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    Herberto Helder

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    A S S R I O & A L V I M

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    Servides

    Herberto Helder

    Publicado em Portugal porAssrio & Alvimwww.assirio.pt

    Sistema Solar e Herberto Helder, 2013 Porto Editora, 2013

    Na capa: xilogravura de Ilda David

    Edio nica em Maio de 2013

    Assrio & Alvim uma chancela daPorto Editora, Lda.

    Reservados todos os direitos. Esta publicao no pode ser reproduzida, nem transmitida,no todo ou em parte, por qualquer processo electrnico, mecnico, fotocpia, gravao ououtros, sem prvia autorizao escrita da Editora.

    Distribuio Porto Editora, Lda.Rua da Restaurao, 365

    4099-023 Porto | Portugal

    www.portoeditora.pt

    Execuo grfica Bloco Grfico, Lda.

    Unidade Industrial da Maia.

    DEP. LEGAL358559/13

    ISBN978-972-37-1696-2A cpia ilegalviola os direitos dos autores.

    Os prejudicados somos todos ns.

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    Andr Breton Des ttes! Mais tout le monde sait

    ce que cest quune tte.Alberto Giacometti Moi, je ne sais pas.

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    o tema das vises e das vozes, um pouco ameaador agora

    quando se lembra aquilo por que se passou. Era o costume dasinfncias: viam-se faiscar os rostos, sbitos como pedrarias nos

    quartos obscuros, assemelhavam-se a alvolos de colmeias uns

    sobre os outros. Na cama, escutava-se um clamor, os melhores

    instantes concentravam-se ali, que apuramento de palavras, de

    frases, de anncios, e aquilo ascendia no silncio, era a nossamsica que se compunha, e em baixo mas inteiro nos dons,

    em estado de graa, respirvamos temerariamente. Estvamos

    atentos s matrias e sopros do mundo expressos em imagens e

    vozes autnomas. Nem sequer nos apercebamos bem de que

    as noites separavam os dias: era vero. O espao, os encontros,

    as caras, o cabelo das mulheres, roupas estendidas a suar, o vento

    amplo, grandes pedras, grandes girassis, a fruta amarela, os

    bichos. Crescamos no meio do atordoamento de flores e ani-

    mais, crescamos assim. Uma noite acordei com o som dos

    meus prprios gritos.

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    Trouxeram uma vez um porco selvagem caado nas serras

    e atiraram-no para cima da mesa da cozinha, uma longa mesacoberta de zinco. Abriram-no de alto a baixo com enormes

    facalhes e cutelos, o sangue corria por todos os lados, meteram

    as mos e os antebraos na massa vermelha, e eles reapareceram

    depois como calados de luvas sangrentas, vivas; deitaram

    ento para os baldes as vsceras que fumegavam: os pulmes,o fgado, os intestinos. De tudo aquilo subia um perfume agudo,

    embriagador, doloroso. noite tive febre. Havia qualquer coisa

    prfida e perversa neste mundo das frutas muito fortes, dos ani-

    mais esquartejados, dos cheiros, este mundo espesso e quente,

    um mundo de imagens orgnicas.Era a ordem ininterrupta das magias: meia-noite de s-

    bado cravava-se uma faca no tronco das bananeiras, ia-se ver

    logo pela manh, a seiva cida deixara enigmticas figuras na

    lmina, decifrvamos, tnhamos inspiraes, revelaes: um

    cavalo, uma guia, um tigre, uma cobra, um leo. As bana-

    neiras gemiam de noite: a sua carne rasgava-se por uma fora

    que vinha de dentro, e das feridas brotavam os rebentos: cachos,

    frutas de ouro. Em tempo de trovoadas punham-se lenis

    sobre os espelhos porque se acreditava que os espelhos nus

    atraam os raios. Havia espelhos por toda a casa, alguns eram

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    altos, do tamanho de uma pessoa, replicavam de corpo inteiro

    travessia pelos corredores e quartos. A nossa prpria imagemassustava-nos vinda bruscamente no sabamos de onde, de

    que fundo, de que mundo. Era uma imagem que se agarrava

    nossa, que se introduzia malignamente em ns carregada de

    poderes inexplicveis. Durante uma dessas tempestades um raio

    fuzilou junto s janelas e vi no espelho, que eu mesmo cobriacom o lenol, o meu rosto desdobrado, ardido, remoto: quem

    era?, um animal demonaco, uma criana de cabea zoolgica,

    um killcrop?

    A cabea ficara marcada, invisvel, mas quando me deitava

    de costas, na escurido, sentia uma queimadura na tmpora,a crosta fervendo por baixo, da nuca testa. Interpretava-a

    como uma cicatriz que me acompanharia at morte, o em-

    blema de uma guerra assombrosa de que j esquecera os por-

    menores e o sentido. Estava ali, ficara ali para sempre, confun-

    dia-se insondavelmente com o destino. E no entanto essa

    marca garantia que eu era livre, que findava nela, na inquieta

    memria da guerra, a interdio que o mundo opunha ao surto

    das foras, o meu esprito seria da em diante irredutvel, no me

    sujeitava nenhuma regra alheia. E era contnuo, sem pausas,

    uma espcie de insnia arrebatada e mortal. Porque eu morre-

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    ria lentamente dos episdios dessa guerra, morreria das chagas

    que ela me deixara.Mas penso que tudo isto uma interminvel preparao,

    uma aproximao. Porque o prestgio da poesia menos ela

    no acabar nunca do que propriamente comear. um incio

    perene, nunca uma chegada seja ao que for. E ficamos esten-

    didos nas camas, enfrentando a perturbada imagem da nossaimagem, assim, olhados pelas coisas que olhamos. Aprende-

    mos ento certas astcias, por exemplo: preciso apanhar a

    ocasional distraco das coisas, e desaparecer; fugir para o

    outro lado, onde elas nem suspeitam da nossa conscincia;

    e apanh-las quando fecham as plpebras, um momento,rpidas, e rapidamente p-las sob o nosso senhorio, apanhar

    as coisas durante a sua fortuita distraco, um interregno,

    um instante oblquo, e enriquecer e intoxicar a vida com essas

    misteriosas coisas roubadas. Tambm roubmos a cara chame-

    jante aos espelhos, roubmos noite e ao dia as suas inextri-

    cveis imagens, roubmos a vida prpria vida geral, e fomos

    conduzidos por esse roubo a um equvoco: a condenao ou

    condanao de inquilinos da irrealidade absoluta. O que excede

    a insolvncia biogrfica: com os nomes, as coisas, os stios, as

    horas, a medida pequena de como se respira, a morte que se

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    no refuta com nenhum verbo, nenhum argumento, nenhum

    latrocnio.Vivemos demoniacamente toda a nossa inocncia.

    Eu podia contar gemeamente duas histrias: uma afro-

    -carnvora, simblica, a outra silenciosa, subtil, japonesa.De cada uma delas acabariam por decorrer um tom e um

    tema. A histria carnvora foi colhida algures, de leitura, e

    respeita a uma tribo que sepultava os seus mortos no cncavo

    de grandes rvores. As rvores, a que tinham dado o nome

    do povo: baobab, devoravam os cadveres, deles iam urdindoa sua prpria carne natural. Pelo nome tirado de si e posto

    na alquimia, a tribo investia-se nas transmutaes gerais: a

    morte levava o nome, e o nome, activo e tangvel, crescia na

    terra. Emocionam-me a fome botnica e o triunfo das copas,

    o empenho tribalmente mgico, regrado pelo insondvel en-

    tendimento das metamorfoses da carne no esquema org-

    nico da matria. E apanho aqui o smbolo: uma imagem

    de si mesma, uma imagem absoluta, universal, devora esta

    gente, e esta gente pe a assinatura na imagem devolvida ao

    mundo. quase tudo quanto h para dizer no plano pr-

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    tico da poesia. Num Japo corolrio, o discpulo pergunta

    ao mestre o que o Zen, e o mestre descala as sandliase coloca-as em cima da cabea. Eu penso que o discpulo

    era ainda pouco lavado na inteligncia das coisas, do seu

    pouso e geometria, pouco inteligente da inteligncia que

    aparelha o caos em relaes sensveis de elementos. No lhe

    era enfim sabido que discorrer sobre a ordem do mundo, e dequalquer captulo dele, menos que nomear. o desencon-

    tro no acto das palavras. Como ressalta ento o recndito, o

    lugar onde a carne comida, e ressurge, merc da aliana da

    linguagem com as formas! No se discorre. A vitalidade no-

    minal intrnseca, metablica: pode tender para o silncioou tomar o ganho de uma voz, mas no explica, age apenas,

    age como substncia, forma e nome da realidade. Vejo eu

    mesmo, custa de operaes secretas alimentos, siln-

    cios que me sustenho no mbito mais avesso ao exterior

    de uma arte que interna, arte cerrada a que se chega por

    dote e exerccio prprios, das cercanias para o meio, um

    combate com as armas inocentes e astuciosas da magia,

    carne contra carne, imagens, sopro, os terrveis substantivos

    da terra, objectos vivos. Se me acontece tomar como argu-

    mentos meus aquilo que os poemas indicam e dirigem, ou

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    fazem, aquilo que sai em jeito de visibilidade e msica, a

    desocultao, a verso pondervel, fica assente em espcie denota que se capta a razo inteira, no centro. Todo o livro vai

    sendo o seu prefcio, e o posfcio, a inacessvel e pronta-

    mente acessvel evidncia. E assim quero eu pr em escrito

    rpido que ele, livro, com as suas vozes ltimas, incita quem

    puder a poder encontrar a razo das razes, pessoal, e o fun-damento agora inabalvel de uma figura da realidade que,

    apenas manifesta, se torna encontrada como nica. O que se

    faz segundo as posses dos encontros. Neste sistema no deixa

    a natureza que entrem outras linhas: um gnmon para

    ajuste de certas horas, marcando a dominao e os passos deum sol pessoal. Fique indiscutvel que uma carta de teor e

    amor, mltipla e unvoca, e doada, e ferozmente parcials-

    sima. Quando os lemos lado a lado, a todos estes poemas,

    sabemos estarem eles entregues ao servio de uma s ins-

    pirao. Nada disto aclara, nada pretende: ache cada um a

    sua rvore vorazmente nupcial, sem inquirir de um silncio

    que apenas responder mostrando o absurdo no absurdo,

    aludindo com a tcnica oblqua de um exemplo qualquer

    qualidade da aco, mesmo que a aco, no domnio dos

    silncios, seja verbal. Ache, na sua prpria cegueira, a vista

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    de uma paisagem transfigurada: a vida comea a ser real.

    Algures, aqui.

    Encontrava-me agora na ilha onde nascera; muitos anos

    de ausncia seguida, e estava ali. Para morrer? O meu centro,

    o mago, era esta terra que afinal eu no reconhecia comoesperava, com alvoroo, com uma emoo porventura amarga,

    difcil, mas no desta maneira recuada, como se eu no fosse

    vulnervel aos prestgios da minha tradio. Aquilo que a

    vista me dava, basaltos, espumas, corolas altas fremindo,

    corolas animais, e as ruas e casas, os nomes, evocaes de pes-soas, factos, instantes vertiginosos e misteriosos, o tormento

    e o jbilo, os pactos irrevogveis com o destino prprio, ali,

    naquele stio nenhuma dessas experincias, nada, ne-

    nhuma imagem confirmada pelo olhar, ou esse odor de vaza

    marinha, de jasmins, e o vento trazido das montanhas, nada

    era vivo, actual, reiterado, circulatrio, nada me reatava, um

    mpeto do esprito, uma religao; eram coisas, aquelas, con-

    feridas como realidades independentes de mim, arranjos do

    espao que uma espcie de indiferena lcida achava irrecu-

    sveis mas irrecuperveis na conscincia, a conscincia no

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    fora abalada. Eu no reconhecia o mundo, aquele. Poderia en-

    to morrer, insensvel, ali? S morremos de ns mesmos, e seexiste uma figura topogrfica, geogrfica, talvez seja esco-

    lhida ou imposta pela inspirao que dirige profundamente a

    nossa vida. Esta ilha no se integrava na minha ordem espiri-

    tual e fora nela contudo que eu arrecadara os ganhos funda-

    mentais, os primeiros, naquelas imagens, nos acontecimentospor assim dizer nascidos nesses lugares, nascidos deles, ali

    concebera como reitoria irreversvel e inocente aquilo que,

    com alguma veracidade, alguma retrica, alguma f, se cha-

    maria destino.

    Quase me apetece escrever que a alimentao mtica, aminha, se fizera daquela substncia mas os elementos tanto se

    haviam purificado, de tal maneira tinham sido dispostos, que

    constituam um universo autnomo, irreferencivel, abso-

    luto. Fora ali que eu nascera. Mas creio haver quem nasa de

    si prprio e significa talvez, isto, que nada tenho a ver com a

    histria, que a criei, eu, histria, passe a megalomania se o ;

    a histria a minha biografia e os pontos onde vida e criao

    tocam pontos da histria comum, pensando-se que h hist-

    ria comum, so contactos de que me sirvo no para a fico

    da minha existncia mas para a fico da histria que serve a

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    verdade biogrfica. Compreendi ento: cumprira-se aquilo

    que eu sempre desejara uma vida subtil, unida e invisvelque o fogo celular das imagens devorava. Era uma vida que

    absorvera o mundo e o abandonara depois, abandonara a sua

    realidade fragmentria. Era compacta e limpa. Gramatical.

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    dos trabalhos do mundo corrompida

    que servides carrega a minha vida

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