

concessões feitas ao agronegócio. No entanto, essa não se mostrou uma preocupação

deveras relevante na medida em que a criação da REAF não representava exatamente a

priorização da agricultura familiar no âmbito do MERCOSUL e dos próprios países. As

principais discussões de comércio agroindustrial (união aduaneira, taxas alfandegárias,

barreiras sanitárias, etc.) continuaram sendo pautadas em outros fóruns com os quais as

entidades do agronegócio, hoje representadas pela Federação das Associações Rurais do

Mercosul (FARM)39, mantém considerável capacidade de interlocução.

Já a segunda preocupação estava associada com as possíveis implicações que o

reconhecimento da agricultura familiar poderia suscitar à organização do comércio

regional na medida em que há uma heterogeneidade muito expressiva entre as

realidades dos pequenos produtores sul-americanos – o que reflete distintas capacidades

para produzir, inserir-se nos mercados, adotar tecnologias e, portanto, competir nos

mercados regionais. Aqui o receio era de que, sob o discurso da promoção da

agricultura familiar, poderia estar encoberto algum tipo de estratégia para favorecer

determinado país e grupo de produtores, o que também não se confirmou com o passar

dos anos.

Uma das razões para este tipo de preocupação não obstar o avanço dos diálogos é o

cenário favorável que se configurou para os mercados agropecuários e, de modo mais

amplo, para as economias latino-americanas na última década, sobretudo em virtude de

um ciclo relativamente longo de elevação global do preço das commodities. Assim, para

além da mudança de orientação ideológica dos governos, da liderança política que

alguns atores desempenharam no MERCOSUL, e da capacidade articuladora e

executiva do Programa FIDA Mercosul, pode-se dizer que a afirmação da REAF

38 A interpretação que esses movimentos produziram sobre a importância de determinados espaços de

diálogo entre governos e sociedade civil para a formulação de políticas públicas também repercutiu

internamente nos países, haja vista o modo tímido como inicialmente se inseriram em fóruns como o

CONDRAF (Brasil) e o FONAF (Argentina), espaços que, de outro modo, foram privilegiados por

organizações associadas à COPROFAM como a CONTAG (Brasil) e a FAA (Argentina).

39 Criada em 1997, a FARM agrega as principais entidades da agricultura patronal/empresarial do

MERCOSUL: Confederaciones Rurales Argentinas (CRA), Sociedad Rural Argentina (SRA),

Confederación Nacional de Agricultura de Bolivia (CONFEAGRO), Confederação Nacional da

Agricultura do Brasil (CNA), Sociedade Rural Brasileira (SRB), Sociedad Nacional de Agricultura de

Chile (SNA), Asociación Rural de Paraguay (ARP), Asociación Rural de Uruguay (ARU) e Federación

Rural de Uruguay (FR). Em 2007 ela obteve personalidade jurídica e também passou a ser sediada no

Edifício Mercosul.

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confluiu com um contexto setorial que favoreceu o crescimento das economias

regionais como um todo, mas em particular do setor agropecuário. Quem chama atenção

para este fato é Álvaro Ramos:

Desde 2003 y hasta 2013, con vaivenes y con volatilidad en los

precios hubo una década inédita de altos precios de las commodities

agrícolas y en especial de los alimentos. Este fenómeno que marcó el

cambio en la tendencia de los términos de intercambio en los países

exportadores netos de productos agropecuarios, tuvo implicancias

directas e indirectas que no se podrían soslayar en la consolidación de

la REAF y en especial de las políticas diferenciadas para la AF. Sobre

esta base los países exportadores netos (Argentina, Brasil, Chile,

Paraguay y Uruguay) crecieron en forma sostenida y en momentos

con guarismos importantes. Este aumento del PBI se apoyó y reflejó

en los balance comerciales, económicos / financieros y fiscales. Hubo

mayores disponibilidades presupuestales para políticas diferenciadas.

Así mismo el crecimiento del PBI y las políticas sociales, estimularon

el consumo interno de la población, mucha gente salió de la pobreza y

por tanto hubo y hay una demanda expandida de alimentos y

productos de la agricultura en los mercado domésticos. Esto junto con

lo anterior generó un contexto más que favorable para las políticas

diferenciadas para la AF y a su vez para la participación de los AF en

los mercados. (Álvaro Ramos, op. cit.).

Isto explica parcialmente porque as oposições ao processo de reconhecimento da

agricultura foram menos importantes do que elas poderiam ter sido. De modo geral, as

representações do agronegócio não investiram fortemente no lobby junto aos governos

para bloquear a iniciativa. O próprio SGT 8 não esboçou muita resistência, até mesmo

porque manteria sua centralidade na discussão dos temas comerciais mais intricados.

Como destacou Alberto Riella por ocasião do Seminário comemorativo aos dez anos da

REAF, “es un poco un paradoxo, porque el fortalecimiento de ese espacio de la

agricultura familiar en el MERCOSUR se dá en los diez años de mayor desarrollo del

capitalismo.” Isso fez com que o importante saldo obtido na criação de políticas para a

agricultura familiar fosse acompanhado por um não menos vigoroso crescimento do

agronegócio que, sempre que oportuno, também utilizou mecanismos para integrar

aqueles estabelecimentos familiares mais capitalizados, especializados e tecnificados.

Em vista das contradições heurísticas e políticas que cercam o reconhecimento da

agricultura familiar nos primeiros anos da REAF, pode-se afirmar que o êxito deste

fórum não teria sido possível sem uma mudança paradigmática no que concerne à

compreensão da agricultura familiar como segmento estratégico para o desenvolvimento

rural, o que também justificou a emergência de uma nova geração de políticas públicas.

Diferentemente do lugar que a pequena produção ocupava na agenda dos Estados

desenvolvimentistas até os anos 1980, a agricultura familiar contemporânea não pode

ser compreendida como sinônimo de atraso tecnológico, aversão ao mercado ou pobreza

rural. Pelo contrário, logo se compreendeu que o investimento neste segmento era uma

das alternativas mais exitosas para combater inúmeros problemas com os quais se

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deparam não apenas os países latino-americanos, mas também as economias centrais:

segurança e soberania alimentar, preservação dos recursos naturais, valorização dos

bens imateriais dos territórios, dinamização das economias locais, manutenção do tecido

social comunitário.

Este cambio de paradigma se apoya en dos premisas. Primera

premissa: La agricultura familiar no es sinónimo de pobreza rural.

Dentro de una categoría amplia y heterogénea – a lo largo y ancho del

mundo – como la agricultura familiar, hay familias de agricultores

pobres, pero las hay con una enorme capacidad de trabajo, de

transformación, de inversión y de manejo y gestión de sus sistemas

productivos, que se vinculan frecuentemente con los mercados.

Segunda premissa: La agricultura familiar es parte de la solución a los

problemas de pobreza en el medio rural. Esto es así tan pronto como

se le reconozca y se le atienda con políticas públicas diferenciadas,

que orienten las inversiones y los servicios públicos, no a compensar a

los excluidos del mercado, sino a la construcción de capacidades, al

estímulo de las alianzas productivas privadas, al estímulo al

asociativismo y a la generación de tecnologías apropiadas que

incorporen valor a los productos y faciliten su comercio (FIDA,

2013b, p. 10).

Esta mudança paradigmática contribuiu para legitimar a construção de políticas

diferenciadas de desenvolvimento rural. De uma situação em que a pequena produção

rural era tratada com programas pontuais e efêmeros, muitos com caráter

predominantemente assistencial, e com orçamentos quase sempre dependentes da

cooperação internacional, tem inicio uma nova geração de ações públicas, agora mais

propriamente focada no potencial econômico da agricultura familiar e com dotação

orçamentária cada vez mais à cargo dos próprios Estados nacionais.

Outra alteração tem a ver com o tipo de relação que se estabelece entre governo e

sociedade civil a partir desta nova compreensão sobre o lugar da agricultura familiar. A

criação da REAF não resultou apenas das lutas por reconhecimento empreendidas pelos

movimentos sociais, mas, e cada vez mais, da ação proativa que os mesmos passaram a

desempenhar nos diálogos políticos. Isso exprime uma importante mudança de cultura

política. De uma pauta quase exclusivamente reivindicatória, os movimentos da

agricultura familiar passaram a articular proposições e participar da implementação das

ações públicas. Hoje existem inúmeros exemplos em que a efetividade das políticas de

desenvolvimento rural depende fundamentalmente da atuação das organizações sociais

em diferentes fases: construção, implementação, monitoramento e avaliação.

Para José Ignacio Olascuaga, diretor geral de Desenvolvimento Rural do Ministerio de

Ganadería, Agricultura y Pesca (MGAP) do Uruguai, esta mudança também se deve à

abertura possibilitada pelos novos governos constituídos na região. A virada que

ocorreu nos anos 2000 em direção à agenda do Mercosul Social e Participativo

favoreceu a emergência de um novo ambiente político, transgredindo a pauta

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exclusivamente comercial. Criou-se, assim, um novo fórum de participação social

dentro de uma organização que já existia e que estava em crise.

Es importante tomar en cuenta que para que se establezca un dialogo

efectivo entre los gobiernos y las organizaciones sociales y que este

diálogo posa ser constructivo, es importante generar un vinculo hacia

a una forma de relacionarse, o sea, se necesita que se genera un nuevo

vinculo entre gobierno y organizaciones sociales. Las organizaciones

sociales venían de tener una acción muy confrontativa, muy

reivindicativa con los gobiernos, que eran gobiernos de otro signo

ideológico. Entonces, con el cambio del signo ideológico de los

gobiernos, se abre la posibilidad de que se establezca un nuevo

vinculo, un vinculo que permita que las políticas se construyan juntos,

que las políticas para la agricultura familiar se pueden impulsar no

sólo desde el gobierno si no que también desde las organizaciones

sociales, y cada uno manteniendo su identidad y manteniendo su

perspectiva, sin olvidarse de que quien está en el gobierno tiene ciertas

limitaciones y posibilidades, y quien está en las organizaciones

sociales tiene otras limitaciones, pero también tiene otras

posibilidades. Haciendo convergir las acciones de gobiernos y

organizaciones sociales en una forma articulada se pueden lograr

resultados que son deseables. (José Ignacio Olascuaga).40

Foi neste complexo e contraditório contexto que se constituiu a REAF. Mas esse não é o

tipo de fórum que se coloca em funcionamento por decreto. Ainda seria necessário um

intenso processo de diálogos e trocas políticas. A confiança e os entendimentos

imprescindíveis para colocá-la em movimento começaram a ser produzidos na I REAF,

realizada em Foz do Iguaçu em outubro de 2004, a qual tratou justamente dos métodos

de participação e do funcionamento operacional do fórum.41 Por sua vez, a II REAF,

realizada um mês após a primeira, pautou a aprovação do Regimento Interno e o acordo

de trabalho que foi estabelecido com o Programa FIDA Mercosul. Também antecedeu

esta reunião o Seminário Internacional sobre Agricultura Familiar no Mercosul, o qual

tinha por objetivo ampliar a visibilidade política da Agricultura Familiar no processo de

integração e iniciar o processo de troca de conhecimentos sobre a realidade deste

segmento social no MERCOSUL.

40 José Ignacio Olascuaga. Diretor geral de Desenvolvimento Rural do MGAP, Uruguai. Coordenador

Nacional do Uruguai na REAF. Estrato de entrevista concedida em dezembro de 2014.

41 Mesmo assim, alguns países não contaram com ampla representação na primeira I REAF. O Uruguai,

por exemplo, não enviou representantes governamentais para este encontro. O país vivenciava um

momento de importantes mudanças políticas no âmbito nacional com a saída do Partido Colorado e o

ingresso da Frente Ampla na Presidência da República. Foi somente após o inicio do primeiro governo de

Tabaré Vasquez (2005-2010) que a participação uruguaia ampliou-se nesta discussão.

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7. Uma nova institucionalidade para o fortalecimento da Agricultura Familiar

Dentre as inúmeras justificativas mobilizadas para a criação de uma Reunião

Especializada sobre Agricultura Familiar no âmbito regional, “figuraba la armonización

y el diseño de políticas diferenciadas para reducir las asimetrías que impiden que la

agricultura familiar aproveche los beneficios de la integración regional” (FIDA, 2013b,

p. 7). Nos últimos dez anos, a repercussão que as novas políticas para a agricultura

familiar obtiveram em inúmeros países e perante várias organizações internacionais

incentivou os movimentos sociais a seguir ampliando suas demandas. Hoje, as

reivindicações já não são apenas por medidas reativas face aos efeitos indesejados do

processo de abertura comercial, mas por políticas ativas de desenvolvimento rural.

À medida que a agricultura familiar se afirmou como segmento relevante perante a

sociedade, as pautas avançaram para ações que exigem dos governos e movimentos

sociais o manejo de instrumentos institucionais cada vez mais complexos. Como

veremos neste capítulo, com o tempo a própria pauta da REAF vivenciou esse tipo de

mudança. As discussões organizacionais e conjunturais que ocuparam grande parte da

agenda nos primeiros anos, aos poucos cederam lugar a um intrincado diálogo sobre os

arranjos institucionais necessários para o desenho das políticas públicas. O Quadro 3,

abaixo, sintetiza as principais pautas e decisões que marcaram os primeiros dez anos de

diálogos para a construção de políticas para a agricultura familiar no MERCOSUL.

Desde a sua criação, a REAF acumula cinco “ciclos” e 24 reuniões ordinárias. Cada

ciclo corresponde ao período necessário para que se cumpram as presidências de todos

os países membros, considerando a substituição a cada seis meses. As primeiras

reuniões trataram de identificar os temas comuns de interesse dos distintos atores do

debate, incluindo os movimentos sociais. A partir disso foi possível extrair os eixos para

os futuros grupos temáticos e também avançar em algumas ações mais específicas,

sobretudo estudos de identificação e sistematização das políticas em cada país membro,

pesquisas de mensuração do PIB da Agricultura Familiar na região, projetos de análise

de cadeias produtivas relevantes, além de seminários e reuniões sobre políticas de

financiamento, seguro agrícola, reforma agrária e políticas de igualdade de gênero. O

presidente da União Agrícola Nacional de Paraguai, Calixto Zárate, recorda este

momento inicial de organização e refinamento da agenda:

Me recuerdo que en la segunda REAF, en Foz do Iguazú, ahí

empezaron con una lluvia de ideas. Hemos hecho algo como cincuenta

apuntamientos sobre la realidad de la agricultura familiar. Y dentro de

todo eso, tuvimos que priorizar algunas cuestiones. Así nasció el GT

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de comercio, así nasció el GT de tierras; y creo que el GT de género.

(Calixto Zárate).42

Mas o que efetivamente marcou o primeiro ciclo da REAF foi a construção de

entendimentos entre atores e organizações que não possuíam relações recorrentes. Com

exceção da articulação entre os movimentos sociais vinculados à COPROFAM, os

atores que iniciaram os diálogos para a institucionalização da REAF possuíam, no

máximo, uma convivência esporádica possibilitada pela presença simultânea em alguns

fóruns regionais ou pelas trocas de experiências, igualmente esporádicas, entre os

governos na área de gestão das políticas públicas. Para além disto, prevaleciam as

desconfianças sobre quase tudo: princípios, objetivos, modo de funcionamento, formas

de participação. É elucidativo deste fato o relato do professor Antonio Vadel, um dos

primeiros representantes do governo uruguaio a somar-se à REAF, após o ingresso da

Frente Ampla ao poder e de José Mujica ao Ministerio de Ganadería, Agricultura y

Pesca (MGAP):

Hace diez años yo ingresé como delegado del primero gobierno de

Frente Amplia cuando sube la izquierda al gobierno en Uruguay. El

ministro en este momento era Pepe Mujica que me manda a algo que

yo no sabía lo que era. Era la REAF. Había muchas cosas que no

sabíamos, ni lo que era, ni lo que trataba. Entonces, rápidamente,

empecé a tratar de estudiar. […] Inicialmente no teníamos la

posibilidad de tomar posición porque nosotros éramos un poco críticos

del MERCOSUR. Pero, a su vez, teníamos una visión estratégica de

aliados políticos en América del Sur. Entonces, frente a esto decíamos

que el MERCOSUR se puede convertir en la herramienta que nosotros

queramos que sea, y no la que quiso que fuera el neoliberalismo.

Hasta ahí entendíamos. Cuando yo voy a la tercera REAF, en

Asunción de Paraguay, todas las delegaciones tenían doce o quince

personas, y yo fue solo. Me mandó Mujica: anda y vea lo que es eso.

Ahí veo el gran descubrimiento para mí: era la novedad que las

delegaciones de cada país tenían dos columnas, una de los

representantes oficiales, y otra de los representantes de las

delegaciones campesinas. Para mí, en este momento fue una inquietud

muy buena. Yo vi eso como una cosa muy favorable y cuando yo

vuelvo, regreso, transmití acá que había un hecho que para mí era algo

como revolucionario: tener en la mesa de debate, de forma

democrática, brindando la liberad de palabra a las organizaciones

campesinas… Era un hecho relevante. Eso tenemos que apoyar!

(Antonio Vadel).43

Sem um investimento coletivo na construção de confiança, provavelmente a experiência

não teria perdurado nos dez anos que se seguiram e/ou pouco se teria avançado na

construção de políticas para a agricultura familiar em âmbito regional. Este processo

42 Calixto Zárate. Presidente da União Agrícola Nacional (UAN) de Paraguai. Estrato de entrevista

concedida em dezembro de 2014.

43 Antonio Vadel. Professor da Univesidad de la Republica, Uruguai. Estrato de entrevista concedida em

abril de 2015.

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inicial de interconhecimento e produção de entendimentos já poderia ser compreendido,

como afirma Caio França, ex-Coordenador Nacional Alterno do Brasil na REAF, como

um dos principais resultados deste fórum:

Se você constitui um ambiente com um nível básico de confiança e de

credibilidade dos interlocutores, você consegue discutir política,

iniciativas políticas. Sem ter uma cobrança se o cara está fazendo mais

ou está fazendo menos. Em minha opinião, o principal resultado da

REAF é a construção desse espaço rico de diálogo com um grau de

confiança que permite tratar de todos os temas. (Caio França).44

Foram inúmeros os momentos que exigiram esforços de concertação social entre

ministérios, chancelarias, organizações e movimentos sociais. Esforços que se

dirigiram, por exemplo, para garantir a presença dos representantes dos movimentos

sociais nos espaços de decisão, sentados à mesma mesa dos Ministros de Estado; para

consolidar a participação ativa das mulheres e jovens, sem qualquer tipo de

intermediação ou preconceito; para assegurar que as particularidades de cada país

fossem respeitadas, atribuindo às reuniões a característica mais propriamente de um

espaço de diálogo do que de negociação.

Nos dois anos iniciais nós tivemos duas grandes batalhas. Primeiro,

para aprovar a REAF no MERCOSUL, o que não foi fácil. Foram

várias negociações, inclusive trocando entre os países. E o segundo

tema que foi bastante complicado é a participação da sociedade civil.

Eu me lembro que tiveram reuniões que nós tivemos que ameaçar se

retirar se não tivesse a participação da Sociedade Civil. Foram umas

duas rodadas [de reuniões] até que a gente conseguisse estabilizar

isso. (Laudemir Muller. op. cit.).

Parte dessas discussões ocorreu nos espaços formais das reuniões nacionais e regionais,

as quais institucionalizaram determinadas regras e normas (o Regimento Interno, por

exemplo), mas tão ou mais relevantes foram os encontros informais realizados naqueles

momentos que se situam nas entrelinhas da agenda oficial. A confiança foi o produto

final das inúmeras trocas possibilitadas pela convivência cada vez mais recorrente entre

atores que viram convergir muitos dos seus interesses e concepções políticas. Com

efeito, enquanto as primeiras reuniões demandavam tempo e esforços hercúleos para a

redação da mais simples resolução, hoje esses procedimentos são significativamente

abreviados pela cumplicidade estabelecida entre os atores. Esse não é um resultado

óbvio das negociações internacionais envolvendo governos nacionais com interesses

distintos, além de uma miríade de movimentos sociais.

No inicio, como ninguém conhecia ninguém, todo mundo desconfiava

de todo mundo. O medo que se tinha era isso: que por detrás daquilo

estivesse alguma coisa para facilitar o comércio para a agricultura de

alguém. Então, as atas das reuniões acabavam de ser feitas as 4 horas

44 Caio França. Ex-chefe da Assessoria Internacional do MDA e ex-Coordenador Nacional Alterno do

Brasil na REAF. Estrato de entrevista concedida em fevereiro de 2015.

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da manhã do dia seguinte. O que se quer dizer com isso? O que

significa essa vírgula? Isso em espanhol fica como? Então, eu acho

que uma boa e importante conquista que a gente teve, foi essa

confiança política. (Carlos Mielitz, op. cit.).

Era muito formal isso. O que existia antes era aquela coisa de fazer

uma excursão para passar alguns dias em Brasília... aí os caras vão lá,

olham o PRONAF... tinha isso. Mas, a partir da REAF, a gente acaba

criando um vínculo. Eu me lembro que uma vez quando o Agazzi era

ministro aqui no Uruguai, teve uma crise do leite. Uma coisa é a

conversa formal de ministros, outra coisa era eu e o Agassi discutindo

por telefone. Entende? Porque a gente tinha confiança um no outro.

Não era mais aquela conversa formal. Com a Argentina era a mesma

coisa. Era uma discussão franca. Isso só foi possível a partir da REAF.

Você levanta o telefone e vai falar com o cara com quem você tem o

mínimo de cumplicidade com ele. (Guilherme Cassel, op. cit.).

Uma vez estabelecidas as bases do diálogo político, o segundo ciclo marcou avanços

mais expressivos na formulação de projetos que, em seguida, serviram de esteio para a

redação das primeiras propostas de recomendação enviadas ao GMC (estas sobretudo a

partir do terceiro ciclo). Entre o final de 2006 e meados de 2008 foi produzida uma série

de documentos técnicos que orientaram as discussões regionais sobre temas como:

reconhecimento e identificação da agricultura familiar; integração e facilitação do

comércio para os produtos deste segmento; seguro rural e gestão de risco; educação não

formal de jovens rurais e políticas de igualdade de gênero (Quadro 3).

Quadro 3 - Principais pautas e deliberações da REAF entre 2004 e 2014.

Primeiro Ciclo I REAF (Foz do Iguaçu – Brasil) - set. 2004 Discussão dos métodos de participação e funcionamento da REAF

II REAF (Brasília – Brasil) - nov. 2004 Aprovação do Regimento Interno Estabelecimento de acordo de trabalho com o Programa FIDA Mercosul

III REAF (Assunção – Paraguai) - mai. 2005 Discussão sobre formação de Grupos de Trabalho Aprovação de estudo para mensurar PIB da AF no Mercosul Aprovação de estudo sobre marco jurídico da AF vigente nos países membros Documento “Proposta para discussão sobre Políticas de Gênero da REAF”

IV REAF (Montevidéu – Uruguai) - nov. 2005 Documento “Bases para uma Política de Seguro para a AF” (Remetido ao GMC) Documento “Bases para uma Política de Financiamento para a AF” (Remetido ao GMC) Documento “Bases para uma Política de Gênero na AF” (Remetido ao GMC)

V REAF (Buenos Aires – Argentina) - jun. 2006 Criação de “Rede de Institutos de Políticas de Terras, Reforma Agrária e Acesso à Terra” Publicação “Género, Agricultura Familiar y Reforma Agraria en el MERCOSUR” Acordo para GT de Gênero ser realizado previamente aos demais

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Segundo Ciclo VI REAF (Porto Alegre – Brasil) - dez. 2006 Projeto “Bases para o Reconhecimento e Identificação da AF no Mercosul” (Remetido ao GMC) Projeto “Bases para a Integração e Facilitação de Comércio dos Produtos da AF” (Remetido ao GMC) Projeto “Seguro de Cobertura de Risco Climático para a AF” (Fundo Seguro de Colheita) Programa Regional de Fortalecimento Institucional de Políticas de Igualdade de Gênero na AF (Remetido ao GMC) Criação do Grupo Temático de Juventude Rural

VII REAF (Assunção – Paraguai) - mai. 2007 Documento “Diretrizes para o Reconhecimento e Identificação da AF no Mercosul” (Remetido ao GMC) Programa Piloto de Educação Não-Formal de Jovens Rurais Documento “Orientações metodológicas para o funcionamento da REAF” (Transversalidade de gênero) Readequações do Programa Regional de Fortalecimento Institucional de Políticas de Igualdade de Gênero na AF

VIII REAF (Montevidéu – Uruguai) - out. 2007 Documento “Diretrizes para a igualdade de gênero nas políticas públicas para la AF” (Remetido para RMAAM) Projeto para Estudo sobre Estrangeirização, Concentração e Uso da Terra

IX REAF (Buenos Aires – Argentina) - jul. 2008 Documento “Diretrizes para a igualdade de gênero nas políticas públicas para la AF” (Remetido ao GMC) Proposta para criação de Grupo de Alto Nível para Estratégias de Segurança e Soberania Alimentar Discussão do I Curso de Formação de Jovens Rurais

Terceiro Ciclo X REAF (Rio de Janeiro – Brasil) - nov. 2008 Criação do Fundo da Agricultura Familiar (FAF) Projeto de Recomendação “Diretrizes para elaboração de políticas de financiamento para a AF” Documento "Políticas públicas diferenciadas dirigidas à AF nos Estados parte" (Remetido ao GMC) Documento “Análise comparativa dos registros de AF” (Remetido ao GMC)

XI REAF (Assunção – Paraguai) - jun. 2009 Projeto de Decisão sobre Regulamentação do FAF (Remetido ao GMC) Projeto “Diretrizes para uma Política de Gestão de Riscos e Seguro Rural para a AF” (Remetido ao GMC) Documento “Proposta de estudo sobre o acesso da mulher à terra” Documento Final do “Programa Regional de Fortalecimento Institucional de Políticas de Igualdade de Gênero na AF do Mercosul” (Remetido ao GMC)

XII REAF (Montevidéu – Uruguai) - dez. 2009 Projeto de Recomendação sobre “Políticas Fundiárias de Acesso a Terra” (Remetido ao GMC) Projeto de Recomendação "Diretrizes para a elaboração de políticas diferenciadas de financiamento para a AF (Remetido ao GMC)

XIII REAF (Mar del Plata – Argentina) - jun. 2010 Projeto de Memorando de Acordo para a Administração Financeira do FAF (Remetido ao GMC) Parceria com AECID para implementação do Programa Regional de Fortalecimento Institucional de Políticas de Igualdade de Gênero na AF

Quarto Ciclo XIV REAF (Brasília – Brasil) - nov. 2010 Discussão de memorando de entendimento com a FAO para gestão do FAF

XV REAF (Assunção – Paraguai) - jun. 2011 Documento “Proposta de Programa Regional de Intercâmbio sobre Compras Públicas” Documento “Proposta de Atividades e Orçamento de Intercambio de Institutos da Terra” Apresentação dos resultados de estudos nacionais sobre Estrangeirização, Concentração e Uso da Terra

XVI REAF (Minas – Uruguai) - dez. 2011 Projeto de Recomendação sobre “Educação Rural”

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Documento “Proposta de II Curso de Formação de Jovens Rurais” Documento “Relatório sobre os Estudos de Cadeias Produtivas”

XVII REAF (Buenos Aires – Argentina) - jun. 2012 Grupo técnico sobre Registros Nacionais da AF assume caráter permanente

Quinto Ciclo XVIII REAF (Caxias do Sul – Brasil) - nov. 2012 Projeto de Recomendação “Reconhecimento mútuo dos Registros Nacionais voluntários da AF nos países do Mercosul (Remetido ao GMC) Apresentação do acordo aprovado pelo GMC entre MERCOSUL e FAO para gestão do FAF

XIX REAF (Atlântida – Uruguai) - mai. 2013 Documento "Protocolos Sanitários para a AF no Mercosul" Acordo para discussão sobre "Selo da AF do Mercosul" Acordo para "Programa Regional de Cooperação e Intercâmbio de Experiências e Políticas Públicas para o Acesso e Desenvolvimento de Tecnologias para a AF"

XX REAF (Caracas – Venezuela) - nov. 2013 Projeto de Recomendação “Ano Internacional da Agricultura Familiar” Demanda de espaço físico específico para a REAF no Edifício Mercosul Documento de avaliação do “Programa Regional de Fortalecimento das Políticas de Igualdade de Gênero na AF”

XXI REAF (Posadas – Argentina) - jul. 2014 Proposta de oficina sobre "Direito dos Agricultores aos Recursos Genéticos" Proposta de encontro Regional de Jovens da Agricultura Familiar e Campesina Discussão para criação do II Programa Regional de Fortalecimento das Políticas de Igualdade de Gênero na AF

XXII REAF (Montevidéu – Uruguai) - dez. 2014 Projeto de Decisão “Registros Nacionais Voluntários da AF no MERCOSUL” Projeto de Recomendação “Selos de Identificação da AF no Mercosul” Declaração sobre as Atividades da CELAC vinculadas à REAF

Fonte: REAF. Atas e outras publicações oficiais. Vários anos.

O terceiro ciclo da REAF pode ser definido pela consolidação dos primeiros

entendimentos políticos, o que resultou na redação das principais propostas de

recomendação para o MERCOSUL. Embora a maioria dos temas já estivesse presente

desde o princípio das discussões nos GTs, entre 2008 e 2010 nota-se que os

entendimentos foram institucionalizados em várias proposições elevadas ao GMC,

várias das quais foram acolhidas (Quadro 4, abaixo). Este ciclo também foi marcado por

discussões sobre os limites organizacionais e institucionais que poderiam colocar em

risco a perenidade da REAF. Com efeito, parte da discussão voltou-se à construção de

mecanismos de financiamento que garantissem a participação das organizações sociais

nas instâncias nacionais e regionais.

Para além das seções ordinárias acima listadas, ao longo desses dez anos também foram

realizadas quatro reuniões extraordinárias, todas sediadas no Edifício Mercosul em

Montevidéu. Enquanto as duas primeiras (outubro de 2008 e março de 2009)

concentraram atenção no acordo com o Programa FIDA Mercosul, a terceira (agosto de

2011) e a quarta (maio de 2012) tiveram como pontos centrais a institucionalização do

Fundo da Agricultura Familiar (FAF). Este tema também aparece nas pautas das

reuniões ordinárias semestrais. Entre o terceiro e o quarto ciclo da REAF, a criação do

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FAF se tornou uma questão central uma vez que a ele se associava à proposta de

reestruturação organizacional da REAF, tanto do ponto de vista financeiro, quanto das

ações de sua Secretaria Técnica, até então dependentes do aporte de recursos financeiros

e humanos do Programa FIDA Mercosul.

A criação e a regulamentação do FAF não foram tão facilmente recebidas pelo GMC.

Apesar da preexistência do Fundo para Convergência Estrutural do Mercosul (FOCEM)

(instituído pela Decisão CMC 45/2004), o mesmo destina-se a programas de

investimento que tem por objetivo reduzir as assimetrias estruturais entre os países do

bloco. De outro modo, o FAF é um fundo de custeio voltado a atividades para as quais

não estavam previstas esse tipo de suporte financeiro em âmbito regional. Seriam

encargos dos próprios governos nacionais. Assim, o processo de negociação somente

avançou a partir do momento em que se definiram as condições de contribuição e uso

dos recursos para o FAF por cada país, bem como os aspectos jurídicos concernentes à

sua administração, atualmente sob encargo da FAO.45 Essas decisões ocuparam a

agenda da REAF e fizeram parte de um esforço conjunto para viabilizar seu

funcionamento operacional. Sem o FAF dificilmente seria possível sustentar as ações da

Secretaria Técnica e a participação dos representantes da Sociedade Civil.

Estabilizada a nova arquitetura institucional e operativa da REAF, o quarto e, sobretudo,

o quinto ciclo, revelaram um passo à frente nas discussões relativas à construção de

políticas para a agricultura familiar. Destacam-se neste momento os avanços

processados para a criação dos Registros Nacionais Voluntários da Agricultura

Familiar; nos estudos sobre estrangeirização, concentração e uso da terra; nos

intercâmbios entre Institutos de Terra; nos programas de formação da juventude rural;

no programa regional de fortalecimento das políticas de igualdade de gênero e no tema

das compras públicas de alimentos. Todas estas ações serão analisadas no capítulo

subseqüente.

Ao longo de todo esse período, a REAF produziu uma série de documentos técnicos,

decisões, recomendações e resoluções, os quais foram remetidos às instâncias superiores

do MERCOSUL. O Quadro 4 apresenta o conjunto de normativas aprovadas pelo

GMC/CMC. Destacam-se, por exemplo, as diretrizes para o reconhecimento e

identificação da agricultura familiar, as diretrizes para igualdade de gênero nas políticas

públicas, a regulamentação do FAF e o reconhecimento dos Registros Nacionais

Voluntários da Agricultura Familiar. Por sua vez, dentre as ausências que se realçam em

face dos debates travados nestes dez anos de REAF (Quadro 3), os atores geralmente

destacam dois pontos: (a) a não aprovação do Projeto de Recomendação sobre “Políticas

Fundiárias de Acesso a Terra” (remetido em 2009); e (b) a ausência de

45 Antes de a FAO assumir a gestão financeira do Fundo, as discussões encaminhavam-se para uma

parceria com a UNOPS (United Nations Office for Project Services), a qual já possuía experiência na

gestão de recursos do Programa FIDA Mercosul. No entanto, diferentemente da FAO, tratava-se de uma

entidade com menor inserção regional, o que acarretaria, dentre outras coisas, um longo e burocrático

trabalho para firmar acordos entre a UNOPS e cada um dos Estados que repassam recursos ao FAF.

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encaminhamentos que tratem de aspectos relativos à inserção diferenciada da

agricultura familiar nos mercados regionais (regras alfandegárias, normas sanitárias,

tarifas etc.). Como veremos à frente, ambos os temas são particularmente sensíveis nas

discussões regionais e envolvem interesses e grupos que bloqueiam avanços mais

significativos nas políticas fundiárias e comerciais.

Quadro 4 - Decisões, Resoluções e Recomendações aprovadas pelo GMC/CMC relativas à REAF

entre 2004 e 2014.

ANO NORMA TEMA

2004 Resolução 011/2004 Criação da Reunião Especializada sobre Agricultura Familiar no Mercosul (REAF)

2007 Resolução 025/2007 Diretrizes para o reconhecimento e identificação da agricultura familiar no Mercosul

2008 Recomendação 006/2008 Diretrizes para a igualdade de gênero nas políticas públicas para a agricultura familiar

2008 Decisão 045/2008 Criação do Fundo da Agricultura Familiar (FAF)

2009 Recomendação 003/2009 Diretrizes para uma política de gestão de riscos e seguro rural para a agricultura familiar

2009 Decisão 006/2009 Regulamentação do Fundo da Agricultura Familiar (FAF)

2010 Recomendação 005/2010 Diretrizes para a elaboração de políticas diferenciadas de financiamento para a agricultura familiar

2011 Recomendação 002/2011 Educação rural

2012 Resolução 042/2012 Acordo entre FAO e Mercosul para administração do FAF

2012 Decisão 059/2012 Registros Nacionais Voluntário da Agricultura Familiar

2014 Recomendação 001/2014 Ano Internacional da Agricultura Familiar

2014 Decisão 02/2014 Selos de Identificação da Agricultura Familiar

2014 Decisão 20/2014 Reconhecimento Mútuo dos Registros Nacionais da Agricultura Familiar

Fonte: MERCOSUL. Documentos Oficiais. Vários anos.

Para além dos ciclos acima descritos, Ramos et al. (2014) propõem outra periodização

que subdivide a trajetória da REAF em três fases. A primeira, de 2004 a 2007, define-se

pela “constituição” do fórum, durante a qual se construiu o aparato normativo e

organizacional necessário ao seu funcionamento e ao final da qual houve a adoção de

uma definição formal de agricultura familiar para todo o bloco (Resolução GMC

25/2007). Já a segunda fase é denominada pelos autores de “consolidação”. Entre 2008

e 2011, a REAF foi marcada pela abertura de inúmeras pautas e revela avanços

significativos na produção de entendimentos para implementar programas e ações sobre

gênero, juventude, financiamento, gestão de riscos e educação rural. Mas os dois

principais eventos que marcaram esta fase foram o inicio da implementação dos

Registros Nacionais Voluntários de Agricultura Familiar e a regulamentação do Fundo

da Agricultura Familiar do MERCOSUL, instituído pelo GMC em 2008 e

regulamentado no ano seguinte. Finalmente, a terceira fase inicia em 2012 e se estende

até presentemente. Trata-se de uma etapa de “sustentabilidade” da REAF, caracterizada

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pelo empenho dos países para garantir seu funcionamento e financiamento. Desde 2012,

a estreita relação com o Programa FIDA Mercosul, envolvendo tanto a condução das

ações da Secretaria Técnica quanto o financiamento das atividades da REAF, deu lugar

a uma nova estrutura de gestão, o que se tornou possível a partir dos recursos do FAF.

Com pequenas variações temporais, mas mantendo os mesmos parâmetros explicativos,

essa periodização é ratificada por Laudemir Muller – outro ator social que acompanhou

este processo desde a sua origem –, que avança ainda para o período atual,

caracterizado, segundo o entrevistado, por um momento de transição para uma nova

fase de ampliação e articulação com novos fóruns regionais e globais:

O primeiro período foi da constituição, de ter um espaço específico

sobre a agricultura familiar quando a maioria dos países não

reconheciam a agricultura familiar, e de ter um ambiente no

MERCOSUL com participação social, o que também não existia. A

primeira fase foi de constituir e consolidar um espaço com essas

características. A segunda fase envolveu o desafio de manter essa

Reunião em andamento. Criar uma pauta e, em especial, ter

capacidade de financiar a participação da sociedade civil. Aqui o

FIDA teve um papel central. A gente trabalhou no Brasil e levou para

a REAF a ideia de que nós não queríamos mais o dinheiro dos órgãos

internacionais para implementar política pública, mas nós queríamos a

participação dos organismos internacionais, principalmente do FIDA,

para financiar o diálogo entre governos e sociedade civil sobre

políticas públicas, para que os próprios países as implementassem,

com os seus recursos, com as suas regras, com a sua autonomia. Essa

capacidade a gente teve para, com a importante atuação do FIDA,

guardar a autonomia. Eu acho que essa foi a segunda fase. Fazer com

que a REAF andasse, tivesse agenda e organicidade. Porque um dos

grandes desafios das reuniões especializadas e dos outros fóruns e

espaços do MERCOSUL é ter vida. Criar é fácil, mas manter a

atividade como nós fizemos, a cada meio ano com reuniões, e mais as

reuniões intermediárias, foi um desafio enorme. A terceira fase eu

acho que inicia quando a gente conseguiu, com o FAF, ter uma

capacidade de autonomia ainda maior e quando, de fato, esse diálogo

político começa a dar resultado nos países. A REAF, o tema da

agricultura familiar e a construção de políticas para a agricultura

familiar foi se perenizando. E a fase atual, que a gente está agora, é

uma fase que de certo modo ainda permanece nessa terceira fase, mas

também já é um ambiente onde a REAF se constitui quase como uma

plataforma global, porque a partir da REAF a gente articula e organiza

uma intervenção nas organizações multilaterais e, em especial, a

REAF tem conseguido ser um fórum de articulação regional para fazer

com que a região possa ter uma intervenção e um posicionamento em

outros fóruns globais de uma forma mais articulada sobre o tema da

agricultura familiar. (Laudemir Muller, op. cit.).

A consolidação da REAF abre novas perspectivas e desafios que, para alguns atores,

caracteriza o momento oportuno para uma quarta fase. Trata-se, antes de tudo, da

prospecção que alguns entrevistados fazem, por exemplo, sobre a possibilidade da

REAF ampliar sua ação na construção de políticas regionalizadas de desenvolvimento

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rural. Igualmente, há quem sugira uma ação mais incisiva na criação de instrumentos

mais efetivos de comércio intra-bloco para a agricultura familiar. Outros apontam ainda

para a necessidade de tornar a REAF a mola propulsora de uma plataforma de diálogos

políticos em escalas mais amplas – quiçá em nível global –, haja vista o crescente

interesse que a experiência tem despertado junto a outros fóruns – em particular na

CELAC –, mas também em organizações multilaterais como a FAO. Estes e outros

desafios presentes às discussões atuais serão discutidos no último capítulo. Antes,

todavia, vamos propor um olhar complementar para esta trajetória brevemente

sumarizada acima. Finalizaremos esta segunda parte do livro focalizando os principais

temas que permearam os diálogos de cada um dos Grupos Temáticos e, em seguida, a

terceira parte do estudo será exclusivamente dedicada aos principais resultados desses

diálogos.

i. Facilitação de Comércio

Estruturado em torno do eixo prioritário das discussões que levaram ao surgimento da

REAF, o GT Facilitação de Comércio concentra seus esforços nas condições de acesso

aos mercados para produtos da agricultura familiar, campesina e indígena.

Inicialmente, as preocupações deste grupo dirigiram-se à análise do impacto das

negociações comerciais internacionais para a agricultura familiar. Em pleno processo de

negociação da Rodada de Doha da OMC, o tema figurava entre as preocupações dos

governos e organizações sociais, os quais demandavam da REAF um posicionamento

distinto daquele até então encontrado no SGT 8. Com efeito, a III REAF (Assunção,

maio de 2005) ratificou a importância do tratamento diferenciado deste segmento nas

rodadas de negociação, especialmente considerando sua importância estratégica para a

segurança alimentar e o desenvolvimento rural.

Do ponto de vista prático, essa preocupação resultou na criação de um Grupo de

Trabalho que deveria acompanhar sistematicamente a agenda de negociações

internacionais, subsidiando os debates da REAF. No entanto, com o arrefecimento da

agenda liberal de abertura dos mercados, e a reorientação das estratégias de integração

regional, esta pauta começou a ganhar novos contornos. Ao invés da agenda reativa aos

acordos comerciais em curso, o foco voltou-se à construção de alternativas de

comercialização viáveis para os agricultores familiares. Com efeito, a V REAF (Buenos

Aires, junho de 2006) aprovou a criação GT de Facilitação do Comércio, o qual

adicionou novos temas à discussão sobre os impactos das negociações internacionais.

Dentre todos os GTs, este abarca os temas mais próximos àqueles que historicamente

caracterizaram as discussões centrais do GMC e do SGT 8. Ao longo dos últimos dez

anos, muitos atores presentes neste espaço sugeriram que a REAF deveria assumir

medidas mais expressivas na construção de mecanismos de comércio para os produtos

da agricultura familiar em âmbito regional, cobrando do GMC uma postura mais

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favorável ao segmento. No entanto, o tratamento diferenciado geralmente esbarra em

um quadro institucional desfavorável e nas reações oriundas de outros grupos sociais

que também competem nos mercados regionais, e que tendem a visualizar nas políticas

diferenciadas medidas protecionistas que criam assimetrias de mercado. Os bloqueios

que se impõem às propostas de alteração das regras tarifárias e sanitárias para readequá-

las às características dos sistemas familiares são expressões das dificuldades que a

REAF encontra no tema do acesso aos mercados.

A relativa autonomia que a REAF conseguiu criar no seio de uma estrutura que é

fortemente pautada pelos acordos de comércio internacional, também revela os limites

institucionais dentro dos quais se consegue operar políticas diferenciadas de

comercialização. Esta discussão veio à tona em diferentes momentos e tudo leva a crer

que ela continuará presente no futuro próximo.

Es una cuestión de integración que originalmente está planteada en

cuestiones comerciales, y en la concepción de apertura comercial; con

una visión de regionalismo, pero con el propósito de abrir el comercio

para el resto del mundo. En ese escenario, muchos sectores

productivos, especialmente de la agricultura familiar, estaban bastante

amenazados. Entonces, dentro de la REAF la visión era bastante

reactiva a la apertura comercial. Entonces fue también un desafío

buscar puntos de equilibrio entre políticas para promover el comercio,

facilitar el comercio de la agricultura familiar, promover la producción

e mejorar su situación integrada en los mercados, e, al mismo tiempo,

no crear sistemas proteccionistas y barreras. Son cuestiones de lo que

es el MERCOSUR. Nosotros somos parte del MERCOSUR.

Entonces, dentro de lo que es la lógica del MERCOSUR tampoco

podemos ir mandando propuestas diciendo: protejamos tal sector,

protejamos al otro, prohibamos la importación de los productos. Fue

un tema donde hubo que trabajar para ir logrando puntos donde se

podrían ir dando pasos sin que sean demasiados grandes. (Eduardo

Polcan, op. cit.).

Apesar dos limites impostos pelos acordos mais gerais de comércio, porquanto as

propostas de decisões e recomendações encaminhadas ao GMC não interfiram

substancialmente no conteúdo desses acordos, é possível avançar. Uma das primeiras e

mais importantes ações impulsionadas no GT Facilitação de Comércio foi a construção

de um aparato normativo que possibilitasse o reconhecimento e o registro dos

agricultores familiares no âmbito do MERCOSUL. Tratava-se, afinal, de uma condição

incontornável para discutir o acesso aos mercados por esses agricultores e projetar

políticas públicas. Aprovado na VII REAF (Assunção, maio de 2007), o projeto de

recomendação “Diretrizes para o Reconhecimento e Identificação da Agricultura

Familiar no Mercosul” foi posteriormente ratificado pelo GMC (Resolução 25/2007),

tornando-se o principal balizador para as demais ações da REAF na medida em que

estabelece critérios de definição e identificação da agricultura familiar.

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Em face da sua centralidade, a construção dos Registros Nacionais Voluntários da

Agricultura Familiar acabou sendo redirecionada para um Grupo Técnico específico, o

qual inicialmente possuía caráter temporário, mas que, desde a XVII REAF (Buenos

Aires, junho de 2012), se tornou permanente. Logo em seguida, o próximo passo nesta

temática deu-se a partir da aprovação, durante a XVIII REAF (Caxias do Sul, novembro

de 2012) do projeto de recomendação para o “Reconhecimento Mútuo dos Registros

Nacionais Voluntários nos países do Mercosul”, o qual foi igualmente remetido e

aprovado pelo CMC (Decisão 59/2012), que posteriormente também incorporou

procedimentos e rotinas de monitoramento dos registros (Decisão CMC 20/2014).

A importância deste tipo de ação fica claro quando se analisa uma das primeiras

discussões deste GT, levadas à cabo já nos primeiros anos da REAF, qual seja, a análise

e o diagnóstico de cadeias produtivas de importância para a agricultura familiar

(conforme documento Bases para a Integração e Facilitação de Comércio dos

Produtos da Agricultura Familiar). Centrados em dois produtos tomados como casos

experimentais (suínos e tomate), os diagnósticos identificaram os principais entraves e

desafios para incrementar a geração de renda e agregação de valor aos produtos. Mas

também se esperava deles uma visão mais clara sobre a participação da agricultura

familiar nesses mercados, o que se tornou particularmente difícil em virtude da

inexistência de uma definição formalmente reconhecida no bloco sobre a agricultura

familiar (instituída apenas em 2007). Assim, decidiu-se postergar este tipo de ação até o

momento em que se constituíssem condições efetivas para mensurar a agricultura

familiar.

O debate sobre as condições de participação da agricultura familiar nas cadeias

produtivas permitiu abrir a discussão sobre a importância da REAF estimular os

governos a criar mecanismos de fomento ao associativismo e ao cooperativismo entre as

organizações da agricultura familiar. O diálogo sobre o tema envolveu, dentre outras

coisas, uma tentativa de aproximação com a Reunião Especializada das Cooperativas do

Mercosul (RECM), sobretudo a partir do convite a membros deste fórum para participar

da XVIII REAF (Caxias do Sul, novembro de 2012). No entanto, o diálogo entre os dois

fóruns ainda é incipiente e esbarra em posicionamentos distintos na pauta das

negociações comerciais. De todo modo, o tema avançou no interior da REAF. A

evidência mais recente é a realização, em setembro de 2014, na cidade de Foz do

Iguaçu, do Seminário Internacional sobre Cooperativismo na Agricultura Familiar,

resultado de uma parceria com UNILA, MDA-Brasil e Programa FIDA Mercosul.

Outros temas que movimentaram a discussão deste GT ao longo dos dez anos foram: (a)

a cooperação em experiências de inovação tecnológica para a agricultura familiar

(Programa Regional de Cooperação e Intercâmbio de Experiências e Políticas

Públicas para o Acesso e Desenvolvimento de Tecnologias para a Agricultura

Familiar); (b) as políticas de financiamento (Diretrizes para a elaboração de políticas

diferenciadas de financiamento para a Agricultura Familiar); (c) a identificação dos

produtos oriundos deste segmento (Selo da Agricultura Familiar); (d) a adequação do

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quadro normativo para a facilitação do comércio nos países do bloco, em particular das

normas sanitárias (Protocolos Sanitários para a Agricultura Familiar no Mercosul), (e)

e o estímulo à criação de mercados institucionais via compras públicas da agricultura

familiar (Programa de Intercâmbio de Experiências sobre Modelos de Gestão de

Políticas de Compras Públicas da Agricultura Familiar).

Este último tema merece um comentário adicional na medida em que, no período mais

recente, é ele que tem mobilizado a maior parte dos esforços do GT. A discussão sobre

compras públicas como uma alternativa de mercado para a agricultura familiar ganhou

destaque na agenda da REAF a partir do “Seminário sobre Aquisição Pública de

Alimentos da Agricultura Familiar”, realizado em Brasília, em novembro de 2010. O

evento contou com a participação de inúmeras entidades dentre as quais a Organização

das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO), que atualmente se

empenha em estimular uma agenda vinculando agricultura familiar, mercados

institucionais e segurança alimentar. Em seguida, a XV REAF (Assunção, junho de

2011) aprovou a proposta de um “Programa Regional de Intercâmbio de Experiências

sobre Compras Públicas”, o qual, com o apoio da Agência Brasileira de Cooperação

(ABC/MRE), deu vazão a ações de cooperação técnica sobre modelos de gestão das

políticas de compras públicas da agricultura familiar. Atualmente, já está em execução o

segundo programa.

Finalmente, ainda dentre os temas prioritários, nos últimos anos voltou à agenda a

discussão sobre as relações comerciais extra-bloco. A tentativa de retomada do acordo

Mercosul - União Europeia mobilizou alguns esforços do GT em face dos riscos que as

negociações representavam para a agricultura familiar. Em junho de 2012, na XVII

REAF realizada em Buenos Aires, a delegação da Argentina apresentou aos demais

participantes um relato sobre a situação das negociações para esse acordo, a partir do

que se incumbiu o GT a realizar um monitoramento permanente do tema. Embora esta

ação não tenha se mostrado tão sistemático, até mesmo porque o acordo continua

enfrentando uma série de bloqueios, a discussão serviu para impulsionar uma nova

demanda. As conclusões do “Seminário sobre as negociações comerciais e a sua

vinculação com a agricultura familiar”, realizado junto à XVIII REAF (Caxias do Sul,

novembro de 2012), sugerem que a REAF deveria se constituir como uma instância

obrigatoriamente consultada pelo GMC quando as negociações envolvem a agricultura

familiar. Mas nenhum avanço mais efetivo foi produzido até o momento neste sentido.

ii. Gênero

O debate sobre a promoção de políticas de igualdade de gênero no meio rural adentrou à

pauta da REAF já na sua terceira reunião, realizada em Assunção. A discussão foi

catalisada pelo Documento Técnico 05/2005, “Proposta para discussão sobre Políticas

de Gênero da REAF”, encaminhado pelo governo brasileiro. O objetivo era abrir uma

reflexão sobre a institucionalização de políticas específicas e a adequação dos marcos

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normativos com vistas à promoção da igualdade de gênero no meio rural. A demanda

dirigiu-se no sentido de ressaltar a importância da REAF estimular a participação das

mulheres nas suas instâncias nacionais e regionais; realizar estudos sobre a situação das

mulheres rurais; sistematizar experiências sobre projetos e políticas de gênero; formular

recomendações sobre políticas de gênero aos países membros e integrar suas discussões

àquelas da Reunião Especializada de Mulheres (REM)46, atual Reunião de Ministras e

Altas Autoridades de Mulheres do Mercosul (RMAAMM).

Os trabalhos do GT iniciaram com um diagnóstico da situação das mulheres rurais em

cada um dos países membros, ao que seguiu uma sistematização das principais políticas

públicas destinadas a este segmento social. Dentre os temas que predominaram, em um

primeiro momento ganhou revelo a problemática do acesso à terra. Na esteira das

discussões que estavam em curso em âmbito internacional (Fórum Mundial da Reforma

Agrária, 2004; Conferência Mundial de Reforma Agrária e Desenvolvimento Rural,

2006; Marcha Mundial de Mulheres e Amigos da Terra, 2007), e em sintonia com a

própria discussão da REAF sobre o tema, o GT produziu uma reflexão sobre os

bloqueios econômicos, institucionais e socioculturais para o acesso igualitário ao

recurso mais fundamental à produção familiar. Um dos primeiros resultados desta

discussão foi o estudo “Género, Agricultura Familiar y Reforma Agraria en el

MERCOSUR”, lançado na V REAF (Buenos Aires, junho de 2006).

Neste mesmo período outro tema relevante nas discussões do grupo foi a participação

das mulheres nas organizações produtivas da agricultura familiar, o que demandava

atenção para o lugar específico que elas deveriam ocupar na agenda das discussões

relativas à facilitação de comércio. Em 2006 foi realizado o Seminário sobre

“Facilitação do Comércio para as Agricultoras Familiares do MERCOSUL”, cujo

objetivo era analisar os entraves enfrentados pelas mulheres na comercialização dos

seus produtos. Um ano depois, a VIII REAF (Montevidéu, outubro de 2007) debateu o

interesse do GT de Gênero em articular-se com o GT de Facilitação do Comércio para

trabalhar como uma perspectiva de gênero poderia ser incluída nas discussões sobre

cadeias produtivas e registros da agricultura familiar. Por sua vez, a XI REAF

(Assunção, junho de 2009) reforçou esse diálogo, recomendando às delegações

nacionais garantir a transversalidade de gênero nos estudos que estavam em curso. Esta

perspectiva continuou presente em várias ações, como, por exemplo, no “Programa

Regional de Intercâmbio de Experiências sobre Modelos de Gestão da Política de

Compras Públicas da Agricultura Familiar”, para o qual o GT de Gênero emite

orientações sobre a participação de mulheres nas ações desenvolvidas, seguindo

determinação da XVII REAF (Buenos Aires, junho de 2012).

46 Criada em 1998, trata-se de uma estrutura voltada para a análise da situação da mulher, das legislações

e das políticas públicas existentes no MERCOSUL. De modo geral, concentra suas ações em questões

relacionadas à violência contra a mulher e ao fortalecimento de uma institucionalidade de gênero nos

Estados.

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A articulação deste GT com outros grupos e com vários programas traz à tona uma

discussão complexa que remete a uma deliberação da quinta reunião regional (Buenos

Aires, junho de 2006), por meio da qual a REAF assegura a realização do GT de Gênero

anteriormente ao demais. Esta decisão envolve uma demanda das próprias participantes

do grupo que, quando o mesmo ocorria simultaneamente aos demais, viam-se

impossibilitadas de acompanhar discussões que envolviam o acesso das mulheres às

políticas de comércio, reforma agrária, gestão de risco, financiamento etc. Ou seja,

enquanto o foco das reivindicações do GT recaia justamente na questão do acesso das

mulheres às políticas públicas, incluindo a participação ativa na construção das mesmas,

a concomitância dos grupos temáticos impedia que isso ocorresse de maneira mais

efetiva dentro da própria REAF. Para corrigir esta distorção, a partir de então o GT

passou a reunir-se previamente aos demais, o que lhe permite construir entendimentos

sobre o olhar das mulheres para o conjunto das políticas para a agricultura familiar.

Em face desta decisão, outras duas questões passaram a ocupar os diálogos políticos da

REAF ao longo do processo de constituição do GT47. A primeira envolve a ideia de que

o GT constitui-se mais propriamente como um espaço de debate e organização das

mulheres com vistas a intervir na formulação de políticas públicas, o que ocorre tanto

no âmbito das discussões da REAF quando diretamente nos países membros e

associados. Embora esta perspectiva prevaleça quando se analisa o modus operandi do

grupo, ela coexiste com outra interpretação que afirma o GT como um espaço onde

homens e mulheres discutem conjuntamente os fatores que limitam a promoção da

igualdade de gênero no acesso às políticas. De fato, sobretudo depois que o GT passou a

ser realizado anteriormente aos demais, a participação masculina se tornou recorrente e

crescente. Alguns países inclusive indicaram homens como representantes nacionais

(Pontos Focais) perante o GT, o que causou algum estranhamento, mas não chegou a ser

motivo de discórdias intransponíveis.

O GT tem um objetivo claro neste sentido. Sabe-se que naquele

momento da pauta nós vamos discutir o olhar das mulheres para tudo

o que a REAF está discutindo. A única diferença é que se fosse um

GT de Mulheres, iriam conversar só as mulheres. Como é GT de

Gênero, todos que estão na REAF participam também da conversa. É

o momento em que as mulheres ocupam o espaço da agenda, mas é

aberto para todo mundo participar. [...] Isso se tornou muito

importante no sentido de fortalecer um certo olhar e uma articulação

entre as mulheres para fazer um esforço de tentar, nessas agendas

maiores que os demais GTs estavam conversando, incluir uma pauta

de incidência mais articulada, tentando trazer o olhar das mulheres.

(Alessandra Lunas).48

47 Neste sentido veja o documento “Orientações metodológicas para o funcionamento da REAF:

transversalidade de gênero”, aprovado durante a VII REAF (Assunção, maio de 2007).

48 Alessandra Lunas. Secretária de Mulheres Trabalhadoras Rurais da CONTAG – Brasil. Estrato de

entrevista concedida em abril de 2015.

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O predomínio de uma perspectiva que afirma o GT como um espaço privilegiado de

articulação das mulheres encontra sua justificativa nas assimetrias que determinam a

existência de diferenciais de poder no acesso aos recursos. Essas assimetrias também se

reproduzem no plano discursivo e no manejo das informações e ferramentas

institucionais. Por conseguinte, tratar igualmente os desiguais seria uma forma de

perpetuar a desigualdade. Considerar que homens e mulheres estariam em condições de

sustentar seus interesses sob as mesmas condições revelaria uma contradição em face

dos argumentos que legitimaram a constituição deste espaço. Por sua vez, esperar que

os homens verbalizem os interesses das mulheres colocaria em xeque a perspectiva de

empoderamento que esta proposta carrega consigo.

Por que a gente faz políticas para mulheres e não faz de gênero?

Porque a gente entende que existe um processo de desigualdade

histórica que faz com que mulheres e homens não partam do mesmo

patamar para participar das políticas públicas. Outros países

entendiam que o tema das mulheres tem que ser discutido junto com

os homens. Por isso eles chamam GT de Gênero. Nós, no Brasil,

entendemos que tem que ser GT de Mulheres porque nós precisamos

preparar as mulheres para que elas alcancem condição de discussão

com os homens em outro nível. Porque os processos de participação e

inclusão não foram os mesmos e existem desigualdades estruturais

que precisam ser rompidas. Como equaciona isso? A gente não

equaciona. A gente trabalha com as distintas concepções existentes

nos diferentes países. A gente foi aprendendo a conviver com isso.

Aprendemos a nos respeitar e a entender as distinções. (Karla Hora).49

A segunda questão tem a ver com uma expressão capciosa que reaparece com alguma

freqüência nos diálogos da REAF: “transversalidade”. Ao longo do tempo, a REAF

incorporou a ideia de que deveria ser adotado um enfoque de gênero em todas as linhas

de trabalho priorizadas. A ata final XVII REAF (Buenos Aires, junho de 2012) destaca

inclusive como um dos avanços significativos o modo como “las delegaciones

reconocieron los avances realizados para incorporar la mirada de género en todos los

ámbitos de la REAF, y coincidieron en resaltar la necesidad e importancia de la

articulación de los GTs con el GT de Género.”

No entanto, na medida em que o GT reivindicava a necessidade do conjunto das

políticas para a agricultura familiar incorporar um “olhar de gênero”, muitos atores

compreenderam que a melhor maneira de fazer isso seria diluir a participação das

mulheres nos demais grupos. O tema seria tratado como “transversal” às discussões

conduzidas em grupos com temáticas mais específicas: terra, financiamento, comércio,

registros etc. O mesmo aconteceria com o GT de Juventude e o tema geracional.

Enquanto alguns adeptos desta proposta a consideravam fundamental para dinamizar as

discussões e incluir novos temas na agenda, seus oponentes defendiam que a

49 Karla Hora. Ex-diretora de políticas para mulheres rurais do Ministério do Desenvolvimento Agrário,

Brasil. Estrato de entrevista concedida em fevereiro de 2015.

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transversalidade não poderia ser construída em detrimento da existência de um espaço

específico de diálogo das mulheres e dos jovens.

Seja como for, esta discordância que percorre quase toda a existência do GT não

bloqueou os diálogos em torno dos temas centrais do grupo. O “Programa Regional de

Fortalecimento Institucional de Políticas de Igualdade de Gênero na Agricultura

Familiar do Mercosul” é emblemático neste sentido. Sua primeira versão foi

apresentada pelo GT à plenária da VI REAF (Porto Alegre, dezembro de 2006).

Aprovado, ele foi remetido à análise do GMC com vistas à captação de recursos do

Comitê de Cooperação Técnica do MERCOSUL (CCT). Após retornar para

readequações, uma nova versão foi aprovada VII REAF (Assunção, maio de 2007) e

novamente enviada ao CCT. Mas como não foram disponibilizados recursos do

MERCOSUL, o Programa foi iniciado a partir dos orçamentos disponíveis em cada um

dos Estados Membros, o que reduziu consideravelmente seu alcance.

Após tratativas pouco exitosas com o FIDA para financiamento do programa, o mesmo

foi encaminhado à avaliação da Agência Espanhola de Cooperação Internacional para o

Desenvolvimento (AECID), a qual havia manifestado interesse em apoiar a iniciativa. A

X REAF (Rio de Janeiro, novembro de 2008) registra os avanços nos entendimentos

com a AECID, a partir da qual foi redigida uma nova versão do programa. Finalmente, a

XI REAF (Assunção, junho de 2009) aprovou o Documento Final, o qual foi remetido

ao GMC para aprovação do convênio com a AECID, constituindo a única ação da

REAF executada a partir de uma cooperação bilateral extraregional.

Administrado pelo Ministério da Pecuária, Agricultura e Pesca do Uruguai, o Programa

foi colocado em funcionamento a partir XIII REAF (Mar Del Plata, junho de 2010) e,

desde então, se tornou o principal eixo de diálogo do GT. Como veremos mais

detalhadamente no Capítulo 10, o mesmo envolve ações de intercâmbio entre os países

para a geração de políticas de igualdade de gênero; a realização de seminários,

capacitações e estudos sobre o tema; e a elaboração de propostas para readequação do

arranjo institucional nos países do bloco. Na prática, o programa se tornou o motor de

uma ação para estruturar marcos institucionais nacionais de políticas para as mulheres.

O que era um programa regional de formação se tornou uma ampla ação regional para

que os países investissem em instrumentos de políticas para as mulheres rurais. A

iniciativa teve tamanho sucesso que está sendo iniciado o II Programa, o qual deve

contar com suporte da FAO e do governo brasileiro.

iii. Acesso à Terra e Reforma Agrária

Este grupo temático ocupa-se de um amplo conjunto de questões que dizem respeito ao

acesso à terra pelos agricultores familiares, campesinos e indígenas. Trata-se de uma

problemática de reconhecida complexidade em vista do processo de concentração da

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propriedade da terra que marca a história latino-americana, e cujos efeitos foram

acentuados no período mais recente por novos e preocupantes fenômenos como a

estrangeirização e a financeirização da propriedade e do uso da terra.

Dentre os primeiros temas considerados pelo GT, alguma prioridade foi concedida à

discussão sobre reforma agrária. Trata-se de um tema que traz à tona intensas

controvérsias, uma vez que a concentração da terra tem sido uma das principais bases

das relações assimétricas de poder que se perpetuam no meio rural. Com efeito, ainda

que a REAF tenha desenvolvido um entendimento bastante promissor sobre a

necessidade de ampliar as políticas de reforma agrária, as iniciativas para implementá-

las esbarraram em inúmeros obstáculos políticos e institucionais. A principal evidência

disso é o projeto de recomendação sobre “Políticas Fundiárias de Acesso a Terra” que,

aprovado na XII REAF (Montevidéu, dezembro de 2009), foi remetido ao GMC, mas

não prosperou neste espaço.

Uma das justificativas para a reação do GMC esteve associada ao fato de que alguns

países do bloco não contavam com marcos jurídicos que permitissem aos governos

nacionais intervir diretamente nas questões fundiárias (as quais são responsabilidade

primária dos estados e províncias). Mas, mais do que isso, a negativa também

demonstrou que as resistências a determinadas mudanças estruturais eram maiores do

que os formuladores da proposta inicialmente imaginaram. O tema da reforma agrária

continuava evocando conflitos latentes que não interessavam a determinados atores no

interior dos governos de coalizão de centro-esquerda – alguns recém eleitos, que ainda

estavam discutindo suas condições de governabilidade. Mesmo assim, o projeto foi

importante porque recolocou o tema e, ao mesmo tempo, permitiu demarcar alguns

limites dentro dos quais poderiam operar os diálogos para a construção de políticas para

a agricultura familiar. Logo ficou claro que ações mais efetivas em torno da reforma

agrária demandariam uma reconfiguração mais expressiva das forças políticas em nível

regional.

Outra ação que esteve presente deste o inicio do GT foi um estudo dos marcos jurídicos

nacionais e dos instrumentos de política fundiária utilizados em cada país. Para dar

conseqüência a esse investimento, em 2006, durante a V REAF realizada em Buenos

Aires, foi criada uma Rede de Instituições Nacionais Responsáveis pelas Políticas

Fundiárias, Reforma Agrária e Acesso à Terra, a qual passaria a atuar como órgão

assessor do GT. A partir dela procurou-se estimular um trabalho de troca de

informações e compartilhamento de experiências com vistas a gerar ações que

facilitassem o acesso à terra para os agricultores familiares e governança fundiária, com

destaque para a criação de cadastros rurais, tecnologias de georeferenciamento,

procedimentos de regularização fundiária, critérios de elegibilidade para os

beneficiários das políticas, monitoramento do mercado de terras, gestão organizacional

e legislação agrária. Embora a atuação desta Rede de Institutos de Terras tenha sido

menos efetiva do que inicialmente se esperava, as trocas de experiências ao menos

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incitaram os gestores a promover mudanças nos instrumentos nacionais de cadastro e

controle da posse da terra.

Ademais, os avanços mais expressivos neste sentido ocorreram a partir da problemática

da estrangeirização, a qual mobilizou o conjunto dos países e um leque mais amplo de

atores políticos. Esta discussão também iniciou com um levantamento sistemático da

posse da terra por indivíduos e empresas estrangeiros, a partir do qual passaram a ser

analisados os instrumentos de políticas públicas que poderiam limitar a extensão desse

fenômeno. Após inúmeras discussões que culminaram com um “Workshop sobre

Concentração, Estrangeirização e Uso da Terra” durante a XV REAF (Assunção, Junho

de 2011), as delegações chegaram a um entendimento sobre a necessidade de consolidar

ações mais efetivas nesta temática. Em 2012, na XVII REAF, realizada em Buenos

Aires, os países apresentaram uma síntese dos instrumentos utilizados para regrar esses

processos, os quais serão detalhados no Capítulo 9.

No período mais recente três temas concentraram a atenção do GT. Em primeiro lugar,

o debate sobre governança fundiária. Em vista dos bloqueios enfrentados pela discussão

da reforma agrária e dos avanços que já havia sido processados na pauta da

estrangeirização, este tema trouxe nova dinâmica ao grupo, centralizando os esforços

dos atores sobre os aspectos normativos e as estruturas operacionais que os Estados

necessitam para implementar as Diretrizes Voluntárias sobre a Governança Responsável

da Posse da Terra, Acesso aos Recursos Florestais e Pesca (DVGT). Trata-se de uma

agenda que tem mobilizado não apenas a REAF, mas os esforços de inúmeras

organizações e fóruns internacionais, especialmente a FAO e o Comitê Mundial de

Segurança Alimentar (CSA) das Nações Unidas.

O segundo tema contemporâneo está associado a uma articulação com os GTs de

Gênero e Juventude, os quais demandam uma análise mais densa das condições de

acesso à terra pelas mulheres e jovens, com vistas à produzir ou readequar políticas

fundiárias especificamente voltadas para estes segmentos. A título ilustrativo, já na XIII

REAF (Mar del Plata, Argentina, junho 2010) acordou-se realizar um diagnóstico

regional sobre a situação da juventude rural nos programas e políticas de acesso à terra,

por meio de estudos nacionais que seguiriam um termo de referência comum. No

momento, o estudo brasileiro já está finalizado e os relatórios de Uruguai e Argentina

estão em estágio avançado.

Finalmente, o terceiro tema é relativo ao controle dos recursos hídricos, o qual abre uma

nova agenda sobre o acesso dos agricultores familiares aos recursos naturais necessários

à reprodução dos seus sistemas de produção, incluindo ainda os recursos genéticos. No

que tange especificamente à questão da água, trata-se de uma preocupação comum, mas

com uma particular importância para determinados países como o Chile, onde a própria

definição normativa da agricultura familiar envolve uma variável relativa à

disponibilidade hídrica para a produção agrícola.

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iv. Gestão de Risco e Mudança Climática

Os riscos associados às atividades agropecuárias sempre constituíram um tema central

das discussões sobre políticas agrícolas. Ao longo da história, as perdas decorrentes de

eventos climáticos adversos, que geralmente afetam o conjunto dos agricultores em um

determinado território, foram o estopim de inúmeras lutas sociais reivindicando a

atenção do Estado para a necessidade de medidas mitigadoras de riscos e garantidoras

de renda aos agricultores. No caso da produção familiar em pequena escala, isto sempre

se mostrou ainda mais crítico na medida em que está em risco não apenas a unidade de

produção, mas a reprodução do grupo familiar. A literatura está repleta de exemplos de

ondas de êxodo decorrentes de graves crises ambientais, que desestruturam as

economias de base familiar em inúmeras regiões rurais.

A temática da gestão de riscos e do seguro agrícola como medida mitigadora adentrou à

REAF a partir do “Seminário sobre Seguro Agrícola e de Emergência no Mercosul”

realizado em Porto Alegre, em junho de 2005. Foi a partir das discussões deste

seminário que se encaminhou a constituição de um GT específico, formalizado na V

REAF (Buenos Aires, julho de 2006). O objetivo principal do grupo é discutir

experiências e recomendar ações com vistas à melhoria da capacidade adaptativa da

agricultura familiar às intempéries localizadas, às variações sazonais e às mudanças

climáticas globais.

Nos primeiros anos, a pauta que concentrou maior atenção do GT foi a criação de

mecanismos de contingência, sobretudo instrumentos de seguro agrícola, que pudessem

responder à situação de vulnerabilidade a que são submetidos os agricultores após

determinada ocorrência climática. Assim como nos demais GTs, as primeiras ações

concentraram-se na análise da situação dos agricultores e na identificação dos

instrumentos de mitigação de riscos utilizados em cada país. Este esforço resultou no

documento técnico “Bases para uma Política de Seguro para a Agricultura Familiar”,

aprovado na IV REAF (Montevidéu, novembro de 2005). Remetido ao GMC, o

documento serviu de baliza para a construção das ações posteriores, dentre as quais

seminários e intercâmbios técnicos entre os países do bloco.

A XI REAF (Assunção, junho de 2009) aprovou e remeteu ao GMC o projeto de

recomendação “Diretrizes para uma Política de Gestão de Riscos e Seguro Rural para a

Agricultura Familiar”. As Diretrizes sugerem aos Estados membros o desenvolvimento

de políticas de gestão de risco específicas para a agricultura familiar. Com isso, se

reconhece que a agricultura familiar não pode ficar exposta às condições gerais do

mercado de seguros privados. Para tanto, estas políticas devem compreender os fatores

de risco aos quais estão expostos os agricultores familiares, promover o uso de

tecnologias adequadas às realidades locais e o uso sustentável dos recursos naturais,

além de adotar medidas preventivas de caráter permanente contra as adversidades

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climáticas. Também se recomenda a capacitação dos agricultores e de suas

organizações, a criação de infraestruturas de monitoramento dos eventos climáticos e o

estabelecimento de zoneamento agropecuário.

Note-se que as Diretrizes não definem um instrumento específico de política agrícola

para gestão de risco. A heterogeneidade que caracteriza os países do bloco torna

imprudente este tipo de definição. De fato, os mecanismos de seguro agrícola tem se

mostrado muito diversos em todo o mundo. Como destaca José Carlos Zukowski, gestor

do Seguro da Agricultura Familiar no Brasil, mesmo em blocos geopolíticos mais

consolidados, como a União Europeia, há mecanismos diferenciados em cada país.

Sendo assim, as discussões do GT apontaram, sobretudo, para a importância de avançar

na construção de estruturas institucionais, técnicas e financeiras que permitam a cada

Estado construir os sistemas de gestão de riscos adequados à sua realidade.

Muito cedo nos trabalhos do grupo ficou claro que não havia como

padronizar as políticas. É impossível. Cada país tem que ter sua

fórmula. Não só pelas características diferenciadas, mas porque cada

um tem suas limitações políticas, econômicas, legais etc. Cada um tem

sua história. Não tem como padronizar. Então, se chegou à conclusão

que dava para colocar delineamentos gerais para as políticas,

colocando algumas condições gerais. E a partir disso é importante

promover estudos e intercâmbios de experiências, fazendo trabalhos

em conjunto para que um possa aprender com a experiência do outro.

Não tem como copiar. (José Carlos Zukowski).50

Ao longo do tempo, o conceito de “gestão de risco” também permitiu uma ampliação do

diálogo, uma vez que o mesmo aponta para iniciativas que vão além do seguro rural. O

tema foi pautado na IX REAF (Buenos Aires, julho de 2008), onde veio à tona questões

associadas às mudanças climáticas globais e seus efeitos à produção e à segurança

alimentar. Gradativamente, um novo eixo de preocupações foi sendo estruturado em

torno deste GT, até que a XVI REAF (Lavalleja, novembro de 2011) alterou o nome

inicial do mesmo (Seguro Agrícola e Gestão de Riscos) para aquele que consta

atualmente (Mudanças Climáticas e Gestão de Riscos). Com isso, deslocou-se o foco

principal do seguro rural para uma discussão mais ampla sobre a adaptação da

agricultura familiar às mudanças climáticas.

Esta foi a ocasião para a retomada de um conjunto de problemáticas ambientais. Já na

III REAF (Assunção, maio de 2005), durante a discussão dos possíveis temas de

trabalho que seriam priorizados, cita-se “Manejo Sustentável dos Recursos”. Na mesma

ocasião também se aponta para a necessidade de estudos sobre o marco legal vigente e

as oportunidades relacionadas ao mercado emergente de serviços ambientais. A XI

REAF (Assunção, junho de 2009) aponta no sentido de retomar a temática, estimulando

as Seções Nacionais a ampliar os debates sobre temas ambientais com vistas a

50 José Carlos Zukowski. Coordenador do Seguro da Agricultura Familiar, MDA, Brasil. Estrato de

entrevista concedida em abril de 2015.

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identificar possíveis aspectos relacionados à agricultura familiar, reencaminhando-os às

seções regionais posteriores, o que não se procedeu exatamente deste modo e em toda

parte. Por sua vez, a XII REAF menciona claramente a incorporação do tema

“Agricultura Familiar e Mudança Climática” no Plano de Trabalho anual, o que resultou

na realização de um seminário na cidade de Montevidéu em 2010. Relatados na ata da

XIV REAF (Brasília, novembro de 2010), os resultados do seminário apontam que as

delegações decidiram criar um Grupo Temático de Adaptação da Agricultura Familiar à

Mudança Climática.

Em face da importância que o tema vinha conquistando, os atores presentes no

Seminário encaminharam a proposta de constituição de um novo GT para tratar

especificamente das medidas de adaptação da agricultura familiar às mudanças

climáticas, dos processos de reconversão produtiva, do estímulo às boas práticas

agrícolas e da gestão sustentável dos recursos naturais. A proposição caminha ao

encontro de um diagnóstico sugerindo que, embora estes temas estivessem presentes

desde as primeiras discussões, eles sempre mantiveram um lugar periférico. Era

momento de colocá-los no topo da agenda.

As discussões sobre a criação de um novo GT sobre mudanças climáticas ocuparam a

pauta da XV REAF (Assunção, junho de 2011). No entanto, os entendimentos

produzidos encaminharam para a readequação do antigo GT de Seguro Agrícola e

Gestão de Riscos. O novo GT passou a incorporar um conjunto de temas que devem

dinamizar vários debates nos próximos anos. Exemplo disso é a expressão que começa a

receber o tema da agroecologia, o qual aparece pela primeira vez de modo mais central

na XIII REAF (Mar del Plata, junho de 2010), onde o mesmo foi objeto de um

seminário específico. Associado a ele também emergem discussões sobre novos

modelos de produção e geração de tecnologias adequadas à agricultura familiar.

Ademais, outro tema estreitamente relacionado e que tem conquistado crescente

relevância neste grupo, em contínuo diálogo com o GT de Acesso à Terra e Reforma

Agrária, é o manejo dos recursos hídricos e, em particular, o acesso e a gestão da água.

Todas estas mudanças na pauta do GT parecem ter conseqüências importantes para o

funcionamento dos diálogos políticos. Uma característica dos debates deste GT, em

especial nos primeiros anos, é o modo como determinados diálogos estão associados à

uma tecnicidade que cria diferenciais discursivos. Os debates sobre a normatização dos

instrumentos e a execução financeira das políticas de seguro rural revelaram momentos

em que os diálogos eram prioritariamente conduzidos entre os gestores técnicos.

Enquanto isso a participação dos movimentos sociais oscilava em torno de determinadas

reivindicações.

No começo a gente discutia como viabilizar o avanço do seguro nos

países, como viabilizar a implementação de políticas, e discutia

soluções técnicas de seguro. Tinha gente de governo e movimentos

sociais, na mesma sala. Mas, no GT de Seguro Rural a participação

dos movimentos era incomparavelmente menor do que nos outros. No

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GT de seguro predominava a participação de técnicos da área. (José

Carlos Zukowski, op. cit.).

De modo geral, a participação da sociedade civil mostrava-se mais significativa

naquelas ocasiões críticas em que determinada decisão precisava ser tomada com

relação a investimentos financeiros ou recomendações políticas, e menos expressiva no

curso normal das discussões sobre a estruturação dos instrumentos institucionais que

regem as políticas de seguro agrícola. Como analisaremos no último capítulo, essa não é

uma novidade na dinâmica de interlocução entre Estado e Sociedade Civil. Ela

simplesmente expressa que os diálogos acontecem a partir de posições e olhares

distintos. O processo de participação ocorre sem a pressuposição de uma completa

simetria entre atores com posições distintas. De todo modo, atualmente, a inclusão de

novos temas na agenda do GT parece redinamizar a participação não apenas dos

movimentos sociais, mas também dos próprios gestores, até mesmo porque, juntamente

com os novos problemas públicos, também vêm à tona novos atores.

v. Juventude Rural

O GT de Juventude Rural foi criado na VI REAF, realizada em dezembro de 2006 em

Porto Alegre. O objetivo era constituir um espaço regional para discutir alternativas a

uma trajetória de êxodo que há algum tempo preocupa gestores públicos, lideranças

sociais e, acima de tudo, os próprios jovens e suas famílias. Nas últimas décadas, uma

crise de sucessão geracional, associada a fenômenos de envelhecimento,

masculinização/feminização e celibato rural, tornou-se objeto de intenso debate social

na medida em que coloca em risco a agricultura familiar como modo de vida. Este

debate exige dos Estados a criação de alternativas viáveis para a permanência dos

jovens no meio rural. Mas a construção de políticas específicas para este público torna-

se um enorme desafio na medida em que ele é demandante de um complexo integrado

de iniciativas educacionais, produtivas, culturais, socioassistenciais e tecnológicas.

Se a trajetória inicial do GT de Gênero foi profundamente marcada pela intervenção

brasileira no seio da REAF, no caso do GT de Juventude Rural maior protagonismo

deve ser reconhecido à ação do governo argentino. A rigor, inicialmente a proposta

parece ter sido estimulada pela intervenção de representantes do governo chileno, em

particular de gestores do Instituto de Desarrollo Agropecuario (INDAP) que estavam

preocupados com os problemas da sucessão geracional no meio rural do país. Mas logo

se percebeu que o tema afetava toda a região, e de forma muito mais dramática do que

muitos imaginavam. Segundo Favio Pirone do MAGyP, é neste momento que

representantes do governo argentino, os quais já vinham desenvolvendo algumas

atividades de formação de jovens dirigentes no meio rural, abraça e passa a impulsionar

esta agenda no interior da REAF.

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El tema de juventud en la REAF no aparece primeramente por la

Argentina. Quién manifestó una preocupación por trabajar con el tema

jóvenes son los amigos de Chile. Ellos llegarán preguntando que se

pasaba con la juventud en los demás países y ahí es que nosotros de

Argentina, sobre esta iniciativa, hicimos una propuesta. Es cierto que

en los primeros años la Argentina se cargó un poco del tema de

juventud porque veníamos muy paralelo con las cosas internas que se

estaban haciendo acá con todos los procesos de formación de

dirigentes, básicamente de organizaciones de la agricultura familiar y

se intentó llevar esta experiencia a nivel de MERCOSUR. Los

primeros años fueron complexos porque no todos los países estaban

totalmente convencidos. Hubo que hacer demonstraciones. Hubo que

trabajar mucho para que los países puedan abrazar el tema.” (Favio

Pirone).51

As reações à proposta de criação do GT foram diversas. Os países se apropriaram de

diferentes formas, mas, de maneira geral, não houve reações contrárias. O tema

interessava diretamente a todos os atores, incluindo as organizações sociais, que se

incorporaram à discussão – talvez até mais rapidamente que os representantes

governamentais, pelo menos nos primeiros anos do GT.

O Brasil, por exemplo, inicialmente enviou à seção regional da REAF representantes

juvenis escolhidos basicamente dentre as entidades da sociedade civil. Estes não

possuíam, portanto, condições de tomar decisões em nome da delegação brasileira, o

que limitava os avanços do diálogo. Algum tempo depois, quando o tema adentra mais

fortemente no âmbito estatal, atores-chave do governo brasileiro passam a participar

ativamente do GT. Inicia-se aí um novo momento em que tanto o governo quanto as

principais organizações sociais visualizam no GT um espaço de grande potencial

político, enviando à REAF alguns dos principais dirigentes dos movimentos da

juventude rural. Como veremos à frente, a principal evidencia desta aposta no GT é o

fato de que, ao longo do tempo, estes jovens passaram inclusive a compor espaços

hierarquicamente mais importantes no governo brasileiro, o que também aconteceu no

âmbito das organizações sociais.

A participação uruguaia também mudou ao longo do tempo, da presença fortuita de

alguns poucos jovens nos primeiros anos, para uma participação ativa impulsionada

pela nova compreensão que o governo construiu acerca da importância da formação de

jovens dirigentes rurais e da construção de políticas específicas para este segmento. O

mesmo ocorreu com o Paraguai, ainda que com uma oscilação maior em virtude da

instabilidade política que o país vivenciou. Seja como for, o certo que é aos poucos o

GT ganhou corpo e representatividade. Quando os governos tiveram alguma dificuldade

em impulsionar a agenda, coube às organizações sociais tomar a frente. Assim foi sendo

formada uma pauta que interessava não apenas aos gestores, mas a um conjunto mais

amplo de atores sociais e, em particular, à própria juventude rural.

51 Favio Pirone. Ministério de Agricultura, Ganadería y Pesca (MAGyP), Argentina. Estrato de

entrevista concedida em abril de 2015.

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Las organizaciones se apropiaran mucho de esto. Nosotros

construimos una estrategia de conformar una agenda de temas que

preocupaban la juventud rural, para que la REAF siga tratando de

forma permanente, que a sido construida no sólo por los gobiernos. Es

más, diría que los gobiernos tuvieron menor impacto que las

organizaciones. Las organizaciones han puesto mucho de esto. (Favio

Pirone, op cit.)

O GT constituiu sua agenda de trabalho em torno de alguns temas centrais: migração,

educação rural, acesso à terra, sustentabilidade dos sistemas de produção e

institucionalidade da juventude rural. Dentre todos estes temas, três receberam maior

atenção. Acompanhando a própria agenda de diálogos nos demais GTs da REAF, o

primeiro está relacionado com o acesso à terra pelos jovens, questão que demanda dos

países a construção de políticas diferenciadas para garantir a este segmento condições

básicas para a sua permanência no meio rural. Para tanto, acordou-se na XIII REAF

(Mar Del Plata, junho de 2010) a realização de um diagnóstico regional sobre a situação

do acesso à terra pela juventude. Os resultados desta discussão incidem

fundamentalmente na inclusão de um olhar específico para os jovens, assim como para

as mulheres, nas políticas de reforma agrária, crédito fundiário e governança da terra.

Outro tema que movimentou a agenda do GT foi a educação rural. A priorização do

mesmo está associada com o reconhecimento que ele obteve no MERCOSUL a partir

do Plano Estratégico de Ação Social (PEAS), o qual identificou ações para impulsionar

a inclusão social. Por sugestão da XV REAF (Assunção, junho de 2011), o PEAS

incluiu um objetivo prioritário sobre o tema da educação rural dentro do Eixo IV

“Universalizar a Educação e Erradicar o Analfabetismo”. Isto abriu espaço para que o

CMC aprovasse o Projeto de Recomendação da XVI REAF (Minas, dezembro de 2011)

sobre Educação Rural, que instrui os Estados membros a adotarem políticas específicas

dirigidas à educação no campo, baseadas no princípio do respeito à diversidade rural e

contemplando todos os níveis de educação, de modo a ampliar o espectro de

oportunidades para a população rural (Recomendação CMC 02/11).

Deve-se destacar ainda o esforço do GT e da REAF para o incremento da

institucionalidade da juventude rural nos países do bloco, o que assegura o

reconhecimento oficial deste segmento social enquanto portador de direitos, amplia os

espaços de interlocução política e favorece a construção de instrumentos de políticas

públicas. De acordo com os entrevistados, este foi um dos principais avanços obtidos

nesta temática. Diferentemente da agenda de gênero protagonizada pelas mulheres

rurais, os debates geracionais eram muito incipientes no início dos anos 2000, e

encontravam resistências perante vários governos e mesmo dentre algumas

organizações sociais. A incorporação do tema pela REAF contribuiu para dinamizar os

debates nacionais, pressionando pela ampliação da participação da juventude rural nas

políticas públicas. É o caso do Programa ‘Somos de Acá’, um fundo de iniciativas

juvenis criado pela Direção Geral de Desenvolvimento Rural do MGAP do Uruguai.

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Ainda que ao longo desses dez últimos anos o GT de Juventude não tenha apresentado à

REAF um número expressivo de projetos de recomendação ou decisão para ser elevado

ao GMC, o grupo também é responsável por uma das mais importantes iniciativas de

diálogos políticos da REAF, a saber: os Cursos Regionais de Formação de Jovens

Rurais no MERCOSUL. Analisados em detalhe no Capítulo 11, estes cursos

constituíram uma plataforma de diálogos entre a juventude rural latino-americana,

ampliando a autonomia e a capacidade de intervenção da mesma junto aos governos e

organizações sociais.

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PARTE III – O desenho de políticas para a agricultura familiar

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8. Da definição normativa aos Sistemas Nacionais de Registros Voluntários

Os Registros Nacionais Voluntários de Agricultores Familiares são instrumentos criados

pelos países com vistas a identificar os agricultores que podem ser beneficiários de

políticas diferenciadas, às vezes garantindo exclusividade no acesso. Os mesmos

também servem para construir bases de dados sobre as características desta categoria

social e, assim, em um processo que se retroalimenta, contribuir para aperfeiçoar as

políticas públicas. A seguir analisaremos o processo de construção dos registros e seu

uso para identificação da agricultura familiar. Até o momento, avanços importantes

foram já processados na implantação desta ação, a qual atinge um percentual bastante

satisfatório de identificação em relação ao universo total de agricultores familiares de

cada país. Por sua vez, no que tange ao seu uso como mecanismo para diferenciação no

acesso às políticas, os resultados variam de um país para outro. Enquanto em alguns

casos ele já é balizador de um amplo conjunto de ações, em outros seu uso ainda é

relativamente limitado, o que se explica pela sua implantação mais tardia e pela

necessidade de ajustes que ainda estão curso (REAF, 2014).

O primeiro desafio na construção dos registros foi delimitar as características da

categoria social objeto de reflexão e intervenção da REAF. Este processo constitui um

passo chave para estabelecer políticas públicas diferenciadas e para promover a

produção e o comércio de produtos da agricultura familiar. Assim, no âmbito regional,

para catalisar a criação de novos instrumentos de políticas públicas, era “necessário

contar com instrumentos adequados de reconhecimento e identificação de

agricultores/as familiares que permitam que as políticas públicas para o setor cheguem

efetivamente aos destinatários, reconhecendo para este objetivo, em igualdade de

condições, as mulheres e os homens rurais” (Resolução GMC 25/07).

Como vimos no Capítulo 3, para além das legislações nacionais já estabelecidas em

alguns países, ainda era necessário definir um marco comum em âmbito regional. Além

de permitir a identificação da agricultura familiar, o mesmo legitimaria não apenas a

atuação da REAF, mas dos próprios organismos estatais que haviam sido criados para

responder às reivindicações deste segmento, assim como das organizações sociais que

lhe representam politicamente. Uma vez instituída, a definição conferiria maior

visibilidade e reconhecimento para a categoria social. O depoimento de Laudemir

Muller ilustra a relevância deste momento inicial de construção de uma definição

comum em âmbito regional:

Tem um tema central que é o avanço que nós tivemos nos países para

o reconhecimento da agricultura familiar do ponto de vista

formal/técnico. [...] Quando a gente se convenceu de que a agricultura

familiar existia e era diferente, o grande desafio era controlar isso. Aí

vem o tema da definição da agricultura familiar e a questão do

registro. Este se torna um tema fundante porque é a base para tudo. Se

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você vai fazer uma política dirigida, tem que saber a quem dirigir.

(Laudemir Muller, op. cit.).

A marcante heterogeneidade das realidades socioeconômicas e culturais das agriculturas

familiares do MERCOSUL se impôs como um desafio considerável. Como destaca

Jackson Nargonni, ponto focal do Brasil no GT de Registros da REAF, apesar do

reconhecimento necessário à diversidade dos contextos nacionais, a criação de um

marco conceitual comum exigia que “os agricultores familiares dos quatro países

fossem conhecidos de uma forma homogênea”. A única maneira de garantir isso seria

construindo uma noção suficientemente ampla para dar conta de realidades diversas, a

partir da qual os países teriam condições de definir critérios mais restritivos. Foi isto

que ocorreu na construção da Resolução 25/07 do GMC (ver supra, Capítulo 3).

Desenhou-se uma definição ampla que permite aos países manejarem sua diversidade

interna a partir de um conjunto mínimo de parâmetros comuns.

Yo creo que la virtud de la definición de agricultura familiar que hizo

la REAF es que ella es muy pragmática y muy política, y que puede

ser adaptable y adaptada a distintas circunstancias y a distintos países

o regiones. Porque define una serie de cinco o seis características que

tiene que cumplir la agricultura familiar y deja libre a la ponderación y

la parametrización de las mismas a la realidad de cada país y cada

región. Eso permite tener una grande definición paraguas o

comprehensiva y, por otro lado, abre la posibilidad de reconocer la

heterogeneidad dentro de este gran concepto. (Álvaro Ramos, op. cit.)

Ao longo deste processo, a experiência e os aprendizados da trajetória brasileira de

reconhecimento institucional da agricultura familiar foram orientadores dos debates

regionais sobre a institucionalização de uma definição comum e sobre a organização do

sistema de registro, considerando suas potencialidades, limitações e mudanças. O

próprio MDA salienta que a Declaração de Aptidão ao Pronaf (DAP), instrumento de

registro existente no Brasil, “consiste em uma base de dados consolidada e utilizada por

treze políticas públicas dirigidas à agricultura familiar, além de ser referência

internacional entre os países do Mercosul.” (Brasil, MDA, 2014, p. 13). De fato, a

Resolução GMC 25/07 se aproxima daquelas previamente definidas na DAP e na Lei da

Agricultura Familiar, as quais foram estabelecidas, respectivamente, em 1997 e 2006 –

exceto no que concerne ao critério referente aos recursos produtivos e à tecnologia

adotada, o que não é abordado pela definição brasileira e, ainda hoje, tem se mostrado

de difícil tradução na hora de definir parâmetros objetivos de identificação.

Mas a norma brasileira não poderia ser replicada mecanicamente nos demais países,

onde a identidade dos grupos sociais que compõem a agricultura familiar é definida a

partir de interações sociais distintas. Neste sentido, Carvalho (2011, p. 50) salienta que

“a definição [estabelecida na REAF] abre espaço para contemplar diferenças nacionais,

tais como a extensão das propriedades na Amazônia brasileira ou na Patagônia

argentina, mantendo também a capacidade de decisão dos países sobre sua definição

própria de agricultura familiar.” Ademais, a própria Resolução do GMC estabelece que

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“será implementado em cada um dos Estados Membros um sistema nacional de registro

voluntário de agricultores/as familiares”, o qual, contemplando e afirmando uma

perspectiva de gênero, “deverá garantir a identificação tanto dos homens como das

mulheres da agricultura familiar, independentemente de seu estado civil.” Não por

acaso, quando da internalização da norma, alguns países construíram seus sistemas de

registros com foco prioritário na identificação dos indivíduos, e não das unidades

familiares de produção, como prevalece no contexto brasileiro.

Estabelecida em 1997 (mas tendo sua emissão controlada somente a partir de 2001)52, a

DAP foi o mecanismo utilizado pelo governo brasileiro para garantir acesso exclusivo

dos agricultores familiares ao PRONAF, sendo esta a primeira política nacional

direcionada especificadamente para o segmento, criada em 1995. Atualmente, este

instrumento também serve de parâmetro para o acesso a outras políticas públicas:

Seguro da Agricultura Familiar (SEAF), Programa Garantia Safra; Programa de

Garantia de Preços da Agricultura Familiar (PGPAF), Programa Brasil Sem Miséria

(PBSM), Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), Programa Nacional de

Alimentação Escola (PNAE), Programa Nacional de Habitação Rural (PNHR),

Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER), Programa Nacional de Produção de

Bicombustíveis (PNPB), dentre outras (Brasil, MDA, 2014).

Após diversas modificações, mas coerente com a definição assumida inicialmente pelo

PRONAF, a DAP assegura condições mais restritivas que a Lei da Agricultura Familiar

(Lei n 11.326/2006), abarcando apenas os estabelecimentos que atenderem aos

seguintes critérios:

a) explore parcela de terra na condição de proprietário, posseiro, arrendatário,

comodatário, parceiro, concessionário do Programa Nacional de Reforma Agrária, ou

permissionário de áreas públicas;

b) resida no estabelecimento ou em local próximo, considerando as características

geográficas regionais;

c) não detenha área superior a quatro módulos fiscais53;

d) detenha, no mínimo, 50% da renda bruta originária da exploração agropecuária e não

agropecuária do estabelecimento;

e) tenha o trabalho familiar como predominante na exploração do estabelecimento,

utilizando mão de obra de terceiros de acordo com as exigências sazonais da atividade

52 De acordo com o “Informe anual de avalição dos registros da agricultura familiar dos Estados partes”

(GT Registros, 2013), até junho de 2001 não havia qualquer controle sobre os registros da agricultura

familiar. Bastava uma simples autodeclaração, jurada por um dos membros da unidades familiar, em

conjunto com um técnico ou representante das formas associativas dos agricultores familiares.

53 Módulo fiscal é uma unidade de medida agrária instituída no Brasil pela Lei 6.746/1979. A mesma é

expressa em hectares e tem como parâmetro o tipo de exploração predominante no município; a renda

obtida com a exploração predominante; outras explorações existentes no município que, embora não

predominantes, sejam expressivas em função da renda ou da área utilizada; o conceito de propriedade

familiar. Em tese, um módulo corresponde à área mínima necessária a uma propriedade rural para que sua

exploração seja economicamente viável.

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agropecuária, podendo manter empregados permanentes em número menor que o

número de pessoas da família ocupadas com o empreendimento familiar;

f) tenha obtido renda bruta familiar nos últimos doze meses de até R$ 360 mil reais.

Inicialmente, a emissão da DAP era quase exclusividade dos Sindicatos de

Trabalhadores Rurais (STRs) e dos órgãos de Assistência Ténica e Extensão Rural

(ATER). Embora estes atores continuem capitaneando o processo, atualmente existe

uma gama maior de organizações aptas cadastradas junto à Secretaria da Agricultura

Familiar (SAF/MDA), o que se deve basicamente a necessidade de alcançar segmentos

específicos não contemplados pelas organizações sindicais e, às vezes, pela própria ação

dos técnicos extensionistas: Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária

(INCRA) para os assentados de reforma agrária; Fundação Nacional do Índio (FUNAI)

para os povos originários; Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade

(ICMBio) para comunidades extrativistas; e Fundação Cultural Palmares para as

comunidades remanescentes de quilombos. Atualmente, existem 26.787 agentes

cadastrados que realizam a emissão das DAPs (Brasil, MDA, 2014).

Em termos operacionais, nos casos em que os agricultores podem se deslocar até as

organizações de registro, as mesmas aplicam um questionário eletrônico que é

encaminhado diretamente para validação junto ao MDA. Nos demais casos, há uma

ação mais proativa dos técnicos, incluindo mutirões de documentação, para alcançar

agricultores em comunidades mais isoladas. Ademais, para além do controle e da

validação de informações que ocorre pelos próprios agentes públicos e organizações

sociais implicadas, as DAPs podem ser objeto de um controle social nos Conselhos

Municipais de Desenvolvimento Rural Sustentável (CMDRS), os quais podem solicitar

o cancelamento da mesma caso se verifique alguma irregularidade cadastral.

Segundo os dados apresentados no Informe Anual sobre os Registros Nacionais da

Agricultura Familiar no Mercosul (XXII REAF, dezembro de 2014), existem 5.124.328

unidades familiares de produção registradas no Brasil (com DAP ativa), o que

corresponde a cerca de 18,4 milhões de pessoas, que ocupam uma área de 96 milhões de

hectares, sendo que a superfície agrícola média é de 18,7 hectares. Note-se que este

número supera o universo de estabelecimentos rurais familiares levantado pelo Censo

Agropecuario, a saber, 4,3 milhões (IBGE, 2006). A DAP cobre cerca de 120% do total

de estabelecimentos, o que é possível na medida em que um mesmo estabelecimento

pode conter mais de uma unidade familiar de produção.

Associada ao registro individual, o Brasil também criou um instrumento de

identificação das organizações da agricultura familiar denominado DAP Jurídica. Este

instrumento é utilizado para “identificar e qualificar as formas associativas das unidades

familiares de produção rural organizadas em pessoas jurídicas” (Brasil, MDA, 2014, p.

14). Para tanto, em um primeiro momento, exigia-se que a pessoa jurídica fosse

formada exclusivamente por agricultores familiares. No entanto, rompendo com

concepções que presumiam a endogenia da categoria – ou quiçá o “isolamento social”

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da mesma – e explicitadas as freqüentes interações deste segmento com outros grupos

sociais, as regras da DAP Jurídica foram flexibilizadas. O percentual inicialmente caiu

para 90% e, posteriormente, foi sendo reduzido até alcançar, atualmente, a proporção de

60% como limite mínimo de participação de agricultores familiares possuidores de DAP

física.

A partir desta regra geral, as diferentes políticas públicas podem ainda estabelecer

regras complementares. Programas de compras públicas como o PAA e o PNAE

determinam, por exemplo, que a produção adquirida das cooperativas com DAP

Jurídica deve ser oriunda de agricultores familiares (com DAP física). O PRONAF

Agroindústria exige que 55% da produção beneficiada, processada ou comercializada

seja oriunda de cooperados ou associados portadores de DAP, e cujo projeto de

financiamento comprove estes mesmos percentuais quanto ao número de participantes e

à produção a ser beneficiada, processada ou comercializada – outrora este percentual era

de 70%, e também eram estabelecidos limites de recursos inferiores aos

disponibilizados atualmente.

Segundo os entrevistados, se, por um lado, estas regras reconhecem que a agricultura

familiar interage com outros segmentos, e que estes podem colaborar na construção de

novos mercados que os agricultores familiares teriam dificuldade para articular de modo

isolado (em virtude, por exemplo, da necessidade de ampliar a escala ou reduzir custos

logísticos); por outro, elas são constantemente questionadas pelo risco de fortalecer o

domínio de grandes cooperativas agroindustriais que, devido às suas dinâmicas

organizacionais e produtivas, nem sempre valorizam o modo e a dinâmica de vida da

agricultura familiar e/ou seguem os princípios do cooperativismo solidário e

participativo.

Na Argentina, a discussão sobre os registros da agricultura familiar também é anterior à

Recomendação do GMC de 2007, ainda que fortemente influenciada pelas discussões

que já estavam em curso na REAF. Com a criação do Foro Nacional de la Agricultura

Familiar (FoNAF), em 2006 começou-se a delinear um Registro Nacional, “considerado

um instrumento básico para la ejecución de las políticas públicas dirigidas al sector”

(GT Registros, 2013, p. 08). Em 2007, no bojo dos debates e decisões da REAF, a então

Secretaria de Agricultura, Ganaderia, Pesca e Alimentos (SAGPyA) (atualmente na

condição de Ministério) publicou a Resolução 255, a qual cria o Registro Nacional da

Agricultura Familiar (RENAF) como “o único meio pelo qual os agricultores familiares

poderão acessar aos benefícios dos instrumentos de políticas públicas diferenciadas para

o setor, sendo este de caráter universal e voluntário, e incluirá todas as pessoas que

possuem condições habilitantes.”. Atualmente, dentre as principais políticas que se

utilizam os registros como instrumentos de identificação estão, por exemplo, o

Monotributo Social Agropecuário e o Plan de Inclusión Jubilatoria.

Sob responsabilidade da Unidade de Registro Nacional da Agricultura Familiar

(URAF), o RENAF tem como objetivos específicos: a) identificar e certificar o caráter

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de agricultor/a familiar, habilitando as unidades para acessar as políticas públicas que

lhes estejam especificadamente destinadas, de maneira agil e eficiente; b) categorizar

os/as agricultores/as familiares, segundo suas condições e necessidaddes, com a

finalidade de ajustar as políticas aos perfis e necessidades derivadas de tal

categorização; c) servir de instrumento de planejamento que permita a oportuna

adequação e/ou reformulação das políticas destinadas à agricultura familiar em todos os

países; d) produzir informação para a construção de indicadores socioeconômicos,

ambientais, de sustentabilidade da produção agropecuária familiar e dos recursos

naturais, entre outros, relativos ao setor; e) oferecer às organizações de agricultores/as

familiares informações para desenhar e desenvolver estratégias de fortalecimento

institucional das mesmas; d) promover a incorporação da problemática da agricultura

familiar na agenda de governos municipais e provinciais, aproximando o Estado das

necessidades cuja resolução permite o desenvolvimento territorial local (REAF, 2013).

A unidade de registro do RENAF é o Nucleo Agricultor Familiar (NAF), sendo este a

pessoa ou o grupo de pessoas, parentes ou não, que habitam sob um mesmo teto em um

regime de tipo familiar, isto é, compartilham seus gastos em alimentação ou outros bens

essenciais para viver e que aportem ou não força de trabalho para o desenvolvimento de

alguma atividade no âmbito rural. Para o caso de população indígena, o conceito

equivale ao de comunidade. Ademais, são considerados NAF todas as famílias ou

estabelecimentos de produtores/as agropecuários/as, florestais, pescadores/as,

coletores/as e/ou com atividades artesanais, agroindustriais ou turísticas, que utilizem

recursos de origem agrária, sem importar se o destino destas atividades é a venda, o

autoconsumo ou a troca, ou se é a atividade principal ou secundária, considerando a

adequação aos seguintes critérios:

a) vivem em áreas rurais ou a uma distância que permita contatos frequentes com a

produção agrária ou conexas;

b) a mão de obra ocupada corresponde predominantemente à família e é limitada a

contratação de mão de obra;

c) a renda de fora do estabelecimento é limitada a um máximo de três salários mínimos

de peão rural por mês;

d) assumam a responsabilidade/controle sobre sua atividade produtiva.

Os responsáveis pelo preenchimento dos registros são registradores habilitados

pertencentes às organizações de agricultores familiares e técnicos de campo da

Secretaria de Agricultura Familiar do MGAyP, sendo que os dados levantados são

averiguados e controlados em várias instâncias do processo de Registro, desde a escala

local e provincial até a central. Atendidos todos os critérios e as etapas de verificação, a

listagem dos agricultores familiares registrados é publicada em um sítio da internet

(http://www.renaf.magyp.gob.ar), tornando-se sujeita ao controle social.

De acordo com informações sistematizadas pela Secretaria Técnica da REAF, em 2013

estavam registrados 96.223 NAF, o que significa um grau de cobertura de 38% do

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conjunto dos estabelecimentos da agricultura familiar (GT Registros, 2013). Dentre as

principais atividades desenvolvidas por estes agricultores familiares encontra-se a

produção animal seguida da produção vegetal, agroindústria, artesanato e extrativismo.

A Argentina também implementou um instrumento específico para identificação das

organizações da agricultura familiar. O Registro Nacional de Organizaciones de la

Agricultura Familiar (RENOAF) é voluntário e não abarca critérios de formalização

jurídica. Os requisitos mínimos de registro exigem que a organização detenha ao menos

dez integrantes e, ao menos 70% do quadro de sócios ou cooperados devem cumprir os

requisitos de agricultor familiar (enquadramento ao RENAF).

Por sua vez, o Paraguai foi, de acordo com Carvalho (2011, p. 120), “o primeiro país a,

depois da Resolução 25/07, começar a implementar o registro de agricultores familiares,

ainda em 2007, como o nome de Registro Nacional da Agricultura Familiar (RENAF)”.

No entanto, segundo a autora, o “registro foi realizado na mesma época de uma entrega

de subsídios para perdas por fenômenos climáticos [Certificado Agrícola], criando

confusão entre a população, que associou o preenchimento dos dados para o registro ao

recebimento dos subsídios”. Em virtude desta confusão e de outros fatores

institucionais, “apenas em 2010 o governo paraguaio finalmente reordenou o

formulário, que tinha problemas, e previa recomeçar a coleta de dados” (Carvalho,

2011, p. 116).

Seguindo parâmetros mais estritos que aqueles estabelecidos pela Lei 2.419/2004

(Capítulo 3, supra), o Registro paraguaio considera agricultura familiar:

a) aquella actividad productiva rural que se ejecuta utilizando principalmente la fuerza

de trabajo familiar para la producción de un predio;

b) que además no contrata en el año un número mayor de 20 jornaleros asalariados de

manera temporal en épocas específicas del proceso productivo;

c) que residen en la finca y/o en comunidades cercanas;

d) que no utiliza, bajo condición alguna sea en propiedad, arrendamiento, u otra

relación, más de 50 hectáreas en la Región Oriental y 500 hectáreas en la Región

Occidental de tierras independientemente del rubro productivo

Sob responsabilidade do Departamento de Registro de la Agricultura Familiar na

Dirección de Censos y Estadísticas Agropecuarias (DCEA), o RENAF constitui um

instrumento técnico e de política pública que identifica e caracteriza uma unidade

produtiva da agricultura familiar, sendo esta condição fundamental para acessar os

serviços públicos.54 No Paraguai, dentre as políticas que utilizam o RENAF como

parâmetro de identificação do seu público cita-se: Programa de Fomento da Produção de

54 Em novembro de 2014, por meio do Decreto 2.651, foi criado o Registro Nacional de Beneficiários,

que tem como objetivo registrar todos os beneficiários dos serviços do MAG, sem diferenciar se tem

perfil de agricultura familiar. O Decreto expressa que o RENAF permanecerá como parte do novo

registro e que os requisitos de elegibilidade e os critérios de exclusão do RENAF não sofrerão variações.

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Alimentos, ações de Assistência Técnica, Programa de Agricultura e Economia

Indígena, Programa Nacional de Fomento Pecuário, Compras Públicas e Aquisição de

Produtos Agropecuários.

Conforme o Informe Anual sobre os Registros Nacionais da Agricultura Familiar no

Mercosul de 2014, neste ano estavam registrados no país 170.316 unidades familiares

(quase 700 mil pessoas), as quais ocupavam uma área de 1,13 milhão de hectares. As

principais atividades produtivas desenvolvidas por estas famílias eram: agricultura,

pecuária, olericultura, floricultura e viverista.

No Uruguai, em 2006 teve inicio um primeiro esforço de delimitação conceitual da

agricultura familiar com fins de intervenção do Estado e participação nas políticas

públicas. Impulsionados pelos debates da REAF, e também pelos diálogos para a

reestruturação das políticas de desenvolvimento rural que o país vivenciava neste

momento, este esforço culminou na elaboração da Resolução 527/2008 do MGAP, a

qual apresenta uma primeira definição de “produtores familiares”: (a) no máximo 2

asalariados permanentes ó su equivalente zafral (hasta 500 jornales anuales); (b) hasta

500 ha (Indice CONEAT 100), en cualquier forma de tenencia; (c) Ingreso predial es el

principal, ó cumple su jornada laboral en la explotación; (d) reside en la explotación ó a

lo sumo a 50 Km de la misma.

Em 2014, esta definição foi atualizada pelas Resoluções Ministeriais 219 e 387, as quais

estabelecem que “produtores/as familiares são pessoas físicas que, com ou sem a ajuda

de outras, administram diretamente uma exploração agropecuária e/ou realizam uma

atividade produtiva agrária que não requer o uso direto da terra.” Esta pessoa, em

conjunto com sua família, deve cumprir (concomitantemente) os seguintes critérios:

a) realizar a exploração do estabelecimento com a colaboração de, no máximo, dois

assalariados permanentes ou seu equivalente em jornadas safrais (500 ao ano);

b) explorar até 500 hectares (CONEAT 100);

c) residir na exploração ou em uma distância menor a 50 km da mesma;

d) deter renda familiar nominal extra-estabelecimento menor ou igual a 14 BPC mensais

em media.55

Note-se que a diferença entre a nova resolução e aquela publicada em 2008 abarca

apenas o critério renda. Isto faz com que, no caso uruguaio, haja maior coerência entre

as informações recolhidas pelo Registro Nacional e aqueles presentes no Censo Geral

Agropecuário – o qual foi executado em 2011, já seguindo os parâmetros

estabelecimentos pela Resolução MGAP 527/2008. Ademais, o país possui outra

especificidade associada ao fato do recenseamento agropecuário também ser

55 Há exceções para os produtores que declaram como renda principal a olericultura, fruticultura e

viticultura, que podem contratar um equivalente de até 1250 jornadas safrais anuais. Por sua vez, para os

produtores que se declaram como apicultores, não é considerado o requisito de residência e terra,

aplicando-se um máximo de 1000 colméias.

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responsabilidade do MGAP, enquanto nos demais países existem órgãos específicos

para tal atividade, nem sempre dispostos a alterar seus mecanismos de coleta e

processamento de informações para atender às mudanças normativas. Contudo,

diferentemente do Censo, que afere estabelecimentos agropecuários, os registros

focalizam as pessoas que estão vinculadas aos estabelecimentos.

As atividades de Registro de Produtores Familiares iniciaram em 2009. Desde então,

este se tornou a “ferramenta principal que tem a institucionalidade pública agropecuária

uruguaia para a aplicação de políticas diferenciadas para a produção familiar a nível

nacional.” (Sganga, Cabrera e Gonzalez, 2013, p. 2). De acordo com Fernando Sganga,

se na origem das discussões sobre o Registro o mesmo foi impulsionado pela

possibilidade de diferenciar um segmento particular para acessar benefícios de renúncia

fiscal do Estado associados ao tema da seguridade social, atualmente este instrumento

baliza um amplo conjunto de ações públicas, sobretudo da Direção Nacional de

Desenvolvimento Rural, mas também de outros órgãos e institutos públicos: Proyecto

Uruguay Rural; Programa Ganadero; Planes de Negocio Granjeros, Eletrificación Rural,

Compras Públicas, Políticas de Seguridad Social.

Fue una resolución ministerial que definió la agricultura familiar y

después hubo una ley que consolidó para una política específica esta

definió, que es la política que motivó básicamente el registro que es

un tema impositivo, un tema de seguridad social, es el BPS, Banco de

Previsión Social, que es los aportes obligatorios que realizan los

productores y que tiene un beneficio importante de renuncia fiscal.

Eso fue lo que motivó internamente la creación y la implementación

del registro, más allá de todas las políticas diferenciales que realiza da

Dirección Nacional de Desarrollo Rural, y otras políticas de otros

institutos para las cuales el registro es la base de aplicación. La

definición es de agosto de 2008, la ley es de setiembre, y el decreto

reglamentario es de diciembre. Y nosotros empezamos a implementar

el registro en marzo de 2009. Fue un año de elaboración de todo el

proceso. (Fernando Sganga, op. cit.).

No Uruguai, o Registro consiste em uma declaração jurada a partir de um formulário

padronizado por produtor (e não pela unidade familiar de produção). Quem preenche o

formulário é o produtor, mas para que ele se aproprie do processo é necessário contar

com a colaboração das organizações sociais, que se encarregam de mobilizar os

produtores56, distribuir os formulários e auxiliar no preenchimento. Em seguida, inicia o

processo de validação dos formulários. A declaração jurada é entregue pelos produtores

a um funcionário do MGAP no território, que comprova os dados, avaliza o documento

e encaminha para validação final pelos gestores nacionais. Os formulários são

centralizados na Oficina de Registro de Produtores Familiares da DGDR/MGAP, onde

se conferem, processam e sistematizam as informações – se necessário cruzando os

56 Soma-se a isso campanhas governamentais de publicização dos registros sob o mote: “Soy productor

familiar y me registré”.

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dados com outros sistemas de cadastro57. O próximo passo que está sendo discutido

pelos gestores públicos é a possibilidade de validação social dos registros nas Mesas de

Desenvolvimento Rural estabelecidas em âmbito territorial.58

Os dados do Uruguai indicam a existência de 22.858 agricultores familiares registrados,

os quais ocupam uma área de 1,68 milhão de hectares, o que confere as propriedades

uma superfície média de 76,7 hectares. As principais atividades produtivas

desenvolvidas por estes agricultores são: pecuária, produção de leite, olericultura,

suinocultura, avicultura e fruticultura (REAF, 2014).

Quadro 5 – Informações dos agricultores familiares nos Registros Nacionais Voluntários Argentina Brasil Paraguai Uruguai

Unidades/Agricultores Registrados 86.721 5.124.328 170.316 22.858

Área ocupada (ha) - 96.007.669 1.139.674 1.687.583

Área média (ha) - 18,7 6,7 76,7

Membros das famílias 312.777 18.447.580 698.296 70.272

Tamanho médio das famílias 4 3.6 4 3.1

Fonte: Informe sobre los Registros Nacionales de la Agricultura Familiar em el Mercosur. (REAF, 2013; 2014).

Nos demais países do bloco, a implementação dos Registros encontra-se em diferentes

estágios, respondendo às condições em que os debates se desenvolvem. Como destaca

Juan Guido Vidal Acuña, do INDAP de Chile, trata-se de uma discussão intrincada na

medida em que mobiliza diferentes organizações sociais para pautar não apenas o

acesso às políticas públicas, mas também a construção da identidade sociopolítica da

agricultura familiar. O primeiro passo neste processo é a construção de um

entendimento sobre a própria necessidade do registro, o que pode soar a alguns atores

como um questionamento acerca da sua condição social. Por sua vez, outros tendem a

conceber o registro como mais um empecilho burocrático no acesso aos recursos do

Estado. Somente após construir uma base mais sólida de entendimentos políticos

consegue-se avançar para a institucionalização dos parâmetros de tipificação, algo que o

Chile vem discutindo atualmente e que poderá desembocar na alteração da Lei Orgânica

do INPAD, a qual, dentre outras providências, identifica o público beneficiário das

políticas para a agricultura familiar e campesina.

El primer paso que yo creo que es fundamental es haber puesto en la

mesa de conversación y de discusión la importancia y la pertinencia

de tener un registro. O sea, esto ya es un tremendo avance. Cuando

empezamos a conversar con las organizaciones y decimos ‘vamos a

57 Censo General Agropecuario, Censo Nacional de Población y Vivienda, Encuesta Continua de

Hogares, Registro de Empresas Agropecuarias (BPS, DGI), Base de Datos MGAP (DICOSE), e Cadastro

Nacional de Inmuebles Rurales (PADRONES).

58 Outra ação em curso é a construção do Registro Nacional de Organizaciones Habilitadas (RENAOH)

criado em 2014 a partir da Lei 19.292 de compras públicas (ver infra).

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hacer un registro porque necesitamos saber cuántos son y dónde están

y cuántos representan’, las organizaciones se sintieron cuestionadas.

[…] Pero, cuando empezamos a diseñar instrumentos, cuando

empezamos a ver los temas de los presupuestos, se dieran cuenta que

los recursos son escasos y es necesario focalizar, es necesario priorizar

y la mejor forma es identificar los sujetos de la agricultura familiar.

(Juan Guido Vidal Acuña)59.

Como destacamos até aqui, os diálogos no âmbito da REAF levaram à construção e

delimitação de critérios amplos que permitiram aos países construir seus próprios

quadros normativos, tendo como base um parâmetro comum. A partir disso foi possível

orientar a construção de uma ferramenta operacional, os Registros Nacionais

Voluntários. Em seguida, a discussão avançou para o reconhecimento mútuo destes

Registros. Em 2012, o CMC publicou a Decisão 59/2012 que institucionalizou o fato de

que cada país reconhece a autonomia dos demais para identificar os seus agricultores

familiares60 – garantido o cumprimento dos critérios da Resolução 25/2007. Trata-se de

uma decisão de suma importância tendo em vista, por exemplo, os rumos que podem

tomar algumas discussões em curso atualmente, em particular as proposições para que a

REAF impulsione instrumentos de políticas públicas finalísticas em âmbito regional.

Ao mesmo tempo, o CMC estabeleceu que todos os Estados membros devem criar

procedimentos e rotinas que permitam a troca de dados e informações sobre seus

respectivos Registros Nacionais. Desde então, uma das principais discussões do GT de

Registros consiste na utilização das bases de dados. Para além dos debates políticos que

envolvem a construção de uma definição que impacta a ação do Estado e das

organizações sociais, o GT se tornou um espaço de diálogo e compartilhamento de

experiências e aprendizagem no que se refere às questões técnicas de operacionalização

dos sistemas de informação, e às questões ético-normativas relacionadas à publicização

dos dados – sobre o que as legislações nacionais versam de maneiras diferenciadas.

Soma-se a isso a discussão sobre os usos dos instrumentos de coleta de informações.

Enquanto alguns países trabalham com Registros que abarcam informações muito

abrangentes e complexas, buscando captar dados relativamente detalhados que podem

orientar os gestores públicos no aperfeiçoamento das políticas, outros recorrem a

formulários simplificados, que abarcam não mais do que as informações necessárias

para enquadramento dos agricultores às legislações nacionais. No que tange ao

compartilhamento das informações, isto definiria o acesso a bases de dados com níveis

diferenciados de detalhamento. Ademais, questiona-se a viabilidade de atualização

contínua dos dados, haja vista que os Registros devem ser revalidados com certa

59 Juan Guido Vidal Acuña. Gestor público do INDAP – Chile. Coordenador Nacional Alterno do país

junto a REAF. Estrato de entrevista concedida em dezembro de 2014.

60 “Há uma idéia de respeito à decisão do outro. O teu procedimento interno tu decide. O que é agricultura

familiar para ti, tu decide. Tem princípios comuns. A gente já acordou os princípios. E eu aceito.” (Carlos

Mielitz, op. cit.).

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periodicidade, garantindo assim que os agricultores que já não se enquadram nos

critérios sejam excluídos do mesmo.

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9. Estrangeirização e novos mecanismos de governança da terra

Como verificado na segunda parte deste documento, várias ações já foram

empreendidas a partir do GT de Acesso à Terra e Reforma Agrária, tais como a

constituição da Rede de Instituições Nacionais Responsáveis pelas Políticas Fundiárias,

Reforma Agrária e Acesso à Terra, que atua como órgão assessor ao GT, e nesta Rede,

o “Programa de Intercâmbio de Experiências em Matéria de Políticas de Terras”; os

estudos sobre os marcos jurídicos nacionais e os instrumentos de política fundiária

utilizados em cada país; os levantamentos sobre concentração e estrangeirização da

propriedade da terra; e a realização de uma série de eventos como o Workshop sobre

Concentração, Estrangeirização e Uso da Terra, em 2011. Como também aludido

anteriormente, ao longo desta trajetória as discussões iniciais sobre reforma agrária

foram sendo complementadas pela temática da estrangeirização da propriedade da terra

e, mais recentemente, das diretrizes globais de governança fundiária.

A estrangeirização da propriedade da terra constituiu-se em um fenômeno comum a

todos os países membros do MERCOSUL, sendo o tema que teve mais densidade e que,

durante os últimos anos, mais mobilizou o GT. Nesta temática, um dos primeiros

encaminhamentos foi a realização de estudos e levantamentos sobre a situação

evidenciada em cada contexto, procurando mapear quais eram as empresas estrangeiras

envolvidas nas aquisições de terras, onde se localizavam e qual era a magnitude destes

investimentos. Embora a realização destes estudos tenha sido desuniforme entre os

Estados – seja pelas limitações na obtenção de dados, seja pela dificuldade de conciliar

estes mapeamentos com outras atividades de responsabilidade dos gestores públicos –,

os dados levantados e as discussões suscitadas no âmbito da REAF repercutiram no

conjunto dos países, desencadeando importantes mudanças institucionais.

Os resultados da REAF são em vários planos. Tem o plano

institucional do MERCOSUL: recomendações, diretrizes, decisões.

Tem o plano nacional que é a criação de novas institucionalidades,

seja de diálogo social, seja de políticas públicas. E tem um terceiro

plano que é a afirmação de temas na região que são apropriados e

produzem desdobramentos não necessariamente através da

formalização do MERCOSUL e da REAF. Estrangeirização é um

exemplo disso. Os países estavam preocupados com o tema, se

reúnem, discutem acumulam... Qual é o resultado? Se você pegar as

atas só vai ver a apresentação dos estudos sobre estrangeirização. O

resultado concreto? No Brasil, isso ajudou a pressionar para ter o

parecer da AGU. A Argentina mudou sua legislação. O Uruguai

mudou sua legislação. Para restringir a estrangeirização e aumentar o

controle no bojo de uma discussão que foi constituída na REAF.

Então, você só percebe os impactos da REAF se você observar essa

multiplicidade de desdobramentos do diálogo sobre políticas que

ocorre lá dentro. (Caio França, op. cit.).

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Na Argentina, a discussão materializou-se na institucionalização da Lei 26.737/2011

que dispõe sobre a Proteção ao Domínio Nacional sobre a Propriedade e Posse de Terras

Rurais, conhecida como “Lei de Terras”, a qual foi regulamentada pelo Decreto

274/2012. A referida Lei limita a titularidade e posse de terras rurais a estrangeiros e

prevê a determinação de sua titularidade cadastral, dominial e situação de posse,

qualquer que seja o seu destino de uso ou produção. Ademais, define as obrigações

decorrentes do domínio ou da posse da terra. A Lei estabelece, por exemplo, o limite de

15% a toda titularidade de domínio ou posse de terras rurais no território nacional,

sendo este percentual computado também sobre o território da província, município ou

entidade adminitrativa equivalente em que está situado o imóvel rural. Em nenhum caso

as pessoas físicas ou jurídicas, de uma mesma nacionalidade estranjeira, poderão

superar 30% do percentual acima mencionado na titularidade ou posse estrangeira sobre

terras rurais. Por sua vez, as terras rurais de um mesmo titular estrangeiro não poderão

superar mil hectares na zona núcleo, ou superfície equivalente, de acordo com a

localização territorial.

A Lei também criou duas instituições: i) o Registro Nacional de Terras Rurais, operado

no âmbito do Ministério da Justiça e Direitos Humanos, mas integrado ao Ministério da

Agricultura, Pecuária e Pesca; ii) o Conselho Interministerial de Terras Rurais,

presidido pelo Ministério da Justiça e Direitos Humanos e conformado pelo Ministério

da Agricultura, Pecuária e Pesca, pela Secretaria de Ambiente e Desenvolvimento

Sustentável da Chefia de Gabinete de Ministros, pelo Ministério da Defesa e pelo

Ministério do Interior, contando ainda com a participação dos representantes das

províncias. Posteriormente, por meio da Decisão Administrativa 659/2012, a Direção

Nacional de Terras e Unidades Agropecuárias propôs ao Conselho Interministerial de

Terras Rurais o estabelecimento de órgãos equivalentes regionais.

Por sua vez, o Decreto 274 impôs às províncias a obrigação de comunicar à autoridade

correspondente a superfície total de seus territórios, assim como de seus departamentos,

municípios ou divisões políticas equivalentes, discriminando as terras rurais e urbanas.

As províncias também devem informar, de acordo com o que surja dos organismos

provinciais competentes, a totalidade dos estabelecimentos rurais sob titularidade de

pessoas físicas ou jurídicas estrangeiras, ou em posse de estrangeiros (FIDA, 2013).

As discussões sobre estrangeirização também repercutiram no Uruguai. A ação mais

expressiva neste país refere-se à institucionalização da Lei 19.283/2014, a qual proíbe a

compra ou a posse de imóveis rurais e explorações agropecuárias a empresas

estrangeiras ou instaladas no país nas quais participam, direta ou indiretamente, Estados

estrangeiros.

Além disto, Silva (2014) e FIDA (2013b) acentuam que, nos últimos anos, o Instituto

Nacional de Colonização (INC) uruguaio realizou mudanças institucionais que

ampliaram as possibilidades de aquisição de terras por parte desta organização

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governamental.61 Ambos os textos relatam, como elucidativo deste processo, a

aquisição de 2,8 mil hectares de uma família brasileira localizada na fronteira com o Rio

Grande do Sul, sendo que estas terras seriam posteriormente compradas por um fundo

internacional americano-suíço. A aquisição pública destinou a terra a assalariados rurais

da cana de açúcar em Bella Unión e assalariados pecuaristas da zona de Tomás

Gomensoro e de Artigas. Concomitantemente, o INC também vem desenvolvendo

políticas com a finalidade de promover o acesso à terra, como o Programa de

Estabilidad del Lechero e Políticas Creditícias para os colonos e colonas.

No Brasil, as discussões sobre estrangeirização ecoaram na revisão de normativos

estabelecidos pela Advocacia Geral da União (AGU). Em 1998, um parecer da AGU

(GQ 181/1998) equiparou a empresa brasileira com maioria de capital social estrangeiro

à empresa nacional, eliminando a obrigatoriedade de autorização do INCRA para as

aquisições de terras por essas empresas. Conseqüentemente, durante a vigência desta

norma, o Estado brasileiro perdeu o controle das aquisições efetuadas por empresas

estrangeiras, as quais utilizavam empresas brasileiras como intermediários para adquirir

imóveis no país (Silva, 2014a). Em virtude do avanço deste fenômeno, o Parecer AGU

01/2010 revogou o anterior e equiparou a empresa brasileira com maioria de capital

social estrangeiro à empresa estrangeira, restituindo a obrigatoriedade de autorização do

INCRA para as aquisições de terras por estas empresas. Ademais, recentemente, a

Corregedoria Nacional de Justiça estabeleceu o Provimento 43/2015 determinando que

os arrendamentos de terra realizados por estrangeiros62 deverão ser formalizados por

escritura pública e autorizados pelo INCRA e, ainda, trimestralmente, os Oficiais de

Registro de Imóveis deverão remeter às Corregedorias Gerais de Justiça e ao INCRA

informações sobre os atos praticados relativos aos arrendamentos de imóveis por

estrangeiros.

Complementarmente aos pareceres da AGU, no Brasil também foram estabelecidas a

Instrução Normativa 70/2011 do INCRA e a Instrução Normativa Conjunta 01/2012

entre MDA, MAPA, MDIC, MTUR e INCRA. A partir delas foram constituídos alguns

limites para a aquisição de terras por estrangeiros. À título de exemplo, a aquisição ou

arrendamento de imóvel rural com área compreendida entre três e 50 módulos fiscais de

exploração indefinida, por pessoa natural estrangeira, dependerá de autorização do

INCRA. Já quando se tratar de imóvel rural com área até três módulos de exploração,

mas situado em faixa de fronteira ou em área considerada indispensável à segurança

nacional, a realização do arrendamento ou da aquisição dependerá de autorização da

61 De acordo com FIDA (2013a), as aquisições de terras pelo INC podem ocorrer por meio de três formas:

a) compra direta de ofertas realizadas no mercado em geral; b) expropriação; e, c) por meio do Artigo 35,

que define que todos campo com mais de 500 hectares (CONEAT 100), em processo de compra e venda,

tem que ser oferecido em igual preço e condições ao INC, sendo que a negociações com demais

interessados somente pode ocorrer depois que o Instituto manifestar o não interesse sobre as terras.

62 Incluídos aqui: a) pessoa física estrangeira residente no Brasil; b) pessoa jurídica estrangeira autorizada

a funcionar no Brasil; c) pessoa jurídica brasileira da qual participe, a qualquer título, pessoa estrangeira

física ou jurídica que resida ou tenha sede no exterior e possua a maioria do capital social.

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Secretaria Executiva do Conselho de Defesa Nacional. Outras medidas asseguram que a

pessoa natural estrangeira somente poderá adquirir ou arrendar área superior a 50

módulos de exploração indefinida, em área contínua ou descontínua, mediante

autorização do Congresso Nacional; que a aquisição ou arrendamento de imóvel rural

por pessoa jurídica estrangeira ou pessoa jurídica brasileira equiparada à pessoa jurídica

estrangeira (Lei 5.709/1971) apenas poderá exceder 100 módulos de exploração

indefinida, em área contínua ou descontínua, mediante autorização do Congresso

Nacional; que o total de área pertencente a estrangeiros não poderá ultrapassar 25% da

superfície territorial do município de localização do imóvel rural pretendido; e, que as

pessoas de mesma nacionalidade poderão ser proprietárias, em um mesmo município,

de até 10% da superfície territorial deste.

No bojo das discussões sobre estrangeirização, mas também respondendo à

implementação das Diretrizes de Governança, outras medidas também tem aprimorado

a capacidade de atuação do Estado. Dentre as mais recentes, em 2013, o governo criou

um Grupo de Trabalho Interministerial para a Governança Fundiária, o qual deve

coordenar e integrar ações e mudanças institucionais e legais. No mesmo ano também

foi criado o Sistema Nacional de Controle de Aquisição de Terras por Estrangeiros e,

um ano depois, iniciou-se a implantação do Cadastro eletrônico de Imóveis Rurais.

No Paraguai, o tema da estrangeirização e suas repercussões institucionais foram mais

precoces que nos demais países, o que faz sentido em vista da própria pressão exercida

pelo avanço dos chamados “brasiguaios” – agricultores brasileiros que passaram a

ocupar a zona de fronteira do país vizinho, geralmente para implantar monocultivos

agrícolas de grandes extensões. No entanto, em vista das crises institucionais que o país

vivenciou, ainda não é evidente que os esforços tiveram efeitos significativos para

minimizar o fenômeno (Baquero e Gomes, 2014).

Atualmente, a Lei 2.531/2004 e a Lei 2.532/2005 são os principais instrumentos

institucionais existentes no país. A primeira, dentre outras medidas, definiu que os

beneficiários de terras destinadas aos programas de reforma agrária ou colonização

deveriam ser nascidos no Paraguai. De acordo com Galeano (2012, p. 411) “o objetivo

prioritário consistiu em parar o acesso a essas terras por parte de estrangeiros

nacionalizados, que em sua grande maioria eram brasileiros”. Por sua vez, a segunda lei

estabelece uma “zona de segurança fronteiriça” na franja de 50 km adjacentes às linhas

de fronteira terrestre e fluvial dentro do território nacional, proibindo investimentos

estrangeiros. Ademais, segundo esta norma, salvo mediante autorização por Decreto do

Poder Executivo, fundadas em razão de interesse público, os estrangeiros oriundos de

qualquer um dos países limítrofes da República Paraguaia, ou de pessoas jurídicas

integradas maiormente por estrangeiros oriundos de qualquer dos países limítrofes, não

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poderão ser proprietários, condôminos ou usufrutuários de imóveis rurais63 (Baquero e

Gómez, 2012).

De acordo com as entrevistas realizadas, embora os avanços notórios em termos de

regulamentação do mercado de terra nestes quatro países, a construção de uma decisão

comum do MERCOSUL tornou-se limitada pelas dificuldades que ações mais incisivas

encontrariam no GMC, sobretudo pelo fato de que parte importante das aquisições de

terras por estrangeiros é oriunda de investimentos de empresas e indivíduos integrantes

do próprio bloco. Mesmo assim, os debates da REAF subsidiaram os países a

estabelecer limites institucionais à estrangeirização, sobretudo à apropriação das terras

por parte de empresas multinacionais estrangeiras e por parte de Estados terceiros (e

seus fundos soberanos), os quais, nos últimos anos, empreenderam uma corrida global

por terras com vistas a ampliar lucros especulativos e/ou assegurar abastecimento

alimentar e provimento de matéria-prima industrial.64

Além dos avanços institucionais levados à cabo individualmente por cada país, os

diálogos políticos sobre o tema da estrangeirização também abriram caminho para

avançar na atual discussão sobre governança da terra, a qual é pautada pelas “Diretrizes

Voluntárias para uma Gestão Responsável da Posse da Terra, Pescas e Florestas, no

Contexto da Segurança Alimentar Nacional” (DVGT). As Diretrizes constituem um

instrumento normativo que propõe princípios e orientações fundamentadas em práticas

responsáveis internacionalmente consagradas. Elas foram aprovadas em maio de 2012

pelo Comitê Mundial de Segurança Alimentar (CSA), órgão assessor das Nações

Unidas. Mas, mais do que o resultado dos esforços dos governos, as DVGT são

particularmente relevantes porque foram construídas por meio de um amplo processo de

consulta que envolveu organizações da sociedade civil, ONG’s, associações de

agricultores e o setor privado de diversas regiões do mundo.

Hoje o documento representa o principal instrumento internacional normativo, de

aplicação voluntária, sobre questões fundiárias, concensuado por todos os países

membros das Nações Unidas. Ademais, de acordo com França e Marques (2015),

considerando a atual conjunção de crises globais (alimentar, econômico-financeira,

ambiental e energética) e a ascensão dos temas da segurança alimentar e da garantia do

direito humano à alimentação na agenda multilateral,

[...] é possível compreender as DVGT como parte do processo de

renovação da agenda internacional e de revalorização do

multilateralismo nos marcos de um ativismo crescente de países

63 A Lei 2.647/2005 afirma que estas “disposiciones no afectarán los derechos adquiridos debidamente

comprobados antes de la vigencia de esta Ley. Tampoco podrán invocarse contra los derechos sucesorios

de los ciudadanos oriundos de los países limítrofes, cuando los mismos versen sobre inmuebles o

sociedades incursos en la mencionada zona”.

64 Para informações recentes sobre o fenômeno do “global land grabbing” sugerimos consultar The

Journal of Peasant Studies, v. 42, n. 3-4, 2015.

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emergentes e de organizações da sociedade, de busca por uma nova

ordem internacional. Renovação que implica, também, na crescente

incorporação de temas como a segurança alimentar, a promoção da

autonomia e da igualdade das mulheres, os direitos das populações e

comunidades tradicionais e a conservação da biodiversidade, entre

outros. As DVGT promovem a reinserção de antigos temas agrários

na agenda política mundial, agora por meio da afirmação expressa dos

seus vínculos profundos com os direitos humanos

No caso da América do Sul, o processo de consulta regional foi protagonizado pela

REAF a partir de um evento realizado em Brasília em 2010, sendo que a consulta abriu

uma nova agenda de trabalho para a organização. Vicente Marques, gestor público do

Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) do Brasil, analisa que,

vencida a etapa de construção e de consensualização das Diretrizes, necessita-se agora

avançar na implementação das mesmas nos países. Para tanto, dada a amplitude das

questões abordadas, a REAF decidiu iniciar o trabalho a partir de alguns pontos

principais e, a partir daí, avançar e ampliar progressivamente:

Vamos pegar as Diretrizes, primeiro, pelo tema dos cadastros e

registros, que é isto que dá a base para a aplicação de todas as

políticas e, em seguida, vamos ver as Diretrizes em relação às

mulheres e jovens, e assim, vamos avançando em grupos que

mobilizam. Por isso a gente atua muito em conjunto com o GT de

Gênero, porque a gente via isto: para o tema das Diretrizes deslanchar,

tanto no Brasil como em outros países, tem que envolver grupos que

peguem a bandeira como mobilização, alguém que diga assim:

Queremos que as Diretrizes sejam aplicadas. (Vicente Marques).65

Conforme Silva (2014), foi sobretudo a partir das discussões na XVI REAF (Minas,

Uruguai, dezembro de 2011) que o GT de Acesso à Terra e Reforma Agrária decidiu

orientar as Seções Nacionais a realizarem discussões específicas sobre o documento das

DVGT. O debate teve seqüência na XVII REAF (Buenos Aires, junho de 2012), quando

os países apresentaram relatos sobre o processo de implementação das mesmas em cada

contexto. Como encaminhamento do encontro, a Secretaria Técnica sistematizou os

aportes nacionais e elaborou um Informe Regional sobre os avanços apresentados em

cada perspectiva, incorporando ainda uma perspectiva de gênero66.

Na XVIII REAF (Caxias do Sul, Brasil, dezembro de 2012) foi apresentada a primeira

parte do relatório sobre Posse Comunitária Indígena e Afrodescendente da Terra nos

países do MERCOSUL Ampliado. O texto destaca a relação entre os sistemas

65 Vicente Marques. Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). Estrato de

entrevista concedida em março de 2015.

66 Segundo Castro (2015), a equidade de gênero é um princípio norteador das Diretrizes, considerado

essencial para sua implementação bem sucedida pelos países. Segundo a autora, apesar de não haver uma

seção no documento especialmente dedicada à questão de gênero, esse princípio permeia toda a

formulação das Diretrizes. Tanto é que a própria FAO publicou, em 2013, o Guia Temático “Gobernar la

tierra en beneficio de las mujeres y los hombres: una guía para apoyar la gobernanza de la tenencia de la

tierra responsable y equitativa en cuanto a género”.

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comunitários de posse e gestão da terra e os principais marcos normativos

internacionais sobre o tema – as DVGT e a Convenção 169 da OIT sobre Povos

Indígenas e Tribais. A segunda parte do estudo, que abarca matrizes de leis, políticas e

programas relevantes, ficou a cargo das Seções Nacionais. Na mesma ocasião, discutiu-

se ainda a participação dos países no processo de consulta regional para elaboração de

princípios para Investimentos Agrícolas Responsáveis (França e Marques, 2015).

Na XX REAF (Caracas, dezembro de 2013) iniciou-se a organização de uma ação

regional voltada para o acompanhamento da implementação das Diretrizes. A partir daí

a REAF recomendou às Seções Nacionais que comparassem os objetivos expressos nas

DVGT e as políticas e os marcos jurídicos já existentes nos estados, na perspectiva de

construir um instrumento matriz para o intercâmbio e de compor uma visão regional

sobre o tema. Cabe notar que, embora possua dimensão mundial, as Diretrizes

enfatizam a necessidade das suas orientações serem integradas nas estratégias e políticas

nacionais de cada país (França e Marques, 2015).

Ainda neste tema cabe destacar a realização, em agosto de 2014, da Oficina “As

Diretrizes Voluntárias sobre Governança Responsável da posse da Terra, a Pesca e as

Florestas e as metas para sua implementação”, organizada pelo MDA-Brasil, FAO e

REAF, cujos objetivos foram: aprofundar o conhecimento sobre os conteúdos, alcances

e aplicação das DVGT; potencializar o intercâmbio e reconhecimento entre os países da

região sobre os processos de implementação; conhecer e debater a visão da sociedade

civil sobre o tema; conhecer experiências de incorporação das Diretrizes por empresas;

contribuir para o fortalecimento da abordagem das Diretrizes pelo GT de Acesso à Terra

e Reforma Agrária e pelas Seções Nacionais da REAF. Participaram da Oficina

representantes de governo e de organizações sociais de Argentina, Bolívia, Brasil,

Chile, Equador, Paraguai, Uruguai e Venezuela, além de membros da Secretaria

Técnica da REAF e técnicos da FAO Regional América Latina e Caribe. 67

Atualmente, a ação da REAF tem se voltado, primeiramente, à consolidação das DVGT

no âmbito regional, buscando fortalecer sua implementação a partir de uma ação mais

incisiva do MERCOSUL como bloco, para além dos esforços que os países já vêm

empreendendo individualmente. Para tanto, cabe um esforço de difusão das Diretrizes,

mas também de aprimoramento dos sistemas de monitoramento regional dos

dispositivos que estão sendo criados pelos países. Soma-se a isso a intenção de

potencializar o tema na agenda de discussões da CELAC e da UNASUL. Ademais,

espera-se que, a partir do aprimoramento da experiência regional, a REAF possa

contribuir com as discussões no Comitê Mundial de Segurança Alimentar (CSA).

67 Ampliando a discussão para o contexto amazônico, em 2014 também foi realizado em Manaus (Brasil)

o Seminário Internacional “Experiências de Regularização Fundiária na Região Amazônica”, o qual

contou com a participação de representantes de governos do Brasil, Colômbia, Equador, Bolívia,

Venezuela e Peru, bem como dos movimentos sociais da COPROFAM, Via Campesina, Alianza e da

Secretaria Técnica da REAF.

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10. A construção da igualdade de gênero nas políticas para a agricultura

familiar

Este capítulo discute os avanços que foram processados no âmbito regional a partir dos

diálogos políticos para a promoção da igualdade de gênero na agricultura familiar.

Estimulados pelos debates em curso nos âmbito regional, mas também no contexto

global68, ao longo da última década, os países do bloco investiram na construção de

institucionalidades e instrumentos de políticas públicas que tem por objetivo alterar os

fatores que determinam condições desiguais entre homens e mulheres no acesso às

políticas para a agricultura familiar (Namdar-Irani, Parada e Rodríguez, 2014).

Desigualdades que repercutem no controle dos fatores de produção, em particular da

terra; no acesso ao crédito rural e às políticas de capacitação; e mesmo nos bloqueios

que se impõem à participação nos espaços sociais onde são construídas as políticas de

desenvolvimento rural.

Atualmente, alguns países contam com órgãos ou assessorias específicos para coordenar

as estratégias de promoção da igualdade de gênero no meio rural. Eles foram criados a

partir da necessidade premente de articular ações que conferem ao Estado maior

capacidade para atuar contra o quadro histórico de discriminação de gênero que marca

profundamente as dinâmicas socioculturais das sociedades latino-americanas e, em

particular, os espaços rurais. A criação destes órgãos institucionalizou uma agenda e

abriu a possibilidade de ampliar o escopo da ação pública. As organizações sociais das

mulheres rurais viram reconhecidas suas demandas e agora sabem a quem elas devem

ser dirigidas. Mais do que isso, passaram a reconhecer um parceiro institucional para

suas lutas por direitos.

O Paraguai conta, desde 2002, antes mesmo da criação da REAF, com uma Direção de

Gênero e Juventude Rural (DGJR), vinculada à Direção Geral de Planejamento do

Ministério de Agricultura y Ganaderia (MAG). O foco de atuação do órgão volta-se à

“transverzalización del enfoque de género y la variable juventud rural en las estrategias,

programas, proyectos y acciones específicas a ser ejecutadas tanto en el corto, mediano

y largo plazo, para la incorporación efectiva del Desarrollo Sostenible” (Paraguai,

2014). No que diz respeito mais especificamente às questões de gênero, a DGJR abriga

um departamento que se ocupa de promover planos, programas e projetos que visam

garantir a igualdade de oportunidades para as mulheres rurais. Dentre as principais

ações, está a parceria com a Secretaria da Mulher da Presidência da República (SMPR),

a partir da qual se criou uma equipe técnica interinstitucional de gênero abarcando

68 Anteriormente à criação da REAF, no contexto internacional já se percebia uma série de avanços nesta

temática. Um dos primeiros marcos globais é a Convenção de Cedaw sobre a eliminação de todas as

formas de discriminação contra a mulher, realizada em 1975. Outra referência recorrente é a Conferência

Mundial sobre Mulheres, realizada em 1995 na cidade de Beijing.

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diferentes órgãos públicos (INDERT; INCOOP, DEAg, DGP, DEA, INFONA,

DINCAP, VMG, CAH, DCEA).

Foi a partir de uma parceria entre a DGJR, a SMPR e a FAO que se produziu o projeto

“Asistencia en políticas de participación de la mujer para el desarrollo rural y la

seguridad alimentaria en Paraguay”. O projeto atuou na elaboração e implementação de

uma política para as mulheres rurais, no marco do III Plano de Igualdade de

Oportunidades entre Mulheres e Homens (2008-2017), cujo objetivo “es promover la

incorporación de la perspectiva de género en la elaboración, coordinación, seguimiento

y evaluación de las políticas públicas a través de instrumentos normativos eficientes y

acciones dirigidas a eliminar todas las formas de discriminación de género, así como la

igualdad de oportunidades y resultados.” (Paraguai, 2008).

Soma-se a isso um conjunto mais amplo de projetos de cooperação que, mesmo não

focalizando a questão de gênero como eixo prioritário, procura incorporar o princípio de

transversalidade de gênero, como foi o caso do Projeto Paraguai Rural (PPR), executado

entre 2007 e 2013 a partir de uma parceria com o Programa FIDA Mercosul – o que

poderá se repetir no Projeto “Mejoramiento de ingresos de la agricultura familiar

campesina e indígena en departamentos de la región oriental del Paraguay”

(PROMAFI).

No Brasil, país que inicialmente capitaneou a discussão sobre gênero na REAF, o MDA

conta atualmente com uma Diretoria de Políticas para Mulheres (DPM), estrutura

responsável por operacionalizar ações de organização produtiva, fortalecimento da

autonomia e promoção da cidadania para as mulheres rurais. Instituída há poucos anos,

a DPM possui, contudo, um histórico mais antigo (Hora, Ribeiro e Butto, 2010). Em

2001, antes da criação da REAF, já havia no MDA um Programa de Ações Afirmativas,

o qual deu origem ao Programa de Promoção de Igualdade de Gênero, Raça e Etnia

(PPIGRE) e, posteriormente, à Assessoria Especial de Gênero, Raça e Etnia (AEGRE).

Esta assessoria trabalhou para vincular políticas para as mulheres rurais com ações mais

amplas de inclusão e reconhecimento de diferentes segmentos sociais. Integrando ações

de vários órgãos governamentais e organizações sociais, a AEGRE dedicou-se ao

combate à desigualdade social, incluindo aquelas de gênero, mas não apenas. Ela se

tornou, ao longo do tempo, o mecanismo impulsionador da criação de uma diretoria

específica, que já não seria mais de políticas de gênero, mas para as mulheres rurais.69

Os principais avanços que foram produzidos neste período estão associados à ampliação

do acesso das mulheres à terra, incluindo a obrigatoriedade da titulação conjunta em

assentamentos rurais; a incorporação de um enfoque de gênero na normatização da

assistência técnica para assentados da reforma agrária, recomendando ainda a

69 A criação de uma Diretoria de Mulheres Rurais responde à compreensão específica construída no

âmbito brasileiro acerca das distinções necessárias entre uma abordagem de gênero e outra que prioriza o

empoderamento das mulheres.

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capacitação dos extensionistas para ações de inclusão produtiva das mulheres; a

expansão do programa de documentação da mulher trabalhadora rural como um passo

importante para garantir direitos e o acesso a inúmeras outras políticas públicas

(assistência social, benefícios previdenciários, crédito rural, reforma agrária etc.); o

incentivo à participação e inserção das trabalhadoras rurais no processo de gestão social

dos territórios rurais; a exigência da Declaração de Aptidão ao PRONAF (DAP) ser

feita obrigatoriamente no nome da mulher e do homem, nos casos de famílias

constituídas por um casal; a criação de uma linha de financiamento independente das

demais, voltada especificamente para as agricultoras familiares (PRONAF Mulher); o

incentivo a estudos e pesquisas por meio do Prêmio Margarida Alves Estudos Rurais e

Gênero, entre outros (Butto, 2012; 2006).

Na Argentina e no Uruguai nota-se um nível menor de institucionalização desta

discussão. Até o momento, não foi criado um órgão específico, atuando com respaldo

em uma normativa governamental, para tratar das políticas de gênero no meio rural.

Entretanto, ambos os países contam com quadros técnicos que atuam em funções de

assessoria e consultoria para a implementação de políticas com enfoque de gênero.

Na Argentina, o Conselho Nacional da Mulher não incorpora ações específicas para a

área rural. No entanto, existe uma Área de Inclusão e Equidade Rural, abarcando

questões de gênero, juventude e povos originários, no interior da Secretaria de

Agricultura Familiar do MAGyP. Ademais, além das ações do próprio Programa de

Gênero impulsionado regionalmente pela REAF, um dos principais eixos articuladores

das ações do MAGyP está associado ao Projeto Mujer, o qual remonta ao final da

década de 1980, quando era executado pela então Direção de Desenvolvimento

Agropecuário da Secretaria de Agricultura e Pesca. Inicialmente voltado às províncias

do noroeste argentino, o Projeto ganhou expressão nacional, atuando a partir da ideia de

“incorporar la perspectiva de género en los programas de desarrollo rural para lograr un

mejoramiento de la calidad de vida de las mujeres y una inserción más equitativa.” Para

tanto, articula ações de capacitação e organização produtiva; formação de técnicos

governamentais; estudos técnicos para sistematização de informações sobre a situação

das mulheres no meio rural; coordenação de atividades entre diferentes programas e

projetos nacionais e provinciais dirigidos às mulheres rurais, e incremento da

participação das mulheres nos espaços públicos, incluindo o fortalecimento das

organizações e grupos de mulheres campesinas.70

70 Neste sentido, cabe destacar a criação do MUCCAR (Mujeres Campesinas y Aborígenes Argentinas) e,

mais recentemente, da Mesa Nacional de Mujeres Campesinas, Trabajadoras Rurales y de los Pueblos

Originarios de la Argentina, o qual se tornou um espaço privilegiado de debate sobre as políticas de

gênero no espaço rural. Além do MUCAAR, compõe esse espaço organizações como a Federação das

Organizações Nucleadas da Agricultura Familiar (FONAF); o Movimento Nacional Campesino Indígena

– Via Campesina (MNCI); o Centro de Promoción Rural (CEPRU); a Frente Nacional Campesino;

Cooperativa Puna; Frente Agrario del Movimiento Evita; Alianza de Mujeres Rurales (AMR); Federación

de Tierra, Vivienda y Habitat (FTV); Movimiento Campesinas Organizadas (Ferro, 2014).

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No Uruguai as ações foram capitaneadas pela coordenação local do Programa Regional

de Gênero, a qual se constituiu como ente interlocutor desta pauta perante o MGAP, a

partir do que se desenvolveu uma série de ações de capacitação para os gestores

públicos e organizações sociais. Mais recentemente, com a expansão da atuação da

Direção Geral de Desenvolvimento Rural (DGDR), o tema ganhou novo impulso, ainda

que sem uma institucionalidade consolidada. Por um lado, buscou-se ampliar o quadro

de pessoal técnico para trabalhar com políticas de gênero. Em 2013, a DGDR contratou

um assessor em crédito, gênero e juventude rural. Por outro lado, dirigiram-se esforços

para ampliar a capacidade de ação das organizações sociais, para o que se destaca a

atuação da Red de Grupos de Mujeres Rurales del Uruguay, associação civil formada já

no começo dos anos 1990 e que começa a ganhar fôlego renovado a partir dos trabalhos

de organização produtiva da agricultura familiar.

Há que se destacar ainda alguns avanços expressivos levados à cabo em outras duas

frentes. A primeira tem a ver com o esforço coordenado de inclusão de mulheres dentre

o corpo técnico de execução dos principais programas de desenvolvimento rural

implementados pela DGDR em parceria com diversas entidades, em especial o

Programa FIDA Mercosul. Este é o caso do Programa Uruguai Rural, do Programa de

Produción Responsable e do Programa Ganadero (Ferro, 2014). A segunda frente está

associada com as mudanças institucionais que começam a ser intensificadas neste

período. Aqui se destaca, por exemplo, a recente aprovação, pelo Instituto Nacional de

Colonización (INC), da co-titularidade das terras arrendadas pelo órgão. Como destaca

publicação do Instituto:

Si bien el artículo n°.7 de la Ley 11.029, que define las distintas

formas de colonización, expresa que el régimen de tenencia será

“individual cuando la explotación del predio se realice por el colono y

su familia”, el Directorio del INC entiende que “el co-arrendamiento

representa un avance hacia la igualdad de género y refuerza la noción

de responsabilidad familiar compartida”. Así mismo, se da

cumplimiento por parte de la institución del compromiso realizado en

ámbitos nacionales, con el Instituto Nacional de la Mujer (Inmujeres)

del Ministerio de Desarrollo Social; y regionales como la Reunión

Especializada de Agricultura Familiar del Mercosur.71

No Chile, em 1990 foi criado o Serviço Nacional da Mulher (SERNAM), cuja

finalidade consiste em promover a igualdade de oportunidades entre homens e

mulheres. A partir deste órgão decorreu a construção do Plano de Igualdade de

Oportunidades para as Mulheres, apresentado em 1994, e que marca o inicio efetivo dos

esforços de transversalização de uma abordagem de gênero nas políticas públicas do

país. Três anos depois, em 1997, aprovou-se o documento Políticas de Igualdade de

Oportunidades para a Mulher Rural, elaborado com a participação das organizações de

mulheres camponesas. Em 2002, no marco das políticas de modernização da gestão

71 Fonte: El INC prioriza la co-titualaridad de la tierra a partir del 2015.

http://www.colonizacion.com.uy/content/view/3223/36/ Acesso em 26 de maio de 2015.

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pública chilena, o governo também criou o Sistema de Equidade de Gênero, coordenado

pelo Ministério da Fazenda, mas validado pelo SERNAM. O foco deste sistema é a

melhoria das condições de acesso às políticas públicas pelas mulheres.

No caso específico das políticas chilenas de desenvolvimento rural, a partir de 2002 o

INDAP também passou a atuar com um conjunto de ações no seio do Plano de

Igualdade de Oportunidades. Uma década depois, em 2012, os diagnósticos realizados

pelo Instituto revelaram um crescimento significativo da participação das mulheres nas

políticas de crédito, seguro rural, irrigação, sustentabilidade ambiental dos solos

agrícolas, assistência técnica, formação e capacitação. Para 2015, o Plano de Trabalho

relativo às medidas para a igualdade de gênero balizam-se por três grandes objetivos:

analisar estratégias que diminuam as barreiras e as lacunas de gênero derivadas da

dualidade entre unidade de negócio e unidade doméstica; reduzir as barreiras e lacunas

de gênero associadas à menor dotação de recursos produtivos das mulheres agricultoras;

diminuir a incidência de barreiras no processo de provisão dos serviços do INDAP que

invisibilizam as mulheres rurais (Chile, 2014).

Como é possível perceber acima, apesar das diferentes condições institucionais, em

todos os países nota-se o empenho para aprimorar a ação do Estado – em parceria com

os movimentos sociais. Estimulada pela REAF, a ideia de “transversalidade de gênero”

como instrumento de integração das políticas públicas tornou-se inclusive objeto de

uma diretriz aprovada pelo CMC (Recomendação 68/2008), a qual recomenda aos

países do bloco a adoção da mesma para o conjunto das políticas para a agricultura

familiar; a promoção de ações afirmativas específicas para as mulheres; a atenção

especial aos aspectos de raça, geração e etnia; a garantia do acesso à terra, ao crédito e

aos mercados pelas mulheres; e o estímulo à participação social nos processos de

implementação de políticas que garantam a igualdade de gênero.

As recomendações não possuem caráter obrigatório para os Estados. Portanto, a

incorporação da transversalidade de gênero aos ordenamentos jurídicos nacionais é

opcional. Mas a aprovação das diretrizes para a igualdade de gênero foi mais um passo

importante no processo de afirmação institucional das políticas para as mulheres rurais.

Em seguida veio a construção de um Programa Regional de Fortalecimento Institucional

de Políticas de Igualdade de Gênero na Agricultura Familiar. Foi a partir dele que a

REAF e, particularmente o GT de Gênero, iniciou uma ação coordenada, sistemática e

militante de diálogo entre governos e sociedade civil com vistas a incutir efetivamente a

incorporação pelos Estados Membros e Associados de uma abordagem de gênero nas

políticas para a agricultura familiar. Como resumem Karla Hora e Emily Baldassari,

El Programa propuso fortalecer la institucionalidad y las políticas de

Género para la Agricultura Familiar del Mercosur, en el marco de las

instituciones con competencias en el tema, fundamentalmente los

Ministerios de Agricultura y Desarrollo Agrario de la Región para

generar una estrategia de inserción efectiva de la perspectiva de

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género en las políticas públicas para el Desarrollo Rural y la

Agricultura Familiar en la Región. (Hora e Baldassari, 2014, p. 13).

O “Programa de Gênero” foi construído com vistas a potencializar as ações dos Estados

no que diz respeito às suas políticas para a igualdade de gênero. Mas, diferentemente do

que pode parecer à primeira vista, isso não se desenvolveu apenas a partir do

intercâmbio de conhecimentos entre os gestores públicos, como é freqüente em outros

processos de cooperação internacional. Não é este o espírito da REAF. Ancorado em

um conjunto específico de ações, sobretudo estudos técnicos72 e capacitações em âmbito

nacional e regional, o Programa tornou-se mais propriamente uma grande plataforma de

diálogos políticos regionais. Além dos governos, esta plataforma contou com a

participação ativa da sociedade civil. Prova disso é que os intercâmbios regionais

envolveram mais representantes das organizações da agricultura familiar do que

gestores públicos (Hora e Baldassari, 2014).

Esta característica do Programa de Gênero ratifica uma particularidade do processo de

construção das políticas públicas para a agricultura familiar na REAF, a saber, a ativa

participação da sociedade civil. Não precisaria ser assim. Tendo em vista a fragilidade

do corpo técnico que opera cotidianamente as políticas públicas, por que não focalizar

os parcos recursos do Programa para a criação de uma burocracia altamente qualificada?

A negativa a esta questão está associada ao novo modelo de ação pública que se busca

estimular para o desenho das políticas de desenvolvimento rural. Não interessa a REAF

um modelo de Estado altamente centralizado, mesmo que com elevados índices de

eficiência e eficácia na execução das políticas. De outro modo, o que está em jogo é o

empoderamento de um leque mais amplo de atores sociais – neste caso, das mulheres

rurais – para que os mesmos tenham condições de construir as trajetórias de

desenvolvimento que valorizam e tem razão para valorizar.

No Brasil, o governo sempre propôs as Seções Nacionais no mesmo

formato que é hoje, e trazia as organizações de mulheres e demais

organizações. O que acontecia em outros países? De modo geral, não

havia uma institucionalidade como tinha aqui, com uma assessoria

específica que pautava e criava uma agenda. A ideia era ter um

Programa para que os demais países pudessem, através de um recurso

que não era institucionalizado do governo, fomentar e desenvolver um

trabalho de organização que a gente desenvolvia aqui com o

orçamento da União. (Renata Leite).73

O foco do Programa centrou-se nas experiências de organização das mulheres rurais

para atuar na construção das políticas. Dentre os muitos obstáculos que se interpõem à

72 Dentre os estudos produzidos no âmbito do Programa destacam-se os seguintes temas: assistência

técnica e extensão rural; organizações produtivas das mulheres rurais; acesso à terra; comercialização;

financiamento; políticas públicas com perspectiva de gênero (Hora, Baldassari, Quiroga, 2014).

73 Renata Leite. Coordenadora geral de Organização Produtiva e Comercialização da Diretoria de

Políticas para Mulheres Rurais do Ministério do Desenvolvimento Agrário (DPMR/ MDA). Estrato de

entrevista concedida em fevereiro de 2015.

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redução da desigualdade de gênero, alguns estão associados aos bloqueios à

participação cidadã das mulheres. Como já afirmamos acima, trata-se de uma luta

cotidiana por reconhecimento e direitos. Algo que não pode ser simplesmente ofertado

pelo Estado, mas que demanda uma mudança no olhar de toda a sociedade acerca das

relações de gênero. Não é novidade que os espaços rurais mantêm-se profundamente

marcados pelo domínio masculino. Os exemplos abarcam desde a organização do

trabalho agrícola no seio dos grupos familiares, até o controle das organizações sociais e

fóruns públicos.

No âmbito do trabalho agrícola, a participação das mulheres é frequentemente

secundarizada, ainda que suas atividades sejam tão ou mais intensas e desgastantes que

aquelas exercidas pelos homens. Esta é uma das conclusões de Brumer e Weisheimer

(2006) na conclusão do livro que reuniu uma série de estudos sobre as condições das

mulheres trabalhadoras rurais nos países do MERCOSUL. Segundo os autores,

Os relatórios nacionais apontam que em todos os países há uma

subestimação da participação da mão de obra feminina no volume da

produção e da ocupação no meio rural. A invisibilidade do trabalho

das mulheres refletida nas estatísticas decorre de sua desvalorização

no contexto das relações sociais de gênero, marcadas pela distribuição

desigual de poder e dominação. Este viés de gênero perpassa várias

dimensões da realidade social, inclusive a do campo de investigação

analítica, que pode ser percebido pela construção da oposição entre as

categorias de trabalho produtivo e trabalho doméstico. Neste contexto,

se o trabalho doméstico não gera valor não é considerado produtivo.

(Brumer e Weisheimer, 2006).

Não é por acaso que uma das atividades sobre as quais o GT de Gênero mais dedicou

esforços diz respeito à melhoria das ferramentas estatísticas com vistas a produzir

informações mais consistentes sobre a participação das mulheres no mundo do trabalho,

na economia, na estrutura demográfica e nas organizações sociais. Além de uma

aproximação com a Reunião Especializada de Estatísticas do Mercosul (REES), isto

resultou no aprofundamento do diálogo com os governos nacionais acerca do

aprimoramento das informações disponíveis para a formulação e o monitoramento de

políticas públicas, e que reflitam as áreas críticas para as questões de gênero em cada

contexto social.

A invisibilidade do trabalho realizado pelas mulheres nas atividades

de produção na unidade familiar evidencia-se na ausência de

informações sobre isso nas estatísticas oficiais nos países do

Mercosul. Isto se reflete no caráter das políticas públicas em curso que

enxergam a unidade familiar como um todo homogêneo, sem

distinguir as relações de hierarquia e desigualdade de gênero e geração

existentes no seu interior de tal sorte, que as mulheres são duplamente

afetadas. Primeiro, pelas restrições no acesso aos recursos produtivos

no interior da família, principalmente em relação à transmissão do

patrimônio familiar, e, segundo, por dificuldades decorrentes da

própria ação do Estado, que não favorece o acesso das mulheres às

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políticas públicas, como os programas de reforma agrária, crédito,

assistência técnica e comercialização. (Butto e Hora, 2010, p. 141).

A ampliação dos estudos, pesquisas e estatísticas tem revelado uma das faces mais

conhecidas e ocultadas da história agrária latino-americana, aquela que explica porque

as mulheres trabalhadoras rurais constituem um dos segmentos mais marginalizados das

sociedades rurais. Essas informações trazem ao debate público uma situação de

exploração há muito vivenciada pelas mulheres, mas que se torna cada vez mais

reconhecida pelo Estado, pela sociedade em geral, e pelos homens em particular. Como

afirma o professor Antonio Vadel, trabalhadores e trabalhadoras são explorados(as),

mas a situação das mulheres rurais geralmente revela-se ainda mais dramática na

sociedade contemporânea.

Los trabajadores son los explotados dentro de la sociedad. Pero si

nosotros tenemos que decir quiénes son los explotados dentro de los

explotados, son las mujeres pobres del medio rural. Son el sector de

personas más castigadas por nuestras sociedades, más explotadas, en

todos los sentidos. Yo creo que, en mi cabeza, el tema género esta por

revertir esta situación. Esto no se mide en cuantas mujeres adentrarán

en la reunión. Esto se mide en la escala de los derechos humanos.

(Antonio Vadel, op. cit.).

Mas a tríade Gênero–Mulheres–Pobreza não pode ocultar outros componentes do

processo sociohistórico de construção das desigualdades. Como afirma Ferro (2014, p.

30), as gravíssimas condições de pobreza das mulheres rurais não devem encobrir o fato

de que “las inequidades de gênero son transversales a todos los estratos agrários y de la

estructura econômica de nuestros países”. Caso contrário, a discussão é remetida para o

campo das iniqüidades econômicas como fatores geradores das demais formas de

diferenciação social, quando, a rigor, a precariedade econômica e a pobreza acentuam e

tornam particularmente dramáticos os resultados de mecanismos mais complexos de

segregação social. Estes mecanismos estão ancorados em valores morais encarnados nas

diferentes formas de organização institucional das sociedades e dos seus respectivos

Estados. Assim, lutar contra as desigualdades de gênero, geração, raça e etnia constitui,

antes de tudo, uma crítica aos princípios valorativos que sustentam, legitimam e

autorizam a exploração e a dominação (econômica, física, cultural, simbólica, sexual).

Pela sua natureza institucional, o Estado é um ator central que pode criar as condições

de empoderamento dos segmentos mais marginalizados, incluindo o acesso a recursos

que lhes permitam confrontar os mecanismos de dominação. Um dos resultados menos

visíveis, mas mais importantes, do Programa de Gênero da REAF está associado ao

modo como o mesmo pressionou os Estados a abrir um espaço para dialogar sobre

temas que estavam fora da agenda. Cada país teve que criar um Comitê Gestor do

Programa, o qual se responsabilizou por transportar a discussão da REAF para o interior

das estruturas dos governos e das organizações sociais, além dos espaços públicos

constituídos para a gestão das políticas de desenvolvimento rural. É provável que nunca

antes tenha sido presenciada em nível regional uma ação tão coordenada de mulheres

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rurais intervindo nos fóruns para garantir a incorporação de um olhar de gênero sobre as

políticas. Ademais, havia um diferencial importante neste caso: desta vez os governos

não podiam mais desprezar a agenda sob a alegação da “falta de recursos”. A parceria

com a Agência Espanhola de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento

(AECID) permitiu ao Programa sustentar financeiramente a execução das atividades.

Havia um comitê gestor nos países. Então os governos tinham que

fazer reuniões com as mulheres. Tinham que definir. E não tinham

como dizer que não havia recurso, porque havia o recurso do

Programa. Então eles tiveram que começar a delegar representantes

para tratar desse tema e cuidar do programa. (Renata Leite, op. cit.).

A esta altura está evidente que existe uma discussão sobre poder intimamente imbricada

nas relações de gênero, a qual repercute para dentro das esferas públicas de decisão,

incluindo a própria REAF. O Programa de Gênero se tornou um meio propício para o

diálogo entre mulheres oriundas de países com realidades muito distintas, alguns com

movimentos de mulheres ativos, outros com o predomínio de organizações mistas. Este

diálogo permitiu produzir conhecimentos, aprendizagens, interfaces e confiança e, com

isso, também criou as condições para uma participação mais qualificada das mulheres

dentro dos Grupos de Trabalho, das Seções Nacionais e da Seção Regional da REAF.

De repente, como destaca Maria Quiroga do MGAyP - Argentina, um pequeno grupo

reivindicando seu espaço específico no interior de uma reunião que discutia questões

que lhes diziam respeito (crédito, comércio, terra, extensão rural), torna-se um dos

grupos mais organizados e mobilizados, com capacidade de intervir na agenda pública.

Éramos un grupo chiquito, con distintas visiones. De hecho, hay

realidades distintas. En Brasil hay una gran cuantidad de

organizaciones de mujeres. En Argentina, no. En el caso de Argentina

hay muchas organizaciones mixtas. Y en realidad nuestra visión es

más hacia eso, hacia a compartir los espacios. Hubo mucha discusión,

muchos movimientos… se discutió mucho transversalisar, y lo

estamos haciendo con los otros grupos temáticos. […] De alguna

manera, como creo que además se ha sucedido en nuestros países, el

tema va siendo comprendido. Siempre hay que vencer algunas

resistencias o miedos de los varones. Pero, bueno, estamos hablando

de poder. Eso siempre genera ruidos. (Maria Quiroga).74

Ao longo deste processo com inúmeras resistências e reações, a própria REAF teve que

aprender a dialogar sobre o tema. Exemplo disto é a mudança que foi processada, a

partir da reivindicação do GT de Gênero para que o mesmo se reunisse previamente aos

demais. Se, atualmente, isto acontece com certa naturalidade, é necessário recordar que

esta reorganização na dinâmica de funcionamento somente foi possível em virtude da

ação proativa do GT para incidir sobre a organização da REAF. O objetivo era adicionar

uma perspectiva de gênero nos debates em curso nos demais GTs. De modo geral, estes

74 Maria Quiroga. Coordenadora da Área de Inclusión y Equidad Rural. Ministerio de Agricultura

Ganadería y Pesca, Argentina. Estrato de entrevista concedida em dezembro de 2014.

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não estavam particularmente empenhados em discutir relações de gênero. Muitos atores

preferiam, e ainda preferem, que as agendas se mantivessem centradas nas ‘questões

relevantes’ do comércio, da reforma agrária, do seguro agrícola. Foi necessária uma

persistente campanha – alvo de inúmeras críticas, algumas públicas, outras veladas –

para que o conjunto da REAF fizesse um esforço para incorporar uma perspectiva de

gênero de maneira transversal. Mais do que isso, para que compreendesse a legitimidade

das mulheres debaterem e construírem previamente seus argumentos e justificativas

para intervir nos demais GTs, muitas vezes subvertendo a pauta e a relevância das

questões.

Algo que quiero destacar de una manera muy importante de los

avances que hemos tenido, […] no puede dejar de hablar y reconocer

el trabajo de las mujeres rurales. Porque fue en este espacio

precisamente que nos fortalecimos, que empezamos a decir: nosotras

también estamos invisibilizadas en la tierra, no estamos visibilizadas

en la titularidad de la tierra. Nosotras queremos estar en las mesas de

decisiones de las organizaciones de base mista y no nos dábamos

cuenta que las mujeres no estaban en las mesas de decisiones. Y de

esta manera nos fuimos dando cuenta de un montón de cosas. Por eso

hay que destacar que fue en este espacio, desde el grupo temático de

género, que después hemos logrado, a través del tiempo y de los años,

de que esa transversalidad se vaya poniendo en la rutina del grupo

temático de tierra, en el grupo temático de comercialización, entre los

distintos grupos temáticos. (Monica Polidoro).75

Permanece, todavia, um longo caminho pela frente. Por um lado, nota-se que o

‘método’ para o tratamento das questões de gênero na REAF segue em discussão. O

tema da transversalização, por exemplo, retorna ao debate com freqüência. Algumas

vezes para recordar aos demais GTs que suas políticas e programas devem incorporar

este olhar diferenciado. Em outros momentos para questionar a própria necessidade de

um GT específico sobre o tema, na medida em que uma perspectiva de gênero (e

geração) poderia ser incorporada pelos demais grupos.

Por outro lado, no que diz respeito às políticas sobre as quais os debates na REAF

incidem, cabe notar que o grau de institucionalização das políticas de gênero e das ações

para as mulheres rurais ainda é baixo na maioria dos países. Isto é reflexo do modo

como os governos tratam o tema, mas também da organização dos próprios movimentos

sociais e sindicais da agricultura familiar, campesina e indígena. Em que pese os

esforços empreendidos e os avanços expressivos em ambas as esferas de poder, Estado e

Sociedade Civil ainda reproduzem diferentes formas de uma “masculinocracia”

(Valdéz, 2010).

A permanência destas questões na agenda da REAF, dos governos e dos movimentos

sociais abre espaço para a construção de um segundo Programa Regional de Gênero. O

75 Monica Polidoro. Mujeres Federadas de la Federacion Agraria Argentina. Intervenção no Seminário

10 anos da REAF, Montevidéu, dezembro de 2014.

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mesmo está em negociação desde 2012, quanto teve início a avaliação da primeira

edição. Desde então, houve um lento processo de formação de entendimentos sobre os

objetivos, cronograma, público e, em particular, sobre a formação de parcerias

institucionais para viabilizar as atividades de um novo programa. Ao longo deste

processo se tornou evidente que não era possível simplesmente reproduzir a lógica

anterior. Por quê?

Em primeiro lugar, porque existem questões políticas que não podem ser desprezadas.

Os últimos dois anos foram marcados por alguns desentendimentos sobre o tratamento

das questões de gênero dentro da REAF. Em alguns momentos, houve governos que se

ausentaram dos debates do grupo, pressionando a REAF a rediscutir uma concepção de

transversalidade que aponta para o redirecionamento da agenda de gênero para os

demais GTs. Com isso, considerando que a dinâmica das decisões nos fóruns regionais

preza pela construção de entendimentos comuns entre todos os países, este fato retardou

a construção de um novo Programa.

Em segundo lugar, porque a parceria com a AECID não seria reeditada, o que

demandou esforços do GT para encontrar novos apoiadores. Após algumas discussões

sobre a possibilidade de uso dos recursos do FAF – o que se mostrou inviável em

virtude do orçamento demandado –, no final de 2014 foi firmada uma parceria com a

FAO, que, gerindo recursos repassados pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário do

Brasil, passa a ser o organismo de suporte financeiro do II Programa.

Finalmente, cabe notar que o contexto regional também se alterou significativamente.

Por um lado, os países que participaram do primeiro programa (Argentina, Brasil, Chile,

Paraguai e Uruguai) já se encontram em outro estágio nos debates sobre o tema,

demandando ações mais complexas para consolidar as políticas de gênero. Por outro

lado, neste período o MERCOSUL e a REAF incorporaram novos países, o que impôs

um árduo trabalho para readequar ações que abarcarão um espaço mais amplo e

contextos sociais ainda mais diversos.

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11. A formação da juventude rural e o investimento em uma nova agenda de

políticas

Muitos governos e organizações sociais do meio rural não convivem apenas com uma

masculinocracia – que justifica um programa regional com foco no empoderamento das

mulheres –, como também estão profundamente impregnados por uma espécie de

gerontocracia. Um dos principais problemas que isto alimenta é o fato de que “as

estruturas de poder dos Estados estão envelhecidas e, em muitos países, há pessoas que

não são jovens que estão falando em nome da juventude.”76 Reproduz-se com isso

antigas concepções e adjetivações pejorativas que tratam os jovens como expressão de

imaturidade, incapazes de definir seus destinos e, quanto mais, o destino dos

movimentos e organizações onde estão inseridos. Seriam apenas indivíduos em

construção, incompletos, sem vivência, sem experiência, que precisam ser formados,

regulados, encaminhados. Concepções que deslegitimam a participação dos jovens

como efetivos atores políticos nos espaços públicos de decisão (Castro, 2005; Barcellos,

2014).

En Uruguay nos preocupa que los jóvenes empiecen a asumir roles...

Acá tenemos una tradición de presidentes con setenta años... los

decisores políticos no son jóvenes, ni siquiera los representantes de las

organizaciones. Hay una tradición de gerontocracia. […] Y no es

solamente en el nivel político estatal. Es de todo. Los jóvenes tienen

bloqueos cuando vuelven a sus organizaciones. Es un problema de la

propia institucionalidad. No se genera intercambios generacionales

[…] Ni siquiera tenemos la capacidad que los jóvenes nos interpelen.

(Fernando Sganga, op. cit.).

Esse tipo de cultura institucional faz com que os bloqueios para os jovens e,

especialmente, para as mulheres jovens, ocuparem os espaços de decisão e participarem

efetivamente da construção das políticas públicas sejam tão significativos quanto

aqueles que, historicamente, lhes determinam uma posição subjugada em algumas

sociedades e, em particular, no seio das famílias rurais. Posição esta que muitas vezes se

torna uma motivação para o êxodo; para que muitos jovens deixem a agricultura e o

mundo rural, inclusive em contextos onde não se encontram níveis elevados de pobreza

ou privação de bens e serviços, condicionantes recorrentes deste tipo de migração

(Caputo, 2002; Castro et al., 2013).

Assim como o êxodo juvenil não é uma alternativa pertinente para pensar estratégias de

desenvolvimento rural, a opção pela “saída” do espaço público – e dos fóruns de

decisão política – não é verdadeiramente uma opção para construir sociedades mais

democráticas. É por isso que a REAF tem se empenhado na articulação de uma

76 William Clementino. Vice-presidente da CONTAG. Estrato de entrevista concedida em dezembro de

2014.

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alternativa do tipo “voz” (Hirschman, 1972), a qual envolve a construção das condições

para que os jovens não apenas ocupem os espaços de diálogos políticos, mas o façam de

forma cada vez mais qualificada, legitimados por uma nova compreensão acerca das

suas capacidades para desenhar, implementar e inovar na construção de políticas

públicas. Caso contrário, as próprias políticas para a juventude rural restam reféns da

imagem que os não-jovens construíram acerca daquilo que julgam serem as trajetórias

de vida relevantes para os outros.

Para tanto, a REAF apostou na criação de um GT sobre Juventude Rural e, no interior

deste, na construção de mecanismos de diálogo entre os jovens rurais, principalmente

entre aqueles que estão se projetando como lideranças de suas organizações e

movimentos sociais. O objetivo é fortalecer a intervenção destes jovens no processo de

construção das políticas, o que envolve sua participação ativa como dirigentes dos

movimentos agrários locais, nacionais e regionais; mas também, e talvez especialmente,

o fortalecimento das próprias organizações de jovens rurais77, as quais, de modo geral,

possuem pequena representatividade nos fóruns de diálogo sobre políticas públicas,

conseqüência de outros problemas associados às dificuldades de coordenação, à falta de

recursos próprios e a reprodução de um foco excessivamente centrado em problemáticas

locais ou temáticas, além da “cultura adultocêntrica” arraigada nas instituições

(Espíndola, 2004).

Um ano após a criação do GT de Juventude Rural, em maio de 2007 a VII REAF,

realizada em Assunção, aprovou o Programa Piloto de Educação Não-Formal de Jovens

Rurais. Apresentada pela Argentina, a proposta tornou-se o pontapé inicial de uma

experiência que evoluiu para um Curso Regional de Formação de Jovens Rurais. Alguns

meses depois, na VIII REAF (Uruguai, outubro de 2007) foi aprovada a organização

curricular e a proposta metodológica do primeiro curso. Previu-se, por exemplo, que

cada módulo seria alternado com o desenvolvimento de estudos individuais e atividades

a serem realizadas pelos jovens juntos às suas organizações de origem. O formato e as

vagas por país para o primeiro e segundo módulos foram aprovados na IX REAF

(Buenos Aires, julho de 2008). De acordo com Carolina Silva, então consultora do

MDA - Brasil,

Foram estabelecidos dois objetivos centrais para o curso: oferecer uma

experiência concreta de intercâmbio e participação na REAF, via a

construção e participação na execução de uma proposta de agenda de

trabalho sobre juventude rural; e valorizar as diferentes identidades e a

condição de juventude e de seu papel protagonista na reprodução da

agricultura familiar (Silva, 2014).

77 Este parece ser um desafio mais significativo, inclusive para a própria REAF. Os movimentos da

juventude rural ainda possuem pequena participação nos fóruns da agricultura familiar, tanto em nível

nacional quanto regional. O que predomina é a participação de jovens vinculados a movimentos sociais e

sindicais do campo, ou vinculados a diferentes órgãos governamentais.

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A primeira edição, com carga horária total de 160 horas, iniciou em 2008 e teve duração

de dois anos, ao longo do qual foram desenvolvidos quatro módulos. O primeiro (Luján,

Argentina, 25 a 29 de agosto de 2008) abordou os fundamentos teóricos de uma

abordagem geracional/juvenil do desenvolvimento rural e agrário no MERCOSUL.

Realizado logo em seguida, o segundo módulo (Rio de Janeiro, Brasil, 22 a 26 de

novembro de 2008) discutiu metodologias para organização social e política juvenil,

situações e estratégias de participação, gestão associativa e aspectos relacionados à

elaboração de projetos.

Na XI REAF (Paraguai, 2009) foi apresentado o formato e o programa do terceiro

módulo, realizado em Posadas (Argentina), de 31 de agosto a 5 de setembro de 2009.

Este módulo debateu a integração regional e o fortalecimento da agricultura familiar, o

desenvolvimento de sistemas de produção sustentáveis, redes de comercialização e

mecanismos de cooperação técnica regional.

Finalmente, o programa do quarto módulo (Santo Antônio da Patrulha e Marcelino

Ramos, Brasil, 16 a 22 de novembro de 2009) foi discutido nas reuniões preparatórias

do GT que, semestralmente, ocorrem no interstício entre uma e outra plenária regional

da REAF. Este módulo abarcou questões relacionadas a empreendimentos juvenis,

inovação e reconfiguração de práticas produtivas, uso de tecnologias de informação,

processos de empoderamento e construção de autonomia juvenil (Barcellos, 2014).

Esta primeira edição foi construída a partir dos diálogos do GT, mas tendo como ponto

de partida uma proposta de capacitação apresentada pela Argentina, e que foi

conformada com base na experiência bem sucedida que o país já havia desenvolvido na

área de formação de lideranças comunitárias. Como destaca Favio Pirone, ponto focal

do país no GT de Juventude Rural da REAF, e um dos atores com atuação destacada na

organização dos cursos, esta experiência nacional havia demonstrado a importância que

os jovens detinham como dinamizadores da ação pública, com potencial para atuar

como mediadores entre as políticas – que tendem a ser universalistas – e a realidade

particular de cada comunidade rural. Com foi verificado, mesmo que de modo não

intencional muitos jovens acabavam cumprindo um papel importante no processo de

apropriação das políticas pelos atores locais, o que envolve um complexo trabalho de

reinterpretação dos objetivos, das metas, dos instrumentos de ação e dos resultados.

Antes de llevar la propuesta a REAF, habíamos desarrollado un curso

de formación de agentes de desarrollo rural en el noreste argentino, y

al otro año hicimos otro en el noroeste argentino. [Los jóvenes] para

nosotros eran los mediadores entre las comunidades de base y la oferta

de programas, de políticas públicas que tenían los ministerios.

Entonces, ellos eran esos cuadros intermedios que necesitaban las

políticas públicas, que conozcan mejor cómo funciona el Estado,

como funciona los programas, pero que tienen un arraigo con su

comunidad. O sea, no eran técnicos, era gente de las organizaciones

formándose para usar los servicios del Estado. […] Hemos verificado

ciertos resultados positivos en Argentina y hicimos llegar la propuesta

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al Mercosur, y a partir de ahí arrancamos. Los países se convencerán

de esta iniciativa. Las organizaciones la validaran mucho. (Favio

Pirone, op cit.).

A XII REAF (Montevidéu, dezembro de 2009) foi precedida pelo seminário

“Caracterização da Juventude Rural no MERCOSUL”, no qual foi apresentada uma

avaliação da primeira edição do Curso. Em vista da ampla aprovação, a ideia de dar

continuidade a uma segunda edição foi formalmente aprovada na XVI REAF (Minas,

Uruguai, dezembro de 2011), quando também foi apresentada a estrutura metodológica

e organizativa. A proposta inicial novamente previa a realização de quatro módulos, um

em cada país membro do MERCOSUL. Entretanto, esta foi alterada para dois módulos,

os quais foram mais uma vez compartilhados entre Brasil e Argentina.

O primeiro módulo desta segunda edição antecedeu a XVII REAF (Buenos Aires, junho

de 2012). Já o segundo módulo ocorreu na sede da Universidade da Integração Latino-

Americana (UNILA), em Foz do Iguaçu, de 28 de outubro a 2 de novembro de 2012.

Este foi organizado em torno de quatro eixos centrais: i) caracterização da Agricultura

Familiar; ii) integração sul-americana; iii) políticas públicas para a juventude e; iv)

agenda dos jovens para a Agricultura Familiar.

No mesmo ano, durante a XVIII REAF (Caxias do Sul, novembro de 2012), decidiu-se

que a terceira edição do Curso de Jovens seria realizada pela presidência pro tempore do

Uruguai. A mesma reunião também aprovou a estrutura organizativa e metodológica do

curso, o qual seria conduzido em um módulo único. O curso foi realizado entre 20 e 28

de maio de 2013 na cidade de Canelones (Uruguai), antecedendo a XIX REAF

(Atlântida, maio de 2013), o que inclusive favoreceu a participação dos jovens nas

atividades da REAF, estreitando os vínculos entre o processo de formação e a

construção da agenda do GT de Juventude Rural. Nesta edição o curso contou com três

eixos temáticos principais: diversidade da agricultura familiar, integração sulamericana

e políticas públicas.

A decisão de realizar o IV Curso Regional foi tomada na XX REAF (Caracas,

novembro de 2013). Esta edição foi novamente subdividida em dois módulos. O

primeiro ocorreu entre 23 e 29 de novembro de 2014, na cidade de Brasília. O segundo

foi realizado entre 9 e 16 de junho de 2015, antecedendo a XXIII REAF (Brasília).

Nesta edição, o programa de capacitação abarca quatro eixos prioritários: (a)

caracterização da agricultura familiar, da juventude rural e suas organizações; (b)

integração regional latino-americana e caribenha, com ênfase na experiência da Reunião

Especializada sobre Agricultura Familiar do Mercosul (REAF), bem como na nova

dinâmica regional de integração expressa por UNASUL, CELAC e pelas plataformas

regionais de movimentos e organizações; (c) políticas públicas diferenciadas para a

agricultura familiar, incluindo as políticas de promoção da autonomia econômica das

mulheres rurais e as dirigidas à juventude rural; (d) contribuição para a construção da

agenda do Grupo Temático de Juventude da REAF.

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Os cursos são conduzidos com atividades presenciais e, a partir da quarta edição,

também à distância, com jovens lideranças sociais de todos os países, escolhidas pelas

organizações da agricultura familiar. Durante cerca de uma semana (em cada módulo),

estes jovens dedicam-se a dialogar sobre a realidade regional da agricultura familiar,

campesina e indígena; sobre os principais problemas que afetam a reprodução social

desses grupos; e sobre as formas e mecanismos de atuação do Estado. Todas as edições

também contam com algum tipo de atividade de campo, com vistas a analisar

experiências de agricultura com protagonismo juvenil. Este exercício tem por objetivo

estimular o conhecimento das especificidades do meio rural de cada país, além de

promover o intercâmbio de experiências tanto para os participantes do curso como para

os agricultores responsáveis pelas experiências visitadas (Silva 2014).

Em todos os cursos, atenção particular é conferida à condição da juventude rural,

buscando identificar os principais desafios à manutenção deste segmento no meio rural,

e, portanto, à formação de uma agenda que possa orientar a ação pública. Dentre os

vários desafios destacados está o acesso à educação rural de qualidade; a melhoria das

oportunidades e condições de trabalho na agricultura; a migração e a

masculinização/feminilização do meio rural, em particular no segmento juvenil, e seus

efeitos à lógica familiar de reprodução social; as dificuldades de acesso a serviços

básicos e a bens de consumo; o acesso restrito às tecnologias de informação e

comunicação; os conflitos intergeracionais e os limites para os jovens acenderem a

posições de decisão no seio das famílias rurais.

Ao longo de todos estes anos tornou-se evidente que “el curso de jovens es mucho más

que un curso, es el espacio de construcción de la agenda” (Favio Pirone, op cit.). De

fato, a preocupação com a formação de uma agenda de diálogos da juventude rural

sobre as políticas públicas já estava presente durante os dois primeiros anos do curso.

Mas foi sobretudo nos dois módulos que compuseram a segunda edição, realizados em

2012, que se buscou refinar esta agenda, com vistas a identificar pautas programáticas,

que poderiam resultar em recomendações mais estruturadas sobre as políticas para a

juventude rural. Os resultados, no entanto, não se traduziram rapidamente em propostas

de recomendações e decisões. A construção da agenda se revelou um processo mais

complexo e demorado do que alguns atores esperavam, parcialmente obstado pela

instabilidade institucional que alguns países vivenciaram neste momento com relação à

sua participação no MERCOSUL.

Mantendo o mesmo espírito de capacitação e integração, no decorrer do tempo o curso,

que possuía um forte apelo nas discussões sobre a condição juvenil nas sociedades

rurais sul-americanas, passou a conferir cada vez mais espaço à participação da

juventude nos processos de governança das políticas públicas. Aparentemente, a

redução do número de módulos teve como conseqüência o foco mais detido nas relações

entre juventude e políticas públicas, sobretudo considerando-se a perspectiva de que o

curso deveria dialogar com a construção do GT de Juventude Rural da REAF, o qual

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estava construindo sua pauta de diálogos em torno do grande eixo orientador deste

fórum, o desenho de políticas para a agricultura familiar.

Uma mudança importante no segundo curso diz respeito à tentativa de aproximação

entre a REAF e as universidades. A realização de um módulo em parceria com a

UNILA partiu da demanda das organizações sociais pela formalização/acreditação do

curso. A partir disso buscou-se fortalecer as ações para a juventude rural por meio da

cooperação com uma universidade que prioriza os processos de integração regional, seja

em virtude de sua localização na tríplice fronteira, seja pela presença de professores e

estudantes de vários países latino-americanos, ou ainda pelo próprio foco dos seus

cursos de Desenvolvimento Rural e Segurança Alimentar. Com efeito, embora o curso

não tenha obtido a certificação oficial da universidade, os atores reconhecem o salto de

qualidade que a relação com a academia possibilitou: “ellos nos han brindado asistencia

técnica, han brindado docentes, han puesto la cabeza a pensar en la REAF y en que

necesitaban cada uno de los países, y si dispusieron a trabajar con nosotros en el curso.

Eso fue un salto de calidad. La UNILA dio una legitimacion más fuerte al curso.”

(Favio Pirone, op cit.).

Neste momento as universidades projetaram-se como parceiros estratégicos da REAF,

mas ainda muito cerceadas pela sua própria institucionalidade. As temporalidades e os

mecanismos de ação do mundo acadêmico são diferenciados do campo da governança

das políticas públicas. Com efeito, as duas edições subseqüentes do curso

desenvolveram-se a partir de outra lógica. A terceira edição, organizada no Uruguai,

privilegiou uma aproximação com metodologias de educação popular, consideradas

pelos atores locais mais adequadas à realidade das organizações sociais. No entanto,

para alguns atores, apesar dos avanços que isso significou à organização do curso,

abriu-se mão da oportunidade de estreitar as relações com as universidades e, por

conseguinte, da possibilidade de ampliar o espaço para as discussões conceituais que

cercam o debate sobre juventude e agricultura familiar como construções identitárias e

políticas.

Nos faltó, me parece, una visión estratégica del curso. Es decir, yo

creo que nosotros teníamos que seguir insistiendo en una vinculación

más fuerte con las universidades. Yo creo que nosotros perdimos de

vista de hacer el esfuerzo para nos vincularnos con la academia para

discutir... incluso con las experiencias de la academia,

problematizando las experiencia de la agricultura familiar. Estamos

perdiendo un valor ahí. (Favio Pirone, op cit.).

O primeiro módulo da quarta edição, realizada no Brasil, foi predominantemente

conduzido por atores governamentais e, por conseguinte, centrou-se nas discussões mais

instrumentais sobre a gestão das políticas, o que também gerou reações sobre a

necessidade de rediscutir os objetivos e a estrutura do curso. Com efeito, o segundo

módulo, realizado em Brasília previamente à XXIII REAF, deu continuidade ao debate

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sobre políticas públicas, mas incorporou metodologias de educação popular e debates

mais amplos sobre condição juvenil.

Além dos problemas operacionais e das dificuldades metodológicas para realizar uma

atividade deste porte em escala regional, muitas mudanças na condução do curso ainda

respondem a diferentes compreensões que os atores possuem sobre a finalidade desta

ação. Algumas dúvidas parecem persistir sobre os objetivos estratégicos. Por um lado,

há um debate sobre o foco e a metodologia adequada para conduzir um espaço que se

volta simultaneamente à formação de novos dirigentes sociais e à construção da agenda

política para a juventude rural na REAF. Nada permite supor que essas ações possam

ser facilmente conduzidas de modo concomitante, ainda mais considerando o ingresso

de novos países e organizações na REAF, o que imprime dinâmicas distintas ao

processo de capacitação e aos diálogos necessários à produção de novas políticas.

Por outro lado, há uma questão latente sobre a institucionalização deste tipo de ação,

subentendida aqui a ideia de um modo operacional mais estável, com parcerias mais

duradouras e com um planejamento à longo prazo. Esta questão relaciona-se com a

necessidade de dinamização tanto do curso quanto das discussões do próprio GT. As

mudanças que ocorreram entre uma edição e outra ocuparam demasiadamente a agenda

do grupo, o qual, conseqüentemente, dispensou menos tempo a outros temas da agenda

da REAF. Por conseguinte, os jovens rurais não conseguiram incidir de maneira

transversal na agenda dos demais GTs, pelo menos não na mesma condição que as

mulheres o fizeram a partir dos debates levados à cabo pelo GT de Gênero.

Há ainda um debate sobre a relação entre o curso regional e as atividades de formação

que podem ser realizadas localmente, sob responsabilidade de cada país. Ao longo do

processo de construção do GT de Juventude, alguns países lançaram esforços

significativos para fazer dos diálogos da REAF uma plataforma política para alcançar

um público mais expressivo, fazendo com que a discussão repercutisse internamente

para além das lideranças nacionais. Na Argentina, por exemplo, depois do primeiro

curso foi desenvolvida uma série de dez Encuentros de Formación de Jóvenes de la

Agricultura Familiar (EFJAF). A pauta destes encontros esteve estreitamente vinculada

aos temas em discussão na REAF, em particular à criação de uma institucionalidade

para a agricultura familiar, processo em pleno desenvolvimento no país.

Outra proposição que aparece com alguma freqüência no GT, sobretudo nos últimos

anos, é a ampliação da escala de diálogos para eventos latino-americanos da juventude

rural. Também capitaneada pela Argentina, a proposta de um Encontro Regional de

Jovens Líderes Rurais foi apresentada na XXII REAF. A atividade consistiria mais

propriamente de uma ação de mobilização social, a partir do que seria desencadeado um

esforço coletivo de renovação da agenda, de ampliação para novos movimentos, alguns

com atuação mais localizada, e de identificação de novas lideranças a partir da base

desses movimentos. O encontro também teria como objetivos a reconstrução da

memória histórica da participação da juventude rural e uma ampla avaliação dos cursos

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de jovens. De certo modo, espera-se que um evento desse porte traga novo fôlego para

um espaço que, pela sua natureza geracional, demanda a renovação contínua dos seus

membros.

Em que pese às dúvidas que ainda recaem sobre a organização do curso, cabe destacar

os resultados já alcançados. Há várias razões para que o Curso de Jovens seja tratado

dentro da REAF, dos governos e dos movimentos sociais como um dos resultados mais

importantes desses dez anos de diálogos políticos regionais. Uma das razões está

associada aos saldos do processo de formação de uma nova geração de lideranças. Mas

não de lideranças que somente serão identificadas como tal quando atingirem a

‘maturidade’. Lideranças que estão assumindo este papel agora, na condição de jovens,

perfeitamente capazes de contribuir não apenas para a criação de políticas específicas de

juventude, mas para os debates sobre as demais ações de desenvolvimento rural,

cobrando um olhar geracional do Estado e da Sociedade Civil.

Existem inúmeros exemplos de jovens que participaram dos Cursos e se tornaram

lideranças nacionais dos movimentos sociais juvenis e da agricultura familiar. Outros

tantos de jovens que passaram a ocupar posições mais relevantes no seio das estruturas

do Estado. Obviamente, esses resultados não podem ser inteiramente aferidos ao espaço

regional de formação construído pela REAF. Há uma trajetória muito mais ampla e

difusa de capacitação, no seio dos próprios movimentos, organizações, partidos e

governos. Mas o Curso Regional cumpriu um papel fundamental neste processo na

medida em que introduziu uma nova escala à realidade desses atores. A preocupação em

compreender o que se passa nos demais países possibilita um aprendizado singular.

Conhecedores das dinâmicas da agricultura familiar latino-americana, estes jovens

ampliam o processo de interlocução entre as organizações regionais. Se o êxito inicial

da REAF dependeu da construção de confiança entre atores com pouca ou nenhuma

interação prévia, quase desconhecidos, atualmente o curso de jovens favorece a

aproximação entre lideranças que se tornam muito mais sensíveis às problemáticas dos

demais países, fortalecendo o processo de integração regional. Ao mesmo tempo, na

medida em que estes jovens projetam-se para dentro dos seus países, estabelece-se um

processo de retroalimentação entre as agendas nacionais e os debates da REAF.

Colocar a juventude da região junta, falando a mesma língua –

literalmente, porque é uma mistura de espanhol e português – e

discutindo temas... A juventude começa a descobrir que os temas são

iguais nos países, que são parecidos. Começa a ter uma relação entre

as lideranças. Acho que é um resultado muito positivo. (Laudemir

Muller, op cit.).

Dentre os exemplos mais emblemáticos deste processo, citados por vários atores

entrevistados, destaca-se a trajetória do brasileiro William Clementino da Silva Matias.

Em 1994, esse jovem trabalhador rural, assentado da reforma agrária, passou a atuar em

grupos da juventude rural vinculados à igreja católica. Sua ação o levou, no ano de

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2000, à direção do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Wanderlândia, município do

interior do Estado do Tocantins e, logo depois, a cargos de direção da federação

estadual dos trabalhadores na agricultura (FETAET) e na confederação nacional

(CONTAG). Logo após sua participação no primeiro Curso Regional, foi alçado ao

cargo de Secretário de Política Agrícola da CONTAG (2009 - 2013) e diretor nacional

de rurais da Central Única dos Trabalhadores (CUT). Em 2013, foi eleito vice-

presidente da CONTAG e, em vista da experiência adquirida em fóruns como a REAF,

Secretário de Relações Internacionais da mesma entidade, além de Secretário de

Formação da COPROFAM. Segundo o próprio protagonista desta narrativa nos relatou,

Eu começo a participar da REAF há nove anos, quando aconteceu no

Brasil, no Itamaraty, a segunda reunião. Eu começo a participar como

um membro da comissão nacional de jovens da CONTAG. Eu estava

lá na federação do Estado e começo a participar. [...] Eu fui da

primeira turma do curso de formação de jovens da REAF. O GT de

juventude discutiu a necessidade de realizar um processo de formação

da juventude, para discutir desenvolvimento rural sustentável e

políticas públicas, sempre buscando a integração da juventude. Foi um

curso bastante interessante porque ele ajudou a agente a ter a

compreensão real de que a agricultura familiar não era a ilha que nós

imaginávamos antes. Esse era um problema: nós agricultores

acharmos que a gente vive a agricultura só no Brasil ou só localmente.

A gente passou a gostar desse debate porque a integração com os

demais jovens permitiu compreender que eles vivem em países

diferentes, mas que as necessidades de políticas públicas de

desenvolvimento rural para a juventude são as mesmas. (William

Clementino da Silva Matias, op. cit.).

Outro resultado do curso está associado ao modo como ele reflete para dentro dos

países, sobretudo a partir do momento em que esses jovens apropriam-se dos

instrumentos institucionais, lingüísticos e cognitivos para intervir nos espaços públicos.

No que tange à institucionalização das políticas públicas, até o momento os principais

resultados estão associados com a criação de órgãos e programas que estão abrindo

espaço para a efetivação de ações específicas para a juventude rural. É o caso da

Direção Nacional de Juventude Rural vinculada ao MAGyP argentino. Previamente aos

diálogos da REAF, este tipo de institucionalidade não estava constituído na maioria dos

países do bloco. Na própria Argentina, que impulsionou o debate na REAF, não havia

nenhuma estrutura que tratasse especificamente da situação da juventude rural.

No. La verdad es que, por lo menos para la juventud rural, no. Había

en el marco de las políticas nacionales de juventud lo que era la

Dirección Nacional de Juventud y en lo que, por un momento, se

llamó Instituto Nacional de la Juventud. Pero, casi no tocaba en el

tema rural. Además, estaban bastante ausentes las organizaciones.

Sólo una organización era invitada ocasionalmente para algún tema

puntual que era la Federación Agraria. O sea, muy poco había de

juventud rural. [Políticas específicas para la juventud?] Cuando

nosotros llegamos al Ministerio no había nada. Pasaran muchas cosas

entre adaptar los programas de financiamiento externo que tenían un

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componente de juventud hasta tener hoy una Dirección Nacional de

Juventud Rural, que su fuente de creación está inspirada en el diálogo

político de la REAF. Nosotros hoy tenemos una Dirección Nacional

de Juventud Rural gracias a la REAF. (Favio Pirone, op cit.).

Atualmente, a Argentina conta com uma Direção Nacional de Juventude Rural

vinculada ao MAGyP. Como destaca Jorge Pedregosa, embora seu foco não seja

especificamente voltado à juventude da agricultura familiar, atualmente todo o trabalho

do órgão vincula-se com este segmento social, sobretudo mediando e integrando de

maneira transversal o acesso a recursos e projetos desenvolvidos por outros órgãos de

Estado:

En 2011 se crea el área de juventud rural y se empieza a trabajar para

justificar dentro del Estado que hace un área de juventud rural. En este

momento, estaba en la Secretaria de Relaciones Institucionales des

MAGyP, que es una secretaria más transversal. […] La Dirección

Nacional de Juventud Rural no es específica de agricultura familiar.

Pero el trabajo hoy es 100% con la agricultura familiar. […] La

Dirección por estar en Relaciones Institucionales, yo creo que el gran

trabajo dentro del Ministerio es visibilizarnos como un área que

interacciona con las demás áreas. Si nos llega un proyecto de

desarrollo porcino, por ejemplo, tenemos que interactuar con la

Dirección de Producción animal. Necesariamente es transversal

porque si no tenía que haber un Ministerio de la Juventud. (Jorge

Pedregosa)78.

A Argentina conta também com programa chamado Jóvenes Emprendedores Rurales.

Trata-se de uma iniciativa da Unidad para el Cambio Rural (UCAR) do MAGyP,

vinculada ao Programa de Servicios Agrícolas Provinciales (PROSAP) e com suporte

financeiro do BIRD. O programa iniciou em 2006 com uma etapa piloto denominada

“Promoción de la Cultura Emprendedora”, a partir da qual se afirmaram as bases para

uma metodologia de intervenção continuada que tem por objetivos: apoiar a criação de

empreendimentos rurais, desenvolver capacidades empresariais locais, apoiar a

diversificação produtiva, favorecer a agregação de valor na origem e promover a

criatividade e liderança. Contando com 40 centros de jovens empreendedores em todo o

país, o programa se colocou como desafio fundamental ampliar a capacidade

institucional das organizações rurais para gerar políticas de fomento destinadas à

juventude.

No Brasil, quando da criação da REAF, em 2004, as políticas para a juventude rural

estavam muito dispersas e, sobretudo, eram pensadas dentro de órgãos de Estado que

tinham dificuldade em incorporar um enfoque juvenil às suas ações. Com efeito, de

modo geral, as políticas para a juventude rural exibiam resultados muito frágeis. Esta

situação começou a ser alterada com a incorporação dos próprios jovens como sujeitos

ativos da reconstrução da agenda do Estado. O Curso Regional foi fundamental para

78 Jorge Pedregosa. Dirección Nacional de Juventud Rural do MAGyP - Argentina. Estrato de entrevista

concedida em junho de 2015.

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construir capacidade de sustentação deste tipo de ação, na medida em que legitimou

demandas sociais e legitimou os interlocutores do debate79. Como destaca Úrsula

Zaccarias da Assessoria de Relações Internacionais do MDA, “aqui no Brasil primeiro

se discutiu na REAF e depois a gente conseguiu criar um grupo de trabalho dentro do

CONDRAF. A gente teve que provar que tinha tema suficiente para Juventude

continuar sendo um comitê permanente do CONDRAF.” Essa percepção é corroborada

por Caio França:

Essa não era uma agenda que estava organizada nos países. Ao se

criar o GT de juventude da REAF, obrigou-se os países a tratar do

tema. [...] Em 2004, a política para juventude rural praticamente não

existia. [...] Juventude para mim é um exemplo de que o tema estava

mais maduro na sociedade civil, tanto que legitima criar um GT e essa

criação do GT vai repercutir nos países. Os resultados concretos da

Juventude são pouquíssimos na trajetória da REAF. Mas a gente tem

batido na mesma tecla de que tem que ter. A gente cria um fato

consumado organizando uma pressão que é fazendo um curso da

juventude. O curso de formação da juventude é um instrumento

fundamental para ir criando capacidade nacional de sustentação dessa

agenda. O curso sustenta o tratamento da agenda de juventude dentro

da REAF. (Caio França, op cit.).

No Uruguai, destaque pode ser conferido ao Programa ‘Somos de Acá’, um fundo de

iniciativas juvenis criado pela Direção Geral de Desenvolvimento Rural do MGAP.

Atualmente, o fundo financia projetos de distintas áreas, abarcando desde a melhoria

das condições de produção agrícola até iniciativas socioculturais que desempenham

papel relevante em face das demandas sociais dos jovens rurais. Conforme destaca

Javier Vernengo, a ideia foi gestada a partir das interações possibilitadas pela REAF:

Tanto que a partir de ahí, de este curso, nosotros salimos pensando um

instrumento político de apoyo a proyectos de jovenes rurales. Dentro

del ministério (MGAP), el espacio más fuerte que tenemos de

participación de la juventud rural es la participación en el GT de la

REAF. Y a partir de este proceso salimos del curso pensando en un

instrumento que se llama Somos de Acá, que son fondos concursables

para desarrollo rural. El fondo es para proyectos para jóvenes que

viven en el medio rural. […] En este que el desarrollo nos es solo

productivo, que también tiene otras dimensiones, hubieron proyectos

de mejora de recría, compra de maquinas, infraestructura, pero

también habían proyectos que fomentaban el associativismo,

proyectos culturales, grupos de música. (Javier Vernengo).80

79 No caso brasileiro, essa importância do espaço criado pela REAF também fica evidente na posição

ocupada por Severine Macedo à frente da Secretaria Nacional de Juventude (SNJ) no primeiro governo

Dilma. Com origem no movimento sindical da agricultura familiar, em particular na coordenação de

jovens da Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar (FETRAF), essa jovem agricultora esteve

presente na REAF na condição de representante tanto da sociedade civil quanto do Estado.

80 Javier Vernengo. Dirección General de Desarrollo Rural do MGAP – Uruguai. Estrato de entrevista

concedida em junho de 2015.

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Como se pode notar, apesar das dificuldades para desenhar mecanismos de políticas

públicas um segmento tão heterogêneo, que demanda o enfrentamento de problemas

crônicos decorrentes do modelo de desenvolvimento urbano-industrial que passou a

prevalecer nas sociedades latino-americanas, há que se sublinhar o esforço no sentido de

construir os dispositivos institucionais necessários para que uma nova geração de

políticas possa atender aos anseios de uma nova geração de agricultores: acesso à terra,

financiamento, assistência técnica, mas também bens e serviços educacionais, culturais

e informacionais. Os próximos passos do GT de Juventude Rural da REAF dizem

respeito justamente à qualificação da agenda de diálogos com vistas a discutir diretrizes

que possam orientar os Estados a elencar prioridades na construção de políticas

públicas. Espera-se, com isso, que o GT detenha uma ação mais incisiva na produção de

projetos de recomendações e decisões em âmbito regional e, sobretudo, no interior dos

próprios Estados.

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12. Novos mercados para a agricultura familiar: os programas de compras

públicas

O tema das compras públicas de produtos da agricultura familiar entrou na agenda de

discussões da REAF em sua XIII Sessão Regional, realizada em 2010 na cidade de Mar

Del Plata, Argentina. Neste momento, o GT de Facilitação do Comércio atravessava um

momento de redefinição da agenda, haja vista que o tema da liberalização do comércio

havia se tornado um tanto periférico no debate político regional e que as negociações

bilaterais entre Mercosul e União Europeia continuavam estancadas. Assim, procurando

redinamizar o diálogo sobre alternativas de comercialização, e inspirados pela

experiência recente brasileira, os atores regionais decidiram aprofundar a discussão

sobre as potencialidades dos mercados institucionais como mecanismos de inclusão e

garantia de mercado para os produtos da agricultura familiar, que associavam ainda uma

clara perspectiva de segurança e soberania alimentar (Silva, 2014b).

Luego del análisis de las políticas pública referidos a la facilitación

del comercio de los productos de la AF (vigentes y en formulación en

cada uno de los países), las delegaciones acordaron focalizar el trabajo

durante el segundo semestre del año 2010 en las “compras públicas”,

tomando en cuenta que esta política integra los instrumentos

priorizados por la REAF. […] Las delegaciones solicitan a Brasil que

en la XIV REAF realice la presentación detallada de su política de

compras públicas, a través de ponencias en el GT, encargadas a los

referentes del Gobierno y de alguna de las organizaciones que tenga

experiencia en la materia (Ata da XIII REAF, Mar del Plata, 2010).

O tema avançou significativamente durante a XIV REAF, realizada em Brasília em

novembro de 2010. A reunião foi precedida pelo “Seminário sobre Aquisição Pública de

Alimentos da Agricultura Familiar”, onde foram apresentadas e discutidas as

experiências do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e do Programa Nacional

de Alimentação Escolar (PNAE). Como relata Fabián Mila, da Direção Geral de

Desenvolvimento Rural do Uruguai,

O debate sobre compras públicas na região foi impulsionado desde o

Brasil, a partir do PAA e do PNAE, dois programas enormes e que

foram exitosos. Então, o Brasil colocou a temática na mesa, no GT de

Comércio, e isso foi levantado pelos países na medida da necessidade

de cada país e da agenda política de cada país. (Fabián Mila).81

Fruto do debate e da importância conferida ao tema das compras públicas, os Ministros

responsáveis pela agricultura familiar dos Estados Partes, reunidos durante a XIV

REAF, assinaram a Declaração dos Ministros dos Estados Partes do Mercosul sobre

81 Fabián Mila. Direção Geral de Desenvolvimento Rural, MGAP - Uruguai. Estrato de entrevista

concedida em abril de 2015.

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Compras e Aquisições Públicas de Alimentos da Agricultura Familiar, “elevando estas

políticas à condição de uma das prioridades de trabalho da REAF” (Silva, 2014, p. 5).

Reconhecendo a necessidade de avançar no cumprimento das Metas de

Desenvolvimento do Milênio, de promover a segurança alimentar e nutricional, o

Direito Humano à Alimentação e de apoiar a agricultura familiar regional, os Ministros

Reconheceram o valor das iniciativas empreendidas no sentido de

articular compras e aquisições públicas da produção local da

agricultura familiar com ações voltadas ao acesso à alimentação e,

incidindo na formação dos preços dos alimentos obtidos pela

agricultura familiar, para tanto promovam a diversificação da

produção e do consumo de alimentos contemplando as

particularidades das regiões, contribuindo com o direito humano à

alimentação adequada e que possam também ser geradoras de

desenvolvimento rural. Os Ministros responsáveis pela agricultura

familiar ressaltaram o apoio às políticas públicas de compras e

aquisições institucionais da agricultura familiar e destacaram a

iniciativa do programa de cooperação técnica para desenvolver

atividades que contribuem ao fortalecimento de políticas desta

natureza.82

As ações sobre compras públicas no âmbito da REAF confluíram e se retroalimentaram

com as discussões sobre segurança alimentar e nutricional que ganharam fôlego na

América Latina e Caribe a partir da crise dos alimentos desencadeada em 2008.

Algumas ações e eventos foram particularmente importantes nesta trajetória, as quais

chamam a atenção para a importância dos mercados institucionais para a promoção da

agricultura familiar como estratégia fundamental à garantia da segurança alimentar e

nutricional em âmbito regional. Como destaca Adoniran Sanches, oficial de políticas do

Escritório Regional da FAO,

Em 2015, o mundo inteiro está se comparando porque no ano de 2000

foram assinados os objetivos de desenvolvimento do milênio, e agora

tem uma parada para ver quem cumpriu. Dentre os objetivos, a Meta 1

é reduzir pela metade a proporção das pessoas que sofrem de fome.

[...] Nesta comparação chama a atenção que esta região cumpre a

meta, e tem um grupo de países que cumpre a meta folgadamente. O

que a FAO vem chamando a atenção é que há por detrás disso uma

arquitetura de políticas inovadoras que chegou no núcleo duro da

pobreza, combatendo a pobreza extrema e a fome. [...] Entre as

políticas que chamam a atenção está o sistema de proteção social, a

alimentação escolar e a agricultura familiar. E também destacamos os

diversos mecanismos que os governos da região criaram para

gestionar isso, o que hoje é chamado de governança. Aí é que entra a

REAF. Hoje ela é uma referência mundial de intercâmbio de política

mesclado com participação social. (Adoniran Sanches).83

82 Declaração dos Ministros dos Estados Partes do Mercosul sobre Compras e Aquisições Públicas de

Alimentos da Agricultura Familiar, Brasília, 18 de novembro de 2010.

83 Adoniran Sanches. Oficial de políticas do Escritório Regional da FAO América Latina e Caribe.

Estrato de entrevista concedida em junho de 2015.

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Em 2009, teve início o Projeto “Fortalecimento dos Programas de Alimentação Escolar

no âmbito da Iniciativa América Latina e Caribe Sem Fome 2025”

(CGP/RLA/180/BRA), resultado de uma cooperação técnica entre a FAO, o Fundo

Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE-Brasil) e a Agência Brasileira de

Cooperação (ABC). A partir dos aprendizados da experiência brasileira com o PNAE, o

projeto visava contribuir para o fortalecimento dos programas de alimentação escolar

em quinze países84, envolvendo três estratégias principais de intervenção: (a)

fortalecimento e articulação de políticas de alimentação escolar, por meio de debates,

discussões e documentos para a institucionalização de políticas de alimentação escolar

local; (b) desenvolvimento de capacidades humanas e físicas para a execução de

políticas locais; (c) geração e disseminação de conhecimento e informação por meio de

estudos e materiais técnicos e educacionais. Um dos resultados do projeto foi a

publicação, em 2013, do relatório “Alimentación escolar y las possibilidades de compra

directa de la agricultura familiar: estudio de caso en ocho países”, o qual demonstrou

experiências exitosas de compras diretas da agricultura familiar para a alimentação

escolar e o potencial mercado que poderia ser construído na América Latina e Caribe.

Em 2014, o tema da segurança alimentar e nutricional foi incluído no Plano de Ação da

CELAC. A entidade solicitou à FAO, com a colaboração da ALADI e da CEPAL, a

elaboração de um Plano para Segurança Alimentar, Nutrição e Erradicação da Fome, o

qual seria implementado na América Latina e Caribe com o apoio dos mecanismos

regionais de integração e cooperação. Com base nas Diretrizes para o tema social da

própria organização (particularmente em quatro pilares relativos à segurança alimentar e

nutricional), FAO, ALADI e CEPAL realizaram uma série de recomendações ou “linhas

de ação” que englobam e destacam o tema das compras públicas.

Complementarmente, com o objetivo de contribuir com as bases conceituais e

operacionais para um Plano Regional de Segurança Alimentar e Nutricional para a

América Latina e Caribe, FAO e ALADI lançaram, em maio de 2014, o estudo

“Desarrollo del comercio intrarregional de alimentos y fortalecimiento de la seguridad

alimentaria en América Latina y el Caribe”. Neste documento busca-se articular ações

nacionais relacionadas à segurança alimentar e combate à fome com as negociações

comerciais e de integração regional, dedicando atenção aos regulamentos das compras

públicas. O mesmo sugere a criação de um “Acordo Marco Regional de Integração

Comercial e Segurança Alimentar da América Latina e Caribe”, com uma série de

medidas específicas para alavancar o comércio intraregional de alimentos, incluindo as

compras públicas da agricultura familiar.85

84 São eles: Antígua e Barbuda, Bolívia, Colômbia, Costa Rica, República Dominicana, Equador, El

Salvador, Guatemala, Honduras, Jamaica, Nicarágua, Paraguai, Peru, Santa Lúcia e Venezuela.

85 Neste sentido, Silva (2014, p. 20) ressalta que o “próprio Mercosul vem, desde 2003, trabalhando em

um acordo sobre o tema, o Protocolo de Contratações Públicas do Mercosul, cujas negociações, no

entanto, não chegaram ainda a uma conclusão”.

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Mais recentemente, o tema das compras públicas também ganhou destaque na

Declaração Ministerial e no Plano de Ação do Grupo de Trabalho sobre Agricultura

Familiar e Desenvolvimento Rural da CELAC, derivados da I Reunião Ministerial sobre

Agricultura Familiar da CELAC, realizada no Brasil em novembro de 2014.

É neste contexto de discussões globais que se somam os debates realizados na REAF, os

quais passam a incitar os países a discutir e implementar instrumentos de compras

públicas da agricultura familiar. Na realidade, como observado por Fabián Mila (op.

cit.), há um processo de retroalimentação entre o regional e o nacional no âmbito da

REAF: “há uma agenda regional e outra local e estas vão se nutrindo uma à outra; quer

dizer. [...]. Este tema foi mais impulsionado pela agenda regional, sobretudo pelo Brasil,

mas teve eco nos demais país.” Vejamos inicialmente o caso brasileiro.

Em 2003, o Governo Brasileiro criou o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA),

por meio do Art. 19 da Lei 10.696, atualmente regulamentado pelo Decreto 8.293/2014.

O PAA promove a articulação entre a agricultura familiar – por meio do apoio à

comercialização simplificada da produção ao Estado – e organizações públicas e

privadas dedicadas a atender as necessidades de consumo de grupos em situação de

carência alimentar ou vulnerabilidade social. Em termos gerais, o Estado compra

alimentos e produtos da agricultura familiar e os destina a populações em situação de

insegurança alimentar, ao abastecimento da rede socioassistencial, à constituição de

estoques públicos de alimentos destinados a ações de abastecimento social ou venda, e a

outras finalidades conferidas pelo poder público (Grisa et al., 2011). Procurando atender

a estas diversas finalidades, o Programa organiza-se em seis modalidades (que acionam

diferentes instrumentos institucionais), sendo elas: Compra com Doação Simultânea,

Apoio à Formação de Estoques pela Agricultura Familiar, Compra Direta da

Agricultura Familiar, Incentivo à Produção e Consumo do Leite (PAA Leite), Compras

Institucionais e Aquisição de Sementes.

Para atender aos objetivos de fortalecer a agricultura familiar e promover a segurança

alimentar e nutricional, o PAA envolve um conjunto de ações intersetoriais e necessita

da articulação de diferentes órgãos da gestão pública (localizados em diferentes escalas

– nacional, estadual e municipal) e destes com a sociedade civil. O Programa conta com

recursos do MDA e do MDS, e é executado pela CONAB/MAPA e por governos

estaduais e municipais. A governança das instituições públicas envolvidas no PAA fica

a cargo do Grupo Gestor do PAA (GGPAA), sendo este responsável pelas instruções

normativas das modalidades. O GGPAA é composto pelo MDS, MDA, MAPA,

Ministério da Fazenda (MF), Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG)

e Ministério da Educação (MEC). Adicionalmente, o Grupo Gestor criou, em 2012, um

comitê consultivo para fins de assessoramento e acompanhamento das atividades do

PAA, composto por representantes governamentais e da sociedade civil. O PAA

também conta com instâncias de controle e participação social, em especial os

Conselhos de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA) em suas esferas nacional,

estadual e municipal, e o Comitê Consultivo acima mencionado.

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Outra experiência brasileira de compras públicas é o Programa Nacional de

Alimentação Escolar (PNAE), o qual é executado no país desde a década de 1950, mas

cujas mudanças realizadas a partir da Lei 11.947/2009 aproximaram-no da agricultura

familiar. A partir de 2009, no mínimo 30% dos recursos do Fundo Nacional de

Desenvolvimento da Educação (FNDE) repassados ao Programa devem ser destinados à

aquisição de alimentos da agricultura familiar para o atendimento da alimentação

escolar. Atualmente, o PNAE é destinado aos estudantes de toda a educação básica

(educação infantil, ensino fundamental, ensino médio e educação de jovens e adultos)

matriculados em escolas públicas, filantrópicas e em entidades comunitárias

(conveniadas com o poder público), o que elucida a dimensão deste mercado

institucional para a agricultura familiar.

Os recursos do Programa têm origem no FNDE e nas complementações dos estados e

municípios, e a execução do mesmo encontra-se sob responsabilidade das Entidades

Executoras, que são os estados, os municípios, o Distrito Federal e as escolas federais.

As aquisições da agricultura familiar são realizadas por meio de Chamadas Públicas,

que consiste em um procedimento administrativo voltado à seleção da melhor proposta

para aquisição de produtos de beneficiários fornecedores e organizações fornecedoras.

Trata-se de uma espécie de “edital público” onde consta o conjunto de alimentos

demandados e todas as informações referentes à tipificação dos mesmos. Tanto no caso

do PAA quanto do PNAE, para participar destes mercados institucionais os agricultores

familiares devem estar registrados por meio da Declaração de Aptidão ao PRONAF

(DAP).

Em vista da repercussão destes programas nos debates internacionais sobre segurança

alimentar e nutricional, os ministérios brasileiros do desenvolvimento agrário (MDA) e

social (MDS) elaboraram uma agenda de intercâmbio para promover o tema na região

por meio da Agência Brasileira de Cooperação do Ministério das Relações Exteriores

(ABC/MRE), mais especificamente através do projeto de cooperação técnica

“Intercâmbio de Experiência sobre Modelos de Gestão da Política de Compras Públicas

da Agricultura Familiar”. Organizado em quatro módulos, o intercâmbio contou com a

participação de gestores governamentais e representantes da sociedade civil da

Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai, Chile e Equador. O primeiro módulo foi realizado

no Brasil em agosto de 2011; o segundo na Argentina em abril de 2012; o terceiro no

Uruguai em junho de 2013; e, o quarto novamente no Brasil, em novembro de 2013.

Esta experiência foi discutida durante a XX REAF (Caracas, novembro de 2013) e, a

partir da avaliação positiva da mesma e da entrada de novos países no debate, a XXI

REAF (Posadas, julho de 2014) decidiu dar seguimento à experiência de intercâmbio

por meio da realização do “II Programa de Intercâmbio de Experiência sobre Modelos

de Gestão de Políticas de Compras Públicas da REAF”, este organizado em cinco

módulos, dos quais dois já foram realizados, e três estão programados para serem

executados em 2015. Nestes encontros são apresentadas e discutidas as experiências

nacionais, seus modos organizacionais e arranjos institucionais, são realizadas visitas

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técnicas a empreendimentos de compras públicas e discutidas as possíveis atividades e

ações futuras.

Se as experiências brasileiras foram o ponto de partida da discussão, isso não significa,

contudo, a cópia ou transferência direta das políticas de compras públicas para os

demais países. Em cada contexto, os instrumentos estão sendo readequados aos

diferentes quadros institucionais que regulam a ação do Estado, bem como à realidade

da agricultura familiar: disponibilidade de produtos, capacidade de oferta, estrutura

logística, etc.

Na Argentina, as compras públicas de bens e serviços são realizadas por meio do

Escritório Nacional de Contratações, que procede por meio de licitações, não

dispensando qualquer tipo de tratamento diferenciado à agricultura familiar. No entanto,

no período recente foram realizadas importantes modificações institucionais, as quais

abrem possibilidades para, em um futuro não muito distante, arquitetar mecanismos

para aquisições públicas de produtos desta categoria social:

❖ Decreto 1.023/2001 – estabeleceu a possibilidade de realizar compras diretas via

“contratos aprovados pelo Ministério do Desenvolvimento Social, celebrados com

pessoas físicas ou jurídicas inscritas no Registro Nacional de Realizadores de

Desenvolvimento Local e Economia Social86”;

❖ Monotributo Social Agropecuário (MSA) – criado em 2010, este instrumento formaliza

o reconhecimento da agricultura familiar como ator da economia social no âmbito rural,

abrindo a possibilidade de somar-se ao Registro Nacional de Realizadores de

Desenvolvimento Local e Economia Local para poder comercializar seus produtos por

meio da compra direta;

❖ Sistema de contratações públicas/institucionais – foi alterado em 2012 com vistas a

articulá-lo com a implementação das políticas sociais;

❖ RENOAF – o Registro Nacional de Organizações da Agricultura Familiar é uma medida

importante para identificar potenciais participantes dos programas de compras públicas;

❖ Lei 27.118/2015 – declara de interesse público a agricultura familiar, campesina e

indígena por sua contribuição à segurança e soberania alimentar, por praticar e

promover sistemas de vida e de produção que preservam a biodiversidade e processos

sustentáveis de transformação produtiva.

A Lei 27.118/2015 recentemente aprovada de “Reparación Histórica de la Agricultura

Familiar para la Construcción de una Nueva Ruralidad en la Argentina” também

estabelece que o MGAyP deve impulsionar

La compra de alimentos, productos, insumos y servicios provenientes

de establecimientos productivos de los agricultores y agricultoras

86 Este Registro é uma ferramenta de gestão pública criada para gerir o Monotributo Social, criado para

facilitar e promover a incorporação das pessoas em situação de vulnerabilidade social à economia formal.

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familiares registrados en el Registro Nacional de Agricultura Familiar

(RENAF) tendrá prioridad absoluta en la contrataciones directas que

realice el Estado nacional para la provisión de alimentos en hospitales,

escuelas, comedores comunitarios, instituciones dependientes del

Sistema Penitenciario Nacional, fuerzas armadas y demás

instituciones públicas dependientes del Estado nacional. A tal fin se

deberán suscribir convenios de gestión con las distintas jurisdicciones

a fin de fijar metas y objetivos a cumplir. (Argentina, Lei

27.118/2015. Art. 22).

No Paraguai, os instrumentos de aquisição pública de produtos da agricultura familiar

são recentes. Em dezembro de 2013 foi publicado o Decreto 1.056 da Presidência da

República, que estabelece uma modalidade de contrato complementar, chamado

“Processo Simplificado para Aquisição de Produtos Agropecuários da Agricultura

Familiar”, o qual consiste justamente em uma simplificação dos processos tradicionais

de aquisição pública previstos em norma específica (Lei 2051/2003). O próprio Decreto

deixa explicita a influência da REAF na construção desta política pública:

Considerando: (...) Que el Paraguay es parte integrante de la Reunión

Especializada de la Agricultura Familiar - REAF - MERCOSUR que

se constituye en la herramienta para promover y lograr

transformaciones significativas en la estructura social y económica de

los países de la región, con la participación activa y decisiva de la

Agricultura Familiar y sus organizaciones. Que la Agricultura

Familiar ha sido reconocida por el MERCOSUR como protagonista

del desarrollo nacional, especialmente por su contribución a la

garantía de la seguridad alimentaria y nutricional de la población, la

estabilidad de la oferta y de los precios de los alimentos, la

dinamización de las economías locales y para la propia sustentabilidad

del desarrollo de los países, precaviendo además su importancia

política. Que entre los ejes temáticos de la REAF MERCOSUR se há

resaltado la importância de coordinar estratégias conjuntas de

comercialización de la agricultura familiar buscando consolidar

propuestas de inserción de la Agricultura Familiar em las compras del

Estado, partiendo de las experiências de los países de la región. Que la

Declaración conjunta de Ministros de los Estados Parte del

MERCOSUR sobre “Compras y Adquisiciones Públicas de Alimentos

de la Agricultura Familiar”, em fecha 18 de noviembre de 2010 han

indicado el factor fundamental del poder público em la promoción

social y econômica del médio rural a través del fortalecimento de la

agricultura familiar, la que debe contribuir al abastecimiento del

mercado institucional de alimentos, por médio de compras y

adquisiciones gubernamentales de alimentos para diversos fines y que

permitam que los agricultores familiares comercializem sus productos

a precios justos. Que partiendo de estas premisas resulta fundamental

que la República del Paraguay adopte las medidas normativas

necesarias para lograr el fortalecimiento de la Agricultura Familiar en

el marco de u proceso sustentable que tenga por objeto no solo la

promoción de soluciones inmediatas, sino un esquema que propugne

la consolidación del sector agropecuário familiar como factor clave en

la economía nacional (Paraguay, Presidencia de la República, Decreto

1.056/2013).

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Abarcando os níveis dos governos central, departamental e municipal, este normativo

permite a realização de procedimentos de compras diferenciadas dirigidas a adquirir

diretamente bens produzidos por produtores ou organizações de produtores

agropecuários da agricultura familiar. O normativo estabelece também, dentre outros

aspectos, que será utilizado o instrumento de Carta de Invitación aprovada pela Direção

Nacional de Contratações Públicas; que poderá ser antecipado até 30% do valor total do

contrato; que o pagamento aos participantes se realizará em um prazo não superior a 30

dias posteriores a recepção do produto pelo convocante; e, que este deve assegurar que

o produtor seja da agricultura familiar e localizado na jurisdição do convocante (o que

acrescenta um elemento de priorização a produtos locais).

Ainda no caso paraguaio também é importante destacar a promulgação da Lei

5.210/2012 sobre alimentação escolar e controle sanitário. Dentre outros elementos, a

mesma estabelece as Diretrizes para a alimentação escolar, sendo que uma delas

menciona que “se deberá priorizar la adquisición de alimentos de la Agricultura

Familiar, mediante procedimentos sumários que garanticen la compra a sus integrantes”.

Estes procedimentos se aplicam em caráter de exceção às disposições estabelecidas nos

quadros regulamentares vigentes para os Contratos Públicos (Lei 2051/2003) e para a

Administração Financeira do Estado (Lei 1535/1999).87

No Uruguai, as discussões sobre compras públicas também nascem impulsionadas pelos

diálogos regionais e desembocam, primeiramente, em um projeto piloto implementado

no ano de 2010. Grosso modo, o mesmo consistiu em uma tentativa de organizar os

agricultores e suas organizações para adentrar no complexo jogo das licitações públicas,

que é o mecanismo utilizado pelo Estado uruguaio para aquisição de produtos e

serviços. Como destaca Fernando Sganga, este mecanismo logo se revelou pouco

adaptado à realidade da agricultura familiar, o que fez com que o projeto exibisse

resultados muito aquém do esperado. Mas ele serviu como tubo de ensaio para as

mudanças institucionais futuras.

La agenda de las compras públicas surge en Uruguay en el ámbito de

la Sección Nacional, mirando lo que estaba pasando en Brasil. […]

Empezamos el trabajo con un Proyecto Piloto en 2010. Sirvió para

darnos cuenta de que no era por ahí. […] Había una ley de compras

públicas que estaba focalizada en la agricultura familiar. Se creó la

ley, pero nunca se reglamenta esta ley. Que es a través de las compras

centralizadas y licitaciones que realiza el Estado. Pero nunca se

reglamenta. A partir de esto empezamos el Proyecto Piloto e

invitamos las organizaciones para se presentaren en las licitaciones.

Pero, ahí fue mal. Las licitaciones no van por ahí. O sea, no es el

camino correcto. A partir de esta mala experiencia empezamos a

organizar una nueva experiencia a partir de una ley de compras

87 Como efeito destas duas mudanças institucionais, Silva (2014) relata que, em novembro de 2014,

comunidades indígenas do Distrito de Abai, no Departamento de Caazapá, foram as primeiras a receber a

alimentação escolar elaborada com alimentos adquiridos das organizações da agricultura familiar da

localidade.

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públicas, que es la ley que se termina de reglamentar hace poquito.

(Fernando Sganga, op. cit.).

Em abril de 2014, os Ministerios de Desarrollo Social; Ganaderia, Agricultura y Pesca;

Industria, Energía e Mineria88; e Relaciones Exteriores e a Oficina de Planejamiento y

Presupuesto iniciaram a construção de um Projeto de Lei sobre Compras Públicas com

participação da Agricultura Familiar. Este projeto ingressou no Parlamento uruguaio em

julho de 2014, por meio da Comissão Especial de População e Desenvolvimento Social

de Deputados e, em dezembro do mesmo ano, foi aprovado nesta instância e sancionado

pelo Presidente. A Exposición de Motivos apresentada durante a tramitação do projeto

mostra claramente a influência dos diálogos políticos na REAF:

Paralelamente a este proceso desde el MERCOSUR, especialmente en

su Reunión Especializada de Agricultura Familiar, los Estados Partes

se han comprometido en 8 diferentes y múltiples declaraciones a

realizar esfuerzos institucionales entorno a lo que Seguridad

Alimentaria y Agricultura Familiar refiere, reconociendo como una de

las principales herramientas para esto, las compras públicas. En

noviembre de 2010, los Ministros realizan una declaración sobre las

compras y adquisiciones públicas de alimentos a la agricultura

familiar, donde resaltan su apoyo a las mismas dada su relevancia en

la promoción de la seguridad alimentaria y nutricional. (Uruguai,

Cámara de Senadores, Comisión de Ganadería, Agricultura y Pesca,

2014, p. 8)

Desde então, o Uruguai conta com a Lei 19.292/2014, a partir da qual a “Produção

familiar agropecuária e pesca artesanal se declara de interesse geral e se estabelece um

mecanismo de reserva de mercado estatal de bens e serviços alimentícios”. Dentre

outros elementos, este normativo estabelece: (a) um mecanismo de reserva mínima de

mercado de 30% para as compras centralizadas do Estado e de 100% para as não

centralizadas, de bens alimentícios provenientes de Organizações Habilitadas (não

podem participar das aquisições públicas unidades familiares de forma individualizada),

sempre que exista oferta; (b) a priorização de compras em circuitos de proximidade ou

circuitos curtos; (c) a definição de que são organizações habilitadas todas aquelas que

estão integradas ao menos por cinco produtores agropecuários, sendo que, no mínimo

70% devem ser produtores familiares agropecuários e/ou pescadores artesanais, com

registro ativo na Direção Geral de Desenvolvimento Rural do MGAP. É importante

destacar que, embora ainda não exista um programa específico de compras públicas

para a agricultura familiar, esta Lei assegurou a participação da categoria social no

mercado institucional. A partir dela é possível, por exemplo, garantir processos

licitatórios exclusivos para a concorrência das organizações da agricultura familiar.

88 Conforme entrevista realizada, este Ministério participou das discussões em virtude de experiências

vivenciadas na construção de “brechas” na legislação de compras públicas para a participação de médias e

pequenas empresas.

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Ainda com relação ao caso uruguaio, para aplicar as decisões recém regulamentadas, em

seu Art. 8 a Lei 19.292 também cria o Registro Nacional de Organizaciones Habilitadas

(RENAOH), o qual possibilitará a caracterização das organizações da agricultura

familiar, medida indispensável para dar inicio a este programa e a outras políticas

públicas que demandem o reconhecimento das organizações da agricultura familiar.

Dentre os países associados ao MERCOSUL, a Bolívia, desde o ingresso de Evo

Morales na Presidência da República (2006), avançou em um conjunto de mudanças

institucionais neste tema. De modo particular, como observa Mercado (2014), a nova

Constituição assinada em 2009 estabeleceu a obrigação do Estado em dar preferência a

micro e pequenas empresas, organizações de pequenos produtores e campesinos nas

compras públicas e na prioridade da produção nacional. Ademais, em junho de 2009, foi

estabelecido um novo Decreto Supremo (NB - SABS 0181) que, em seu Artigo 42,

reconheceu os pequenos produtores organizados em Micro e Pequenas Empresas,

Associações de Pequenos Produtores, Organizações Econômicas Campesinas (OECAS),

e cooperativas, como sujeitos proponentes habilitados para os processos de contratação

estatal. O Decreto também prioriza e outorga preferências aos produtores nacionais,

micro e pequenas empresas, sendo as preferências destinadas aos pequenos produtores

de até 30% sobre os demais ofertantes. Além disso, o Decreto apresenta efeitos sobre a

alimentação escolar ao estabelecer que a mesma seja elaborada com matérias primas de

produção nacional. De acordo com relatório da FAO (2013), foi entre 2006 e 2010 que

os produtores locais passaram a ser incluídos como provedores da alimentação Escolar.

Em 2011, o país aprovou a Lei 144, denominada de “Lei da Revolução Produtiva

Comunitária Agropecuária” que, em diferentes trechos, menciona as compras públicas:

(a) Art. 20 (Política de Promoção do Consumo Nacional) – estabelece que o nível

central do Estado e as entidades territoriais devem “Incorporar a las comunidades

indígena originario campesinos, comunidades interculturales y afrobolivianas como

entidades proveedoras de alimentos para el Programa de Alimentación Complementaria

Escolar y el Subsidio de Lactancia Materna, con este fin se establecerá la normativa

necesaria para que sean habilitadas como entidades de provisión de bienes y servicios.”;

(b) Art. 25 (Política de Atenção de Emergências Alimentares) – define que “En caso de

fenómenos asociados a desastres naturales e intervenciones antrópicas que pongan en

riesgo el acceso a la alimentación, el Estado implementará programas para dotar de

alimentos suficientes a las poblaciones afectadas, fomentando la compra de alimentos

locales mediante un trabajo coordinado entre las instituciones competentes.”;

(c) Art. 41 (Empresa de Apoio à Produção, EMAPA) – estabelece que o “El nivel

nacional de Estado fortalecerá a la Empresa de Apoyo a la Producción de Alimentos –

EMAPA, creada mediante Decreto Supremo 29.230 de fecha 15 de agosto de 2007,

constituyéndose como Empresa Pública Nacional Estratégica, con el objeto de apoyar a

los sectores de la cadena productiva de alimentos, la producción agropecuaria y

agroindustrial, en productos que sean deficitarios en Bolivia, contribuir a la

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estabilización del mercad interno de productos agropecuarios y agroindustriales y a la

comercialización de la producción agrícola en el mercado interno y externo.”

Ainda no que concerne à alimentação escolar na Bolívia, cabe salientar a aprovação

recente da Lei 622/2014, denominada Lei da Alimentação Escolar, no marco da

Soberania Alimentar e Economia Plural. Uma das finalidades estabelecidas pela norma

é “Fomentar a compra de produtos destinados a Alimentação Complementar Escolar,

incentivando e priorizando o consumo e a produção local de alimentos”. Esta Lei

considera como provedores locais de alimentos para a Alimentação Complementar

Escolar os seguintes atores da economia social comunitária: pessoas naturais;

associações de pequenos produtores rurais; organizações econômicas campesinas e

indígenas originárias; e, organizações econômicas comunitárias; famílias produtoras

indígenas originárias, campesinas, interculturais e afrobolivianas organizadas na

agricultura familiar sustentável. Ademais, a Lei estabelece os procedimentos contratuais

para garantir a participação dos agricultores familiares neste mercado institucional.

No Equador, em 2009 foi criado o Programa de Provisão de Alimentos (PPA),

vinculado ao Ministério de Inclusão e Economia Solidária, que executa processos de

compra e provisão de alimentos para as entidades públicas e programas sociais,

facilitando a incorporação dos pequenos produtores como fornecedores, em

concordância com a política de inclusão econômica e social (Sanches, Veloso e

Ramirez, 2014).

De acordo com Novoa (2014), as compras públicas no Equador apresentam dois

objetivos: (a) satisfazer as necessidades alimentícias dos programas sociais e de

hospitais, quartéis, presídios e instituições do Governo que necessitam de alimentos; e,

(b) gerar impactos positivos na economia dos pequenos e médios produtores agrícolas e

artesanais. O mesmo autor também relata a logística de aquisições públicas vigentes no

período de 2009 a 2011, a qual envolvia os seguintes passos: recepção das demandas

dos programas sociais; identificação dos potenciais fornecedores que devem ser

oriundos da economia popular solidária, sendo esta etapa realizada em conjunto entre o

PPA e o Instituto de Economia Popular e Solidária (IEPS); compra de produtos

considerando os parâmetros de quantidade, qualidade e preços estabelecidos pelas

entidades demandantes; verificação da qualidade por meio de uma empresa particular;

coleta dos produtos e posterior distribuição nas distintas instituições demandantes ou

aos correspondentes programas de ajuda social; e, monitoramento dos programas sociais

que recebem os alimentos do PPA.

O Chile também vem realizando ações e projetos pilotos de compras da agricultura

familiar, ainda que, por hora, sem o estabelecimento de um corpo normativo específico.

O Instituto de Desenvolvimento Agropecuário (INDAP) definiu como uma de suas

ênfases estratégicas para o período 2014-2018 o fomento à inclusão e participação da

agricultura familiar nos processos de compras públicas de alimentos, com o objetivo de

dar acesso a mercados estáveis e seguros ao setor, considerando seu benefício para as

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economias locais. Como parte deste fomento, em julho de 2014, o INDAP, em parceria

com o RIMISP e a organização internacional Slow Food, demandou a realização de um

estudo sobre a “Caracterização dos mercados públicos de alimentos no Chile e

recomendações para fomentar a inclusão sustentável da Agricultura Familiar

Camponesa chilena nos processos de compras públicas”.

Atualmente encontra-se em negociação e implementação no Chile um conjunto de

projetos pilotos de aquisição de alimentos da agricultura familiar, à exemplo do

fornecimento de produtos para a cantina de Oficiales de la Escuela de Artillería de

Linares, do plano de compras públicas em três empresas concessionárias do Programa

de Alimentação Escolar (PAE) nas regiões de Maule, O’Higgins e Los Lagos, e do

abastecimento da cantina do próprio INDAP. A relação destas iniciativas com os

debates conduzidos no âmbito regional é explicitada pela afirmação de Octavio

Sotomayor. Questionado sobre as principais conquistas decorrentes da participação do

país nestes dez anos de diálogos políticos no âmbito da REAF, o diretor nacional de

INDAP afirma:

El principal logro es que los dirigentes chilenos que participan en la

REAF, que representan a 16 organizaciones de carácter nacional, se

han transformado en actores reales, con capacidad de participar en el

diseño de las políticas públicas. Entre otras áreas en donde hemos

podido constatar estos aportes podemos mencionar la política de

INDAP para el fortalecimiento de las organizaciones de

representación (de nivel nacional y regional) y de las organizaciones

económicas (cooperativas de base y otras), así como el diseño del

sistema “Sello Campesino”, que será implementado próximamente

para promover los productos campesinos en los mercados internos.

También REAF ha sido muy útil para impulsar la política chilena de

compras públicas a la agricultura familiar. (Octavio Sotomayor ).89

A partir dos rápidos avanços que têm sido produzidos no tema das compras públicas de

alimentos da agricultura familiar em toda a região – impulsionados pela agenda

internacional que fortaleceu a preocupação das organizações multilaterais (sobretudo da

FAO) e dos estados nacionais no que tange às estratégias de segurança alimentar e

nutricional – alguns atores apostam neste tipo de política como aquilo que há de mais

próximo do que poderia, em um futuro próximo, ser objeto do esforço coletivo da

REAF para a criação de um instrumento de política pública em nível regional. É isto

que aponta, por exemplo, o estrato da entrevista realizada com Caio França, então

Coordenador Alterno do Brasil na REAF:

A REAF produziu instrumentos regionais. Mas agora a gente avalia

que está maduro e pode discutir um instrumento regional finalístico,

como um programa regional de compras públicas. [...] A agenda da

segurança alimentar está muito difundida entre os países e essa agenda

89 Octavio Sotomayor. Diretor Nacional do Instituto de Desenvolvimento Agropecuário (INDAP). Estrato

de entrevista concedida em abril de 2015.

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valoriza e reconhece a contribuição da agricultura familiar. [...] Nós

podemos então pensar em uma lógica de complementariedade. [...]

Aproveitando o compromisso da região com o combate a pobreza

rural e a garantia da segurança alimentar, e com os instrumentos

regionais anunciados, há melhores condições de abrir uma discussão

sobre ampliar o comércio interregional de alimentos da agricultura

familiar. Essa é a aposta que está sendo feita. (Caio França, op. cit.).

Tema a ser retomado na última parte do estudo, este tipo de proposição traz à tona

novos desafios e anima uma agenda de discussões sobre o futuro da REAF, bem como

da sua relação com outras instâncias regionais de diálogo para construção de políticas

para a agricultura familiar, como é o caso da CELAC e da UNASUL, as quais também

têm apontado para ações no campo da segurança alimentar e nutricional.

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13. As iniciativas de cooperação bilateral: o exemplo das políticas de seguro

agrícola

Dentre todos os resultados produzidos ao longo dos dez anos de diálogos políticos na

REAF, há que se destacar um conjunto mais ou menos disperso de ações que não foram

necessariamente objeto de projetos regionais, ou que, mesmo sendo pautadas nas

reuniões regionais, foram capitaneadas por apenas alguns países membros e/ou

associados – seja porque estes apresentavam necessidades mais prementes de

estruturação de determinadas políticas públicas, seja porque dispunham de condições

econômicas e institucionais mais favoráveis para aprimorá-las. Com freqüência, este

tipo de resultado está associado a agendas de cooperação bilateral. Sempre que possível,

a REAF estimulou parcerias entre os países em temas específicos, atuando como uma

ponte entre atores dispersos.

Não se compreende a trajetória da REAF olhando exclusivamente

para as coisas que ocorrem no nível regional. Tem uma agenda de

cooperação bilateral que é impulsionada a partir deste ambiente. [...] A

REAF estabelece um ambiente de confiança e cumplicidade que

legitima as relações bilaterais. Isso é uma coisa muito rica do ponto de

vista da integração regional. (Caio França, op. cit.).

A preocupação com o estímulo à cooperação bilateral remonta já às primeiras reuniões.

A III REAF, realizada em maio de 2005, em Assunção, é um marco neste sentido.

Primeiramente, porque aprovou a proposta de conformação de um Grupo de Trabalho

sobre Cooperação Técnica (III REAF/Documento Técnico n. 1), cujas finalidades eram:

(a) apoiar os processos de cooperação técnica entre os Estados Parte e Associados de

forma bilateral; (b) estimular a aplicação no âmbito regional de acordos de cooperação

bilateral; (c) estudar novas oportunidades de cooperação bilateral; (d) buscar

oportunidades de cooperação com o conjunto do bloco a partir de países terceiros,

outros blocos e organismos internacionais. Assim, embora este grupo não tenha sido

institucionalizado do mesmo modo que os demais, sua criação revela a preocupação dos

atores políticos com esse tipo de iniciativa desde o princípio da REAF.

Em segundo lugar, esta mesma reunião de Assunção foi importante porque ela pautou a

proposta de criação de outro grupo de trabalho, conformado para seguir o projeto piloto

de Seguro de Cobertura de Risco Climático para a Agricultura Familiar no

MERCOSUL. Foi a partir deste grupo que, posteriormente, se estruturou o GT de

Seguro Rural e Gestão do Risco, isso após as discussões que ocorreram no Seminário

Internacional sobre Seguro de Emergência e Seguro Agrícola, realizado entre 29 de

junho e 2 de julho de 2005, em Porto Alegre, Brasil. E foi justamente a partir deste

grupo que se estruturaram algumas das experiências de cooperação bilateral mais

discutidas na REAF, quais sejam, os acordos na área das políticas de seguro agrícola.

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Em 2006, primeiro ano de ação efetiva do GT, prevaleceu na agenda do mesmo a

proposta de uma ação regional para a construção de políticas de seguro agrícola. Não

obstante, o primeiro passo até se chegar a uma iniciativa regional seria uma iniciativa de

cooperação bilateral envolvendo Paraguai e Brasil, com o apoio do Programa FIDA

Mercosul. Foi a partir daí que se desenhou o projeto Seguro de Cobertura de Risco

Climático para a Agricultura Familiar (Fondo Seguro de Cosecha), cuja versão final foi

aprovada na VI REAF (Porto Alegre, dezembro de 2006). Implementado no Paraguai a

partir de recursos próprios do Ministério de Agricultura e Ganadería (MAG), o objetivo

do Projeto era criar meios para ampliar o conhecimento dos agricultores sobre os riscos

climáticos e reduzir as perdas na agricultura familiar, melhorando as condições de

segurança alimentar e nutricional no país.

O projeto possibilitou uma série de reuniões e encontros entre técnicos especializados

em seguro agrícola e gestão de riscos dos ministérios paraguaio e brasileiro. A iniciativa

qualificou o diálogo na REAF sobre o tema, e permitiu importantes resultados na

produção de novas capacidades técnicas. Evidencia disso é que, apesar das dificuldades

que o Paraguai ainda encontra para implementar uma política pública de seguro rural

específica para a agricultura familiar, há avanços na construção de institucionalidades e

um esforço de aprimoramento gradual das ações públicas.

Em 2006, por meio da Resolução Ministerial 433/2006, o MAG paraguaio estabeleceu a

Oficina do Sistema de Informação de Suporte para a Tomada de Decisões, a qual

incorporou uma Unidade de Gestão de Risco (UGR), cujos objetivos voltam-se a

produção de informações e produtos (zoneamento agroclimático, mapas, base de dados,

estatísticas, prognósticos, modelos de simulação etc.) para o setor agropecuário. Por sua

vez, o Marco Estratégico Agrário 2009/2018 contemplou um eixo específico de

desenvolvimento da agricultura familiar e segurança alimentar, onde se prevê o

fortalecimento dos mecanismos de Gestão de Risco no processo produtivo da

agricultura familiar. O mesmo se repete no Marco Estratégico Agrário 2014/2018, onde

se focaliza a melhoria do acesso a instrumentos de redução e mitigação de riscos; a

implementação de sistemas de alerta; o desenho e a implementação de um sistema de

seguro agrícola; a criação de um fundo de contingência para eventos catastróficos; e a

implementação de linhas de financiamento para a adoção de tecnologias de prevenção e

mitigação de riscos. No caso da agricultura familiar, o documento define como objetivo

estratégico “establecer mecanismos de manejo de riesgos en los procesos productivos de

la AF, para visibilizar su resiliencia ante las contingencias climáticas y otros.”

(Paraguai, 2014b, p. 35). 90

90 Em maio de 2015, o governo paraguaio anunciou o apoio do Banco Mundial à estruturação do Seguro

Agropecuário. Embora ele não seja específico aos pequenos produtores, como destacou o Ministro da

Agricultura, Jorge Gattini, por ocasião do lançamento do mesmo, “creemos que es de suma urgencia

implementar el Seguro Agropecuario por la eficiencia económica que podemos crear y por la estabilidad

que podríamos dar a los productores de la agricultura familiar”. Fonte: http://www.mag.gov.py. Acesso

em 25 de maio de 2015.

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Em 2008, a partir dos resultados do projeto piloto implementado no Paraguai, a REAF

encaminhou uma demanda ao GMC com vistas a aprovar a utilização de recursos do

FOCEM para replicação das ações de cooperação em seguro agrícola em escala

regional, o que não teve prosseguimento. Para além dos entraves institucionais (rubricas

autorizadas para uso dos recursos do Fundo), o elevado custo deste tipo de instrumento

acabou desincentivando sua utilização em escala regional. Pode-se dizer que os gestores

do FOCEM não se sensibilizaram suficientemente com os argumentos apresentados a

ponto de conceder recursos para uma política sabidamente custosa. Este comportamento

não é exatamente uma novidade tendo em vista a lógica formal de avaliação das

políticas com que também operam os ministérios responsáveis pela gestão das contas

públicas.

Nós tentamos fazer um trabalho com o apoio do FOCEM, mas isso

esbarrou em um monte de coisas. O pessoal técnico do FOCEM

avaliou que o projeto não se enquadrava e barraram isso. Então, o

trabalho de cooperação acabou ficando mais na parte de intercambio.

Nós também apoiamos a vinda deles aqui, através da Agência

Brasileira de Cooperação. Fizemos várias seções de intercâmbio com

as instituições brasileiras que estão vinculadas à área de seguro. (José

Carlos Zukowski, op. cit.).

A nova estratégia passou a ser pautada pelo fortalecimento da cooperação bilateral,

incluindo também uma preocupação com os países associados. Daí resultou, dentre

outras coisas, um novo intercâmbio de experiências sobre seguro agrícola, desta vez

entre Bolívia e Brasil. O termo de cooperação técnica entre os dois países foi assinado

em 2010, e visava, basicamente, a criação de um programa de seguro agropecuário no

país andino. As missões dos técnicos brasileiros do MDA e dos gestores do Vice-

Ministério de Desenvolvimento Rural da Bolívia pautaram-se pela metodologia já

recorrente nos diálogos da REAF: apresentar as políticas existentes, explicar o contexto

e as condições sob as quais elas foram construídas, analisar suas potencialidades e

limites, e discutir os ensinamentos que podem ser extraídos. Ensinamentos que também

provinham de outros contextos – neste caso, das relações de cooperação que a Bolívia

também mantinha com o México na mesma área de seguro agrícola.

Com a Bolívia nós tivemos uma agenda, patrocinada pela Agência

Brasileira de Cooperação, onde o pessoal técnico deles veio até aqui e

nós apresentamos para eles os nossos programas, apresentamos outras

instituições que nos dão suporte, como os órgãos de meteorologia,

Embrapa, Ministério da Agricultura, para eles conhecerem o contexto

e como funcionava. Depois teve uma etapa onde nós fomos lá para

fazer rodadas de discussões com eles. Neste momento, eles já

começaram a formular o programa deles. Aí o México também tinha

um acordo de cooperação com eles, para também subsidiá-los nestas

discussões. Depois tiveram outros momentos que a gente esteve lá

discutindo e ajudando a formular o programa deles. (José Carlos

Zukowski, op. cit.).

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Assim como no Paraguai, o que existia na Bolívia em termos de políticas de gestão de

riscos estava voltado para emergências e desastres naturais, adotando basicamente uma

perspectiva humanitária. A inclusão de uma preocupação como setor agropecuário e

enfoque integrado de desenvolvimento adentrou à esfera pública sobretudo a partir dos

anos 2000. Dentre as várias razões para isso estão os efeitos dramáticos que os

fenômenos El Niño e La Niña ocasionaram ao setor agropecuário do país entre 2006 e

2008. Do ponto de vista estritamente econômico, eles foram responsáveis por uma

perda de mais de 400 milhões de dólares (IICA, 2010).

Como já vimos anteriormente, a partir da posse do presidente Evo Morales, em 2006, o

país passou a vivenciar uma série de transformações institucionais. A Nova

Constituição Política do Estado Plurinacional da Bolívia, aprovada no inicio de 2009,

apresenta, dentre os objetivos da Política de Desenvolvimento Rural Integral, “proteger

la producción agropecuária y agroindustrial ante desastres naturales e inclemências

climáticas, geológicas y siniestros. La ley preverá el seguro agrário”. (Art. 407). Por sua

vez, no mesmo ano, o Decreto Supremo 29.894/2009 estabeleceu, dentre as atribuições

do Ministro de Desenvolvimento Rural e Terras, “promover la implementación del

Seguro Agropecuário”.

Desde então, a Unidade de Contingência Rural, vinculada à Direção Geral de Produção

Agropecuária e Soberania Alimentar do Vice-Ministério de Desenvolvimento Rural e

Agropecuário, tem empreendido esforços na construção de um sistema de seguro rural.

Após vários anos de diálogo, em 2011 o país aprovou a Lei 144, de Revolución

Productiva Comunitaria Agropecuaria, a qual estabelece o Seguro Agrario Universal

‘Pachamama’, cuja gestão está sob responsabilidade do também recentemente criado

Instituto del Seguro Agrario (INSA). Trata-se de um mecanismo de seguro rural sob

responsabilidade do Estado, mas que conta com participação ativa das comunidades

rurais no processo de gestão, sobretudo na avaliação das perdas. Uma vez verificada a

necessidade de suporte público, o Estado repassa um montante de recursos monetários

para as famílias atingidas. Como destaca Amílcar Mamani Gonzales, Diretor Geral de

Terras do Ministerio de Desarrollo Rural y Tierras da Bolívia, os diálogos levados à

cabo na REAF foram importantes para o desenho do programa:

La REAF es un encuentro donde se aprende experiencias y se aprende

a manejar este tipo de seguros. Y nosotros, de acuerdo con la Ley 144

conformamos el Seguro Pachamama y se creo el Instituto Nacional de

Seguro Agrario (INSA) y de ahí tuvimos la idea de trabajar en pocos

municipios. Entonces a partir de ahí decidimos seguir progresando.

Implantamos eso, trabajamos y vimos que dio resultado. Los

hermanos de nuestros departamentos viran que el Estado está

garantizando su producción. No es un seguro bancario. Es de nuestro

proprio Estado. (Amílcar Mamani Gonzales).91

91 Amílcar Mamani Gonzales. Diretor Geral de Terras do Ministerio de Desarrollo Rural y Tierras da

Bolívia. Estrato de entrevista concedida em junho de 2015.

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Este tipo de seguro universal tem a finalidade de garantir a produção agrícola afetada

por danos provocados por fenômenos climáticos e desastres naturais. Uma de suas

principais modalidades é o Seguro Agrario para Municipios con Mayores Niveles de

Extrema Pobreza (SAMEP). Este se dirige especificamente a contextos de maior

pobreza rural, o que caminha ao encontro de uma perspectiva que vem ganhando

adeptos em todo o mundo, qual seja, o uso de seguro climático paramétrico como

mecanismo de redução da pobreza (IRI, 2010). Trata-se de uma ideia que ganhou

evidencia junto ao Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e

que, de modo inovador, questiona a ideia bastante difundida entre muitos gestores

públicos de que este tipo de política somente consegue se sustentar junto a grandes e

médios produtores.

Ao adotar esta estratégia, a política boliviana retroalimenta uma discussão importante

no âmbito regional acerca do público beneficiário das políticas de seguro rural. Uma

discussão que está na ordem do dia inclusive no Brasil, que outrora se colocava como

uma espécie de exemplo a ser estudado pelos demais países. A experiência do Seguro

da Agricultura Familiar (SEAF), diretamente vinculado ao Programa Nacional de

Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF), por meio da renúncia parcial do

estado aos recursos de financiamento concedido aos agricultores familiares em caso de

perdas com intempéries climáticas, tem sido objeto de intenso debate junto aos

movimentos sociais. Dentre as reivindicações que estes dirigem ao Estado, está a

desvinculação entre as políticas de seguro e crédito agrícola. Talvez as experiências de

outros países possam contribuir para que se alcance alguma solução para este impasse.

Seja como for, essas experiências revelam que as ações de cooperação não se pautam

pela pretensão de replicar a mesma política em diferentes contextos. Em todo o mundo

há uma variedade de instrumentos de gestão de riscos. Muitos se enquadram nos

mecanismos de transferência de recursos por meio dos quais o Estado subsidia sistemas

privados de seguro rural, às vezes incorporando alguns diferenciais em relação ao tipo

de público, produto ou região. Outros compõem ações mitigadoras que o Estado pode

assumir, sobretudo em situações de catástrofes ambientais. Neste caso existem desde

fundos específicos para atender situações “não asseguradas” pelos seguros tradicionais,

até o uso de mecanismos de renúncia fiscal, os quais liberam os agricultores do

pagamento de determinados tributos ou financiamentos.

Muito cedo nos trabalhos do grupo ficou claro que não havia como

padronizar as políticas. É impossível. Cada país tem que ter sua

fórmula. Não só pelas características diferenciadas, mas porque cada

um tem suas limitações políticas, econômicas, legais etc. Cada um tem

sua história. Não tem como padronizar. Então, esse chegou a

conclusão que dava para colocar delineamentos gerais para as

políticas, colocando algumas condições gerais. E a partir disso é

importante promover estudos e intercâmbios de experiências, fazendo

trabalhos em conjunto para que um possa aprender com a experiência

do outro. Não tem como copiar. (José Carlos Zukowski, op. cit.)

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Independentemente dos mecanismos utilizados, o que se destacou nas discussões

levadas à cabo na REAF foi o reconhecimento dos limites que os seguros privados

impõem à participação da agricultura familiar, bem como da necessidade de uma ação

efetiva do Estado junto a este segmento em vista de sua importância estratégica para a

segurança alimentar e nutricional. A partir deste entendimento foi possível produzir uma

crescente conscientização por parte dos governos nacionais de que os mecanismos

tradicionais de mercado não conseguem atender suficientemente parcela significativa da

agricultura familiar, sobretudo aqueles agricultores mais vulneráveis. Com efeito,

mesmo em países que vivenciaram um intenso processo de liberalização e

reorganização de setores-chaves da agricultura, como o Chile e o Brasil, onde o seguro

privado avançou nos últimos anos, percebe-se uma crescente preocupação com o

incremento da ação do Estado através da criação de mecanismos de subvenção.

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PARTE IV – Transições, desafios e prospecções

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14. Uma experiência singular de produção de políticas públicas

Em dezembro de 2014, antecedendo à seção plenária final da XXII REAF, realizada em

Montevidéu, os representantes da Sociedade Civil construíram um balanço dos dez

primeiros anos deste espaço. O Quadro 6 apresenta a síntese desta avaliação tal qual ela

foi formulada pelos próprios atores sociais. Mais uma vez a REAF é reconhecida como

um (a) espaço democrático e participativo (b) conquistado pelas organizações sociais da

agricultura familiar, campesina e indígena, onde o diálogo entre sociedade civil e

governos permite inovar na construção das políticas de desenvolvimento rural. Soma-se

a isso um conjunto de resultados já analisados em maior ou menor profundidade neste

estudo: (c) a construção dos Registros da Agricultura familiar; (d) a criação do FAF; (e)

o reconhecimento da agricultura familiar perante os governos e a sociedade; (f) a

organização dos GTs como método de trabalho e forma de democratização dos debates;

(g) o incentivo à criação de programas de compras públicas; (h) o incremento da

participação de mulheres e jovens; (i) a melhoria da participação da sociedade civil nas

seções nacionais; (j) o desenvolvimento de ações nacionais e regionais no âmbito do

Ano Internacional da Agricultura Familiar; (k) a capacidade de propor políticas públicas

para os governos nacionais; (l) a abertura à realização de estudos e pesquisas; (m) a

busca do diálogo com o mundo acadêmico.

Quadro 6 – Síntese do balanço da Sociedade Civil dos dez anos da REAF.

AVANÇOS

a) Espacio de construcción y consolidación de democracia participativa.

b) Conquista de las organizaciones sociales y espacio de articulación regional – MERCOSUR Ampliado para la armonización de políticas públicas para la Agricultura Familiar, dentro de una metodología de diálogo entre sociedad civil organizada y gobiernos.

c) Promoción de la institucionalización de la AF en los países del MERCOSUR Ampliado y construcción de Registros de la AF en la mayoría de ellos.

d) Creación y gestión del Fondo de Agricultura Familiar – FAF con la obligación de los países de aportar para su desenvolvimiento y actuación.

e) Construcción y gestión de agenda propia y reconocimiento regional e internacional de referencia de la AF frente al agronegocio.

f) Creación de los Grupos de Trabajo (GTs) como metodología de análisis, diálogo y proposición entre los gobiernos y organizaciones de la sociedad civil como forma de democratización de los temas tratados.

g) Motivación al establecimiento de las compras públicas en los Estados Parte a partir de los intercambios y revisiones de experiencias.

h) Presencia más equilibrada de representantes gubernamentales y de la sociedad civil con incremento cualitativo y numérico de mujeres y jóvenes.

i) Aumento de participación de las organizaciones de la sociedad civil en las secciones nacionales.

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j) Desarrollo de acciones regionales y nacionales en el marco del AIAF 2014.

k) Capacidad incrementada para elaborar propuestas concretas de políticas públicas a favor de la AF para los gobiernos.

l) Apertura a investigadores, especialistas y estudios regionales sobre la AF de la región y motivación a coordinar experiencias con los espacios universitarios.

m) Búsqueda de oportunidades en la UNILA para la planificación de acciones / actividades para la AF regional.

Fonte: XXII REAF. Montevidéu, dezembro de 2014.

Estes resultados são ratificados pelos atores institucionais, os quais sublinham a

influencia da REAF para a produção de políticas públicas para a agricultura familiar

dentro de cada um dos países:

Uno puede decir que la REAF ha sido muy exitosa y a tenido

resultados tangibles. Nosotros discutimos eso con los agentes de

evaluación… Ellos indagan… ¿cómo cambia eso que hacen ustedes

para la gente realmente? Yo no sé al campesino que está no estado de

Piauí, a esa señora o a ese señor específicamente cuanto le cambia.

Pero, le cambia que hoy hay espacios de diálogo, que hay

institucionalidad pública, que hay políticas públicas, que hay

instrumentos y que hay mucho más presupuesto. (Álvaro Ramos, op.

cit.).

Para el caso nuestro [Argentina], fue muy fuerte la instalación de la

institucionalidad de la agricultura familiar en el país. No solamente la

ley. Cuando empieza la REAF había sólo dos programas, con

financiamiento externo, que se dirigían a la agricultura familiar. Hoy

hay una Secretaria de Agricultura Familiar. Primero se creó la sub-

secretaria que ahora, hace poco, se tornó la Secretaria de Agricultura

Familiar, lo que implica un presupuesto. Y en eso la REAF ayudó

mucho. (Maria Quiroga, op. cit.).

Eu avalio da forma mais positiva possível a experiência da REAF. É

inquestionável o avanço que este tema da agricultura familiar teve na

América Latina. É inquestionável desde o ponto de vista do

compromisso político, da criação de leis, instituições e políticas

públicas. Eu não estou falando da efetividade e da eficácia de todo

esse arcabouço na vida política social e econômica dos países. Eu falo

do esforço de integração regional e das leis e instituições construídas

nos países. Tudo isso, sem a menor dúvida, não teria sido possível

sem a REAF. Hoje ela é vista como uma experiência importante para

toda América Latina e também para o resto do mundo. (Francesco

Pierri, op. cit.).

Obviamente, estes efeitos estão associados a desafios não menos importantes para a

consolidação desta jovem experiência. As organizações sociais e os próprios gestores

públicos também são portadores de críticas, reivindicam mudanças, correção de

caminhos e qualificação dos diálogos. Por hora, contudo, vamos nos dedicar a

compreender os fatores desta complexa equação cujos resultados, à primeira vista, soam

tão promissores tanto àqueles atores que participaram ativamente ao longo destes dez

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anos, quanto a um número crescente de observadores externos, oriundos de centros de

pesquisa, governos e organismos internacionais interessados em compreender o que

torna a REAF um espaço tão singular de produção de políticas públicas.

Uma das chaves de leitura que podem ser utilizadas para analisar esta experiência

remete ao conceito de “policy transfer”. Teria a REAF constituído um modelo

particularmente exitoso de transferência de políticas públicas em âmbito regional?

Este conceito de uso cada vez mais recorrente nas ciências sociais focaliza os processos

nos quais o conhecimento sobre políticas públicas, arranjos institucionais e ideias de um

sistema político é usado para interpretar problemas e desenvolver políticas públicas em

outro sistema político (Dolowitz e Marsh, 2000). A rigor, estes não são processos

específicos às sociedades contemporâneas, mas que ganharam novas dimensões com a

globalização e o avanço das tecnologias de informação e comunicação, bem como em

virtude dos novos modelos de governança que se estabeleceram a partir da criação de

fóruns internacionais e organizações multilaterais. Em grande medida, estes espaços e

atores atuam como mediadores no sentido de promover políticas similares entre países

diversos.

De modo geral, duas escalas predominam nas análises sobre transferência de políticas

públicas. A primeira é o nível nacional, a partir do qual se discute como ocorre a adoção

de determinadas políticas entre os diferentes níveis de governança de um Estado. A

segunda, mais relevante para este estudo, refere-se às relações entre diferentes países.

Em ambos os casos procura-se considerar variáveis como o papel específico de

determinados atores ou organizações, as possíveis relações voluntárias ou coercitivas

existentes, as adaptações executadas de um contexto para outro, as dificuldades

associadas à implementação e os resultados da transferência (Dolowitz e Marsh, 2000).

O formato mais recorrente de transferência de políticas envolve a disseminação de um

conjunto de ‘boas instituições’ criadas pelos países desenvolvidos no pós-guerra. Estas

são concebidas como soluções eficientes de governança para as chamadas “falhas de

mercado” (sic), que seriam ainda mais preocupantes nas economias periféricas. O

resultado deste processo é a padronização das ‘soluções do desenvolvimento’, gerando

aquilo que Evans (2003) denomina de uma “monocultura institucional em escala

global”. Os mesmos quadros regulamentares e as mesmas políticas são difundidos para

diferentes regiões e países, o que geralmente incorre em resultados desanimadores:

inesperadamente, o desenvolvimento não acontece. Por quê? A resposta convencional

acentua, então, as “falhas de governo” (sic) dos países subdesenvolvidos. Raramente

questiona-se, contudo, a efetividade de aplicar as mesmas ‘instituições avançadas’ a

países com diferentes estruturas econômicas e sociopolíticas (Chang, 2002).

Essa dificuldade para enxergar o óbvio é efeito do modo como se reproduz um ponto de

vista colonialista, o qual está absolutamente convencido de que determinados países

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(desenvolvidos) detêm as receitas para o progresso mundial. Ao longo do tempo,

juntamente com a constatação da ineficácia do modelo, vem a frustração dos gestores

públicos (e dos pesquisadores). Mas, ás vezes para garantir sua própria reprodução

social, estes são levados a concluir que a falha deve-se ao fato das políticas não terem

sido “corretamente” aplicadas pelos atores locais. Soma-se a isso um alto nível de

formalização dos instrumentos de monitoramento e avaliação, o que faz com que não se

confira a devida atenção às dinâmicas mais ocultas, subterrâneas, que estão na base de

um processo de reconfiguração e readaptação das políticas nos contextos locais.

Diferentes cenários institucionais, políticos e econômicos exigem distintos instrumentos

de políticas públicas. Este é o primeiro ensinamento – igualmente óbvio, mas

frequentemente esquecido – que pode ser extraído da experiência da REAF. Ali foi

gestado um fórum autônomo dos países sul-americanos para pensar seus espaços rurais,

suas instituições e suas alternativas políticas. Mas, não seria esta apenas uma mudança

de escala e orientação? Ao invés de um processo em nível global (norte-sul), a

transferência de instituições e políticas – e dos referenciais de desenvolvimento que elas

sustentam – pode ocorrer dentro das fronteiras regionais, mas ainda entre países com

condições institucionais e econômicas muito heterogêneas.

Quando argüidos sobre a possibilidade do Brasil ser um exportador de suas políticas

públicas para a agricultura familiar para o restante dos países do bloco, a maioria dos

entrevistados fez questão de rechaçar esta interpretação. Segundo eles, não há dúvidas

de que a experiência brasileira reforça o argumento da importância da agricultura

familiar e, por conseguinte, legitima as decisões tomadas nos demais países. Mas, se

aquilo que se passa na REAF pode ser lido a partir deste tipo de categoria conceitual, os

exemplos acima analisados revelariam que, no mínimo, a transferência se desenvolve

em múltiplas direções, abarcando movimentos contínuos de retroalimentação. Como

destaca o ex-ministro brasileiro do MDA, Laudemir Muller (op. cit.), o desafio foi

construir uma plataforma de diálogos regionais “[...] sem replicar o que cada país tem,

mas trocando experiências e sendo um espaço que transcende para as instâncias internas

de articulação e discussão para a constituição de políticas públicas”. Como vimos

acima, a REAF constituiu um espaço de diálogo onde foi necessário um esforço

contínuo e sistemático de mediação política entre atores nacionais soberanos e muito

zelosos de sua autonomia.

Ainda que o governo brasileiro tenha capitaneado o esforço inicial de

institucionalização da REAF e da categoria “agricultura familiar” no MERCOSUL, os

eventos subseqüentes revelam um diálogo contínuo para reestruturação das ações em

face das necessidades e das condições dos demais países. Isto porque, como sustenta

Eduardo Polcan (op. cit.) do MGAyP - Argentina, “Había una gran diferencia entre el

menú de políticas que nos mostraba Brasil e lo que teníamos en Argentina. Pero eso no

impidió que sentáramos para ver lo que se hace e aprendiéramos entre todos. Con el

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tiempo eso fue alimentando la capacidad de cada país para ir avanzando en políticas.

Esta leitura é compartilhada por Octavio Sotomayor, director do INDAP - Chile:

Creo que es una experiencia innovadora y valiosa, que ayuda a la

gestión de las políticas públicas campesinas en la región. Innovadoras

porque hasta antes de la REAF, no existía un espacio de diálogo entre

los dirigentes campesinos de la región. Valiosa porque ese diálogo

permite que ellos comparen qué se está haciendo en cada país,

enriqueciendo su visión y generando nuevas ideas. […] Creo que cada

país tiene una realidad específica (productiva, social, institucional) y

por tanto muchas veces las políticas son difícilmente extrapolables.

No obstante ello, la comparación de experiencias siempre es útil pues

permite tener otros puntos de referencia. (Octavio Sotomayor, op.

cit.).

Um dos exemplos desse tipo de sinergia é a construção do Programa Regional de

Fortalecimento de Políticas de Igualdade de Gênero na Agricultura Familiar do

MERCOSUL. Em face da importância que o programa possui para o governo do Brasil,

e do modo como o mesmo capitaneou alguns diálogos sobre o tema no interior da

REAF, poderia ter havido, por parte dos gestores brasileiros, uma ação mais incisiva no

sentido de orientar a agenda de atividades para que as mesmas replicassem referenciais

muito similares àqueles que orientam as políticas internas, em particular a ideia de

“políticas para as mulheres”. No entanto, como destaca a ex-Diretora de Políticas para

as Mulheres Rurais, Karla Hora, não é esse o espírito dos diálogos na REAF:

A REAF nasce com um outro projeto político. Com um outro

propósito. Quando a gente vai para a REAF a gente não leva as nossas

políticas, mas um projeto de governo, de América e de integração. [...]

Embora o GT discuta um conjunto de políticas públicas que nós

construímos aqui para as mulheres [...], mas a gente sempre vai com

outro espírito. A questão não é que nós temos muitas políticas

estruturadas e os outros não. A questão é o que nós podemos fazer

juntos. Então a forma como a gente se insere é diferente. Acho que o

melhor exemplo é o programa regional de gênero. O programa foi

construído a milhares de mãos. (Karla Hora, op. cit.).

Respeitado esse entendimento, até se pode fazer um esforço para aproximar os

resultados alcançados pela REAF a diferentes modelos ideais de transferência de

políticas públicas (Dolowitz e Marsh, 2000), exceto da perspectiva de “cópia” completa

e direta. Alguns exemplos poderiam ser compreendidos como uma forma de

“emulação”, que se refere à transferência de determinadas ideias que são úteis para

estruturar normas, programas ou políticas públicas, como ocorreu com a construção dos

Registros Nacionais da Agricultura Familiar. Também parece ser este o tipo de

cooperação bilateral estabelecido entre Brasil e Bolívia para implementação do seguro

agrícola. Mas, neste caso, talvel o modelo mais adequado associe-se à noção de

“combinação”, a qual salienta a mistura de diferentes políticas públicas – haja vista o

modo como o governo boliviano apropriou-se de ideias oriundas de diferentes contextos

para produzir um modelo original de seguro adequado à sua realidade. Por sua vez,

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outras ações, como o Curso Regional de Jovens Rurais, podem ser remetidos à lógica de

“inspiração”, quando uma ação já em andamento, neste caso capitaneada pela

Argentina, inspira o surgimento de outra, ainda que diferenciada da proposta original. O

mesmo se pode afirmar em relação à construção do programa uruguaio de compras

públicas, apenas parcialmente inspirado pela experiência brasileira e readequado à

realidade local:

São muito distintos os agricultores do Uruguai de outros da América

Latina. Então não se pode copiar exatamente as ferramentas dos países

e esperar o mesmo resultado. No Brasil, por exemplo, as compras

públicas incorporam muitos agricultores que produziam para a

subsistência. Aqui no Uruguai vai ser distinto, pois a agricultura

familiar é distinta (Fabián Mila, op. cit.).

Nos termos em que opera o debate, ao invés de transferência, parece mais adequado

compreender a REAF como um espaço colaborativo de “co-produção” de instituições e

políticas públicas (Ostrom, 1996). Além disso, mais importante do que identificar o

modelo ideal utilizado é compreender como este processo tem sido conduzido, a partir

de uma ampla “coalização de interesses”, por meio da qual um conjunto de atores

relativamente dispersos, mas que compartilham referenciais de desenvolvimento, agem

de maneira coordenada para institucionalizar estes referenciais como axiomas aplicados

ao desenho das políticas públicas (Sabatier e Jenkins-Smith, 1999).

As coalizões podem envolver uma gama de atores muito heterogêneos ou, ao contrário,

agirem como forças centrípetas em torno de pequenos grupos dominantes, reduzindo o

arco de possibilidades e concentrando o poder de decisão. Neste caso, é provável que

isto ocorra entre atores que já possuem relativo controle sobre as instituições do Estado.

De outro modo, no caso da REAF, a coalizão envolve uma miríade bastante diversa de

atores, tanto dos governos, quanto da sociedade civil. Ademais, a particularidade deste

fórum não reside apenas na sua ação como uma grande e plural coalizão, mas no modo

como esta se constitui. A discussão remete a existência daquilo que muitos atores

identificam como um “Método REAF” de produzir políticas públicas.

La REAF no solo a tratado de hacer aportes importantes a la

construcción de políticas para la agricultura familiar, si no yo creo que

uno de los aportes más importantes es justamente sobre cómo se ha

hecho la construcción de políticas. Se ha hecho a través del diálogo y

a través de una nueva fórmula de establecer una vinculación entre los

gobiernos y las organizaciones de la agricultura familiar. Creo que es

un aporte más de lo punto de vista de método de trabajo que

obviamente está basado en una concepción ideológica, en una

concepción política. […] Si nosotros midiéramos los resultados de la

REAF por los avances o los logros a nivel de lo que es el

MERCOSUR, o mismo el avance en el comercio, es capaz que no

seriamos tan optimistas. Pero se medimos la REAF por los avances

que ha tenido do punto vista metodológico, de aporte a las discusiones

y de lo que tiene que ver con el espacio de intercambio, yo creo que es

un balance muy bueno. (José Ignacio Olascuaga, op. cit.).

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Na primeira vez em que ouvimos a expressão “Método REAF”, quase fomos

acometidos pela “síndrome do economista visitante” identificada por Albert Hirschman.

Na condição de observadores externos que queriam sistematizar a experiência da REAF,

a ideia de método soava como uma solução fácil e prática. Haveria, afinal, uma receita,

cujos ingredientes e passos somente precisavam ser descritos ordenadamente. No

entanto, a observação e as entrevistas logo revelaram que o método se tratava mais

propriamente de um conjunto abrangente de princípios orientadores dos diálogos

políticos. Princípios que são mais ou menos universais, mas que não podem ser

facilmente replicados alhures como ingredientes de uma metodologia pronta.

O “Método REAF” era, na verdade, o resultado final de uma conjunção histórica de

valores sociais que estavam sendo construídos em diferentes âmbitos: (a) nos governos

que apostavam cada vez mais em uma nova geração de fóruns para a governança das

políticas públicas (conselhos, comitês, câmaras, mesas, conferências etc.); (b) nos

movimentos sociais que passaram a participar ativamente da construção das políticas e

vinham ampliando suas redes de diálogo em nível internacional; (c) nas próprias

organizações multilaterais e, neste caso em particular, no Programa FIDA Mercosul,

que estava reorientando suas estratégias de ação e plataforma de projetos.

A participação social é base deste método. Trata-se de um princípio em si mesmo. Ou

seja, não precisa ser justificado – exceto perante aqueles que porventura coloquem os

fins acima dos meios, os resultados antes do processo. A diferença da REAF é o modo

como esta participação ocorre, a ponto de alterar completamente a dinâmica de um

fórum formal do MERCOSUL. O evento descrito por Carvalho (2014) é elucidativo:

Na manhã de sexta-feira, 19 de novembro de 2010, no inicio da

Plenária Regional da XIV REAF, realizada em Brasília, Marco

Antônio Augusto Pimentel, secretario de gestão e finanças da

Federação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura

Familiar (FETRAF), pede a palavra para lembrar a proximidade de 20

de novembro, que marca o Dia da Consciência Negra. Fala da

opressão em que vivem os negros, de sua importância para os países

da região e da dívida que os países têm para com esses irmãos. Ao

terminar sua fala, um grupo de mulheres começa a entoar, em coro, a

música Nego Nagô, cantada em movimentos populares e em grupos

pastorais ligados à igreja católica.

Em outros espaços de negociações internacionais, dezenas de pessoas entoando cânticos

populares deixaria muitos diplomatas e gestores públicos desconfortáveis. Não aqui. A

REAF contribuiu para o reconhecimento de diferentes grupos sociais da agricultura

familiar, campesina e indígena que habitam o meio rural sul-americano. Isto possibilitou

a criação de instrumentos de crédito, de assistência técnica e de compras públicas, mas

também abriu os espaços e conferiu ‘voz’ para que os sujeitos sociais pudessem

expressar suas identidades. Como destaca Pierre Muller (2008), a elaboração de uma

política é, ao mesmo tempo, um processo de construção de uma nova forma de ação

pública e um processo em que os atores trabalham suas identidades sociais.

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Primero, eso es favorecer y permitir el dialogo democrático, la

participación real. No es el aplauso. La participación real de los

que nunca tuvieron capacidad de hacerse oír. Porque estamos

hablando de participación no de los sectores poderosos de la

sociedad civil. Son los sectores más pobres. Y en esto yo creo

que todos los países han avanzado en dar la capacidad a estos

sectores de expresarse. Esto puede ser Método REAF. Y que

esta idea llegué a una mesa y que los delegados oficiales de los

distintos gobiernos la tengan que oír, y estos representantes

empiezan a comprehender que hay otra manera de encarar los

temas y de transformar esta realidad colectivamente (Antonio

Valdel, op. cit.).

Para se chegar a esta configuração foi necessário um lento e intrincado processo de

aprendizagem institucional. Nas primeiras reuniões não era evidente a todos os atores

que a sociedade civil se sentaria à mesma mesa dos Ministros de Estado. Como garantir

este nível de participação sem desconsiderar que a REAF continua sendo um órgão da

estrutura formal do MERCOSUL? Afinal, há uma cultura institucional já estabelecida,

conformada por regras, normas e procedimentos.92 De fato, se os gestores aprenderam a

trabalhar com a dinâmica dos movimentos sociais, estes, por sua vez, tiveram que

entender como se estrutura a teia de relações políticas em um fórum internacional, como

são tomadas as decisões, quais são espaços e momentos para cada tipo de intervenção.

Yo creo que ha habido y siegue habiendo siempre un proceso de

aprendizaje increíble. Yo aprendí. Yo lo vivi. Primero, se enfrentaba.

Ahora, aprendemos a discutir, ceder, negociar. Yo creo que hay

mucho de esto. Además, la riqueza es exactamente todo esto. No

siempre hay acuerdos totales entre los países. Pero se respecta lo

acordado. (Maria Quiroga, op. cit.).

A REAF é um belo exemplo de construção de um espaço político

regional. E ela criou fatos políticos que são irreversíveis hoje. Para

resolver quem sentaria na mesa se parou uma manhã a reunião. Hoje

você imagina dizer para alguém dos movimentos sociais para sentar

atrás? Isso é impensável. [...] São conquistas que foram feitas e que

são irreversíveis. [...] As pessoas aprenderam o que é um espaço

político internacional; o que é o espaço das suas proposições; o que é

realista e o que não é; o que é negociar. Eu acho que o grande

resultado da REAF foi a construção política que se fez. Eu acho que

isso não tem valor. É muito mais do que qualquer ganho comercial

que se tenha feito. (Carlos Mielitz, op. cit.).

Hay instancias... la estructura. En primero, las organizaciones tienen

que debatir a sus internas. Esas traen para las secciones nacionales.

Las secciones nacionales se consensuan en una plenaria. Se tiene que

llegar a consensos. Necesariamente se consensuan las propuestas […].

92 À título de exemplo, quem convoca e conduz as reuniões da Seção Nacional, organiza a intervenção do

país na Plenária Regional e responde formalmente perante o bloco é o Coordenador Nacional ‘Titular’

(Ministro de Estado ou Secretário da instância ministerial competente) ou ‘Alterno’ (membro do staff

governamental que, na ausência do titular, responde pelas posições do país perante os demais).

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Sacamos la idea, hacemos una síntesis y traemos para la plenaria de la

Sección Regional. Presentamos a los países y también se vuelve

consensual. Si no hay consenso se vuelve a debatir. Es necesario

llegar a consensos. Es complicado. Para esto tenemos que aprender

hacer el diálogo. […] El aprendizaje de la metodología fue trabajado

durante mucho tiempo. (Calixto Zárate, op. cit.).

Imediatamente se percebeu que o estímulo à participação social tornaria a REAF um

espaço demasiadamente amplo para que tudo fosse definido em plenárias com o

conjunto dos representantes. A criação dos Grupos Temáticos permitiu organizar os

diálogos em torno de eixos centrais. Os GTs se tornaram a espinha dorsal da estrutura.

A partir deles foi possível conferir voz a todos os participantes e, ao mesmo tempo,

construir e encaminhar medidas práticas, projetos de cooperação, propostas de decisões

e recomendações. Os resultados desta escolha metodológica são ressaltados por Lautaro

Viscay, atual responsável pela Secretaria Técnica da REAF:

No inicio a gente tinha que organizar as discussões para que não fosse

uma assembléia. Para que começasse pouco a pouco a ter um

reconhecimento de que é um órgão do MERCOSUL e que a gente tem

que produzir recomendações. Então, qual era o melhor método para a

gente produzir recomendações? Surgiu a proposta de montar os

grupos. Quantos temas tem na agenda? Seminários que davam temas.

Montamos grupos por temas. Foi a primeira reação. Foi muito

importante porque organizou. Se a gente tivesse seguido o

assembleísmo ou a plenária, era muito complexo avançar. (Lautaro

Viscay, op. cit.).93

Mas apenas a criação dos GTs não colocaria a REAF em movimento. Logo apareceram

as primeiras questões relativas à organização dos grupos. Ainda hoje uma das

discussões mais importantes diz respeito ao número de GTs que a REAF pode

comportar. Afinal, além do dispêndio de tempo e da crescente complexificação da

estrutura, a criação de um novo GT incorre em custos significativos, haja vista, por

exemplo, que a participação de muitos membros da sociedade civil é custeada com

recursos do FAF. Além disso, à medida que novos grupos começam a operar, os países

necessitam mobilizar inúmeras organizações e indivíduos para colocar em ação os

programas e as políticas que ali serão discutidos.

Sempre teve pressão para ter novos GTs. Só que um GT a mais, é

recurso a mais. É estrutura. Tem que garantir a presença deles aqui.

Então a gente sempre resistiu à criação de GTs. A tentação é grande.

Até mesmo os Coordenadores Nacionais mais novos achavam que a

maneira de colocar um tema na agenda era montar um GT. Só que era

impossível por causa dos custos. Então vamos agregando temas aos

GTs existentes, e tratando para que alguns temas passem por um

processo de acumulação. (Lautaro Viscay, op. cit.).

93 Lautaro Viscay. Secretaria Técnica da REAF. Estrato de entrevista concedida em abril de 2015.

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Ainda de acordo com Lautaro Viscay, a inserção de um novo tema na agenda da REAF

pode ocorrer de diferentes maneiras. Neste sentido o método é absolutamente flexível.

De modo geral, é nos GTs que se organiza a agenda e onde se produzem novas

demandas. Mas há outros caminhos. Uma demanda também pode aparecer diretamente

na Plenária Final a partir da leitura da carta redigida e encaminhada pelas organizações

sociais. Pode aparecer no discurso de um Ministro de Estado ou Coordenador Nacional

Alterno, mas, neste caso, geralmente é antecipada na reunião de Coordenadores

Nacionais. Outro caminho envolve a ação da própria Secretaria Técnica, que cumpre um

papel de mediar e organizar a apresentação das reivindicações dos governos e das

organizações sociais. Há também a possibilidade de uma nova questão ser introduzida a

partir de um seminário ou estudo técnico especificamente construído para subsidiar a

discussão em torno de uma temática inovadora. Por fim, algumas pautas também podem

ser instigadas por atores e instituições que, mesmo não tendo representação formal,

possuem um histórico de atuação neste espaço que lhes confere legitimidade para

intervir nos diálogos.

Sempre, para a orientação da agenda, previamente aconteciam

algumas coisas. Para a gente orientar a agenda, tinha que ter ocorrido

algum encontro para debater em nível político qual é o patamar que a

gente está, o que os movimentos estão dizendo, onde a gente está

parado. Tinha que ter acontecido a preparação de alguns documentos.

Temos que ter quatro ou cinco documentos que nos permitam pensar

um pouco mais. [...] Para que um tema entre na REAF, não tem que

entrar em um GT. Tem todo um processo longo de acumulação e tem

diferentes maneiras dele entrar na REAF. Tem temas que podem

entrar na REAF e ir direto para a plenária, via sociedade civil ou via

governo, via Ministros. Tem temas que, pela sua própria necessidade,

tem que passar pela Seção Nacional, pela discussão dos movimentos...

Não existe um método exato, mas uma capacidade de entender o fluxo

da informação, o sistema. Logo, é muito permeável. (Lautaro Viscay,

op. cit.).

Isto demonstra a existência de um amplo processo de mobilização para a construção da

agenda. Antes de uma nova temática adentrar à REAF e se transformar em um GT, ela

precisa ganhar aderência no debate público, fazer parte do quotidiano dos governos e

dos movimentos sociais, legitimar-se como uma questão relevante no contexto regional.

E, mesmo assim, o mais provável é que a mesma seja incorporada à agenda de algum

GT já existente, exceto se o tema, por sua abrangência ou relevância, mostrar-se

absolutamente incompatível com a estrutura vigente. Até agora isto não aconteceu. É

por isso que, após uma fase inicial de criação dos atuais GTs, a mesma estrutura tem se

reproduzido apenas com alterações incrementais: novos temas e atores foram

incorporados à agenda de alguns grupos. As mudanças mais expressivas ocorreram no

GT de Mudanças Climáticas e Gestão de Riscos que, inicialmente, priorizava uma

discussão em torno das políticas de Seguro Agrícola e, há alguns anos, tem se voltado

cada vez mais aos debates sobre transformações agroambientais.

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Para que os GTs efetivamente avancem na construção de institucionalidades e políticas

públicas, outra condição se tornou fundamental: as discussões em âmbito regional

precisavam ser precedidas pelo debate e pela construção de entendimentos na escala

nacional. Como afirmam Ramos et al. (2014, p. 482), “En las Secciones Nacionales se

conforma la posición, temas y propuestas de cada país, las cuales se construyen en el

debate entre el sector público y las organizaciones sociales que hacen parte de ellas. Sin

Secciones Nacionales participativas, representativas, informadas y vigorosas, la REAF

pierde calidad en los debates y representatividad.”

As Seções Nacionais constituem um espaço privilegiado de diálogo entre os governos

nacionais e os movimentos sociais em torno das propostas, mas também das suas

divergências. É o espaço de firmar compromissos e consolidar os entendimentos que

permitirão aos representantes do país, em particular ao Coordenador Nacional, intervir

nas negociações regionais. Como destaca William Clementino (op. cit.), vice-presidente

da CONTAG, “Quando nós vamos para fora do Brasil, o Governo não diz qualquer

coisa. Se tiver que mudar alguma posição, tem que reunir com a sociedade civil.”

As reuniões da Seção Nacional constituem um momento crítico de todo o processo. De

acordo com Eduardo Polcan (op. cit.), “la clave para la metodología REAF son las

secciones nacionales. En la medida que las secciones nacionales funcionan bien, las

delegaciones tienen una buena discusión dentro de la REAF y la REAF va avanzando

mejor.” Pode até ser que governo e movimentos sociais não entrem em acordo sobre

todos os pontos da pauta – o que é deveras muito provável. Mas, de modo geral, existe

um nível de confiança e cumplicidade que garante o adequado tratamento das

divergências, o que pode envolver, por exemplo, a retirada momentânea de algum tema

crítico da agenda de discussões. Até que um novo cenário se configure, a disputa

permanece latente. Caso contrário, nas situações em que esta frágil e complexa sintonia

não ocorre, as Seções Nacionais enfrentam sérias dificuldades de estabilizar os

compromissos e construir as condições de intervenção dos atores na REAF. Ademais,

tendo em vista o modo consensual como a REAF delibera, o efeito dos

desentendimentos é que determinadas discussões podem permanecer parcial ou

totalmente bloqueadas até que o país encontre soluções internas aos desacordos.

Lo que fue importante en los primeros años es dar mucha

preponderancia a las Secciones Nacionales, porque de nada vale

reuniones regionales si previamente las Secciones Nacionales de los

países no trabajaran la agenda, no discutieron, no preparan tanto las

propuestas e reacciones a los temas. Entonces, a partir de ahí se dio

mucha importancia al funcionamiento de las Secciones Nacionales. Y

en los dos niveles se trabajó de la misma manera: para construir la

agenda, tanto las Secciones Nacionales como la regional, hacían

seminarios y talleres preparatorios, donde sobre algún tema especifico

– por ejemplo, financiamiento, asistencia técnica y extensión rural,

recursos naturales y medio ambiente. Entonces, el país que más había

avanzado, con algunos expertos invitados, traía el tema y se debatía

previamente en un seminario antes de la REAF. Y luego que se

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debatía el tema ingresaba para consideración de las delegaciones en la

REAF. Eso permitía ir generando conocimiento entre la gente,

conocimiento de lo que pasaba en cada país. Segundo, permitía nivelar

la información. Y nosotros como Secretaria Técnica éramos

encargados de hacer alguno documento de base para las discusiones.

(Álvaro Ramos, op. cit.).

Como não existe uma determinação rígida acerca do modo como cada país deve

organizar sua Seção Nacional, em muitos casos a agenda deste espaço incorpora temas

da pauta doméstica, ou seja, discussões sobre políticas que dizem respeito mais

propriamente à realidade interna do país do que à agenda regional. Neste caso, o desafio

de produzir entendimentos entre os diferentes atores torna-se ainda mais complexo.

Afinal, em alguns países, a Seção Nacional da REAF acaba se tornando o único ou o

mais importante espaço de diálogo nacional, seja porque aglutina um número mais

expressivo de organizações, seja porque os demais espaços possuem problemas de

periodicidade e/ou organicidade, ou ainda porque não há condições para manter espaços

paralelos para discussões que possuem inúmeras sobreposições.

A única definição é que as Seções Nacionais devem ser estruturadas respeitando as

condições de cada país: número e capacidade de mobilização dos movimentos sociais,

custos e tempo de deslocamento em vista as distâncias envolvidas, necessidade de

aprofundamento das discussões. No Uruguai, por exemplo, o funcionamento da Seção

Nacional está profundamente associado à dinâmica das Mesas de Desenvolvimento

Rural, uma instância de participação social e articulação de políticas públicas em nível

territorial. Atualmente, existem quarenta Mesas em todo o país, cada qual encaminha

um casal de delegados para a Seção Nacional, sejam eles, mulher e homem, membros

do governo ou da sociedade civil. Soma-se a eles um casal escolhido por cada uma das

seis principais organizações de produtores familiares existentes no país, além dos

representantes do MGAP. Como destaca Fernando Sganga (op. cit.), “eso hace que

tengamos las dos visiones: la visión un poco más macro, nacional, de las gremiales

nacionales, y también la visión territorial.” Outrossim, como se trata do espaço mais

amplo de articulação entre o Estado e as organizações da agricultura familiar,

“aprovechamos los ejes temáticos para poner cosas que son de la agenda nacional.

Mesclamos los temas. Nosotros somos pequeños. Tenemos la agenda regional, pero

también las preocupaciones nacionales.”

A articulação entre a agenda regional e nacional também foi muito presente à Seção

Nacional da Argentina. Em um primeiro momento a sobreposição das pautas mostrou-

se muito evidente, o que contribuiu para criar algumas dificuldades de condução dos

diálogos. Ao longo do tempo houve uma tentativa de desvinculação, sobretudo a partir

da consolidação do FONAF. Instituído em 2006 como um espaço formal de concertação

pela SAGPyA (atual MAGyP), o FONAF estabeleceu-se como o principal espaço

nacional de diálogo entre as organizações sociais e o governo, a ponto de que o mesmo

foi apropriado pela organizações e o Foro se consolidou como Federação de

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Organizaciones Nucleadas de la Agricultura Familiar, com atuação relativamente

independente dos debates da Seção Nacional.

Dentro de las reuniones de la Sección Nacional van apareciendo temas

internos de Argentina. Entonces, se fue armando una agenda, o bueno,

se fueron discutiendo al mismo tiempo temas internos y temas

regionales. Entonces, nosotros decimos: paren muchachos, no pude

ser que en la SN nos dediquemos a discutir cosas internas nuestras.

Planteamos una agenda nacional en un espacio aparte y respectemos la

SN para discutir los temas de REAF. Entonces, para la agenda

nacional, creamos el FONAF, el Foro de la Agricultura Familiar,

público-privado. Dentro de este foro, las organizaciones como que se

apropian en un buen sentido dese foro, e hacen un documento donde

plantean todas las demandas internas de Argentina. Y se apropian

también de la sigla. (Eduardo Polcan, op. cit.).

Mais recentemente, em 2014, o Ministério da Agricultura argentino instituiu o Consejo

de la Agricultura Familiar, Campesina e Indigena (Resolução MAGyP 571). Trata-se

de um espaço participativo para debater e gerar políticas públicas de desenvolvimento

rural. Doravante, o mesmo deve se tornar o principal fórum nacional de articulação

institucional entre as organizações sociais da agricultura familiar e o governo argentino

para discutir as políticas internas, em particular no que diz respeito às ações de um

conjunto de entidades públicas formalmente indicadas para compor e conduzir este

espaço: Secretaria de Agricultura Familiar (SAF), Instituto Nacional de Tecnologia

Agropecuaria (INTA), Servicio Nacional de Sanidad y Calidad Agroalimentaria

(SENASA) e Unidad para el Cambio Rural (UCAR).

Dentre os países membros do MERCOSUL, o caso brasileiro talvez seja aquele em que

há maior diferenciação entre o debate da Seção Nacional e a agenda do Conselho

Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável e Solidário (CONDRAF), este

constituído como espaço privilegiado de discussões entre o governo e os movimentos

sociais com relação às políticas domésticas. Analisada positivamente por muitos

entrevistados, na medida em que o funcionamento autônomo da Seção Nacional da

REAF garante maior espaço para a agenda regional que, de outro modo, poderia ser

secundarizada pela pauta doméstica, para outros esta relativa separação é tida como um

desafio que precisa ser analisado mais cuidadosamente. Embora CONDRAF e REAF-

SN não tenham constituído um canal de interlocução direta, de modo geral são as

mesmas organizações e pessoas que ocupam ambos os espaços, o que em si já aumenta

a carga de atividades em que, principalmente, os representantes dos movimentos sociais

estão envolvidos. Ademais, em 2011 a criação do Comitê Permanente de Assuntos

Internacionais (CPAI) do CONDRAF tornou-se a ocasião para novos questionamentos

sobre a possibilidade de aproximar ambos os espaços.

No Brasil, os debates da Seção Nacional seguem uma estrutura similar àquela da seção

regional: a plenária final é precedida pelo debate nos Grupos Temáticos e estes são

orientados pelas discussões anteriores nas reuniões da sociedade civil e do governo. Há

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173

algum tempo nota-se uma preocupação da Secretaria Técnica da REAF para que as

Seções Nacionais consigam cumprir com a pauta dos GTs, para o que manter a mesma

estrutura tem auxiliado. Isto ocorre no Brasil, mas com uma importante particularidade:

como o funcionamento da REAF exige a compreensão de toda a agenda, decidiu-se que

os participantes da Seção Nacional devem acompanhar os debates de todos os GTs.

Com isso garante-se maior socialização e troca de informações sobre tudo o que está em

debate, evitando-se o risco de autonomização dos grupos. Assim, diferentemente do que

ocorre em âmbito regional, onde apenas o GT de Gênero precede os demais, na Seção

Nacional brasileira os GTs não são conduzidos simultaneamente. Obviamente, isto

amplia o tempo de discussão e os custos para manter os participantes por mais de um

dia na reunião da Seção Nacional.

Outros países seguem formatos diferentes. No Paraguai, por exemplo, a Seção Nacional

ocorre em plenária única que debate todos os temas da agenda. Neste caso, os Pontos

Focais – geralmente gestores públicos94 que organizam as interlocuções e atividades

entre os GTs da REAF e as Seções Nacionais – apresentam a situação das discussões e

encaminham o debate entre todos os presentes. No entanto, neste caso particular, ao

longo dos dez anos de REAF, sucessivas mudanças governamentais e institucionais

criaram dificuldades para o andamento dos diálogos, sobretudo em virtude de

recorrentes trocas nos interlocutores. A partir do ingresso do governo atual, o

investimento que vem sendo feito para re-estabilizar a participação do país na REAF

tem demonstrado resultados animadores, e a Seção Nacional tem sido gradativamente

retomada como espaço de produção de políticas públicas em estreita sintonia com o

debate regional.

Aliás, aqui há um elemento particularmente relevante para o funcionamento da REAF e

que não é específico a um ou outro país. Em diferentes ocasiões desde a criação deste

espaço regional, todos os países exibiram algum nível de dificuldade em virtude da

rotatividade dos atores que participam dos debates. A situação mais problemática

envolve a substituição dos Coordenadores Nacionais e Pontos Focais dos GTs,

sobretudo quando envolve o ingresso de atores que portam referenciais políticos

distintos dos seus antecedentes.

Mas os riscos de desestruturação dos acordos já estabelecidos são amortizados em

virtude desta renovação ser parcial e gradativa. Após dez anos de existência, há

indivíduos que guardam a memória desta experiência. Sempre que necessário, eles

intervêm para recordar elementos que contextualizam os diálogos na história. A própria

Secretária Técnica tem empreendido um esforço permanente para acolher os novos

interlocutores, subsidiando-os com informações e ajustando as pautas das reuniões,

94 Os Pontos Focais geralmente são gestores públicos porque, comparativamente aos representantes dos

movimentos sociais, os mesmos detêm melhores condições (estrutura de informação, recursos públicos e

disponibilidade de tempo) para organizar a intervenção do país no GT e, inversamente, coordenar a

execução das ações do mesmo no âmbito nacional.

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garantindo, por exemplo, uma breve síntese histórica para introduzir o trabalho dos

GTs. Com isso, se, por um lado, a rotatividade dos interlocutores retarda avanços mais

rápidos nas discussões, por outro, garante renovação e inovação.

Finalmente, cabe destacar que, do ponto de visto metodológico, uma das inovações

recentes que reorganizou o processo de diálogo foi a criação de determinados

procedimentos que qualificam os debates e ampliam o envolvimento dos GTs na

redação da Ata Final da Seção Regional. Se, anteriormente, a construção da primeira

versão do documento, encaminhada para apreciação dos países, dependia

fundamentalmente do esforço e da capacidade de síntese da Secretaria Técnica, que

precisava se apropriar de todos os debates em curso na REAF, alguns ocorrendo em

GTs paralelos, hoje cada um dos grupos deve apresentar um documento síntese de suas

discussões à apreciação da Plenária Final. “Todos os GTs têm que encaminhar duas

folhas. Duas! Tem regra. Não são quinze. Não é apresentação econômica, de

indicadores ou variáveis de estudo. É a apresentação dos compromissos. O que se

debateu e como vai se chegar lá. [...] Essa é a terceira vez que a gente faz isso, e

funcionou muito bem. Aperfeiçoou o sistema. (Lautaro Viscay, op. cit.). Este

procedimento não apenas agilizou o processo de tomada de decisão, qualificando e

reduzindo o tempo dispensado à Plenária Final, como orientou os diálogos e

responsabilizou os GTs a organizar suas ações, incentivando a objetivação e

sistematização das proposições.

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15. A ampliação do fórum e dos diálogos políticos

A REAF é um fórum em “permanente transição”. Foi esta expressão que um gestor

público uruguaio utilizou para caracterizar as mudanças que se processam quase

ininterruptamente neste espaço público: mudam as pessoas, trocam os governos,

adicionam-se novos países, alternam-se os coordenadores nacionais e pontos focais,

inserem-se novos temas, altera-se o método, inova-se nos mecanismos de gestão. De

fato, embora alguns entrevistados acreditem que este processo poderia ser ainda mais

dinâmico, sobretudo no que tange à renovação da representação das organizações

sociais – os governos, pela sua natureza, alternam-se mais frequentemente –, é evidente

que a REAF exibe uma capacidade de renovação muito maior do que as demais

instâncias do MERCOSUL.

Neste penúltimo capítulo vamos analisar mais detidamente um dos fenômenos que está

na base do atual processo de transição. Trata-se da ampliação dos diálogos para novos

espaços. Isto envolve tanto a inclusão da Venezuela enquanto membro pleno do

MERCOSUL, quanto o estreitamento dos laços com os países associados, em especial

Bolívia, Equador e Chile, mas também a aproximação com outros blocos regionais, o

que tem feito a agenda da agricultura familiar se estender por todo o continente.

Outrossim, vamos discutir os efeitos potenciais que o ingresso de novos atores

(governos e movimentos sociais) produz para a organização dos diálogos políticos.

Há alguns anos a REAF vem investindo para ampliar a área de abrangência dos diálogos

regionais sobre políticas para agricultura familiar até outros países latino-americanos.

Este investimento geralmente inicia com o convite aos governos e movimentos sociais

para acompanhar os espaços de discussão, conhecer as políticas em nível local e

participar das atividades de capacitação. Em seguida, a aproximação caminha para

ações mais duradouras, seja pela via do apoio técnico de gestores para a construção das

políticas públicas, seja por meio de ações de intercâmbio multilateral, ou ainda via

acordos de cooperação bilateral. O fato é que, seja qual for a natureza exata destes

movimentos de aproximação, está claro que o futuro dos diálogos da REAF passa cada

vez mais pela ampliação do espaço regional.

Yo creo que el principal reto de REAF es dar continuidad a esta forma

de trabajo, a esta metodología, y a la construcción de políticas para la

agricultura familiar que estén sintonizadas con la realidad actual de

nuestros medios rurales que son muy dinámicos y muy diversos, sobre

todo cuando estamos hablando de una REAF ampliada, donde entran

realidades muy diversas, no sólo la REAF del Cone Sur, pero una

REAF que involucra los países andinos. (José Ignacio Olascuaga, op.

cit.).

Exemplo disso é modo como ocorreu o ingresso do Equador, país associado ao

MERCOSUL que está colaborando para ‘latinizar’ as discussões da REAF. A

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participação formal do governo equatoriano na REAF iniciou em 2013, durante a XIX

REAF, realizada no Uruguai. Mas o processo de aproximação remonta a ações

precedentes. Hugo Dután, gestor público do Ministério da Agricultura equatoriano e

coordenador da Seção Nacional da REAF no país, relata alguns dos passos iniciais deste

processo, os quais envolveram o acesso a informações sobre aquilo que estava em curso

em outros países, a análise dos objetivos da REAF enquanto espaço de construção de

políticas públicas e a compreensão dos princípios metodológicos deste fórum.

Hace tres años tuvimos una invitación para un evento sobre desarrollo

rural en Brasil. Ahí nos conocimos con muchos de los dirigentes y

líderes que levantan la Reunión Especializada de Agricultura Familiar.

Este fue el motivo de vinculación y conexión con los compañeros. Un

año después tuvimos una invitación a uno de esos encuentros de la

REAF al cual participamos. Nosotros siempre estuvimos buscando

iniciativas que permiten expresar la nueva política más allá de un país.

Esto es una política de comprensión, de integración de latinoamérica,

de cooperación sur-sur, que motiva que converjamos en esas

iniciativas. (Hugo Dután)95.

Como todo processo de cooperação e aprendizagem, estes movimentos de aproximação

são facilitados na medida em que os atores identificam que os espaços de interação e as

discussões em curso fazem sentido para o seu próprio contexto social. Antes de adentrar

à REAF, o Equador já possuía uma gama de políticas públicas de desenvolvimento

rural. Dentre as mais importantes estão o Programa de Assistência Técnica Rural

‘Hombro a Hombro’, o Programa ‘Buen Vivir Rural’, o Plano Tierras, o Programa de

Cacau e Café, além de algumas ações de comercialização. Estas políticas estão

organizadas com base em um conjunto de princípios que se articulam na estratégia do

“buen vivir”: segurança e soberania alimentar, território e territorialidade, cooperação e

comunalidade, igualdade e inclusão social. Mas a participação do país nas discussões

regionais foi catalisada na medida em que a REAF se mostrou um espaço onde os temas

tratados eram coerentes com o plano estratégico do país (Equador, 2015). O governo

equatoriano viu na REAF uma possibilidade de encontrar novos interlocutores que

poderiam ajudar a qualificar suas políticas públicas.

En Ecuador la agricultura familiar es el sustento de la seguridad

alimentaria. Desde hace algunos años miramos alrededor

preguntándonos dónde anclar un conjunto de relaciones y

aprendizajes. Los análisis nos decían que América Latina es la

protagonista de la seguridad alimentaria y en esa búsqueda

encontramos a la REAF Mercosur. En estas conexiones de Estado y

sociedad fuimos encontrando la necesidad de participar en espacios de

trabajo, por ello formamos parte de la XIX REAF (Uruguay, 2013), en

95 Hugo Dután. Gestor do Programa “Buen Vivir Rural” do Ministerio da Agricultura do Equador.

Coordenador da Seção Nacional a REAF no país. Estrato de entrevista concedida em dezembro de 2014.

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la condición del Ecuador como país asociado al MERCOSUR. (Hugo

Dután).96

É importante sublinhar que este é um processo de mão dupla. Na mesma medida em que

a REAF cria um espaço de diálogo que contribui à qualificação das políticas de

desenvolvimento rural, sobretudo naqueles contextos onde a institucionalização da

agricultura familiar ainda é incipiente, a aproximação de destes países traz para a REAF

novas realidades, ampliando e qualificando o próprio processo de diálogo. Neste

sentido, a ampliação do fórum ajudar a “refrescar a agenda”.

Nosotros tenemos una voluntad de que este escenario de dialogo de la

REAF pueda se transferir para otros países de Latino-América, y que

ellos puedan usar esta experiencia. Esta fue una de las estrategias de

los últimos años. Y, a la vez, de incorporar otros miembros a la

REAF, casi que a la misma calidad como miembros plenos y

asociados. Eso ayudó a refrescar la agenda de REAF. (Favio Pirone,

op. cit.).

Mas com isso também aparecem novos desafios e dúvidas. Uma delas diz respeito às

possíveis conseqüências que a incorporação de países com realidades muito diferentes

daquelas encontradas no Cone Sul podem implicar para o avanço dos diálogos

regionais. Soma-se a isso uma preocupação com o desenvolvimento de uma REAF que

poderia começar a caminhar ‘a duas velocidades’: os novos países trazendo à tona

antigas discussões conceituais e metodológicas, enquanto aqueles que participaram

desde o princípio avançam mais rápido na construção das políticas e mecanismos de

comércio. Até hoje a REAF teve o devido cuidado para que a caminhada fosse coletiva,

o que significou um esforço para incluir gradualmente os novos entrantes. Ao mesmo

tempo, para garantir a participação sabe-se que não é possível retornar todo o tempo às

antigas discussões, o que afugentaria outros atores. Aqui há um pequeno desequilíbrio

que precisa ser constantemente mediado.

Entre los desafíos que se plantan para los próximos diez años, uno sin

duda es la ampliación del MERCOSUR. Es un desafío porque esta

construcción exitosa de integración regional en términos de políticas

para la agricultura familiar, tiene que ver con un proceso de

articulación de varias décadas. Incluir el mundo andino de un día para

otro, las organizaciones del mundo andino, no es fácil. Es realmente

un proceso complejo. Tiene que discutir-lo para poner de alguna

manera que eso potencialice y no genere conflictos o ruidos que de

alguna manera debilite ese espacio. (Alberto Riella, op. cit.).

É inevitável que o ingresso de novos países altere a dinâmica da REAF. Na verdade,

isto não apenas é inevitável como é fundamental para re-centrar determinados temas e

dinamizar os diálogos. Mas as heterogeneidades não são exatamente uma novidade para

a REAF. É certo que os países andinos trazem consigo uma nova realidade campesina e

96 Fonte: “La REAF abre las puertas del MERCOSUR a Ecuador”. http://portal.mda.gov.br/reaf/. Acesso

em 25 de maio de 2015.

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indígena que obriga um olhar mais cuidadoso sobre a adequação das políticas públicas.

Mas, a rigor, isto já acontece entre os países do Cone Sul e mesmo no interior de um

único país. A diversidade das formas familiares de produção já se coloca como uma

questão para a REAF há vários anos e, mais do que um desafio, trata-se de uma grande

fortaleza. É esta diversidade que lhe confere capacidade para renovar continuamente a

agenda de trabalho.

A partir do momento que se suman nuevos países, vamos un poco

reconfigurando la discusión. Por ejemplo, el tema agua para Chile es

fundamental. El tema indígena… A principio se decía agricultura

familiar incluso los indígenas, ahora está planteando-se como una

problemática que tenemos que discutir entre la REAF. Entonces los

países nuevos, de alguna manera, van determinando que nosotros

replanteamos la agenda. (Eduardo Polcan, op. cit.).

Impulsionado sobretudo pelo ingresso de Equador e Bolívia, nota-se como o ingresso de

novos atores está trazendo para o centro do debate temas que, até então, detinham uma

posição relativamente periférica. Este processo aumenta, por exemplo, a pressão para

pautar políticas para as comunidades originárias e tradicionais, as quais reivindicam o

reconhecimento da especificidade de suas identidades socioculturais, ancoradas em

distintas formas de organização produtiva e relação com a natureza. Como destaca

Claudia Herrera, representante de uma organização de nações e povos indígenas da

Argentina,

La REAF es un espacio de profundo crecimiento para las

organizaciones. Es un espacio que nos ha servido para fortalecernos

como organización. Es un espacio que ha sido muy útil y un

instrumento importante para conocer a otras organizaciones de la

región, intercambiar experiencias, intercambiar realidades, entender

que, como región, teníamos puntos e ejes comunes. Y también el

espacio de la REAF nos a permitido un crecimiento como sujetos

políticos, como sujetos de derechos que somos. […] El avance en la

participación de las organizaciones de la agricultura familiar,

incluyendo cada vez más también a los pueblos indígenas. Los

compañeros están solicitando que se cree en este espacio también un

grupo temático de pueblos indígenas, ya que también tenemos

nuestras particularidades y, por consiguiente, son necesarias políticas

particulares para nuestro sector, así como ha sido necesario en el GT

de mujeres y de juventud. Esta propuesta a sido conversada desde el

año 2009, pero concretamente surgió más en el año pasado, y este año

ya está siendo impulsada por las organizaciones de varios países.

(Claudia Herrera).97

Associa-se a isto uma discussão sobre território e acesso a recursos naturais, que amplia

e complexifica ainda mais a pauta do GT de Acesso à Terra e Reforma Agrária. O

mesmo é válido para o tema da agroecologia e do controle dos recursos genéticos (em

97 Claudia Herrera. Organización de Naciones y Pueblos Indígenas de Argentina. Representante de

povos originários de Parlasul. Estrato de entrevista concedida em junho de 2015.

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particular das sementes), o qual está estreitamente vinculado a outra pauta que, até hoje,

teve pouca repercussão nas discussões regionais: biotecnologia e transgenia.

Para el caso ecuatoriano cuando el concepto de agricultura familiar se

puso en debate, la primera voz que alertó que el concepto no era

suficiente es de las comunidades campesinas: no nos sentimos

representados por la agricultura familiar. Por eso nos invitaron a poner

unos semas: agricultura familiar, campesina – porque identifica el

campo –, pero también comunitaria. Y cuando expresamos a al grupo

de tierra, igual: tierra y territorio. Por eso la complementariedad entre

la diversidad ecuatoriana, y creo que de muchos otros países, que

expresa formas sustantivas de relacionarse los seres humanos con la

naturaleza. Por eso cuando recurrimos a la REAF hacemos algunos

agregados, como de lo comunitario y de lo territorial. […] Entonces

hay elementos que nos diferencian, pero hay elementos convergentes.

(Hugo Dután, op. cit.).

Nestes termos também é importante situar o ingresso da Venezuela enquanto país

membro do MERCOSUL. Desde 2004, ano de sua criação, a Aliança Bolivariana para

os Povos da Nossa América (ALBA) mobilizou a maior parte dos esforços

venezuelanos no que tange à cooperação regional. A partir de 2012, o país também se

soma ao MERCOSUL, o que aproxima ambos os blocos e traz para dentro da REAF o

acúmulo das discussões entre os governos e as organizações sociais que defendem uma

alternativa bolivariana para a América Latina. Como destaca Gladys Martínez,

presidente da Fundación de Capacitación e Innovación para Apoyar la Revolución

Agraria (CIARA), o ingresso do país na REAF mostra-se uma oportunidade de

ampliação dos diálogos e das experiências em nível continental:

Para nosotros es el reto que tenemos que impulsar… que nosotros

podemos impulsar un escenario internacional donde se intercambian

las debilidades y las fortalezas. Entonces, ¿lo que es la ALBA?, ¿lo

que es la CELAC?, para nosotros son escenarios de trabajo. ¿Cuál es

el desafío? Incorporar ahí la discusión que se está dando en REAF. Si

nosotros en Venezuela estamos participando en Petrocaribe, y

tenemos una discusión pautada en la REAF Mercosur, esta propuesta

puede ser discutida también en Petrocaribe. Entonces es un desafío

hacia la apertura. ¿Cuál sería un desafío fundamental de la

integración? Es como entendemos la integración. Porque antes eran

cuatro países con una dinámica más o menos parecida. Para nosotros

ahora está Equador, está Colombia, está Bolívia, todo el norte de

sudamerica, con otras características pero con los mismos problemas.

[…] Los mecanismos de trabajo, las metodologías, […] estos métodos

tenemos que intercambiar. (Gladys Martínez).98

Dentre os temas que o governo venezuelano vem impulsionando internamente, também

se encontra a pauta da segurança e soberania alimentar e de combate à fome, o que

aproxima o país do principal eixo articulador dos debates regionais. Por sua vez, no que

98 Gladys Martínez. Fundación CIARA. Coordenadora Nacional da Venezuela na REAF. Estrato de

entrevista concedida em junho de 2015.

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tange às inúmeras contribuições que a Venezuela pode aportar à REAF encontra-se, por

exemplo, sua experiência internacionalmente reconhecida de agricultura urbana e

periurbana. Como recentemente destacou um gestor da FAO América Latina e Caribe:

“Venezuela es un ejemplo de movilización y organización social de esta forma de

agricultura, son más de 41 mil puntos que hacen parte de la estrategia de Seguridad y

Soberanía Alimentaria.”99 Trata-se de uma temática inovadora que começa a encontrar

espaço na REAF, conectada com as iniciativas de segurança alimentar e nutricional, de

apoio à agroecologia e formas sustentáveis de agricultura, de incentivo à produção para

o autoconsumo e de organização dos programas de compras públicas. Na Venezuela,

um dos programas incentivados pela Fundação CIARA que caminha nesta perspectiva

envolve a produção de alimentos locais, tradicionais e saudáveis nas hortas escolares.

O ingresso de novos países também amplia o arco de preocupações com determinadas

regiões e sub-regiões que, até agora, não foram objeto de discussão aprofundada no

MERCOSUL. Talvez o caso mais evidente seja a Amazônia, um território

subcontinental plurinacional que começa a receber maior atenção na agenda das

políticas públicas de desenvolvimento rural. Mas há inúmeros outros territórios latino-

americanos que também clamam por reconhecimento e ação pública (Berdegué et al.,

2012). Acima de tudo, eles demandam um olhar do Estado para heterogeneidade do

mundo rural contemporâneo, desafiando os gestores a readequar as políticas públicas,

mas, igualmente, ofertando a eles uma infinidade de experiências a partir das quais

podem encontrar os conhecimentos necessários para inovar na construção de novas

trajetórias de desenvolvimento, mais inclusivas, sustentáveis e solidárias.

Já notamos em outros momentos, mas é importante ratificar aqui, que esta ampliação da

REAF também potencializa os diálogos do MERCOSUL com outros blocos políticos.

Os próximos anos devem seguir o caminho recentemente aberto de convergência entre a

agenda regional e aquela que está em formação em âmbito continental. Um indicativo é

o modo como a REAF, enquanto coalizão política que domina capacidades técnicas,

vem dando suporte para outras experiências. Atualmente, contribui para compor uma

agenda de trabalho sobre agricultura familiar no âmbito da UNASUL. Se, até o

momento, o novo bloco sul-americano não possui uma agenda consolidada nas

discussões agrícolas, revela uma preocupação crescente com questões de segurança

alimentar e combate à pobreza, aproximando-se da REAF, em particular no que diz

respeito às ações empreendidas no âmbito do Programa Regional de Compras Públicas.

Recentemente isto levou Ernesto Samper Pizano, ex-presidente da Colômbia e atual

Secretário Geral da UNASUL, a destacar a especificidade e a importância do setor

campesino para a produção de alimentos:

[...] hay que crear una nueva institucionalidad al redor de la

producción de alimentos que, en una gran mayoría, esta en este

99 Fonte: Gobierno de Venezuela y FAO evalúan proyectos para impulsar agricultura urbana en Caracas.

http://www.fao.org/americas/noticias/ver/es/c/276709/

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momento en responsabilidad de los actores campesinos. Y esta

institucionalidad tiene que consistir en darle un nuevo marco al

manejo de los temas campesinos que involucren no solamente la parte

comercial o económica, si no también un componente social, de apoyo

social al campesinado, y un componente económico que lo vincule de

algún manera y permita crear canales especiales para poder vender sus

productos, y yo adjunto un componente político, en el buen sentido de

la palabra, que es dar visibilidad a los sectores campesinos para

construir un nuevo contexto. (Ernesto Samper Pizano).100

Novas formas de interação também têm sido estabelecidas com os países centro-

americanos, os quais se apresentam como interlocutores com particular interesse em

conhecer a experiência de diálogos políticos da REAF com vistas a fortalecer e ampliar

o Programa Diálogo Regional Rural Centro-Americano (PDRR). Ademais, esta relação

com a América Central também alimenta a interlocução entre REAF e CELAC, fórum

criado há dois anos que, em sua III Cúpula de Chefes de Estado e de Governo, realizada

em 2014, demandou à REAF auxílio para implementar ações na área de segurança

alimentar e combate à fome, bem como para a estruturação de um Grupo de Trabalho

sobre Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural. Cabe destacar, neste sentido, a

relevância da Declaração Final da Primeira Reunião de Altos Funcionários de

Agricultura Familiar da CELAC, que ressalta “la importancia de utilizar, en el ámbito

de la CELAC, experiencias exitosas de los mecanismos de integración regional en la

cooperación para el desarrollo rural, entre ellas la Reunión Especializada sobre

Agricultura Familiar del MERCOSUR (REAF).”

Recentemente, esta aproximação envolveu a participação na XXII REAF (Montevidéu,

dezembro de 2014) de Tomas Gutiérrez, representante da Presidência Pró-Tempore da

Costa Rica na CELAC. Na ocasião, Gutiérrez apresentou à REAF o “Plan para la

Seguridad Alimentaria, Nutrición y Erradicación del Hambre 2025”. Em seu Segundo

Pilar101, o Plano aponta para a necessidade da CELAC “promover proyectos de

cooperación sur-sur e intercambio en el área de desarrollo, diseño, implementación y

monitoreo de las políticas públicas de apoyo a la Agricultura Familiar con la REAF”.

Por sua vez, a REAF, nesta mesma Seção Plenária Regional aprovou uma Declaração

de Ministros e Autoridades Responsáveis pela Agricultura Familiar onde,

Resaltan, en ese sentido, su disposición a contribuir con la CELAC, a

partir de la experiencia reunida en los diez años de funcionamiento de

la REAF, tanto en lo que respecta a las acciones del Grupo de Trabajo

sobre Agricultura Familiar y Desarrollo Rural como en la elaboración

y ejecución del Plan de Seguridad Alimentaria y Nutricional y

100 Ernesto Samper Pizano. Secretário Geral da UNASUL. Estrato de entrevista concedida à Secretaria

Técnica de REAF durante o Segundo Módulo Internacional de Compras Públicas para os Agricultores

Familiares, realizado em Quito – Equador, de 25 a 27 de março de 2015.

101 Este Pilar diz respeito ao “Acceso oportuno y sostenible a alimentos inocuos, adecuados, suficientes y

nutritivos para todas las personas, especialmente las más vulnerables, con pertinencia cultural, a fin de

poder desarrollarse y mantener plenamente las facultades físicas y mentales”.

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Erradicación del Hambre, a fin de asegurar que la iniciativa refleje

plenamente la experiencia regional en SAN, cubriendo tanto el acceso

a la alimentación como a la producción y suministro de la misma, lo

que vincula a la agenda de la seguridad alimentaria con

fortalecimiento de la agricultura familiar.102

Este processo de internacionalização da REAF também envolve uma aproximação com

a Frente Parlamentar Latino-Americana e Caribenha contra a Fome. Impulsionado

sobretudo no último ano, o diálogo com os parlamentares envolveu a participação na

REAF de deputados nacionais de Equador, República Dominicana, Guatemala, Bolívia,

Peru e El Salvador. A partir daí procurou-se avançar na articulação regional da

Iniciativa América Latina e Caribe Sem Fome, coordenada pela FAO. Em 2014, a

REAF enviou representação para o V Fórum desta Frente Parlamentar, realizado na

República Dominicana. A declaração final do evento reconhece o esforço e os

resultados obtidos pela REAF na criação de espaços institucionalizados para a definição

de políticas públicas para a agricultura familiar. É esperado que, no futuro, este

movimento encaminhe para a formulação de uma Lei Marco da Agricultura Familiar no

âmbito do Parlamento Latinoamericano (Parlatino) (Silva, 2014c).

No plano internacional, outra iniciativa que tem despertado interesse é a interação com a

Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), catalisado, sobretudo, pelo

Brasil. Em 2012, no marco da XVIII REAF (Caxias do Sul), organizou-se uma reunião

com representantes da CPLP, cujo objetivo era analisar as possibilidades de cooperação

entre os dois blocos. A partir da identificação das convergências, decidiu-se que esta

será prioritariamente conduzida em articulação com o Conselho de Segurança Alimentar

e Nutricional (CONSAN) da CPLP, que abriga um GT sobre Agricultura Familiar.

Ainda em curso, dentre os pontos centrais desta articulação está a experiência de

construção dos registros da agricultura familiar, as iniciativas dos programas de

compras públicas e a experiência de diálogos políticos entre Estados e Sociedade Civil.

Como já mencionado anteriormente, pode-se destacar ainda a convergência das ações da

REAF com aquelas empreendidas pelo Comitê de Segurança Alimentar (CSA) das

Nações Unidas. Atualmente, o CSA é reconhecido como uma das principais

experiências de governança participativa na ONU. Além de fortalecer o

multilateralismo e consolidar a renovação da agenda internacional sobre o

desenvolvimento, o CSA desponta no plano internacional em virtude da abertura que

confere à participação dos movimentos sociais. Os países do MERCOSUL foram

particularmente importantes na consolidação deste espaço, principalmente pelo respaldo

que conferiram à criação do Mecanismo da Sociedade Civil (MSC), instrumento de

organização autônoma no interior do Comitê. O MSC é composto por quarenta e um

membros que representam onze segmentos (agricultores, pescadores artesanais, sem

102 Estrato da Declaración de los Ministros y Autoridades Responsables de la Agricultura Familiar de los

Estados Partes del MERCOSUR y Estados Asociados sobre las actividades de la CELAC vinculadas a la

REAF. Montevideo, REAF, 4 de dezembro de 2014.

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terra, povos indígenas, pastores, consumidores, trabalhadores agrícolas, pobres urbanos,

mulheres, jovens, ONGs) e dezessete sub-regiões do mundo (França e Marques, 2015).

Não é em vão que os próprios movimentos sociais ratificam a importância da iniciativa

e empenham-se para seu fortalecimento. Como destacou Angel Strappazzon,

representante da Via Campesina, por ocasião da abertura oficial da XXIII REAF

(Brasília, junho de 2015),

En 2009 se impulsó una reforma histórica en el Consejo de Seguridad

Alimentaria. Hasta este instante […] solo participaba tres miembros

de la sociedad civil. […] Hoy en día esta reforma ha permitido que los

movimientos sociales del mundo podamos participar con cuarenta

miembros en lo que se denomina Mecanismo de la Sociedad Civil.

[…] Queremos que cuidemos eso que tenemos construido. (Angel

Strappazzon).103

Cabe notar ainda que todo este fenômeno de internacionalização dos diálogos sobre

políticas para a agricultura familiar ganhou um impulso fundamental em 2014, a partir

das ações do Ano Internacional da Agricultura Familiar (AIAF). Instituído pela

Resolução 66/222 da Organização das Nações Unidas (ONU), o AIAF foi o resultado

de uma construção coletiva que envolveu o trabalho de centenas de organizações da

sociedade civil coordenadas pelo Fórum Rural Mundial, e com importante suporte da

FAO. Com efeito, pode-se afirmar que o AIAF foi o primeiro Ano Internacional da

ONU construído a partir de uma iniciativa da sociedade civil, engajando as mais

importantes redes regionais de organizações de agricultores familiares da África,

América Latina e Caribe, Ásia e Europa.

No MERCOSUL, a REAF assumiu a tarefa de vincular o debate global com a

articulação das ações nacionais.104 Já em 2011, no bojo das articulações para a

aprovação do AIAF, a ata da XV REAF, realizada em Assunção, indica que: “la

iniciativa del Foro Rural Mundial de realizar una campaña para que las Naciones

Unidas declaren un Año Internacional de la AF coincide con los objetivos estratégicos

de la REAF y con su propósito de dar visibilidad a la AF.” Por sua vez, documento

aprovado na XVIII REAF (Caxias do Sul, 2012) aponta que as organizações sociais:

[...] concordam que o AIAF é uma oportunidade para resgatar a

identidade da agricultura familiar e dar visibilidade ao setor frente ao

meio urbano e de consumidores, como setor estratégico que garante a

soberania e segurança alimentar de nossos povos, a sustentabilidade

ambiental e a equidade territorial, com ênfase na geração de

consciência nas novas gerações a respeito de quem, como e onde são

produzidos os alimentos.

103 Angel Strappazzon. Via Campesina – Argetina. Declaração na apertura oficial da XXIII REAF

(Brasília, junho de 2015).

104 A REAF buscou trabalhar de forma articulada com os Comitês Nacionais estabelecidos e também com

o Escritório Regional da FAO, que capitaneou a organização da agenda oficial das Nações Unidas na

região. Em alguns países, como Argentina, Equador e Uruguai, as Seções Nacionais da REAF

funcionaram como Comitês Organizadores das ações do AIAF (Silva, 2014c).

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O reconhecimento que a agricultura familiar obteve a partir das iniciativas do AIAF

conferiu um impulso para diálogos globais sobre políticas de desenvolvimento rural e

segurança alimentar. A REAF tem inúmeros méritos e responsabilidades com o avanço

destes diálogos. Hoje ela projeta-se como uma experiência (e um ator coletivo) na qual

outros países e blocos se espelham para construir seus próprios espaços de diálogo. O

mesmo pode ser dito com relação à ação de algumas organizações multilaterais como a

FAO, que tem se empenhado em coordenar um trabalho coletivo entre governos e

movimentos sociais de definição e identificação da agricultura familiar em nível global.

Não é por acaso que o Grupo Internacional de Trabalho (IWG-FF) criado pela entidade

para construção de critérios comuns, definições e tipologias da agricultura familiar é

coordenado por Álvaro Ramos, diretor do Programa FIDA Mercosul, ator-chave na

construção da REAF.

Aliás, é importante notar que além de uma crescente confluência entre as iniciativas das

organizações multilaterais – um trabalho que envolve diálogos políticos e técnicos nada

simples – esta convergência global também se ancora nas capacidades individuais. As

organizações também são grandes coalizões políticas suscetíveis a mudanças quando as

correlações de poder alteram as posições dos indivíduos. Para compreender o que está

em curso nas discussões globais sobre a agricultura familiar, não se pode desconsiderar

as importantes mudanças empreendidas por José Graziano da Silva na presidência da

FAO. Sua eleição foi fundamental para re-oxigenar a entidade, reforçando, sobretudo, o

papel da agricultura familiar na luta contra a insegurança alimentar, a pobreza e a fome.

Como afirma o recém reeleito presidente: “Where family farming used to be seen as a

problem, it is now seen as part of the solution”105.

Mas não são apenas as organizações multilaterais e os governos que estão vivenciando

mudanças expressivas. Isto também se processa em uma articulação global de redes de

movimentos sociais da agricultura familiar, campesina e indígena. O AIAF foi a ocasião

para solidificar laços que já estavam sendo tecidos. No interior dos países, os Comitês

Nacionais contribuíram para aproximar os movimentos sociais em torno de uma agenda

de lutas por reconhecimento e fortalecimento das agriculturas familiares, campesinas e

indígenas. Apesar das diferenças, que justificam a existência de distintos movimentos,

nota-se um processo de aproximação, cujo potencial ainda precisará ser confirmado.

Hoje, no Brasil, vivemos um momento totalmente diferente. Porque a

nossa relação dos movimentos sociais à nível nacional é muito boa.

Muito boa. [...] Eu ajudei a construir o Encontro Unitário. Ali foi um

momento em que nós selamos a unidade na diversidade das ações dos

movimentos. (William Clementino, op. cit.).

Neste mesmo sentido, em âmbito continental pode-se destacar a criação, em 2013, da

Aliança para a Soberania Alimentar dos Povos da América Latina e do Caribe

105 Fonte: Global Dialogue on Family Farming. Lessons Learned from the IYFF. Rome: FAO, 2014, p. 8.

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(ALIANZA)106, rede sub-regional do Comitê Internacional de Planejamento pela

Soberania Alimentar (CIP). Esta rede participou ativamente da construção do AIAF e,

no bojo das discussões entre os movimentos sociais, sugeriu a incorporação do termo

“camponês” ao Ano Internacional, que, em seguida, por sugestão da CIP, também

incorporou o termo “indígena” (Silva, 2014c). Trata-se de uma clara demonstração da

construção da “unidade na diversidade” referida no depoimento acima.

No que diz respeito especificamente ao espaço regional, inúmeros entrevistados

destacam a importância destas novas articulações entre os movimentos sociais – mas

também destes com os governos nacionais e com as organizações multilaterais – para

ampliar e qualificar a participação da sociedade civil nos diálogos políticos. Um dos

reflexos disso é o maior protagonismo das organizações da Via Campesina na REAF.

Com uma leitura muito crítica sobre os efeitos da abertura comercial proposta pelo

MERCOSUL e pela agenda liberal da OMC nos anos 1990, a Via Campesina apostou

em outros espaços de mobilização, articulando uma rede de movimentos anti-

globalização (Carvalho, 2011). Parte deste esforço esteve concentrado, por exemplo, na

organização da ALBA, onde encontrou movimentos e governos com maior afinidade

ideológica ao plano camponês.

Isso explica parcialmente o menor protagonismo da Via Campesina, enquanto rede de

movimentos sociais, nestes dez primeiros anos da REAF. Mesmo assim, inúmeras

organizações locais e nacionais filiadas a esta rede global tiveram presença importante

nos diálogos regionais, com participação ativa nas ações da REAF. Isto se deve ao fato

de que, com o passar do tempo, ficou claro que a REAF não compartilhava da agenda

liberal predominante nas negociações comerciais, e que havia espaço para criar

compromissos e entendimentos comuns, resguardando os princípios, as diferenças e a

autonomia de cada organização. Hoje, a mudança que está em curso tem a ver com uma

presença mais ativa da Via Campesina enquanto organização coletiva, e também de

determinados movimentos a ela associados que possuem uma importância central nas

discussões agrárias latino-americanas.

Foi a XXIII REAF que selou este ingresso. Realizada em Brasília em junho de 2015,

esta foi a primeira reunião regional em que a Via Campesina participou oficialmente,

inclusive com representação na mesa de abertura oficial do evento. Como destacam Rita

106 A ALIANZA abarca dezesseis redes de movimentos sociais: Coordinadora Latinoamericana de

Organizaciones del Campo (CLOC Vía Campesina); Movimiento Agroecológico de América Latina y El

Caribe (MAELA); Consejo Internacional Tratados Indios (CITI); Marcha Mundial de Mujeres;

Confederación de Productores Familiares del Mercosur (COPROFAM); Foro Mundial de Pescadores y

Trabajadores de la Pesca (WFF); Confederación de Pescadores Artesanales de Centro América

(CONFEPESCA); Regional Latinoamericana de la Unión Internacional de Trabajadores de la

Alimentación (UITA); Amigos de la Tierra América Latina y del Caribe (ATALC); Red de Acción contra

los Plaguicidas de América Latina (RAP-AL); Coordinadora Andina de Organizaciones Indígenas

(CAOI); Enlace Continental Mujeres Indígenas; Red Por una América Latina Libre de Transgénicos

(RALLT); Alianza Biodiversidad; Red de Soberanía Alimentaria de Centro América (REDCASSAN);

Rede de Ação e Informação Alimentação Primeiro (FIAN).

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Zanotto, do Movimento Sem Terra (MST), e Marciano Toledo da Silva, do Movimento

dos Pequenos Agricultores (MPA), ambos do Brasil, esta aproximação com a REAF –

que ocorre de forma gradual – está pautada pelas várias mudanças que foram operadas

nos anos recentes, incluindo a ampliação dos diálogos políticos em âmbito regional:

Por que nós entramos? Porque quando entrou Venezuela e Bolívia,

eles trouxeram nossos temas para dentro da REAF. Então nós

chegamos, em um processo que está andando. [...] Nós fomos levados

a tomar uma decisão coletiva como CLOC – Via Campesina porque

nos países as organizações já haviam começado a participar. [...] Qual

é a nossa expectativa? Nós entendemos esse espaço como um espaço

que se pode avançar nesta região com as experiências boas que nós

temos, no tema de terra e território, [...] nós queremos pautar o tema

da soberania alimentar, [...] poder trazer para cá o tema dos

agrotóxicos, dos transgênicos, da não violência... alguns temas que

nós temos. (Rita Zanotto).107

Com a entrada da Venezuela, da Bolívia e do Equador, o quadro

muda. [...] Com a entrada desses países e dos temas que eles

colocaram [na REAF], isso nos possibilitou participar do espaço para

poder influenciar internamente nos nossos próprios governos. E a

decisão tomada no ano passado era de que não fazia sentido os

movimentos sociais dos outros países entrarem na REAF se a Via

Campesina Brasil não entrasse. (Marciano Toledo da Silva).108

Esta ampliação do leque de organizações pode resultar em um importante passo para

dinamizar a agenda da REAF. Como afirma Favio Pirone (op. cit.), “estoy convencido

que la agenda que lleva adelante el movimiento campesino e indígena, la Via

Campesina, refresca la agenda de la REAF”. O ingresso de novos atores e questões pode

ampliar os diálogos políticos, inclusive potencializando uma participação mais ativa de

outros movimentos sociais que compartilham dos mesmos princípios – ou mesmo

daquelas organizações situadas em outros campos ideológicos que buscarão reafirmar

suas posições na arena política regional. Somente a história dos próximos dez anos da

REAF poderá analisar o desenvolvimento deste processo.

107 Rita Zanotto. Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST - Brasil) e Via Campesina.

Estrato de entrevista concedida em junho de 2015.

108 Marciano Toledo da Silva. Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA - Brasil) e Via Campesina.

Estrato de entrevista concedida em junho de 2015.

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16. Como os atores interpretam os próximos passos e desafios

A REAF completou dez anos de existência. Os primeiros passos foram dados por um

grupo ainda restrito de gestores e líderes sociais oriundos, sobretudo, dos quatro países

que então conformavam o MERCOSUL enquanto membros plenos. Como vimos acima,

hoje este fórum envolve não apenas uma gama cada vez mais ampla e diferenciada de

atores e organizações sociais, como também um escopo mais largo de países, cada qual

com suas especificidades econômicas, sociais e culturais. Ao longo deste período, os

princípios se fortaleceram, a agricultura familiar ampliou seu reconhecimento, novas

instituições e políticas foram criadas. Mas também proliferaram os desafios. Uma

experiência desta magnitude sempre será confrontada com inúmeras adversidades,

algumas das quais, como tivemos oportunidade de analisar nos capítulos anteriores, já

estão presentes há algum tempo na agenda dos governos e movimentos sociais.

O documento de avaliação apresentado pela Sociedade Civil em dezembro de 2014,

durante a XXII REAF, sumariza alguns desses desafios (Quadro 7). Ali aparece uma

dúzia de questões críticas, algumas das quais relativamente recorrentes na pauta. É o

caso da demanda pelo aprofundamento das análises e proposições sobre reforma agrária,

terras e água. A história justifica porque reivindicações envolvendo mudanças na

estrutura agrária estão sempre presentes na agenda dos movimentos sociais rurais latino-

americanos. Não é novidade que, também na REAF, o tema seja posicionado no topo da

pauta das organizações sociais. Cientes das controvérsias e reações que elas suscitam e

das dificuldades de implementar ações mais incisivas, os movimentos mesmo assim

fazem questão de ratificar essas reivindicações no debate político.

O desafio de reposicionar o tema da reforma agrária não é uma especificidade da REAF.

Na verdade, para que isto aconteça, hoje se deve considerar as dificuldades que os

próprios governos e movimentos sociais encontram para produzir uma nova onda de

mobilizações por mudanças estruturais na distribuição da terra. O que está mais

próximo à trajetória da REAF é o modo como este fórum conseguiu potencializar outros

temas que também repercutem sobre a organização agrária, em particular a

normatização dos processos de estrangeirização e a implementação de novas diretrizes

de governança fundiária. Soma-se a isto o tema do acesso e do uso da água. Incluído

mais recentemente nas discussões, o mesmo também vem sendo recorrentemente

apresentado por alguns movimentos sociais, os quais ainda não conseguiram, contudo,

articular propostas mais específicas à este respeito.

Associado a este tema, outro desafio prioritário identificado pela Sociedade Civil diz

respeito à incorporação da questão ambiental. Esta discussão tem avançado dentro dos

espaços nacionais, onde nota-se uma preocupação crescente com a construção de

políticas socioambientais, mas também na agenda das negociações multilaterais, onde o

tema ambiental se tornou o foco de controvérsias tão ou mais relevantes que a discussão

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comercial. Tudo isto repercute na REAF, a qual tem incorporado discussões sobre

conservação da biodiversidade, agroecologia, sementes e recursos genéticos,

tecnologias apropriadas e estratégias adaptativas às mudanças climáticas. Considerando

a demanda social por modelos mais sustentáveis de produção e consumo, tudo leva a

crer que estes temas merecerão uma atenção crescente nos próximos anos.

O Quadro 7 também aponta para aspectos que são essencialmente organizacionais, mas

que requerem esforços políticos não menos relevantes: fortalecer as seções nacionais

como espaços de diálogo, participação, autonomia e democracia – rompendo, assim,

com qualquer resquício de paternalismo que possa resistir em alguns Estados; ampliar o

alcance das discussões para as províncias e departamentos – aproximando a agenda da

REAF da base dos movimentos e organizações; discutir metodologias de diálogo e

trabalho conjunto entre a REAF e outros espaços de integração regional, notadamente a

CELAC; melhorar os métodos e formas de difusão de informações e comunicação entre

os países e as organizações; organizar e ampliar os aportes financeiros para o FAF;

melhorar os processos de monitoramento das ações no conjunto dos países do

MERCOSUL ampliado; sistematizar a trajetória da REAF para garantir uma memória

histórica desta experiência que oriente os novos atores; e garantir a presença de

mulheres e jovens nos diferentes espaços da REAF.

Citam-se ainda alguns desafios que ganharam relevância nas discussões mais recentes.

Dentre eles está a necessidade premente de aprofundar a análise sobre a diversidade de

grupos sociais da agricultura familiar, incluindo na agenda as questões que afetam os

assalariados rurais, indígenas, extrativistas e pescadores artesanais. Trata-se de um

desafio cada vez mais relevante, sobretudo na medida em que os diálogos expandem-se

para novos contextos, em particular para o mundo andino. E este também é o caso de

algumas temáticas relativamente antigas para o mundo rural latino-americano como a

migração e o êxodo, mas que nunca foram tão inovadoras à agenda da REAF.

Associadas a fenômenos mais recentes como o envelhecimento e a

masculinização/feminilização das regiões rurais, as questões demográficas e migratórias

retornaram ao debate como desafios particularmente complexos para as políticas

públicas na medida em que colocam em risco a reprodução da agricultura familiar.

Quadro 7 – Síntese do balanço da Sociedade Civil dos dez anos da REAF.

DESAFIOS

a) Profundizar el análisis y proposiciones sobre Reforma Agraria, tierras y agua.

b) Enriquecer la temática y orientación de los análisis y debates sobre medio ambiente y cambios climáticos, dando prioridad al tema agua en todos sus usos.

c) Profundizar análisis y diálogos entorno a las temáticas y problemática de los asalariados rurales, indígenas, recolectores, pastores y pescadores artesanales.

d) Fortalecer las secciones nacionales para los debates, participación, autonomía y democracia.

e) Discutir y definir cuestiones financieras entorno al FAF y establecer control y exigencia del

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cumplimiento de los aportes.

f) Establecer políticas públicas que aborden los temas migración y emigración de los AF del campo a las ciudades, priorizando la situación de las mujeres y jóvenes en este campo.

g) La metodología de diálogo y trabajo de la REAF sea expandida a otros espacios de integración del MERCOSUR, del continente y CELAC.

h) Democratizar la discusión sobre la REAF en los diferentes países, alcanzando los espacios de provincia.

i) Mejorar los métodos y formas de difusión y comunicación entre los países y las organizaciones que trabajan con la AF en la región. Hacer un uso apropiado permanente de las herramientas que desarrolla la REAF.

j) Mejorar los procesos de articulación y monitoreo con los países del MERCOSUR Ampliado.

k) Sistematización de los documentos e historia producidos por la REAF en beneficio de la alternancia de dirigentes de la AF y autoridades gubernamentales.

l) Garantizar la presencia de mujeres y jóvenes en los diferentes espacios de la REAF.

Fonte: XXII REAF. Montevidéu, dezembro de 2014.

Como é possível perceber, o Quadro anterior revela um conjunto de reivindicações dos

movimentos sociais para reorganizar a agenda de trabalho para os próximos anos. Ele

não abarca, contudo, algumas preocupações mais institucionais que, segundo alguns

entrevistados, constituiriam os fatores verdadeiramente críticos para a sustentabilidade

deste fórum. Há algum tempo, governos e movimentos discutem cenários futuros,

projetando desafios que podem se impor a depender da magnitude das reconfigurações

políticas e econômicas que estão em curso nos países e no MERCOSUL como bloco.

Doravante, neste último capítulo, analisamos como os próprios atores identificam e

interpretam essas reconfigurações e os efeitos que elas podem ter para a organização

dos diálogos entre Estado e Sociedade Civil na REAF.

a) O novo cenário macroeconômico e setorial

Álvaro Ramos, um dos atores mais atuantes na REAF desde seu início, foi o primeiro a

nos chamar a atenção para a importância de um elemento indispensável para

compreender o sucesso desta experiência, a saber: ela foi construída em um período de

crescimento econômico e relativa estabilidade política na maioria dos países sul-

americanos (cf. Capítulo 6). De fato, mesmo após a crise financeira global iniciada em

2008, alguns países ainda conseguiram manter níveis elevados de crédito, investimento

e consumo, o que garantiu a demanda por alimentos e matérias-primas e manteve os

preços agrícolas relativamente elevados. Esta leitura é ratificada por outro personagem

recorrente dessa narrativa histórica, Guilherme Cassel:

A REAF se desenvolveu nesses dez anos em um ambiente favorável.

Em um ambiente de crise do MERCOSUL, é verdade. Mas, ela sofre

muito pouco a crise do MERCOSUL. E em um ambiente econômico

de crescimento, mesmo que, de 2008 para cá... mas ainda teve muito

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investimento, governos de centro-esquerda, preços agrícolas bons.

(Guilherme Cassel, op. cit.).

Apesar da inércia institucional do MERCOSUL, a primeira década do Século XXI

mostrou-se particularmente promissora para a agricultura familiar, seja porque os preços

dos produtos agrícolas foram capazes de garantir níveis de renda mais elevados do que

as projeções históricas previam, seja porque, animados pelos resultados do setor

primário (em particular no que diz respeito à balança comercial), os governos

ampliaram o orçamento e reduziram os juros dos programas públicos para a agricultura.

O segmento da agricultura familiar também se aproveitou destes movimentos

articulados: ampliou sua participação nas cadeias produtivas e conquistou um montante

crescente de recursos para financiamento, comercialização e assistência técnica.

A consolidação da agricultura familiar deu-se em um momento de expansão do modelo

agroexportador de commodities, o que alimentou um aparente paradoxo, tendo em vista

que este modelo demanda economias de escala para compensar o crescente aperto nos

níveis de valor adicionado na agricultura. Mas, na verdade, foi apenas uma pequena

parcela da agricultura familiar, aquela mais consolidada tecnologicamente, que

conseguiu aproveitar diretamente o boom dos mercados agrícolas internacionais. A

rigor, nestes últimos vinte anos, tão ou mais importante que o crescimento dos mercados

internacionais, foram os efeitos da expansão do consumo alimentar interno, processo

este catalisado pelo incremento dos níveis de renda da população.

Mesmo assim, a confluência histórica com a dinâmica dos mercados globais fortaleceu

uma ideia de que a agricultura familiar poderia competir nas cadeias de commodities, o

que deu vazão a políticas de modernização produtiva especificamente voltadas para este

segmento. Se isto não está totalmente errado, haja vista a participação efetiva da

agricultura familiar em muitas cadeias convencionais, está muito distante, contudo, de

constituir uma explicação satisfatória para o fortalecimento da agricultura familiar

enquanto categoria sociopolítica. Ao contrário, essa explicação pode ser mais facilmente

encontrada nas lutas que os movimentos sociais empreenderam em reação ao modelo

agroexportador, a partir do que começaram a ser articuladas trajetórias diferenciadas de

desenvolvimento rural e uma nova geração de políticas públicas (Grisa e Schneider,

2015).

Atualmente, a consolidação da agricultura familiar também responde a outros

referenciais, os quais estão menos associados à ideia de aproveitar o crescimento dos

mercados convencionais, e mais estreitamente relacionados à contribuição estratégica

que este segmento pode ter para a segurança alimentar e nutricional – o que repercute,

inclusive, no papel que a agricultura familiar pode ter para a redução dos preços

alimentares ou, pelo menos, para atenuar a vulnerabilidade dos países em face da

volatilidade dos mercados internacionais. Com efeito, para além dos instrumentos de

política agrícola, os Estados também desenvolveram um novo arsenal de políticas

sociais que garantem acesso a bens e serviços básicos, e um não menos importante

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conjunto de programas na área da segurança alimentar, combate à fome e redução da

pobreza. O reconhecimento institucional da agricultura familiar responde a articulação

destes distintos referenciais, os quais oscilam de acordo com as disputas políticas em

curso.

Nos últimos anos o cenário econômico e setorial alterou-se, o que tem resultado na

reestruturação da intervenção dos Estados na agricultura e no meio rural. Na medida em

que isto também afeta as políticas para a agricultura familiar, muitos acreditam que aqui

pode residir um dos desafios para a sustentabilidade dos diálogos políticos na REAF.

Em decorrência das dificuldades que a economia mundial encontra para recuperar o

nível de crescimento anterior à crise, as medidas de ajuste macroeconômico, em

particular a elevação dos juros e o contingenciamento de recursos para garantir o

superávit primário, podem desacelerar o ritmo de investimentos, reduzir a

disponibilidade de crédito e impactar o consumo. Além disso, a manutenção dos preços

agrícolas elevados também se torna um problema na medida em que pressiona a

inflação. Se a crise internacional reduz a demanda e, por conseguinte, a pressão

inflacionária, no plano interno a diminuição do crédito e do investimento público pode

ter efeitos contrários se afetar a produção.

Mas, como destaca Carla Campos Bilbao da Secretaria de Agricultura Familiar do

MAGyP - Argentina, se este novo cenário determina desafios significativos, também é

possível identificar algumas oportunidades. A primeira está associada à própria abertura

que o contexto de crise proporcionaria para rediscutir as alternativas de

desenvolvimento e inclusão produtiva da agricultura familiar. A desaceleração dos

mercados internacionais de commodities poderia, por exemplo, impulsionar políticas

focadas na agregação de valor aos produtos agropecuários, o que é essencial para o

reconhecimento da agricultura familiar e para alterar sua posição subordinada nas

cadeias de valor.

Empieza ahora una nueva era, una nueva crisis financiera, que sin

duda también va amenazar las economías y los sectores más

vulnerables de nuestros países, y así nuevamente la ruralidad se pone

en charre, porque los países van a sentir esta retracción de los

mercados internacionales, porque no se va poder exportar tanto. Es ahí

una nueva oportunidad de pensar el agregado de valor y de incorporar

cada vez más los pequeños productores organizados a esta cadena de

valor. […] Entonces, la REAF vuelve a tomar otra dimensión. […] El

desafío entonces es en este futuro, como así pudimos en esta primera

década, ir acompañando este enorme fenómeno de transformación

regional de América Latina, volver a pararnos y comprehender que se

viene un mundo difícil, pero que estas dificultades nos abren enormes

oportunidades. (Carla Campos Bilbao).109

109 Carla Campos Bilbao. Secretaria de Agricultura Familiar do MAGyP, Argentina. Estrato de

intervenção no Seminário “10 anos da REAF”, Montevidéu, dezembro de 2014.

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Outra oportunidade envolveria o estreitamento das relações econômicas regionais,

apostando em circuitos de comércio menos voláteis às flutuações dos mercados

financeiros. Seria este o momento para fortalecer um programa regional de compras

públicas da agricultura familiar? Para afirmar uma agenda de segurança e soberania

alimentar? Para apostar em novos modelos de associativismo e cooperativismo

solidários? Isso ainda não está totalmente claro para o conjunto do atores. Dentre os

limites para apostar em uma estratégia deste tipo está a própria crise fiscal dos Estados,

o que limita a disponibilidade de recursos para políticas regionais. Além disso, esta

alternativa disputa espaço com opções mais convencionais, dentre as quais se encontra a

ideia de fortalecer a pressão do setor agroexportador para que o MERCOSUL avance

nas negociações comerciais com outros países e blocos, em particular com a União

Europeia, abrindo mais espaço para o ingresso de commodities agrícolas.

Independentemente da via que será seguida, desenha-se para o futuro uma ampla agenda

de trabalho para o GT de Facilitação de Comércio e para toda a REAF. Os próximos

anos devem ser decisivos. A recuperação da economia global, a expansão dos mercados

agrícolas internacionais e a manutenção do preço das commodities poderá reestabilizar

o cenário econômico e político, mas, neste caso, manterá o paradoxo de uma (parcela

da) agricultura familiar que se fortalece ao mesmo tempo em que os setores do

agronegócio expandem seu domínio sobre os mercados, as terras e os territórios. De

outro modo, se a crise se estender é possível que os movimentos sociais e governos

sejam novamente confrontados com a agenda liberalizante que prevaleceu nos anos

1990, e cujos efeitos devastadores para os pequenos agricultores já foram amplamente

relatados (Capítulo 6). Em ambos os casos, o fortalecimento do referencial da segurança

alimentar e nutricional surge como uma estratégia cada vez mais relevante para

assegurar uma via alternativa de desenvolvimento rural e inclusão produtiva para as

agriculturas familiares do MERCOSUL.

b) Os desafios de um novo contexto político

A projeção dos cenários econômicos está associada a outra reconfiguração tão ou mais

importante, a qual se desenha no plano político. Como já foi discutido anteriormente, os

resultados alcançados pela REAF estão intimamente relacionados aos referenciais

políticos que orientaram os governos de centro-esquerda na América Latina. Uma

espécie de social-desenvolvimentismo esteve presente em parte da agenda estatal na

última década, o que possibilitou que, mesmo em um período de expansão e

concentração do capitalismo financeiro, se recuperasse parcialmente a capacidade de

ação estatal. Exemplo disto é o modo como, incentivados pelos diálogos regionais, os

governos criaram instrumentos para limitar o fenômeno da estrangeirização da terra, o

qual frequentemente está associado a investimentos especulativos.

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Ademais, soma-se a isso uma agenda de mudanças democráticas que conduziram os

Estados a investir em políticas de redução das desigualdades econômicas, aumento da

participação cidadã e inclusão social. No âmbito regional, a principal expressão dessas

escolhas políticas é o esforço, ainda em curso, de transformação do bloco estritamente

comercial criado pelo Tratado de Assunção em um Mercosul Social e Participativo.

Isso demonstra que a REAF não foi construída apenas sob os alicerces de um contexto

econômico favorável à agricultura, mas também de um cenário político que fortaleceu

sua agenda. A nosso ver, é absolutamente imprescindível sublinhar esta variável política

na construção das políticas para a agricultura familiar. Ela não apenas esclarece as

decisões que orientaram toda a nova geração de programas que os Estados criaram nos

últimos dez anos, mas também os entendimentos produzidos em âmbito regional. Não

podemos esquecer que, quando a REAF foi criada, havia certo receio de que este novo

‘espaço de negociação’ poderia ser utilizado para favorecer determinado país ou setor

produtivo. A crescente convergência política entre os governos, mas também com os

movimentos sociais, mostrou que este ‘espaço de diálogo’ servia a outro propósito:

afirmar a agricultura familiar como um ator estratégico do desenvolvimento regional.

Estos diez años forman parte de una nueva era en la región de

América Latina, que tiene a ver con lo que hemos podido desarrollar

dentro de cada uno de los países con respecto al desarrollo de políticas

económicas. La REAF pudo ir acompañando estos diez años de

transformación regional. Hemos podido tomar decisiones de

reinversión, de reactivación de la economía local, e identificar la

agricultura familiar como un actor estratégico no solo para resolver el

problema de la falta de alimentos, si no, fundamentalmente, como

actores estratégicos para generar empleos y para ocupar el territorio de

una manera más harmónica. (Carla Campos Bilbao, op. cit.).

O desafio que se impõe diz respeito às possíveis implicações de uma nova guinada

liberal nos países membros e associados. A discussão não é nova. Há algum tempo esta

dúvida paira nos debates regionais: estaria a REAF suficientemente consolidada para

sobreviver a uma mudança de orientação ideológica nos governos latino-americanos?

Durante algum tempo, todos os processos eleitorais em curso na região constituíram

momentos de incerteza que, por vezes, obstaram avanços mais céleres nos diálogos.

Afinal, era necessário aguardar para ver quem seriam os novos interlocutores. Nunca

esteve descartado o ingresso de gestores orientados por formulações teóricas e políticas

críticas ao reconhecimento da agricultura familiar.

Um dos momentos de maior incerteza nestes dez anos envolveu as mudanças

desencadeadas no Paraguai a partir da queda do então presidente Lugo, o que resultou

na suspensão temporária do país do MERCOSUL. Contudo, nem a turbulenta

reorientação política do governo paraguaio, nem as agruras institucionais produzidas

pela suspensão, desestruturaram os compromissos firmados. O gradual reingresso do

país nas discussões serviu, ao fim e ao cabo, para solidificar um entendimento cada vez

mais recorrente, qual seja, de que hoje a REAF é uma experiência consolidada do ponto

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de vista institucional. Segundo diferentes entrevistados, atualmente não há margem de

manobra para retroceder a ponto de colocar em risco a existência deste espaço:

A principio esa era un poco la inquietud que teníamos todos: ¿como

hacemos para que la REAF siga adelante después de los próximos

cambios de gobierno? Hoy en día creo que eso ya nos es una

preocupación. […] Hay un punto más allá del cual eso es un proceso

irreversible. Yo creo que nosotros ya pasamos de este punto. Por lo

más que tengamos presiones de todo lado, no va ser fácil de revertir.

(Eduardo Polcan, op. cit.).

A cada momento de eleição, sobretudo no Brasil e na Argentina, é um

momento crucial. Como é que fica? Agora a REAF está

suficientemente constituída para quase ser independente. Seja quem

ganhar, vai continuar existindo a REAF. Talvez com menos vigor,

com menos recurso, com menor vontade política, mas vai continuar

existindo. Eu não tinha certeza disso antes. [...] Eu acho que foram

momentos importantes esses momentos de insegurança da sua

continuidade. Hoje em dia eu acho que ela está segura. [...] Por mais

que haja governos de oposição, ela vai continuar existindo. Isso

porque mais do que um espaço tecnocrático, burocrático, ela criou

uma rede política. É um espaço político. (Carlos Mielitz, op. cit.).

A coalizão é fundamental não para a manutenção da REAF, mas para

impulsionar uma agenda. Se tivesse uma mudança de orientação

política nos governos, as possibilidades de expansão da REAF no

MERCOSUL se alteram. Os países da região têm clareza disso. Eles

sabem que a direita brasileira não tem compromisso com o

MERCOSUL. Eu acho que é muito importante a coalizão, essa aposta

política em um projeto de integração, de alteração da política

econômica e de fortalecimento da política social. Mas eu acho que a

sobrevivência da REAF já tem um grau de institucionalização. (Caio

França, op. cit.).

Mas qual seria o principal alicerce político para sustentar esse grau de

institucionalização da REAF? A resposta mais evocada entre os entrevistados associa a

resiliência da REAF ao modo como os movimentos sociais se apropriaram deste espaço.

Frente a um eventual câmbio ideológico no contexto regional, seriam eles os principais

responsáveis por assegurar as conquistas obtidas. Note-se, por exemplo, que mesmo no

período em que o Paraguai esteve suspenso do MERCOSUL, as organizações da

sociedade civil do país continuaram participando ativamente da REAF, o que, inclusive,

facilitou o posterior reingresso dos gestores públicos nos diálogos regionais.

Em suma, considerando as incertezas que cercam a reprodução das coalizões de centro-

esquerda nos governos da região, os atores apostam na capacidade da sociedade civil em

reagir a eventuais tentativas de desestruturação dos atuais instrumentos institucionais

(Ministérios, Secretarias, Direções) e das políticas públicas implementadas (crédito,

assistência técnica, compras públicas, seguro rural, garantia de preços etc.). Como

destaca José Ignacio Olascuaga, diretor geral de desenvolvimento rural do MGAP

uruguaio, a REAF se consolida

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[…] en la medida que las organizaciones sociales se apropian de la

herramienta y la defiendan. Ante un eventual cambio de signo político

de los gobiernos de la región, estará principalmente en las manos de

las organizaciones sociales defender la herramienta, las políticas para

la agricultura familiar y la REAF como herramienta para generar esas

políticas. (José Ignacio Olascuaga, op. cit.).

Mas esta conclusão remete a outro desafio: estaria a sociedade civil suficientemente

mobilizada, organizada e estruturada para cumprir esta tarefa? Como vimos acima,

também está em curso um processo de reestruturação no interior dos próprios

movimentos sociais e sindicais em nível regional. Na REAF, o envolvimento de novas

organizações pode potencializar um novo ciclo de mobilização social. Mas isto já não

parece ser suficiente. O desafio atual é a construção da unidade entre os movimentos,

algo que vem sendo trabalhado há alguns anos e cuja principal expressão regional talvez

seja a Aliança para a Soberania Alimentar da América Latina e do Caribe.

c) A REAF e o MERCOSUL

Desde a sua criação, a REAF revelou certa autonomia dentro de uma estrutura

enrijecida de relações comerciais. Há quem sugira que foi isto que lhe permitiu construir

um espaço privilegiado de diálogo entre governos e organizações sociais, o que não foi

replicado nas demais instâncias bloco. É verdade que a inversão da agenda de diálogos

rumo a um Mercosul Social e Participativo contribuiu para legitimar sua experiência,

mas seria exagero afirmar que o sucesso da REAF faz parte do saldo final de uma ampla

mudança de orientação nas negociações regionais. Inversamente, talvez seja mais

prudente reconhecer que a própria REAF tem impulsionado a demanda por mais

espaços de participação social, consolidando-se, inclusive, como uma referência para as

iniciativas da UPS para democratização das demais instâncias regionais. Há quem

sustente, por conseguinte, que o MERCOSUL necessita de mais REAF, na perspectiva

de que as negociações comerciais possam incorporar um processo mais efetivo de

integração político-cultural:

Eu tenho dito há muitos anos que o MERCOSUL precisa de mais

REAF. Porque a nossa vocação de MERCOSUL é uma vocação

comercial, mas ela é mais que isso. É uma vocação de integração e

construção de uma região que pode intervir e ser ouvida no mundo. Só

que para isso nós temos que ter uma integração mais verdadeira. A

REAF faz um caminho diferente do que o MERCOSUL com um todo.

Obviamente, o MERCOSUL nasceu e se constitui como um bloco

comercial. Esta é a grande referência do MERCOSUL. A REAF não.

[...] Se nós queremos ser uma região mais integrada, nós temos que ser

uma região mais igual. [...] A integração depende muito da

diminuição das assimetrias. E a diminuição das assimetrias você faz

com cooperação, com diálogo, com apoio entre os países, mas,

sobretudo, apoiando para que o país possa desenvolver a sua própria

experiência. (Laudemir Muller, op. cit.).

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A questão que talvez necessite ser ponderada é que essa autonomia em relação ao

conjunto do bloco somente pode ser compreendida de maneira relativa. A REAF é um

nó da rede de relações políticas que explicam a trajetória do MERCOSUL. Um nó

importante na medida em que condensa uma experiência singular de participação social

e diálogos políticos. Mas um nó que, pela sua própria natureza enquanto órgão assessor

do GMC, é impelido a se articular sob o constrangimento de alguns limites

institucionais. Para alguns atores, um dos principais efeitos é a dificuldade que a REAF

encontra para influir mais incisivamente nas discussões comerciais e de política

agrícola:

Las grandes decisiones de política agrícola se toman en otro ámbito.

¿Como inserir y como hacer coherentes las políticas? O sea, nosotros

tratamos de algunas políticas para la agricultura familiar y el resto de

los temas económicos y tributarios son tratados en otro lugar.

Claramente yo reconozco que hay una debilidad. (Fernando Lopez,

op. cit.).

Um olhar retrospectivo demonstra que houve algumas tentativas de incidir sobre a

agenda comercial. Ainda hoje as discussões sobre protocolos sanitários revelam que esta

preocupação está presente na REAF. Mas é verdade que as discussões mantiveram-se

distantes da zona de turbulência altamente conflituosa em que frequentemente estão

imersos os negociadores do mercado comum. Há três razões principais para isso. Em

primeiro lugar, os atores da agricultura familiar logo perceberam que, para incidir sobre

as decisões do GMC relativas ao comércio regional, seria necessário tornar a REAF

uma coalizão política ainda mais sólida. Para tanto, buscou-se ampliar a legitimidade da

agricultura familiar no interior dos governos, o que derivou na construção da

infraestrutura institucional hoje existente. Em segundo lugar, deve-se reconhecer que o

próprio GMC não avançou substancialmente nas discussões comerciais, o que

distencionou alguns conflitos que historicamente marcaram as relações entre as

organizações da agricultura familiar e o MERCOSUL. Finalmente, em comparação com

os anos 1990, pode-se notar que o relativo arrefecimento dos conflitos agrícolas intra-

bloco também é resultado dos ganhos produzidos por uma década de expansão dos

mercados domésticos e internacionais.

Mas este cenário tem se alterado. Por um lado, a reconfiguração do quadro econômico

tem levado os negociadores a acelerar a retomada a pauta comercial, procurando

encontrar alternativas de crescimento em um contexto de crise e redução da demanda

internacional. No plano regional, a principal evidencia disto é o esforço que alguns

governos estão empreendendo para destravar o acordo Mercosul – União Europeia.110

Por outro lado, ao mesmo tempo em que a agricultura familiar ampliou seu

reconhecimento nos países, a REAF se consolidou no interior do MERCOSUL,

110 Cabe recordar que a análise desse acordo foi objeto de preocupação recorrente na REAF, onde a

maioria das organizações da agricultura familiar sempre se posicionou com reticências a aprovação do

mesmo em vista dos impactos que a abertura comercial pode significar para vários setores produtivos.

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conquistando legitimidade para falar em nome de um segmento social que, hoje, não

pode mais ser negligenciado da equação política que fundamenta as decisões comerciais

regionais. Esses dois fatores – a preocupação com a retomada da agenda de abertura

comercial, mas, agora, em um contexto de maior capacidade de ação política da

agricultura familiar – estão na base de um discurso que coloca em evidencia o desafio

da REAF assumir uma postura mais incisiva nas grandes questões do comércio exterior.

A REAF tem surfado em uma zona de conforto que é fora dos temas

duros da integração, que são os temas sanitários, alfandegários e

especialmente comerciais. Acho que foi uma aposta correta desses dez

anos porque há um processo de afirmação de um ator político no

projeto de integração regional, e ao mesmo tempo produzindo

resultados concretos, reduzindo assimetrias, criando ambientes para

complementaridades, criando identidades e proximidades, mas não

está entrando no tema da integração econômica. [...] Só que foi correto

a REAF ir criando um ambiente de confiança, ir criando base nacional

de instrumentos de políticas para agora abrir uma agenda. [...] A

REAF pode se desafiar a entrar numa discussão econômica. Isso vai

puxar uma discussão sobre as tradings, sobre comércio exterior,

cadeias produtivas. (Caio França, op. cit.).

Os desafios para pautar mais incisivamente os debates comerciais são reconhecidamente

complexos. No plano regional, algumas iniciativas sugerem testar esta possibilidade

demandando, por exemplo, que a REAF se constitua como um fórum consultivo do

GMC quando as decisões comerciais afetam a agricultura familiar. Outras iniciativas

que tem exigido esforços são as discussões sobre protocolos sanitários para a agricultura

familiar no MERCOSUL, as ações de estímulo ao associativismo e ao cooperativismo, a

criação dos “selos” da agricultura familiar, a solução para os impasses decorrentes da

sobreposição da pauta de exportações, e, talvez de forma mais evidente no atual

momento, o investimento para a construção de programas de compras públicas. A partir

disso nota-se um investimento para vincular o debate comercial com a construção de

uma pauta de política agrícola, a qual nunca foi seriamente considerada no âmbito

regional. Para alguns entrevistados, esta pode ser porta de entrada para tratar da

participação mais efetiva da agricultura familiar nas negociações comerciais.

Qual é a orientação fundadora da REAF? É estimular o diálogo sobre

políticas públicas para agricultura familiar e estimular alternativas de

comércio em nível regional. A segunda parte nunca foi bem

desenvolvida. Por que? Porque originalmente o MERCOSUL é uma

área de livre troca sem barreiras comerciais. E isso é feito com uma

desarticulação total em relação às políticas agrícolas, o que é o

contrário do que existe, por exemplo, na União Européia com a PAC.

A ideia era construir os fundamentos de uma política agrícola comum

que justificasse a integração do comércio, a partir do estabelecimento

de cotas de produção que permite um desenvolvimento mais ordenado

das cadeias de produção da agricultura familiar. Este é o grande

desafio. (Francesco Pierri, op. cit.).

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Com relação ao debate comercial, pensando de uma maneira ampla,

eu não sei se a REAF tem condições de fazer isso: uma discussão mais

geral das regras de comércio. Mas eu acho que é possível encontrar na

construção de alguns programas... de algumas experiências que

ajudem a apontar caminhos. Eu acho que esse é o desafio do novo

período: como é que a agenda da REAF pode passar para uma

cooperação efetiva, de programas e projetos, a qual ajude a sinalizar

que a partir daqui é possível avançar na discussão. A partir de

experiências concretas que ajudem a destravar o debate político,

sinalizando caminhos. (Guilherme Brady, op. cit.).

Obviamente, há inúmeros desafios para avançar no sentido de uma cooperação

comercial mais efetiva da agricultura familiar, gerando projetos regionais e produzindo

experiências concretas que demonstrem aos negociadores internacionais caminhos

alternativos de integração econômica. Em um contexto de ajuste fiscal dos Estados, o

primeiro desafio tem a ver com o próprio acesso a recursos financeiros. Isto diz respeito

ao montante de recursos demandado para essas experiências, mas também à

reestruturação dos mecanismos de gestão financeira. Neste caso, uma medida

importante é a reformatação do FOCEM, tornando-o um instrumento mais ágil e

passível de financiar uma gama mais diversa de ações. Isto repercutiria não apenas na

ampliação dos programas regionais para a agricultura familiar, mas também, e de forma

articulada, em iniciativas nas áreas de segurança alimentar e nutricional, combate a

pobreza e assistência social.

A possibilidade da REAF intervir nas negociações comerciais também depende

criticamente da capacidade dos atores políticos da agricultura familiar, em particular dos

gestores públicos, mas também das organizações sociais, se constituírem como efetivos

interlocutores dos Ministérios de Relações Exteriores e Chancelarias dentro dos seus

países. De modo geral, a participação dos representantes da agricultura familiar nas

equipes de negociação internacional ainda é muito tímida. A exceção fica por conta do

Brasil, mas, mesmo assim, concentra-se na participação dos gestores públicos. Como

vimos anteriormente, em virtude de uma série de eventos muito específicos relacionados

à pauta da ALCA, o MDA projetou-se como um interlocutor recorrente do Itamaraty,

fato que contribuiu para a própria criação da REAF (cf. Capítulo 6). Hoje, a Assessoria

de Relação Internacionais do MDA participa ativamente da Câmara de Comércio

Exterior, o que lhe permite dominar a agenda de acordos multilaterais e articular

estratégias para a inserção da agricultura familiar. Na medida do possível esta

preocupação tem adentrado às discussões da REAF, que, dentre outras coisas, começou

a organizar a participação de agricultores familiares em feiras e exposições

internacionais.

Mas a discussão extrapola as relações comerciais. Similarmente àquilo que as

organizações sociais têm reivindicado em relação à reforma agrária (Quadro 7), muitos

entrevistados acreditam que a REAF poderia conduzir uma ação mais militante na

defesa de determinados temas que, de modo geral, tem pouco apelo entre os

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negociadores internacionais.111 São as questões duras da integração política.

Respondendo parcialmente a esta demanda, nos últimos dois anos a REAF também

produziu uma série de declarações públicas conjuntas entre os Ministros de Estado do

bloco. Embora elas não surtam o mesmo efeito de uma proposta de decisão ou

recomendação elevada ao GMC/CMC – onde algumas dificilmente seriam aprovadas e

outras passariam pelo crivo de uma infindável discussão diplomática – estas declarações

são importantes manifestos políticos, oriundos de um espaço oficial do MERCOSUL,

que orientam as ações de governos e também dos movimentos sociais. Ademais, elas

legitimam a ação da REAF, inclusive institucionalizando os entendimentos necessários

para que os diálogos avancem para além do MERCOSUL.112

Tem cinco ou seis declarações de ministros. Onde é que se fez isso?

Em um clube? Não. Se fez no MERCOSUL. O MERCOSUL não é só

aquela norma. Tem o MERCOSUL econômico, mas tem o

MERCOSUL político, que possibilita isso. A REAF só pode fazer isso

dentro do MERCOSUL. E faz. O Programa que a gente tem de

compras publicas, nasceu de uma declaração de ministros, não de uma

norma do MERCOSUL. (Lautaro Viscay, op. cit.).

A REAF é um fórum institucional do MERCOSUL. Mas, sua configuração diferenciada

permite que ela também detenha um potencial político que outras instâncias do bloco

não possuem. Há quem sugira inclusive que a REAF não deveria ser prioritariamente

pensada como um espaço de formulação de propostas para o GMC/CMC, haja vista os

muitos entraves institucionais que persistem nas negociações comerciais. Em especial

para os movimentos sociais, este é um espaço de articulação que repercute na criação de

importantes políticas públicas. Não obstante, sobretudo para os gestores públicos, é

importante que a REAF afirme-se cada vez mais como um espaço do MERCOSUL que,

seguindo as regras do jogo, seja capaz de produzir inovações institucionais que ampliam

o reconhecimento da agricultura familiar perante os Estados e, ao mesmo tempo,

também seja hábil para alterar a dinâmica do bloco – como ocorre com a gradativa

ampliação dos espaços de participação social. O mais provável é que a REAF continue

sendo as duas coisas: um espaço público de articulação que abarca enorme diversidade

de atores e uma coalizão que condensa esta diversidade em princípios e entendimentos

compartilhados, os quais lhe permitem agir como um ator político.

111 Cabe notar, todavia, que essas discussões têm encontrado algum espaço nas negociações

internacionais, o que repercute, dentre outras coisas, a pressão exercida pelos países em desenvolvimento.

Exemplo disso é o fato de que, em 2013, a IX Conferência Ministerial da OMC, realizada em Bali,

Indonésia, reconheceu que as políticas de reforma agrária como ações não distorcivas do comércio

internacional, enquadrando-as, portanto, na chamada “caixa verde”.

112 Como já vimos no Capítulo 12, um dos exemplos disso é Programa de Intercâmbio em Compras

Públicas, chancelado por uma declaração ministerial, e que hoje desperta uma profícua interlocução entre

a REAF e outros países e blocos da América Latina e Caribe (CELAC, UNASUL).

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d) Consolidar e ampliar e a participação social

Se for correto que a sustentabilidade da REAF dependerá em grande medida do modo

como a sociedade civil se apropriará e defenderá as conquistas já alcançadas diante de

eventuais mudanças políticas e econômicas no âmbito regional, um desafio fundamental

é consolidar e ampliar o processo de participação social. Isto envolve desde a

qualificação dos interlocutores do diálogo até a disseminação da agenda da REAF para

instâncias mais próximas às bases das organizações sociais, passando ainda pelo

contínuo ajuste dos mecanismos de interação entre Estado e Sociedade Civil.

Não é particularidade da REAF a existência de algumas assimetrias entre os governos e

os movimentos sociais nos momentos de diálogo. Mais ou menos evidentes em todos os

fóruns públicos da mesma natureza, estas assimetrias estão relacionadas, por exemplo,

com o domínio de informações, instituições e recursos discursivos, geralmente mais

acessíveis aos gestores públicos. Em alguns espaços, isto pode constituir a base de

processos de exclusão, que, nos casos mais graves, resultam no completo abandono do

espaço comunicacional; ou mesmo na perpetuação de relações de dominação, quando a

participação corre o risco de se tornar mera legitimação. São questões que desafiam

quase quotidianamente todos os atores envolvidos na construção de espaços de

participação para a gestão de políticas públicas.

Desde a sua criação, a REAF tem sido desafiada a mediar as diferenças, criando, dentro

de um espaço formal do MERCOSUL, um ambiente de confiança e cumplicidade onde

todas as pessoas se sentem em condição de intervir, questionar, propor, denunciar e

rejeitar. Para além da convivência de uma década e mais de duas dezenas de reuniões

regionais, isto envolveu uma série de escolhas políticas que ajudam a explicar aquilo

que alhures foi identificado como “método”: a organização dos grupos temáticos, que

favorecem a participação; o esforço contínuo de organização e compartilhamento das

informações; o cuidado para evitar a excessiva formalização dos debates; a estadia de

todos os membros das delegações no mesmo espaço ao longo das reuniões; a aposta

estratégica em ações de capacitação como o Curso Regional de Jovens Rurais; e mesmo

a complicada tarefa de tornar as discussões inteligíveis entre hispano e lusofônicos.

Isso não significa que as relações se tornaram completamente simétricas. Significa que

existe um esforço contínuo para garantir um espaço de discussão que reconheça e

respeite as diferenças. Por exemplo, não se espera que um agricultor representando a

Mesa de Desenvolvimento Rural de um território uruguaio maneje todos os

instrumentos normativos necessários para a implementação de uma política pública. Ao

mesmo tempo, se reconhecem os limites dos gestores públicos para monitorar os

inúmeros efeitos impremeditados que as políticas produzem lá no território. O diálogo

se constrói a partir das complementaridades.

Aqui há um desafio perene: o trabalho incessante para evitar a “institucionalização da

agenda”, assim compreendida a ideia de que, com o passar do tempo, os diálogos

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poderiam concentrar-se cada vez mais nos aspectos normativos requeridos para o

desenho das políticas públicas. Isto até poderia ser compreendido como uma evolução

normal para um fórum que se propõe a produzir decisões que orientam a construção de

políticas públicas. A partir do momento em que são firmados os entendimentos políticos

para, por exemplo, delimitar os eixos centrais da discussão, desenhar uma metodologia

e uma estrutura organizacional, construir os mecanismos de financiamento, conceituar e

identificar a agricultura familiar, a preocupação se voltaria para os dispositivos

institucionais necessários para avançar na criação de políticas públicas. Mas, para a

REAF e, em particular, para garantir a participação da sociedade civil, é importante que

isto ocorra sem prejuízo às discussões sobre os princípios políticos que orientam as

escolhas normativas.

En principio la REAF estaba se moviendo en un escenario donde no

había institucionalidad. Se estaba creando institucionalidad para la

agricultura familiar. […] Pero en la medida que se fueron

construyendo instituciones, normativas, directrices y registros,

inevitablemente la discusión pasó un poco para este eje. Y para

nosotros, desde el gobierno, es importante que las discusiones pasen

por eses ejes, porque es la oportunidad que tenemos de mejorar las

herramientas, sin dejar las discusiones de un plano más general. (José

Ignacio Olascuaga, op. cit.).

O entendimento desse fenômeno é objeto de discussão. Dentre os atores entrevistados,

não se verifica uma leitura precisa do significado e da magnitude das mudanças que

estão em curso. Mesmo assim, a sociedade civil mantém-se vigilante e cumpre seu

papel em reivindicar que os avanços na agenda mais tecnocrática de operacionalização

das políticas públicas, sejam simultâneos ao contínuo aprimoramento dos compromissos

políticos. Este é um trabalho particularmente relevante em um fórum com contínua

renovação dos interlocutores, sobretudo quando adentram novos gestores públicos,

alguns oriundos de espaços que operam com outras lógicas institucionais.

Como se percebe nos depoimentos abaixo, há certo receito de que parte das discussões

se concentre excessivamente nas demandas dos governos, ou mesmo dos organismos

internacionais que desenvolvem programas convergentes às políticas regionais. Neste

caso, a participação dos gestores públicos poderia ganhar maior relevância, afinal, os

mesmos manejam os instrumentos normativos diariamente. Eles se tornariam atores

cada vez mais centrais na medida em que as questões que aparecem na pauta exigem um

trabalho mais dedicado sobre a intrincada teia de normas, regras e leis que cada país

possui: Que informações são necessárias para operar os registros da agricultura

familiar? Que instrumentos estão disponíveis para restringir a aquisição de terras por

estrangeiros? Como implementar as diretrizes de governança da terra? Que mecanismos

podem ser manejados para estabelecer programas diferenciados de compras públicas?

Yo creo que uno de los desafíos es como profundizar la discusión

política en este ámbito, sobre las políticas agropecuarias para la

agricultura familiar. Creo que hay una tendencia cada vez más a ver

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participantes más técnicos. Son más los funcionarios de ministerios.

(Fernando Lopez, op. cit.).

Entonces se termina cumpliendo con supuestos mandatos que vienen

de un organismo que hizo su camino pero que no surgió de acá. […]

Las recomendaciones no deberían responder a la agenda de otros

organismos, si no que responder a una cuestión genuina generada

desde la participación social de acá, y más comprometidas. (Maria

Quiroga, op. cit.).

Não obstante a importância destas preocupações, três ressalvas aparecem frente a esta

ideia de institucionalização dos debates. A primeira delas está relacionada com o nível

de imbricação entre Estado e Sociedade Civil. Como vimos afirmando, a REAF é

exemplo paradigmático de que as novas formas de ação pública já não suportam

fronteiras rígidas entre estas duas esferas. Ademais, a própria ascensão dos governos de

centro-esquerda na América Latina não apenas ampliou o diálogo com os movimentos

sociais, mas fez com que houvesse uma circulação entre ambos os espaços. Inúmeros

casos revelariam as trajetórias de lideranças sociais que se tornaram secretários,

diretores, ministros e presidentes.

Eu tive dois períodos diferentes na REAF. Primeiro, pelo lado da

sociedade civil, eu trabalhava na Oxfam até 2006, e na Oxfam a gente

participava muito ativamente da REBRIP. Eu fazia monitoramento de

comércio e impacto de política pública, quando a gente começou a

pensar processos de integração, ou seja, alternativas ao livre comércio.

E aí veio um pouco da discussão sobre integração regional. Então eu

acompanhei os primeiros anos da REAF pela sociedade civil. E a

Oxfam também apoiava muito a participação dos movimentos sociais

na REAF. E depois, quando eu voltei para o governo, comecei a

trabalhar no MDA, em 2006. Eu fui para o MDA em 2006 para

coordenar a área de integração regional dentro da assessoria

internacional. (Guilherme Brady, op. cit.).

Em face de toda essa permeabilidade, seria mais adequado reconhecer que, se a pauta

dos diálogos se aproxima da agenda dos governos, talvez seja porque, em alguma

medida, esta agenda também está mais próxima das reivindicações históricas dos

movimentos sociais – pelo menos no que diz respeito a uma parcela desses movimentos

e no caso específico das políticas para a agricultura familiar. Em outras palavras, a

agenda atual já não é mais apenas ‘do governo’. Ela é a nova pauta de vários

movimentos sociais que, em muitos casos, colaboram ou estão dentro dos governos.

Eles têm essa opinião de que os governos puxaram tanto que a pauta é

quase pública. [...] Que a presença dos governos foi muito forte na

pauta da agenda, isso é inegável. Mas não podemos esquecer que tem

governos na região em que os movimentos estão lá dentro. Então,

quem diz o que diz e de onde diz? Quando os movimentos conseguem

levar a agenda para o centro do governo... (Lautaro Viscay, op. cit.).

A segunda ressalva está diretamente imbricada com a anterior. Ela aponta para uma

mudança qualitativa no processo de participação social. Ao invés da agenda

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reivindicatória que prevaleceu nos anos 1990, os movimentos sociais e sindicais,

sobretudo aqueles que participam das novas coalizões políticas que acenderam aos

governos nacionais, foram incitados a construir um discurso mais propositivo. Cada vez

mais, as novas políticas públicas demandam da sociedade civil uma participação

proativa em diferentes fases, sobretudo na construção, mas também na

operacionalização, no monitoramento e na avaliação. Isto implica em um esforço de

aprendizagem institucional para que as organizações manejem o instrumental normativo

requerido para a formulação das políticas. Neste sentido, pode-se notar o desafio de

municiar as lideranças sociais com capacidades técnicas.

Isso é reflexo do amadurecimento da agenda, no bom sentido. Em um

primeiro momento se abriu a possibilidade de discutir, mas era uma

discussão geral que trazia pouco concretamente. A medida que se vai

digerindo os temas, se vai necessariamente entrar em uma agenda

mais técnica de discussão. Aí há o desafio da capacitação dos

movimentos para fazer essa discussão mais técnica. [...] Mas isso não

é algo que só a REAF possa resolver. É mais estrutural do

funcionamento dos movimentos. Talvez a REAF possa contribuir em

processos de intercâmbio, preparação e capacitação entre os

movimentos. (Guilherme Brady, op. cit.).

Hoje, as organizações precisam conhecer as negociações multilaterais e os acordos

internacionais, compreender a lógica e a estrutura de funcionamento dos diferentes

Estados nacionais, e se apropriar das legislações concernentes a cada política pública.

Porém, não é algo que se possa fazer rapidamente e apenas com o pequeno grupo de

‘representantes profissionais’ que, hoje em dia, se revezam entre uma dezena de fóruns,

conselhos, câmaras, comitês e colegiados.113 Trata-se de uma ação de longo prazo que

afere capacidades institucionais às organizações, possibilitando às mesmas manejar uma

quantidade crescente de informações e instrumentos normativos. Para tanto, o fato de a

REAF tornar-se um espaço com presença ativa dos gestores públicos não é um

problema. Pelo contrário, isto contribui para alavancar o processo coletivo de

aprendizagem institucional, e soma-se a outras iniciativas de formação da sociedade

civil que já estão em andamento, como os Cursos Regionais de Jovens Rurais e as ações

desencadeadas no âmbito do Programa Regional de Gênero.

Finalmente, a terceira ressalva é que esta trajetória não deve ser compreendida de forma

excessivamente linear. Existem temáticas e momentos em que o domínio dos

instrumentos normativos mostra-se particularmente relevante aos diálogos políticos e os

gestores podem aparecer como interlocutores centrais – como ocorreu já nos primeiros

anos da REAF nas discussões do GT sobre Seguro Agrícola. Mas, em outras situações,

113 Nos últimos anos surgiu uma nova ocupação na divisão do trabalho político: uma categoria de

‘representantes profissionais’ foi forjada para garantir a presença dos movimentos sociais em todos os

espaços públicos. Se isto qualificou a intervenção de alguns quadros políticos, em decorrência da

circulação em inúmeras redes sociais e do acesso a informações, muitas vezes também os distanciou de

suas bases sociais e comunitárias. Não é em vão que a própria sociedade civil identifica como um dos

desafios democratizar a discussão da REAF alcançando os espaços das províncias (Quadro 7, supra).

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a dinâmica do debate se altera completamente, colocando em evidencia outros atores:

lideranças sindicais, pesquisadores, técnicos, organizações internacionais, entre outros.

Ademais, para além das alterações no conteúdo específico da pauta, a dinâmica dos

debates também oscila em virtude da capacidade das organizações em pressionar os

governos e reivindicar a inclusão das suas questões. Nestes dez anos, essa capacidade

mostrou-se muito variável, tanto em virtude das dificuldades internas que algumas

organizações encontraram para elas mesmas se manterem como coalizões políticas,

quanto em razão das crises políticas que marcaram alguns eventos, responsáveis por

desgastar o diálogo com os governos, sobretudo no interior das Seções Nacionais, mas

repercutindo também regionalmente.

Como destaca Lautaro Viscay, atual Secretário Técnico da REAF, se observados os

diferentes momentos que marcam a trajetória deste fórum, seria possível identificar que,

em reação aos movimentos de burocratização, geralmente entram em ação alguns

“anticorpos”. A estratégia de defesa pode envolver críticas explícitas à condução dos

debates ou o esvaziamento de determinadas discussões, ou ainda, e de maneira mais

recorrente, formas mais camufladas de reação a partir das quais os atores desviam as

discussões para novos tópicos. As alternativas são variadas e, a rigor, também se

aplicam a qualquer vestígio de ‘academicização’ das discussões, risco menos freqüente,

mas que pode vir à tona quando pesquisadores pouco cientes da dinâmica deste espaço

são convidados a intervir nas discussões.

A REAF tem alguns anticorpos. Quando há tendência a burocratizar

ele, só informação de lei, dados e normas, como se fosse outro espaço,

é incrível a reação da sociedade civil, ou mesmo do governo que não

está de acordo muito com isso que ele mesmo trouxe. Existe uma

reação inversa para não burocratizar e conseguir um termo

intermediário que permita, talvez não neste exato momento, mas para

o futuro, aperfeiçoar. Mas então não se controla isso? Se orienta. E

tem funcionado. Talvez de uma maneira imperfeita. Mas eficaz para a

discussão política. Quando cai alguém e somente quer levar o GT para

uma discussão acadêmica, a reação é automática: para aí, é muito

importante, fazer trazer isso, mas, vamos falar de política!? Como há

uma grande rotatividade, sobretudo dos governos, é a sociedade civil,

que também tem sua rotatividade, que cuida para que esse sistema não

perca essa autodefesa. (Lautaro Viscay, op. cit.).

Apesar de toda sua fragilidade organizacional e da necessidade de maior domínio das

ferramentas institucionais utilizadas para o desenho das políticas públicas, é

principalmente a sociedade civil que exerce esse papel crítico e mantém uma espécie de

vigilância coletiva. Sempre que necessário, as organizações sociais incumbem-se de

resgatar a história da REAF para reclamar os objetivos que orientaram a criação deste

espaço. O objetivo é recordar a todos que, tão importante quanto colocar uma política

pública em operação, é o processo anterior de construção dos princípios que legitimam e

orientam a ação pública.

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e) Um novo salto qualitativo nos diálogos políticos

Dentre todos os desafios com os quais a REAF se defronta atualmente, um deles é

particularmente difícil de sintetizar e, paradoxalmente, talvez seja o mais importante.

Pelo menos foi o mais recorrente no conjunto das entrevistas que realizamos. Trata-se

de uma percepção segundo a qual, considerados os limites institucionais dentro dos

quais opera, a REAF alcançou os objetivos traçados para um primeiro grande ciclo,

consolidando-se como um espaço de indiscutível relevância no âmbito regional. Este

ciclo estaria se encerrando e, a partir de agora, seria necessário um novo salto

qualitativo nos diálogos políticos.

Os atores mais ansiosos com a abertura deste novo ciclo referem-se a uma espécie de

“esgotamento” da agenda atual. Contudo, a maioria prefere falar em “redesenhar a

estratégia”, “qualificar o processo”, “aprofundar os diálogos”. Álvaro Ramos sintetizou

esta tarefa da seguinte forma: “Hay que refrescar la agenda. Tenemos que encontrar

temas nuevos que sigan dando vitalidad al dialogo político.” Esta leitura é seguida por

Lautaro Viscay, atual Secretario Técnico, o qual também chama a atenção para a

versatilidade e a capacidade de adaptação da REAF, elementos cruciais para projetar os

próximos passos.

Não gosto de agotamiento porque é um termo que não facilita a

conexão. Parece que se agota e tem que nascer algo novo. A gente

nem nasceu em muitas coisas. A gente tem que ter mais capacidade e

massa crítica para ter um novo piso de discussão política com os

movimentos. E a REAF é versátil o suficiente para poder se lançar a

um novo momento. Ela aprendeu desse jeito. Ela não é parte da

burocracia, do status quo que as áreas internacionais muitas vezes

constroem durante muito tempo. Ela tem essa versatilidade para se

adaptar. (Lautaro Viscay, op. cit.).

Seja qual for o termo exato para caracterizar esse processo, há um entendimento

bastante generalizado de que o momento atual é adequado para mudanças, as quais

deveriam promover uma nova onda de mobilização dos governos e da sociedade civil.

As sugestões abarcam tanto a pauta quanto o método dos diálogos.

No que diz respeito à pauta, predomina a percepção de que este poderia ser o momento

de “lograr recomendaciones más concretas.” (Maria Quiroga, op. cit.), subentendida

aqui a ideia de produzir políticas que incidam mais efetivamente sobre as condições de

reprodução social e econômica dos agricultores. Uma das formas de fazer isso, segundo

alguns entrevistados, envolveria a construção de políticas regionalizadas, preenchendo

uma lacuna que nunca foi devidamente tratada pelo MERCOSUL. O processo de

integração regional incidiu fundamentalmente nas negociações comerciais, mas nada

avançou no esboço de uma política agrícola comum.

Neste estudo já analisamos alguns dos instrumentos normativos que foram criados na

última década, incluindo uma definição comum de agricultura familiar em âmbito

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regional. Não se pode menosprezar a importância deste passo para que os países

construam suas políticas. No entanto, o que se está propondo agora é a criação de

instrumentos ‘finalísticos’ de políticas públicas em âmbito regional, isto é, programas

que estabeleçam mecanismos para o acesso dos agricultores familiares a determinados

recursos públicos:

Nós temos políticas regionais. O que a gente não tem são instrumentos

de políticas públicas finalísticas em âmbito regional: políticas

agrícolas, compras públicas, etc. A REAF produziu instrumentos

regionais. Mas agora a gente avalia que está maduro e pode discutir

um instrumento regional finalístico como um programa regional de

compras públicas. (Caio França, op. cit.).

Por ocasião do referido seminário de balanço dos dez anos da REAF, realizado em

dezembro de 2014, o ex-Ministro do Desenvolvimento Agrário do Brasil, Guilherme

Cassel, propôs a organização de um Plano Safra Regional da Agricultura Familiar. A

proposta de um Plano Agrícola Comum não é original no âmbito do MERCOSUL, haja

vista que, antes mesmo da criação da REAF, em 1999, esta ideia foi objeto de discussão

da Comissão Parlamentar Conjunta (MERCOSUL/CPC/DISP. n. 22/99), mas a proposta

nunca prosperou. Neste caso, contudo, a novidade é que o foco recai sobre o

protagonismo da agricultura familiar em produzir um plano específico às suas

demandas, articulando uma experiência inovadora que poderia, dentre outras coisas,

demonstrar ao GMC a importância de reconectar as negociações comerciais com uma

política agrícola ativa em âmbito regional.

A REAF tem uma tarefa para mim, imediata, que é construir

instrumentos de comércio efetivos. Faz algum tempo que eu acho que

a gente tinha que construir um plano safra do MERCOSUL. Eu acho

que a REAF está forte o suficiente para propor isso. O que tem me

surpreendido na REAF é que ela tem uma enorme vitalidade e

capacidade de renovação. [...] Agora, ela vai ter que criar mecanismos

de comércio e de mercado e para isso vai ter que envolver outros

atores nessa discussão. [...] Eu acho que um bom ponto de partida é

esse: como a gente constrói um Plano Safra Comum, que garanta

crédito, que garanta seguro e que garanta produção agrícola cujo

principal objetivo é garantir segurança alimentar. (Guilherme Cassel,

op. cit.).

A proposta é avaliada positivamente por muitos atores, ainda que recaiam inúmeras

dúvidas sobre o conteúdo do Plano e, principalmente, sobre a capacidade efetiva dos

Governos destinarem orçamento a políticas deste gênero, ainda mais no contexto de

reconfigurações das políticas macroeconômicas e setoriais.

Com efeito, em vista dos limites econômicos e políticos que tal proposta enfrentaria no

momento atual, incluindo ainda as barreiras constitucionais que alguns governos

encontram para repassar recursos a políticas implementadas em outros países – o que

tornam ainda mais urgente a reforma do FOCEM –, outros atores são mais cautelosos

com relação ao próximo passo. Estes sugerem priorizar uma estratégia de fortalecimento

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das políticas nacionais, inclusive porque em muitos países a institucionalização da

agricultura familiar ainda é um processo recente e parcial, sobretudo se considerarmos o

contexto do Mercosul ampliado.

Yo creo que esto [políticas regionalizadas] es un grado de dificultad

más grande. Yo creo que nosotros tenemos que empezar por las

políticas nacionales. El espacio regional ayuda mucho para la

reflexión, para cambiar experiencias, pero yo creo que la construcción

tiene que empezar por el espacio nacional, para después poder avanzar

para ver qué podemos construir en el espacio regional que es mucho

más dificultoso. […] Lo que se puede construir en nivel regional

necesita de decisiones políticas de muy alto nivel que escapan de las

decisiones de REAF. (José Ignacio Olascuaga, op. cit.).

A rigor, não existe uma incompatibilidade entre a criação de políticas regionais e a

consolidação das ações em âmbito nacional. A própria experiência da REAF já

demonstrou isso, haja vista o êxito do Programa Regional de Fortalecimento das

Políticas de Igualdade de Gênero. Em um momento de incertezas sobre a capacidade

dos Estados para ampliar os recursos destinados ao segmento da agricultura familiar,

políticas ou programas regionais poderiam articular ações complementares que por

vezes não encontram espaço no orçamento dos governos. Ademais, é provável que isso

ampliasse ainda mais a legitimidade das demandas internas dos movimentos sociais, em

um processo de retroalimentação entre as discussões nacionais e regionais – o mesmo

valendo para as relações entre REAF, UNASUL e CELAC.

No entanto, a sustentação de políticas regionais demanda um esforço renovado de

cooperação entre os governos. Utilizando-se do conhecimento acumulado pelas

iniciativas já implementadas de cooperação bilateral, pode-se caminhar para ações

multilaterais. Na verdade, algo similar já vem sendo construído a partir, por exemplo,

do intercâmbio para fortalecimento dos programas de compras públicas. Além disso, a

ampliação do diálogo e o desenvolvimento de novos instrumentos de cooperação entre a

REAF e os organismos internacionais pode contribuir para dar sustentação técnica e

financeira a programas regionais nas áreas do desenvolvimento rural, agricultura

familiar e segurança alimentar.

Seja como for, o que é mais relevante nesta discussão não é exatamente se o próximo

passo envolverá a criação de políticas regionais, mas a urgência identificada por

inúmeros entrevistados da REAF construir uma nova estratégia mobilizadora, da qual

esta idéia de regionalização é apenas uma das mais recorrentes e controversas no

período atual. Uma estratégia que não rompe com o que já foi construído até aqui. E por

isso não se trata de ‘esgotamento’. Trata-se de identificar coletivamente um norte capaz

de reorientar os esforços dos governos e movimentos sociais. Uma estratégia que defina

inclusive um horizonte mais claro para as discussões em curso nos Grupos Temáticos,

os quais estão sendo desafiados a discutir um leque cada vez mais disperso de temas,

muitos dos quais surgem de maneira transversal a vários deles.

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Nos falta generar una estrategia general. Los GTs quedan como

liberados de una manera autónoma [...] y avanzan como pueden. Pero

no pueden avanzar ajenos a una estrategia. Porque lo hacen? Porque

no está clara la estrategia. (Antonio Vadel, op. cit.).

Es difícil tratar de encasillar los distintos temas que son de

importancia, que son pertinentes para la discusión de políticas para la

agricultura familiar en distintos grupos temáticos. Realmente empieza

a surgir muchos temas que son transversales y empiezan a surgir

temas que son emergentes (…) y que también no es fácil de

encuadrarlos. Es una dificultad que permanentemente surge. (José

Ignacio Olascuaga, op. cit.).

Há dois fatores que causam maior inquietude neste processo. O primeiro refere-se a

compreensão de que esta estratégia precisa ser gestada coletivamente, no seio da própria

REAF, respeitando as diferentes condições em que se encontram os países, os governos

e os movimentos sociais. Cabe recordar que o sucesso da REAF também decorre do

modo como ela soube comportar as estratégias diferenciadas dos seus atores. Os

movimentos, governos e organismos internacionais possuem objetivos distintos, que

podem convergir. Qualquer estratégia comum depende da capacidade de abarcar esta

pluralidade de interesses, conformando uma coalizão em torno dos princípios mais

densos. Isto necessariamente nascerá dos diálogos em curso. Ninguém tem legitimidade

para definir unilateralmente quais serão os próximos passos. Mas, é importante que os

atores se mobilizem para construir os compromissos necessários. A estratégia também

não nascerá pela geração espontânea a partir das rotinas já constituídas.

O segundo fator tem a ver com um questionamento primordial para os objetivos deste

livro, qual seja: essa nova estratégia demandaria mudanças na estrutura organizativa? E,

a partir desta pergunta inicial, derivam várias outras: Os Grupos Temáticos manteriam a

mesma conformação? Eles ainda constituiriam o alicerce principal dos diálogos

políticos? Em uma eventual reconfiguração, quem faria o papel dos Pontos Focais que

articulam a agenda dos GTs com os debates nacionais? Como conectar a agenda

regional com as discussões em curso na base dos movimentos sociais? Como ampliar o

engajamento da sociedade civil? Como renovar gradualmente os interlocutores do

debate sem perder a memória institucional? O que seria alterado no trabalho da

Secretaria Técnica? Os atuais mecanismos de financiamento seriam suficientes?

Como a discussão está apenas iniciando, não há respostas definitivas para essas

questões. De todo modo, a pergunta que precisa ser previamente respondida diz respeito

ao conteúdo desta estratégia articuladora para os próximos dez anos. O cenário atual

tem se revelado um momento de intensa atividade reflexiva dos atores políticos com

vistas a produzir um novo referencial para a ação pública. Este é o momento em que

diferentes ideias, interesses e valores estão sendo colocados à prova do diálogo entre os

governos e as organizações sociais. Um novo salto qualitativo dependerá da capacidade

da REAF instigar essa discussão e produzir novos compromissos políticos. Apesar de

recente, sua trajetória mostra que ela já detém o principal ingrediente para ampliar a

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coalizão política e impulsionar um novo ciclo de produção de políticas públicas para as

agriculturas familiares, campesinas e indígenas do MERCOSUL: um espaço plural de

participação democrática.

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Anexos

ANEXO 1 – ORGANOGRAMA DE FUNCIONAMENTO DO MERCOSUL