A Alfabetização Segundo o Método Intuitivo

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Alfabetização

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    Revista HISTEDBR On-line, Campinas, n 60, p.38-61, dez2014 ISSN: 1676-2584 38

    O TRABALHO DIDTICO NA OBRA DE CALKINS: A ALFABETIZAO

    SEGUNDO O MTODO INTUITIVO

    Enilda Fernandes

    RESUMO

    O presente artigo analisa o manual Primeiras Lies de Coisas, de autoria do norte-

    americano Norman Alisson Calkins, na verso modificada em 1870, traduzida por Rui

    Barbosa de Oliveira em 1881, e publicada no Brasil em 1886. Buscou-se enfocar o mtodo

    e os contedos de alfabetizao nesse manual, como foram articulados e as funes que lhe

    foram atribudas. Para subsidiar o estudo, tomou-se a categoria organizao do trabalho

    didtico, formulada por Alves (2005), sendo a anlise baseada no referencial metodolgico

    marxista, situada a investigao no mbito histrico. Assim, no exame do mtodo e

    contedo desse manual, considerou-se importante captar os pontos essenciais

    caractersticos de inovao na organizao do trabalho didtico, em fins do sculo XIX e

    incio do sculo XX, durante a transio do Imprio para a Repblica. No decurso da

    investigao, caracterizou-se o fim utilitrio que o livro em anlise conferiu

    alfabetizao.

    Palavras-chaves: trabalho didtico; alfabetizao; mtodos e contedos.

    THE DIDACTIC WORK IN CALKINS WORK: THE LITERACY ACCORDING TO THE INTUITIVE METHOD

    ABSTRACT

    The present article analyses the manual Primary Object Lessons written by the North

    American Norman Alisson Calkins, in the modified version in 1870, which was translated

    by Rui Barbosa de Oliveira in 1881, and published in Brazil in 1886. It was tried to focus

    on how the method and the literacy contents appeared in this manual, how they were

    articulated, and the functions that were attributed to it. To subsidize the study, the category

    didactic works organization created by Alves (2005) was used, settling the analyses on the Marxist methodologic referential, situating the investigation on the historical scope. This

    way, in the examination of the method and content of this manual, it was considered

    important to capture the essencial points that were mentioned as characteristic of

    innovation in the didactic works organization in the end of the 19th century and beginning of the 20th century, during the transition from Empire to Republic. In the course of the

    investigation, it was characterized the utilitarian purpose that the book analysed granted to

    literacy.

    Key words: didactic work; literacy; methods and contents.

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    INTRODUO

    Esse texto corresponde a uma parte da tese de doutoradoi, defendida em 2014, na

    Universidade Federal de Mato Grosso do Sul/UFMS, orientada pela professora Dra. Silvia

    Helena Andrade de Brito.

    Desde 2007, o Grupo de Estudos e Pesquisas Histria e Educao no Brasil,

    HISTEBR regional de Mato Grosso do Sul vem desenvolvendo estudos sobre os instrumentos de trabalho didtico por considerar que esta temtica, no mbito da

    organizao do trabalho didticoii, guarda elementos fecundos para anlise no que tange aos mtodos, aos instrumentos de ensino e relao educativa. Assim, em 2010 o grupo

    elaborou um projeto interinstitucional, O manual didtico como instrumento de trabalho

    nas escolas secundria e normal (1835-1945), financiado pelo CNPq e finalizado em

    2012.

    A referida tese vinculou-se a esse ltimo projeto, tomando para estudo os mtodos

    e os contedos de alfabetizao em manuais didticos utilizados tanto para a formao de

    professores como para o ensino na escola primria nos sculos XIX e XX. Um deles, foi o

    manual Primeiras Lies de Coisas, de autoria do norte-americano Norman Alisson

    Calkins, na verso modificada em 1870, traduzida por Rui Barbosa de Oliveira em 1881 e,

    publicada no Brasil em 1886. Os outros dois foram as obras de Manuel Bergstrm

    Loureno Filho, Cartilha do Povo e Testes ABC, publicados respectivamente em 1929 e

    1933.

    Basicamente, foram trs aspectos abordados no estudo: contribuir com uma

    reflexo sobre a alfabetizao, pois nos mtodos e contedos se revela efetivamente o

    rumo dado ao trabalho didtico no processo de ensinar a ler e escrever; indicar em que

    medida o alfabetizar corrobora com o tipo de necessidade histrica posta nos sculos XIX

    e XX, e como isso se deu concretamente; e, por fim, compreender as necessidades

    histricas impostas ao ato de alfabetizar no Brasil e os interesses aos quais estavam

    ligadas, como tambm em que conjunturas poltica e econmica se configuraram tais

    propostas de se ensinar a ler e a escrever.

    Para fins de produo desse artigo, extraiu-se da tese o captulo que analisa o

    manual Primeiras Lies de Coisas de Calkins. Ressalte-se que, em meados do sculo

    XIX, com as perspectivas de desenvolvimento e de modernizao do Brasil pela

    industrializao, a ampliao da escola se impe de modo mais evidente. Rui Barbosa

    atento s mudanas que ocorriam nas sociedades mais desenvolvidas em fins do sculo

    XIX entendeu ser primordial a inovao no ensino, e props uma reforma geral na

    educao escolar. Esse manual defendido de forma irrestrita por Rui Barbosa como a

    obra mais avanada para cumprir com as necessidades de reforma do ensino primrio. No

    campo da pedagogia, impunha-se a inovao com a instituio de um novo mtodo e

    novos instrumentos de trabalho didtico. No pensamento do jurista, o manual de Calkins,

    Primeiras Lies de Coisas, balizado pelo mtodo intuitivo, correspondia s caractersticas

    de inovao da educao, devendo, portanto, ser o nico instrumento de trabalho nas mos

    dos professores para mediar o ensino primrio.

    No interior da organizao do trabalho didtico, o manual didtico forjado na

    modernidade, emergiu de uma necessidade histrica no bojo da construo da sociedade

    capitalista, no sculo XVII, em um empreendimento de Joo Ams Comnio, que

    inspirado na manufatura, imprimiu-lhe a funo de base no trabalho docente. Conforme

    afirma Alves (2001), esse instrumento na condio de mediador do trabalho do professor,

    naquele momento histrico, foi imprescindvel universalizao da instruo pblica.

    Entretanto, a escola na contemporaneidade manteve aquela organizao preservando-o

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    como ferramenta de proa no trabalho escolar, em todos os nveis e reas de ensino.

    Comnio em sua proposta recomendava o uso exclusivo de dois gneros de livros: livros de texto para o aluno e livros-roteiro (informatorii) para os professores, para que aprendam

    a servir-se bem deles (COMNIO, 1957, p. 460). Os tais livros tm duas verses: uma que contm todo o programa prescrito, com a funo especfica de orientar o professor, e

    outra, para as atividades escolares do aluno. Eis o manual didtico.

    Para o ensino da arte de ler e escrever, o manual didtico expresso nas cartilhas

    com gravuras. Segundo a epistemologia comeniana, para o ensino das lnguas nas escolas

    primrias ludus literarius , o mtodo deveria assentar-se nos sentidos. Assim, o ensino deveria iniciar-se a vista dos objetos, devendo os manuais apresentar as imagens das

    coisas, isto , produzir desenhos ilustrando os substantivos, exprimindo os artefatos e aes

    cotidianas descritas pelas oraes. Logo, o Janua Linguarum, um livro de latim, vertido

    para o alemo em 1633 e aperfeioado pelo prprio Comnio com a impresso de figuras,

    foi publicado em 1658 como Orbis Sensualium Pictus o mundo ilustrado. Dentro de um quadro histrico em que surge necessidade de ensinar a ler e escrever, Comnio prope os

    livros didticos breves e metdicos, dividindo as fases de estudo, conforme a idade, em

    quatro nveisiii.

    Para subsidiar esse estudo, tomou-se a categoria organizao do trabalho didtico,

    formulada por Alves (2005), no modo de ensinar, institudo por Comnio. Sendo esta

    categoria o elemento norteador deste trabalho, o mtodo para orientar a anlise pautado

    na Cincia da Histria, de Marx e Engels (1991, p. 23), em a Ideologia Alem, como

    sendo a nica cincia capaz de examinar a histria sob dois aspectos: a histria da natureza e a histria dos homens. Compartilhando a sntese de Souza (2012), entende-se que s a histria, tal como a pensaram Marx e Engels, permite definir a cincia nos seus

    limites mais abrangentes, como tambm a apreenso de qualquer objeto em sua gnese,

    desenvolvimento e obsolescncia. Cincia da Histria implica um mtodo determinado

    conforme a referida autora, Mtodo de investigao e anlise das formas tornadas concretas e humanizadas pelo trabalho do homem, sob condies contraditrias. (SOUZA, 2012, p. 2).

    Em consonncia com o pensamento desses pesquisadores, adotou-se por base o

    princpio de que o exame de um objeto deve considerar a historicidade de todas as obras

    humanas. Nas palavras de Netto (2011, p. 42) Marx distingue claramente o que da ordem da realidade, do objeto, do que da ordem do pensamento [...]. Assim, se se toma um objeto isolado do movimento real de sua produo, fica-se impedido de qualquer

    estudo de relaes entre suas bases de origem e, portanto, obscurecido o entendimento de

    sua forma concreta de existncia.

    Em sendo assim, ao se assentar a anlise da obra de Calkins, produzida em fins do

    sculo XIX, no referencial terico metodolgico marxista, buscou-se, situar a investigao

    essencialmente no mbito histrico, examinando-a como instrumento determinado e criado

    para cumprir necessidades especficas que se transforma quando novas necessidades

    surgem. Nesses termos, o exame de manuais didticos para ser uma sntese concreta de sua

    produo precisa ser tomado em sua origem, isto , na base do trabalho manufatureiro, pois

    foi a tcnica que inspirou Comnio na instituio da escola moderna.

    A temtica que norteia o presente trabalho sugere que os mtodos e contedos

    impressos em manuais didticos, designados condio especfica de instrumentos de

    trabalho, vinculam-se s exigncias da especializao instituda no mundo moderno. Logo,

    a proposta de ensino de alfabetizao funda-se na base tcnica do trabalho imanente

    sociedade capitalista burguesa. Isto significa que esse instrumento estabelecido na forma

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    manufatureira do trabalho reproduz na pedagogia os limites do trabalho na manufatura. Ele

    expressa, em ltima instncia, a simplificao e objetivao do trabalho didtico.

    Tomando a obra Primeiras Lies de Coisas: manual de ensino elementar para uso

    de pais e professores, de Calkins, buscou-se enfocar em como aparece o mtodo e os

    contedos da alfabetizao, bem em como foram articulados e as funes que lhe foram

    atribudas. Esse manual, caracterstico do tipo de organizao do trabalho didtico naquele

    momento histrico, traz a discusso e os procedimentos sistematizados de aplicao do

    mtodo intuitivo. Indicado para ser o nico livro nas mos do docente do ensino elementar,

    prescreve: o que, como, e quando ensinar no processo de leitura e de escrita, da tom-lo

    empiricamente para anlise.

    No exame do mtodo e dos contedos desse manual, considerou-se importante

    captar os pontos essenciais que foram aludidos como caractersticos da inovao na

    organizao do trabalho didtico, nas Lies de Coisas, na transio do Imprio para a

    Repblica, imbudos da conformao da pedagogia nos moldes cientficos, para delinear os

    ajustes necessrios e cabveis organizao do ensino primrio. Entendem-se como

    imprescindveis estudos que analisem a alfabetizao como necessidade histrica, dentro

    de uma determinada organizao do trabalho didtico, que elege os manuais como

    instrumento fundamental de ensino e da aprendizagem. Ademais, na atualidade, o processo

    de ensinar a ler a escrever nos anos iniciais de escolarizao tm esses livros como

    instrumentos destinados orientao metodolgica de ensino e s atividades prticas a

    serem desenvolvidas pelos alunos.

    O manual didtico, instrumento que ganhou o carter de portador dos mtodos e

    contedos e de mediador do trabalho docente, tem sido desde os anos de 1970 objeto de

    interesse entre os pesquisadores da educao, com publicaes expressivas em nmero

    significativo no campo acadmico e cientfico, e com temticas diversas envolvendo a

    problemtica da alfabetizao. No rol das produes acadmicas, buscou-se nesse trabalho,

    pelo vis metodolgico adotado, trazer uma contribuio singular, estabelecendo a anlise

    dos mtodos e contedos de alfabetizao, cunhados no manual Primeiras Lies de

    Coisas, e no movimento universal que lhe confere historicidade. Tratou-se, ento, de

    evidenciar que no movimento de mudanas estruturais na sociedade, marcado por

    antagonismo e contradies, o mtodo intuitivo e contedo nele impresso traduziam as

    necessidades especficas em fins do sculo XIX e incio do sculo XX.

    Assim, para delinear o presente artigo, elaborou-se o texto em trs partes:

    inicialmente, para caracterizar a historicidade dessas produes humanas, direcionou-se

    abordagem aos primrdios da linguagem oral e sua objetivao na linguagem escrita, bem

    como as bases do manual didtico no mbito das origens da escola moderna. Depois, a

    obra propriamente dita no decurso da investigao. Por ltimo, realizou-se o exame do

    mtodo e do contedo, no qual se caracterizou o fim utilitrio que o livro em anlise

    conferiu a esse conhecimento e, tambm, os limites histricos do mtodo intuitivo no

    ensino da leitura.

    1 BASES HISTRICAS: da linguagem oral e escrita aos instrumentos didticos.

    imprescindvel, primordialmente, recuperar dados determinantes compreenso

    do carter histrico das produes humanas. A passagem de Marx e Engels propicia

    elementos para exercitar o pensamento em direo a tal concepo.

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    A linguagem to antiga quanto a conscincia a linguagem a conscincia real, prtica, que existe para os outros homens e, portanto,

    existe tambm para mim mesmo; e a linguagem nasce, como a

    conscincia, da carncia, da necessidade de intercmbio com outros

    homens. Onde existe uma relao, ela existe para mim: o animal no se

    relaciona com nada, simplesmente no se relaciona. Para o animal sua relao com os outros no existe como relao. A conscincia, portanto,

    desde o incio um produto social, e continuar sendo, enquanto existirem

    homens (MARX E ENGELS, 1991, p. 43).

    Desde os primrdios da histria, primeiros homens sentiram a necessidade de criar

    condies para viver, instituir novas necessidades e renovar a prpria vida. So esses os

    trs aspectos da atividade social que para Marx e Engels (1991) coexistem e so

    sintetizados na produo da vida que, incessantemente, cria novas formas condicionadas

    pelas necessidades e pela prxis social. E assim, no processo de intercmbios sociais,

    aprimorando sua conscincia e linguagem como emanao de suas aes na base material,

    os homens criam instrumentos para mediar tais relaes, objetivar e simplificar suas

    atividades.

    As linguagens oral e escrita traduzem a particularidade humana em sua busca por

    inventar e desenvolver meios precisos s suas relaes sociais. Como explicitam Marx e

    Engels (1991), examinado os aspectos produzidos pelo homem em suas relaes histricas,

    verifica-se que, conforme produz os seus meios de vida e os instrumentos para mediar as

    suas relaes, a sua conscincia se alarga. De incio, primitiva, puramente natural,

    misturada ao meio sensvel, numa relao determinada pela natureza; to animal quanto a

    prpria vida, todavia diferente do animal em si.

    Para Vygotsky (1991) os macacos apresentam rudimentos de linguagem relativamente bem desenvolvidos, principalmente em termos fonticos, que at se

    assemelham fala humana. Porm, Vygotsky aponta que Koehler (1921) ao estudar os

    chimpanzs, v que as expresses fonticas expressam nada mais que desejos, afetos,

    desprovidos de sinais que impliquem algo objetivo. No h concluso de que os animais

    tenham atingido em suas aes um pensamento planejado. Embora tenham usado

    instrumentos e outras formas de comportamento aprendido, no demonstraram indcios de

    inteno em seus desenhos, representao ou atribuio de significado objetivo aos seus

    produtos.

    O homem, por sua vez, de forma variada, j intencionava objetivar a fala, criando

    instrumentos e mtodos para expressar os seres do mundo, comeando pelo desenho, at

    chegar palavra escrita, como forma de representar a linguagem oral. Portanto, o

    pensamento e a linguagem so caractersticas primrias do homem. A lgica a de que,

    sob o influxo das necessidades que assomaram nas sociedades, a linguagem escrita e a

    leitura, bem como os instrumentos para seu registro papiro, pergaminho e o papel impresso e para a aprendizagem das novas geraes mtodos de ensino e contedos produzidas ao longo da histria, modificaram-se, conforme as transformaes na forma

    concreta de produo da vida.

    Nesse quadro, sucessivas alteraes promoveram o desenvolvimento da leitura e da

    escrita e, nesse processo, a alfabetizao ganha historicamente um carter bem especfico.

    Em outros termos, ela tem os seus limites e extenso dentro do movimento de uma

    sociedade que se configura por contradies. Portanto, ela est dentro de um processo

    histrico que se distingue por novas necessidades e que demanda superaes.

    O ensino da linguagem escrita e da leitura apresenta-se articulado s condies

    materiais de cada poca, e sua apropriao, como instrumento cultural, tcnico ou social,

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    vincula-se s transformaes materiais institudas nas sociedades, impregnando, portanto,

    em sua histria, um conjunto de elementos que permitem detectar a sua dimenso histrica.

    Eis que a linguagem oral e a escrita, como objetos de expresso e de interlocuo,

    comportaram formas diferentes em tempos diferentes, fato que funda a sua natureza

    histrica. Ao lado da inveno da escrita, a leitura teve significado diferente, e ambas

    apreendidas enquanto necessidades na sociedade resultam, fundamentalmente, de um

    processo que as integra: a alfabetizao, que se dinamiza em um movimento histrico.

    fato que, em qualquer sociedade, todas as produes humanas so apropriadas de

    modo singular, dada as condies objetivas e subjetivas, para atender aos interesses e

    necessidades de seu tempo. Assim, tambm a escrita evoluiu em suas caractersticas

    lingusticas e, a seu lado, os instrumentos para a sua inscrio, desde os recursos naturais

    com tcnicas pouco desenvolvidas at as tecnologias mais avanadas. A alfabetizao

    tornou-se uma aquisio de base. Com a indstria tipogrfica, o livro impresso despontava

    com a possibilidade de estabelecer a escola de um novo modo.

    Na sociedade moderna, um livro produzido com uma forma bem determinada: ser

    instrumento de trabalho, pensado e elaborado especificamente para mediar todas as

    atividades escolares. Esse livro se configura no prprio modo de ser da escola, questo que

    problematizada e discutida por Gilberto Luiz Alves (2001, 2005), que traz tona,

    insistentemente, os aspectos que envolvem a organizao do trabalho didtico, indicando

    que, historicamente, trs elementos distintos correspondem a sua sistematizao:

    a) [...] uma relao educativa que coloca, frente a frente, uma forma histrica de educador, de um lado, e uma forma histrica de educando

    (s), de outro; Realiza-se com a mediao de recursos didticos,

    envolvendo os procedimentos tcnico-pedaggicos do educador, as

    tecnologias educacionais pertinentes e os contedos programados para

    servir ao processo de transmisso do conhecimento, E implica um espao

    fsico com caractersticas peculiares, onde ocorre. (ALVES, 2005, p. 10-

    11, os grifos so do autor).

    Tal como se anunciou na Introduo, objetiva-se a partir do manual de Calkins

    focar a anlise em um desses aspectos, mais precisamente os mtodos e contedos, sem

    deixar de tocar na relao educativa, como tambm na disposio fsica do espao escolar,

    pois eles so elementos interligados que, em sua articulao, produzem mudanas

    qualitativas no trabalho didtico.

    Notem-se que no processo de transio do feudalismo para o capitalismo a

    educao foi um dos projetos que corresponderam ao iderio da nova sociedade, por meio

    do movimento da Reforma Protestante contra a Igreja feudal, iniciado com Martinho

    Lutero (1483-1546)iv. Porm, encontrar respostas adequadas, precisas e ajustadas a uma

    nova forma de organizar o processo escolar e a possibilidade de expanso escolar, coube a

    Joo Ams Comnio (1592-1670).

    Em 1624, em decorrncias de perseguies religiosas, Comnio refugiou-se em

    Lssa e viu-se diante da proposio de Lutero com seu apelo Aos conselhos de Todas as Cidades da Alemanha para que criem e mantenham escolas crists (LUTERO, 2011, V. 5, p. 302), constituindo o lema ensinar tudo a todos e defendendo a criao de uma escola universal. Na sua obra Didctica Magna, publicada em 1657, definia as suas diretrizes para

    a pedagogia e indicava o mtodo seguro para a obteno de bons resultados para os alunos

    e professores.

    Duas condies materiais foram historicamente fundamentais na construo de sua

    didtica: o modo de produo de trabalho manufatureirov e a tecnologia da imprensa. De

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    um lado, a manufatura em pleno processo de amadurecimento brandia luz ao seu

    empreendimento, pois seguindo a mesma lgica fundada no processo de produo da

    manufatura, que supera o trabalho artesanal pela objetivao do trabalho nos instrumentos

    da fbrica, como indica Souza (2010), tambm assim poderia simplificar e objetivar o

    trabalho do mestre no manual didtico. E, de outro lado, com a tecnologia da imprensa

    poderia concretizar a sua proposta de organizao universal e perfeita das escolas, pois a

    tipografia em caracteres mveis transformou radicalmente a produo de livros e sua forma

    material transformou tambm as suas condies de apropriao: o livro deixava de ser feito

    de forma artesanal, passando a ser fabricado em srie, ganhando um novo sentido, como

    mercadoria e como instrumento de trabalho, com a possibilidade de incorporar no trabalho

    didtico maior nmero de alunos, com um menor nmero de professores.

    Foi sob essa base material a poca de transio para o domnio da produo capitalista que foi produzido o manual didtico, na condio de instrumento de trabalho, que se programou o mtodo que viria universalizar o ensino, com menor custo e maior

    aproveitamento do tempo, bastando para isso dar ao manual um tratamento racionalizado,

    tal como se faz na manufatura, e estabelecer as bases para cumprir o seu lema, ensinar tudo a todos. Mas cabe frisar que a frase no expressava ensinar os conhecimentos que conduzissem a reflexo, pois que, dado o pragmatismo do pensamento burgus, convinha

    dar a todos os fundamentos, de acordo com as necessidades devotadas ao fazer. A utilidade e a prtica eram elementos caractersticos da nova sociedade, e a todos

    deveriam dar um conhecimento exato e profundo, mas precisamente funcional, til, com

    instruo para se fazer as coisas, cujo fim lhe foi posto no mundo e que se lhe ordenam que

    faam. Nesses termos, a organizao didtica deveria constituir um programa com os

    contedos bsicos: ler, escrever, contar e medir, alm de contedos de ordem mais geral,

    com mtodos objetivos e prticos, metas bem definidas e um nico instrumento,

    conduzindo-os em conjunto. Comnio (1957, p. 430) assim dizia:

    A cada classe sejam destinados livros de textos prprios, que contenham

    todo o programa prescrito [...] para que, durante o espao de tempo em

    que os jovens so conduzidos pelo caminho destes estudos, no tenham a

    necessidade de nenhum outro livro, e com ajuda desses livros possam ser

    conduzidos infalivelmente s metas fixadas [...].

    Assim, os contedos eram divididos e sistematicamente organizados, sendo fixado

    para cada classe um livro com o programa distinto. Tal como o tipgrafo serve-se do

    compenedor para alinhar os caracteres e as palavras em linhas e as linhas em colunas, o

    professor tambm precisa de normas que o orientassem em tudo que haveria de fazer. Eis a

    especializao do instrumento de trabalho que alinha o trabalhador naqueles limites. Esse

    livro que seria o instrumento de base para compor a didtica em seu conjunto um livro

    com caractersticas bem peculiares, em sua forma e contedo, em duas verses, sendo um

    com orientaes para o mestre e o outro para a atividade do aluno. Eis as palavras de

    Comnio (1957, p. 460):

    [...] aos educadores da juventude, necessrio dar normas, em

    conformidade com as quais executem as suas obras, isto , devem

    escrever-se para uso deles Livros-roteiros que os aconselhem quanto ao

    que hode fazer, em qualquer lugar e de que modo, para que no se caia em erro. Os livros didcticos sero, portanto, de dois gneros: verdadeiros

    livros de textos para os alunos, e livros-roteiros (informatorii) para os

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    professores, para que aprendam a servir-se bem deles. (COMNIO, 1957,

    p. 460, os grifos so do autor).

    Como se v, prescreve-se, nessa base, todo o programa escolar, de modo que

    mesmo aquelas pessoas que no fossem to hbeis para ensinar, poderiam faz-lo a

    contento, pois a elas no cabia pensar o que ensinar, mas apenas reproduzir o contedo, a

    partir do instrumento j preparado. Em sua obra Didctica Magna, logo aps a introduo,

    Comnio (1957, p. 44) afirma que se deve investigar e descobrir um mtodo no qual os professores ensinem menos e os estudantes aprendam mais; [...]. O tipo de educador e de relao educativa, at ento realizado, no comportava a expanso da educao. Assim, era

    preciso dar ao trabalho didtico uma forma simples e objetiva, para que qualquer homem

    mediano pudesse ensinar, e cujo fundamento seria ensinar e aprender rapidamente,

    facilmente, vantajosa e solidamente. Desse modo, o manual didtico comportaria tal

    mtodo, pois nele se poderia consubstanciar uma sntese de conhecimentos humanos sob uma forma mais adequada ao desenvolvimento e assimilao da criana e do jovem (ALVES, 2001, p. 86).

    Frisa-se tambm a contribuio de Wolfgang Ratke no mbito das lutas travadas

    entre as foras feudais e a burguesia, que defendeu a difuso da lngua alem, e, j em

    1612, em meio a intenso conflito, iniciara um projeto educacional para implantar a nova

    arte de ensinar, comeando a elaborar manuais didticos para o ensino da lngua nacional,

    a partir de 1614.

    Portanto, v-se que as relaes entre as produes humanas esto imbricadas com a

    sociedade em que foram produzidas, como pontua Souza (2010). Conforme indica a autora,

    a burguesia percebeu que o Latim, no domnio da comunicao social, institudo

    hegemonicamente e monopolizado pela Igreja Feudal, precisava ser superado para

    possibilitar melhor fluxo do mercado mundial. tambm, nesse sentido que Hoff (2008)

    indica Ratke como um representante do pensamento burgus que reconhecia a importncia

    de se difundir a lngua alem. Assim como o livro didtico emergiu de uma necessidade

    histrica no interior do desenvolvimento da sociedade capitalista, tambm a lngua nacional

    ganhou importncia quando a burguesia representativa da fora histrica no embate com o

    feudalismo ps em questo o Latim, no domnio da comunicao.

    importante assinalar que quarenta e cinco anos antes da edio da Didtica

    Magna, conforme Hoff (2008), Ratke, comprometido com o iderio da reforma,

    combatendo o pensamento institudo no sistema social feudal, inaugurava a instituio

    escolar e didtica, com prticas escolares, na base da diviso do trabalho didtico. Porm,

    h em Ratke a preocupao com o ensino da lngua, de modo que sua nova didtica

    representa planos embrionrios de uma proposta pautada no uso de manuais didticos, que

    ganhou a dimenso de um sistema universal com Comnio. Foi ele, conforme indica Alves

    em vrios de seus escritos, que formulou a pedagogia que expressa a arte de ensinar tudo a todos em perfeita harmonia com as necessidades da nova sociedade, criando um instrumento nico para todo aprendizado.

    Quanto escola primria - ludus literarius - ou escola pblica da lngua vernculavi,

    ao ensino da arte de ler e escrever, Comnio recomendou banir da escola qualquer autor

    cujo mtodo no iniciasse o ensino da alfabetizao pelas palavras, e usar aquele que

    instrua pelas coisas teis e metodicamente, sem fadiga e com grande economia de tempo.

    Segue-se disso, que nem os manuais didticos e nem o mtodo eram coisas separadas na

    proposta de Comnio, e estavam relacionadas s transformaes que ocorriam na base

    material da nova sociedade. Eles eram instrumentos os quais, consoante a um momento

    histrico caracterizado por mudanas materiais, conferiam unidade s necessidades

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    reclamadas poca. Nessa passagem Comnio expressou claramente a acepo de sua

    proposta no que tange ao ensino das lnguas:

    As lnguas aprendem-se, no como uma parte da instruo ou da

    sabedoria, mas como um instrumento para adquirir a instruo e para

    comunicar aos outros. Por isso, no devem aprender-se a todas, o que

    impossvel, nem muitas, o que intil, alm de que roubaria o tempo

    devido ao estudo das coisas; mas apenas as necessrias. Ora, so

    necessrias: a lngua materna, para tratar dos negcios domsticos; as

    dos pases vizinhos, para entrar em relaes com eles [...]. Basta

    aprender o suficiente para ler e entender os livros. [...] O estudo das

    lnguas, especialmente na juventude, deve caminhar paralelamente com as

    coisas, de modo que se aprenda a entender e a exprimir tanto as coisas

    como as palavras. (COMNIO, 1957, p. 331, os grifo so nossos).

    V-se que para ele o ensino da lngua consiste em um aprendizado no domnio

    circunscrito comunicao. Em sua perspectiva, o contedo no a linguagem como meio

    para refletir, mas como um instrumento tcnico com um fim bem especfico. O mtodo

    reflete o pensamento que considera o aprendizado, no caso aqui o da lngua, uma utilidade

    prtica.

    Crtico da escola clssica, defendia uma didtica para a minimizao do esforo do

    professor, afirmando: A proa e a popa da nossa Didctica ser investigar e descobrir o mtodo, segundo o qual os professores ensinem menos [...] nas escolas, haja menos

    barulho, menos enfado, menos trabalho intil [...] e mais slido progresso [...]. (COMNIO, 1957, p. 44). Aqui, expressa o carter prtico e til ao desenvolvimento da

    nova ordem social. Sua abordagem centra-se em torno dos objetos concretos e teis, haja

    vista a nfase nos procedimentos de observao sistemtica. No se devem apresentar s

    crianas as palavras separadas das coisas, porque isoladas elas no existem e nem

    desempenham uma funo, pois s as coisas do sentido s palavras. No dizer de Comnio

    (1957, p. 320) aprenda-se a fazer fazendo. Para ele a inteligncia s pode ser alcanada pela ao se nas oficinas das artes mecnicas os aprendizes no se perdem com

    especulaes tericas.

    Nessa perspectiva, os sentidos so a fonte para todo aprendizado, inclusive o das

    lnguas nas escolas, da iniciar o ensino a vista das coisas. Ento, que os manuais sejam

    cuidadosamente ilustrados, pois com as imagens das coisas, as crianas devem express-las

    e reproduzi-las, tanto interiormente por meio da memria, como exteriormente por meio

    das mos e da lngua.

    O livro ilustrado de Comnio, Orbis Sensualium Pictus, carrega uma concepo de

    educao, uma lgica que se expressa na forma de ensinar, uma tcnica de instruo que,

    pela base cientfica, estabelece conciso e objetividade. Seguindo a sua concepo, na

    combinao da imagem com a palavra que se efetiva o aprendizado, pois, se na prtica de

    exerccio o ensino da lngua for paralelo aos das coisas, permite-se criana entender e a exprimir tanto as coisas como as palavras (COMNIO, 1957, p. 332). Conforme Schelbauer (2010), o Orbis Sensualium Pictus concretiza o mtodo universal de Comnius,

    em resposta s polmicas de seu tempo. Com a funo de subsidiar o ensino do latim s

    crianas, a partir do empirismo de Bacon, que defende que conhecimento verdadeiro

    alcana-se pela observao dos fatos ou trabalho da mente [...] (Af. I, 1999, p. 33), instituram-se as bases cientficas do ensino.

    Enfim, os livros recomendados por Comnio eram livros prticos, contendo resumo com o contedo metodicamente ordenado com o cuidado em expor somente as

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    palavras, as frases necessrias, para dominar a tcnica da escrita com os elementos sua

    gramtica, omitindo quaisquer elementos sem importncia. Indica-se o conceito utilitarista do ensino da lngua escrita, caracterstica que tem se notado na escola, pela

    ausncia da literatura como atividade essencial na alfabetizao.

    Enfim, j dito anteriormente, a organizao do trabalho didtico na escola moderna

    foi forjada no cerne de um movimento de lutas encetado desde Martinho Lutero,

    encampado por intelectuais e pedagogos como Ratke e Comnio que procuraram superar o

    modo de pensar e ensinar, institudos nas escolas feudais. Em outros termos, a escola

    moderna em sua constituio expressa um momento histrico especifico, adequado

    condio material e aos interesses e necessidades de produo da vida social. Nesse

    sentido, os manuais didticos produzidos na base das relaes sociais de constituio da

    sociedade burguesa, revelam nos mtodos e contedos, a lgica pertinente a cada momento

    histrico desse sistema. Buscou-se, ento, na anlise do manual Primeiras Lies de Coisas

    frisar que o mtodo nele impresso respondeu s necessidades histricas, e isso marcou os

    limites como instrumento da alfabetizao e, com efeito, os limites da prpria

    alfabetizao.

    2 O MANUAL DE CALKINS Primeiras Lies de Coisas: o mtodo intuitivo para alfabetizar.

    Fins do sculo XIX, Rui Barbosa de Oliveira (1849-1923) envolveu-se com as

    reformas educacionais no Brasil, face s aspiraes da sociedade capitalista frente ao

    desenvolvimento tecnolgico. O desenvolvimento do pas e a modernizao pela

    industrializao conferiam mudanas nas relaes de trabalho e, consequentemente,

    exigiam inovao na educao.

    Para fins de seu empreendimento, Rui Barbosa estabelece aspectos fulcrais que

    envolveria desde a abolio do trabalho escravo, em vista da modernizao no modo de

    produo, a questes de ordem poltica, constitucional e econmica. Apreendendo as

    demandas pela base material, as inovaes estariam vinculadas perspectiva de

    modernizao no pas. Dessa forma, o estabelecimento de um sistema de ensino pblico,

    universal, gratuito e laico tornara-se imprescindvel. Nesse contexto histrico, institui-se a

    necessidade de uma reforma geral na educao e, no mbito da pedagogia, objetivamente,

    toma-se como a discusso do mtodo e de instrumentos didticos para orientar o trabalho

    do professor.

    Rui Barbosa no foi um educador de ofcio, como diz Loureno Filho (1956), mas

    acompanhando as mudanas que se assentavam na sociedade dos pases mais avanados e

    observando o contexto histrico de transformaes sociais que ocorriam no mundo

    ocidental, o escritor entendia que a educao teria um papel de destaque no fortalecimento

    da nao. Rui Barbosa, jurista e poltico burgus, orientando-se por um movimento

    universal, empenhou-se em romper com as questes internas para a insero do Brasil no

    solo dos pases industriais. No sculo XIX, as reformas educacionais, por meio de um

    ensino de base cientfica, visaram organizar os sistemas nacionais de ensino. Essa reforma

    era parte integrante daquele movimento de industrializao, sendo a educao e o trabalho

    o emblema que preconiza a instituio do mtodo intuitivo e das lies de coisas.

    Rui Barbosa, membro e relator da Comisso de Instruo Pblica da Cmara dos

    Deputados, ao analisar os Pareceres sobre a Reforma do Ensino Secundrio e Superior

    (1882) e da Reforma do Ensino Primrio e vrias Instituies Complementares da Instruo

    Pblica (1883), enviou junto um Projeto substitutivo ao da Reforma do Decreto de abril de

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    1879. Nos Pareceres, indicava um programa para a reforma do ensino, no qual dedicava

    grande parte de suas preocupaes ao mtodo e aos livros adotados. Recomendava no s o

    mtodo intuitivo, como tambm o livro Primeiras Lies de Coisas, de Calkins, na

    condio de manual de ensino e nico instrumento de mediao do trabalho do professor na

    escola primria.

    Em seus Pareceres, Rui Barbosa indica que a instruo do povo viria a contribuir,

    especialmente, no mbito do trabalho. Em seus debates defendeu com determinao a

    educao para todos, discusso que se desenvolvia em todo o mundo. Uma instruo com

    os mtodos e contedos pertinentes, prepararia a criana para a vida, preparando o homem

    cidado para exercer, pelo trabalho, a sua funo na sociedade. No bojo do sistema

    burgus, percebia o movimento da sociedade no mundo e a educao era colocada no cerne

    das discusses entre tantas outras questes. Em fins do sculo XIX, sua expanso comeou

    a tornar-se uma demanda social.

    Acompanhando o movimento cultural, Rui Barbosa creditava o poder incontrastvel

    da cincia para os fundamentos mais gerais de sua pedagogia. Para ele, o pensador original

    no seria aquele que tinha um s mestre, mas muitos deles, inspirando-se desse modo nos

    cientistas, filsofos e educadores naturalistasvii, que evidenciavam a cincia burguesa,

    estabelecendo como princpio de sua metodologia o respeito natureza e compreenso

    evolutiva da criana.

    De fato, salientou, sobretudo, a necessidade de uma reforma, desde a administrao

    escolar at a sua organizao, envolvendo o trabalho didtico, o mtodo e contedo, bem

    como a preparao tcnica do professor. Dessa feita, o instrumento que conduziria prtica

    mais adequada para a racionalizao da nova pedagogia era o manual de ensino, Primeiras

    Lies de Coisas, que se orientava pelo mtodo intuitivo. Por isso a preocupao de Rui

    Barbosa com a sua traduoviii. Rui Barbosa ao traduzir o manual de Calkins comentou no

    prembulo que, entre os escritos mais notveis que revelam as obras da experincia e da

    arte de ensinar, coube ao livro Primeiras Lies de Coisas a mais alta manifestao de

    prestgio e proeminncia. Reconhece, ento, que sua indicao desde 1879 para os

    programas das escolas brasileiras foi deciso acertada. Abordam-se, agora, os contornos da

    viso de conhecimento, propagada nos princpios que fundamentam o mtodo intuitivo nas

    Lies de Coisas de Calkins.

    2.1 O manual Primeiras Lies de Coisas e o mtodo intuitivo

    O imperativo de expanso do ensino sinalizou-se na transio do sculo XIX para o

    XX, ocasio em que se assentou intensa discusso em torno dos mtodos, dos contedos

    escolares e dos recursos e instrumentos didticos que responderiam s condies

    necessrias para organizar o ensino no sculo XX. Tratava-se, pois, de discutir o mtodo

    que daria pedagogia um carter cientfico que melhor conviria, em termos objetivos,

    prtica didtica. Foi nesse contexto que o mtodo intuitivoix de ensino surgido na Alemanha no sculo XVIII, divulgado no decorrer do sculo XIX, nos Estados Unidos e na

    Europa e conhecido pela expresso lies de coisas passou a ser matria de discusso no Brasil, nas primeiras dcadas do sculo XIX e primeira metade do sculo XX. Esse mtodo

    foi aclamado como o nico adequado inovao, especialmente para o ensino da instruo

    primria, ganhando um lugar bem determinado: fazer frente ao chamado ensino tradicional,

    qualificado como abstrato, livresco, verbalista e inadequado para atender s necessidades da

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    formao mais propriamente de escolarizao que se revelava, naquele momento histrico, com uma perspectiva objetiva, pragmtica, funcional e utilitarista.

    O livro Primeiras Lies de Coisas, baseado no mtodo intuitivo, tem sua primeira

    edio datada em 1861, refundida e ampliada em 1870, verso que foi traduzida por Rui

    Barbosa em 1881 e publicada no Brasil em 1886. A obra em referncia um manual

    didtico, dirigido aos pais e professores primrios, que delineia todo o programa a ser

    desenvolvido na escola elementar, discutindo as bases do ensino e do trabalho didtico, no

    sculo XIX. Apresenta as lies com os procedimentos metodolgicos que os professores

    devem seguir em sala de aula.

    Contando dez anos de publicao, esse livro, em sua quadragsima edio, era

    composto de seiscentas e trs pginas, com vinte e um captulos. Essa edio, acrescida de

    novas orientaes nas diversas matrias de ensino, inclusive no ensino da leitura,

    apresentado por Rui Barbosa como o manual de ensino que contm os verdadeiros

    princpios e mtodos do ensino objetivo. A obra apresenta os princpios fundamentais do

    mtodo: as lies de base para o trabalho com o nmero e operaes bsicas da matemtica,

    o desenho, o escrever e a leitura elementar, o corpo humano e a educao moral. As

    primeiras orientaes so dirigidas aos pais, para a educao dos sentidos no seio da

    famlia. Depois, as lies que se reservam ao ensino escolar, com as orientaes aos

    professores. Segundo o princpio das lies de coisas, o processo natural o fundamento

    vital desse mtodo; as matrias de ensino, portanto, devem ser graduadas, partindo do mais

    simples para o mais complexo. Tal como em Pestalozzi, d-se criana, em cada ao, passos gradativos de conhecimentos, em que cada ideia nova somente um pequeno

    acrscimo, ao que j sabido... tudo que a criana precisa aprender deve ser proporcional a

    sua fora [...] (PESTALOZZI apud EBY, 1970, p. 388). Ao traduzir as Primeiras Lies de Coisas, Rui Barbosa, j na abertura do livro,

    apresenta um ofciox, cujo teor se traduz em reivindicaes e recomendaes com vista

    reformulao no ensino primrio desde os fins do Imprio. Os termos da carta colocam em

    evidncia que uma nova ordem de considerao comeava a se fazer presente para o ensino

    pblico brasileiro. De uma parte, o documento assinalava a inteno de um movimento

    para ampli-lo, indicando os limites do ensino individualizado. E de outra parte, a

    necessidade de pr em exerccio a proposta de um ensino mais prtico do que

    propedutico; o contedo objetivado pelo mtodo em um instrumento como o manual

    simplificaria o trabalho didtico, apresentando lies precisamente sistematizadas.

    Primeiras Lies de Coisas um instrumento especializado, com uma funo especfica:

    pelo mtodo objetivo, sintetizar, organizar, orientar os contedos necessrios para a

    educao que, no sculo XIX, viria a ampliar-se. Nas palavras de Calkins:

    [...] a experincia aprofundou-me e ampliou-me a convico de que os

    verdadeiros princpios e methodos da instruo elementar se acham

    substanciados com a perfeio mais cabal no ensino objectivo; de que no

    se tem exaggerado a importncia deste systema na educao da puercia;

    de que sob todas as condies em que pde variar a instruo na escola, os

    fatos abundantemente confirmam a utilidade prtica desse systema.

    (CALKINS, 1886, p. XXV).

    Esse manual, em sua estrutura geral, expe o que h de ensinar, como ensinar, quando ensinar (CALKINS, 1886, p. 56). O texto consiste em dar os fundamentos do mtodo intuitivo e as orientaes das matrias, alm de um conjunto de anotaes

    complementares sob o nome de Conselhos ao mestre. Ao discutir os problemas do ensino, o

    que caracteriza a preocupao do autor das Lies de Coisas no so, seguramente, os

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    Revista HISTEDBR On-line, Campinas, n 60, p.38-61, dez2014 ISSN: 1676-2584 50

    aspectos clssicos do conhecimento, mas o como fazer de acordo com os princpios que

    informam a intuio. Calkins consagra na sua obra uma sucesso de lies, com as

    orientaes e modelos de como o professor deve proceder. Nela, as atividades

    sistematicamente graduadas, respeitam os princpios do mtodo intuitivo, que, em sntese,

    conjuga os conhecimentos pela percepo:

    pelos sentidos que nos advm o conhecimento do mundo material. Os

    primeiros objetos onde se exercem as nossas faculdades so as coisas e os

    phenomenos do mundo exterior; [...] o processo natural de ensinar parte

    do simples para o complexo; do que se sabe para o que se ignora; dos fatos

    para as causas; das coisas para os nomes; das ideas para as palavras; dos

    princpios para as regras [...] (CALKINS, 1886, p. 1-3).

    Do ponto de vista epistemolgico, fundado no mtodo intuitivo, o ensino deve

    privilegiar os sentidos de modo que basilar o mestre lanar mo de uma didtica

    profundamente prtica, isto , tomar a coisa concreta para mediar o ensino, seguir o

    desenvolvimento natural da infncia, e ao professor cabe a excelncia na aplicao do

    mtodo: [...] a opportunidade prpria de cada lio, dispuzemos em passos [...] Em caso nenhum se altere a ordem, na qual se acham graduados os passos de cada assumpto [...] (CALKINS 1886, p. 56, grifo do autor). Para Calkins o professor que se fizesse perito em desenvolver esse mtodo ensinaria melhor a ler e, tambm, os assuntos de outra matria.

    Fruto da forma de organizao do trabalho didtico no mtodo intuitivo, a funo do

    professor se reconfigura numa relao com os instrumentos de trabalho, no molde

    capitalista. Gradativamente, aquilo que o qualifica como preceptor, na Idade Mdia, o

    conhecimento, restringiu-se a habilidades tcnicas; sua autonomia, portanto, passou a

    circunscrever-se sistematizao metdica dos contedos previstos nos manuais. O livro

    Lio de Coisas, pela natureza de seu mtodo, simplifica o trabalho do professor, conforme

    palavras de Calkins:

    Differe o meu livro de outros, elaborados por vrios professores, numa

    feio importante, a saber: exemplifica ao preceptor o modo de haver-se,

    em cada passo successivo, no desenvolver do esprito das creanas. Depois

    de dizer o que se h de praticar, passa a mostrar por exemplos

    demonstrativos o como fazel-o. (CALKINS, 1886, p. XVIII. Grifo do

    autor).

    Pode-se dizer que o livro, na condio de manual, cerceia os contedos. Objetivados

    no manual, os contedos devem ser desenvolvidos, passo a passo, consecutivamente,

    orientado pelo mtodo. Subjaz que, tanto os contedos quanto o fazer do professor devam

    ficar submetidos quilo que nele est sistematicamente organizado conforme a tcnica.

    Calkins prope dar aos professores um guia que acondicione o seu fazer. E Rui Barbosa, na

    condio de tradutor, escreve que Calkins, na elaborao de sua obra, teve a inteno de

    produzir:

    Um livro que correspondesse s necessidades do magistrio, oferecendo-

    lhe um systema natural, singelo e philosophico de educao primaria, to

    claro e circunstanciado, que a todo e qualquer preceptor facultasse no s

    compreender-lhe os princpios, mas o applical-os, entre os variados

    incidentes que na execuo se lhe possam deparar. (CALKINS, 1886, p.

    XIX, grifos nossos).

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    Calkins sugere que o seu manual seja para o professor um instrumento to

    detalhado, com instrues to pormenorizadas, que ao professor bastaria incorporar os

    princpios do mtodo e reproduzir a lio do manual. O professor secundariza-se diante do

    manual de Calkins, o livro supriria entre variados incidentes quaisquer situaes de desafio com os quais ele pudesse se deparar. essa a caracterstica desse instrumento:

    orientar o trabalho didtico objetivamente e evidenciar na tcnica a eficincia do professor.

    O livro didtico, instaurado na escola moderna na condio de manual mediador do trabalho

    docente, contm, a priori, funo essencialmente econmica e tcnica. Os contedos nele

    objetivados so simplificados, tendo em vista a sua natureza, j que em sua origem foi

    pensado para superar as questes de ordem social, no campo material e subjetivo.

    Por conseguinte, acabam por restringir os conhecimentos mais amplos, justamente,

    aqueles necessrios ao entendimento do que a sociedade na qual estamos inseridos. De

    fato, no era essa a razo de ser da escola que se reclamava para a modernidade. As

    Primeiras Lies de Coisas surgiram em um universo histrico marcado por necessidades

    materiais, portanto, objetivas. Ao lado das transformaes na base material da sociedade,

    faz-se necessrio reformar todo o projeto educativo. Na sociedade moderna do sculo XIX,

    estabeleceram-se as concepes de ensino e o mtodo intuitivo traduzia as lies pertinentes

    e coerentes com os princpios norteadores do utilitarismo que lhes eram peculiares. Dado o

    pragmatismo que se desenhava na sociedade naquele momento histrico, os livros clssicos

    refinavam o pensamento, mas no formavam para o ofcio, portanto, no eram adequados.

    No traduziam as necessidades que despontavam para as condies concretas da vida

    prtica, pois, sem a experincia, ningum ser um profissional-tcnico com treino para uma

    atividade especifica. Comnio (1957, p. 294) j escrevera: [...] para ensinar as artes e as lnguas, como livros fundamentais, devem escolher-se ou fazer-se de novo volumes de

    pequeno tamanho e de notvel utilidade, que exponham as coisas sumariamente [...]. Logo na apresentao de sua obra, Comnio institui que os fundamentos da arte de

    ensinar sigam aos das artes mecnicas, indicado por um caminho seguro de pr as coisas em

    prtica com bons resultados. Eis que as Lies de Coisas so concebidas em todo o seu

    carter prtico-social. Acrescenta atividade educativa a engenhosidade que converte a

    escola em um espao de intercmbio com a vida prtica. Calkins sublinha o quo judicioso

    foi Rousseau, ao indicar o esmero que se deve dar aos sentidos das crianas, pois que a

    exatido da memria e a preciso do juzo dependiam, na razo direta, da clareza das

    percepes:

    Um menino que v imperfeitamente, no vingar discorrer com acertos

    sobre os objetos visveis, a respeito dos quaes carece de dados sufficientes.

    Um que no ouve distintamente, no pode julgar exatamente do som; e, se

    suppuzessemos duplo numa crena em relao a outra o sentido do tacto, logo se podia inferir que entre ellas diferia na mesma proporo a

    perscuidade do juzo (CALKINS, 1886, p. 9).

    Todo o ensino pelo mtodo intuitivo valoriza a priori o desenvolvimento de

    habilidades sensoriais. O treino a tais capacidades perceptivas deveria ser iniciado por meio

    da observao desde a infncia, estendido na adolescncia e fortalecido na idade adulta. Do

    ponto de vista objetivo, o contedo do livro secundrio, pelo menos quando se deveriam

    ensinar a partir dos objetos concretos as coisas prticas da vida, direcionadas a interesses

    especficos. Conforme Saviani (2010), marcada pela euforia industrialista, na segunda

    metade do sculo XIX, a educao aparece como fator de modernidade, ligado ideia de

    progresso. Nesse sentido, na difuso da proposta de inovao pelo mtodo intuitivo, todos

    os objetos se didatizam de modo que vrios pases, inclusive o Brasil, organizaram

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    exposies universais, divulgando a utilizao de materiais concretos, j que o mtodo

    intuitivo tem como fonte as impresses sensoriais.

    Nessa perspectiva, o ensino da leitura no mtodo objetivo, antes de ser o de

    ensinar a ler os livros, deve ser o de ensinar a ler os objetos materiais, suas qualidades, suas

    propriedades, isto , as suas funes utilitrias. Infere-se, frente ao exposto, que a leitura se

    dissociou da literatura quando escrever e ler, a priori, assentou-se no desenvolvimento de

    habilidades perceptivas. Ler, ento, seria identificar a utilidade das coisas para a vida

    prtica. Do ponto de vista objetivo, o contedo do livro secundrio, pelo menos quando

    se deveriam ensinar as coisas vida prtica com eficincia direcionada a interesses

    especficos, e com economia de tempo.

    Segundo o princpio do mtodo: aprender fazendo, parece paradoxal a excluso do

    livro nas fases iniciais do ensino da leitura, pois, em tese, comear lendo o livro no seria

    aprender a ler lendo? No. Porque naquele mtodo, aprender fazendo, estava absolutamente enraizado no fazer como treino para desenvolver habilidades tcnicas. No

    consistia em fazer para aprender, mas em aprender a fazer. Portanto, o aprender no

    significava desenvolver os conhecimentos como instrumentos para pensar, mas em

    desenvolver aptido para fazer as coisas. No item Leitura de livros, apesar de Calkins

    (1886) mostrar preocupao com o sentido da leitura, e de pretender torn-la atraente e

    convidativa criana, o mtodo objetivo, por si mesmo, exclui desse ensino qualquer

    possibilidade de provocar o desejo de ler. A alfabetizao pelo mtodo objetivo, com tantos

    passos segmentados: primo, a idea, secund, os seus symbolos, terti, arte de representar cada ida pelos seus signos peculiares [...] (CALKINS, 1886, p, 439), cria, precisamente,

    uma camisa de fora no processo de alfabetizao, longe de ser um convite a leitura, um

    instrumento para executar o seu estrangulamento.

    3 A ANLISE O MTODO INTUITIVO NO ENSINO DA LEITURA

    A anlise do instrumento eleito para o estudo neste trabalho tomada sob a

    perspectiva da proposta comeniana. Como se indicou, anteriormente, explora-se o

    pressuposto de que os manuais didticos, como instrumentos de trabalho do professor para

    mediar a alfabetizao, vinculam-se s exigncias da especializao instituda no mundo

    moderno. Infere-se, desse modo, que a proposta de ensino da leitura e da escrita funda-se

    na base tcnica do trabalho imanente sociedade capitalista burguesa.

    Tambm, j anunciado, sob essa perspectiva a utilizao desse instrumento

    permite a sua problematizao em dois aspectos. Primeiro porque, caracterstico de um tipo

    de organizao do trabalho didtico, revela o mtodo e o contedo pertinente ao seu

    momento histrico, e, segundo, o processo de alfabetizao conduzido pelas necessidades

    que o determinam em contexto social especfico.

    No momento histrico em que se constitui uma nova etapa da sociedade capitalista

    em fins do sculo XIX, com demandas singulares, a instituio de um novo mtodo seria o caminho adequado para que a prtica educacional pudesse cumprir a sua funo, em

    correspondncia com a dinmica da sociedade. Para Rui Barbosa, toda a instruo

    dependia do estabelecimento de uma lei invarivel, que se resolveria pela questo do

    mtodo. Eis que Primeiras Lies de Coisas, um manual balizado pelo mtodo intuitivo,

    constitui a racionalidade prtica e a objetividade em sintonia com a escola que se deve pr

    para o sculo XIX.

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    Presencia-se, assim, o incio da concretizao daquela forma de ensino preconizada

    por Comnio, no ensino primrio pela objetivao e simplificao do trabalho didtico e,

    por consequncia, o incio da especializao tcnica do professor, evidenciada no manual

    de ensino. Nas palavras de Calkins (1886, p. XXV) [...] os verdadeiros princpios do methodos da instruo elementar se acham substanciados com a perfeio mais cabal no

    ensino intuitivo. Ele se torna a pedagogia para a tcnica de ensinar pela intuio sensvel, e deve adquirir centralidade nas mos do professor, o nico balizado para orientar o ensino.

    As lies mediadas pelos objetos concretos, e obedecendo as leis fatais de desenvolvimento fisiolgico da criana (RUI BARBOSA, 1883, p. 49), so distribudas gradualmente no plano de estudo. Numa perspectiva racional, a educao deve articular

    mente e corao, e a criana tem que ser ativa, conforme os cnones cientficos; as lies de coisas, pela observao, substitui o verbalismo formal da escola antiga. Estabelece-se, por tais princpios, a relao com o trabalho que passa pelos conceitos de

    liberdade e autonomia, que se circunscreve pela individualidade. Essas qualidades so tanto maiores e possveis de serem alcanadas na medida do esforo e da inteligncia de

    cada um.

    Enfim, as lies de coisas, pelo exerccio dos sentidos, educaro a criana nos

    passos que seu corpo e esprito sejam capazes de atingir. Em outros termos, com suas

    distintas tendncias intelectuais e capacidades individuais, em uma mesma atividade

    pedaggica, cada um, por suas condies, se desenvolve dentro do princpio da educao

    integral.

    Jules-Gabriel Compayrxi ([191-?]) polemizou as inovaes que se colocavam no

    sculo XIX, na transio para o sculo XX. Compayr critica os educadores modernos,

    pontuando impactos ofensivos ao ensino advindo das novas perspectivas que se

    anunciavam para o trabalho didtico naquele momento. Para ele a tendncia dos

    educadores era a de incorporar as novidades no campo da pedagogia, desprovidos de uma

    reflexo consequente. A essa irracionalidade indica a aplicao do mtodo intuitivo nas

    prticas pedaggicas, caracterizando a problemtica pela ausncia de um estudo

    aprofundado, que converte a sua utilizao de forma equivocada assentando-lhe o exagero.

    Para o pedagogo e historiador francs, o que determina o mtodo a natureza do

    objeto de ensino. Portanto, no h um mtodo universal para todo o ensino, ambio que se

    pretende atribuir ao mtodo intuitivo. Compayr nega a intuio como metodologia. Na

    realidade, ela coexiste no suposto mtodo intuitivo, no qual esto presentes a induo e a

    deduo. Afirma que a intuio equivocadamente tomada como mtodo, porque

    confundida com lies de coisas. A intuio seria subsdios a um mtodo de ensino, mas

    no um deles. A lio de coisas por sua vez, seria um mtodo e, como o prprio nome

    sugere, orientado pela percepo sensvel que s se faz mediante objetos. Sua aplicao

    metodolgica nunca deve ser uma lio didticaxii, e s se justifica como ponto de partida

    para o ensino da infncia, pois a criana no suporta um discurso por muito tempo.

    Entretanto, jamais poder ser mtodo geral para todo o ensino.

    Compayr indicou pelo menos trs impactos no trabalho educativo quando se

    instituiu essa inovao para a escola moderna, e que do origem secundarizaco de

    outros elementos que configuram o trabalho didtico, intimamente relacionado com o

    estabelecimento dessa nova perspectiva na relao educativa, cuja pretenso a de: 1)

    colocar a criana numa posio ativa; 2) o professor subordinado ao mtodo e 3) os

    contedos construdos na relao com o ambiente, pela percepo sensvel.

    Distinguir o que est na origem do mtodo intuitivo ou de outro qualquer

    fundamental, mas esse conhecimento s ganha significado na medida em que se consiga

    apreend-lo organicamente. Porque e como esse mtodo se difunde e o que devemos

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    entender por inovao e por processo de difuso, num determinado momento histrico, a

    forma nova de racionalizar o antigo, em face de novas necessidades da sociedade. Ento,

    sublinhar o significado e a importncia que teria o mtodo intuitivo, impe uma

    compreenso dinmica de sua instituio na educao.

    Entretanto, Compayr, sob o influxo dos pensadores iluministas e sob o vis

    cientificista, com o pensamento fortemente influenciado por Ren Descartes, desenvolve

    suas crticas, apresentando uma postura conservadora, a despeito de questes mais amplas

    que determinam a introduo do mtodo intuitivo na educao naquele quadro de tenso.

    De fato, os processos e a forma instituda no mtodo, denominado intuitivo,

    inauguraram a escola moderna, apresentando a racionalizao dos programas escolares,

    imprimindo a simplificao e objetivao do trabalho didtico, na pedagogia moderna. Eis

    o que diz Buisson (2013, p. 238): perfeitamente verdadeiro que, depois do sculo 18, procuramos e conseguimos simplificar, popularizar o ensino [...].

    Certamente, pode-se afirmar, que no foi por acaso e nem por uma concepo

    fragmentria e incongruente, mas, pelo contrrio, articulada base material que se

    constituiu a expresso da sociedade burguesa. Como afirma Saviani (2009a), a concepo

    de mundo hegemnica se universaliza pelo seu alto grau de elaborao, obtendo o

    consenso das diferentes classes que integram a sociedade. Nessa condio se dissemina a

    pedagogia moderna, que institui uma dada organizao do trabalho didtico a qual,

    acolhida sem crtica, se configura como a forma natural de ser do ensino.

    A questo conseguir perceber as transformaes inerentes a cada movimento, as

    formas que as relaes assumem e, ainda, a sua dimenso na estrutura social em que elas se

    encontram. Cabe entender que o mtodo um instrumento, tal como os contedos

    escolares tambm o so. Assim, o mtodo que est na origem da cincia moderna e que

    articula na sua base um pragmatismo necessrio, foi um instrumento de luta. Mas, da

    mesma forma, ele se configura como um instrumento para articular a hegemonia da

    sociedade capitalista burguesa. Eis o que diz Saviani (2008, p. 32b): toda postura revolucionria uma postura essencialmente histrica; enquanto estiver no processo de transformao radical da sociedade, os interesses coincidem com a perspectiva de

    mudana; porm, medida que a classe revolucionria se consolida, os interesses tomam

    direo contrria quele que corresponde transformao e passam a ser conservadores.

    Assim, no momento em que a burguesia acusa o mtodo tradicional de antifilosfico e

    desprovido de um carter cientfico, constri os argumentos que defende o novo, na base

    do mtodo intuitivo.

    Note-se que a proposta educacional integrada ideologia burguesa reflete a cincia

    fundada entre os sculos XV e XVII, concebendo o mtodo intuitivo como expresso do

    mtodo cientfico e, por conseguinte, a metodologia apropriada para substituir todos os

    outros, na reorganizao do modo de ensinar em toda a educao. Vale dizer, com respeito

    funo histrica dos mtodos, que eles constituram a cincia moderna pela concepo

    utilitria, da a sua importncia na formao do mundo moderno. Mas, justamente por isso,

    h que super-lo.

    Da perspectiva que se props apreender o objeto de estudo deste trabalho, coloca-se

    como questo fundamental analisar os limites histricos do mtodo; portanto, importa

    menos o seu emprego como tcnica em si, e mais a sua condio como instrumento de

    trabalho construdo na sociedade moderna. Aos mtodos institudos nessa escola,

    nomeados como mtodo intuitivo ou Lies de Coisas, devem-se dar um lugar bem

    expressivo no seio da sociedade que os gerou. Ressalte-se, o livro todo composto de

    lies, com atividades orientadas em funo dos sentidos, com nfase no fazer prtico, e o

    professor de primeiras letras deve ser hbil em ensinar coisas reais.

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    A considerar as explicaes e os encaminhamentos metodolgicos, o mtodo

    intuitivo um instrumento com objetivo bem determinado que, didaticamente, se enraza

    nas entranhas da modernidade, para especializar o professor na tcnica de ensinar pela

    realidade sensvel. Percebe-se pela ordenao sistemtica, a perspectiva pragmtica que se

    investe na organizao do trabalho didtico, que se revela no uso de frases para leitura, tal

    como abordado no item sobre a leitura de livros: o contedo textual se reduz formao de frases que indicam ideias do fazer, de utilidade e de comportamentos. Por exemplo, no

    sexto passo da lio leitura de livros, o autor indica:

    Levae os meninos a dar cpia de que entendem a accepo das palavras,

    empregando-as mais ou menos deste theor: [...] Vacca. A vacca d leite.

    Nadar. Os peixes nadam. Cuidados. Devo ser cuidadoso com os meus

    livros. Obediente. Sou obediente quando fao o que manda minha me.

    Attento. Procuro ser attento s minhas lies. (CALKINS, 1886, p. 453).

    Naquelas circunstncias histricas, a leitura se restringe ao estritamente necessrio

    para o seu domnio tcnico. O ensino da lngua na escola moderna suprime a leitura do

    texto na medida em que o raciocnio segmenta o procedimento tcnico. Coerente com a

    lgica que se segue ao advento do capitalismo, a escola prescinde da viso de totalidade.

    Como diz Souza (2010, p. 13), desde suas origens a educao, e dentro dela o ensino da leitura, despreza as teorias que reivindicam uma viso de totalidade, optando por anti-teorias cada vez mais fragmentadas. (SOUZA, 2010, p. 13). A utilizao do manual didtico na condio de instrumento mediador do ensino, concentrando-se na leitura

    objetiva, no quadro preto, na pedra, no mapa, na carta e no livro didtico de leitura, conduz

    na prtica, extino da leitura enquanto literatura, da leitura de textos literrios.

    Se se considerar aquele contexto histrico, o objetivo da leitura s podia ser aquele:

    instrumental. forjada para informar os indivduos, de acordo com as necessidades advindas do trabalho, (SOUZA, 2010, p. 79), nos rudimentos das letras. Formam interpretadores de cdigos e privam as crianas de adquirir um pensamento mais elaborado.

    O ensino da linguagem pela percepo sensvel consiste estritamente para o uso de um

    sistema de sinais para expressar e comunicar o pensamento na sua forma escrita e falada.

    Desse modo, em se tratando da leitura e da escrita, a medida da leitura est na

    medida em que a criana exercita a identificao dos smbolos como representao das

    coisas e opere com os caracteres e sons da lngua. O manual Primeiras Lies de Coisas

    traduz o mtodo intuitivo, operando com a percepo sensvel, atuando sobre coisas reais,

    de modo que real s o objeto emprico. Por esse vis, a linguagem oral traduzida pela

    linguagem escrita apreendida puramente como coisa, um signo, um cdigo, um sinal, um

    smbolo que, na realidade objetiva, nomeia os fatos, os acontecimentos, os eventos, e se

    caracteriza pela sua utilidade.

    As sries de exemplos descritos em Primeiras Lies de Coisas evidencia o

    aprender a ler e a escrever como resultado da capacidade de aprender as palavras pelo

    aspecto, pela realidade, pela intuio, pelo cultivo das faculdades de observao. Como

    bem explica Hoff (2010), a lio de coisas, determinada pela forma intuitiva de apreender

    as coisas, capta os objetos humanos como se fossem objetos naturais, e no como objetos

    humanos.

    Entrementes, h que se analisar que, por um lado, produziu uma arte de ensinar

    diferente daquela recebida pelas crianas, nas escolas feudais, por outro, sua postura

    idealista estabelece uma relao de proeminncia do pensamento, de modo que no se

    distinguem os objetos naturais dos objetos humanizados, como se ambos fossem uma

    unidade em si mesmos. Uma coisa s pode estabelecer unidade, se vista numa relao una e

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    ao mesmo tempo distinta no nvel do pensamento. A lio de coisa, orientada pela intuio

    sensvel das coisas, no estabelece essa relao.

    A linguagem no rol das obras que o homem produziu, conjuga-se historicamente

    pelo verbo de seu tempo; em outros termos, a escolha do mtodo para ensinar se estabelece

    de uma parte, pelas condies materiais e de outra parte, pelos interesses e necessidades

    peculiares de uma dada sociedade. Assim, o carter pragmtico e tcnico na base do

    mtodo intuitivo foi a matemtica para equalizar os problemas da educao bsica, na

    sociedade moderna.

    Eis o carter tcnico da alfabetizao. A leitura um instrumento para relacionar,

    ordenar, classificar, da associar as coisas e as imagens palavra, sendo esta, portanto, a

    via pela qual se configura o papel da linguagem: mais do que interagir com os livros, deve-

    se interagir com os objetos. Igualmente, perspectiva utilitria de Bacon, a orientao de

    Calkins sintetiza o seu pragmatismo: apenas pelos livros, ningum seria um perfeito

    trabalhador, um profissional dotado de habilidades tcnicas especficas, pois sem

    observao e a prtica, sem a experincia, ningum o ser.

    Para concluir esse texto, frisa-se o que confere sentido a este estudo: apreender as

    dimenses do pensamento e do fazer humano historicamente. Assim, para ilustrar

    retomam-se uma passagem da produo de Descartes. Em o Discurso Sobre o Mtodo, o

    filsofo conta que dedicou muito tempo de sua vida leitura dos livros, aprendendo muito

    sobre a cultura de diversos povos, e isso lhe foi salutar.

    Mas quando se leva muito tempo viajando, acaba-se por ficar estrangeiro

    no prprio pas; e, quando muita a curiosidade pelo que se passou nos

    sculos passados, fica-se, em geral, ignorante do que se faz no presente.

    Alm disso, as fbulas fazem imaginar muitos acontecimentos como

    possveis, quando no o so, e mesmo as histrias mais fiis, quando no

    modificam ou no aumentam o valor das coisas para torna-las mais

    dignas para serem lidas pelo menos omitem quase sempre as

    circunstncias secundrias ou menos interessantes. Da resulta que o resto

    no aparece tal qual , que os que regulam os seus costumes pelos

    exemplos que a se encontram ficam expostos a cair nas extravagncias

    dos paladinos dos nossos romances e a conceber projetos que ultrapassem

    as prprias foras. (DESCARTES, 1991, p. 16).

    Importa lembrar que essa perspectiva atributo marcante de um momento histrico

    em que o mtodo, orientado pela razo e pela experincia, deveria estabelecer as bases para

    desenvolver uma cincia combativa, para a superao do pensamento articulado pela

    filosofia escolstica, da negar a uma dada teoria e conduzir prtica. A despeito dos

    projetos que envidaram avanos nos feitos da humanidade, h de se considerar que a

    unilateralidade no pensamento de uma determinada classe social, por consequncia, no

    permite captar a contradio. Por vezes, a despeito da inteno ou do desejo do observador,

    a realidade humana concreta uma, mas a perspectiva emprica a enxerga de fora. Gramsci

    (1978, p. 13) diz que no podemos alcanar a conscincia crtica coerente, sem a conscincia da nossa historicidade, da fase de desenvolvimento por ela representada.

    O que se apreendeu nesse estudo que mudanas se processaram naquele momento

    histrico e exigiram o restabelecer as aes para a educao correlacionada com o mundo

    produtivo. No que diz respeito ao ensino da leitura e escrita, o manual Primeiras Lies de

    Coisas trazia as lies para ensinar a tcnica, objetivamente determinada. Nele, no se v

    nenhuma discusso sobre algum contedo de linguagem ou de escrita para o professor. E,

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    Revista HISTEDBR On-line, Campinas, n 60, p.38-61, dez2014 ISSN: 1676-2584 57

    tambm, nenhum indicativo de qualquer tipo de leitura que no fosse ele prprio, nas mos

    do professor, e os livros de leitura. O manual didtico, portanto, entra na escola de forma autossuficiente, apresentando-se como sntese acabada do conhecimento a ser transmitido, [ao que] exclui todas as demais fontes do saber, diz Alves (2001, p, 56).

    A instituio das lies de coisas permitiu a ao pedaggica coordenada entre o

    fazer e perceber, possibilitando a racionalizao do trabalho educativo. Constituiu como

    norma de vida escolar a prtica, difundindo-se a ideia de oposio ao abstrato, isto , a

    tudo que inacessvel imediatamente aos sentidos. Nesse contexto, a realidade tomada

    pelos objetos concretos, entendendo-se concreto tudo que imediatamente perceptvel pela

    intuio.

    Assim, desenhou-se para o aspecto ativo uma abstrao que desvincula a atividade sensvel, como tal, da realidade objetiva. Se se distinguir o emprico de sua base

    real, no se alcana o concreto, simplesmente porque o sensvel descolado do mundo

    material uma abstrao. Este pequeno trecho marxiano oferece elementos para se pensar

    a complexidade da relao entre o real e a percepo sensvel, por consequncia, unilateral

    na mente humana:

    Certa vez, um bravo homem imaginou que se os homens se afogavam era

    unicamente porque estavam possudos pela idia da gravidade. Se

    retirassem da cabea tal representao, declarando, por exemplo, que se

    tratava de uma representao religiosa, supersticiosa, ficariam livres de

    todo perigo de afogamento. Durante toda sua vida, lutou contra essa

    iluso da gravidade, cujas consequncias perniciosas todas as

    caractersticas lhe mostravam, atravs de provas numerosas e repetidas.

    Esse bravo homem era o prottipo dos novos filsofos revolucionrios

    alemes. (MARX E ENGELS, 1991, p. 18).

    Os filsofos destacados por Marx faziam a abstrao do real pelo imaginrio e

    nunca estabeleceram a relao entre a realidade concreta e a sensvel. Nunca, tambm, se

    deram conta da crtica desvirtuada que faziam, porque no a estabeleceram em relao com

    mundo material.

    Na educao, os defensores do mtodo intuitivo e tambm crticos da escola

    antiga, pontuam que o ensino tem sido realizado por mtodos abstratos, marcado pela

    imposio de ideias, frmulas e conceitos transmitidos dos livros e compndios mediados

    pelos mestres. Tais crticos assinalam que esse um ensino livresco que presta um

    desservio para a sociedade moderna, indicando que o livro Primeiras Lies de Coisas,

    fundado no mtodo intuitivo, se diferencia daqueles, porque liberta as crianas que tanto

    sofrem com o peso dos contedos, transmitidos rigidamente pelos livros e igualmente pelas

    amarras do mestre. E tambm os diferencia daquele ensino, pois que ele mesmo se

    qualifica pelo modo de ensinar, uma vez que permite criana aprender de maneira natural,

    intuitivamente. J foi comentado que o mtodo intuitivo circunscreve o conhecimento ao

    observado no mundo material, dado pela percepo sensvel. Todavia, os prprios

    instrumentos de trabalho didtico, os mtodos de ensino e os contedos escolares s

    perdem o carter abstrato, se examinados no interior de sua prtica e produo.

    Finalizando, baseado no pressuposto que motivou este estudo, tal como se indicou

    no incio deste tpico, tentou-se chegar aos limites histricos das Lies de Coisas, visto

    ser ele um manual didtico, conveniente a um perodo em que a especializao se convertia

    num elemento importante do trabalho didtico.

    Com as caractersticas de seu tempo e, por consequncia, dos manuais didticos

    para a alfabetizao, no sentido de tornar a criana leitora, assim, o livro didtico, tal como

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    Revista HISTEDBR On-line, Campinas, n 60, p.38-61, dez2014 ISSN: 1676-2584 58

    qualquer produo humana, s concreto se examinado na sua materialidade; portanto, se

    se restringir a intuio ao conhecimento sensvel dado pela percepo do objeto emprico

    apenas, o mtodo intuitivo histrico. Apropriar-se desse livro para anlise, uma

    tentativa de compreender o processo educativo historicamente, e de procurar entender os

    projetos educacionais, seus avanos e, tambm, apreender as contradies. Eis a os

    subsdios para compreender os problemas da contemporaneidade e abrir caminhos

    diferentes daqueles, colocando em perspectivas novos projetos.

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  • Revista HISTEDBR On-line Artigo

    Revista HISTEDBR On-line, Campinas, n 60, p.38-61, dez2014 ISSN: 1676-2584 60

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    i Mtodos e Contedos de alfabetizao em manuais didticos nos sculos XIX e XX: de Calkins a Loureno

    Filho.

    ii Essa categoria elaborada por Alves (2005) informa a historicidade dos modos de ensinar. Explicita-se aqui,

    segundo Compayr [191-?], a distino entre modos de ensinar e mtodos propriamente ditos. Os modos de

    ensinar dizem respeito forma de organizar o ensino. Eles podem ser: individual, quando o mestre se dirige a

    apenas um aluno; modo simultneo, quando o mestre se dirige a vrios alunos ao mesmo tempo, a toda uma

    classe; e modo mtuo, quando o mestre se dirige aos decuries, que se encarregam de trabalhar com os

    grupos de alunos sob a sua responsabilidade. Os mtodos dizem respeito ao ensino propriamente, que se

    caracteriza por dois elementos que o regem, a ordem e a forma que articulados devem ser seguidas.

    (Compayr, [1991-?]) traduo nossa).

    iii Esses nveis correspondem em uma sequencia gradual a quatro livros: O Vestbulo, para a etapa inicial da

    aquisio da lngua, A Porta, corresponde idade pueril, O Palcio, para a idade juvenil, com trechos de

    todo gnero de frases, e por fim O Tesoiro, para a fase viril.

    iv Doutor em Teologia. Atuou como professor universitrio e nessa condio, liderou e apoiou projetos de

    reforma tanto na Universidade de Wittenberg como em outras universidades. Monge da Ordem de Santo

    Agostinho, iniciou o movimento de Reforma Religiosa, e como tal, criticou a religio estabelecida: questiona

    as prticas da Igreja Catlica considerando-as indulgentes, abusivas e corruptas. Ps em questo o prprio

    fundamento ideolgico da ordem social, defendendo o sacerdcio universal a todos os cristos e o livre

    acesso s Escrituras. Abordou as implicaes educacionais da Reforma, desde 1520, em Nobreza Crist, da

    Nao Alem, Acerca da Melhoria do Estamento Cristo, onde props a reforma das universidades como

    parte de um programa de reforma geral da sociedade poltica. Lutero props, tambm, aes para a reforma

    do ensino nas escolas inferiores, e enfatizou que as Escrituras Sagradas deviam ser o principal objeto de

    estudo, junto leitura, gramtica, dialtica e retrica. Lutero, alm de defender a educao para todos, a

    despeito de gnero e classe social, confere a ela um carter obrigatrio e estatal: Em minha opinio, porm, tambm as autoridades tm o dever de obrigar os sditos a mandarem seus filhos escola, [...] (LUTERO, 2011, v. 5, p. 362).

    v A manufatura na sua forma clssica, fundada na diviso do trabalho, desenvolveu-se como mtodo de

    trabalho o sistema de cooperao. Predomina como forma caracterstica do processo de produo capitalista,

    durante o perodo propriamente dito que vai de meados do sculo XVI ao ltimo tero do sculo XVIII

    (MARX, 1989, p. 386).

    vi Comnio organizou a escola em quatro graus conforme a idade: a escola da infncia ou regao materno, desde a

    concepo aos 6 anos de idade, a escola primria - ludus literarius - ou escola pblica da lngua verncula, dos 6 aos 12

    anos de idade, a escola do latim ou do ginsio, dos 12 aos 18 anos de idade e a academia, correspondendo juventude.

    vii Entre esses educadores, citam-se Pesta