A BUSCA PELO PRINCÍPIO E PELO FUNDAMENTO NA FILOSOFIA CLÁSSICA Prof. Helder Salvador.

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A BUSCA PELO PRINCÍPIO E PELO FUNDAMENTO NA FILOSOFIA CLÁSSICA Prof. Helder Salvador

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INTRODUO GERAL METAFSICA

A BUSCA PELO PRINCPIO E PELO FUNDAMENTO NA FILOSOFIA CLSSICAProf. Helder Salvador

inegvel que, para a filosofia grega antiga, o horizonte de compreenso o da physis. A totalidade do real foi percebida como "natureza", como cosmos. Os filsofos pr-socrticos, chamados por Aristteles de "fisilogos", voltaram sua ateno para as questes que se detinham com a anlise do surgimento do cosmos, os elementos estruturais que o compem, o problema da gerao e decomposio. A questo que, sobremaneira, se destacou nas especulaes destes pensadores foi a definio de um princpio (arch) nico, que explicasse a natureza fsica do mundo. Princpio este entendido como originrio, causa de todas as coisas, fonte da qual o mundo se origina e termo ltimo de explicao para todos os seres. Este princpio, em ltima anlise, pode ser associado ao conceito daquele "quid" que intenciona definir a coisa, dizer o que ela realmente . Apesar de, a partir dos sofistas, o quadro do questionamento filosfico mudar, focalizando sua ateno sobre o homem e a problemtica moral, e, posteriormente, Scrates, Plato, Aristteles redimensionarem o mbito do discurso filosfico, no se pode descartar a ideia de que o background, sobre o qual se apoia tal discurso, o horizonte da physis. evidente, no pensamento aristotlico, a ideia de que o que verdadeiramente, o que permanece para sempre a natureza, vista como conjunto de substncias determinadas por um processo cclico de gerao e corrupo. A substncia, no fundo, o substrato perene da realidade, alicerce sobre o qual o mundo repousa, fonte permanente e inesgotvel de onde emergem todas as possibilidades. Para ampliar, ainda, a compreenso do horizonte grego antigo, conveniente anotar que, em seu livro El humanismo helnico, Enrique Dussel sublinha a viso dualista do mundo na qual se funda tal humanismo. Este est pervadido de um dualismo antropolgico e tico, que pe em oposio a realidade material e a espiritual. Salienta a diviso de corpo e alma em detrimento da dimenso corporal, considerada como principio negativo ou substncia originria do mal. O fato de a negatividade do corpo ser fortemente acentuada desloca a importncia da intersubjetividade e do critrio de bem comum para um plano secundrio.O homem, cuja alma imortal, participa da eternidade, embora seja peregrinante no corpo at a libertao final. A catarse mister se faz, porque a alma, como num crcere, encontra-se aprisionada pelo corpo. Detm-se, consequentemente, sob o imprio do movimento e da corrupo, subjugada. No obstante a instabilidade do acidental, a imprevisibilidade da mobilidade, conjetura-se a necessidade de perpetuar o movimento, mesmo que aparentemente se manifeste contingente. Assim, no cenrio do mundo grego, a ideia de "eterno retorno" aparece como lei da necessidade. A repetio constante do ciclo corrupo-gerao intui a perpetuidade e divinizao do tempo fsico. O retorno incessante dos ciclos indica que infalvel o destino, e a fatalidade, subjacente. O tempo, tal qual o corpo, negativo. No comporta "historicidade autoconsciente". A temporalidade do indivduo e da sociedade no levada em considerao.No plano ontolgico, essa concepo articulada como "monismo transcendental": o ente assumido na totalidade divina e neutra da physis. Faremos sobressair, neste horizonte, os nomes de inicialmente os de Herclito e Parmenides, depois os de Scrates, Plato e Aristteles, que descortinam para o mbito metafsico trs realidades que causam assombro e arrebatamento.I. O HORIZONTE DA "PHYSIS"A metafsica est dominada pela pergunta: quem existe? Esta pergunta implica a exigncia de mltiplos pretendentes a existir, mltiplos pretendentes que a dizem: eu existo. Mas temos que examinar seus ttulos. Nem todo aquele que quer existir, ou diz que existe, existe verdadeiramente.12Os gregos fizeram j a distino. Tenhamo-la bem presente e perguntemo-nos agora: quem o ser em si? No o ser em outro, mas o ser em si. H uma resposta a essa pergunta, que a resposta mais natural, natural no sentido biolgico da palavra: aquela que a natureza em ns mesmos, como seres naturais, nos dita imediatamente, a mais bvia, a mais fcil, aquela que ocorre a qualquer um. 13Quem existe? Pois muito simples: esta lmpada, este copo, esta mesa, estas campainhas, este giz, eu, esta senhorita, aquele cavalheiro, as coisas e dentre as coisas, como outras coisas, como outros entes, os homens, a terra, o cu, as estrelas, os animais, os rios; isso o que existe.14A palavra latina que designa coisas res. Esta resposta primordial e at diria primitiva, natural, leva na histria da metafsica o nome de realismo, da palavra latina res. pergunta: quem existe? responde o homem naturalmente: Existem as coisas - res - e esta resposta o fundo essencial do realismo metafsico.15Nenhum filsofo, antigo ou moderno, realista desta maneira que acabo de dizer. Porque no pode s-la. demasiado evidente, quando refletimos um momento que nem todas as coisas existem; que h coisas que cremos que existem, mas quando nos aproximamos delas vemos que no existem, seja porque realmente se desvanecem, seja porque imediatamente as decompomos em outras; porque muito simples encontrar coisas compostas de outras. 16Por conseguinte, imediatamente descobrimos em que consistem essas coisas compostas de outras, e quando descobrimos em que consistem, j no podemos dizer realmente que existem, nesse sentido de existncia em si, de existncia primordial. Assim, realmente, no houve em toda a histria da filosofia - pelo menos que eu saiba - nenhum realista que afirme a existncia de todas as coisas.17II. OS PRIMEIROS FILSOFOSO realismo comeou certamente na Grcia; e comeou discernindo entre as coisas. O primeiro esforo filosfico do homem foi feito pelos gregos e comeou sendo um esforo para discernir entre aquilo que tem uma existncia meramente aparente e aquilo que tem uma existncia real, uma existncia em si, uma existncia primordial, irredutvel a outra.O primeiro povo que filosofa na verdade o povo grego. Outros povos, anteriores, tiveram cultura, tiveram religio, tiveram sabedoria; mas no tiveram filosofia. Nesses ltimos sculos sobretudo, a partir de Schopenhauer, encheram-nos a cabea das filosofias orientais, da filosofia hindu, da filosofia chinesa. Essas no so filosofias. So concepes geralmente vagas sobre o universo e a vida. So religies, so sabedoria popular mais ou menos genial, mais ou menos desenvolvida; porm, filosofia no existe na histria da cultura humana, do pensamento humano, at os gregos.19Os gregos foram os inventores disso que se chama filosofia. Por qu? Porque foram os inventores - no sentido de "descobrir" da palavra - os descobridores da razo, os que pretenderam que com a razo, com o pensamento racional, se pode encontrar o que as coisas so, se pode averiguar o ltimo fundo das coisas. Ento comearam a fazer uso de intuies intelectuais e intuies racionais, metodicamente.20Os primeiros filsofos gregos que se propuseram o problema de "quem existe?", de "qual o ser em si", quando o propem para si, porque j superaram o estado do realismo primitivo que enuncivamos dizendo: todas as coisas existem, e eu entre elas. O primeiro momento filosfico, o primeiro esforo da reflexo consiste em discernir entre as coisas que existem em si e as coisas que existem em outra, naquela primria e primeira.21Estes filsofos gregos procuram qual ou quais so as coisas que tm uma existncia em si. Eles chamavam a isto o "princpio", nos dois sentidos da palavra: como comeo e como fundamento de todas as coisas. O mais antigo filsofo grego de que se tem notcia um pouco exata chamava-se Tales e era da cidade de Mileto. Este homem buscou entre as coisas qual seria o princpio de todas as demais, qual seria a coisa qual conferiria a dignidade de ser, de princpio, de ser em si, a existncia em si, da qual todas as demais so simples derivadas; e ele determinou que esta coisa era a gua. Para Tales de Mileto a gua o princpio de todas as coisas. De modo que todas as demais coisas tm um ser derivado, secundrio. Consistem em gua. Mas a gua, ela, que ? Como ele diz: o princpio de tudo o mais no consiste em nada; existe, com uma existncia primordial, como princpio essencial, fundamental, primrio.22Outros filsofos dessa mesma poca - do sculo VII antes de Jesus Cristo - tomaram atitudes mais ou menos parecidas com a de Tales de Mileto. Por exemplo, Anaximandro tambm acreditou que o princpio de todas as coisas era algo material; porm, j teve uma ideia um pouco mais complicada que Tales; e determinou que este algo material, princpio de todas as demais coisas, no era nenhuma coisa determinada, mas uma espcie de protocoisa, que era o que ele chamava, em grego apeiron, indefinido, uma coisa indefinida que no era nem gua, nem terra, nem fogo, nem ar, nem pedra, mas antes tinha em si, por assim dizer, em potncia, a possibilidade de que dela, desse apeiron, desse infinito ou indefinido, se derivassem as demais coisas.23Outro filsofo que se chamou Anaxmenes foi tambm um desses filsofos primitivos que buscaram uma coisa material como origem de todas as demais, como origem dos demais princpios, como nica existente em si e por si, da qual eram derivadas as demais. Anaxmenes, para isso, tomou o ar.24 possvel que haja havido mais tentativas de antiqussimos filsofos gregos que procuraram alguma coisa material; mas estas tentativas foram rapidamente superadas. Foram-no, primeiramente, na direo curiosa de no procurar uma, mas vrias; de acreditar que o princpio ou origem de todas as coisas no era uma s coisa, mas vrias coisas. de supor que as crticas de que foram alvo Tales, Anaximandro e Anaximenes contribussem a isso.25A dificuldade grande de fazer crer a algum que o mrmore pentlico, em Atenas, fosse derivado da gua; a dificuldade tambm de faz-lo derivar do ar, de faz-lo derivar de alguma coisa determinada, fez provavelmente que fossem alvo de crticas acerbas essas derivaes, e ento sobreveio a ideia de salvar as qualidades diferenciais das coisas, admitindo, no uma origem nica, mas uma origem plural; no uma s coisa, da qual fossem derivadas todas as coisas, mas vrias coisas; e assim, um antiqussimo filsofo, quase legendrio, que se chamou Empdocles, inventou a teoria de que eram quatro as coisas realmente existentes, das quais se derivam todas as demais e que essas quatro coisas eram: a gua, o ar, a terra e o fogo, que ele chamou "elementos", isto , aquilo com que se faz tudo o mais.26Os quatro elementos de Empdocles atravessaram toda a histria do pensamento grego, entraram de roldo na fsica de Aristteles, chegaram at a Idade Mdia e desapareceram no comeo da Renascena. Aproximadamente na mesma poca em que viveu Empdocles, do-se dois acontecimentos filosficos que para nossos problemas metafsicos so de importncia capital. Um o aparecimento de Pitgoras e o outro o aparecimento de Herclito.27III. PITGORAS E HERCLITOPitgoras foi um homem de gnio, porque o primeiro filsofo grego a quem ocorre a ideia de que o principio donde tudo o mais se deriva, aquilo que existe de verdade, o verdadeiro ser, o ser em si, no nenhuma coisa; ou, melhor dito, uma coisa; porm, que no se v, nem se ouve, nem se toca, nem se cheira, que no acessvel aos sentidos. Essa coisa "nmero". Para Pitgoras, a essncia ltima de todo ser, dos que percebemos pelos sentidos, o nmero. As coisas so nmeros, escondem dentro de si nmeros. As coisas so distintas umas de outras pela diferena quantitativa e numrica.Pitgoras era um aficionado da msica, e foi quem descobriu (ele ou algum dos seus numerosos discpulos) que, na lira, se as notas das diferentes cordas, soam diferentemente, porque umas so mais curtas que as outras, e no somente descobriu isso, mas tambm mediu o comprimento relativo e encontrou que as notas da lira estavam entre si numa simples relao numrica de comprimento: na relao de um dividido por dois, um dividido por trs, um dividido por quatro, um dividido por cinco.29Descobriu pois, a oitava, a quinta, a quarta, a stima musical, e isto o levou a pensar e o conduziu ideia de que tudo quanto vemos e tocamos, as coisas tal e como se apresentam, no existem de verdade, mas antes so outros tantos vus que ocultam a verdadeira e autntica realidade, a existncia real que est atrs dela e que o nmero. Seria complexo (e nem pertenceria ao tema, nem oportunidade) demonstrar minuciosamente esta teoria de Pitgoras. Interessa-me to - somente faz-Ia notar, porque a primeira vez que, na histria do pensamento grego, surge como coisa realmente existente, uma coisa no material, nem extensa, nem visvel, nem tangivel.30O outro acontecimento foi o aparecimento de Herclito. Herclito foi tambm um homem de gnio profundssimo, que antecipou uma poro de temas da filosofia contempornea. Herclito percorre com o olhar todas as solues que antes dele foram dadas ao problema de "que existe?" e encontra-se com uma enorme variedade de respostas: que Tales de Mileto diz: a gua existe; que Anaxmenes diz: o ar existe; que Anaximandro diz: a matria, amorfa, sem forma, indefinida, existe; que Pitgoras diz: os nmeros existem; e que Empdocles diz: os quatro elementos existem; o resto no existe.31Ento Herclito acha que nenhuma dessas respostas certa acha que, se examinarmos verdadeiramente, com olhos imparciais, as coisas que temos ante ns, encontraremos nelas tudo isso; e sobretudo, que as coisas que temos ante ns no so nunca, em nenhum momento aquilo que so no momento anterior e no momento posterior; que as coisas esto mudando constantemente; que, quando ns queremos fixar uma coisa e definir sua consistncia, dizer em que consiste esta coisa, ela j no consiste no que consistia um momento antes. 32Proclama, pois, o fluir da realidade. Nunca vemos duas vezes a mesma coisa, por prximos que sejam os momentos ou, como dizia na sua linguagem metafrica e mstica: "Nunca nos banhamos duas vezes no mesmo rio." As coisas so como as gotas-d'gua nos rios, que passam e no voltam nunca mais.33No h, pois, um ser esttico das coisas. O que h um ser dinmico, no qual podemos fazer um corte, mas ser arbitrrio. De sorte que as coisas no so, mas devm e nenhuma e todas podem ter a pretenso de ser o ser em si. Nada existe, porque tudo o que existe, existe um instante e no instante seguinte j no existe, antes outra coisa a que existe. O existir um perptuo mudar um estar constantemente sendo e no sendo, um devir perfeito um constante fluir.34E assim termina a filosofia de Herclito: de uma parte, com uma viso profunda da essncia mesma da realidade, que s voltaremos a encontrar em algum filsofo antigo como Plotino e num filsofo moderno, como Bergson; mas, de outra parte, com uma nota de ceticismo, isto , com uma espcie de resignao ante a incapacidade do homem de descobrir o que existe verdadeiramente, ante o fato de que o problema demasiadamente grande para o homem.35E neste momento - que o sculo VI antes de Jesus Cristo em que Herclito acaba de terminar a sua obra, surge, no pensamento grego, o maior filsofo que conhecem os tempos helnicos. O maior, digo, porque Plato, que foi discpulo seu, assim o qualificou. Plato nunca usa adjetivos, de louvor ou pejorativos, para qualificar qualquer dos filsofos que o precederam. Nomeia-os cortesmente. O nico ante o qual ele fica pasmado de admirao Parmnides de Elia. A Parmnides chama sempre, nos seus dilogos,"o grande Parmnides, o grande"; sempre lhe d este epteto, como os eptetos que recebem os heris de Homero.36Quando Herclito termina sua atuao filosfica, surge, no pensamento grego, Parmnides o grande, que , com efeito o maior esprito do seu tempo; to grande, que muda por completo a face d filosofia, a face do problema metafsico, e impele o pensamento filosfico, e metafsico pelo caminho em que estamos ainda hoje. Faz vinte e cinco sculos que Parmnides imprimiu ao pensamento metafsico uma direo; e este rumo se manteve at hoje, inclusive.37IV . PARMNIDES: SUA POLMICA CONTRA HERCLITOParmnides de Elia introduz a maior revoluo que se conhece na historia do pensamento humano. Parmnides de Elia leva a efeito a faanha maior que o pensamento ocidental europeu realizou em vinte e cinco sculos; tanto, que continuamos ainda hoje vivendo nos mesmos trilhos e caminhos filosficos que foram abertos por Parmnides de Elia, e por onde este impeliu, com um impulso gigantesco, o pensamento filosfico humano.Parmnides se defronta com a soluo que Herclito d ao problema metafsico. Analisa esta soluo e constata que, segundo Herclito, resulta que uma coisa e no ao mesmo tempo, visto que o ser consiste em estar sendo, em fluir, em devir. Parmnides; analisando a ideia mesma de devir, de fluir, de mudar, encontra nessa ideia o elemento de que o ser deixa de ser o que para tornar-se outra coisa, e, ao mesmo tempo que se torna outra coisa, deixa de ser o que para tornar-se outra coisa. Verifica, pois, que, dentro da ideia do devir, h uma contradio lgica, h esta contradio: que o ser no ; que aquele que no , visto que o que neste momento j no neste momento, antes passa a ser outra coisa.39Qualquer olhar que lancemos sobre a realidade nos confronta com uma contradio lgica, com um ser que se caracteriza por no ser. E diz Parmnides: isto absurdo; a filosofia de Herclito absurda, ininteligvel, no h quem a compreenda. Porque como pode algum compreender que o que no seja, e, o que no seja? No pode ser! Isto impossvel! Temos, pois que opor s contradies, aos absurdos, ininteligibilidade da filosofia de Herclito um princpio de razo, um princpio de pensamento que no possa nunca falhar.40Qual ser este princpio? Este: o ser ; o no ser no . Tudo o que fugir disto despropositado, jogar-se, precipitar-se no abismo do erro. Como se pode dizer, como diz Herclito, que as coisas so e no so? Porque a ideia do devir implica necessariamente, como seu prprio nervo interior, que aquilo que agora , j no , visto que todo momento que tomamos no transcurso do ser, segundo Herclito, um trnsito para o no ser do que antes era, e isto incompreensvel, e isto ininteligvel. As coisas tem um ser, e este ser . Se no tem ser, o no-ser no .41Se Parmnides se tivesse contentado em fazer a crtica de Herclito, teria feito j uma obra de importncia filosfica considervel. Porm, no se contenta com isso, mas antes acrescenta crtica de Herclito uma construo metafsica prpria. E como leva a efeito esta construo metafsica prpria? Pois leva-a a efeito, partindo desse princpio de razo que ele acaba de descobrir. Parmnides acaba de descobrir o princpio lgico do pensamento, que formula nestes termos categricos e estritos: o ser ; o no-ser no . E tudo o que se afastar disso ser corrida em direo ao erro.42O SER E SUAS QUALIDADESEste princpio, que descobre Parmnides e que os lgicos atuais chamam "princpio de identidade", serviu-lhe de base para a sua construo metafsica. Parmnides diz: em virtude desse princpio de identidade ( claro que ele no o chamou assim; assim o denominaram, muito depois, os lgicos), em virtude do princpio de que o ser , e o no ser no , principio que ningum pode negar sem ser declarado louco, podemos afirmar acerca do ser uma poro de coisas. Podemos afirmar, primeiramente, que o ser nico.No pode haver dois seres; no pode haver mais que um s ser. Porque suponhamos que haja dois seres; pois, ento, aquilo que distingue um do outro "" no primeiro, porm "no " no segundo. Mas, se no segundo no aquilo que no primeiro , ento chegamos ao absurdo lgico de que o ser do primeiro no no segundo. Tomando isto absolutamente, chegamos ao absurdo contraditrio de afirmar o no-ser do ser. Dito de outro modo: se h dois seres, que h entre eles? O no-ser. Mas dizer que h o no-ser dizer que o no-ser, . E isto contraditrio, isto absurdo, no tem cabimento; essa proposio contrria ao princpio de identidade.44Portanto, podemos afirmar que o ser nico, um. Mas ainda podemos afirmar que eterno. Se no o fosse, teria princpio e teria fim. Se tem princpio, que antes de comear o ser havia o no-ser. Mas, como podemos admitir que haja o no-ser? Admitir que h o no-ser, admitir que o no-ser . Admitir que o no-ser , to absurdo como admitir que este cristal verde e no-verde.45O ser , o no-ser no . Por conseguinte, antes que o ser fosse havia tambm o ser; quer dizer, que o ser no tem princpio. Pela mesma razo no tem fim, porque, se tem fim, que chega um momento em que o ser deixa de ser. E depois de ter deixado de ser o ser, que h? O no-ser. Mas, ento, temos que afirmar o ser do no-ser, e isto absurdo. Por conseguinte, o ser , alm de nico, eterno.46Mas no fica nisto. Alm de eterno, o ser imutvel. O ser no pode mudar, porque toda mudana do ser implica o ser do no-ser visto que toda mudana deixar de ser o que era para ser o que no era, e, tanto no deixar de ser como no chegar a ser, vai implcito o ser do no-ser, o que contraditrio.47Mas, alm de imutvel, o ser ilimitado, infinito. No tem limites ou, dito de outro modo, no est em parte alguma. Estar em uma parte encontrar-se em algo mais extenso e, por conseguinte, ter limites. Mas o ser no pode ter limites, porque se tem limites, cheguemos at estes limites e suponhamo-nos nestes limites. Que h alm do limite? O no-ser. Mas ento temos que supor o ser do no-ser alm do ser. Por conseguinte o ser no pode ter limites e, se no pode ter limites, no est em parte alguma e ilimitado.48Mas h mais, e j chegamos ao fim. O ser imvel, no pode mover-se, porque mover-se deixar de estar num lugar para estar em outro. Mas como predicar-se do ser - o qual, como acabamos de ver, ilimitado e imutvel - o estar em um lugar? Estar em um lugar supe que o lugar onde est mais amplo, mais extenso que aquilo que est no lugar. Por conseguinte, o ser, que o mais extenso, o mais amplo que h, no pode estar em lugar algum e se no pode estar em lugar algum, no pode deixar de estar no lugar; ora: o movimento consiste em estar estando, em deixar de estar num lugar para estar em outro lugar. Logo, o ser imvel.49Se resumimos todos esses predicados que Parmnides atribui ao ser, encontramos que o ser nico, eterno, imutvel, ilimitado, e imvel. J encontrou bastante coisa Parmnides. Mas ainda vai alm.50TEORIA DOS DOIS MUNDOSEvidentemente no podia escapar a Parmnides que o espetculo do universo, do mundo das coisas, tal como se oferece aos nossos sentidos, completamente distinto deste ser nico imvel ilimitado, imutvel e eterno. As coisas so, pelo contrrio, movimentos, seres mltiplos que vo e vm, que se movem, que mudam, que nascem e que perecem. No podia, pois, passar despercebida a Parmnides a oposio em que sua meta fsica se encontrava frente ao espetculo do universo.Ento Parmnides no hesita um instante. Com esse sentido da coerncia lgica que tm as crianas (neste caso, Parmnides a criana da filosofia) tira corajosamente a concluso: este mundo heterogneo de cores, de sabores, de cheiros, de movimentos, de subidas e descidas, das coisas que vo e vm, da multiplicidade dos seres de sua variedade, do seu movimento de sua heterogeneidade todo este mundo sensvel uma aparncia, uma iluso dos nossos sentidos, uma iluso da nossa faculdade de perceber. 52Assim como um homem que visse forosamente o mundo atravs de uns cristais vermelhos diria: as coisas so vermelhas, e estaria errado; do mesmo modo, quando dizemos: o ser mltiplo, o ser movedio. O ser mutvel, o ser variadssimo, estamos errados. Na realidade, o ser nico, imutvel, eterno, ilimitado e imvel.53Declara ento Parmnides, resolutamente, que a percepo sensvel e ilusria. E imediatamente, com a maior coragem, tira outra concluso: a de que h um mundo sensvel e um mundo inteligvel. E pela primeira vez na histria da filosofia aparece esta tese da distino entre o mundo sensvel e o mundo inteligvel que dura at hoje.54Que entende Parmnides por mundo sensvel? Aquele que conhecemos pelos sentidos. Mas este mundo sensvel que conhecemos pelos sentidos ininteligvel, absurdo, porque se o analisarmos bem tropearemos a cada instante com a rgida afirmao racional da lgica que : o ser , e o no-ser no .55Vimos que todas essas propriedades do ser, que antes enumeramos, foram assentadas como esteios fundamentais da metafsica, porque as suas contrarias (a pluralidade, a temporalidade, a mutabilidade, a limitao e o movimento) resultam incompreensveis diante da razo. Quando a razo analisa, tropea sempre com a hiptese inadmissvel de que o no-ser e, ou de que o ser no . E como isto contraditrio tudo se torna ilusrio e falso. 56O mundo sensvel ininteligvel. Por isso, frente ao mundo sensvel que vemos, que tocamos, mas que no podemos compreender, coloca Parmnides um mundo que no vemos, no tocamos do qual no temos imaginao nenhuma, mas que podemos compreender, que est sujeito e submetido lei lgica da no contradio, lei lgica da identidade; e por isso chama-o, pela primeira vez na Histria, mundo inteligvel, mundo do pensamento. Este o nico autntico; o outro puramente falso.57Se fizermos o balano dos resultados obtidos por Parmnides, encontrar-nos-emos verdadeiramente maravilhados diante da colheita filosfica deste homem gigantesco. Ele descobre o princpio da identidade um dos esteios fundamentais da lgica. E no somente descobre o princpio de identidade, mas, alm disso, afirma imediatamente a tese de que, para descobrir que o que na realidade no temos outro guia que o principio de identidade; no temos outro guia que nosso pensamento lgico e racional.58Quer dizer, assenta a tese fundamental de que as coisas fora de mim, o ser fora de mim exatamente idntico ao meu pensamento do ser. Aquilo que eu no puder pensar por ser absurdo pens-lo, no poder ser na realidade, e, por conseguinte, no necessitarei, para conhecer a autntica realidade do ser, sair de mim mesmo, mas somente tirando a lei fundamental do meu pensamento lgico, fechando os olhos a tudo somente pensando um pouco coerentemente, descobrirei as propriedades essenciais do ser.59Quer dizer que para Parmnides, as propriedades essenciais do ser so as mesmas que as propriedades essenciais do pensar. Dentre os fragmentos que se conservam, brilha esta frase esculpida em mrmore imperecvel: "Ser e pensar uma e s coisa." A partir deste momento ficam assim, por vinte e cinco sculos, colocadas as bases da filosofia ocidental.60At agora falvamos da filosofia eletica de Parmnides em linhas um pouco gerais. Bastaria o que disse para caracteriz-la. Porm, quero acrescentar umas quantas consideraes sobre este pormenor, a tcnica mesma com que os eleticos realizavam sua filosofia.61V. A FILOSOFIA DE ZENO DE ELIAZeno preocupou-se, durante toda a sua vida, muito especialmente em demonstrar em detalhe que o movimento que existe, com efeito, no mundo dos sentidos, nesse mundo sensvel, nesse mundo aparencial, ilusrio, ininteligvel, e, visto que ininteligvel, no .Em virtude do princpio eletico da identidade do ser e do pensar; aquilo que no se pode pensar no pode ser. No pode ser mais que aquilo que se pode pensar coerentemente, sem contradies. Se, pois, a anlise do movimento nos conduz concluso de que o movimento impensvel, de que ao pensarmos ns o movimento chegamos a contradies insolveis, a concluso evidente: se o movimento impensvel, o movimento no . O movimento uma mera iluso de nossos sentidos.63Zeno de Elia prope-se a polir uma srie de argumentos incontrovertveis que demonstram que o movimento impensvel; que no podemos logicamente, racionalmente, pens-lo, porque chegamos a absurdos.64Com esse mtodo de paradigma constante, de exemplificao constante que empregam os gregos, como Plato e que Aristteles usar mais tarde, Zeno exemplifica tambm seus raciocnios. , alm disso, com este gosto que tm os gregos - entre artistas e sofistas de chamar a ateno e de encher de admirao os ouvintes, Zeno se colocava diante dos seus amigos, dos seus ouvintes, e lhes dizia:"Vou demonstrar-lhes uma coisa: se vocs puserem Aquiles a disputar uma corrida com uma tartaruga, Aquiles no alcanar jamais a tartaruga, se derem vantagem a esta na sada."65Aquiles d uma vantagem tartaruga e fica uns quantos metros atrs. Digam-me: quem ganhar a carreira? Todos respondem: "Aquiles em dois pulos passa por cima da tartaruga e a vence."66E Zeno diz: "Esto completamente enganados. Vocs o vero. Aquiles deu uma vantagem tartaruga; logo, entre Aquiles e a tartaruga, no momento de partir, h uma distncia. Comea a carreira. Quando Aquiles chegar ao ponto onde estava a. tartaruga, esta ter caminhado algo, estar mais adiante, e Aquiles no a ter alcanado ainda. Quando Aquiles chegar a este novo lugar em que agora est a tartaruga, esta ter caminhado algo, e Aquiles no a ter alcanado, porque, para alcan-la, ser mister que a tartaruga no avance nada no tempo que necessita Aquiles para chegar aonde ela estava. E como o espao pode ser dividido sempre num nmero infinito de pontos, Aquiles no poder jamais alcanar a tartaruga, embora ele seja, como diz Homero, ocus podas, ligeiro de ps, e, ao contrrio, a tartaruga seja lenta e sossegada."67Os gregos riam-se ouvindo estas coisas, porque gostavam imensamente dessas brincadeiras. Riam-se muitssimo e talvez dissessem: "Est louco.", Mas no compreendiam o sentido do argumento. Nas filosofias gregas posteriores, conforme nos narra Sexto Emprico, Digenes demonstrou o movimento andando, posse a andar, e assim acreditou ter refutado a Zeno. Iluses!68 que no compreendeu o sentido do argumento de Zeno. Zeno no diz que no mundo sensvel de nossos sentidos no alcance Aquiles a tartaruga; o que quer dizer que se aplicarmos as leis do pensamento racional ao problema do movimento, simbolizado aqui por esta carreira pedestre, verificaremos que as leis do movimento racional so incapazes de fazer inteligvel o movimento. Por que, que o movimento? O movimento a translao de um ponto no espao, ponto que passa de um lugar a outro. 69Ora; o espao infinitamente divisvel. Um pedao de espao, por pequeno que seja, ou espao ou no o . Se no o , no falemos nisso; estamos falando do espao. Se espao, ento extenso; por pouca que seja sua extenso, algo extenso, porque, se no fosse extenso, no seria espao. E se extenso, divisvel em dois.70O espao , pois, divisvel num nmero infinito de pontos. Como o movimento consiste no trnsito de um ponto do espao a outro ponto do espao, e como entre dois pontos do espao, por prximos que estejam, h uma infinidade de pontos, resulta que esse trnsito no pode realizar-se seno num infinito de tempo, e se faz ininteligvel.71O que queria demonstrar Zeno que o movimento, pensado segundo o principio de identidade - o ser , e, o no ser no resulta ininteligvel. E como ininteligvel, preciso declarar que o movimento no pertence ao ser verdadeiro, como dizem os gregos, ao ontos on, ao que verdadeiro.72A Plato convenceu o argumento de Zeno; tanto que, como veremos mais adiante, na soluo que d ao problema da metafsica, Plato elimina o movimento do mundo inteligvel e o deixa reduzido, como os eleticos, ao mundo sensvel, ao mundo da aparncia.73Nas histrias da filosofia mais amplas podem ser encontrados outros dois famosos argumentos do estilo desse de Aquiles e a tartaruga. So o argumento da flecha e o argumento dos carros que correm no estdio. O primeiro argumento consiste em que uma flecha voando pelo ar no est em movimento mas em repouso. Compreende-se, facilmente, como se pode demonstrar isto: simplesmente, partindo da tese de Zeno. 74O outro argumento consiste em que dois carros, que se perseguem no estdio, no se alcanam nunca. exatamente o argumento de Aquiles e a tartaruga, referido a outros objetos, de modo que no vale a pena insistir sobre isto.75IMPONTNCIA DA FILOSOFIA DE PARMNIDESParmnides o descobridor da identidade do ser; o descobridor da identificao entre o ser e o pensar. Os eleticos so os primeiros a praticar a dialtica, ou seja, a discusso por meio de argumentos. Parmnides constitui toda uma metafsica baseada nas suas descobertas do principio de identidade e a identificao entre o pensar e o ser. De modo que sua importncia histrica grande.Observando-se que qualquer livro de lgica dos que hoje se adotam em qualquer escola, nas primeiras pginas, trata j do princpio de identidade, descoberto por Parmnides; se cogita, de outra parte, que a partir de Parmnides rege a ideia, em uma ou outra forma, de que o guia para descobrir a verdade do ser est na razo, adverte-se que esta ideia se poder aplicar com o excessivo rigor com que a aplicou Parmnides, esquecendo-se de que o princpio de identidade puramente formal, ou poder aplicar-se de maneira distinta.77O certo que desde Parmnides est ancorada na mente dos filsofos a convico de que o roteiro para descobrir, para resolver os problemas do ser, nossa razo, nossa intuio intelectual, nossa intuio volitiva; em resumo, algo que, para lhe dar o nome de conjunto, nosso esprito. Esta uma ideia fundamentalmente parmendica, fundamentalmente eletica.

78A importncia que Parmnides tem para a filosofia atual, nossa, consiste em que o obstculo fundamental que se ope, em nossos dias, a que o pensamento filosfico penetre em regies mais profundas que as regies do ser, consiste precisamente em que, desde Parmnides, e por culpa de Parmnides, temos do ser uma concepo esttica em lugar de ter uma concepo dinmica; temos do ser uma concepo esttica, inerte.79Essas coisas que enumerei como as qualidades do ser: nico, eterno, imutvel, ilimitado e imvel, que Parmnides faz derivar do princpio de identidade, ns aplicamos todos os dias; mas, em lugar de aplic-las ao ser, as aplicamos substncia e essncia. Fragmentamos o ser de Parmnides em multido de seres, que chamamos as coisas; mas cada uma das coisas, as cincias fsico-matemticas consideram-nas como uma essncia; a qual, individualmente considerada, tem os mesmos caracteres que tem o ser de Parmnides; nica, eterna, imutvel, ilimitada, imvel. 80E precisamente porque demos a cada coisa os atributos ou predicados que Parmnides dava totalidade do ser, por isso temos do ser uma concepo eletica e parmendica, ou seja, uma concepo esttica.81A cincia fsica da natureza, a prpria cincia da fsica, comea j a sentir-se apertada dentro dos moldes da concepo parmendica da realidade. A cincia fsica da natureza, a teoria intra-atmica, a teoria das estruturas atmicas, a teoria dos quanta de energia, que seria demorado desenvolver aqui, j uma teoria que se choca um pouco com a concepo esttica do ser maneira de Parmnides; e a cincia contempornea teve que apelar a conceitos to extravagantes e esquisitos como o conceito de verdade estatstica, que, se o tivessem relatado a Newton o teria feito estremecer; apelar a conceitos de verdade estatstica, que o mais contrrio que se pode imaginar concepo esttica do ser, para poder manter-se dentro dos moldes do ser esttico, parmendico.82No somente a fsica, mas tambm a cincia da vida e a cincia do homem. A concepo do homem como uma essncia quieta, imvel, eterna, e que se trata de descobrir e de conhecer, foi que nos perdeu na filosofia contempornea; tem que ser substituda por outra concepo da vida na qual o esttico, o quieto, o imvel, o eterno definio parmendica no nos impea de penetrar por baixo e chegar a uma regio vital, a uma regio vivente, onde o, ser no possua essas propriedades parmendicas, mas antes seja precisamente o contrrio: um ser ocasional, um ser circunstancial, um ser que no se deixe espetar numa cartolina, como borboleta pelo naturalista, Parmnides tomou o ser, espetou-o na cartolina h vinte e cinco sculos, e l continua ainda, preso na cartolina, e, agora, os filsofos atuais no vem o modo de tirar-lhe o alfinete e deix-lo voar livremente.83Este vo este movimento, esta funcionalidade, esta concepo da vida como circunstncia, como chance, como resistncia que nos revele a existncia de algo anterior posse do ser, algo do qual Parmnides no podia ter ideia, isto que o homem tem que conquistar. Mas, antes de reconquist-lo, reconheamos que um filsofo que influenciou durante vinte e cinco sculos, de uma maneira to decidida, o curso do pensamento filosfico, merece algo mais que as quatro ou cinco pginas que lhe costumam dedicar os manuais de filosofia.84