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A CONCENTRAÇÃO DA PROPRIEDADE DA TERRA, O PROCESSO MIGRATÓRIO E O COTIDIANO DOS “BOÍAS-FRIAS” E EX-“BÓIAS-FRIAS” NO MUNICÍPIO DE SÃO JOSÉ DAS PALMEIRAS – PR Pedro Luiz Schnorr 1 RESUMO Este presente artigo analisa dois dos maiores problemas existentes no município de São José das Palmeiras, que é a concentração da propriedade da terra e a migração. As abordagens acerca da relação terra-migração são fundamentais para a compreensão da própria formação social em São José das Palmeiras, cujas análises passam pelas relações de poder, exclusão social e expropriação ou expulsão da terra que integram o processo de modernização conservadora da agricultura e o avanço das relações mercantis na produção. Neste sentido, o trabalho resulta num estudo destas relações e transformações, com análise das questões referentes à concentração da posse e propriedade da terra, as características da estrutura fundiária e a presença de grandes propriedades/proprietários, o assalariamento do ex- agricultor que perdeu a sua terra e a nova situação em que este se encontra na periferia das médias e grandes cidades na região Oeste ou nas metrópoles das capitais dos estados sulistas. Com a realização de pesquisas, principalmente através de entrevistas com migrantes e excluídos, da terra (que hoje em sua grande maioria trabalham nos frigoríficos da Sadia (Toledo) e Copagril (Marechal Cândido Rondon) ou como trabalhadores “volantes/bóias- frias” analisamos as implicações destas transformações no mundo do trabalho, nas formas de resistência dos “bóias-frias” e ex-“bóias-frias” que vivem no município, no entorno da escola e entre seus familiares, parentes e vizinhos. Palavras-Chave: Agricultura, trabalho, “bóias-frias”, exclusão social. ABSTRACT This article aims to examine two of the biggest problems in the city of Sao Jose das Palmeiras, which is the concentration of land ownership and migration. The approach to the land-for migration are fundamental for the comprehension of the social formation in Sao Jose das Palmeiras, which pass through the analysis of power relations, social exclusion or expulsion and expropriation of land that cover the process of conservative modernization of agriculture and the advancement of market relations in production. In this sense, the work follows a study of these relationships and transformations, with analysis of issues related to the concentration of ownership and land ownership, the characteristics of the land structure and the presence of large farms / owners, paid the ex- farmer who lost his land and the new situation where it is on the periphery of medium and large cities in the West or in the capital cities of the southern states. with the conduct of research, mainly through interviews with migrants and excluded from the 1 Aluno do Programa de Desenvolvimento Educacional – PDE, projeto orientado pelo professor Dr. Paulo José Koling – UNIOESTE.

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A CONCENTRAÇÃO DA PROPRIEDADE DA TERRA, O PROCESSO

MIGRATÓRIO E O COTIDIANO DOS “BOÍAS-FRIAS” E EX-“BÓIAS-FRIAS” NO

MUNICÍPIO DE SÃO JOSÉ DAS PALMEIRAS – PR

Pedro Luiz Schnorr 1

RESUMO

Este presente artigo analisa dois dos maiores problemas existentes no município de São José das Palmeiras, que é a concentração da propriedade da terra e a migração. As abordagens acerca da relação terra-migração são fundamentais para a compreensão da própria formação social em São José das Palmeiras, cujas análises passam pelas relações de poder, exclusão social e expropriação ou expulsão da terra que integram o processo de modernização conservadora da agricultura e o avanço das relações mercantis na produção. Neste sentido, o trabalho resulta num estudo destas relações e transformações, com análise das questões referentes à concentração da posse e propriedade da terra, as características da estrutura fundiária e a presença de grandes propriedades/proprietários, o assalariamento do ex-agricultor que perdeu a sua terra e a nova situação em que este se encontra na periferia das médias e grandes cidades na região Oeste ou nas metrópoles das capitais dos estados sulistas. Com a realização de pesquisas, principalmente através de entrevistas com migrantes e excluídos, da terra (que hoje em sua grande maioria trabalham nos frigoríficos da Sadia (Toledo) e Copagril (Marechal Cândido Rondon) ou como trabalhadores “volantes/bóias-frias” analisamos as implicações destas transformações no mundo do trabalho, nas formas de resistência dos “bóias-frias” e ex-“bóias-frias” que vivem no município, no entorno da escola e entre seus familiares, parentes e vizinhos.

Palavras-Chave: Agricultura, trabalho, “bóias-frias”, exclusão social.

ABSTRACT This article aims to examine two of the biggest problems in the city of Sao Jose das Palmeiras, which is the concentration of land ownership and migration. The approach to the land-for migration are fundamental for the comprehension of the social formation in Sao Jose das Palmeiras, which pass through the analysis of power relations, social exclusion or expulsion and expropriation of land that cover the process of conservative modernization of agriculture and the advancement of market relations in production. In this sense, the work follows a study of these relationships and transformations, with analysis of issues related to the concentration of ownership and land ownership, the characteristics of the land structure and the presence of large farms / owners, paid the ex-farmer who lost his land and the new situation where it is on the periphery of medium and large cities in the West or in the capital cities of the southern states. with the conduct of research, mainly through interviews with migrants and excluded from the 1 Aluno do Programa de Desenvolvimento Educacional – PDE, projeto orientado pelo professor Dr. Paulo José Koling – UNIOESTE.

land (now mostly working in refrigerators Sadia (Toledo) and Copagril (Marechal Cândido Rondon) or as workers' ash / farmworkers "analyze the implications of these transformations in the world of work, in the forms of resistance "farmworkers" and former "rural workers" who live in the city, surrounding the school and among their family members, relatives and neighbours.

1 A Colonização Recente do Município: a Concentração da Propriedade da Terra e a

Migração

A história é feita de alternativas, não de becos sem saídas. História, entendida como

Benjamim:

O presente é ponto de partida para o olhar em direção ao passado, com vistas ao futuro. Reconstruir esta história, a partir do deslindamento do passado, constitui o ponto de partida para qualquer projeto de transformação social. O passado não é um ponto acabado. É um tempo que precisa ser revificado, reproduzido, reconstruído. Somente assim ele será parte constitutiva da identidade individual e social. (Silva, 1999, p. 321)

Adotando a perspectiva de Marc Ferro (1989) de que a história é uma disputa (pois o

controle do passado ajuda a dominar o presente) podemos visualizar o relato histórico local

como elemento imprescindível do poder, por ser mistificador, construtor de estereótipos,

legitimador das violências sociais, políticas, econômicas e raciais. Seu fundamento mais

sólido é uma tentativa de sistemático ocultamento, de sistemática opacidade e gritante

mistificação. Promove a legitimação e cristalização de um elitismo atroz e reacionário ao

selecionar ideologicamente fatos e dados, ao invés de ser uma reconstrução documentada de

informações e interpretações. Fruto da realidade vivenciada, uma realiadade segregacionista,

esta escrita da história edifica estereótipos legitimadores do jugo, da opressão, do racismo, do

trato mercenário e autoritária da vida política.

Queremos desvendar uma história que oculta o complexo e violento processo de

expropriação, exploração, dominação e exclusão do trabalhador rural, numa tentativa de auto-

convencimento e auto legitimação da expoliação efetuada por “uns poucos” sobre a maioria.

Um modo de ver a história que conclama os “deserdados da terra” à resignação, à aceitação

dos desígnos divinos que elegeram São José das Palmeiras como palco de imensuráveis

latifúndios pecuaristas.

Em suma, queremos romper com uma interpretação triunfalista, personalista,

entusiasta e elitivista da história local que continuamente segrega e diferencia entre “os que

fazem a histótia” e “os que não a fazem”, estes últimos transformados em coadjuvantes, sem

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face, sem voz. O resultado é a apresentação da vida política como uma esfera autônoma e

superior, onde indivíduos capazes despendem titânicos esforços para promoverem concessões

à população. O resultado é a exclusão das camadas populares da vida social, econômica e

política.

A elevada concentração da propriedade da terra e os recursos produtivos de origem

industrial, conformaram uma formação social capitalista no Brasil de exclusão social.

Exclusão de massas significativas da população, não só do padrão de consumo e da qualidade

de vida que se torna viável para estas elites e para as populações dos países avançados, mas

também, exclusão das condições mínimas de existência social para uma parcela significativa

das populações rurais e urbanas, tais como: a terra de trabalho, emprego, moradia, educação,

alimentação e saúde adequada.

Desta forma, a fim de compreendermos como se deu a concentração da propriedade da

terra e o processo migratório do município de São José das Palmeiras faz-se necessária uma

breve análise do contexto histórico em que ocorreu a colonização do município.

O município de São José das Palmeiras está localizado na região Oeste do Paraná, a

600 km da capital Curitiba. É integrante da microrregião do Extremo-Oeste do Paraná,

limitando-se ao Norte com os municípios de Marechal Cândido Rondon e Entre Rios do

Oeste, ao Sul com Diamante do Oeste, ao Leste com São Pedro do Iguaçu, ao Oeste com o

município de Santa Helena e a Nordeste limita-se com Ouro Verde do Oeste. Possui um

território de 198 km2.

O espaço físico que hoje constitui o município de São José das Palmeiras pertenceu ao

município de Marechal Cândio Rondon na década de 1960, quando este último foi

emancipado. Em 19672, quando Santa Helena foi elevada a categoria de município, São José

passou a pertencer a este novo município. É nesse período que tem início a colonização deste

espaço.

Não existem informações de que a área, hoje pertencente ao município de São José das

Palmeiras tenha sido colonizado por obrageiros, ou mesmo pelas colonizadoras Maripá e

Madalozzo, que aturam em Marechal Cândido Rondon e Santa Helena nas décadas de 1940 e

1950. Mas é possível dizer que estas terras tinham dono muito antes da década de 1960.

O Oeste paranaense foi objeto de especial preocupação do Governo Federal e do

Estado do Paraná. Durante o governo Vargas, foi nacionalizada essa fronteira internacional.

Por isso, nas décadas de 1930, 1940 e 1950 muitos espaços foram colonizados atendendo à

2 Emancipação Política do Município de Santa Helena: Curitiba Lei nº. 5.497/67 de 03 de fevereiro de 1967. Criação de Santa Helena. Assembléia Legislativa do Paraná, Curitiba, PR.

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campanha da Marcha para o Oeste, que deu, assim, origem a muitos municípios. Para a

ocupação demográfica desses espaços foram priorizados os descendentes de italianos e

alemães, migrantes do Rio Grande do Sul e Santa Catarina, com tradição na atividade agrícola

em pequenas propriedades policultoras.

A colonização do atual município de São José das Palmeiras se deu de forma distinta e

em época diferente. São José foi colonizado no final da década de 1960, período em que tinha

início a modernização conservadora da agricultura3, com migrantes provenientes do Norte do

Paraná, Minas Gerais, São Paulo e outros Estados do Nordeste brasileiro. Os produtos

cultivados eram a hortelã, café, mamona e, posteriormente, o algodão.

Assim, também outros municípios do Extremo-Oeste paranaense tiveram sua

colonização realizada com migrantes que não eram exclusivamente oriundos do Rio Grande

do Sul e Santa Catarina, como foi o caso dos municípios de Diamante do Oeste, Ouro Verde

do Oeste, São Pedro do lguaçu, entre outros. Isto demonstra que o Oeste paranaense não é tão

homogêneo como se pretende, o que abala o mito da colonização européia.

Após a Segunda Guerra Mundial, o café teve uma grande melhora nos preços. No

Norte do Paraná o café teve um grande desenvolvimento. Todos queriam plantar café.

Assim o cultivo do café ultrapassou o rio Piquiri e atingiu o oeste do Paraná. A implantação de novas lavouras trouxe muitos trabalhadores de diferentes partes do Brasil, com tradição cafeeira. Este deslocamento da população do norte para a região Oeste ficou conhecida como Frente Cafeeira, ou Frente Cabocla. Até hoje, a parte norte difere do restante da região em seus usos e costumes constitui a parte morena do Oeste do Paraná (PALUDO, 1989, p. 12).

O início da colonização recente de São José das Palmeiras, deu-se no final da década

de 1960. Os primeiros colonizadores que chegaram vieram da região Norte do Paraná e de

outros Estados da Federação. Na ocasião o café estava no auge e as terras desta região eram

propícias para o cultivo dessa cultura, devido a alta fertilidade do solo.

Em 1969, a Colonizadora Benthein, a principal corretora da época, no atual município,

já havia vendido vários lotes e chácaras, sendo que se optava entre lotes de 10 e 50 alqueires.

Contudo, o que se percebe é que a Colonizadora optava pela venda de grandes

3 As análises do avanço das relações capitalistas de produção no Brasil, segundo Bruno (1997), têm em comum a preocupação em explicar a presença e a contemporaneidade de estruturas e processos sócio-econômicos arcaicos e modernos, enquanto elementos conformadores de nosso país.Para Bruno (1997) o desenvolvimento do capitalismo no Brasil se, de um lado, revolucionou os modos de produzir e as relações sociais, de outro, carrega o passado e não consegue superar a dependência e o subdesenvolvimento. E a modernização da agricultura não foge a esta regra da presença do moderno e do atraso - um dos paradigmas de nossa sociedade. Nesse sentido, há um alinhamento com a definição de MARTINS (1989): o capitalismo como “uma recriação contínua de relações sociais arcaicas jurnamente com a progressiva criação de relações sociais cada vez mais modernas”.

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propriedades. Nos primeiros anos de colonização do município, houve muito conflito pela

posse da terra, principalmente quando a colonizadora vendia terras que já eram ocupadas por

posseiros, ou quando um grande latifundiário, desejasse comprar um lote de terra para

expandir seu latifúndio. Matavam gente e jogavam dentro do Rio São Francisco. Devido a

esse fato, o rio leva o nome de Corvo Branco até hoje.

Em diversos casos, posseiros individuais e mesmo grupos inteiros foram forçados a

deixar a terra que haviam cultivado sem receber nenhuma compensação, indenização ou

pagamento. Por vezes, era empregada a violência aberta com a destruição de plantações,

queima das casas e assassinatos dos posseiros. Porém, esse tipo de ação era mais freqüente na

região da Fazenda Mesquita, que fazia divisa com o Baixadão e pertencia ao município de

Diamante do Oeste. Há indícios dessas violências em artigos de jornais regionais que ao tratar

de crimes ocorridos em Santa Helena, em 1987, assim se referem a crimes ocorridos em

décadas anteriores.

...crimes de assassinatos como em 02 de julho de 1984, 16 de novembro de 1985 e 17 de novembro de 1986 (...) que continuam insolúveis, poderão ser elucidados, como outros 20 crimes ainda não desvendados, da história de 20 anos de Santa Helena. Presos já foram retirados da cadeia local e encontrados sem cabeça, em Foz do Iguaçu, além de dezenas de mortes no anos de 1970, nas lutas entre posseiros e jagunços (HOJE, l9 jun. 1987. Geral p.7).

Na época, também transferiam-se para o município grande número de pessoas que

vinham do Norte do Paraná para colherem café, já que os mesmos tinham experiência na

colheita deste produto.

No entanto, no final da década de 1970, devido a ocorrência de fortes geadas, a

cultura do café foi praticamente dizimada no município. Contudo, neste mesmo período outra

monocultura estava iniciando sua prática no município: o algodão.

Desta forma, da monocultura do café para a monocultura do algodão, não houve um

grande número de trabalhadores (“bóias-frias”) que deixaram o município, pois saiu-se do

cultivo de um produto que necessitava de muita mão-de-obra para outro que igualmente era

absorvedor de mão-de-obra.

Houve um intenso crescimento populacional em São José das Palmeiras de 1973 a

1976 e uma queda brusca acontece pós 1976. De 1973 a 1976, pode-se dizer que São José

viveu um período de “prosperidade”, pois nessa época era produzida a hortelã, produto

lucrativo e com bons índices de produtividade, que era acompanhada pelo cultivo do café e da

mamona. Estas atividades agrícolas serviram como condicionantes de atração de mão-de-

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obra. Grande número de famílias dirigiu-se à São José a procura de trabalho nas plantações de

café, hortelã e mamona, bem como para a extração da madeira. E muitas famílias se

constituíram, o que também indica esperança de sedimentação.

O êxodo dessa mão-de-obra temporária deveu-se a alguns fatores determinantes, como

o curto espaço de tempo em que a hortelã foi cultivada nesse município - cerca de cinco ou

seis anos - em função do desgaste que provoca no solo, a aceleração das atividades

predatórias da cobertura vegetal nativa, ou seja, o desmatamento e a comercialização de parte

da madeira retirada das propriedades onde se iniciava o plantio da hortelã. Outro fator foi o

cultivo mais intenso do café, que por sua vez recebeu um forte impacto negativo com a

“geada negra”4 , ocorrida no ano de 1975. A partir desse ano, os agricultores passaram a

substituir as lavouras de café pelo cultivo do algodão.

A geada de 1975 só não expulsou de São José das Palmeiras um número maior de

agricultores a procura de novas frentes de trabalho, porque o cultivo do algodão, assim como

o café, a hortelã e a mamona, também exigem uso intensivo de mão-de-obra.

O declínio do algodão pelo alto custo da produção e o baixo preço de renda,

juntamente com a procura por terras no Estado do Mato Grosso e Rondônia, na década de

1980, contribuiu para o afastamento de inúmeras famílias de São José, ao que se soma a

concentração das pequenas propriedades em áreas onde a criação do gado ocupa espaços cada

vez maiores. Estes fatores acabam avolumando-se de forma a implicar no esvaziamento

populacional de São José.

Muitos habitantes da Região Oeste do Paraná foram “expulsos” pela construção da

Usina Hidrelétrica de ltaipu. São José das Palmeiras também sofreu essas conseqüências, pois

as cooperativas, preocupadas com a insegurança proporcionada pela construção da Usina de

Itaipu, incentivaram as pessoas a comprarem terras em Rondônia e Mato Grosso. Um número

elevado de colonizadoras, entre elas, a SINOP e BRASNORT, fizeram muita propaganda em

São José das Palmeiras e conseguiram levar muitas pessoas para aquelas regiões. Os

trabalhadores que haviam vindo do Nordeste do país saíam em caravanas5 rumo àquelas

regiões.

Muitos agricultores iludiram-se com a possibilidade de vender seus cinco alqueires

(12 hectares) em São José e comprar 50 alqueires (120 hectares) em Rondônia ou Mato

Grosso. Ilusão porque as terras daquela região necessitavam de investimentos. Os agricultores

4 COLODEL, José Augusto. Matelândia: História e contexto. Prefeitura Municipal de Matelândia. Cascavel: Assoeste, 1992. 5 Informações verbais concedidas por Claudir José D’AGOSTINI. Técnico agrícola da Emater de São José das Palmeiras. 25 jun. 2002.

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usavam todo seu dinheiro para adquirir a terra e não conseguiam investir em insumos para

tornar a terra produtiva. Muitas pessoas perderam tudo, ficando sem condições de retornar.

Quando os agricultores de São José colocavam suas terras à venda, conseguiam comprador

com facilidade, porque sempre havia um médico, um advogado ou outro profissional liberal

de fora pronto para adquirir estas terras para transformá-las em fazendas de gado.

No final da década de 19806, com a crise no setor cotonicultor, os pequenos

proprietários rurais foram se endividando e passaram a vender suas propriedades para os

grandes latifundiários que as incorporavam às pastagens.

Diante desta situação, o município começou a passar por uma série de transformações

no que diz respeito à concentração fundiária e às formas de uso do solo, influenciando de

forma drástica na redução populacional, ocorrendo uma migração em massa de ex-pequenos

proprietários rurais e “bóias-frias” para novas frentes agrícolas ou às médias cidades próximas

(Toledo e Cascavel) e grandes centros urbanos.

O esvaziamento7 do município de São José das Palmeiras, reforça a conclusão de que

a situação fundiária continua perversa nos dias atuais, não permitindo a realização do sonho

de quem veio para esta região em busca de um pedaço de terra.

A recuperação da história da ocupação da área que hoje equivale ao município de São José das Palmeiras traz à tona não uma história de colonização modelar, sem conflitos, capitaneada por um grupo étnico homogêneo e virtuoso, cômo pretende sugerir a propaganda oficial de municípios “italianos” ou “alemães” do Oeste do Paraná. A história de São José das Palmeiras equivale a saga de retirantes e posseiros que não encontraram alento e que perderam a terra que pensaram ter conquistado ou mesmo a vida. É que uma história pontuada pela violência e por personagens que sempre procuraram permanecer ocultos e que em geral são deixados mesmo de fora das histórias oficiais: grileiros, jagunços, agentes do arbítrio... personagens da verdade, muito comuns em todas as regiões brasileiras, inclusive no Oeste do Paraná (CARNIEL, 2003).

Em razão do seu “atraso”, a agricultura se tomou cada vez mais dependente das

cidades para onde se transfere parte crescente dos resultados na produção, ou seja, do

superproduto. Isso se dá através de suas relações com o Estado (impostos), com o sistema

bancário (juros), O comercial (lucros de intermediários) e a indústria de gêneros alimentícios,

6 Segundo dados do escritório local da Emater de São José das Palmeiras (2009), as pastagens ocupam quase 60% da área agricultável do município. Do total de 540 propriedades, 25 grandes propriedades detém mais de 60% da área agrícola do município, por outro lado, 480 propriedades, não chegam a perfazer um total de 5% da área agrícola do município. No ano de 1985 (data da emancipação do município haviam 834 proprietários e cerca de 500 arrendatários, sendo que pelo último Censo (2009) este número caiu para 540 proprietários e apenas 46 arrendatários. 7 Segundo dados do IPARDES e IBGE, na década de 1980, o município contava com quase 14 mil habitantes e segundo estimativas de projeção do último Censo (2009) o município conta com aproximadamente 3.873 habitantes.

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de insumos agrícolas equipamentos e máquinas. Para os mercados de trabalho urbanos, a

medida que se intensificam, de um lado, o progresso técnico, e de outro, a miséria rural,

também se transfere os recursos humanos “ociosos” que migram do campo. Diferentemente

da indústria, onde se verifica unicamente uma dimensão relativa da demanda de mão-de-obra,

em conseqüência do progresso técnico, o que ocorre na agricultura é, a redução desta

demanda.

Neste aspecto, por diferentes causas condicionantes, o processo de industrialização da

agricultura, especificamente nos países capitalistas, produziu alterações importantes, de

ordem quantitativa no quadro estrutural da mão-de-obra agrícola. A tendência geral foi, e está

sendo, a redução dos efetivos agrícolas, e sua transferência para outras atividades de natureza

não agrícola.

O desemprego e o subemprego dos trabalhadores ocupados na agricultura, resultante

da concentração agrária produtiva ou não-produtiva, do processo progressivo de substituição

de mão-de-obra por tecnologias insumos modernos ou de processo regressivo de substituição

por “práticas conservadoras” como a pecuária extensiva, não tem tido, como contrapartida,

nenhuma providência eficaz que tivesse o propósito de compensar o movimento de

desocupação. Não tendo havido suficiente absorção induzida de mão-de-obra tanto nas

atividades rurais, quanto nas atividades urbanas, os excedentes de desocupados e subocupados

estão se elevando a níveis já insuportáveis para a economia e a sociedade brasileira.

Essa situação está combinada com um rápido processo de concentração da propriedade

da terra, do crescente domínio direto e indireto da produção agrícola pelo capital e de

intensiva expulsão de trabalhadores da terra. Entre 1950 e 1970 houve uma diminuição de 1,5

milhões de empregos no campo. O capital, de distintas formas, nas diferentes regiões e nos

diferentes ramos da produção agropecuária, pressiona com intensidade crescente para extrair

o seu trabalho excedente 8.

O processo migratório que está ocorrendo no Paraná tem suas raízes nas

transformações que se operam na estrutura produtiva da economia paranaense e brasileira nas

8 Até a década de 1960, o Paraná vinha sendo um Estado tradicionalmente absorvedor de mão­de­obra e, conseqüentemente, de população. Contudo, está  situação se inverte consideravelmente a partir desse período, ocorrendo grande perda da população rural, que se deslocam para os grandes centros urbanos do Estado, outras regiões do pais e para o Paraguai. Não há outro local do país onde a penetração das máquinas no campo foi tão grande como neste Estado. Somente na última década, mais de 100 mil estabelecimentos rurais desapareceram no norte do Estado. Entre 1970 e 1980, 1.262.565 trabalhadores deixaram o campo em todo o Paraná (IPARDES, 1983, p. 54). Segundo dados mais recentes divulgados pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) soube­se que 342 pessoas dispunham de 475 milhões de hectares de terras, enquanto dois milhões e quinhentos mil pequenos proprietários eram donos de 42 milhões de hectares (IPARDES, 1983, p. 55).

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últimas décadas. Dentro desta mudança é significativo apontarmos como elementos do

processo de esvaziamento populacional, a redução do número de empregos na agricultura,

decorrente da mecanização das culturas, e, por outro lado, com a introdução de novas relações

de trabalho assalariado, implicando no desaparecimento de grande número de parceiros e

arrendatários.

Estas foram as categorias sociais que mais migraram da zona rural. Este processo

implicou em prejuízos para a população do campo e as cidades assumem o papel hegemônico

na distribuição demográfica. A modernização da agricultura exigiu novas formas de

comercialização. Surge a figura dos intermediários, como as empresas cerealistas, os

comerciantes, as cooperativas de produção. Neste aspecto, podemos notar que houve uma

progressiva centralização urbana em alguns pontos do Estado, devido a essas transformações

econômicas.

O processo de modernização da agricultura paranaense gerou decréscimo dos

empregos agrícolas inviabilizando a permanência de arrendamento e de parceria, o que

explica, o grande êxodo rural da população do campo9. Estas pessoas, sem oportunidades de

emprego na agricultura, dirigem-se, em sua grande maioria, para os grandes centros urbanos.

Devido a grande crise que ocorre na economia brasileira, e as mudanças na política

agrícola, o que reduziu os subsídios ao crédito, recaindo as conseqüências deste fato sobre os

pequenos, médios e grandes produtores. Diante disso, esses agricultores para minimizar

custos (demitem trabalhadores rurais assalariados), cortam insumos, resultando na queda da

produtividade, substituindo, por culturas que propiciem menores investimentos, ou

substituindo-as por culturas temporárias ou permanentes como, por exemplo, as pastagens.

Esta alternativa implica na liberação da mão-de-obra.

Estas mudanças são opções de uso do capital e do relacionamento social, seja em torno

de melhores negócios, mais segurança na rentabilidade e consciência de que o gado é mais

seguro do que a parceria, o arrendamento e o assalariado. O gado não requer direitos,

seguridade obrigações tributarias e, fundamentalmente, pressão política e “negociação social”.

Lidar com o gado é diferente/distinto do que é “lidar com as pessoas”.

Estas mudanças que se estruturam no espaço agrário paranaense incidem sobre

pequenos produtores e os trabalhadores rurais, principalmente os que não são proprietanos A

9 Muito comum entre os filhos de pequenos produtores é a recusa em dar seqüência ao trabalho agrícola dos pais, procurando preferentemente trabalhos urbanos, nas indústrias e no comércio. Esta tendência apresenta dupla face: por um lado, a busca do trabalho urbano pode ser vista corno urna opção para fugir à precariedade de vida na zona rural e, por outro, como urna contingência, dada a exiguidade da propriedade e seu inevitável parcelamento, como o direito de herança.

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sensível redução na área explorada com lavouras de grãos e da queda na produtividade

reduziu o preço da terra, gerando pressão dos grandes proprietários sobre os pequenos.

Em resumo podemos dizer:

A dinâmica populacional no campo está sujeita a continuidade da substituição, no conjunto da população ocupada, da força de frabalho familiar por um número de trabalhadores assalariados relativamente menores: persiste no campo a diminuição da população ocupada. Esse processo parece estar caracterizando o campo cada vez mais como um lugar de trabalho e não de moradia, deste modo, o campo não apresenta a perspectiva de absorver o crescimento vegetativo. (IPARDES, 1983, p. 1-12).

O desenvolvimento do modo de produção capitalista patrocinado pelo Estado

ditatorial-militar nos termos de transformação da base técnica da produção agrícola (consumo

crescente de máquinas e equipamentos agrícolas , adubos e defensivos químicos - pesticidas,

inseticidas, herbicidas e fungicidas - sementes melhoradas e selecionadas, etc.) promoveu a

expansão dos investimentos alocados no campo (que passou a ser visto como um espaço de

reprodução ampliada do capital), a intensificação especulativa da propriedade, a concentração

de terras, consolidando a transformação da terra do trabalho, de morada, em terra de negócio:

Os camponeses se diferenciam de outros grupos sociais pelo fato da terra ter a conotação para eles, de terra de trabalho, o que difere dos capitalistas e latifundiários que atribuem a terra a um caráter de poder, exploração e de especulação. (Martins, 1988)

Na análise de Martins, o camponês se expressa como um sujeito histórico, produto

histórico do desenvolvimento do capitalismo que em sua lógica de acumulação procura

aumentar a sujeição da renda da terra ao capital. É a tendência da subjugação do camponês às

leis do capital que a resistência camponesa assume um sentido concreto na luta para

permanecer na terra ou também para entrar na terra. Como já explicado, o autor destaca que a

terra para os camponeses assume a conotação de “terra de trabalho”, diferente do capitalista

que visualiza a terra como uma forma a mais de garantia a exploração contínua.

Vê-se a terra, não como a natureza que se projeta o trabalho de um grupo doméstico,

mas como patrimônio da família, sobre a qual se faz o trabalho que constrói a família

enquanto valor. Como patrimônio ou como dádiva de Deus, a terra não é simples coisa ou

mercadoria.

2 O Cotidiano dos “Bóias-Frias” e as Formas de Resistência ao Sistema Capitalista

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O avanço do capitalismo combinando a industrialização, fomentada a partir da década

de 1930 e acelerada nos anos de 1950, com uma nítida caracterização da propriedade

fundiária como propriedade capitalista, desembocou o duplo processo de expropriação e

exploração.

A expropriação como divórcio entre o trabalhador e os seus instrumentos de trabalho cria as condições sociais “para que esse mesmo capital passe ao segundo turno; a outra face do seu processo de reprodução capitalista, que é a exploração do mesmo trabalhador que já foi expropriado” (Martins, 1991, p. 52).

Nesse duplo processo, imensa parcela de pequenos proprietários, meeiros, parceiros,

colonos, moradores, arrendatários, foi apartada dos meios de produção e lançada aos

infortúnios da proletarização. A prescindibilidade do agregado (parceiro, foreiro, arrendatário)

para a economia mercantil tomou-o a principal vítima da expansão das lavouras, quando se

mostrou lucrativa a ocupação de todas as áreas da fazenda com a produção para o mercado.

Expulsos, migram para a periferia da cidade ou mesclam uma miserável produção de

subsistência com trabalho assalariado intermitente.

A concentração de terras apresentou como contra-face a liquidação pura e simples, ou

ainda, a expulsão da pequena propriedade para áreas cada vez mais longínquas. A redução dos

espaços físicos e econômico-sociais da pequena produção, por um lado, e a deterioração das

condições de existência das populações rurais, em decorrência de transformações ocorridas

nas relações sociais de produção no interior das propriedades agrícolas, por outro, conduziram

a um processo de migração rural-urbana de dimensões avassaladoras. Uma parcela desse

enorme contingente de migrantes rurais transformou-se de pequeno produtor que era, em

consumidor urbano de baixa renda inchando a periferia das cidades.

Os pequenos sitiantes, diversamente, produzindo somente com os braços da célula

familiar e fragilizados em seus recursos com a freqüente subdivisão das posses, o direito de

herança, apresentaram uma instabilidade permanente, uma evidente pauperização, que os

tomara as vítimas mais freqüentes dos interesses expansionistas dos grandes fazendeiros ou

mesmo de seus congêneres melhor aquinhoados e com plena inserção às contingências do

mercado. Policultores, ora seguiam ritmo semelhante ao dos sitiantes medianos, ligando- se

ao mercado urbano, ora se apresentavam como cultivadores instáveis, comercializando o

produto de sua lavoura em escala reduzida e de modo excepcional. Comumente expropriada, a

família do pequeno sitiante ou parte dela convergiu para a periferia do núcleo urbano,

11

prestando serviços como camaradas ou volantes, amoldando-se aos serviços urbanos ou

caindo nas graças de seus pares, recebendo terras para o cultivo no sistema de parceria,

arrendamento, etc. Muitos deles são os antecessores dos atuais bóias-frias10.

Muitos sitiantes médios e alguns pequenos produtores modernizaram suas

propriedades, adquirindo modernos instrumentos mecanizados.

Para Teixeira (1989, p. 116), se por um lado a modernização da agricultura implicou o

fortalecimento e expansão dos grandes produtores capitalistas, por outro, incrementou a

dependência dos pequenos produtores ao Complexo Agroindustrial11 com a capitalização da

pequena produção “que se viu forçada, pelos sistemas de créditos bancários com juros

subsidiados, a adotar os pacotes tecnológicos fabricados pela grande indústria nacional e

internacional. Este processo, em última análise, levou um grande número de pequenos

produtores ao endividamento com posterior perda da propriedade”.

Confeccionada a abordagem mais genérica referente à especificidade do avanço das

relações sociais capitalistas no campo delimitaremos, temporal e espacialmente, as dimensões

deste processo, pressupondo que a envergadura quantitativa que o êxodo rural assume a partir

de meados dos anos1960 permite visualizar a constituição do proletariado rural stritu sensu. A

proletarização, abarcada como separação entre produtor direto e os meios de produção, como

desenraizamento como individualização do trabalho e domesticação do trabalhador,

recrudesce a partir de uma conjunção de fatores (de ordem econômica e política) efetivados

numa conjuntura ditatorial-militar.

A explicação dos elementos que contribuíram para o acentuado êxodo não se reduz

aos fatores econômicos, mas abarca também fatores políticos (com implicações econômicas).

Martinez-Alier (1977, p. 74) assinala que: “uma combinação de acontecimentos,

10 A existência de assalariados nos primórdios do século XX é também apontada por Martins (1986, p. 97): “esqueceu-se que o ‘bóia-fria’ nascera com a própria instauração do trabalho livre no século passado. Há documentos sobre bolsões de trabalhadores avulsos entre as fazendas de café. Há fotografias de bóias-frias no começo do século. Há contratos, impressos específicos para essa categoria na mesma época”. No mesmo sentido desta explanação, José Eli da Veiga (1981, p. 20), analisando sinteticamente o tema da Reforma Agrária, após referir-se ao Estado Novo, assevera que o processo de redemocratização de 1946 foi marcado pela volta dos anseios reformistas. Para ele: “nesse momento, já não faltava mão-de-obra no país. Ao contrário, começava a se tomar considerável o número de lavradores sem terra que não conseguiam encontrar sequer a oportunidade de vender sua força de trabalho de forma permanente. Datam desse período primeiros contingentes dos hoje chamados ‘bóias-frias”.11 O Complexo Agroindustrial passa a ser o personagem central na alteração do modo de produção agrícola. Constituídos por uma indústria a montante, que fornece implementos e insumos para a agricultura e, a jusante, de um moderno parque industrial de processamento de matérias agropecuárias e florestais, os CAIs são grupos poderosos econômica e politicamente, interferindo em várias políticas públicas e, em função disso, principalmente nas décadas de 1970 e 1980, crescendo em número, importância e poder. Os CAIs são responsáveis por uma grande parcela do mercado de trabalho, seja no segmento de assalariados (introduzindo novas formas de organização da produção e gestão do trabalho), seja no segmento de pequenos produtores.

12

então, fez surgir os trabalhadores sem terra e itinerantes”. A conjunção das lutas

empreendidas no campo ao longo dos anos 1950 e início da década de 1960 com a disposição

do Estado em inibir a constituição destes movimentos em agentes de transformação social e

canalizar para si a polarização das lutas desencadeou a expansão da legislação trabalhista ao

campo, na forma do Estatuto do Trabalhador Rural de 1963.

O Estatuto do Trabalhador Rural (ETR) estendia as leis trabalhistas aos trabalhadores

rurais permanentes - reafirmando proposições da CLT, garantindo o salário mínimo legal, um

décimo terceiro salário, um mês de férias pagas por ano e indenização por tempo de serviço

em caso de demissão, dando especial atenção à regulamentação da sindicalização, deixando,

todavia, a descoberto os trabalhadores eventuais. Regulamentando que todos aqueles

contratados por um intermediário para trabalhar nas propriedades do empregador, não teriam

direito a nenhum benefício da nova lei, o Estatuto tornava onerosos os trabalhadores

permanentes. O encarecimento da mão-de-obra residente no interior das propriedades

fomentava a transformação dos permanentes em eventuais, como subterfúgio utilizado pelos

fazendeiros para burlar a lei (seus encargos sociais).

Essas leis, o Estatuto do Trabalhador Rural de 1963 e o Estatuto da Terra de 1964, na

verdade, não só regulamentaram a expulsão como também legitimaram a condição de volante,

do excluído da lei pela lei (Silva, 1999); retiraram-lhe não apenas os meios de subsistência

como também os direitos trabalhistas. Para que o trabalhador gozasse dos benefícios

garantidos pelas leis trabalhistas deveria ser registrado, isto é, possuir uma carteira

profissional assinada pelo empregador.

Objetivando acabar com qualquer vínculo empregatício que pudesse ser demonstrado,

os fazendeiros, passaram a utilizar-se de agenciadores de mão-de-obra, encarregados de

manter contato direto com os trabalhadores, contratando-os, transportando-os para o local de

trabalho, fiscalizando o serviço e pagando–os. Desta forma o fazendeiro ficava aparentemente

livre de responsabilidade com os trabalhadores. Sendo recrutado por um “turmeiro” (“gato”) e

não pela fazenda, a situação contratual do trabalhador foi, ao menos, ambígua: o fazendeiro

deixou de estabelecer vínculos diretos com os trabalhadores e os “gatos”, não sendo

proprietários, deixaram de registrar os trabalhadores.

O trabalho dos “bóias-frias” se restringe a alguns meses do ano, os mesmos também se

tomam migrantes temporários, indo em busca de trabalho em regiões muito distantes,

principalmente Minas Gerais e São Paulo, sujeitando-se às condições de trabalho e ganhos

precários, que muitas vezes chegam perto da escravidão.

Para atenuar as dificuldades que enfrentam aceitam deslocar-se para locais distantes,

13

levados pelo “gato”, e longe da família, sem quaisquer direitos trabalhistas assegurados. Este

é um dos casos específicos que ocorre em São José das Palmeiras e na região, onde, nas

épocas de entressafra no município, estes volantes vão, durante certas épocas do ano, para

Minas Gerais colher café. Muitas vezes a própria Prefeitura Municipal “concede” este apoio

às saídas temporárias dos “bóias-frias”, alegando que os mesmos estão se deslocando para

outros Estados para aprenderem a colher café, e depois retornarão e poderão se dedicar à

colheita no local, pois a Prefeitura está incentivando o plantio deste produto no município.

O “gato”, como é conhecido em amplas regiões, opera como um agenciador de

trabalhadores. Geralmente possui ou aluga um ônibus para transportar os “bóias-frias”,

recrutando-os sob promessas de salários e regalias que não serão cumpridas. Como não há

fiscalização, quanto mais o trabalhador se aproxima do local de trabalho, mais longe fica de

qualquer proteção ou garantia quanto aos seus direitos trabalhistas. Como exemplo disso,

podemos mencionar o caso de alguns trabalhadores que saíram de São José das Palmeiras e

foram agenciados para trabalhar em Minas Gerais. Ao chegarem lá perceberam que a

realidade era diferente daquilo que havia sido prometido. Teriam que dormir em galpões e

toda a alimentação que recebiam seria descontada do pagamento final. Além do mais, as

condições de trabalho eram subumanas e constituíam uma forma de “escravidão disfarçada”

ou “escravidão branca”.

Desta forma, as empresas modernas, sobretudo às agropecuárias, podem tirar

vantagem dessa super-oferta temporária de mão-de-obra e o trabalhador toma-se

acentuadamente vulnerável ao recrutamento e complacente com as más condições de trabalho,

o pouco ganho e a violação de seus direitos trabalhistas.

É claro que isso se dá também como conseqüência da pobreza e da falta de alternativas de emprego nos lugares de origem. Mas, sobretudo em conseqüência da crescente necessidade de dinheiro para fazer frente as novas carências decorrentes da presença cada vez maior da mercadoria na vida das populações camponesas e, ao mesmo tempo, da crônica deterioração das relações de troca entre mercadorias vendidas pelo camponês e as mercadorias que ele precisa ou quer comprar. Por esse meio fica claro que a superexploração alcança não só o peão propriamente dito, mas todo o seu grupo familiar. base de sua reprodução como força de trabalho e agora força de trabalho para o capital. (MARTINS, 1997, p. 112).

No município de São José das Palmeiras, trabalhadores têm sido usados sobretudo, na

colheita do algodão, do café e na formação de novas pastagens. São atividades sazonais em

que normalmente emprega-se o trabalho do chamado “bóia-fria”, cujos rendimentos são

baixíssimos, chegando a ser inferiores para assegurar a mínima sobrevivência do trabalhador

de sua família.

14

Sobretudo entre o fim da colheita e o início do plantio, que no caso, vem as carpas, o

raliamento do algodão, muitos jovens empregam-se sazonalmente como assalariados, aceitam

ocupações temporárias fora do lugar onde vivem, de modo a não sobrecarregar a economia

familiar num momento de desocupação ou subocupação,

Este é o caso específico do município de São José das Palmeiras, que devido a grande

quantidade de “bóias-frias”, após o mês de maio, devido ao término da colheita de algodão

não encontram trabalho, sujeitando-se a irem para Minas Gerais e São Paulo na colheita do

café e da laranja.

Entrevistamos vários “bóias-frias” migrantes temporários que passaram ou passam

todos os anos se deslocando para outras regiões em busca de trabalho.

José Antônio Pereira da Silva foi agenciado por um “gato” que, segundo ele, recebia

5% do valor dos ganhos dos “bóias-frias”, sendo que dos 48 trabalhadores levados o

agenciador conseguiu, segundo informações, receber como ganho R$ 10.000,00. José Antônio

nem chegou a conhecer o dono da fazenda, pois o pagamento e o contrato eram feitos pelo

agenciador.

Hoje em dia, isso é uma prática comum seguida pelos latifundiários, que contrataram

o serviço de um empreiteiro, para não terem nenhum vínculo direto com os trabalhadores.

José Antônio nos fala sobre o seu trabalho:

Fui para Minas colhe café, pois depois da safra do algodão, nóis não tem serviço. Fiquei em Minas durante 90 dias e quase não ganhei nada porque o café não tava bom. Trabaiava em média 10 horas por dia, toda a semana e até no domingo, ma o menos o pouquinho que ganhei lá, aqui eu não tinha ganhado, pois não tem serviço. O pagamento era feito no final do mês e a maioria não recebia nada, pois o homem que levou nóis paro lá tinha uma venda de cachaça, pinga ... e a tarde sempre o pessoar fazia bagunça e acabava vindo para cá sem nada.

Outro depoimento de José Pedro Bon, “bóia-fria”, narra as dificuldades encontradas

no trabalho e a exploração a qual foi submetido enquanto esteve em Minas Gerais colhendo

café.

Fui para Minas Gerais, pertinho de Araquari colhe café por causa da crise aqui em São José, tá dficil, mantê a casa porque tá difícil. Fui para Minas por intermédio de um homem chamado Celso. Esse homem ganhou muito dinheiro contratando nóis pra trabalha lá. Fomo até lá por intermédio da Prefeitura. O prefeito pagou a viagem. Eu não sei qual foi a intenção do prefeito pagar a nossa passagem de ida, diz ele que pagou a passagem porque aqui em São José não tinha serviço, quis dar uma mão para o pessoal a manter a família em casa. Quem levou colchão levou, quem não levou dormia em cima de um cobertorzinho, pois ficamo olojados em baraco em média sete pessoa cada quarto. Nóis era pra receber a cada final de meis. Eu tirava em média uns seis, sete saquinho (40 kg) por dia. Nóis pagava trêis real por dia de bóia: café, armoço e janta. Eu fiquei só 30 dias lá coliendo café, porque nóis tratemo um preço aqui e quando chegamo lá o preço era outro. Ficou

15

combinado que do café pequeno seria pago trêis real o saquinho e o grande quatro real. No café grande é mais dficil colhe, pois nóis tinha que subir com uma escada, pois o pé de café chegava a ter quatro metros de altura. Quando chegamo lá ele pagou um e cinqüenta pelo café pequeno e três o café grande. No final do meis deu muita confusão porque o pessoal ficou discutindo com o valor do preço do café. Eles não queriam pagar os dia que nóis trabalhemo, por que nóis queria vir pra casa, e descontando a bóia e o pessoal foi muito sem roupa e o homem vendia roupa na casa, e muitos ficaram individados. Todo mundo teve que compra camiseta de manga comprida que custava a mais barata deiz real, porque si não ninguém aguentaria colhe café, se machucava tudo. Como alguns foram daqui arnados com facas e revólver, quase deu confusão. Tinha muita gente que chegava a noite e ficava olhando pra nóis, eu acho que eles eram uns capanga do fazendeiro. Muitos tiveram que ficar por lá, porque ficaram devendo nos bar e não tinham como pagar a passagem de volta e o dono mesmo tinha um mercadinho lá. Para mim não sobrou nada de dinheiro, cheguei aqui sem nenhum tostão. Os que ficaram lá 120 dias chegaram aqui com mais ou menos 500 real e nóis costumava trabáia da 6:30 da manhã até as 6:00 hora da tarde para não ganha quase nada.

A realidade dos “bóias-frias” do Município de São José das Palmeiras, que tiveram

vivências de trabalhos em Minas Gerais, é a de uma situação não só de exclusão em relação

aos direitos fundamentais, como do direito à propriedade, e o direito trabalhista, como até

mesmo o direito de ir e vir.

Um número enorme de trabalhadores assalariados (muitos dos quais são basicamente

camponeses que se assalariam uma parte do tempo e outros são trabalhadores expulsos da

terra e sujeitos a trabalhos temporários) não tem condições de se organizar nem de exigir o

estabelecimento de relações formais diretamente com os fazendeiros. Ficam sujeitos ao

arbítrio e a extorsão de empreiteiros de mão-de-obra (popularmente conhecido como “gato”

que cobram sobre seus salários uma taxa, uma espécie de tributo, e não lhes reconhecem

nenhum direito legal.

Pelos depoimentos que tomamos e conversas que tivemos ao longo de nossa pesquisa,

percebemos que devido as dificuldades que os “bóias-frias” migrantes se encontram, por

causa da falta de alternativa de trabalho no município, sujeitam-se a deslocar a longas

distâncias sabendo que não conseguirão obter grandes somas em dinheiro e muitas vezes

devido a saudade que sentem da família, para atenuar o sofrimento acabam se tomando

praticamente escravos do “gato” ou do fazendeiro, pois terão que trabalhar cada vez mais para

conseguirem saldar as dívidas e obterem dinheiro da passagem de retorno.

O “gato”, além de ganhar sobre o trabalho dos “bóias-frias”, mantinha muitas vezes

na fazenda um bar ou quando isso não ocorria, levava os trabalhadores com uma camionete

até a cidade mais próxima, geralmente no domingo, para que pudessem comprar o que

desejassem.

Segundo informações que tivemos com os “bóias-frias”, o “gato” recebia uma

16

porcentagem do dono do supermercado onde os trabalhadores faziam suas compras. Desta

forma, percebemos que funcionava o sistema clássico de endividamento. Através de um

sistema de pagamento que envolvia uma parcela de dinheiro e outra em “vales de compra”, o

bar ou supermercado constitui um instrumento de controle e apresamento do trabalhador, a

medida que os trabalhadores usufruíam do crédito, se endividavam, de modo que, para

muitos, no dia do pagamento, a dívida era maior do que o montante a receber.

Longe da família e do lar, e muitas vezes confinados em fazendas que ficavam cerca

de 50 km da cidade mais próxima, era difícil para os “bóias-frias” reclamarem por seus

direitos, pois, ao chegarem lá, não tinham dinheiro e o que recebiam também era praticamente

insuficiente para retornarem por conta própria sujeitando se dessa forma as normas impostas

pelo fazendeiro.

A individualização do volante apresenta-se marcantemente edificada na dicotomia do

sistema: gerado pelo avanço do modo de produção capitalista no campo, o “bóia-fria” é

reabsorvido no trabalho agrícola de forma intermitente, sazonal e miserável. Fruto da

acumulação do capital no campo, retoma ao eito para reproduzir ampliadamente tal riqueza,

reproduzindo ampliadamente a sua miséria.

3 O Cotidiano dos ex-“bóias-frias” nos Frigoríficos da SADIA e COPAGRIL

Diante da nova realidade econômica que se encontrava o município de São José das

Palmeiras, onde as oportunidades de emprego e trabalho foram desaparecendo no município,

hoje presenciamos um novo panorama social.

Grande parte da população (composta quase que exclusivamente por ex-“bóias-frias”,

atualmente trabalha nos frigoríficos da Sadia (Toledo) e Copagril (Marechal Cândido

Rondon), que, no entanto, permanecem residindo em São José das Palmeiras, onde todos os

dias utilizam ônibus e deslocam-se até os referidos municípios sedes das empresas para

trabalharem12.

Deste modo, através de entrevistas junto a esses trabalhadores, procuramos identificar

as diferenças que os mesmos constataram e/ou estão constatando entre o trabalho do campo

para a cidade e as formas de resistência à exploração.

A “vinda” para a cidade, o intenso êxodo, acalentou no ex-agricultor esperanças

12 Muitos municípios da região, assim como São José das Palmeiras são conhecidos como “cidade-dormitório”, pois as pessoas que trabalham nos frigoríficos (Sadia e Copagril) ficam em média 13 À 14 horas por dia (aí incluindo o tempo de deslocamento e de efetivo trabalho), portanto somente dormindo em seu município de residência.

17

profundas de melhoria de condições de vida. O contato com o modo urbano de vida, a

proximidade com os aparelhos estatais de assistência (educacional, médica) despertaram-lhe

expectativas que não foram efetivadas, dado o caráter segregacionista e elitista de nossa

sociedade. O descortinamento dessas ilusões evidenciou o subemprego, o desemprego e a

privação - com seus efeitos morais, sociais e políticos - como uma realidade dramática.

Realizamos entrevistas com vários ex-trabalhadores “bóias-frias”, que trabalham na

Sadia e Copagril, a fim de analisarmos o seu cotidiano no trabalho, pois os mesmos são

vítimas e produtos históricos da especificidade do avanço do processo capitalista na

agricultura (expropriação, exploração, exclusão). Assim, esses homens e mulheres

divorciados de seus meios de produção, explorados em sua força de trabalho e atualmente,

alijados do processo político (são negados como mercadoria e como cidadãos).

Carlos da Silva, afirmou que não via muita diferença entre o trabalho no campo e na empresa.

No campo, quando trabalhava por dia, como “bóia-fria”, sempre tinha um fiscal atrás observando. Sua

família trabalhou toda a vida no campo. Quando era por empreitada, tinha que “puxar bastante” para

ganhar alguma coisa. Na sua visão, essa situação também é vivenciada na empresa (Sadia). Afirmou

que a vigilância também ocorre, pois existem os supervisores das sessões 13 que ficam de olhos atentos

ao desempenho dos empregados. Estabeleceu, contudo, uma diferença em relação ao cumprimento do

horário:

É (...) só tem uma coisa que dentro da firma eu achei dificuldade, porque ai você é sujeito a um horário (...) batê cartão, né. Se você chega atrasado, atrasado cinco minutos, o chefe já tá te questionando (...). Na roça não, você tem horário mais livre.

Houve entrevistados que, além de ressaltar que no interior, na roça, tinha uma vida

com mais “liberdade”, identificavam no trabalho uma relação de maior amizade, com a

presença dos parentes e vizinhos, enquanto o trabalho na empresa prevalece o individualismo,

cada um para si.

A regularidade no recebimento de salários foi apontada como uma diferença

significativa em relação ao campo, onde a circulação de dinheiro ocorria basicamente na

safra. Esta importância é apontada por Germano Tomé:

A dfirença que eu acho é que ou o muito ou o pouco que você ganha, mas chega a cada 15 dias você tem o seu pagamento. Na roça o dinheiro aparecia apenas em

13 A organização da empresa capitalista moderna, além de fragmentar em inúmeras partes a produção industrial, procura introduzir no seio operário a ideologia burguesa baseada na competição e concorrência entre os trabalhadores. Cria várias categorias com qualificação e faixas salariais diferenciadas, além de toda uma estrutura repressiva dentro das fábricas, visando preservar a autoridade capitalista

18

épocas de safra, principalmente na colheita do algodão.

Um fator muito comentado por todos que trabalhavam na roça foi a dificuldade maior

que tinham para obter o dinheiro, pois a circulação se dava com maior intensidade à época da

colheita, venda da safra. Muitos entrevistados afirmaram que, para as despesas de todo o final

de quinzena, conseguem dinheiro, pois são assalariados, embora reconheçam que é

sacrificado. As vezes trabalham até mais do que na roça.

Em relação à rotina de trabalho, interpretam que o rigor na cobrança do horário

desrespeita o ritmo das pessoas, principalmente porque estavam habituadas no campo com

tempo da natureza e não o cronometrado. Na roça sempre havia a possibilidade de fazer o próprio

horário e, mesmo nos sistemas mais rígidos, não havia o controle de minutos, como ocorre na firma

com o cartão ponto. Nessa mesma perspectiva muitos refletiram sobre a impossibilidade de seguir o

próprio ritmo da disposição fisica e de saúde na empresa: quando se está doente, não se vai trabalhar.

Essa opção é bem dificil: Trabalha-se doente; ou, enfrenta- se a burocracia.

A cultura do trabalho no meio rural é fundada no tempo da natureza, o tempo do corpo,

enquanto na empresa, trabalha-se com o tempo cronometrado, do relógio, da tecnologia, com horários

para cada atividade, a disciplina do corpo, inclusive para as necessidades fisiológicas. Assim nos diz

Leonardo Storn:

A maior dificuldade que eu encontro na Sadia é o horário, O horário pra cumprir. Na hora de fazer o intervalo, tipo assim, pára todo o serviço para ir no banheiro. Se der o horário a máquina começa afuncioná e se você não tá ali, o operador te dá uma mijada. Prá almoça tem que sair correndo da sessão para conseguir almoçar, se não chega ligeiro, enfrenta fila e sobra apenas uns 10 minuto prá descansá. O pior é que na hora de ir ao banheiro a gente tem que sair correndo, se não, não dá tempo. Nós só temo três horários de 10 minutos para ir ao banheiro.

Com relação ao tempo no trabalho urbano, o mesmo é cronologicamente controlado os

processos produtivos seguem ritmos artificializados. Tudo se apresenta cadenciado pelo

intenso movimento das leis ditadas pelo capital. As relações de vida e trabalho são construídas

sobre uma multiplicidade de formas e funções que se impõem a todo instante. A concretude

dos acontecimentos se perfaz, ao mesmo tempo em que a mudança desmancha toda forma de

solidez existente nas relações. O urbano é, portanto, o tempo em intenso movimento, a

concretude em plena transformação, a expressão aparente (mas não única) do multifacetado

modo de produção capitalista.

No urbano, o cotidiano é construído sobre um tempo mecânico. As formas como as

pessoas se apropriam do tempo e dele se utilizam não são compassadas pelas mudanças

naturais. O ritmo do tempo segue a velocidade da mobilidade excessiva dos processos de

produção, circulação, troca e consumo de mercadorias. O tempo é movimento no urbano, e é

19

sobre esse constante movimento que são construídos referenciais, hábitos e costumes.

As pessoas, portanto, encontram-se imbuídas por uma lógica em que a rapidez dos

acontecimentos determina o ritmo de seu modo de vida. Trabalho, descanso, compras e lazer

são cadenciados pelo compasso da l6gica do capital de maneira mais efetiva. Nesse tempo, o

relógio é o condutor: controla a hora de dormir, acordar, trabalhar, se alimentar e descansar.

Nos depoimentos muitos também mencionaram que já forjaram estar doentes para

não irem trabalhar, não sendo esta atitude uma preguiça, mas sim uma forma de resistência,

pois como muitos nos relataram, ocorrem ausencias de dois, três e até quatro funcionários por

sessões, sendo que o ritmo de trabalho não diminui, e os que vieram trabalhar devem suprir as

faltas, ocorrendo muitas lesões por esforços repetitivos (conhecida como LER). João da

Costa, nos diz:

É uma verdadeira exploração, se falta gente na sessão eles não tão importando, querem que o trabalho continue, O pessoal acha que a gente é má quina, é por isso que tem muita gente que pega atestado, as vezes é mentira, nem tá doente, eu mesmo já fingi estar doente, por que eles não querem nem saber de você.

Esta forma de resistência, mencionada pelos trabalhadores é muito importante para

eles sentirem que podem alocar o seu tempo e a sua energia de acordo com a sua disposição e

sua manipulação serve para reafirmar a existência dessa possibilidade.

Dos entrevistados, constatamos que as maiores dificuldades encontradas pelos

mesmos no trabalho são: gripes por causa da temperatura, lesão nas juntas, dores nas pernas

por ficarem o tempo todo em pé e o horário de trabalho, entre outros.

Tá faltando gente na preparação, você vai do quente para o frio, inflamação nas juntas e tendões e ficar em pé o dia inteiro, esses são os problemas que eu sofro na Sadia. Tem também um operador chato, tem vez que me dá vontade de dar um pontapé no traseiro dele.

Contudo, a maior reclamação que ouvimos é o horário de trabalho. Muitos

argumentaram que detestam trabalhar a noite, dizendo que não tem tempo para fazer nada, a

não ser trabalhar. Dos trabalhadores que entrevistamo, uns começavam às 4:27 e outros às

14:35. Contudo gastam em média, uma hora para deslocamento (transporte) até chegar em

Toledo e outra para voltar. Eles permanecem fora do município aproximadamente 12 horas.

Como existem vários horários para o início do trabalho, existe uma turma de

trabalhadores que fica esperando quase duas horas para retornarem as suas casas, sendo esse

horário geralmente na madrugada.

20

Assim, o que constatamos é que, tanto o trabalho na agricultura, como o trabalho

urbano, os trabalhadores enfrentam muitas dificuldades, porém como muitos nos narraram, o

que mais nos chamou a atenção foi a resistência com o rigoroso cumprimento do horário, o

trabalho noturno e os movimentos sempre repetitivos do seu trabalho, pois enquanto

trabalhavam como “bóias-frias”, não enfrentavam estes problemas, pois seguiam o ritmo da

natureza.

Ao analisarmos as relações de trabalho que se estabelecem entre o Frigorífico

Copagril de Marechal Cândido Rondon e seus funcionários, constatamos diversas situações

de exploração extrema, conforme nos relataram alguns de seus funcionários, em depoimentos

informais. Segundo eles, as dificuldades já começam pelos horários de saída, pois, devido à

distância, há a necessidade de 1 hora de transporte para ir e outra hora para voltar. Então para

aqueles que começam a jornada de trabalho às 4 horas da manhã, o ônibus passa por volta das

3 horas da madrugada, sendo que o retorno para casa será somente às 16 horas, ou seja, os

mesmos permanecem fora de casa por cerca de 13 a 14 horas, sem contar as situações de

atraso devido precariedade dos meios de transporte que serão relatados posteriomente.

Há também um segundo turno de trabalho, este vai das 13:30 até por volta das 3 horas

da madrugada. Em ambos os horários, o tempo de permanência em casa é menor que o tempo

destinado ao trabalho e transporte.

Segundo ouvimos nos relatos “sobra tempo em casa somente para dormir”. Sendo que

aqueles que tentam realizar outras atividades paralelas como os serviços domésticos ou

frequentar a escola, acabam dormindo apenas 4 ou 5 horas por noite.

Quanto ao transporte, ouvimos as mais diversas reclamações, são queixas que vão

desde a parada devido a problemas no motor, pneus que estouram até a falta de freios, com as

freiadas sendo realizadas “na marcha”, tendo situações em que o risco de um acidente é

imenso e a própria vida corre perigo.

Ao falar destas situações, as pessoas com quem conversamos demonstram tristeza,

angústia e medo, pois, segundo elas “ninguém toma providências, um joga a culpa no outro; a

empresa diz que paga a transportadora e exige que os funcionários cheguem na hora, a

transportadora diz que está tudo bem com os veículos e assim vai...”

Ao chegar na empresa, a rotina de trabalho é sempre a mesma, sendo um tempo

mínimo para as refeições ou descanso. O café da manhã é servido logo na chegada: um

pãozinho e um copo de chá ou café com leite, quem quiser mais de um pão, deve pagar por

ele, sendo cobrado no final do mês R$ 1,50 por pãozinho consumido além daquele oferecido

diariamente. Algumas vezes é servido no café da manhã as “sobras” da janta da noite anterior,

21

como pedaços de peixe frito ou frango.

Trocar a roupa e colocar o uniforme de trabalho é outra situação constrangedora que

os funcionários enfrentam. Segundo relato de uma funcionária, as trocas de roupa são

realizadas numa grande sala, onde há separação apenas entre homens e mulheres. Todas ficam

num mesmo espaço, despindo-se e guardando seus pertences num cabide, depois indo todas

semi-nuas para uma fila, onde recebem o uniforme e o vestem ali mesmo. “Eu vejo muita

mulher pelada todos os dias, mulheres jovens, velhas, gordas, magras” foi o que nos relatou

Maria, em seu depoimento. Com os homens acontece a mesma coisa, porém em um espaço

separado das mulheres.

Após bater o cartão, todos seguem para seus postos de trabalho, ficam em pé, um do

lado do outro e, como máquinas devem realizar o corte, desossa ou separação da carne de

frango. Há uma pessoa que faz o controle do tempo de rendimento de cada funcionário, sendo

contado num cronômetro os segundos que o trabalhador leva para executar sua tarefa. Isso é

feito logo no início do turno e, se com o passar das horas o rendimento cair, há uma cobrança:

“mas o seu tempo era de tantos segundos, você consegue fazer mais rápido”. E assim, a

pressão por um rendimentos contínuo é constante.

Outra demonstração desse controle e, digamos até de escravização do funcionário é o

estabelecimento da norma do uso do banheiro. Essa norma é tão abusiva que chega ao ponto

de determinar que o funcionário só pode interromper o trabalho para ir ao banheiro uma vez

por dia, isto é, se ele for antes do almoço/janta, não poderá ir depois e vice-versa, assim, em

casos extremos, o funcionário deve quase que implorar, chegando a se expor ao ridículo para

conseguir ir ao banheiro. Conforme alguns relatos, já ocorreram situações em que os

funcionários chegaram a urinar na própria roupa em frente aos colegas e chefes, por vezes em

sinal de protesto e outras por necessidade, ficando tão revoltados e envergonhados que nunca

mais voltaram ao trabalho.

Diante de tantas situações de exploração e humilhação enfrentadas por estes

trabalhadores, muitos passam a usar de formas de resistência diante da empresa, assim,

passam a conseguir atestados médicos para poder ficar em casa ou resolver situações

particulares, chegando algumas vezes até a “comprar” os atestados, pagando por uma consulta

e solicitando determinados dias (soubemos de pedidos de até 10 a 15 dias) de afastamento.

Em contrapartida, a Empresa passou a estabelecer regras também com relação aos atestados: o

funcionário deve deixar o atestado juntamente com a receita médica na empresa e em alguns

casos deve passar por um médico contratado por eles para confirmar o afastamento, sendo que

se um funcionário faltar ao trabalho sem essa justificativa serão descontados os dias de

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serviço (valores em torno de R$ 50,00 por falta) e ainda no dia seguinte à falta o funcionário

recebe um “gancho” e fica proibido de trabalhar naquele dia.

Quanto a essa situação ouvimos o relato de um jovem que diz ter ficado das 4 horas da

manhã até as 17 horas da tarde, quando chegou em casa, sem se alimentar, pois ele faltou num

dia e no outro, quando chegou foi comunicado que deveria se retirar imediatamente da

empresa, pois estava de “gancho” devido a falta do dia anterior. Sendo que o mesmo teve que

permanecer no estacionamento da firma durante todo o dia, sem comer ou poder voltar para

casa de ônibus, pois não tinha dinheiro.

Com todo esse rigor e devido à baixa remuneração oferecida pela empresa (um salário

mínimo, sendo descontado o transporte e alimentação), muitos acabam deixando logo o

emprego, antes mesmo de vencer o período de experiência. Outros, que resistem um pouco

mais ou tem uma necessidade maior de permanecer no emprego (afinal esta é a única renda

fixa para muitos) acabam ficando por mais tempo, sendo contratados e caindo no rítmo de

tentar vencer a empresa e serem mandados embora futuramente, a fim de receber seus direitos

de multa recisória. Aos serem questionados sobre a existência de um mecanismo de apoio e

defesa de seus direitos, muitos dizem que “há um sindicato, mas este não faz nada para

defendê-los”.

As disputas políticas sem qualquer atrelamento com as demandas dos operários

acirram o descrédito dos trabalhadores em relação ao Sindicato como instituição capaz de

representá-los, como meio de veiculação de suas reivindicações possíveis e aumentam a

problemática, o estarrecimento e os impasses do sindicato frente aos dilemas e incertezas,

colocados pela modernidade às classes laboriosas. Despido do espontaneísmo e autenticidade

originais ou seja, privando-se de seu caráter político original, constitutiva de uma tendência

do sindicalismo brasileiro - como fruto do que aconteceu com toda a estrutura sindical

nacional em seu processo de burocratização e sob a tutela do Estado - assume,

essencialmente, uma função assistencial administrativa, atuando de forma conciliadora com

relação aos patrões e desestimulando a associatividade e a mobilização nas bases.

Os operários nas suas representações cotidianas manisfestam consciência desse caráter

assumido pelo sindicato, reclamando abandono, mas dirigentes sindicais, de sua própria

origem operária. Devido à extrema competitividade do mercado de trabalho e ao movimento

expropriativo dos frigoríficos, tanto da Sadia como da Copagril, em relação às concessões

extramonetárias, resta a possibilidade de certa “acomodação”, usufruindo a assistência

oferecida pelo sindicato e as imposições salariais da empresa ou pedem a demissão das

mesmas.

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A reestruturação produtiva do capital tem provocado impactos significativos no

mundo do trabalho, que se torna fragmentado, complexíficado e poissêmico, revestido da

precarização das relações de trabalho.

Assim, essa reestruturação do capital é um poderoso instrumento de desorganização e

fragilização da classe trabalhadora, que se encontra cada vez mais na defensiva, num cenário

onde predomina o desemprego estrutura), além de diversas formas de subemprego.

As novas relações de trabalho inseridas precarizam o trabalho em suas múltiplas

dimensões. Porém, partindo do princípio de que a história não acabou, há um potencial de

resistência e resposta do trabalho ao capital, cujo primeiro passo é a tomada de consciência da

classe trabalhadora, seguida de sua organização. Sabemos que não é uma tarefa fácil, porém

reconhecemos a sua legitimidade perante a ilegitimidade das estratégias do capital.

ENTREVISTAS

BON, José Pedro. Entrevista. São José das Palmeiras, set. 2009

D’AGOSTINI, Claudir José. Entrevista. São José das Palmeiras, 25 jun.2002

SILVA, Carlos da. Entrevista. São José das Palmeiras, set.2009

SILVA, José Antônio Pereira da. Entrevista. São josé das Palmeiras, set.2009

STORN, Leonardo. Entrevista. São José das Palmeiras, set. 2009

TOMÉ, Germano. Entrevista. São José das Palmeiras, set. 2009.

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