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    Revista Histria e Cultura, Franca-SP, v.2, n.3 (Especial), p.268-279, 2013. ISSN: 2238-6270.

    PERSEGUIES E MARTRIOS NA HISTRIA ECLESISTICA:

    ANLISE DOS ESCRITOS DE EUSBIO DE CESAREIA

    PERSECUTION AND MARTYRDOM IN ECCLESIASTICAL

    HISTORY: THE ANALYSIS WORK OF EUSEBIUS OF

    CAESAREA

    Slvia Sgroi BRANDO

    Resumo: Nossa proposta de estudo nos debruarmos sobre uma tradio religiosa popular, o

    Cristianismo, que se formou pouco a pouco. Tal tradio sofreu e sofre uma constante evoluo

    desde sua gnese. Entretanto, com efeito, so nas perseguies aos mrtires e martrios,

    cristalizados no perodo entre os sculos I e III d.C., que vamos delinear nossa discusso, na

    qual a essncia crist ainda estava sendo definida.

    Palavras-chaves: Perseguies Martrios Cristianismo.

    Abstract: Our proposal is explaining about a popular religious tradition, Christianity, which

    was formed gradually. This tradition has suffered and suffers a constant evolution since its

    genesis. However, in effect, is the persecution of martyrs and martyrdom, crystallized in the

    period between first and third-centuries A.D., which we will outline our discussion, where the

    Christian essence was still being defined.

    Keywords: Persecution Martyrdom Christianity.

    As perseguies ocorridas entre os sculos I e III d.C, delineia o ponto crtico e

    latente da Igreja, visto que, at o terceiro sculo da era crist, as perseguies realmente

    pautaram a atuao da igreja. Prova evidente disto o fato de tal perodo ter ficado

    conhecido historicamente como a Era dos mrtires.

    O que veremos a seguir um esboo histrico de como se manifestaram essas

    perseguies, centrada na memria dos mrtires, testemunhas perenes do amor de Cristo

    e da Igreja crist, e na compreenso de como um fenmeno religioso foi capaz de

    perseguir, ridicularizar, torturar e matar em nome da f. Para tanto, sustentamo-nos na

    principal fonte dos Atos dos Mrtires, ou seja, na obra de Eusbio de Cesareia, Histria

    Eclesistica, na qual Eusbio utiliza, de maneira brilhante, textos de Flvio Josefo,

    Tertuliano, Flon e Tcito para atestar e dar legitimidade aos seus escritos.

    Mestre em Histria Programa de Ps-graduao em Histria UFMT Universidade Federal de Mato

    Grosso, CEP: 78060-90, Cuiab, Mato Grosso Brasil. E-mail: [email protected]

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    Revista Histria e Cultura, Franca-SP, v.2, n.3 (Especial), p.268-279, 2013. ISSN: 2238-6270.

    Eusbio de Cesareia, ao escrever sua Histria Eclesistica, deixou bem claro

    que aqueles que se opusessem f crist sofreriam os piores males, em contrapartida

    valorizou e enalteceu o martrio dos apstolos, apresentando o martrio como modelo de

    f a ser seguido por todos os cristos.

    A partir da anlise dos textos pretendemos provocar uma discusso de como os

    mais diferentes autores, principalmente Eusbio, trataram a temtica das perseguies

    e martrios na Histria Eclesistica.

    Perseguies e Martrios na Histria Eclesistica

    Apesar de submetido a duras perseguies por parte dos romanos e dos judeus, o

    Cristianismo adquire, no decorrer dos sculos II e III, grande fora poltica e avano,

    que se consolida no governo de Constantino (306-337), primeiro Imperador cristo.

    Certamente, ao que tudo indica, no final do sculo I a religio crist fez grandes

    progressos, durante o qual foram construdas igrejas em Roma e na Espanha e, em

    meados do sculo II, estas haviam se estendido para as provncias orientais do Imprio

    Romano penetrando na Glia e no norte da frica, ganhando considerveis adeptos,

    assim como, por exemplo, M. Flavius Clemens e Flavia Domitilia, primos irmos de

    Domiciano, e M. Acilius Glabrio.

    De este modo, en el siglo II, las ciudades litorales Tiro, Sidn, Berito,

    Biblos y Trpolis siguen siendo los centros de gravedad de la expansin

    Cristiana, y entre ellas, hacia el 250, gana Tiro hegemonia. En esta

    ciudad acab Orgenes su vida, y en ella fue sepultado. Tiro dio tambin

    la mayor parte de los mrtires em la persecucin del siglo IV (BAUS in

    JEDIN, 1966, p. 528).

    Entretanto, de certa forma, com o advento do avano dessa nova religio (crist),

    iniciam-se os tormentos aos seus seguidores, isto , a religio crist foi declarada como:

    strana et illicita: ilcita e estranha (decreto senatorial de 35), exitialis: perniciosa

    (Tcito), prava et immodica: malvada e desenfreada (Plnio), nova et malefica: nova e

    malfica (Suetnio), tenebrosa et lucifuga: obscura e inimiga da luz (Octavius de

    Minucio), detestabilis: detestvel (Tcito).

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    Pela prpria tica do Imprio, o cristianismo foi posto como fora da legalidade,

    perseguida e considerada como o mais perigoso inimigo do poder de Roma, o que ia de

    encontro ao culto ao Imperador, instrumento smbolo da fora e unidade do Imprio. As

    autoridades civis e o prprio povo, antes indiferentes, demonstraram-se logo hostis

    nova religio, em virtude dos cristos recusarem o culto ao Imperador e a adorao s

    divindades pags de Roma. Os cristos foram, por isso, acusados de praticar deslealdade

    para com a ptria, atesmo e delitos ocultos, alm de ser acusados da causa das

    calamidades naturais, como a peste, as inundaes, a carestia, dentre outros.

    Nessa conjuntura, pontuamos Domiciano (Imperador de Roma) que era

    alimentado pelos sarcasmos da elite romana, o qual procurava atend-la golpeando os

    mrtires cristos1, que eram espoliados ou executados por intolerncia religiosa. No

    segundo sculo, segundo testemunho de Nicfero, Timteo que era discpulo de Paulo,

    foi martirizado durante o reinado de Domiciano, no ano 96 d.C., em feso, cidade onde

    morava. No entanto, de certo modo, o combate ao cristianismo parece ter sido

    particularmente mais violento na sia. Dois anos aps a morte de Domiciano, o Imprio

    caiu nas mos de Trajano (98-117), que se vangloriava de manter a antiga intolerncia

    romana. Para tanto, Trajano fixou uma norma de conduta, ou seja:

    Os cristos, com efeito, no partilham da f do Imprio e so

    intransigentes com sua prpria, desde que convictos de seus erros,

    deve-se puni-los, mas no se deve procur-los e deve-se deixar de lado

    as denncias annimas e todo culpado que se arrepender deve ser

    libertado.

    e assim, aqui e acol eclodiriam chamas de antagonismo e tombariam mrtires e pagos,

    devido s presses entre os cristos e a populao local.

    Nesse contexto histrico, mais hostil foram os Severos (193-211). Stimo

    Severo, em 202, assina um rescrito visando, ao mesmo tempo, os judeus e os cristos,

    estabelecendo o seguinte: Fica interdito no apenas fazer-se cristo, mas tambm

    fazer cristos; a justia no deve apenas esperar as denncias e sim procurar os

    cristos. Certamente, , sobretudo, no Egito e na frica, onde o cristianismo progride

    rapidamente, locais onde, justamente, esse rescrito faz mais vtimas.

    Outra onda de perseguio aos mrtires se desencadeia na poca de Dcio (249-

    251) que estava preocupado em fazer o desgastado Imprio retornar s virtudes e ao

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    culto da antiga Roma. Este, no ano de 250, delineia um conjunto de normas, dentre elas,

    citamos:

    A todos aqueles que, no territrio do Imprio, gozam do direito de

    cidadania romana so obrigados a se manifestar expressamente,

    (atravs de um sacrifcio, uma libao ou participao em uma ceia

    sagrada) representando dessa forma sua adeso religio oficial.

    Um certificado (libelli) atestaria esse fato; sendo que, os contraventores

    poderiam sofrer a pena de morte. A aplicao desse edito provoca no poucas

    renegaes, mas tambm encontra resistncias que do origem a numerosos martrios

    em Roma, na sia, no Egito e na frica.

    Quando, depois de dez anos, Diocleciano2 assume o comando do Imprio (284),

    o mundo conhece ento, um soberano cujas profundas reformas permitiram o Imprio

    conhecer a penltima, grande exploso de perseguio aos cristos. A vontade imperial

    de unificao administrativa e religiosa foi essencial aos olhos de Diocleciano e o papel

    mais importante desenvolvido pelo cristianismo na sociedade romana explica

    suficientemente a durao de dez anos (303-313) de uma violenta e sangrenta

    perseguio aos cristos, qual o nome de Diocleciano permaneceu definitivamente

    ligado.

    As Primeiras Perseguies e Martrios

    O primeiro, aps Jesus, a sofrer o martrio, foi Estevo que, logo aps sua

    aceitao, foi morto e apedrejado por aqueles que mataram o Senhor. Assim sendo, foi o

    primeiro a alcanar a coroa, cujo nome trazia das vitoriosas testemunhas de Cristo (AT

    7,58-59). E foi justamente por causa do martrio de Estevo que os judeus

    desencadearam a primeira perseguio contra a Igreja de Jerusalm, motivo pelo qual os

    discpulos se dispersaram atravs de toda Judia e Samaria, chegando a Fencia, Chipre,

    e Antioquia.

    Buscaremos agora sintetizar as perseguies sob Nero e Diocleciano, com

    intuito de dar luz ao nosso entendimento.

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    Perseguio sob Nero

    Na primeira grande perseguio contra a Igreja, desencadeada pelo imperador

    Nero, depois do incndio da cidade de Roma no ano 64, muitos cristos foram

    martirizados com brbaros tormentos. Nero, enquanto esteve no poder, realizou prticas

    mpias, chegando a produzir a morte de inumerveis pessoas a tal extremo que seu ardor

    no se deteve diante dos entes mais prximos, fazendo perecer sua me, seus irmos,

    sua esposa e muitssimos outros familiares, mortos de vrias maneiras, como se fossem

    adversrios e inimigos. Este fato testemunhado pelo escritor pago Tcito e por So

    Clemente, Bispo de Roma, na sua Carta ao Corntios (cap.5-6), do ano 96. Dele faz

    meno tambm o latino Tertuliano, quando declara:

    Consultai vossas memrias. Nelas encontrareis que Nero foi o

    primeiro a perseguir esta doutrina, sobretudo quando, aps ter

    submetido o oriente, era cruel em Roma para com todos, ns nos

    gloriamos de ter algum como ele por autor de nosso castigo, pois

    quem o conhece pode entender que Nero nada condenaria que no

    fosse um grande bem.

    Ele, portanto, proclamado primeiro inimigo de Deus entre os que mais o foram,

    levou sua exaltao a ponto de fazer degolar os Apstolos.

    Perseguio de Diocleciano

    Diocleciano reabilitou as velhas tradies, incentivando o culto dos deuses

    antigos. De uma personalidade bem tradicionalista, o imperador jamais abandonaria os

    rituais do paganismo em favor de uma religio de origem estrangeira e, atendendo as

    insistentes propostas de Galrio, homem de origens humildes e tambm, como soldado,

    muito aderido ao paganismo, que considerava que a presena de funcionrios cristos na

    corte retirava aos sacrifcios e outras prticas rituais sua eficcia; perseguiu os

    maniqueus, que praticavam uma religio de origem persa e empreendeu aquela que

    conhecida por alguns historiadores eclesisticos como a ltima grande perseguio

    empreendida pelo Imprio Romano contra o Cristianismo, ou seja, a Era dos Mrtires.

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    Em fevereiro de 303, foi lanado um primeiro edito imperial que ordenava a

    destruio geral de igrejas, objetos de culto cristos, e a destituio de funcionrios que

    fossem adeptos da "nova" religio. Um segundo edito ordenou a priso geral do clero e,

    um terceiro, previa a libertao dos cristos em caso de apostasia. O quarto e ltimo, de

    304, ordenava a toda a populao do Imprio a sacrificao aos deuses sob pena de

    morte ou trabalhos forados em minas.

    As perseguies de Diocleciano esbarraram, no entanto, na falta de entusiasmo

    de uma populao j bastante cristianizada, especialmente no Oriente, onde Diocleciano

    e Galrio governavam diretamente. Na parte do Ocidente sob sua administrao, o

    Csar Constncio Cloro limitou-se a aplicar o primeiro edito, tambm sem muito

    entusiasmo, no entanto, o zelo administrativo dos funcionrios, foi suficiente para

    garantir perseguies violentas no Oriente como na parte do Ocidente governada por

    Maximiano (Itlia e frica), que s arrefeceriam em 311, quando Galrio, moribundo,

    pediu oraes aos cristos pelo seu restabelecimento.

    Os Mrtires na viso de Eusbio de Cesareia

    De certo modo, efetivamente, foi atravs das perseguies de Diocleciano que

    Eusbio de Cesareia dirigiu o seu interesse para os mrtires, tanto os da sua poca,

    como os anteriores. Esse interesse levou-o a escrever, praticamente, uma histria da

    Igreja, uma histria universal que, segundo o ponto de vista de Eusbio, seria apenas a

    base para a Histria Eclesistica. Nota-se, pois, que, para Eusbio, a Igreja aparece

    como sendo o motor da Histria da Humanidade.

    No entanto, porm, existem algumas pginas nessa Histria Eclesistica que

    merecem grande ateno. So as que se referem aos mrtires dos primeiros sculos da

    Igreja Crist tratada na obra de Eusbio de Cesareia. Os Mrtires reportados, na maior

    parte da obra de Eusbio, tratam-se do segundo e final do terceiro sculos, quando o

    sangue foi derramado em grande abundncia em nome da f crist. Os martirizados

    eram considerados heris da causa crist e sua venerao tornou-se significativa no

    mundo cristo e o seu culto originou-se no sculo II.

    Eusbio de Cesareia, meticulosamente, reuniu informaes sobre as

    perseguies aos mrtires, no bojo da sua monumental obra da Histria da Igreja. Trata-

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    se de uma abordagem documental histrica e lgica sobre a figura e contextualizao da

    Igreja Primitiva, suas perseguies e martrios. Certamente, os eventos testemunhados

    por Eusbio esto centrados na histria dos mrtires da Palestina, local onde viveu boa

    parte de sua vida. Nesse tempo, ele j havia sido ordenado presbtero e estava sob

    ameaa de priso.

    Quando a perseguio chegou a Cesareia, Eusbio testemunhou in loco quando

    muitos cristos pagaram a pena mxima por causa de sua f e a criao de novos editos

    com o intuito de intensificarem as perseguies: igrejas foram destrudas, Escrituras

    foram queimadas e cristos foram torturados e executados. Entretanto, o nmero de

    mrtires crescia na medida em que as converses aumentavam e, com isso, o Imprio se

    sentia contestado.

    O cristianismo foi, aos poucos, suscitando a hostilidade dos judeus e cresceu o

    bastante para assinalar diferenas e evocar toda sorte de perseguies. Surgiram ento

    os Atos dos mrtires, documentos que narravam os padecimentos e morte dos cristos

    condenados, que se destinavam leitura nas comemoraes anuais em sua honra, como

    ato de culto pblico. Tomavam como base as informaes oficiais dos julgamentos e os

    testemunhos pessoais. Entre os Atos conhecem-se o Martrio de s. Pedro e s. Paulo,

    Martrio de Policarpo (115), Atos de Justino e seus companheiros (163-167), etc. Com

    efeito, citaremos alguns, martrios descritos por Eusbio em sua Histria Eclesistica.

    Martrio de So Policarpo (156)

    So Policarpo foi ordenado bispo de Esmirna pelo prprio So Joo, o

    Evangelista, por possuir um carter reto, de alto saber, amor a Igreja e fiel ortodoxia

    da f, sendo respeitado por todos no Oriente. Com a perseguio, o Bispo de 86 anos

    escondeu-se at ser preso e, assim, foi levado para o governador, que pretendia

    convenc-lo a retrara-se perante os antigos deuses. Policarpo, porm, segundo Eusbio

    de Cesareia, proferiu estas palavras:

    H oitenta e seis anos sirvo a Cristo e nenhum mal tenho recebido Dele. Como poderei rejeitar Aquele a quem prestei culto e reconheo

    como meu Salvador. Condenado no estdio da cidade, ele prprio subiu na fogueira e testemunhou para o povo: "Sede bendito para

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    sempre, Senhor; que o Vosso nome adorvel seja glorificado por

    todos os sculos.

    Martrio de s. Pedro e s. Paulo Narrado por Eusbio (340)

    Estando Nero no poder, realizou prticas mpias e tomou as armas

    contra a prpria religio do Deus do universo. Descrever de que

    malvadez foi capaz este homem no tarefa da presente obra, pois

    muitos j transmitiram seus feitos em precisos relatos e poder talvez

    algum agradarse de aprender a grosseira demncia desse estranho

    homem, que, levado por ela e sem a menor reflexo, produziu a morte

    de inumerveis pessoas e a tal extremo fez chegar seu ardor homicida

    que no se deteve ante os entes mais prximos e caros, fazendo

    perecer sua me, seus irmos, sua esposa e muitssimos outros

    familiares, mortos de vrias maneiras, como se fossem adversrios e

    inimigos. Mas devese saber que ao dito faltava acrescentar ter sido

    ele o primeiro imperador que se mostrou inimigo da piedade para com

    Deus. Dele faz meno o latino Tertuliano, quando diz: Consultai vossas memrias. Nelas encontrareis que Nero foi o primeiro a

    perseguir esta doutrina, sobretudo quando, aps ter submetido o

    oriente, era cruel em Roma para com todos. Ns nos gloriamos de ter

    algum como ele por autor de nosso castigo, pois quem o conhece

    pode entender que Nero nada condenaria que no fosse um grande

    bem. Ele, portanto, proclamado primeiro inimigo de Deus entre os que mais o foram, levou sua exaltao ao ponto de fazer degolar os

    Apstolos. Dizse efetivamente que, sob seu imprio, Paulo foi

    decapitado na mesma Roma, e Pedro foi crucificado de cabea para

    baixo. E desta referncia d f o ttulo de Pedro e Paulo que

    predominou para os cemitrios daquele lugar at o presente. No

    menos o confirma um varo chamado Caio, o qual viveu quando

    Zeferino era bispo de Roma. Disputando por escrito com Proclo,

    dirigente de seita catafriga, diz, acerca dos mesmos lugares em que

    esto depositados os despojos sagrados dos mencionados apstolos, o

    que segue: Eu, porm posso mostrarte os trofus dos apstolos, pois, se fores ao Vaticano ou ao caminho de stia, encontrars os trofus

    dos que fundaram esta igreja. Que os dois sofreram martrio na mesma ocasio, afirmao Dionsio, bispo de Corinto, na

    correspondncia travada com os romanos, com os termos seguintes:

    Nisto tambm vs, por meio de semelhante admoestao, conjugastes as plantaes de Pedro e Paulo, a dos romanos e a dos corntios,

    porque, depois de plantarem ambos em nossa Corinto, ambos nos

    instruram e, depois de ensinarem tambm na Itlia, no mesmo lugar,

    sofreram os dois o martrio na mesma ocasio. Sirva igualmente isto

    para maior confirmao dos fatos narrados (EUSEBIO, LIV. II c. 25; p.g. 109-111s. Histria Eclesistica).

    Eusbio de Cesareia cita ainda um escritor do segundo sculo, chamado

    Hegesipo, que descreve a morte de Tiago. Afirma este autor que tinha se levantado um

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    conflito entre os judeus convertidos e os descrentes a respeito de Jesus ser ou no o

    Messias e, ainda segundo Eusbio, pediram a Tiago que resolvesse a questo. Os

    escribas e fariseus diz Hegesipo Colocaram Tiago de um lado do templo e

    exclamaram, dirigindo-se a ele: visto que o povo levado em erro a seguir a Jesus que

    foi crucificado, declara-nos qual a porta pela qual se chega a Jesus, o crucificado?.

    Ao que ele teria respondido em alta voz: O Filho do Homem est agora assentado nos

    cus, mo direita do grande poder e est para vir nas nuvens do cu. E como muitos

    se gloriaram no testemunho de Tiago, estes mesmos sacerdotes e fariseus tomaram a

    deciso de lev-lo parte alta do templo e de l o lanaram abaixo, passando em

    seguida a apedrej-lo, visto no ter morrido logo que caiu no cho, enquanto,

    ajoelhando-se pedia o perdo de Deus aos seus agressores. Deste modo ele sofreu o

    martrio.

    Desta forma, atravs da obra de Eusbio de Cesareia, identificamos que at ao

    terceiro sculo da Era crist, as perseguies aos mrtires realmente pautaram a atuao

    da igreja. E prova evidente disto o fato de tal perodo ter ficado conhecido como a Era

    dos Mrtires.

    Eusbio de Cesareia e sua obra: Histria Eclesistica

    Eusbio teria nascido em Cesareia3 da Palestina, por volta do ano 265, durante o

    reinado do Imperador Galeno. Quase nada se sabe sobre sua infncia e adolescncia e

    no h qualquer indicao de que ele tenha nascido ou crescido numa famlia crist, mas

    sabe-se que recebeu ensino cristo. Eusbio, durante sua juventude, foi grandemente

    influenciado por um presbtero de Cesareia chamado Pnfilo, que era um estudioso de

    considervel reputao. Eusbio recebeu de Pnfilo uma slida formao intelectual,

    sobretudo histrica, sendo considerado posteriormente como pai da Histria da Igreja

    Crist.

    Em 314, Eusbio foi eleito bispo de sua cidade (Cesareia) e considerado por

    muitos como homem mais erudito do seu tempo. Escreveu muitas obras de teologia,

    exegese, apologtica, mas a sua obra mais importante foi sem dvida a Histria

    Eclesistica. Nessa obra, a apologtica crist atinge grande sofisticao para o perodo e

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    Eusbio utiliza de maneira brilhante textos de Flvio Josefo, Tertuliano, Flon e Tcito

    para atestar e da legitimidade aos evangelhos.

    A obra Histria Eclesistica de Eusbio de Cesareia apresentada em 10 (dez)

    volumes, que so os frutos de 25 anos de pesquisa histrica, contnua e apaixonada. Ele

    narra, nos sete primeiros livros, a histria da Igreja das origens at 303. Os oitavo e

    nono livros referem-se perseguio iniciada por Diocleciano em 303 e concluda, no

    ocidente em 308, tendo continuado no oriente com Galrio, at o Edito de tolerncia de

    311 e morte de Maximino (313). O dcimo livro descreve a retomada da Igreja at a

    vitria de Constantino sobre Licnio e unificao do imprio (323).

    Ainda antes dessa obra, Eusbio tinha recolhido e transcrito na Coleo dos

    antigos Mrtires, uma vasta documentao (atos dos processos de mrtires, paixes,

    apologias, testemunhos de indivduos e comunidades) sobre os mrtires anteriores

    perseguio de Diocleciano; o livro foi perdido, mas Eusbio tinha retomado em parte o

    tema na Histria Eclesistica. Poupado pela perseguio de Diocleciano (303-311),

    Eusbio foi dela uma testemunha de importncia excepcional, porque enquanto

    testemunha ocular presenciou a destruio de igrejas, as fogueiras de livros sagrados e

    muitas cenas selvagens de martrio na Palestina, na Fencia e at na distante Tebaida do

    Egito, deixando-nos de tudo, uma memria de grande valor histrico sobre a temtica

    das perseguies e martrios daquele perodo.

    Consideraes Finais

    Com efeito, ainda que a atitude do poder em relao aos cristos, ao longo dos

    sculos II e III, carea de clareza, atravs das anlises dos textos estudados,

    principalmente a Histria Eclesistica de Eusbio de Cesareia, que vislumbramos a

    existncia de incomensurveis martrios, a partir dos quais os mrtires, em nome da f

    na ressurreio de Jesus e, na espera de sua volta iminente, deram seus testemunhos e

    suscitaram novos crentes, mas tambm alimentaram a oposio (anticrist) e as

    perseguies.

    Observamos que os trs primeiros sculos definem a poca dos mrtires, que

    terminou em 313 com o Edito de Milo, por meio do qual os imperadores Constantino e

    Licnio deram liberdade de culto aos cristos. E de certo, que muitos dos soberanos,

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    perseguiram e insultaram os mrtires e, por isso, por toda parte o espetculo dos

    tormentos eram muito variados e extremamente cruis. Contudo, aos perodos de

    perseguies seguiam-se perodos de relativa tranquilidade.

    Enfim, desta forma, que se tem incio a histria da Igreja, da sua misso e

    expanso para alm dos confins da Palestina, em todo o mundo. Uma histria rica de

    conflitos, tenses e perseguies motivados pela f, na qual o mundo se defronta com

    o Evangelho que precede a obra de Eusbio. Podemos apontar, sem dvida, que Eusbio

    contribui de forma excepcional, deixando-nos apesar de tudo, uma comovente memria

    de grande valor histrico.

    Apesar de suas lacunas e erros, a Histria Eclesistica continua a ser a obra

    histrica mais conhecida e, muitas vezes, a nica fonte de informao. Atravs dessa

    obra, que vislumbramos o incio de uma histria de aes e reaes, de fidelidade e

    infidelidade, de intuies, de acertos e erros, de vitrias e fracassos entre os povos

    cristos e no cristos. E tudo isso a histria dos mrtires e dos crentes nessa f. A

    supracitada perseguio, no entanto, no pode ser vista como uma novidade ou um fato

    isolado, visto que, desde quando Cristo foi colocado numa cruz, teve incio uma longa

    histria, na qual os primeiros cristos conheceram e sentiram essas perseguies,

    seguidas de tortura e morte em nome de Cristo, ocorridas nesse perodo, ou seja, a

    histria dos mrtires cristos a histria das pessoas que se tornaram clebres pela

    lealdade em nome da f que acreditavam em meio s perseguies que sofreram e as

    ofensas que enfrentaram, devido crena que professavam em nome de Cristo.

    Referncias Bibliogrficas

    ENCICLOPEDIA CATTOLICA. A cura de Angelo Penna. Cidade do Vaticano, 1950,

    vol. V, p. 842-854.

    EUSBIO DE CERSAREIA. Histria Eclesistica. Traduo Monjas Beneditinas do

    Mosteiro de Maria Me de Cristo. Col. Patrstica 15. So Paulo: Paulus, 2000.

    JEDIN, Hubert (Dir.). Manual de Historia de la Iglesia. Barcelona: Herder, 1966.

  • Pgina | 279

    Revista Histria e Cultura, Franca-SP, v.2, n.3 (Especial), p.268-279, 2013. ISSN: 2238-6270.

    Notas

    1 O termo mrtir vem do grego, significando "testemunha", e o Mrtir Cristo algum que prefere a

    morte a negar a Cristo ou a Sua obra; sacrificar algo que considere de muito valor em favor do avano do

    Reino de Deus; suportar grande sofrimento pelo testemunho cristo. 2 Diocleciano foi um imperador romano entre 284 e 305. Instituiu a Tetraquia Imperial. Empreendeu

    aquela que conhecida por alguns historiadores eclesisticos como a ltima grande perseguio

    empreendida pelo Imprio Romano contra o Cristianismo. 3 Cesareia Palestina, tambm chamada de Cesareia Martima, uma cidade construda por Herodes, o

    Grande cerca de 25-13 a.C., situa-se na costa mediterrnica de Israel, a cerca de meio caminho entre

    Telavive e Haifa, num local anteriormente chamado Pyrgos Stratonos ("Strato" ou "Torre de Straton", em

    Latim Turris Stratonis). Cesareia Palestina no deve ser confundida com outras cidades batizadas em

    honra de Csar, como Caesarea Philippi, tambm na Palestina, ou Caesarea Mazaca na Capadcia

    anatlica.

    Artigo recebido em 12/07/2013. Aprovado em 26/08/2013.