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Campinas, 17 a 23 de maio de 2010 6 Odilon, um pesquisador não- acadêmico, preferiu trabalhar em silêncio em seu laboratório particular, com escassas colaborações. Mas, na opinião de Fioravanti, o isolamento o impediu de avançar quando ele precisou de ajuda, apesar de ter tido autonomia e o composto ter apresentado eficácia nos testes preliminares em animais e seres humanos. Seu estilo de trabalho, conforme o autor, havia divergido bastante das regras coletivas de produção de conhecimento científico. O que promoveu a retomada e a expansão da pesquisa com o composto foi a criação de estratégias que valorizaram as interações com outros especialistas e instituições. Pesquisadores acadêmicos, instituições e médicos que seguiram as regras habituais da produção científica avaliaram o composto e lhe deram credibilidade científica e visibilidade, segundo Fioravanti. De acordo com o jornalista, uma primeira organização não- governamental, o Cedecab, mostrou-se eficaz para reunir pessoas, instituições e empresas interessadas em desenvolver um medicamento no Brasil. Na terceira e atual fase do percurso do composto, outra organização não-governamental, Farmabrasilis, ampliou as colaborações com grupos de pesquisa acadêmica e médica no Brasil e em outros países por meio de uma proposta de uso amplo do medicamento, que inclui a possibilidade de licenciamento sem cobrança de royalties, resultado da flexibilidade no uso das patentes sobre o composto. O Cedecab e a Farmabrasilis funcionaram como força-tarefa no desenvolvimento do P-Mapa, formando equipes temporárias e concentrando esforços em ações específicas. “Uma força-tarefa facilita o encontro e o surgimento de mediadores e é ela própria uma mediadora, por transformar problemas e levar outros à ação”, pontua Fioravanti. Segundo o jornalista, essa estratégia tem sido aplicada internacionalmente para diagnosticar precocemente câncer de mama e, no Brasil, já foi comprovado como eficaz no tratamento contra tuberculose. A estratégia baseada em força- tarefa ajudou a vencer resistências e tensões entre produtores formais e informais de ciência, além de otimizar o uso de recursos humanos, materiais e financeiros limitados. Para Fioravanti, os grupos de pesquisa e as ONGs mostraram que a flexibilidade e a readequação dos arranjos organizacionais podem facilitar a formação de grupos de trabalho, bem como a implantação de políticas públicas de desenvolvimento científico e tecnológico, em especial na área de fármacos. O percurso do desenvolvimento do P-Mapa é um exemplo de pesquisa coletiva, participativa e integrada. Os grupos formais e as instituições privadas de apoio à ciência, na opinião de Fioravanti, poderiam examinar com mais atenção as possíveis contribuições de produtores não-acadêmicos de conhecimento científico e tecnológico e as situações ou objetos de estudo que saiam do habitual. “O esforço pode ser recompensador”, acrescenta. A construção social do P-Mapa Isolamento no laboratório dá lugar à interação e força-tarefa MARIA ALICE DA CRUZ [email protected] D o mesmo modo que o desenvolvimento do medicamento P- Mapa extrapolou os muros da academia, o jornalista Carlos Henrique Fioravanti extrapolou os limites das redações de jornais, a partir da década de 1990, para descrever e ao mesmo tempo analisar a trajetória desse fármaco. O medicamento co- meçou a tomar forma há mais de 60 anos, quando o médico Odilon da Silva Nunes (1922-2001) decidiu criar uma molécula que com o tempo se mostrou eficaz contra tumores e depois contra vírus como o do herpes e microrganis- mos causadores de infecções associa- das ao vírus HIV. Não-saciado com as informações apuradas ao longo de seu trabalho como jornalista, Fioravanti se plantou dentro do laboratório e ao lado dos atores envolvidos em uma rede criada pelo químico Nelson Durán, professor do Instituto de Química (IQ) da Unicamp, e por Iseu Nunes, filho de Odilon Nunes, para acompanhar de perto os fatos que permeiam a constru- ção social de um medicamento. Anos mais tarde, a investigação jornalística transformou-se em pesquisa acadê- mica, na qual ele voltou a analisar o percurso do fármaco, foco da tese defendida no Departamento de Política Científica e Tecnológica (DPCT) do Instituto de Geociências da Unicamp, sob orientação da professora Léa Velho. A proposta do trabalho, segundo o pesquisador, foi apresentar os diferentes modos de produção de conhecimento, examinados principalmente por meio da Teoria Ator-Rede (TAR), que con- sidera a ciência uma construção social coletiva resultante das negociações, conflitos, alianças e interesses de gru- pos diversificados de atores, incluindo, mas não se restringindo, aos cientistas. A história é contada a partir de 1911, com a fundação da cidade de Bi- rigui, interior de São Paulo, por um tio de Odilon, que Fioravanti teve a opor- tunidade de conhecer pessoalmente em 1992. Aos poucos, o jornalista conhe- ceu também os outros pesquisadores que participavam voluntariamente dessa pesquisa. “Encontrei um grupo de pesquisa diferente de tudo que já tinha visto. Tanto em termos de medicamento quanto no modo de fazer ciência. Vi a ciência em ação, constatei o rigor dos mecanismos formais de legitimação científica, conheci muitos pesquisadores (alguns cientistas) e jornalistas”, conta. O trabalho acompanhado pelo jor- nalista uniu um grupo não-acadêmico já envolvido com as pesquisas a outro formado por outros médicos e pesqui- sadores de dentro e de fora do espaço acadêmico. Juntos, os grupos avaliaram as propriedades do composto de acordo com as regras convencionais de desen- volvimento de fármacos, ampliaram a escala de produção e o aplicaram para tratar um grupo restrito de pessoas com HIV/Aids. Na época, na década de 1990, programas de televisão e reporta- gens de jornais e revistas apresentaram o composto, então conhecido pela sigla SB-73, como “o remédio brasileiro contra Aids”, até então uma doença ainda sem tratamentos estabelecidos, contra a qual havia sido usado experi- mentalmente, resultando na recupera- ção clínica de portadores de HIV/Aids. Como jornalista, ele entrevistou os pesquisadores, conheceu os laborató- rios em que trabalhavam, colecionou reportagens e observou os momentos de exposição e de retração do traba- lho com o composto. De acordo com o autor, o grupo foi reorganizado e ampliado e foram surgindo novas propostas de uso do medicamento, focadas em doenças infecciosas, espe- cialmente as mais comuns em países pobres, como Aids e tuberculose. Ao ingressar no DPCT, em 2006, Fioravanti recomeçou a analisar o percurso da pesquisa de modo mais aprofundado. Foi quando observou que a história do P-Mapa (abreviação de agregado polimérico de fosfolinoleato- palmitoleato de magnésio e amônio pro- téico) revela um estilo um pouco mais brasileiro de fazer ciência. “Para poder estudar, tive de ir além da investigação jornalística, avançando para a esfera acadêmica. Ingressei no DPCT para po- der me aprofundar e analisar a constru- ção social do medicamento”, explica. O jeito mais brasileiro de fazer ciência, enfatiza, é colocado em prática quando a pesquisa envolve a participação de grupos heterogêneos de participantes, não apenas de cientistas acadêmicos, e pode trazer benefícios de diferentes espécies para muitos grupos de atores, até mesmo para os que não participaram diretamente, cada um incorporando os desejos do outro. “Não implica apenas produção de conhecimento ou de bens materiais, mas também seu compartilhamento”, acrescenta. Ao tratar das quatro décadas que o médico Odilon, num laboratório mon- tado em sua casa, em Birigui, dedicou à criação da molécula, ele mostra que existe um estilo de fazer ciência sem a organização formal imposta por órgãos avaliadores. A molécula foi arquitetada enquanto Odilon cursava medicina na Universidade Federal do Paraná (UFPR), em Curitiba. “Ele adotou uma forma peculiar de fazer ciência, tinha método, plano de trabalho, mas não era acadêmico. Não fazia paper. Se hoje é difícil escrever um paper, imagine há 40 anos numa cidade do interior de São Paulo”, reflete. Para o jornalista, Nunes foi uma prova de que existem cientis- tas que trabalham sem a preocupação de produzir papers, por ter iniciado o trabalho fora da academia. Em sua busca, o jornalista encontrou uma pesquisa que começou no desejo de um médico, prosseguiu sob a liderança de um químico, o professor Nelson Durán, e depois de um administrador de empresas e advogado especializado em desenvolvimento de medicamentos, Iseu Nunes. Todos, segundo ele, com competências específicas suficientes para superar obstáculos e imprevistos. Do mesmo modo que o trabalho mudou de mãos quando necessário, embora mantendo os objetivos iniciais, a molécula ganhou diferentes nomes e definições. Sua estrutura química tam- bém passou por modificações com o tempo. O nome do composto passou de Penicilon, fusão de penicilina e Odilon, para SB-73 e depois para P-Mapa – e sua definição, de antibiótico para imu- nomodulador e mais recentemente para modificador de resposta biológica – à medida que a visão dos especialistas sobre suas propriedades terapêuticas amadurecia. Na sua opinião, as subs- tituições de protagonistas e conceitos permitiram a continuidade do trabalho. Fioravanti compara a trajetória de pesquisa e o desenvolvimento do P-Mapa à da penicilina – descoberta durante a Segunda Guerra por Alexan- dre Fleming –, pois ambos foram pro- duzidos a partir de fungos e resultam de Jornalista investiga desenvolvimento de fármaco concebido pelo médico Odilon da Silva Nunes pesquisas iniciadas por médicos. Em 2007, como bolsista do Instituto Reu- ters, Fioravanti percorreu os espaços de descoberta e desenvolvimento da penicilina, em Londres e Oxford, com o propósito de retratar a diversidade de atores que participaram da construção social de cada um deles e as possibili- dades de ampliação das redes estabele- cidas em torno dos dois medicamentos. Neste percurso, conversou com pes- quisadores e empresários ligados à pes- quisa de medicamentos na Inglaterra. A cada nova resposta à sua investigação, Fioravanti constatava que o fármaco em desenvolvimento no Brasil apresentava um potencial maior que o da penicilina. O medicamento, segundo o jornalista, tem capacidade mais ampla, que permi- te agir contra outros microrganismos e tumores. “O P-Mapa inclui a ação da penicilina, que é a de um antibiótico, mas acrescenta ações mais eficientes contra vírus e tumores”, acrescenta. Cada etapa de desenvolvimento Odilon da Silva Nunes, criador do P-Mapa, ao lado do filho Iseu Nunes: obstinação Frascos de P-Mapa: fármaco era conhecido O jornalista Carlos Henrique Fioravanti, na Inglaterra: história do P-Mapa revela Foto: Acervo pessoal de Iseu Nunes

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Odilon, um pesquisador não-acadêmico, preferiu trabalhar em silêncio em seu laboratório particular, com escassas colaborações. Mas, na opinião de Fioravanti, o isolamento o impediu de avançar quando ele precisou de ajuda, apesar de ter tido autonomia e o composto ter apresentado eficácia nos testes preliminares em animais e seres humanos. Seu estilo de trabalho, conforme o autor, havia divergido bastante das regras coletivas de produção de conhecimento científico. O que promoveu a retomada e a expansão da pesquisa com o composto foi a criação de estratégias que valorizaram as interações com outros especialistas e instituições. Pesquisadores acadêmicos, instituições e médicos que seguiram as regras habituais da produção científica avaliaram o composto e lhe deram credibilidade científica e visibilidade, segundo Fioravanti.

De acordo com o jornalista, uma primeira organização não-governamental, o Cedecab, mostrou-se eficaz para reunir pessoas, instituições e empresas interessadas em desenvolver um medicamento no Brasil. Na terceira e atual fase do percurso do composto, outra organização não-governamental, Farmabrasilis, ampliou as colaborações com grupos de pesquisa acadêmica e médica no Brasil e em outros países por meio de uma proposta de uso amplo do medicamento, que inclui a possibilidade de licenciamento sem cobrança de royalties, resultado da flexibilidade no uso das patentes sobre o composto.

O Cedecab e a Farmabrasilis funcionaram como força-tarefa no desenvolvimento do P-Mapa, formando equipes temporárias e concentrando esforços em ações específicas. “Uma força-tarefa facilita o encontro e o surgimento de mediadores e é ela própria uma mediadora, por transformar problemas e levar outros à ação”, pontua Fioravanti. Segundo o jornalista, essa estratégia tem sido aplicada internacionalmente para diagnosticar precocemente câncer de mama e, no Brasil, já foi comprovado como eficaz no tratamento contra tuberculose.

A estratégia baseada em força-tarefa ajudou a vencer resistências e tensões entre produtores formais e informais de ciência, além de otimizar o uso de recursos humanos, materiais e financeiros limitados. Para Fioravanti, os grupos de pesquisa e as ONGs mostraram que a flexibilidade e a readequação dos arranjos organizacionais podem facilitar a formação de grupos de trabalho, bem como a implantação de políticas públicas de desenvolvimento científico e tecnológico, em especial na área de fármacos.

O percurso do desenvolvimento do P-Mapa é um exemplo de pesquisa coletiva, participativa e integrada. Os grupos formais e as instituições privadas de apoio à ciência, na opinião de Fioravanti, poderiam examinar com mais atenção as possíveis contribuições de produtores não-acadêmicos de conhecimento científico e tecnológico e as situações ou objetos de estudo que saiam do habitual. “O esforço pode ser recompensador”, acrescenta.

A construção social do P-Mapa, um medicamento brasileiroIsolamento no laboratório dálugar à interação e força-tarefa

MARIA ALICE DA [email protected]

Do mesmo modo que o desenvolvimento do medicamento P-Mapa extrapolou os muros da academia, o jornalista Carlos

Henrique Fioravanti extrapolou os limites das redações de jornais, a partir da década de 1990, para descrever e ao mesmo tempo analisar a trajetória desse fármaco. O medicamento co-meçou a tomar forma há mais de 60 anos, quando o médico Odilon da Silva Nunes (1922-2001) decidiu criar uma molécula que com o tempo se mostrou eficaz contra tumores e depois contra vírus como o do herpes e microrganis-mos causadores de infecções associa-das ao vírus HIV. Não-saciado com as informações apuradas ao longo de seu trabalho como jornalista, Fioravanti se plantou dentro do laboratório e ao lado dos atores envolvidos em uma rede criada pelo químico Nelson Durán, professor do Instituto de Química (IQ) da Unicamp, e por Iseu Nunes, filho de Odilon Nunes, para acompanhar de perto os fatos que permeiam a constru-ção social de um medicamento. Anos mais tarde, a investigação jornalística transformou-se em pesquisa acadê-mica, na qual ele voltou a analisar o percurso do fármaco, foco da tese defendida no Departamento de Política Científica e Tecnológica (DPCT) do Instituto de Geociências da Unicamp, sob orientação da professora Léa Velho.

A proposta do trabalho, segundo o pesquisador, foi apresentar os diferentes modos de produção de conhecimento, examinados principalmente por meio da Teoria Ator-Rede (TAR), que con-sidera a ciência uma construção social coletiva resultante das negociações, conflitos, alianças e interesses de gru-pos diversificados de atores, incluindo, mas não se restringindo, aos cientistas.

A história é contada a partir de 1911, com a fundação da cidade de Bi-rigui, interior de São Paulo, por um tio de Odilon, que Fioravanti teve a opor-tunidade de conhecer pessoalmente em 1992. Aos poucos, o jornalista conhe-ceu também os outros pesquisadores que participavam voluntariamente dessa pesquisa. “Encontrei um grupo de pesquisa diferente de tudo que já tinha visto. Tanto em termos de medicamento quanto no modo de fazer ciência. Vi a ciência em ação, constatei o rigor dos mecanismos formais de legitimação científica, conheci muitos pesquisadores (alguns cientistas) e jornalistas”, conta.

O trabalho acompanhado pelo jor-nalista uniu um grupo não-acadêmico já envolvido com as pesquisas a outro formado por outros médicos e pesqui-sadores de dentro e de fora do espaço acadêmico. Juntos, os grupos avaliaram as propriedades do composto de acordo com as regras convencionais de desen-volvimento de fármacos, ampliaram a escala de produção e o aplicaram para tratar um grupo restrito de pessoas com HIV/Aids. Na época, na década de 1990, programas de televisão e reporta-gens de jornais e revistas apresentaram o composto, então conhecido pela sigla SB-73, como “o remédio brasileiro contra Aids”, até então uma doença ainda sem tratamentos estabelecidos, contra a qual havia sido usado experi-mentalmente, resultando na recupera-ção clínica de portadores de HIV/Aids.

Como jornalista, ele entrevistou os pesquisadores, conheceu os laborató-rios em que trabalhavam, colecionou

reportagens e observou os momentos de exposição e de retração do traba-lho com o composto. De acordo com o autor, o grupo foi reorganizado e ampliado e foram surgindo novas propostas de uso do medicamento, focadas em doenças infecciosas, espe-cialmente as mais comuns em países pobres, como Aids e tuberculose.

Ao ingressar no DPCT, em 2006, Fioravanti recomeçou a analisar o percurso da pesquisa de modo mais aprofundado. Foi quando observou que a história do P-Mapa (abreviação de agregado polimérico de fosfolinoleato-palmitoleato de magnésio e amônio pro-téico) revela um estilo um pouco mais brasileiro de fazer ciência. “Para poder estudar, tive de ir além da investigação jornalística, avançando para a esfera acadêmica. Ingressei no DPCT para po-der me aprofundar e analisar a constru-ção social do medicamento”, explica. O jeito mais brasileiro de fazer ciência, enfatiza, é colocado em prática quando a pesquisa envolve a participação de grupos heterogêneos de participantes, não apenas de cientistas acadêmicos, e pode trazer benefícios de diferentes espécies para muitos grupos de atores, até mesmo para os que não participaram diretamente, cada um incorporando os desejos do outro. “Não implica apenas produção de conhecimento ou de bens materiais, mas também seu compartilhamento”, acrescenta.

Ao tratar das quatro décadas que o médico Odilon, num laboratório mon-tado em sua casa, em Birigui, dedicou à criação da molécula, ele mostra que existe um estilo de fazer ciência sem a organização formal imposta por órgãos avaliadores. A molécula foi arquitetada enquanto Odilon cursava medicina na Universidade Federal do Paraná (UFPR), em Curitiba. “Ele adotou uma forma peculiar de fazer ciência, tinha método, plano de trabalho, mas não era acadêmico. Não fazia paper. Se hoje é difícil escrever um paper, imagine há 40 anos numa cidade do interior de São Paulo”, reflete. Para o jornalista, Nunes foi uma prova de que existem cientis-tas que trabalham sem a preocupação de produzir papers, por ter iniciado o trabalho fora da academia.

Em sua busca, o jornalista encontrou uma pesquisa que começou no desejo de um médico, prosseguiu sob a liderança de um químico, o professor Nelson Durán, e depois de um administrador de empresas e advogado especializado em desenvolvimento de medicamentos, Iseu Nunes. Todos, segundo ele, com

competências específicas suficientes para superar obstáculos e imprevistos.

Do mesmo modo que o trabalho mudou de mãos quando necessário, embora mantendo os objetivos iniciais, a molécula ganhou diferentes nomes e definições. Sua estrutura química tam-bém passou por modificações com o tempo. O nome do composto passou de Penicilon, fusão de penicilina e Odilon, para SB-73 e depois para P-Mapa – e sua definição, de antibiótico para imu-nomodulador e mais recentemente para modificador de resposta biológica – à medida que a visão dos especialistas sobre suas propriedades terapêuticas amadurecia. Na sua opinião, as subs-tituições de protagonistas e conceitos permitiram a continuidade do trabalho.

Fioravanti compara a trajetória de pesquisa e o desenvolvimento do P-Mapa à da penicilina – descoberta durante a Segunda Guerra por Alexan-dre Fleming –, pois ambos foram pro-duzidos a partir de fungos e resultam de

Jornalistainvestigadesenvolvimentode fármacoconcebido pelomédico Odilonda Silva Nunes

pesquisas iniciadas por médicos. Em 2007, como bolsista do Instituto Reu-ters, Fioravanti percorreu os espaços de descoberta e desenvolvimento da penicilina, em Londres e Oxford, com o propósito de retratar a diversidade de atores que participaram da construção social de cada um deles e as possibili-dades de ampliação das redes estabele-cidas em torno dos dois medicamentos.

Neste percurso, conversou com pes-quisadores e empresários ligados à pes-quisa de medicamentos na Inglaterra. A cada nova resposta à sua investigação, Fioravanti constatava que o fármaco em desenvolvimento no Brasil apresentava um potencial maior que o da penicilina. O medicamento, segundo o jornalista, tem capacidade mais ampla, que permi-te agir contra outros microrganismos e tumores. “O P-Mapa inclui a ação da penicilina, que é a de um antibiótico, mas acrescenta ações mais eficientes contra vírus e tumores”, acrescenta.

Cada etapa de desenvolvimento

Odilon da Silva Nunes, criador do P-Mapa, ao lado do filho Iseu Nunes: obstinação Frascos de P-Mapa: fármaco era conhecido como “o remédio brasileiro contra a Aids”

O jornalista Carlos Henrique Fioravanti, na Inglaterra: história do P-Mapa revela “jeito brasileiro de fazer ciência”

Foto: Acervo pessoal de Iseu Nunes

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Campinas, 17 a 23 de maio de 20107

De acordo com a tese, o P-Mapa encontra-se em fase final de desenvolvimento. O fármaco passou por testes pré-clínicos e chegou à etapa inicial de testes clínicos, tendo apresentado toxicidade muito baixa.

Faltam os testes mais amplos em seres humanos e a autorização das agências oficiais reguladoras de medicamentos para que o P-Mapa complete o percurso de desenvolvimento de fármacos e possa ser produzido em larga escala e comercializado.

Fioravanti explica que a pesquisa de novos medicamentos – da caracterização de um composto químico até a aprovação para venda pelas autoridades regulatórias – é uma tarefa arriscada, demorada e cara,que pode ser dividida em duas etapas. A primeira é a descoberta de uma molécula de interesse farmacológico, isolando-a de planta ou animal, transformando-a a partir de outras moléculas ou obtendo-a por processos químicos ou biotecnológicos. A segunda é o desenvolvimento, que começa com os testes pré-clinicos, em células (in vitro) e animais de laboratório (in vivo), para avaliar principalmente a toxicidade e os efeitos positivos, em diferentes dosagens.

As moléculas que apresentarem toxicidade aceitável e efeitos biológicos promissores seguem para os testes clínicos, primeiramente em grupos pequenos de pacientes (fase 1) e depois em grupos maiores (fases 2 e 3), para avaliar a segurança, o potencial terapêutico e provável dosagem mais efetiva do medicamento.

As novas moléculas têm de apresentar resultados positivos nos estudos pré-clínicos e nas três fases dos estudos clínicos para serem aprovadas pelas autoridades regulatórias. Em média, apenas um novo composto, de cada 100 mil a 1 milhão avaliados, cumpre todos os requisitos para ser aprovado pelas agências regulatórias, que permitem o início da comercialização e o retorno dos investimentos feitos em seu desenvolvimento.

qualquer modificação ou ação. A molécula planejada pelo médico

Odilon da Silva Nunes ganha continu-amente novas aplicações. Em testes realizados nos Estados Unidos desde 2006, o P-Mapa havia apresentado re-sultados positivos contra um vírus que reproduz os efeitos do vírus causador da febre do Rift Vale, doença fatal comum na África subsaariana. Em dezembro de 2008, como coordenador da ONG Farmabrasilis, Iseu Nunes recebeu um e-mail de um dos coordenadores de pes-quisa do Instituto Nacional de Doenças Alérgicas e Infecciosas (Niaid), uma das unidades dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH), sediados em Bethesda, cidade próxima a Washington, Estados Unidos, informando que o composto havia sido eficaz, mesmo em doses bai-xas, para deter a ação de uma variedade bastante agressiva de bactéria causadora de tuberculose em camundongos. Esse resultado fortalece a perspectiva de usar esse composto contra tuberculose e ou-

A construção social do P-Mapa, um medicamento brasileiroTestes clínicos já foram iniciados

..................................................Artigo

FIORAVANTI, C. New Perspectives on Drug Development in Developing Countries: a Case Study of the Brazilian Compound P-MAPA. Oxford, UK: Reuters Institute for the Study of Journalism, 2007 (Research paper).

Publicação: Tese de doutorado “A construção de um medicamento no Brasil: a trajetória do fármaco P-Mapa”.Autor: Carlos Henrique Fioravanti Orientadora: Léa Maria Leme Strini Velho

..................................................

do P-Mapa, segundo o autor, expressa formas distintas de organização, com resultados igualmente distintos. Com a penicilina não foi diferente, pois quan-do Fleming sai de cena, outros grupos dão continuidade ao trabalho. Segundo Fioravanti, a penicilina é a primeira ação coletiva e integrada de desenvol-vimento de fármacos no mundo.

Fleming também enfrentou a re-sistência da academia, e sua pesquisa ganhou força após receber o apoio de Howard Florey e Ernest Chain, da Universidade de Oxford, que publica-ram os achados e sistematizaram sua produção. Naquele momento, soldados combatentes na Segunda Guerra eram mortos mais por infecções que pelo combate, e os Estados Unidos tinham interesse em financiar pesquisas de no-vas drogas. De acordo com o pesquisa-dor, a iniciativa de produzir a penicilina também foi dos Estados Unidos, apesar da origem londrina de seu criador. Assim como foram os primeiros a

fazer da penicilina um medicamento, os estadunidenses também colaboram nas pesquisas com o P-Mapa.

Após toda a trajetória jornalístico-acadêmica, Fioravanti conclui que os impasses, os desvios e os avanços do desenvolvimento do P-Mapa indicam que o desafio de criar medicamentos, além de dinheiro, implica integração, organização e planejamento conjunto dos líderes de centros de pesquisa, empresas e órgãos de governo em torno de objetivos claros e comuns. “Sem conexões e sem mediadores que complementem as competências e busquem alternativas às portas que se fecham, o conhecimento dificilmente vence as paredes dos laboratórios e tende a tornar-se oportunidade perdi-da.” Ele explica que, do ponto de vista da Teoria Ator-Rede, os mediadores são indispensáveis, pois transformam o significado do que carregam, diferen-temente dos intermediários, que apenas transportam informação, sem gerar

tras doenças infecciosas de difícil con-trole, como Aids e malária, de acordo com Fioravanti. Segundo o jornalista, foi essa a proposta que a Farmabrasilis apresentou em um fórum internacional realizado no Rio de Janeiro em 2009, com base também em outros estudos, que indicaram que o P-Mapa é de uso seguro e versátil por reconstruir as de-fesas do organismo em vez de atacar tu-mores ou microrganismos diretamente.

Foto: Divulgação

Frascos de P-Mapa: fármaco era conhecido como “o remédio brasileiro contra a Aids” Fermentação do Penicillium na Escola de Patologia Sir William Dunn, na Universidade de Oxford

O jornalista Carlos Henrique Fioravanti, na Inglaterra: história do P-Mapa revela “jeito brasileiro de fazer ciência” Nelson Durán, professor do Instituto de Química: na força-tarefaFlorey (direita) e seu assistente Jim Kent, injetando

penicilina em um camundongo na Universidade de Oxford

Foto: Antoninho Perri

Foto: Acervo pessoal de Iseu Nunes

Foto: DivulgaçãoFoto: Divulgação