A autarquia como promotora da Política Educativa Local

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  I Isabel Marina Santos Ramos da Silva A autarquia como promotora da Política Educativa Local O caso de um Município Mestrado em Administração e Gestão Educacional Orientação: Professor Doutor António Sousa Fernandes Professora Doutora Maria Manuela Malheiro UNIVERSIDADE ABERTA LISBOA 2006 

Transcript of A autarquia como promotora da Política Educativa Local

Isabel Marina Santos Ramos da Silva

A autarquia como promotora da Poltica Educativa Local O caso de um Municpio

Mestrado em Administrao e Gesto Educacional

Orientao: Professor Doutor Antnio Sousa Fernandes Professora Doutora Maria Manuela Malheiro

UNIVERSIDADE ABERTA LISBOA 2006

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Agradecimentos

A ideia e intuito de executar este projecto no seria possvel sem a inestimvel colaborao, directa ou indirecta, de diversas pessoas que em diferentes etapas contriburam para a sua concretizao. A todos eles expresso o meu profundo reconhecimento. Professora Manuela Malheiro Ferreira e ao Professor Antnio Sousa Fernandes um especial agradecimento pela sua disponibilidade e apoio na orientao cientfica desta dissertao, e, sobretudo, pelos seus preciosos conselhos e incentivos. Ao Senhor Vereador da Educao da Cmara Municipal de Lils e aos tcnicos da Diviso de Educao, por terem possibilitado esta investigao, pelo empenhado e colaborao demonstrados e pela forma como acolheram este projecto. Aos Conselheiros Municipais de Educao de Lils, por terem aceite ser protagonistas nesta investigao, por se disponibilizarem sempre a colaborar e por acrescentarem pertinncia e sensibilidade aos seus testemunhos. minha amiga e colega, pelo apoio prestado e horas partilhadas com a reviso final do texto. Aos amigos e colegas da escola, pelo incentivo e por me terem aliviado de algumas tarefas. minha famlia, pela compreenso, motivao e partilha evidenciadas, especialmente neste perodo em que as minhas ausncias foram mais acentuadas.

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RESUMO Este estudo contextualiza-se nas tendncias de descentralizao do sistema educativo, recentemente difundidas aos pases europeus de tradio centralizadora, que originam uma reformulao dos papis da administrao educativa e permitem a emergncia de novos actores. O municpio assume-se como agente educativo, como entidade politicamente credvel e localmente sustentada e como catalisador das dinmicas educativas da cidade (local), sendo-lhe atribudo o papel de coordenao do Conselho Municipal de Educao (CME), no seio do qual definida a Poltica Local de Educao (PLE). Concebendo o local como espao privilegiado de promoo do desenvolvimento local e atendendo ao seu potencial educativo e perspectiva ecolgica da educao, a construo da PLE pressupe a criao de dinmicas e parcerias locais, que elegemos como objecto de estudo. Realizmos um estudo de caso qualitativo que visa conhecer a interveno municipal e compreender a concepo de PLE, os processos e dinmicas desenvolvidas por uma autarquia e pelos conselheiros municipais na sua promoo e construo. O estudo revelou uma convergncia de opinies crticas sobre a actual distribuio de competncias e favorveis a uma maior descentralizao educativa para o poder local, que embora seja limitada a alguns domnios marca uma evoluo no posicionamento dos actores educativos. Neste concelho a educao tem sido uma prioridade poltica, a sua aco elogiada, bastante diversificada, multifacetada e extravasa as suas competncias legais. A interveno educativa est integrada na poltica social da autarquia, atende s caractersticas locais e intenta promover o sucesso educativo e a igualdade de oportunidades. Os contributos do CME na construo da PLE so ainda diminutos, desmotivando alguns Conselheiros, que se sentem ouvintes. Outros, vem-se no estatuto de parceiros, realam o funcionamento regular do rgo, a atitude da autarquia e sugerem reformulaes para o optimizar. Acreditamos que com a incluso das mesmas, a coconstruo da PLE seja um pilar na edificao da identidade e desenvolvimento locais. Palavras - chave: Autarquia Local; Cidade-Educadora; Conselho Municipal de Educao; Descentralizao Educativa; Desenvolvimento Local; Poltica Local de Educao; Sociedade Educativa; Territorializao da Educao.

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ABSTRACT This study is to be considered within the context of the trends towards decentralisation of the educational system, which were recently diffused to the European countries of centralizing tradition, giving rise to a reformulation of the roles of the educational administration and allow the emergence of new actors. The local authority assumes itself as an educational agent, as an entity politically credible and locally sustained and as the catalyser of the town educational dynamics (local), being assigned the coordination role of the Municipal Council for Education (MCE), where is defined the Education Local Policy (ELP). Conceiving the local as a privileged space for the promotion of the local development and considering its educational potential and the ecological perspective of the education, the construction of the ELP presumes the creation of local dynamics and partnerships, being the subject of our study. We realised a qualitative case study aiming to know the municipal intervention and to understand the conception of the ELP, the procedures and dynamics developed by a local authority and by the municipal counsellors in its promotion and construction. The study revealed a convergence of critical opinions about the present distribution of competences and favourable to a larger educational decentralisation for the local authorities, that although limited to some domains indicates an evolution in the positioning of the educational actors. In this municipality, Education has been a political priority, its action is praised, diversified, multifeatured and goes beyond its legal competencies. The educational intervention is integrated in the social policy of the municipality, considers the local characteristics and aims at the promotion of the educational success and the equality of opportunities. The MCE contributes to the construction of the ELP are still reduced, nonmotivating for some of the Counsellors, that feel like listeners. Others see themselves with the statute of partners, highlight the regular functioning of the body, the attitude of the municipality and suggest reformulations to optimise it. We believe that with the inclusion of these, the ELP co-construction would be a pillar in the building up of the local identity and development. Keywords: Local Authority; Educating Cities; Municipal Council for Education; Educational Decentralization; Local Development; Education Local Policy; Educational Society; Territorial Administration of Education.

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Rsum Cette tude se situe dans le contexte des tendances vers la dcentralisation du systme ducatif, rcemment diffuses aux pays europens de tradition centralisatrice, qui donnent lieu une reformulation des rles de ladministration ducative et permettant lmergence de nouveaux acteurs. La municipalit sassume comme agent ducatif, comme entit politiquement crdible et localement soutenue, et comme catalyseur des dynamiques ducatives de la ville (locale), en lui tant attribu le rle de coordination du Conseil Municipal dEducation (CME), o est dfini la Politique Locale dEducation (PLE). En concevant le local comme espace privilgi de promotion du dveloppement local et considrant son potentiel ducatif et la perspective cologique de lducation, la construction de la PLE prsuppose la cration de dynamiques et de partenariats locaux, quon a lu comme objet dtude. On a ralis une tude de cas qualitatif visant connatre lintervention municipale et comprendre la conception de PLE, les procdures et les dynamiques dveloppes par une municipalit et par les conseillers municipaux vers sa promotion et sa construction. Ltude a rvle une convergence des opinions critiques sur la distribution actuelle des comptences et favorables une renforcement de la dcentralisation ducative pour le pouvoir local, bien que limite quelques domaines remarque une volution du positionnement des acteurs ducatifs. Dans cette mairie, lducation est une priorit politique, son action fait objet dloges, elle est assez diversifie, multifacette et extravase ses comptences lgales. Lintervention ducative est intgre dans la politique sociale de la mairie, fait attention aux caractristiques locales et vise promouvoir le succs ducatif et lgalit de chances. Les contributions du CME pour la construction de la PLE sont encore rduites, ce que dmotive quelques conseillers, qui se sentent comme des couteurs. Dautres, se voient dans le statut de partenaires, soulignent le fonctionnement rgulier de lorgane, lattitude de la mairie et suggrent des reformulations pour loptimiser. Nous croyons quavec linclusion de celles-ci, la coconstruction de la PLE serait un pilier dans l'dification de lentit et du dveloppement locaux. Mots cls: Administration locale, Ville - Educatrice; Conseil Municipal dEducation; Dcentralisation ducative; Dveloppement local; Politique locale dducation; Socit ducative; Territorialisation de lducation.

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NDICE GERALVOLUME I AGRADECIMENTOS . I NDICE GERAL ..... II NDICE DE FIGURAS E QUADROS ..... VI LISTA DE ABREVIATURAS... VII

INTRODUO Identificao da problemtica .......................................................................... 1 Opes e objectivos de investigao............................................................... 5 Desenvolvimento do estudo ............................................................................ 7

PRIMEIRA PARTE A PROBLEMTTICA ENQUADRAMENTO TERICO .................................. 9

CAPTULO I Percursos de descentralizao educativa ........................... 10 1 A emergncia de um novo paradigma ....................................................... 10 1.1 Evoluo da concepo de Escola e de Sociedade Educativa ................ 10 1.2 Alguns contributos da Investigao Educacional ..................................... 13 2 Tendncias europeias de descentralizao dos sistemas educativos... 17 2.1 Da centralizao autonomia: breve diferenciao conceptual .............. 17 2.2 Percursos de descentralizao educativa em alguns pases europeus de tradio centralizadora ............................................................................. 21 2.2.1 O caso Francs ................................................................................ 24 2.2.2 O caso Espanhol .............................................................................. 27 2.3 Os sentidos da(s) descentralizao(es) europeia(s): contributos para a anlise da situao portuguesa................................................................ 30 CAPTULO II O Poder Local e a interveno na educao ...................... 34 1 A emergncia do poder local em Portugal ................................................ 34

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1.1 Conceptualizao de autarquia local........................................................ 34 1.1.1 Enquadramento poltico-administrativo ............................................ 34 1.1.2 Na Constituio da Repblica Portuguesa....................................... 36 1.2 Do municpio Liberal ao Estado Novo ...................................................... 39 1.3 A Revoluo do 25 de Abril e o Renascimento Municipal ........................ 45 2 A consolidao do poder local e a sua interveno na educao: evoluo poltico-normativa ....................................................................... 47 2.1 De 1974 a 1986 contribuinte pblico das despesas educativas ............ 48 2.2 De 1986 a 1996 - parceiro social.............................................................. 54 2.3 Aps 1996 - agente educativo.................................................................. 58 CAPTULO III Poder Local, Desenvolvimento Local e Polticas Locais de Educao...................................................................................................... 65 1 Desenvolvimento Local e Polticas Locais de Educao......................... 65 1.1 O desenvolvimento local e a territorializao educativa........................... 65 1.2 Polticas educativas e Cidade Educadora ................................................ 71 1.3 A territorializao educativa e a administrao local da educao .......... 77 SEGUNDA PARTE A INVESTIGAO EMPRICA ........................................................................ 82

CAPTULO IV O estudo do caso fundamentao e procedimentos metodolgicos ............................................................................................. 83 1 Da problemtica aos objectivos da investigao...................................... 84 2 O estudo de caso de natureza qualitativa ................................................ 87 3 Seleco e delimitao do caso em estudo ............................................. 89 4 O percurso da investigao...................................................................... 92 4.1 Acesso ao campo de investigao ................................................... 92 4.2 As tcnicas de recolha e tratamento de dados - opes e procedimentos.................................................................................. 93 4.2.1 A observao................................................................................ 95 4.2.2 A entrevista................................................................................... 98 4.2.3 A anlise documental ................................................................. 102 4.2.4 A anlise de contedo ................................................................ 104 4.3 A validade do estudo...................................................................... 107 5 O contexto do estudo de caso caracterizao..................................... 108

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CAPTULO V Apresentao, anlise e discusso dos dados................ 113 1 Viso sistmica da Poltica Local de Educao .................................... 113 1.1 Conceptualizao de Poltica Local de Educao.................................. 114 1.1.1 Fundamentos subjacentes ............................................................. 114 1.1.2 Objectivos, abrangncia e interaces........................................... 116 1.2 As dinmicas locais: promoo, dinamizao e dificuldades ................. 120 1.3 Percepes sobre os modos de administrao...................................... 124 2 A Poltica Municipal de Educao do Concelho de Lils: uma abordagem global da Educao no local ................................................ 128 2.1 Estrutura funcional da Cmara Municipal - Diviso de Educao .......... 128 2.2 A interveno educativa municipal ......................................................... 132 2.2.1 A Educao prioridade e objectivos da interveno.................... 132 2.2.2 Aco Social Escolar...................................................................... 135 2.2.3 Gesto dos Transportes Escolares ................................................ 138 2.2.4 Gesto da Rede Escolar ................................................................ 140 2.2.5 Aco Scio-Pedaggica ............................................................... 143 2.2.6 Outras intervenes municipais no domnio educativo .................. 147 2.3 Percepes sobre a interveno autrquica .......................................... 150 2.4 Aces educativas da Junta de Freguesia............................................. 155 2.5 Relao entre a autarquia e entidades poltico-institucionais................. 157 3 Administrao Local da Poltica Educativa: o Conselho Municipal de Educao.................................................................................................... 164 3.1 Conselho Municipal de Educao: conceptualizao............................. 165 3.2 O Conselho Municipal de Educao e a Cmara Municipal................... 170 3.3 Os Conselheiros Municipais de Educao ............................................. 176 3.3.1 Papel e participao no Conselho Municipal de Educao ................. 176 3.3.2 Os representantes e os representados .......................................... 181 3.4 Modo de funcionamento e perspectivas futuras ..................................... 185 4 Da territorializao emergente territorializao decretada: reorganizao da Rede Escolar................................................................ 193 4.1 Da Carta Escolar Carta Educativa....................................................... 193 4.2 O agrupamento de escolas: nova realidade........................................... 199 Concluso ..................................................................................................... 205

BIBLIOGRAFIA ............................................................................................. 215

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LEGISLAO................................................................................................ 225

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NDICE DE FIGURAS E QUADROS

Figura 1 Habilitaes escolares no Concelho de Lils em 1991 e 2001 e em Portugal ...................................................................................................................................... 110 Figura 2 - Organograma da Cmara Municipal de Lils .............................................. 129 Figura 3 - Organograma da Diviso de Educao........................................................ 134

Quadro 1 - Esquematizao das observaes realizadas ................................................ 97 Quadro 2 Plano das entrevistas efectuadas................................................................ 100 Quadro 3 Documentao escrita consultada.............................................................. 103 Quadro 4 Temas emergentes da anlise de contedo dos dados recolhidos ............. 106 Quadro 5 Indicadores educativos e socio-econmicos no Concelho de Lils, na AML e em Portugal Continental ............................................................................................ 111 Quadro 6 - Evoluo do nmero de alunos que usufruem de auxlios econmicos e respectivos custos ......................................................................................................... 135 Quadro 7 Evoluo do nmero de alunos abrangidos pelo apoio alimentar e respectivos custos ......................................................................................................... 136 Quadro 8 Evoluo de ndices de desempenho do Servio de Apoio famlia ........ 137 Quadro 9 Competncias legais e opes da autarquia no mbito dos transportes escolares........................................................................................................................ 139 Quadro 10- Evoluo do nmero de alunos que beneficiam de transportes escolares e respectivos custos ......................................................................................................... 140 Quadro 11 Atribuies e competncias autrquicas no mbito da Gesto da Rede Escolar .......................................................................................................................... 141 Quadro 12 Intervenes municipais do reordenamento da rede escolar e nas condies fsicas dos equipamentos .............................................................................................. 142 Quadro 13 - Evoluo e caracterizao dos apoios a projectos de agentes educativos, no mbito da aco scio-pedaggica ............................................................................... 144 Quadro 14 Caracterizao dos apoios concedidos pela autarquia aos projectos escolares no ano lectivo 2004/2005.............................................................................. 148 Quadro 15 Participao dos Conselheiros nas reunies do CME ............................. 179

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LISTA DE ABREVIATURAS

AML ANMP AP CAE CE CEB CLE CM CME CRSE CS DRE EB1 EB2,3 EP EPLE ERA ES FEF IPSS JF JI LBSE LEAs LOGSE ME PEPT PIPSE PLE

rea Metropolitana de Lisboa Associao Nacional de Municpios Portugueses Associao de Pais Centro da rea Educativa Conselho Executivo Ciclo do Ensino Bsico Conselho Local de Educao Cmara Municipal Conselho Municipal de Educao Comisso da Reforma do Sistema Educativo Centro de Sade Direco Regional de Educao Escola Bsica de 1 ciclo Escola Bsica de 2 e 3 ciclos Ensino Particular Estabelecimento pblico local de ensino Education Reform Act Ensino Secundrio Fundo de Equilbrio Financeiro Instituies Particulares de Solidariedade Social Junta de Freguesia Jardim de Infncia Lei de Bases do Sistema Educativo Local Education Authorities Ley de Ordenacin General del Sistema Educativo Ministrio da Educao Programa de Educao para Todos Programa Interministerial de Promoo do Sucesso Educativo Poltica Local de Educao

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TEIP VE

Territrios Educativos de Interveno Prioritria Vereador da Educao

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Introduo

INTRODUO

Identificao da problemtica A ruptura com o paradigma centralizador, bem como a necessidade de reconceptualizar o papel do Estado, foram fortemente impulsionadas pela falncia do modelo de desenvolvimento assente no crescimento econmico, que se mostrou incapaz de responder satisfatoriamente aos problemas sociais emergentes e foi abalado por crises sucessivas. Ao nvel educativo, aps o advento da escola de massas diagnosticada por Coombs (1968), entre outros, a crise da escola, que abalou a concepo de Estado-Educador. O novo modelo que desponta caracteriza-se por uma viso integradora de desenvolvimento econmico, social, cultural e poltico; assenta na participao, na autonomia e na diversidade; apresenta um carcter sistmico que, partindo do local e atendendo aos seus recursos endgenos, estimula a interdependncia das vrias dimenses da realidade local e radica em pensar global e agir local (Amaro, 1996 e Ferreira, 1999)(1). um desenvolvimento local, integrado e sustentado, onde a importncia do espao local, como determinante da natureza das polticas e dosinstrumentos de desenvolvimento a utilizar (Cabrito, 1995: 136), fundamenta a adopo de

medidas de descentralizao administrativa, de territorializao das polticas educativas e legitima a existncia de polticas locais de educao. Nas ltimas dcadas do sculo XX assiste-se a uma tendncia de descentralizao das polticas educativas e de devoluo de poderes s estruturas locais, comum a(1)

Ao longo do trabalho, quando citamos vrios autores, optmos por utilizar o critrio da ordenao alfabtica do respectivo apelido.

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Introduo

diversos regimes democrticos, alguns dos quais com forte tradio centralizadora. A anlise s linhas de evoluo da administrao educativa de alguns pases, nomeadamente Frana e Espanha, permite encontrar analogias com os caminhos da descentralizao educativa portuguesa. Preservando a tradio centralizadora, semelhana do sistema francs, estes caminhos so por vezes induzidos centralmente, traduzindo uma delegao administrativa de competncias; outras vezes, correspondem a uma vontade e desejo comum, reivindicado e despoletado a nvel local ou regional, conotando-lhe, nessa medida, um sentido sociolgico de apropriao do territrio e de construo da sua autonomia. Nestes sistemas poltico-administrativos, e em confluncia com o novo modelo de desenvolvimento, necessria uma reconceptualizao do papel da escola, das suas finalidades, processos e solues educativas. As actuais exigncias da sociedade da informao e do conhecimento no se compadecem com a concepo unidimensional de escola servio local de estado, pelo contrrio, acentuam a imprescindibilidade do seu carcter pluridimensional (Formosinho, 1990). A escola dever-se- assumir como agentelocal de desenvolvimento (Cabrito, 1995) e inserir-se numa teia de complexidade

interaccional, com outros agentes, internos ou externos, numa lgica de mediao (Ferreira, 2005) que visa melhorar a qualidade de vida dos cidados e o bem-estar social. Neste quadro, e no seio de uma democracia participativa, a descentralizao administrativa, a policentrao educativa (Barroso, 1996c), a horizontalidade das relaes entre agentes educativos, a co-responsabilizao e a integrao so pilares indispensveis a este modelo de desenvolvimento e, mais concretamente, s polticas de territorializao educativa e de desenvolvimento local, cujos conceitos de autonomia, comunidade educativa, territrio educativo, participao, parceria e projecto educativo so estruturantes e assumem grande relevncia e actualidade, tendo proliferado na linguagem e na retrica educativa. Porm, pensar a educao, no contexto da sociedade contempornea implica ponderar as mutaes significativas no tempo, no espao e nos actores educativos. Pensar a educao, no centro do desenvolvimento tanto da pessoa humana como dascomunidades (Delors, 1996) pressupe a convocao de outros agentes educativos, a

percepo sobre a crescente distino entre tempo escolar e tempo educativo e a

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Introduo

constatao de que o espao escolar tendencialmente mais restrito que o espao educativo. A educao integral do Homem no se esgota na escola nem num momento da vida dos indivduos, pois contempla processos e momentos de educao formal, no formal e informal, visando o desenvolvimento e a formao global e permanente dos cidados, numa perspectiva de educao ao longo da vida. na confluncia destes conceitos e influncias que radica a concepo actual da nossa sociedade, a sociedade educativa. Deste modo, a edificao da sociedade educativa tem subjacente esta perspectiva ecolgica (Canrio, 1998) da educao, ao considerar que todos os espaos, tempos e agentes educativos proporcionam, em permanncia, aprendizagens. Aproxima-se tambm da concepo da ideia-projecto de Cidade-Educadora (Trilla-Bernet, 1990 e 1993), ao conceber a sociedade como um recurso, um agente e um contedo de educao; ao reforar o potencial educativo do espao local e ao fomentar a criao de sinergias entre diferentes nveis, modalidades e parceiros educativos. Neste contexto, a construo de uma poltica educativa estruturada a partir do local, onde a cidade no seja apenas um recurso (pedagogia da cidade), mas se constitua como agente educativo (cidade como pedagogia - Trilla-Bernet, 1990), impe a elaborao conjunta de um projecto educativo integral e integrado (Pinto, 2001) e abre uma nova dimenso administrao local da educao. No seio do Movimento das Cidades Educadoras, atribudo ao municpio o papel de coordenao e de administrao relacional, deixando de ser um mero programador para seconverter em promotor de dinmicas sociais (Caballo-Villar, 2001: 32). Tambm Fernandes

(2004) considera sintomtico terem sido os municpios a constatar e a promover as potencialidades educadoras da cidade e no as escolas ou outras instituies locais. Nesse sentido, o municpio assume-se como catalisador de pessoas e recursos, como coordenador e promotor de uma poltica educativa local e deve, portanto, superar o seu papel tradicional de mero executor local da poltica educativa nacional. Ao analisar a situao portuguesa, Fernandes (2005b: 201) afirma que se esto a verificar evolues significativas nas polticas educativas municipais, as quais reflectem

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Introduo

a importncia das autarquias(2) na educao, onde esto progressivamente mais envolvidas em intervenes autnomas, embora este seja ainda um campo pouco explorado no que respeita a potencialidades educativas. As investigaes empricas de Guedes (2002), Prata (2002) e Taipas (2002) corroboram esta opinio e concluem que os municpios, enquanto rgos de poder poltico local, se assumem como agentes locais de desenvolvimento, pois antecipam e extravasam as suas competncias legais e dinamizam um vasto leque de intervenes e projectos educativos. Abre-se, assim, um vasto campo de investigao e de reflexo sobre as prticas educativas municipais, cujos sentidos importa aprofundar e caracterizar, por forma a aquilatar da existncia de uma poltica educativa local e, no caso de esta existir, percepcionar a importncia e a concepo em que se fundamenta e qual a sua relao com o desenvolvimento local. Foi esta a problemtica que elegemos como objecto de investigao. Em relao situao portuguesa, a actualidade e pertinncia desta temtica advm deste enquadramento terico, concomitantemente com a consolidao das prticas educativas municipais e a afirmao do papel do poder local - expressas nas investigaes empricas - e, ainda, com uma evoluo da conscincia poltica, reflectida nas alteraes ao quadro normativo. com a aprovao do Decreto-Lei N. 115-A/98 de 4 de Maio (Regime de Autonomia, Administrao e Gesto dos estabelecimentos de educao pr-escolar e dos ensinos bsico e secundrio) e do Decreto-Lei N. 7/2003 de 15 de Janeiro (regulamenta os Conselhos Municipais de Educao e o processo de elaborao da Carta Educativa) que se reconhece o estatuto pblico do poder local na educao. Estes decretos evidenciam tnues alteraes no papel do Estado e possibilitam ao poder local a reafirmao do seu papel de agente educativo, quer na territorializao das polticas educativas, quer na construo de um projecto educativo local. A criao do Conselho Municipal de Educao, enquanto estrutura de coordenao da administrao educativa, reveladora de uma viso sistmica, dinmica e integradora da gesto educativa a nvel local e assenta nas parcerias locais, nas relaes de horizontalidade e na criao de redes(2)

Durante o trabalho utilizar-se-o as expresses municpio, autarquia, autarquia local ou poder local com a mesma acepo e reportam-se tipologia de autarquia local - municpio. Sempre que nos referimos categoria de autarquia local, freguesia, utilizaremos exclusivamente essa designao.

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entre os agentes da comunidade educativa. Esta evoluo de perspectiva poder traduzir uma mudana de paradigma. So, assim, reconhecidas e evidenciadas as potencialidades educativas do espao local, assistindo-se emergncia de novos parceiros educativos, aos quais atribudo o papel de coordenao e definio da poltica educativa local. Dado o seu carcter recente, esta problemtica ainda no foi alvo de estudos empricos, contudo, e pelo anteriormente exposto, urge conhecer e investigar. Por isso, definimos como questo central da investigao a seguinte interrogao:

De que forma a autarquia local, nas suas dinmicas internas e externas, desenvolve uma aco promotora da poltica local de educao?

Opes e objectivos de investigao Detectada a oportunidade de investigao, a opo por esta temtica justifica-se, tambm, pela sua adequao e relevncia no mbito da Administrao e Gesto Educacional, assim como pela emergncia do tema que, no actual enquadramento conceptual, constitui uma problemtica de grande interesse, pertinncia e valor, no s ao nvel do desenvolvimento local, mas tambm numa perspectiva nacional. Por outro lado, o reduzido nmero de investigaes sobre a interveno municipal no domnio educativo e a inexistncia de estudos sobre o Conselho Municipal de Educao reforam as razes desta escolha. Acrescem, ainda, motivaes e convices pessoais, resultantes da nossa formao acadmica de base - em planeamento e desenvolvimento regional - e do nosso trajecto profissional enquanto professora e membro de um rgo de gesto de uma escola bsica de 2 e 3 ciclos. Este percurso permitiu-nos vivenciar diversas perspectivas e diferentes papis no domnio educacional e constatar que as autarquias, em inmeras situaes, extravasam as suas competncias legais. Acreditamos, por isso, que o poder local constitui um parceiro de extrema importncia na construo da poltica educativa e que, em interaco com os restantes agentes educativos locais, potenciar uma melhoria da qualidade educativa e valorizar o local

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Introduo

na educao formal e no formal, configurando-se, nessa medida, como uma instncia impulsionadora e promotora do desenvolvimento local. O estudo a realizar insere-se no paradigma qualitativo e adopta a metodologia de estudo de caso, visando a compreenso, em profundidade, da realidade educativa municipal, entendida na sua globalidade e inserida no seu contexto. Com o objectivo de descrever, compreender e interpretar os processos de construo e promoo da Poltica Local de Educao, na complexidade da interseco dos diversos factores e actores presentes, optmos por uma investigao naturalstica, recolhendo as percepes e representaes de agentes locais sobre este processo e procurando captar as diversas interpretaes e expectativas sobre a realidade em estudo. Nessa medida, o mtodo de pesquisa e recolha de dados mobilizado para esta investigao contempla as tcnicas da observao naturalstica, da entrevista e da anlise documental e, para o tratamento de dados, a tcnica da anlise de contedo. Optmos por definir, como contexto de estudo, um municpio de grandes dimenses, da rea Metropolitana de Lisboa e com caractersticas geogrficas, demogrficas, sociais e econmicas diferenciadas e que, em congruncia com os requisitos da investigao, tem em funcionamento o Conselho Municipal de Educao. O objecto de estudo centra-se na promoo da Poltica Local de Educao, e porque a sua coordenao compete Cmara Municipal e tambm comunidade educativa, este trabalho focalizar-se- no s no Conselho Municipal de Educao, como na prpria edilidade. Deste modo, a investigao tem como objectivos: - comparar a evoluo da descentralizao das polticas educativas em Portugal com a de outros pases europeus de tradio centralizadora (Frana e Espanha); - caracterizar a interveno da autarquia no domnio da educao, em termos legais e reais. - conhecer as concepes e representaes dos actores locais sobre a Poltica Educativa Local e sua administrao; - analisar interaces e modos de coordenao local no Conselho Municipal de Educao; - sugerir contributos para a concepo e promoo da poltica educativa local.

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Desenvolvimento do estudo A presente dissertao constitui-se em dois volumes e apresenta a estrutura que passamos a explicitar. O Volume I est subdividido em duas partes: a primeira, relativa ao enquadramento terico da problemtica, composta por trs captulos e a segunda, com dois captulos, respeita investigao emprica. No captulo I procedemos a um enquadramento terico das polticas de descentralizao educativa. Partimos da emergncia de um novo paradigma, designadamente no que concerne evoluo da concepo de escola, comunidade educativa e sociedade educativa e referencimos os contributos mais relevantes da Investigao Educacional que nortearam essa mudana de paradigma e nos quais se fundamentam as tendncias de descentralizao educativa. Num segundo ponto, apresentmos uma breve clarificao de conceitos estruturantes desta temtica (centralizao, desconcentrao, descentralizao e autonomia) e, em seguida, tramos uma panormica dos percursos de descentralizao dos sistemas educativos europeus, com especial enfoque para os casos Francs e Espanhol, na expectativa de que estes apresentem contributos para a anlise da situao portuguesa. O captulo II respeita emergncia e consolidao do poder local em Portugal e evoluo da sua interveno no domnio educativo. Num primeiro ponto, analismos a conceptualizao de autarquia local, evidenciando a relao entre a sua acepo e o sistema poltico-administrativo em que se insere e analisando o conceito e os princpios subjacentes consagrados na Constituio da Repblica Portuguesa. Efectumos, em seguida, uma evoluo histrica do municipalismo em Portugal, desde a poca liberal at revoluo de 25 de Abril de 1974. O avigoramento do poder local que posteriormente se verificou focado num segundo ponto e tem como quadro de referncia a evoluo poltico-normativa, cuja anlise diacrnica, com base na classificao de Fernandes (2000a), permite assinalar trs fases/papis da interveno municipal na educao. No captulo III so discutidas as temticas do poder local, do desenvolvimento local e das polticas locais de educao. Analismos as relaes deste trinmio luz do

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Introduo

modelo de desenvolvimento local e das polticas de territorializao educativa, reflectindo sobre a polissemia do conceito de territrio educativo. Considermos as intencionalidades educadoras em torno da cidade, enquanto ideia-projecto de Cidade Educadora e fundamento do Movimento das Cidades Educadoras. Tambm, pondermos o estatuto emergente do municpio enquanto catalisador, integrador e mediador local das polticas educativas e, ainda, do Conselho Municipal de Educao, enquanto centro nevrlgico do desenvolvimento territorial, das polticas educativas locais e do bem-estar social. O captulo IV, incio da segunda parte deste volume, apresenta a fundamentao e descrio das opes metodolgicas e o percurso heurstico deste trabalho, onde se incluem as questes de investigao, os objectivos do estudo, os instrumentos de pesquisa, os procedimentos de recolha da informao, as tcnicas e critrios de tratamento, organizao e anlise dos dados e, tambm, a validao do estudo. Num segundo ponto, justificmos a seleco do campo de investigao e contextualizmos o caso em estudo, apresentando uma breve caracterizao do objecto de estudo. No captulo V efectumos a apresentao, anlise e discusso dos dados, organizados em torno dos quatro temas emergentes: Viso sistmica da Poltica Local de Educao; A Poltica Municipal de Educao do Concelho de Lils: uma abordagem global da educao no local; Administrao local da Poltica Educativa: o Conselho Municipal de Educao e Da territorializao emergente territorializao decretada: reorganizao da rede escolar. Finalizmos o trabalho com um ponto de concluses, no qual tecemos algumas consideraes finais e recomendaes relativas Poltica Local de Educao de Lils e apresentamos sugestes para futuras investigaes. O Volume II constitui-se como uma compilao dos dados da investigao, incluindo documentao sobre as vrias fases, as informaes recolhidas, o tratamento e a categorizao dos dados.

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PRIMEIRA PARTE

A PROBLEMTTICA ENQUADRAMENTO TERICO

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Captulo I Percursos de descentralizao educativa

CAPTULO I Percursos de descentralizao educativa

11.1

A emergncia de um novo paradigma

Evoluo da concepo de Escola e de Sociedade Educativa

Se durante muito tempo se considerou a educao como um processo pelo qual as geraes mais velhas preparavam as mais jovens, atravs da transmisso de conhecimentos e de aprendizagens para o desempenho de determinados papis sociais, actualmente o processo educativo muito mais complexo. A sociedade contempornea assiste a um processo de mudana acelerada: a planetarizao dos problemas sociais, o agravamento das disparidades do crescimento econmico, o declnio da autoridade do Estado, uma nova ordem internacional, uma crescente globalizao e uma maior dependncia da sociedade de informao e do conhecimento. A educao, na sua viso mais global, o elemento fundamental para a construo da sociedade de informao. O seu papel estratgico no desenvolvimento integral das sociedades hoje largamente reconhecido, assumindo-se cada vez mais como uma das alavancas para o desenvolvimento das sociedades e dos indivduos (Carneiro, 2001; Delors, 1996). As crescentes exigncias da sociedade e das inovaes tecnolgicas implicam uma nova viso da educao e da formao, impondo reequacionar os paradigmas vigentes. A viso tradicional da educao de se cingir escola, onde o professor o nico elemento transmissor de conhecimentos que so adquiridos durante uma fase inicial da vida de um cidado, hoje unanimemente contestada. A educao no se esgota na escola, nem num momento da vida dos indivduos, um processo permanente e que ocorre ao longo da vida, tal como afirma Jacques Delors:No basta, de facto, que cada um acumule no comeo da vida uma determinada quantidade de conhecimentos de que possa abastecer-se indefinidamente. , antes,

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necessrio estar altura de aproveitar e explorar, do comeo ao fim da vida, todas as ocasies de actualizar, aprofundar e enriquecer esses conhecimentos, e de se adaptar a um mundo em mudana. (1996: 77)

Esta viso prospectiva da educao, que sublinha o conceito de educao ao longo da vida (enquanto processo contnuo e permanente), evidencia tambm a interdependncia entre a educao formal e no formal, reconhecendo que as suas fronteiras esto cada vez mais esbatidas, numa sociedade perspectivada para a informao e para o conhecimento, que se pretende seja cada vez mais uma sociedade educativa. Efectivamente, a educao e a sociedade condicionam-se mutuamente. O ritmo de evoluo de uma determina o ritmo de evoluo da outra. Como exprime Philippe Perrenoud A escola somos ns, portanto: um sistema educativo no pode ser mais virtuosodo que a sociedade que lhe confere a sua legitimidade e os seus recursos (2002: 13-14). As

grandes questes e desafios da vida social repercutem-se na educao e exigem dela respostas e reaces apropriadas e oportunas. Na sociedade do conhecimento, necessrio que os indivduos aprendam a aprender. Neste sentido, hoje, exigida educao uma atitude pluralista que fomente o contacto e a aprendizagem atravs de uma diversidade de situaes, sob pena de no conseguir cumprir a sua funo educadora e socializadora. De acordo com o Relatrio da Unesco, que enfatiza uma concepo humanista da vida em sociedade, a educao deve, pois, organizar-se em torno de quatro aprendizagens fundamentais que constituem para cada pessoa os pilares do conhecimento: aprender a conhecer, ou seja, adquirir as ferramentas da compreenso; aprender a fazer, por forma a poder intervir no meio envolvente; aprender a viver juntos, no cumprimento da vertente socializadora e socializante da educao dos indivduos; e tambm aprender a ser, que integra as anteriores e permite que cada um se conhea e se compreenda melhor. Tambm Paulo Freire, ao enunciar que cada indivduo deve ser actor da sua prpria histria, insere-se nesta concepo abrangente, que visa forjar um projecto de sociedade integradora: sociedade do conhecimento, sociedade educativa e sociedade democrtica. Por forma a operacionalizar estes pressupostos, a educao dever promover a aquisio de saberes e competncias essenciais face complexidade do mundo,

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auxiliando o indivduo a estruturar a sua diversidade de vivncias e respectivo significado. Ou seja, permitir que cada um aprenda a aprender significativamente, sendo um sujeito activo na construo do conhecimento, pois este, enquanto processo dinmico, emerge das interaces sociais que, ao serem fomentadas e diversificadas, o estimulam. Neste quadro, o conceito de escola como unidade administrativa de servio pblico, enquanto cpia miniaturada da administrao central, d lugar a uma nova concepo de escola: a escola comunidade-educativa. A escola abre-se sociedade e interage com os seus intervenientes. Utilizando as concepes apresentadas por Formosinho (1990), escola servio local do Estado e unidimensional sucede a escola comunidade-educativa e pluridimensional. Comungando tambm desta perspectiva, Sarmento e Ferreira definem as organizaes que se constituem como comunidades educativasno [por] um modelo aprioristicamente concebido, mas antes [pelas] relaes e interaces sociais que as substanciam. Ao centrar na natureza das interaces o trao distintivo das comunidades educativas revela-se a centralidade da aco e dos actores na realizao do processo educativo, postula-se a horizontalidade das relaes de poder e de comunicao e sustenta-se a emergncia potencialmente emancipatria destas dinmicas de construo partilhada de valores e objectivos, a partir da comunicao intersubjectiva assente num sentimento de pertena colectiva. (1995a: 101)

Neste sentido, esta concepo de escola implica o seu reconhecimento enquanto organizao sistmica, comunidade educativa e construo social e faz emergir, entre outros aspectos, o reforo da autonomia das escolas, caracterizado pela existncia de uma rede de interaces (com o exterior e no seu interior), onde a autonomia da escola intrnseca prpria organizao enquanto unidade, ou seja, como factor de identidade de cada sistema/escola e cultura organizacional prpria. Dotada de autonomia e enquanto organizao singular, a escola elabora o seu projecto educativo prprio, define os seus regulamentos e elege os seus rgos de gesto e direco. Valoriza-se assim o seu papel, a sua aco, a aco e participao dos seus intervenientes, no como um dado natural e abstracto, mas sim como um construdo social de partilha e realizao colectiva de mbito local. A edificao da escola como comunidade educativa pressupe tambm o alargamento das suas fronteiras: delimitada pelos intervenientes

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internos no estabelecimento de ensino, como os professores, alunos e funcionrios (comunidade escolar), amplia-se a outros intervenientes externos, como os pais e encarregados de educao, as famlias, as autarquias locais, organizaes e associaes econmicas, culturais, sociais e cientficas locais ou interessadas no processo educativo local (comunidade educativa). Assim, e porque a comunidade educativa no se compadece com as fronteiras fsicas e legais da comunidade escolar, antes alarga de forma ampla e fluda esses limites a todos os intervenientes no processo educativo, passa portanto, a ser delimitada por uma fronteira de mbito social (Formosinho, 1989: 33ss). Subjacente a esta concepo de escola e definio de comunidade educativa, evidencia-se a dimenso democrtica da escola, com nfase na participao dos diversos actores, na cidadania, na igualdade e horizontalidade das relaes de poder, na autonomia da escola. A sua operacionalizao pressupe uma poltica educativa de transferncia de poderes para a escola, onde esta deixa de ser encarada como uma unidade administrativa do sistema central, para ser reconhecida como unidade autnoma inserida num contexto local. Em alguns pases, a partir dos anos 80, estas polticas de descentralizao e reforo da autonomia das escolas desenvolveram-se, enquadradas em reformas mais vastas de reorganizao poltico-administrativa, originando uma reformulao de papis entre a administrao central ou regional e o poder local, ou seja, exigindo uma reconceptualizao do papel da escola no seio da estrutura do sistema educativo, o que desencadeou tenses, conflitos, negociao de interesses e margens de incerteza e indefinio.

1.2 Alguns contributos da Investigao Educacional Face, tambm, aos novos papis atribudos Escola, o quadro conceptual foi sendo progressivamente ampliado, fruto dos contributos trazidos por outras cincias sociais. no mbito das abordagens interaccionistas que se enquadram os caminhos percorridos que levaram a Instruo Educao; a Pedagogia s Cincias da Educao; a Didctica ao Desenvolvimento Curricular e, a um outro nvel, o centralismo ao localismo.

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A emergncia desta concepo de escola encontra fundamentao nos resultados e contributos da Investigao sobre a Administrao Educacional, na medida em que a escola enquanto objecto social est intrinsecamente relacionada com a escola enquanto objecto cientfico (e vice-versa). No campo das Cincias da Educao, desde os anos setenta, a investigao comeou a questionar a viso clssica do determinismo sociolgico e entre o vaivm das anlises a nvel macro (centradas no sistema educativo) e as abordagens micro (centradas na sala de aula), emerge uma nova abordagem sociolgica das organizaes escolares, que privilegia um nvel meso de compreenso e de interveno (Nvoa, 1992: 15). A escola comea a ser o objecto de investigao, enquanto organizao assume-se como uma espcie de entre-dois onde se exprime o debate educativo e serealiza a aco pedaggica. (...) Hoje, emerge no universo das Cincias da Educao uma meso-abordagem, que procura colmatar certas lacunas das investigaes precedentes. Trata-se de um enfoque particular sobre a realidade educativa que valoriza as dimenses contextuais e ecolgicas, procurando que as perspectivas mais gerais e mais particulares sejam vistas pelo prisma do trabalho interno das organizaes escolares. (ibid: 20)

Das primeiras contribuies nesse sentido, realou-se o movimento da Escola de Chicago que, inserindo-se numa corrente interaccionista, elaborou o estudo da cultura e ritual de escola. Tambm nos EUA, o relatrio Coleman, publicado em 1966, ao concluir que o grau de sucesso dos alunos estava intimamente relacionado com a sua origem scio-cultural, comprovou que a influncia da escola no sucesso dos alunos era reduzida. Este relatrio constituiu um ponto de partida para a identificao da escola como objecto de estudo, tendo despoletado reflexes sobre os factores condicionantes e sobre o efeito escola (Macedo, 1995). Na dcada seguinte, de salientar o movimento das escolas eficazes que, numa primeira fase, procedeu identificao e inventariao dos factores de eficcia das escolas, onde se destacou o trabalho de Edmonds (1979), e que, em seguida comparou o desempenho e a eficcia entre diferentes escolas. Posteriormente, numa perspectiva de compreenso e interveno, os professores aderem aos estudos realizados e conjuntamente com projectos de investigao-aco passa-se, no incio dos anos 80, para uma fase de criao de escolas mais eficazes (Nvoa, 1992).

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Tal como o autor reala, um dos principais contributos do movimento das escolas eficazes a co-responsabilizao dos diferentes actores educativos (professores, alunos, pais,comunidades), incentivando os espaos de participao e os dispositivos de partenariado ao nvel local. Simultaneamente, procura-se que as escolas integrem funes de concepo, de avaliao e de inovao, assumindo como uma das suas principais tarefas o trabalho de pensar o trabalho (cf. Mintzberg, 1983) (ibid: 24)

No mbito da sociologia das organizaes, Katz e Kahn (1966) contrariaram as teorias clssicas da administrao, ao conclurem que as organizaes no eram sistemas fechados, mas sim sistemas abertos que mantinham uma rede de relaes com o seu ambiente. Tambm Crozier (1977) e Mintzberg (1983) aprofundam estes estudos e comprovam que, mesmo em sistemas organizacionais centralizados, existem sempre margens de autonomia que os seus actores podem explorar. Posteriormente, foram vrios os contributos de socilogos, que aplicaram estas anlises organizacionais organizao escola e ao sistema educativo. A questo da centralidade da escola cruza-se, ainda, com outros contributos e investigaes sociolgicas sobre o (re)aparecimento e (re)valorizao das formas e relaes comunitrias. Nesse contexto, so de realar os trabalhos de John Dewey no incio do sculo. Este filsofo concebe a escola como uma comunidade em miniatura, como um embrio da sociedade onde, atravs das mltiplas relaes intra e inter-grupos, se favorece a aprendizagem e se facilita a socializao. Portanto, preconiza uma escola aberta, activa, de organizao democrtica, com grande aproximao sociedade e (s) sua(s) realidade(s). Posteriormente, os movimentos da Escola Nova de Dcroly e Montessori, entre outros e da Escola Moderna, de Freinet, incluram e difundiram alguns dos seus princpios educacionais. A evoluo da investigao educacional no se reflectiu em termos de poder poltico, at aos anos 80. nesse perodo, e em resposta crise da escola, que as orientaes polticas se comeam a aproximar dos resultados das investigaes, verificando-se uma vaga reformadora em diversos pases.

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No final dos anos 70 assiste-se a uma crise mundial dos sistemas educativos, perante a falncia do modelo de desenvolvimento econmico dos anos 50 e 60, a reduo dos financiamentos pblicos, as dificuldades da massificao do ensino e de garantir igualdade de oportunidades, as rpidas mudanas decorrentes da sociedade da informao e ainda a exigncia de maiores qualificaes ao nvel da formao e educao. Ocasionam assim, em diversos pases, as reformas educativas da dcada de 80. Nas palavras de Sarmento e Ferreira (1995b: 94):(...) tal como no nivel societal a autonomia crescente da ideia comunitria resultante da crise do modo de regulao social dominante, a ideia de comunidade educativa filha da crise do modo de funcionamento e controlo dos sistemas educativos, e, mais especificamente, do modelo organizacional de escola que o Iluminismo veio a conceber e construir, enquanto modelo pblico, no fim do sculo XVIII, e que foi regulamentado e administrativamente estruturado pelo Liberalismo durante o sculo XIX, permanecendo estruturalmente quase intacto at aos nossos dias, enquanto modelo dominante (Cf. Fernandes, 1992a e Barroso, 1991). (sublinhado nosso)

Perante a falncia do Estado-Educador, que advm do Iluminismo, estas reformas educativas intentam a transformao da escola em comunidades de aprendizagem, de trabalho e de socializao. Inserem-se nas polticas de descentralizao dos sistemas educativos e assentam no reforo da participao, no actor, no local, no desenvolvimento organizacional da escola, na gesto centrada na escola e na modernizao da educao, visando a melhoria da qualidade e eficcia do ensino. Em suma, as abordagens educativas macro-sistmicas deram lugar s polticas sobre aescola e/ou polticas de escola, o que correspondeu a deixar de entender a escola

como locus de reproduo normativa, para a reconhecer como locus de produo, (Lima, 1992) e implicou a reconceptualizao do seu modelo organizacional (Sarmento e Ferreira, 1995b), que visa o aumento da autonomia das escolas, uma maior horizontalidade nas relaes de poder e a promoo da participao e cooperao dos diversos actores educativos. Em Portugal, a concepo de escola comunidade educativa encontra-se subjacente na Lei de Bases do Sistema Educativo (LBSE), Lei n 46/86, de 14 de Outubro) e enquadra-se no modelo poltico-administrativo de democracia participativa

descentralizada, definido na Constituio da Repblica. Mas foi no mbito da Reforma

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do Sistema Educativo, nomeadamente na proposta elaborada pela Comisso da Reforma do Sistema Educativo (CRSE), que teve a sua maior expresso. Este grupo de trabalho, constitudo pelos professores Joo Formosinho, Antnio Sousa Fernandes e Licnio Lima, da Universidade do Minho, elaborou vrios documentos preparatrios e, aps a sua apresentao, discusso pblica e negociao com os parceiros sociais e pedaggicos, editou um relatrio final da sua proposta (CRSE, 1988a), que tinha como concepo norteadora a escola como comunidade educativa. Nestes documentos, entre outras, encontra-se tambm uma proposta de reorganizao funcional das estruturas de administrao central, regional e local do sistema educativo.

2 Tendncias europeias de descentralizao dos sistemas educativos2.1 Da centralizao autonomia: breve diferenciao conceptual

A redefinio do papel do Estado implica a reorganizao de funes, ou a transferncia de poderes e competncias para outras instituies, originando formas de centralizao, desconcentrao, descentralizao ou autonomia, que variam mediante a forma como so repartidas as responsabilidades entre os intervenientes do sistema organizacional. Dado que so conceitos polissmicos (com diferentes acepes se estiver a ser utilizada num sentido mais amplo ou mais restrito; no plano jurdico ou no plano poltico-administrativo(3)), apresentamos sucintamente a definio dos conceitos de centralizao, desconcentrao, descentralizao e autonomia por ns assumida. Assim, no plano poltico-administrativo: - a centralizao corresponde concentrao do poder de deciso nas estruturas de topo da administrao estatal. Esta implica a existncia de uma estrutura hierrquica vertical, onde as estruturas locais do Estado se limitam a executar as ordens e instrues recebidas dos servios centrais.

(3)

Ver entre outros: Amaral, 1994: 693ss; Fernandes, 2005: 53-63; Moreira, 1997: 69ss

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Num sistema educativo cuja organizao administrativa seja centralizada, o poder de deciso e as funes de definio e planificao do sistema educativo esto focalizadas no Ministrio e os restantes servios, tal como as escolas, constituem aquiloque os autores chamam administrao perifrica do Estado (Caupers, Ferrer) ou servio local do Estado (Formosinho) pois so apenas prolongamentos locais da administrao central sem autonomia administrativa prpria. (Fernandes, 2005a: 55). Os rgos de gesto das escolas

(ou agrupamentos) esto na dependncia hierrquica do poder central (Ministrio), perante quem respondem. - a desconcentrao diz respeito ao processo de delegao de competncias, normalmente executivas e administrativas, de um rgo da administrao central do Estado para outros rgos sob a sua dependncia. Tal como nos sistemas de organizao administrativa centralizada, tambm nos de organizao desconcentrada os poderes de deciso poltica, legislativa e jurdica esto concentrados a nvel central e mantm-se a estrutura hierrquica. , portanto, uma delegao de competncias limitada, pois os poderes so delegados, logo, no so prprios, so restritos. No caso do poder ser delegado pelo prprio (e no por fora de lei), estes poderes so ainda passveis de serem removidos ou alterados em qualquer ocasio. A desconcentrao pode assumir duas formas: territorial ou geogrfica e tcnica ou institucional. No sistema educativo, as Direces Regionais de Educao so rgos desconcentrados da administrao central, na medida em que correspondem a entidades de mbito territorial (regional) que foram alvo de transferncia de funes. So, no entanto, rgos hierarquicamente dependentes do Ministrio da Educao (ME). - a descentralizao consiste no processo de transferncia de competncias do Estado para entidades independentes do Estado e com poderes de deciso autnomos, designadamente as autarquias locais. Como refere Gournay (1978, cit. por Fernandes, 2005a: 57) o exerccio de certas misses administrativas confiado a agentes que dependemno do governo, mas de colgios que tiram a sua autoridade do facto de representarem uma parte da populao. Assim, a descentralizao caracteriza-se pelo reconhecimento de

interesses prprios de uma comunidade, que se identifica pela pertena ao mesmo territrio ou pela partilha de interesses e objectivos comuns; implica que a gesto desses

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interesses seja efectuada por um dos seus elementos, eleito entre os seus pares; e ainda pelo facto de constituir uma organizao administrativa independente e no subordinada hierarquicamente a outro rgo. A descentralizao pode assumir duas formas: territorial (transferncia de amplas funes, mas de mbito territorial delimitado, como por exemplo as autarquias locais) e funcional ou institucional(4) (quando as funes transferidas dizem respeito a uma instituio, esto inerentes ao cumprimento de uma misso ou um servio especifico, como so exemplo os institutos pblicos). Parece-nos pertinente salientar que, ao longo deste trabalho, o conceito de descentralizao por ns assumido ser sob a perspectiva poltico-administrativa, ou seja, no sentido e como sinnimo de auto-administrao e no como auto-governo(5). Esta clarificao prende-se com a distino de descentralizao num plano jurdico e num plano poltico-administrativo, uma vez que pode haver descentralizao num plano jurdico e no haver descentralizao em sentido poltico-administrativo. Estamos perante uma descentralizao em sentido jurdico quando as funes e tarefas so desempenhadas pelo Estado e por outras entidades, por exemplo, as autarquias locais. Contudo, se os rgos das autarquias locais forem nomeados e demitidos pelo Estado, a ele devem obedincia ou se sob eles houver uma forte tutela administrativa central, estamos perante uma centralizao em termos poltico-administrativos (Amaral, 1994). Esta situao ocorreu em Portugal durante a vigncia da Constituio de 1933, como veremos adiante (Captulo II, ponto 1.2). Nesse perodo, sob a capa da descentralizao (jurdica), havia um sistema fortemente centralizado (poltico-administrativamente)(6). De igual modo, a escola (na concepo de comunidade educativa), embora dotada de rgos de direco e gesto prprios, eleitos pela comunidade local, corresponde a uma forma de administrao indirecta do Estado, pois a escola mantm a dependncia estatal e prossegue os seus fins. No obstante, registam-se alguns sinais tnues de descentralizaoDiogo Freitas do Amaral reconhece que esta a terminologia frequentemente utilizada, contudo considera mais adequada a designao de descentralizao para as formas de descentralizao territorial e de devoluo de poderes para os casos da descentralizao funcional ou institucional. (1994: 697 e 713ss) (5) Este conceito implica tambm a transferncia de poderes no plano poltico e legislativo. Em Portugal apenas se aplica s Regies Autnomas dos Aores e Madeira, que no esto includas no objecto de estudo. (6) Nesse sentido, J. Batista Machado - Participao e Descentralizao, Democratizao e Neutralidade na Constituio de 1976, Coimbra: Almedina, 1982, p.28 - afirma que a trave mestra da descentralizao a eleio dos rgos deliberativos e executivos (cit. S, 2000: 22)(4)

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administrativa, por se comear a reconhecer a existncia de interesses prprios da comunidade e a valorizar a participao das entidades locais na vida da escola. Estes sinais podero ainda ser reforados, de acordo com a capacidade que os intervenientes possurem para aproveitar e alargar as suas margens de autonomia. Optmos por no diferenciar a descentralizao poltica de descentralizao administrativa, porquanto partilharmos da opinio expressa por Fernandes (2005a) de que se trata de conceitos intimamente relacionados e de delimitao subjectiva. Segundo este autor, mesmo nos casos mais relevantes de descentralizaes administrativas, como so os municpios, os aspectos polticos evidenciam-se em dois aspectos: o processo de designao dos titulares dos rgos sempre poltico tal como as eleies onde sufragado um programa poltico de aco dos rgos locais. - a autonomia significa, no timo grego, capacidade de se governar ou de se gerir pelos seus prprios meios; vontade prpria; estado da vontade racional que apenas obedece lei que emana de si mesma. Deste modo, implica diferentes aspectos, como auto-regulao, auto-governo, unidade, territorialidade e poder. um conceito mais amplo que a descentralizao e no diz respeito a uma delegao do poder central para o poder local ou regional, nem a uma concesso poltica, mas implica o reconhecimento da capacidade de uma unidade (comunidade) para tomar decises e se gerir, como resultado de uma construo social. Pressupe, por isso, um movimento inverso ao da descentralizao e desconcentrao (do centro para a periferia). Quando a autonomia decretada (Barroso, 1996b), estamos na realidade perante uma descentralizao de poderes, mas, como Rui Canrio salienta, esse facto constitui igualmente um paradoxo:Quando a administrao decide decretar a autonomia das escolas, conferindo ao conceito uma conotao normativa, est, de facto, a colocar os estabelecimentos de ensino numa situao de duplo constrangimento que nega a sua autonomia, confrontando-os com uma situao paradoxal clssica do tipo ordeno-te que sejas autnomo.(1996: 145)

neste sentido que Joo Barroso diferencia autonomia decretada de autonomiaconstruda. A interveno poltica pode decretar (...) as normas e regras formais que regulam a partilha de poderes e a distribuio de competncias entre os diferentes nveis da administrao (1996b: 186), deve reconhecer a autonomia existente numa comunidade,

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mas no decretar a sua existncia. Pois tal como Michel Crozier (1979) afirmou, No semuda a sociedade (ou escola) por decreto.

Essa comunidade deve edificar a sua autonomia atravs de processos conjuntos (com todos os seus actores) de partilha de interesses, de construo de respostas adequadas s suas necessidades e objectivos, de elaborao de projectos comuns e inovadores e de rentabilizao de recursos, por forma a garantir-lhe a sua identidade prpria, a sua cultura. No seguimento da afirmao de Crozier mencionada anteriormente, Erhard Friedberg adverte quese bem verdade que no se muda a sociedade por decreto, tambm no se pode mudla sem decreto (...) para fazer emergir outros jogos volta de novas apostas, muitas vezes absolutamente indispensvel que decretos venham desaferrolhar as situaes que tinham sido estruturadas pelos interesses de uma aliana dominante que se trata precisamente de fazer evoluir (1995: 156).

Considera-se, assim, que a autonomia das escolas no deve ser apenas decretada pela administrao, mas fundamentalmente construda por todos os seus actores na definio de um bem comum local.

2.2

Percursos de descentralizao educativa em alguns pases europeus de tradio centralizadora

Pelo exposto, pode-se inferir que a descentralizao e a autonomia se baseiam na existncia de uma identidade prpria de uma comunidade ou agrupamento e no reconhecimento ou atribuio aos seus rgos das funes de administrao, estando, portanto, intimamente relacionadas. Se, por um lado, a descentralizao possibilita e fomenta a existncia de autonomia, por outro, tambm a autonomia pressupe a existncia de uma descentralizao, embora no de uma forma exclusiva, pois podem existir margens de autonomia em modelos centralizados, tal como Crozier (1977) conclui. Apesar da actual tendncia de descentralizao do sistema educativo ser comum maioria dos pases da Europa ocidental e meridional, o modo de organizao, o grau e o

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momento em que este processo foi implementado foram bastante diferentes, uma vez que resultaram da evoluo histrica, social, econmica, poltica e cientfica verificada em cada pas. Considerando que a descentralizao dos sistemas educativos se efectua em diferentes nveis (descentralizao regional, descentralizao local e descentralizao institucional(7)), podem-se agrupar pases de acordo com as tipologias de descentralizao: pases com tradio na descentralizao local, pases de

descentralizao regional ou federal e pases com forte tradio centralizadora (Fernandes, 2005a: 76-87), ou seja, coexistem na Europa sistemas predominantemente descentralizados, sistemas centralizados/regionalizados e sistemas

predominantemente centralizados (Barroso e Sjorslev, 1991: 43). Nos sistemas predominantemente descentralizados, como os pases da pennsula escandinava, a Dinamarca e o Reino Unido (com forte tradio descentralizadora a nvel local), os municpios ou as associaes locais (municpios no caso da Dinamarca, ou outras associaes de mbito local, como as LEAs, Local Education Authorities, no caso do Reino Unido) foram as entidades promotoras da escola e caracterizaram-se, durante um largo perodo de tempo, por possuir um vasto leque de poderes delegados, designadamente, a definio do currculo, a nomeao dos rgos de gesto, a contratao de pessoal docente e no docente, a gesto oramental, entre outros. Actualmente, contudo, a situao destes dois pases regista algumas divergncias. Na Dinamarca, com a aplicao do programa Folkeskole ano 2000, a descentralizao mantm-se assente na devoluo de poderes aos municpios e escolas, embora bastante mais alargada, pois permite s autoridades locais administrarem todo o sistema educativo em estreita colaborao com os Conselhos Escolares que, desta forma, reforam as suas margens de autonomia e nos quais os pais tm uma forte representao e participao. No Reino Unido, a reforma do sistema educativo de 1988 (EducationReform Act - ERA) retirou algumas competncias s LEAs e s escolas,

recentralizando-as na administrao central, nomeadamente, ao definir o currculo(7)

Nesta classificao no considermos a descentralizao educativa de nvel nacional no mbito da Unio Europeia, uma vez que se pretende caracterizar o processo de descentralizao dentro de cada pas, ou seja a individualidade de cada processo de descentralizao.

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nacional obrigatrio, ao colocar as escolas na dependncia directa do governo ao nvel oramental e ao reduzir para minoritria a representao das LEAs na direco das escolas (Fernandes, 2005a: 77-79). Por outro lado, procedeu tambm a uma redescentralizao (Barroso e Sjorslev, 1991) ao possibilitar uma maior autonomia das escolas na gesto de material e contratao de pessoal, incluindo-se no movimento do local management school. Tendo em ateno estas alteraes, pode-se considerar que o Reino Unido possui um sistema nacional localmente administrado (Holmes, s.d. cit por Fernandes, 1995: 50). A descentralizao regional, nos pases de tradio federalista, como a Alemanha, a ustria e a Suia, efectuou-se com a devoluo de poderes relativos educao para as regies (na Alemanha os laenders, as regies na ustria e os cantes na Sua). Cada unidade regional goza de autonomia legislativa e regulamentar, possuindo poderes para definir a estrutura geral do sistema educativo e as orientaes curriculares; proceder colocao de pessoal docente e no docente; organizar o ensino e as escolas e atribuir grande parte do oramento da escola. Deste modo, a autonomia das escolas e dos municpios bastante reduzida (Fernandes, 2005a: 79). Os pases da Europa meridional, de forte tradio centralizadora, como a Frana, a Espanha, Itlia, Portugal e ainda a Blgica, registaram percursos de descentralizao distintos e tardios em relao aos pases do norte e centro da Europa. A centralizao vigente nestes pases at meados do Sc XX, de inspirao napolenica, tinha no sistema francs a sua referncia (tout Etat) e caracterizava-se pela existncia de um Ministrio da Educao ou Instruo extremamente centralizado e composto por inmeros organismos, cujas funes administrativas e peso institucional eram crescentes. No incio da segunda metade do Sc. XX comearam a ser implementadas medidas de descentralizao poltica e administrativa e nas dcadas de 70 e 80 este princpio foi contemplado nas Constituies destes pases. Segundo Joo Barroso (1999a:13), estas polticas de delegao de poderes do nvel central podem-se classificar em modalidades de execuo de autonomia dura caso dos governos conservadores com as reformas neo-liberais, como o caso do Reino Unido - e de autonomia mole caso dos governos com longa tradio centralizadora,

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como em Frana, Espanha e Portugal, onde as medidas so sectoriais e restringem-se apenas a aliviar a presso do Estado que, no entanto, preserva o poder, a organizao e o controlo, englobando-se em contextos mais vastos de descentralizao com recurso territorializao das polticas educativas. Contudo, neste ltimo grupo de pases, e apesar de lhes ser comum a tradio centralizadora, existem diferenas assinalveis nos seus percursos de descentralizao. esta situao o que pretendemos evidenciar, em seguida, embora de forma breve.

2.2.1

O caso Francs

Em Frana, o processo iniciou-se em 1983 e prolongou-se pela dcada de 80. Resultou da vontade do poder central, baseando-se em experincias anteriores, nomeadamente, com a implementao da Comisso Acadmica da Carta Escolar, em 1964, e com a Lei de 5 de Julho de 1972, que criou os Estabelecimentos Pblicos Regionais (Pachot e Gaudel, 1979). Caracterizou-se, em simultneo por uma desconcentrao para os servios regionais do Ministrio (Rectorat) e por uma descentralizao selectiva(8), com a delegao de alguns poderes para as regies, departamentos e municpios(9). At actualidade, esta situao no foi alterada, apesar das competncias municipais terem sido alargadas. Derrouet conclui mesmo que o processo de descentralizao em Frana s est totalmente descentralizado num ponto: odo patrimnio imobilirio (1998: 21), uma vez que a construo, renovao, ampliao e

equipamento dos lyces, collges e coles, est a cargo das regies, dos departamentos e dos municpios, respectivamente. Desta forma, o Estado deixou de ser(8) De acordo com a classificao apresentada por Mintzberg (1995). O autor apresenta quatro formas de descentralizao: descentralizao vertical: quando a delegao de poderes de deciso se faz de acordo com a linha hierrquica, para nveis intermdios do sistema administrativo; descentralizao horizontal: nos casos em que a transferncia de poderes para fora da linha hierrquica, correspondendo a uma partilha de poderes dentro do mesmo nvel da estrutura; descentralizao selectiva: consiste na disperso do poder para transferncias especficas (por exemplo encargos financeiros) em diferentes nveis da organizao e no uma transferncia permanente; descentralizao paralela: delegao de poderes dentro de uma mesma unidade e sem coordenao entre si (ibid: 213-214). (9) A Frana um Estado Unitrio cuja organizao territorial constituda por trs nveis de autarquias locais: 22 regies e a Crsega; 96 autarquias intermdias, os Departamentos, 4 ultramarinas com estatuto regional e 4 territrios ultramarinos; 36 772 municpios, as communes (dados de 1992) e 2 autarquias especiais. (dados de 1999). (Martins, 2001: 29)

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o nico financiador da despesa educativa e embora continue a contribuir de forma maioritria (65%), tem-se verificado uma diminuio progressiva. desde a implementao da descentralizao so as autarquias que contribuem de formacrescente para esse financiamento. (...) no financiamento global da despesa da educao, o total da globalidade das autarquias (departamentos, regies e municpios) passou de 14,3% em 1980 para 19,4% em 1993. (Louis, 1996: 38)

Esta transferncia de poderes estruturou-se de forma gradativa, enquadrando-se num processo de desconcentrao caracterizado por uma extraterritorializao, onde as competncias centrais so transferidas para os nveis regional e depois departamental, ou seja, para as reitorias e inspeces acadmicas e destas para o nvel local. Efectivamente, o poder central mantm competncia exclusiva no domnio da gesto do pessoal (recrutamento, formao e remunerao), na definio dos objectivos gerais e na regulamentao do ensino e dos programas curriculares. da responsabilidade das regies, atravs dos Conselhos Regionais de Educao presididos pelo prfet, elaborarem a Carta Escolar e a planificao regional, identificarem as necessidades de formao a existentes e criarem um programa previsional de investimentos a realizar ao nvel da construo, reconstruo, renovao ou extenso e equipamento dos liceus. Este programa previsional elaborado tendo em conta as grandes orientaes nacionais, carece de aprovao prvia dos departamentos e aps ser aprovado pelo prfet, constitui uma garantia estatal relativamente ao nmero de turmas que vo ser formadas, s disciplinas a leccionar, assim como nomeao do pessoal docente e no docente a afectar. So atribuies ou competncias dos departamentos a construo, renovao ou reparao dos collges, a aquisio e manuteno do equipamento e a organizao de actividades educativas, desportivas e culturais inseridas no horrio de funcionamento dos estabelecimentos de ensino. Decorrente da Lei de descentralizao de 1986, a atribuio de crditos e horas complementares s escolas foi transferida para os Inspectores de Academia, com vista consecuo dos projectos de aco educativa. Ao nvel municipal, as competncias e atribuies vo desde a construo e equipamento das coles (Enseignement Elementaire), s matrculas dos alunos, ao alojamento de docentes, aco social escolar, aos transportes escolares, e ainda,

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decorrente da Lei de 1983 definio dos horrios escolares, actividades extra-curriculares, apoio a alunos em dificuldade, programas socio-educativos e o reconhecimento do direito de utilizao dos estabelecimentos escolares para outras actividades, em horrio ps-lectivo. Os estabelecimentos de ensino assistiram igualmente ao alargamento das suas competncias, em particular os collges e os lyces (Enseignement Scondaire), que deixaram de ser estabelecimentos pblicos nacionais, para passarem a ter o estatuto de estabelecimento pblico local de ensino (EPLE). A administrao das escolas primrias est a cargo do Conseil d cole e a das escolas secundrias do Conselho de Administrao. Estes Conselhos de Administrao integram um total de 24 a 30 membros, de acordo com o tipo e a dimenso da escola, so presididos pelo director do estabelecimento de ensino e compostos por: representantes da equipa de direco (director e adjuntos) e at trs elementos da autarquia (o que corresponde a cerca de um tero do total dos seus membros); por representantes do prprio estabelecimento, 6 ou 7 elementos do pessoal docente e 2 do pessoal no docente (em nmero equivalente a um tero dos seus membros) e por representantes dos alunos e dos Encarregados de Educao, sendo 5 elementos de cada no ensino secundrio enquanto, nos anos anteriores, a representao dos pais superior. De salientar que, no ensino secundrio, o director do estabelecimento de ensino recrutado pelo Ministrio da Educao atravs das modalidades de concurso, promoo ou recrutamento e integra uma carreira prpria. Estes estabelecimentos de ensino dispem de autonomia jurdica e financeira e de margens de autonomia pedaggica e educativa, no quadro da qual gerem a dotao horria global que lhes atribuda e elaboram o projecto educativo, onde definem a poltica da escola de acordo com os objectivos e programas nacionais (Loi dOrientation sur l ducation de Julho de 1989).

Apesar desta tendncia de descentralizao, so muitas as resistncias que lhe so dirigidas. No decurso do debate pblico sobre o sistema educativo, Franois Louis (1996: 46-47) constata a existncia de opinies antagnicas, enquanto Jean Louis

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Derouet (1998: 20) e Alain Michel (1999: 102-103) afirmam que este um assunto bastante sensvel, uma vez que o receio dos franceses(...) o desaparecimento da escola de modelo republicano e dos valores que ela representa, [a escola da Repblica laica e tem como smbolos os valores universais da liberdade, igualdade e fraternidade] num mundo cada vez mais submetido s regras do mercado. (ibid: 103)

Essa necessidade de (re)afirmar a escola republicana (que se reporta Lei de 28 Maro de 1882 de Jules Ferry) est bem patente na recente lei que probe a utilizao de smbolos religiosos nas escolas francesas. Por outro lado, tem subjacente a valorizao e a importncia da educao na sociedade francesa em geral e no Estado em particular. Este , alis, um ponto fulcral desde o Sc. XIX, apesar da centralizao administrativa, pois o Estado sempre fez grandes investimentos na construo e manuteno de escolas, no alargamento da escolaridade obrigatria, na contratao e formao de professores, entre outros, tendo assumido a instruo primria e a alfabetizao como uma prioridade poltica logo nos finais do Sc XIX (Fernandes, 1995 e Saisi, 1994).

2.2.2

O caso Espanhol

Aps o centralismo franquista, o regime democrtico espanhol aprova a Constituio, em 1978, que estabelece a criao das comunidades autnomas, baseadas nas autonomias histricas e das restantes autarquias locais(10). Inicia-se assim, em Espanha, o processo de descentralizao, procedendo-se em 1981 devoluo de poderes ao nvel do sistema educativo para as comunidades, embora ainda de forma selectiva, o qual, em 1990 reforado com a Ley de Ordenacin General del SistemaEducativo (LOGSE). Esta estabelece uma repartio de competncias educativas entre o estado e as comunidades que significa uma quase total descentralizao administrativa e uma parte significativa da descentralizao poltica (Puellez, 1993: 225-227, cit. por Fernandes,

2005a: 81) e constitui um caso singular de descentralizao regional, porquanto asA Espanha um Estado Regional, cuja organizao territorial constituda por trs nveis de autarquias: 17 regies, as Comunidades autnomas; 50 autarquias intermdias, as Provncias; 8 097 municpios ou Ayuntamientos (dados de 1997). (Martins, 2001: 28)(10)

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competncias de definio geral do sistema educativo, regulao da certificao e definio do currculo permanecem centralizadas, enquanto um vasto leque de poderes descentralizado para as comunidades e municpios. As Comunidades Autnomas so as autoridades em matria de educao, gozam de grande autonomia financeira, tm responsabilidades na superviso e inspeco dos estabelecimentos de ensino da sua rea territorial, tm competncias sobre os estabelecimentos de ensino, pessoal docente e discente e ainda na atribuio dos diplomas escolares. Ao nvel do currculo, compete-lhes a definio das componentes regionais: 45% ou 35% do total de horas lectivas, quer se trate de comunidades com lngua prpria ou no (Fernandes, 2005a: 81). Neste momento, encontra-se em discusso uma proposta de Lei, que prev a atribuio de mais competncias centrais para as comunidades autnomas ao nvel da definio do currculo, delegando-lhes a definio do nmero de lnguas estrangeiras a incluir e ao nvel da avaliao dos alunos, prevendo que cada comunidade possa definir as condies necessrias para que os alunos possam transitar. De salientar ainda que, recentemente, algumas comunidades autnomas, por sua iniciativa, implementaram planos de avaliao das escolas. As competncias atribudas a nvel municipal, entre outras, dizem respeito construo e manuteno dos equipamentos escolares, vigilncia e segurana dos estabelecimentos de 1 ciclo, jardins de infncia e escolas de educao especial, programao da rede escolar, participao nos diversos Conselhos Escolares dos Centros Educativos e criao do Conselho Escolar Municipal. Este rgo elabora a carta escolar concelhia, estabelece parcerias entre a administrao educativa e outras entidades sociais do seu territrio e procede programao e organizao de actividades educativas cujos membros consultivos so representantes das escolas, encarregados de educao e de entidades sociais diversas. O municpio participa ainda nos Conselhos Territoriais, Autonmicos e Estatais. de sublinhar que os municpios, porque sentiram necessidade de participar mais activamente na qualidade da educao, desenvolveram e apoiaram um conjunto alargado de iniciativas, supletivas s suas funes, nomeadamente: financiamento e implementao de actividades de formao de professores, de servios de

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documentao e de divulgao de materiais pedaggicos, com pessoal prprio ou atravs do recurso a equipas de voluntrios da comunidade; abertura de jardins de infncia, escolas de msica, escolas de lnguas e escolas de adultos; criao de servios psicopedaggicos e contratao de profissionais para o ensino privado nas reas da educao fsica, educao musical e artes plsticas. Decorrente do processo de descentralizao iniciado na dcada de 80, tambm os estabelecimentos de ensino passaram a usufruir de um alargamento das suas competncias, dispondo de maiores margens de autonomia pedaggica e educativa. Estas esto acometidas ao Claustro (Conselho de Docentes), ao Conselho Pedaggico e ao Consejo Escolar. Ao Consejo Escolar compete aprovar e avaliar o projecto educativo da escola; aprovar o oramento e participar na sua gesto; supervisionar as actividades da escola e dos docentes, administrativa e pedagogicamente; eleger o director do estabelecimento escolar, podendo tambm demiti-lo. Este Conselho presidido pelo director do estabelecimento de ensino e composto por 8 a 21 membros, consoante a dimenso da escola. Integra representantes dos pais (de 2 a 5) e dos alunos (2 ou 3) que, no seu conjunto, no podem ser inferiores a um tero do total de membros; o director e dois elementos da equipa de direco; pessoal docente (de 2 a 8); um representante do pessoal no docente e um representante do Ayuntamiento. O novo modelo de direco dos estabelecimentos de ensino prev, como requisito para o desempenho de funes de direco, possuir formao especializada e a obrigatoriedade de realizar formao permanente durante o exerccio do seu mandato; estabelece a limitao de mandatos consecutivos numa mesma escola, mas estimula o seu desempenho em outras; estipula, ainda, compensaes salariais (diferenciadas em funo dos resultados da sua avaliao) e de desenvolvimento profissional. Do anterior modelo, mantm-se a obrigatoriedade do director ser eleito pelo Conselho Escolar.

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Os sentidos da(s) descentralizao(es) europeia(s): contributos para a anlise da situao portuguesa

Ao nvel dos sistemas educativos dos pases da Europa Ocidental e Meridional, pode-se constatar a existncia de duas tendncias distintas na organizao dos sistemas administrativos: - por um lado, os sistemas descentralizados que tm registado evolues no sentido de alguma recentralizao ou semi-centralizao (por exemplo o Reino Unido); - e, por outro lado, os sistemas tradicionalmente centralizados, que registam tendncias de descentralizao regional (Alemanha, Astria e Suia) ou local/municipal (Portugal, Espanha e Frana), o que tambm pode ser designado por semi-descentralizao. (Alvarez, 1995: 42ss; Barroso e Sjorslev, 1991: 173; Fernandes: 2005a: 86-87; Macedo 1995: 46-47; Pinhal, 1997: 180). Estas tendncias, aparentemente antagnicas, parecem evidenciar um processo em que todos os pases andam procura de um grau ptimo de descentralizao. (Michel,1999: 96) e onde os extremos tendem a ser atenuados. Por outro lado, expressam uma generalizao da implementao de medidas de devoluo de poderes centrais. Esta alis, uma das concluses do estudo sobre as reformas no ensino secundrio implementadas entre 1984-1994, nos diversos pases da Unio Europeia:As reformas da administrao geral do sistema escolar resumem-se principalmente a um movimento progressivo de descentralizao e de delegao de poderes sociedade. Praticamente todos os pases implicados introduziram novas regulamentaes que deslocam o poder de deciso do Estado central para as autoridades regionais, locais ou municipais e destas para os estabelecimentos de ensino. (Eurydice, 1997a: 26)

No entanto, as polticas de descentralizao que caracterizaram a dcada de 80, inserem-se no s em processos de reformas dos sistemas educativos, como, a um nvel macro, se enquadram na necessidade de reestruturao do papel do Estado. Segundo Joo Barroso, a tendncia de descentralizao das polticas educativas insere-se numa conjuntura com alteraes mais profundas, de que so exemplo a crise do Estado educador; a oposio entre a lgica de mercado e uma lgica de servio pblico na oferta educativa; a redistribuio de poderes entre o centro e a periferia (com fenmenos de descentralizao e recentralizao administrativa); as

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relaes entre o Estado e a Sociedade; a depauperizao das fontes tradicionais de financiamento. (1996a: 9)

Desta forma, as razes apresentadas no sentido de fundamentar a implementao de polticas de descentralizao dos sistemas educativos so diversas e de natureza distinta: prendem-se com argumentos tcnicos de modernizao e desburocratizao do Estado, que procura uma maior eficincia atravs de medidas que o aliviem das suas inmeras tarefas; enquadram-se nas polticas neoliberais ou neoconservadoras, que pretendem reduzir o peso do Estado na sociedade e promover lgicas de mercado; baseiam-se em razes econmicas de reduo de custos; radicam em princpios democrticos de participao comunitria, de maior eficcia e de envolvimento dos cidados nos problemas e nos processos de deciso; e fundamentam-se ainda em argumentos de natureza pedaggica, aliceradas nas pedagogias diferenciadas, centradas no aluno, na flexibilizao curricular e nas medidas de adaptao s especificidades e necessidades de cada um. Assim, embora se verifique uma tendncia comum de descentralizao nos vrios sistemas educativos, constata-se que este processo bastante complexo e que apresenta diversas frmulas possveis (modalidades e graus distintos), merc das caractersticas histricas, sociais e poltico-administrativas de cada pas. Por isso, a reorganizao da administrao dos sistemas educativos no se pode colocar de uma forma simplista: centralizado versus descentralizado. Tal como foi exposto, apesar de podermos distinguir grupos de pases com tradies semelhantes, existem diferenas assinalveis nos percursos de descentralizao dentro desses grupos. Veja-se a situao de Frana e Espanha, pases de tradio centralizada, onde o grau de descentralizao do sistema educativo francs bastante menor que o verificado no sistema espanhol, apesar da descentralizao educativa neste ltimo pas ser predominantemente regional, no se tendo ainda feito sentir de forma evidente ao nvel municipal ou local (escola), facto que expresso nas palavras de Puellez: nos governos das comunidades autnomas, que reproduziram na sua esfera territorial os modelos centralizados da Administrao do Estado, dando escassa ou nula participao s demais comunidades territoriais que se integram no seu mbito regional: provncia e municpio (1993: 27, cit. por Fernandes, 2005a: 83)

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No obstante a descentralizao apenas regional, alguns municpios espanhis desenvolveram, por opo prpria, um conjunto alargado de iniciativas e projectos de interveno no mbito da educao. Tais iniciativas extravasam as suas competncias e atribuies neste domnio, mas demonstram uma atitude pr-activa do municpio em se assumir como um parceiro educativo. Estas dinmicas locais so promotoras da sua autonomia: no resultam de transferncias do poder central, mas sim de construes e dinmicas locais (do local para o regional ou central). Sem a pretenso de uma anlise comparativa, os percursos da descentralizao dos sistemas educativos, em pases tradicionalmente centralizados, evidenciam alguns aspectos importantes para a anlise da situao portuguesa. Assim, so de realar os seguintes aspectos: - a tendncia generalizada, nos vrios pases, de reformulao do papel do Estado e de transferncia de competncias centrais para nveis mais prximos da populao; - a emergncia da escola, o reconhecimento e a valorizao do seu papel na comunidade em que se insere e o aumento da sua autonomia; - uma maior participao da comunidade educativa na definio da sua poltica de educao (Projecto Educativo de Escola