389_Cantar Para Subir Um Estudo Antropológico Da Música Ritual No Candomblé Paulista-Rita Amaral...

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Rita Amaral - Vagner Gonçalves da Silva O candomblé, enquanto culto organizad por um desenvolvimento particular, a paulista surgiu como uma religião de po as inúmeras variações da umbanda sulis Paulo caracterizou-se pelas influências particular, observável seja pelas seme divindades comuns a ambos os cultos. O e às divindades nacionais (caboclos, periféricas, as primeiras a localizarem o "umbandomblé" com o qual se designa ( número significativo de terreiros paulist que aqui se instalou, vindo de localidad por um "purismo" de práticas rituais tal Angola, Jeje, além das denominações lo verdade, ainda que todas essas "nações influências e empréstimos verificados a origem, como bem atesta o candomblé d Estas referências tornam-se necessárias aspectos, manifesta-se empiricamente privilegiando o ponto de vista musical, outras. Do mesmo modo que (para o de vale mais o detalhe que, quebrando testemunha a vitalidade e importância amarelo, come ipeté, dança de modo l ieieu!", uma fitinha azul arrematando su e uma certa agressividade no jeito de da a exceção que consubstancia a generalid Assim, este trabalho, privilegiando a m principalmente, dos aspectos recorrente previamente nossas afirmações sobre a m do. não remonta, em São Paulo, há mais de três o partir dos processos migratórios ocorridos n ossessão ao lado daquelas aqui já existentes, com sta.O processo de instalação e difusão do culto s e empréstimos entre as práticas espíritas em elhanças entre as estruturas rituais, seja pela Originou-se, assim, um culto cuja referência às div índios, boiadeiros, pretos-velhos), tornou-se os terreiros, como nas regiões mais centrais da á (comumente de modo pejorativo) esse tipo de c tas atualmente em funcionamento. É bom lemb des como Salvador, Recôncavo Baiano, Recife e como se imagina quando idealmente o dividimo ocais como "Xangô" em Pernambuco ou "Tambor s" estejam representadas em São Paulo, podem aqui também é fenômeno característico do ca de caboclo, principalmente nos terreiros angola d na medida em que o universo dos cultos afro-b de tal forma integrado que uma classificação , deve ser entendida como uma ordenação ana esespero dos pesquisadores desacostumados co a regra, insinua um conhecimento que difer a da norma para o grupo. Se Oxum, a divindad lento e dengoso ao som do ritmo ijexá e é sau ua saia dourada, um quitute inesperado entre as ançar sob as saudações efusivas de "Ora ieieu mi dade do estereótipo na riqueza de sua variação. música ritual, ocupar-se-á de uma parcela de um es. Faremos contudo, uma breve descrição do cul música. ou quatro décadas. Marcado nesse período, o candomblé mo o espiritismo Kardecista e o aos orixás na região de São m geral e da umbanda em a visão mítica, formada por vindades africanas (os orixás) comum, tanto nas regiões área metropolitana. O termo culto, pode ser aplicado a um brar, ainda, que o candomblé Rio de Janeiro, não primava os em "nações" como : Ketu, r de Mina" no Maranhão. Na mos supor que o processo de andomblé em seus locais de da Bahia. brasileiros, em seus múltiplos como a que iremos expor, alítica possível, entre tantas om a exceção) no candomblé rencia e ao mesmo tempo de das águas, sempre veste udada com a expressão "Ora s folhas de mamona do ipeté i ka fiderioman" pode revelar m todo integrado, tratando, ulto de forma a contextualizar

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  • Rita Amaral - Vagner Gonalves da Silva

    O candombl, enquanto culto organizado. no remonta, em So Paulo, h mais de trs ou quatro dcadas. Marcado

    por um desenvolvimento particular, a partir dos processos migratrios ocorridos nesse perodo, o candombl

    paulista surgiu como uma religio de possesso ao

    as inmeras variaes da umbanda sulista.O processo de instalao e difuso do culto aos orixs na regio de So

    Paulo caracterizou-se pelas influncias e emprstimos entre as prticas esp

    particular, observvel seja pelas semelhanas entre as estruturas rituais, seja pela viso mtica, formada por

    divindades comuns a ambos os cultos. Originou

    e s divindades nacionais (caboclos, ndios, boiadeiros, pretos

    perifricas, as primeiras a localizarem os terreiros, como nas regies mais centrais da rea metropolitana. O termo

    "umbandombl" com o qual se designa (comumente de modo pejorativo) esse tipo de culto, pode ser aplicado a um

    nmero significativo de terreiros paulistas atualmente em funcionamento. bom lembrar, ainda, que o candombl

    que aqui se instalou, vindo de localidades como Salvador, Recn

    por um "purismo" de prticas rituais tal como se imagina quando idealmente o dividimos em "naes" como : Ketu,

    Angola, Jeje, alm das denominaes locais como "Xang" em Pernambuco ou "Tambor de Mina" no M

    verdade, ainda que todas essas "naes" estejam representadas em So Paulo, podemos supor que o processo de

    influncias e emprstimos verificados aqui tambm fenmeno caracterstico do candombl em seus locais de

    origem, como bem atesta o candombl de caboclo, principalmente nos terreiros angola da Bahia.

    Estas referncias tornam-se necessrias na medida em que o universo dos cultos afro

    aspectos, manifesta-se empiricamente de tal forma integrado que uma classi

    privilegiando o ponto de vista musical, deve ser entendida como uma ordenao analtica possvel, entre tantas

    outras. Do mesmo modo que (para o desespero dos pesquisadores desacostumados com a exceo) no candombl

    vale mais o detalhe que, quebrando a regra, insinua um conhecimento que diferencia e ao mesmo tempo

    testemunha a vitalidade e importncia da norma para o grupo. Se Oxum, a divindade das guas, sempre veste

    amarelo, come ipet, dana de modo lento e dengoso ao som

    ieieu!", uma fitinha azul arrematando sua saia dourada, um quitute inesperado entre as folhas de mamona do ipet

    e uma certa agressividade no jeito de danar sob as saudaes efusivas de "Ora ieieu mi ka fid

    a exceo que consubstancia a generalidade do esteretipo na riqueza de sua variao.

    Assim, este trabalho, privilegiando a msica ritual, ocupar

    principalmente, dos aspectos recorrentes. Faremos contudo, uma breve descrio do culto de forma a contextualizar

    previamente nossas afirmaes sobre a msica.

    , enquanto culto organizado. no remonta, em So Paulo, h mais de trs ou quatro dcadas. Marcado

    por um desenvolvimento particular, a partir dos processos migratrios ocorridos nesse perodo, o candombl

    paulista surgiu como uma religio de possesso ao lado daquelas aqui j existentes, como o espiritismo Kardecista e

    as inmeras variaes da umbanda sulista.O processo de instalao e difuso do culto aos orixs na regio de So

    se pelas influncias e emprstimos entre as prticas espritas em geral e da umbanda em

    particular, observvel seja pelas semelhanas entre as estruturas rituais, seja pela viso mtica, formada por

    divindades comuns a ambos os cultos. Originou-se, assim, um culto cuja referncia s divindades africanas (os orix

    e s divindades nacionais (caboclos, ndios, boiadeiros, pretos-velhos), tornou-se comum, tanto nas regies

    perifricas, as primeiras a localizarem os terreiros, como nas regies mais centrais da rea metropolitana. O termo

    designa (comumente de modo pejorativo) esse tipo de culto, pode ser aplicado a um

    nmero significativo de terreiros paulistas atualmente em funcionamento. bom lembrar, ainda, que o candombl

    que aqui se instalou, vindo de localidades como Salvador, Recncavo Baiano, Recife e Rio de Janeiro, no primava

    por um "purismo" de prticas rituais tal como se imagina quando idealmente o dividimos em "naes" como : Ketu,

    Angola, Jeje, alm das denominaes locais como "Xang" em Pernambuco ou "Tambor de Mina" no M

    verdade, ainda que todas essas "naes" estejam representadas em So Paulo, podemos supor que o processo de

    influncias e emprstimos verificados aqui tambm fenmeno caracterstico do candombl em seus locais de

    dombl de caboclo, principalmente nos terreiros angola da Bahia.

    se necessrias na medida em que o universo dos cultos afro-brasileiros, em seus mltiplos

    se empiricamente de tal forma integrado que uma classificao como a que iremos expor,

    privilegiando o ponto de vista musical, deve ser entendida como uma ordenao analtica possvel, entre tantas

    outras. Do mesmo modo que (para o desespero dos pesquisadores desacostumados com a exceo) no candombl

    is o detalhe que, quebrando a regra, insinua um conhecimento que diferencia e ao mesmo tempo

    testemunha a vitalidade e importncia da norma para o grupo. Se Oxum, a divindade das guas, sempre veste

    amarelo, come ipet, dana de modo lento e dengoso ao som do ritmo ijex e saudada com a expresso "Ora

    ieieu!", uma fitinha azul arrematando sua saia dourada, um quitute inesperado entre as folhas de mamona do ipet

    e uma certa agressividade no jeito de danar sob as saudaes efusivas de "Ora ieieu mi ka fid

    a exceo que consubstancia a generalidade do esteretipo na riqueza de sua variao.

    Assim, este trabalho, privilegiando a msica ritual, ocupar-se- de uma parcela de um todo integrado, tratando,

    principalmente, dos aspectos recorrentes. Faremos contudo, uma breve descrio do culto de forma a contextualizar

    sobre a msica.

    , enquanto culto organizado. no remonta, em So Paulo, h mais de trs ou quatro dcadas. Marcado

    por um desenvolvimento particular, a partir dos processos migratrios ocorridos nesse perodo, o candombl

    lado daquelas aqui j existentes, como o espiritismo Kardecista e

    as inmeras variaes da umbanda sulista.O processo de instalao e difuso do culto aos orixs na regio de So

    ritas em geral e da umbanda em

    particular, observvel seja pelas semelhanas entre as estruturas rituais, seja pela viso mtica, formada por

    se, assim, um culto cuja referncia s divindades africanas (os orixs)

    se comum, tanto nas regies

    perifricas, as primeiras a localizarem os terreiros, como nas regies mais centrais da rea metropolitana. O termo

    designa (comumente de modo pejorativo) esse tipo de culto, pode ser aplicado a um

    nmero significativo de terreiros paulistas atualmente em funcionamento. bom lembrar, ainda, que o candombl

    cavo Baiano, Recife e Rio de Janeiro, no primava

    por um "purismo" de prticas rituais tal como se imagina quando idealmente o dividimos em "naes" como : Ketu,

    Angola, Jeje, alm das denominaes locais como "Xang" em Pernambuco ou "Tambor de Mina" no Maranho. Na

    verdade, ainda que todas essas "naes" estejam representadas em So Paulo, podemos supor que o processo de

    influncias e emprstimos verificados aqui tambm fenmeno caracterstico do candombl em seus locais de

    dombl de caboclo, principalmente nos terreiros angola da Bahia.

    brasileiros, em seus mltiplos

    ficao como a que iremos expor,

    privilegiando o ponto de vista musical, deve ser entendida como uma ordenao analtica possvel, entre tantas

    outras. Do mesmo modo que (para o desespero dos pesquisadores desacostumados com a exceo) no candombl

    is o detalhe que, quebrando a regra, insinua um conhecimento que diferencia e ao mesmo tempo

    testemunha a vitalidade e importncia da norma para o grupo. Se Oxum, a divindade das guas, sempre veste

    do ritmo ijex e saudada com a expresso "Ora

    ieieu!", uma fitinha azul arrematando sua saia dourada, um quitute inesperado entre as folhas de mamona do ipet

    e uma certa agressividade no jeito de danar sob as saudaes efusivas de "Ora ieieu mi ka fiderioman" pode revelar

    de uma parcela de um todo integrado, tratando,

    principalmente, dos aspectos recorrentes. Faremos contudo, uma breve descrio do culto de forma a contextualizar

  • I- A Estrutura do Rito

    A noo em que se baseia este trabalho a de que o candombl, uma religio inicitica e de possesso, apresenta

    dois momentos que, grosso modo, constituem as duas principais modalidades da expresso religiosa: as cerimnias

    privadas, s quais tm acesso apenas os iniciados (entre elas os ebs, boris e ors) e as cerimnias pblicas (abertas

    ao pblico em geral) comumente denominadas "toques". Sem dvida, a separao sobretudo analtica e sua

    artificialidade se justifica pela tentativa de tornar a exposio o mais clara possvel. De fato, as cerimnias privadas

    ou pblicas podem se articular, constituindo uma unidade, como, por exemplo, num toque de sada de ia.

    A- As cerimnias privadas da iniciao.

    A sustentao social e religiosa do candombl depende do fluxo renovado de iniciados que investem parte de seu

    tempo e seu trabalho para garantir a continuidade do grupo do terreiro e do conjunto de prticas que, somadas,

    constituem o arcabouo religioso do culto. A iniciao , ainda, um forte elemento de coeso do grupo, j que todos

    os que passaram pelos rituais iniciticos sabem das dificuldades, de todos os gneros, que devem ser enfrentadas:

    financeiras, emocionais, psicolgicas e sociais; da necessria fora de vontade e humildade imprescindveis para

    comear a nova vida, na qual uma nova personalidade ser construda. Novo nome, novos hbitos, novas

    referncias. Postura que se refletir na vida cotidiana em casa, na rua, no trabalho ou mesmo no lazer. O iniciado

    assume um compromisso eterno com seu orix e, ao mesmo tempo, com seu "pai" ou "me" de santo. H uma nova

    famlia que se forja; novos vnculos de parentesco, que se pretendem mais significativos que os laos sanguneos.

    Como dizem no candombl um "irmo de folha mais irmo que um irmo de sangue". H uma nova estruturao

    do mundo que dever ser aprendida por etapas e que comea no ato de "bolar", quando o indivduo "morre" para a

    vida profana, iniciando o perodo do recolhimento, para renascer no dia de sua sada pblica.

    Bolar

    "Bolar", ou "cair no santo", indcio da necessidade da futura iniciao. Geralmente acontece quando a pessoa

    participa de um "toque" e o orix a incorpora, ainda no estado que os adeptos denominam de "bruto" (ainda no

    assentado ou "feito"). Bolar, aparentemente, como desmaiar. Mas o orix est ali. Tomou a cabea de seu filho,

    mesmo contra a vontade deste, cobrando sua iniciao. A "bolao" geralmente acontece enquanto as pessoas

    cantam e danam para os orixs, sendo significativa, para a identificao do orix ao qual a pessoa pertence, a

    divindade para a qual se cantava quando a pessoa bolou.

    Uma vez "bolada" a pessoa levada para o ronc ou para o quarto de santo, onde ser "acordada". Se depois de

    bolar uma ou mais vezes, a pessoa decidir se iniciar, o pai-de-santo consultar o orculo (jogo de bzios) para

    determinar que orix ser feito e como (com que folhas, de que modo, com que quantidades, que animais sero

    sacrificados etc.). O pai-de-santo prepara o ronc com a esteira sob a qual sero depositadas as devidas folhas, as

    representaes materiais do orix (como quartilhes, alguidares, ferramentas, pratos etc.) e tudo o mais que ser

    necessrio durante o tempo do recolhimento. S ento feito o "toque de bolar", quando o abi (iniciando) ser

    levado para o barraco onde, ao som dos atabaques, danar para o seu orix at que este incorpore. Bolado, o abi

    ser recolhido, para s reaparecer em pblico no dia da festa da sada .

    Durante este perodo, o abi vai sendo inserido no grupo atravs do aprendizado das prticas rituais. Aprende a

    hierarquia da casa, os tabus, os preceitos, oraes para o seu e para todos os outros orixs, aprende cantigas,

    aprende a danar para o orix, aprende os mitos, os cumprimentos, suas obrigaes, enfia contas para compor seus

    colares iniciticos, reza, come e dorme. So vinte e um dias, em geral, em que ele permanecer dia e noite na casa

    de santo, confinado ao ronc, dele saindo apenas para os banhos rituais ou outras cerimnias necessrias para sua

    purificao, como os ebs, que visam desligar o abi de suas ligaes com o mundo exterior, com as doenas, os

    mortos, a sexualidade, enfim, da vida anterior. Purificado o corpo, inicia-se o processo de assentamento do orix,

    propriamente dito.

  • O Bori

    O bori consiste, segundo os adeptos, em "dar comida cabea", ao ori (que , em si, uma entidade), com o objetivo

    de fortific-la e ao mesmo tempo reverenci-la, pois o orix s tomou aquela cabea (aquele ori) porque esta assim

    o permitiu. Nesta cerimnia so oferecidos alimentos secos e sangue de um pombo cabea do abi, iniciando a

    aliana definitiva deste com seu ori e com seu orix. Do mesmo modo o bori, ainda quando feito fora do processo de

    iniciao, cria um vnculo do indivduo com a casa de santo e o obriga a determinados comportamentos rituais.

    O Or

    Chega finalmente o dia do or, a cerimnia de assentamento do orix, na qual o abi ter sua cabea depilada e

    sero sacrificados os animais correspondentes ao orix que est sendo assentado. Geralmente os orixs recebem

    como sacrifcio um animal "de quatro patas" (de acordo com suas preferncias caractersticas: para Ogun, por

    exemplo, sacrifica-se um bode escuro; para Oxum, uma cabra amarelada). Para cada pata do animal, deve-se

    sacrificar uma galinha. Outras aves, como galinhas d'angola, pombos e patos, tambm podem ser sacrificados. Alm

    da cabea, os assentamentos que foram preparados recebem tambm parte dos sacrifcios dos animais, pondo o

    corpo do iniciado em relao com os smbolos do deus, unindo as vrias formas de um mesmo contedo: o orix.

    Sendo a cabea considerada o ponto privilegiado da manifestao divina, nela que se faro os cortes rituais

    (abers) propiciatrios incorporao, bem como as pinturas feitas com as tintas sagradas obtidas a partir da

    diluio de ps como o waji, o ossum e o efum (azul, vermelho e branco respectivamente). Tambm o Kel (colar de

    contas usado rente ao pescoo, sublinhando a importncia da cabea que foi sacralizada) amarrado nesse

    momento e assim dever permanecer por um perodo de trs meses, durante os quais um conjunto preciso de

    interdies dever ser observado pelo ia. Finda a cerimnia, o agora ia, ainda no ronc, aguarda o dia de sua sada

    numa festa pblica.

    B - As cerimnias pblicas - o toque

    "Toque" o nome que se d, genericamente, cerimnia pblica de candombl. Como o prprio nome revela,

    "toque", esta uma cerimnia essencialmente musical. Seu objetivo principal a presena dos orixs entre os

    mortais. Sendo a msica uma linguagem privilegiada no dilogo dos orixs, o toque pode ser entendido como um

    chamado, ou uma prece, pedindo aos deuses que venham estar junto a seus filhos, seja por motivo de alegria ou de

    necessidade destes.

    Os terreiros seguem um calendrio litrgico que estipula a periodicidade dos toques ao longo do ano. Motivos

    especficos podem transformar o toque numa festa. Assim, por exemplo, os terreiros que fecham por ocasio da

    Quaresma realizam o Lorogun, uma festa de encerramento das atividades do terreiro. Em junho, so comuns as

    "Fogueiras de Xang". Para Obalua, feita a festa do Olubaj, em agosto; em setembro realizam-se as guas de

    Oxal, o que tambm pode acontecer em dezembro. Em outubro, a Feijoada de Ogun. As Festas das Iabs, como o

    Ipet de Oxum, acontecem em dezembro.

    Toques semanais e quinzenais tambm so comuns, principalmente quando tm a funo de atender o pblico,

    como o caso dos candombls que cultuam as outras divindades que prestam servios mgico-religiosos atravs de

    "passes", conselhos e receitas de "trabalhos" para a soluo dos problemas que lhes so apresentados. Apesar de

    ser comum que um mesmo terreiro conjugue toques de comemorao (festas) e de atendimento, isso geralmente

    no acontece simultaneamente. J as festas de sada de ia (de iniciao), ocorrem sem um calendrio previsvel,

    embora possam ser sobrepostas s demais. Todos os toques acontecem no espao do terreiro denominado

    "barraco", onde se encontram os atabaques, frente dos quais canta e dana o povo-de-santo, separado (ainda

    que dentro de um mesmo ambiente) da assistncia, qual tambm reservada uma rea.

  • Um toque comum comea, geralmente, pelo ritmo dos atabaques chamando a "roda-de-santo" (os filhos de santo

    organizados circularmente), tendo frente o pai-de-santo que entra tocando o adj (sineta), seguido pelos seus

    subordinados na hierarquia: me-pequena, pejigan, axogun, ogs. ekedes, outros ebomis, ias por ordem de

    iniciao ou organizados por "barcos " e, no "fim" da roda, os abis. Esta formao pode, ainda, dividir-se em duas

    rodas concntricas: a de dentro reservada aos ebomis (iniciados h pelo menos 7 anos) e a de fora formada pelos

    demais. A me ou pai pequenos e as ekedes tambm costumam tocar o adj. Nos toques festivos as roupas

    costumam ser de grande beleza, geralmente fazendo aluso, mesmo que no simples desenho do tecido, ao orix

    individual do adepto. Neste dia so usadas as contas dos orixs, os brajs (colares de contas truncados), as faixas na

    cintura, os smbolos de ebomis e tudo o que identifique o status religioso do indivduo.

    A roda entra danando e, algumas vezes, cantando alguma cantiga prpria deste momento. Estando todos no

    barraco, os atabaques param, o pai-de-santo sada Exu e tem incio o pad, cerimnia que tem por finalidade

    "despachar" Exu (atravs da oferenda de farinha com dend e aguardente), seja porque se acredite que ele possa

    causar perturbaes ao toque, seja porque se acredite que ele o principal mensageiro e que abrir os caminhos

    para a vinda os orixs. Findo o pad, o xir prossegue. Xir uma estrutura seqencial de cantigas para todos os

    orixs cultuados na casa ou mesmo pela "nao", indo de Exu a Oxal. Durante o xir, um a um, todos os orixs so

    saudados e louvados com cantigas prprias, s quais correspondem coreografias que particularizam as

    caractersticas de cada deus. nesses momentos, de grande efervescncia ritual, que as divindades "baixam".

    Como a finalidade manifesta de um toque no altera a estrutura do xir, julgamos encontrar a uma estrutura na

    qual se intercalam as cerimnias que lhe atribuem um carter especfico, como o caso das festas de sada de ia,

    entre outras.

    As sadas de Ia

    A festa de Sada de Ia sempre muito concorrida e tida como uma das festas de maior ax, pois um orix est

    nascendo.

    O ia normalmente costuma fazer quatro aparies em pblico no dia da festa, conhecidas como "sada de Oxal"

    ou "de branco", sada "de nao" ou "estampada", sada "do ekodid" ou "do nome" e sada do rum ou "rica". Na

    primeira "sada" o ia (em transe) entra sob o al (pano branco), totalmente vestido de branco, reverenciando Oxal.

    Cumprimenta a porta, o ariax (ponto central do barraco), os atabaques, o pai-de-santo e, eventualmente, a me-

    pequena, com dobale e pa (cumprimentos rituais), sempre sobre a esteira. D uma volta danando de modo

    contido pelo barraco e se retira. Prossegue o xir.

    Na segunda sada o ia entra vestido e pintado com as cores da "nao". H quem diga, no entanto, que esta sada

    especifica a "qualidade" (avatar) do orix que est saindo. Ele segue novamente a ordem dos cumprimentos, agora

    somente com seu jic (saudao que os orixs fazem com o corpo), uma vez que seu il (grito com que o orix se

    anuncia) s ser conhecido aps a "queda" do Kel.

    A terceira sada, muito esperada, a sada do oruk (nome), tambm chamada "sada do ekodid" (pena vermelha

    de papagaio, relacionada com a fala), momento em que o orix revelar publicamente seu nome secreto, que

    parte de si mesmo. um momento de grande emoo, acompanhado de um certo suspense, estimulado pelos

    outros filhos de santo, que geralmente "viram" (entram em transe) ao ouvir o nome. Dito o oruk, os atabaques

    imediatamente comeam o adarrum (ritmo muito acelerado) e o orix levado para vestir suas roupas de rum

    (dana), ou seja, suas vestes tpicas e suas "ferramentas" para voltar e danar, pela primeira vez, em pblico.

    Esta a quarta sada: a sada do rum ou "rica", quando o orix entra, sada os pontos principais com seu jic e dana

    suas cantigas. Geralmente, nessa sada, o orix dana apenas as msicas que lhe so atribudas e nenhuma outra,

    mas h casos em que o novo orix dana tambm para o orix do pai-de-santo. No convm, entretanto, fazer

    danar demais o orix muito novo. Findo o rum, toca-se para retirar o ia em transe da sala ("cantar para subir",

    dizem os alabs) e o xir prossegue at as cantigas para Oxal, encerrando o toque.

  • Toca-se ento para a entrada do ajeum, que pode conter as mais diversas comidas e bebidas, de acordo com o orix

    feito e com as posses do iniciado.

    II- A Estrutura Musical

    A msica, no candombl, tem um papel mais significativo que o mero fornecimento de estmulos sonoros aos

    diversos rituais. Ela pode ser entendida como elemento constitutivo do culto, dando forma a contedos

    inexprimveis em outras linguagens, termo aqui entendido como articulao de signos e smbolos. Todos os rituais

    do culto esto apoiados tambm na msica, que mostra um carter estruturante das diversas experincias religiosas

    vividas por seus membros. Do pa (seqncia rtmica de palmas usada para reverncia) ao toque (xir), a msica

    continua sendo parte de cada cerimnia, constituindo-a, delimitando situaes e ordenando o conjunto das prticas

    extremamente detalhadas.

    "Tocar candombl" um termo comum entre o "povo-de-santo", indicando que o candombl e a msica se

    confundem. Por isso, o conhecimento das cantigas e dos ritmos denota prestgio e acesso s instncias de poder da

    religio. Sendo a msica um elemento sagrado e sacralizante, tanto instrumentos quanto instrumentistas se

    revestem desta aura, que se revela no tratamento que estes recebem por parte dos membros da comunidade do

    terreiro .

    Instrumentos e Instrumentistas

    No candombl, os atabaques ou "couros" (tambores) com os quais se invocam as divindades so tidos como seres

    vivos e sua utilizao reservada apenas aos ogs alabs (instrumentistas iniciados). Cabe a eles a execuo do

    repertrio apropriado a cada divindade, que compreende um conjunto de cantigas diferenciadas, com ritmos

    prprios. A "orquestra" do candombl formada por trs tambores de tamanhos diferentes: o de tamanho maior,

    denominado Rum, o mdio, Rumpi (chamado, em muitas casas, apenas de Pi) e o pequeno, L. No candombl de rito

    Ketu os atabaques so percutidos com aguidavis (varinhas), enquanto no rito Angola eles so tocados com as mos.

    Sendo instrumentos sacralizados, os atabaques recebem sacrifcios periodicamente renovados. So instrumentos

    consagrados s entidades padroeiras dos terreiros, sendo o Rum, na maioria das casas, dedicado a Exu. Os laos com

    que so adornados os atabaques indicam, em suas cores, os orixs aos quais foram consagrados.

    Os atabaques so usados principalmente nas cerimnias pblicas, quando so tocados pelos alabs. Cada um

    executa uma frase rtmica individualmente, perfazendo, no conjunto, um polirritmo, cuja marcao dada pelo

    Rum, responsvel, ao mesmo tempo, pelo "repique" ou "dobrado" (floreio), que do msica um carter diferencial

    acentuado conforme os ritmos de cada orix. Essa funo particular do Rum estabelece sua maior importncia em

    relao aos outros dois atabaques. A expresso "dar o rum no orix" indicativa da posio desse instrumento no

    conjunto da "orquestra". Essa mesma importncia observvel por ocasio da reverncia obrigatria aos atabaques,

    quando o Rum o primeiro a ser saudado pelos fiis, tambm cabendo a ele noticiar e saudar a chegada de

    visitantes ilustres ao terreiro (receber o "dobrar dos couros" sinal de grande prestgio). Portanto, cabe ao chefe dos

    alabs a responsabilidade pelo Rum particularmente e tambm pelos outros atabaques; no s durante o toque,

    mas por sua manuteno permanente. Quando no esto em uso, os atabaques devem ser cobertos por um pano

    branco e, uma vez que so considerados como portadores de ax, eles no podem ser removidos do terreiro. Pelo

    mesmo motivo, so tratados com especial reverncia quando, por algum acidente, caem ao cho.

    Alm do Rum, a marcao do ritmo dos atabaques pode ser feita por um instrumento de ferro, em forma de sino

    simples denominado "g", ou duplo, "agog", percutido por uma haste de metal . Apesar do carter sagrado, seu uso

    no restrito aos alabs.

    Ainda nas cerimnias pblicas so utilizados outros instrumentos que, no fazendo parte da orquestra, tm funes

    especficas. o caso do adj, um sino de uma a sete bocas (campnulas) cuja principal atribuio provocar o transe

    quando agitado sobre a cabea do iniciado. Seu uso reservado aos ebomis, normalmente ao pai ou me de santo

    e s ekedes, no sendo necessrio, para isso, o domnio de qualquer tcnica especfica. A intensidade com que

  • agitado o que denota a funo de seu som: induzir ao transe, nas festas pblicas, ou ainda invocar os deuses para

    que atendam os pedidos de seus filhos, durante as cerimnias privadas, nas quais o uso de outros instrumentos (que

    no o adj) no freqente. Um instrumento com funes semelhantes o xere, um chocalho de metal, com haste,

    geralmente confeccionado em cobre e consagrado a Xang.

    Se a msica, dentro do contexto religioso assume tal importncia, a ponto de estar "nas mos" dos ebomis, vemos

    que eles j nasceram com ela, ou seja, significativo que um dos principais smbolos da iniciao seja o xaor, fieira

    de guizos que se amarram com palha da costa aos tornozelos do ia e que produzem som ao menor movimento

    deste. Acompanhando o processo de iniciao, o xaor pode assumir vrias funes. Diz-se que afugenta os maus

    espritos e sacraliza os primeiros passos do iniciado. Possibilita, ainda, garantir o acompanhamento constante, pelo

    pai-de-santo, dos movimentos do er (esprito infantil presente na iniciao).

    A produo da msica delimita ainda os papis masculinos e femininos. A maior parte dos instrumentos tocada por

    homens, cabendo s mulheres o adj e, eventualmente, o agog. O canto, por outro lado, no privilgio de

    nenhum dos sexos.

    No sem motivo que os alabs so extremamente prestigiados e adulados nos meios do candombl, portanto.

    "Sem alab no tem candombl", dizem os adeptos. Dessa forma, cada casa procurar constituir o seu prprio trio

    de alabs, que devero passar pelo processo de iniciao, pelo aprendizado musical e pela aquisio de repertrio.

    Como este processo demanda um certo tempo e so necessrios trs alabs que por ele devero passar, existe, em

    So Paulo, com o crescimento do nmero de terreiros em funcionamento, uma certa dificuldade em encontrar estes

    "especialistas" da msica ritual. Essa dificuldade superada pelo intercmbio entre pais-de-santo mais velhos que

    "emprestam" seus ogs a outras casas. Uma outra soluo, freqente, tem sido a contratao de alabs experientes

    e que asseguram o bom andamento dos toques. Isso possvel dada a relativa autonomia com que os alabs se

    relacionam com suas casas de origem. O costume de se pagar pelo servio dos ogs no , contudo, um fato novo.

    No contexto do rito a cerimnia do feleb (dinheiro), na qual os adeptos e visitantes atiram dinheiro num pano

    branco diante dos atabaques, ao som de uma cantiga apropriada, exemplo disso. O dinheiro arrecadado ser

    depois repartido entre os alabs.

    "Feleb,feleb

    feleb do og "".

    (rito angola)

    O processo de aprendizado musical e aquisio de repertrio pode acontecer no mbito do prprio terreiro, atravs

    da "suspenso" (indicao pblica feita pelo orix) de algum que tenha demonstrado (ou no) interesse ou

    habilidades musicais. Neste caso, o novo "alab" submete-se ao aprendizado com os ogs mais velhos. Quando isso

    no possvel, porque a casa no possui seus prprios alabs ainda, ser preciso que o pai-de-santo providencie de

    outro modo estas aulas, freqentemente pagas, com alabs que se disponham a ensinar, ou mesmo em instituies

    que promovem cursos de percusso em atabaques. Os alabs, entretanto, divergem quanto ao carter tico do

    pagamento por servios como "toques" ou mesmo de aulas:

    "Eu acho que og que faz isso toca pra viver. Eu acho uma coisa errada. Acho que o candombl no foi feito pra

    ningum ganhar dinheiro."

    (Jorge, 17 anos, alab do Ax Il Ob)

    "De repente, como cobrar jogo de bzios ou no."

    (Paran, 33 anos, alab do Il Ax Omo Ogunj)

    Pag ou no, a socializao na msica ritual segue processos semelhantes. Diferentemente da educao musical

    formal, a msica, no candombl, aprendida sem necessidade da escrita musical, sem o aprendizado dos conceitos

  • universais, caracterizando um processo onde a intuio musical, o ouvido "exato", o ritmo inato adquirem maior

    importncia. Nesse sentido, a socializao musical acompanha a socializao religiosa.

    "Era um ensinamento muito rgido. Ningum tava ali pra brincadeira nem nada. Ento ele (outro alab) cantava

    duas, trs vezes, explicava pra qu cantava, tudo. Eu decorava; seno muitas vezes eu escrevia. Tenho at hoje o

    caderno, tudo, com as cantigas que ele me ensinou. Eu acho que uma coisa difcil mas vale a pena (...) No comeo

    eu aprendi a tocar g sozinho.De ouvir. Eu gostava de ver todo mundo tocando. Ficava grudado. Era louco pra

    aprender, mas no tem jeito de se falar. Se voc no passar por um, voc no aprende. Voc tem que passar por um

    pra aprender o outro. Seno voc se atrapalha. (...) Passei pro L. Depois do L, o Pi (Rumpi) uma coisa parecida.

    quase automtico voc passar (...) Eu dobro o Rum h uns dois anos e meio. (...) Fiquei muito tempo s tocando Pi e

    L. Pi e L, G...cansava (...) Agora eu s dobro." (Jorge)

    Uma vez aprendidas as noes bsicas de ritmo e repertrio, o conhecimento musical se enriquecer atravs da

    maior participao dos alabs na vida da comunidade, seja no seu terreiro ou nos terreiros que visitam.

    "Voc aprende o bsico. O resto experincia" (...) Calha de eu ir numa casa de santo, numa festa, eu aprendo.

    Seno eu compro disco, com cantigas que eu no conheo e aprendo...s ouvindo, conversando com os

    ogs..."(Jorge)".

    Esse trnsito pelos vrios terreiros permite aos alabs o contato com as diferentes modalidades de rito (Ketu,

    Angola, Jeje...) possibilitando, por vezes, que os prprios pais-de-santo usufruam deste conhecimento genrico. Em

    algumas ocasies so os prprios ogs alabs, ao lado do pai-de-santo, que realizam cerimnias de repertrio

    especfico como o axex (rito funerrio) .

    Tambm o crescente nmero de gravaes, em discos e fitas, de msicas rituais, tem respondido demanda por

    esse tipo de artigo como fonte de complementao de repertrio. Evidentemente essa demanda no se restringe

    aos alabs, mas so eles seus principais consumidores e, geralmente, produtores.

    Nesse contexto, conhecer a seqncia exata das cantigas apropriadas a cada momento, como "aquela que se canta

    pro Ogun danar com o mari" (folha de dendezeiro desfiada), sinal de prestgio e poder. Da as cantigas se

    converterem em verdadeira "moeda", com a qual se realiza a troca de conhecimento entre os membros do culto.

    Ritmos e Repertrios

    A msica ritual do candombl costuma ser chamada de "toada" ou "cantiga", sendo este o termo mais usado em So

    Paulo,atualmente.

    "Em candombl a gente no chama "msica". Msica um nome vulgar, todo mundo fala. um...como se fosse um

    or (reza)...uma cantiga pro santo". (Jorge)

    Aqui, entenderemos "cantiga" como um poema musicado, ou seja, a sobreposio de letra a melodia. Desse modo

    podemos classificar as cantigas em dois grupos principais: aquelas destinadas s cerimnias privadas (de ronc), cuja

    letra (em portugus ou fragmentos de lnguas africanas) alude s etapas do rito e aquelas das cerimnias pblicas

    (de barraco), cuja distino em relao s primeiras se d pela referncia aos mitos e pela presena do ritmo,

    executado pelos atabaques. Entretanto, as mesmas cantigas cantadas no barraco podem, por vezes, serem ouvidas

    no "ronc", sem o ritmo caracterstico. Nos candombls ao tempo de Arthur Ramos (1934:163), contudo, o ritmo

    acompanhava as cerimnias privadas.

    A presena do ritmo no barraco parece estar associada dana, que rememora os atributos mticos das divindades.

    Desse modo, um deus guerreiro, como Ogun, estabelece uma coreografia na qual os movimentos sero geis,

    rpidos e vigorosos, adequando-se ao ritmo executado, diferentemente dos passos lentos, fluidos e ondulantes de

    Oxum,uma deusa das guas.

  • "Eu vejo a msica como a...representao de expressar a dana do orix, o preceito, o que ele faz, como ele

    vive...Como se fosse eu falando da minha vida ou cantando alguma coisa para ele." (Jorge).

    Assim, com seus ritmos caractersticos, cada orix expressa, na linguagem musical e gestual, suas particularidades,

    criando uma atmosfera na qual estas se tornam inteligveis e plenas de sentido religioso. Da podermos falar dos

    ritmos mais freqentes no candombl em termos do que representam e de sua relao com as entidades s quais

    homenageiam.

    O adarrum o ritmo mais citado como caracterstico de Ogun. um ritmo "quente", rpido e contnuo, que pode ser

    executado sem canto, ou seja, apenas pelos atabaques. Pode, tambm, ser executado com o objetivo de propiciar o

    transe. O toque de bolar, por exemplo, se faz ao som do adarrum.

    O aguer o ritmo de Oxssi. acelerado, cadenciado e exige agilidade na dana, do mesmo modo que a caa exige

    a agilidade do caador. O ritmo de Obalua o opanij, um ritmo pesado, "quebrado" (por pausas) e lento. Este

    ritmo lembra a circunspeo deste deus das epidemias, ligado terra.

    O bravum, embora no seja atribudo especialmente a algum orix, freqentemente escolhido para saudar

    Oxumar, Ew e Oxal. um ritmo relativamente rpido, bem dobrado e repicado. A dana preferida de Xang se

    faz ao som do aluj, um ritmo quente, rpido, que expressa fora e realeza recordando, atravs do dobrar vigoroso

    do Rum, os troves dos quais Xang o senhor.

    Ijex, o nico ritmo tocado com as mos no rito Ketu , por excelncia, o ritmo de Oxum. um ritmo calmo,

    balanceado, envolvente e sensual, como a deusa da gua doce, qual faz aluso. Ele tocado ainda para o orix

    filho de Oxum, Logun-Ed e, algumas vezes para Exu e para Oxal.

    Para Ians, divindade dos raios e dos ventos, toca-se o ag, ilu, ou aguer de Ians, termos que designam um mesmo

    ritmo que, de to rpido, repicado e dobrado, tambm conhecido como "quebra-prato". o mais rpido ritmo do

    candombl, correspondendo personalidade agitada, contagiante e sensual desta deusa guerreira, senhora dos

    ventos e que tem poder de afastar os espritos dos mortos (eguns).

    Sat, um ritmo vagaroso e pesado, geralmente tocado para Nan, considerada a anci das iabs (orixs

    femininos).

    O bat, talvez um dos ritmos mais caractersticos do candombl, pode ser tocado em duas modalidades: bat lento e

    bat rpido, sendo o primeiro executado para os orixs cuja dana comedida denota certas caractersticas de suas

    personalidades, como a dana de Oxaluf, o deus arcado e velho que, com seu paxor (cajado), criou o mundo.

    Significativamente, o termo bat, designa tambm o tambor de duas membranas, afinadas por cordas, cujo uso nos

    candombls do Norte e Nordeste do Brasil to difundido que talvez por este motivo o ritmo tenha tomado seu

    nome, ainda quando no executado por este instrumento.

    Vamunha um outro ritmo, tambm conhecido por: ramonha, vamonha, avamunha, avania ou avaninha, tocado

    para todos os orixs. um toque rpido, empolgado e tocado em situaes especficas como a entrada e sada dos

    filhos de santo no barraco e para a retirada do orix incorporado. nesse momento que o orix sada os pontos de

    ax da casa e se retira sob a aclamao dos presentes.

    Todos os toques (ritmos) acima so caractersticos do rito Ketu e, conforme procuramos demonstrar, associam letra,

    melodia e dana que, integrados, "narram" a experincia arquetpica dos orixs, vividas em nvel individual e grupal

    e cujo pice o transe. Alguns destes ritmos so to personalizados dos orixs que podem dispensar as letras ou

    mesmo a dana como elemento de identificao. o caso do aluj, do opanij e do ag (quebra-prato), consagrados

    a Xang, Obalua e Ians, respectivamente.

  • No rito Angola, o repertrio rtmico composto por trs polirritmos bsicos e algumas variaes sobre estes. So

    eles: cabula, congo e barravento (do qual a variao mais conhecida amuzenza). Todos so ritmos rpidos, bem

    "dobrados", repicados e tocados "na mo" (sem varinha). De modo geral, todas as divindades podem ser louvadas

    com cnticos ao som de qualquer dos trs: sejam os orixs, inkices, ou aquelas tidas como originrias dos cultos

    amerndios (caboclos ndios e boiadeiros). A prpria aceitao dos elementos nacionais sobrepostos s influncias

    africanas no candombl angola perceptvel, principalmente pelas letras das cantigas, cantadas em portugus e

    mescladas aos fragmentos das lnguas "bantu". No Ketu a tolerncia ao portugus mais restrita e as casas de Ketu

    que cultuam caboclos estabelecem uma "mediao" que intercala, na ordem do xir, o toque dos caboclos. Assim,

    para que o "xir Ketu" possa abrigar as toadas de caboclo preciso que ocorra uma "transio musical", na qual o

    toque "vira para Caboclo, no sem antes serem cantadas algumas cantigas de angola como este ingorossi (reza):

    "Sequec di quan Dandalunda

    Sequec di quando eu and....

    (rito angola)

    Desse modo, vemos como os repertrios musicais referendam as sobreposies dos modelos angola e ketu, sendo

    um dos elementos principais para sua afirmao e identificao. No caso do candombl angola, inegvel que um

    repertrio cuja letra permite associaes com palavras em portugus, estabelea uma comunicao muito mais

    direta e fcil, inclusive entre a divindade e o interlocutor, tornando-se mais "inteligvel" e mais facilmente

    memorizvel . Eis um exemplo:

    "Fala mameto caiang

    Kicongo quando come

    Lemba di l .

    (cantiga de Obalua - rito Angola)

    "A seu kafun

    Omulu que belo oj

    A a seu Kafun"

    (idem)

    O mesmo acontece com as toadas ou "salvas" de caboclo (cantiga com que o caboclo se apresenta), cujas letras

    costumam ser em portugus e relatam acontecimentos relacionados a sua "vida" mtica, entre outras coisas. Como

    esta:

    "Eu vinha pelo rio de contas

    Caminhando por aquela rua

    Olha que beleza!

    Sou boiadeiro do claro da lua"

    Ou ainda esta outra:

    "Campestre verde, meu Jesus (bis)

    Madalena chorava aos ps da cruz

    Com sete dias, minha me me deixou (bis)

    Me deixou numa clareira, Ossanha que me criou"

    Nesse sentido, os ritmos angola compartilham um repertrio musical muito mais prximo do modelo de msica

    popular brasileira, dentro da qual o samba a principal expresso. No de se estranhar que um toque de angola

    seja tambm chamado de "samba de angola", fazendo referncia no apenas semelhana dos ritmos, mas tambm

    alegria e descontrao da dana. Ao contrrio da coreografia Ketu, caracterizada pelas particularidades do orix e

  • conduzida pelo ritmo, no angola um nmero bem menor de variaes rtmicas admite um leque maior de danas,

    incluindo a dos caboclos, que danam com maior inventividade. Por outro lado, alguns ritmos podem caracterizar

    situaes rituais precisas, que terminam por eles sendo denominadas. o caso do "barravento" que, sendo um

    toque rpido e propiciatrio ao transe (e portanto semelhante ao adarrum no Ketu), acaba denominando os

    movimentos que prenunciam o transe. Tambm o ritmo muzenza (uma "variao" do "barravento") pode designar a

    dana, curvada, caracterstica da primeira sada pblica de iniciao no angola, tambm chamada de "sada de

    muzenza", smbolo da humildade do iniciado.

    De qualquer modo, atravs da msica ritual que as diferenas entre as "naes" so observadas, revelando a

    forma do culto no s pela maneira como se toca mas, tambm, como se canta, o que se canta, como se dana, para

    quem e em que ocasies. Entretanto, apesar de haver um repertrio bsico, compartilhado pelas diferentes casas de

    uma mesma "nao", a apropriao das cantigas se d de modo diferenciado. Certas cantigas como:

    "Ina, ina mojub

    Ina mojub"

    (rito Ketu)

    usualmente dedicada a Exu, tambm pode ser ouvida ao som do aluj, para Xang. Talvez pela referncia ao fogo

    (ina) ao qual ambos esto associados. Ainda a cantiga:

    "Xaxar bal con a

    bal bal"

    (rito Ketu)

    pode ser ouvida para Ians ou para Obalua. No primeiro caso o elemento que adquire mais significado o termo

    bal (relativo casa dos mortos), ao qual Ians est associada, sendo inclusive chamada, em uma de suas

    "qualidades", por este nome: Ians de Bal. No segundo caso o termo privilegiado xaxar, a vassoura simblica de

    Obalua, com a qual este envia ou retira as pestes do mundo.

    Como cantar uma atitude onde se busca o contato com foras divinizadas, no importa tanto uma traduo literal

    resultante de uma ordenao sinttica (o que seria impossvel dado o vocabulrio residual das lnguas africanas aqui

    existente). Importa, antes, o significado atribudo e justificado pelo uso da "lngua" dos antepassados e o saber a eles

    atribudo. Como apontaYeda Pessoa de Castro, "importa saber, por exemplo, para que santo e em que momento

    deve ser cantada tal cantiga e no o que essa cantiga significa literalmente" (CASTRO, 1983:85).

    Dessa forma, o que realmente importa que a msica sempre far aluso, pela escolha de qualquer dos seus

    elementos, a momentos significativos do rito, no s ordenando-o mas, ao mesmo tempo, estabelecendo uma

    identidade entre aqueles que compartilham deste significado que "norteia" a relao do indivduo com seus deuses.

    III - A Msica no Contexto Ritual

    A- A msica como elemento ordenador

    So vrias as circunstncias em que a msica ordena os acontecimentos ou o prprio tempo. A cantiga em que se

    bolou pela primeira vez (chamada pelos adeptos de "cantiga de morte"), por exemplo, imprime uma marca na vida

    pessoal do ia. Far parte de seu estojo de identidade religiosa.

    O bori, um ritual pleno de detalhes, inteiramente marcado por cantigas que imprimem uma certa ordem na

    cerimnia. Primeiro, canta-se a sassain, seqncia de cantigas louvando cada uma das folhas que comporo o amaci

    (banho de ervas) com que o ori ser lavado. Nesse caso a sassain ordena a prpria seqncia em que as folhas

    entraro no ritual. Por exemplo: a primeira folha a entrar no amaci o peregun, uma folha de Ogun. A primeira

    cantiga da sassain ser, portanto:

  • "Peregun alax ti tun

    Peregun alax ti tu

    Bab peregun ala ojo re s

    Peregun alax ti tu

    (rito Ketu)

    E assim, toda uma seqncia, com mesma melodia e letras diferentes para folhas diferentes. Durante todo o tempo,

    soa o adj. Cada folha, sendo louvada particularmente, torna cada momento do ritual particularizado e inesquecvel.

    Cada folha sagrada e por isso para ela se canta. Cada momento , portanto, sagrado.

    "Uma cantiga pode estragar a vida de muita gente. Voc canta uma cantiga errada, voc pode estar estragando sua

    prpria vida" (Jorge)

    Durante a estadia do abi no ronc (quarto reservado ao recolhimento), a msica servir ainda como elemento

    ordenador do prprio tempo. Existem cantigas a serem cantadas ao amanhecer, ao entardecer, ao anoitecer, as

    cantigas que devem ser cantadas antes das refeies, as cantigas dos banhos rituais e inmeras outras. Canta-se, por

    exemplo, nas casas de angola, antes das refeies, a cantiga:

    "Sodara, sodara

    Ki sama dob

    Keb, keb

    ai, ai .

    (rito angola)

    Durante a qual o ia segura, com ambas as mos a dilong (prato de gata), fazendo movimentos para o alto, para

    baixo, para a esquerda e direita, num gesto que sacraliza o alimento. Essas cantigas so sempre ensinadas pela

    "me-criadeira" ou "jibon", que costuma ser uma ebomi, qual o ia sempre dever reverenciar. Tambm os

    banhos rituais, especialmente os noturnos (maiongas), so acompanhados por cantigas como esta cantada pela

    me-criadeira acordando os ers, do lado de fora do ronc:

    -"Maionga, maiongu, cad cambono"

    Os ers respondem:

    -"Meu tata t chamando maiongu"

    E, finalmente, todos juntos:

    "Fala maiongomb!

    Tot, tot de maiong"

    (rito angola)

    Ou ainda, no rito jeje, canta-se a seguinte cantiga:

    Ajarr na do kenk un t

    kenk un t, kenk un t

    Sob ja r"

    (rito jeje)

  • Desse modo, a rotina do recolhimento vai sendo construda a partir das tarefas que cabem ao ia executar. E como

    cada tarefa est vinculada ao momento musical, a construo do tempo se faz como num relgio cujos ponteiros so

    as cantigas. A msica , pois, a principal forma de expresso do ia neste momento, uma vez que lhe interditado o

    uso da palavra. nesse contexto, do recolhimento, espera-se que uma nova personalidade seja forjada, inclusive

    pela utilizao de um repertrio aprendido no s em termos musicais mas, tambm, de um vocabulrio especfico

    do culto, formado pelos termos de origem africana, conhecidos como "lngua-do-santo".

    No or, a mais importante das cerimnias da iniciao, o carter sacralizante e ordenador da msica percebido em

    sua plenitude. Tudo deve ser acompanhado pela msica; mesmo os intervalos entre uma etapa e outra da "feitura"

    e, portanto, entre as cantigas, devem ser preenchidos pelo som dos adjs, agitados ininterruptamente pelas ekedes.

    Todos os momentos tm suas cantigas prprias, comeando pela depilao da cabea que deve ser feita aludindo-se

    ao orix ao qual est sendo consagrada e ao instrumento depilador, a navalha. Nos momentos que se seguem, e que

    tm por funo preparar a cabea para receber os sacrifcios, canta-se para a abertura dos abers (incises

    corporais) e a introduo, neles, dos ps sagrados (axs), para as tintas que comporo a pintura da cabea, para

    amarrar o kel, pendurar as contas da divindade no pescoo do iniciado ou qualquer outro ato prescrito pela

    "nao", terreiro ou mesmo orix.

    O mesmo procedimento se d no momento dos sacrifcios, cantando-se para a entrada dos animais no quarto de

    santo, distinguindo-os a seguir, um a um, por cantigas (bichos de "quatro-ps", galinhas, pombos etc.) e, finalmente

    para a faca (que pode ser uma cantiga de Ogun, o dono da faca) e para o sangue que dela escorre:

    Ej xor xor

    Ej bal kaar

    (rito Ketu)

    A presena, nesta cantiga, de termos ioruba como ej (sangue), or (cerimnia) e bal (relacionado morte)

    reforam o sentido de sua utilizao neste momento exato. E, uma vez que foram "lidas" atravs destes elementos,

    podero ser utilizadas em outras cerimnias do candombl, como os ebs (rituais de "limpeza") e obrigaes a Exu,

    nas quais a presena do sacrifcio indispensvel.

    Essa ordenao musical no acontece apenas nas cerimnias privadas; ela se d tambm nas sadas pblicas do ia e

    no toque como um todo. A "sada de Oxal" por exemplo, comporta cantigas relacionadas a Oxal ou que faam

    referncia condio do iniciado (ia). No primeiro caso, podem ser cantadas cantigas como estas:

    "Efum bab, efum bab

    Bab mi xor"

    (rito ketu)

    Ou ainda:

    Onis ur, aun lax

    Onis ur oberi om, onis ur

    Aun lax bab, onis ur oberi om

    Aun lax "

    (rito Ketu)

  • Aqui, novamente, a presena dos termos bab (pai) e efum (branco) associados a Oxal, parecem justificar sua

    incluso nesta sada. O mesmo acontece com os termos ia (iniciados, "esposa dos orixs") ou muzenza (iniciados

    mas, tambm, dana e ritmo) que aparece nas cantigas do segundo caso:

    "Ia jej, ia nu b lon

    Ia nu b lon, ia nu b lon"

    (rito ketu)

    " muzenza, muzenza kassange

    muzenza, muzenza cob"

    (rito angola)

    A referncia pode ser, ainda, ao significado da esteira (eni) sobre a qual o ia se debrua:

    " j eni ke wa

    Ke wa , ke wa j, ke wa

    Ke wa j arrun b l"

    (rito ketu)

    Na segunda sada, a msica continua sendo uma prece, na qual se pede que os caminhos (on) sejam abertos

    permitindo (ag) que a "nao" do terreiro se perpetue atravs de inmeros smbolos como as pinturas rituais, as

    cores, as vestes, embora no exista um consenso quanto a isto entre os diversos terreiros de uma mesma "nao".

    Canta-se nesta ocasio, cantigas como:

    "Ag, ag lon

    Ag lon did wa mo dag"

    (rito ketu)

    Ou, ento:

    "A a kuzenze

    A a kuzenze catu mandar

    Olha eu tateto

    Kuzenze catumandar

    Olha eu mameto

    Kuzenze catumandar"

    (rito angola)

    Na sada "do ekodid" este o principal termo recorrente nas cantigas j que ele que, amarrado testa do ia,

    permitir que o orix grite seu nome:

    "Ekodid ken

    ib o l

    Ib o l om orix

    ib o l"

    (rito Ketu)

    "Zan con f ken

    ekodid"

    (rito Ketu)

  • No rito angola a referncia no feita ao ekodid e sim ao nascimento do orix, atravs do termo vunge (criana):

    "Saki di lazenza mai

    vunge ke s"

    (rito angola)

    Aps entrar no barraco, ao som de uma destas cantigas, o orix levado para o centro do recinto por um ebomi

    que toca o adj. Os atabaques e as pessoas silenciaro e apenas o adj ser ouvido at que o orix grite seu nome.

    Neste momento, numa espcie de "resposta" todos os orixs "viraro", gritando seus "ils" e os atabaques

    recomearo a tocar, agora ao ritmo acelerado da vamunha.

    Assim, os vrios matizes da msica acompanham as vrias etapas do rito, sublinhando-as e estimulando uma

    empatia entre a subjetividade dos ouvintes e os acontecimentos cerimoniais.

    Finalmente, a "sada do rum", ou sada "rica", pode ser feita ao som dessas cantigas:

    , aun b, ke wa , ke wa j"

    (rito Ketu)

    "Kin kin ma

    Ko ro wa ni x

    Ag, ag lon

    Ag lon did wa ag"

    (rito Ketu)

    "A ki memensu

    Xibenganga

    Da muximba dunda

    Meu ketendo i

    Xibenganga"

    (rito angola)

    Aps as quais o orix danar as cantigas que lhe so especialmente atribudas, o que chamado "dar o rum no

    orix". Terminando o rum, o orix ser retirado do barraco ao som de uma cantiga tambm apropriada para este

    momento de despedida:

    "A ia

    guer nu pa me v

    Guer nu se be w"

    (rito Ketu)

  • Todavia, esta cantiga reservada despedida dos orixs dos ias, como mostra a letra. Os ebomis tero seus orixs

    "retirados" do barraco ao som de outra cantiga, que faz referncia ao status religioso do iniciado:

    "Ebomi la ur

    Ebomi la ur

    A, a, a

    Ebomi la ur"

    (rito Ketu)

    Com relao ordenao feita pela msica no toque como um todo, vemos que durante o xir que ela se

    evidencia, pois alm de uma estrutura seqencial da ordem das louvaes (atravs de cantigas), o xir denota,

    tambm, a concepo cosmolgica do grupo. Por exemplo: muitas casas de ketu costumam seguir esta ordenao

    de orixs: Exu (porque o intermedirio entre os homens e os orixs), Ogun (a seguir, porque o dono dos

    caminhos e dos metais e sem ele e suas invenes da faca e da enxada o sacrifcio aos orixs e o trabalho na terra

    estariam impedidos; diz-se, tambm que irmo de Exu); Oxossi (porque irmo de Ogun e porque est ligado

    sobrevivncia atravs da caa e da pesca), Obalua (porque o orix da cura das doenas ou aquele que as traz),

    Ossain (dono das folhas que curam, da sua ligao a Obalua e tambm porque nada se faz sem folhas no

    candombl), Oxumar (por sua ligao com Xang, como escravo deste e como aquele que faz a ligao entre o cu

    e a terra), Xang (deus do trovo e do fogo, trazido por Oxumar), Oxum (esposa favorita de Xang), Logun-Ed (o

    filho de Oxum com Oxossi), Ians (que no mito criou Logun-Ed quando Oxum o abandonou), Ob (tida em muitas

    casas como irm de Ians e terceira mulher de Xang), Nan (a mais velha das iabs), Iemanj (a dona das cabeas e

    esposa de Oxal) e, finalmente, Oxal, o senhor de toda a criao.

    Algumas casas, entretanto, seguem outra ordem: Ogun, Oxssi e Ossain (so irmos) Obalua, Ew, Oxumar e Nan

    (trs irmos e sua me tidos como de "nao" jeje), Oxum, Logun-Ed, Ians e Ob (pelos mesmos motivos da ordem

    anterior), Xang e Iemanj (filho e me) e, por fim, Oxal. Esta seqncia parece privilegiar os vnculos de parentesco

    e de "nao", enquanto a primeira privilegia os acontecimentos mticos que colocam em relao os orixs. Seja qual

    for a seqncia e sua concepo cosmolgica, ela costuma ser fixa para cada casa. ela que, de alguma forma

    norteia os acontecimentos do toque, fazendo, entre outras coisas, com que os adeptos observem, atravs das

    msicas, os momentos apropriados ao cumprimento da etiqueta religiosa como, por exemplo, pedir a bno ao pai-

    de-santo quando se toca para o orix deste.

    Num toque comum, costume cantarem-se de trs a sete cantigas para cada orix. Entretanto, em alguns casos,

    possvel que os ogs, ou o pai-de-santo, cantem uma "roda de Xang", que consiste em "puxar" (cantar) uma

    seqncia pr-estabelecida de cantigas deste orix. Neste caso, comum que o pai-de-santo entregue aos ebomis

    de Xang o xere, que estes devero tocar, provocando a vinda dos orixs de todos os filhos. Os abis costumam

    bolar neste momento e ficaro no cho at que seja possvel tocar a vamunha para retir-los. Em outros casos os

    orixs "viram" durante o transcorrer do xir, seja em sua cantiga ou em qualquer outro momento do toque.

    Cantando para Exu, o toque comea pelo pad, como j dissemos e, geralmente, com esta cantiga:

    "Embarab, ag mojub

    Embarab, ag mojub

    Omod coec

    Exu Marab, ag mojub

    Lebara Exu on

  • (rito Ketu)

    No rito angola, estas trs cantigas so sempre cantadas dando incio ao pad e na seguinte ordem:

    (1a)

    " gira gira mavambo

    Recompenso

    Recompenso a"

    (2a)

    Exu apaven.

    Exu apaven

    Sua morada au"

    (3a)

    "Bombogira ke ja ku janje

    Bombogira ja ku janj

    Air o l l"

    (rito angola)

    Ou, ainda, fazendo uma clara aluso ao convite para aceitar a oferenda, que caracteriza a cerimnia:

    "Aluvai vem tom xox

    Aluvai vem tom xox"

    (rito angola)

    Ou ainda:

    "Sai-te daqui Aluvai

    Que aqui no o teu lugar

    Aqui uma casa santa

    casa dos orixs"

    (rito angola)

  • Encerrado o pad, as cantigas devem acompanhar as prximas etapas, ainda propiciatrias ao bom andamento do

    toque. No rito angola segue-se "limpeza" do ambiente com pemba (p de giz branco) ou ainda plvora:

    "O kipemb,

    o kipembe ewiza

    kassange ewiza

    d'angola

    o kipemb

    samba d'angola"

    (rito angola)

    "Pemba eu akassange apogond

    Pemba eu akassange apogond

    Pemba eu akassange apogond

    Oi kipemb"

    (rito angola)

    No rito ketu a cerimnia da pemba e da plvora no ocorre. Em algumas casas, em lugar dela procede-se

    cerimnia dos cumprimentos, quando se canta uma das seguintes cantigas:

    "Olorum pa v d

    Ax ori, ax, orix"

    (rito ketu)

    "(orix) mojub

    Ib orix, ib onil"

    (rito ketu)

    No caso da segunda cantiga, ser trocado o nome do orix conforme o patrono da casa.

    Da por diante a msica prossegue dividindo o "tempo" do toque em segmentos precisos, de convergncia das

    louvaes a cada orix, da dana, das atitudes de maior ou menor empatia dos participantes, enfim, em "blocos"

    que, somados, recompem a "vida" dos orixs na voz de seus filhos. Assim, comum ouvirmos referncias ao

    andamento do toque em termos do "tempo musical" do xir: "Fulano chegou atrasado. O toque j estava em

    Iemanj".

  • Quando o motivo do toque uma festa, essa festa intercalada na estrutura do xir, ou seja, costume levar o xir

    at o momento em que se canta para o orix festejado, quando este "vira" e levado para vestir, ao som da

    vamunha. Pode haver (ou no) um intervalo para o descanso dos alabs, at que o orix volte, agora paramentado,

    sendo recebido com a cantiga:

    "Ag, ag lon

    Ag lon did wa mo dag"

    (rito ketu)

    "Tot, tot de maiong

    Maiongongu"

    (rito angola)

    No barraco, o orix danar, ento, ao som de seus ritmos favoritos. Uma vez encerrados os acontecimentos

    relacionados comemorao, a seqncia do xir imediatamente retomada do exato ponto onde havia sido

    interrompido, devendo-se cantar para Oxal apenas quando no estiver prevista mais nenhuma cerimnia pois,

    cantar para Oxal significa "fechar o toque".

    Encerrado o xir, segue-se o ajeum (refeio), apresentado com a cantiga:

    "Ajeun, ajeun, ajeun, ajeun b"

    (rito ketu)

    Findo o toque, de modo significativo, os atabaques so cobertos por um pano branco, indicando que o fim da

    msica o fim da festa e que, sendo os atabaques criadores e sacralizadores da msica, mesmo durante os

    momentos em que no so usados devem indicar esta condio, permanecendo sob a proteo de Oxal.

    B- A msica como elemento de identidade

    A adeso ao candombl um processo complexo, paulatino e que envolve um aprendizado minucioso de cdigos

    religiosos que, possvel dizer, comea na iniciao. Tal aprendizado se d no mbito das relaes do grupo do

    terreiro ou da comunidade do "povo-de-santo". tambm regulado pelo tempo de iniciao que, alocando o

    iniciado dentro de uma estrutura hierrquica precisa, delimita posies e papis. Assim, a insero do indivduo na

    comunidade vai sendo feita atravs da acumulao dos fundamentos religiosos que estabelecem o tipo de relao

    do indivduo com seu deus e com os demais membros do culto.

    Sendo a msica uma das expresses desses fundamentos religiosos, ela tambm parte significativa na formao da

    identidade, tanto no nvel individual quanto grupal.Assim, um iniciado trar consigo um repertrio musical pessoal,

    do qual fazem parte as cantigas que esto associadas aos momentos decisivos de sua experincia religiosa. Este

    repertrio conter a cantiga na qual ele bolou, o adarrum para o recolhimento, as cantigas do bori, as que

    quebraram a mudez do recolhimento, as do amanhecer, do entardecer, da maionga, aquelas prprias de sua

    divindade e o prprio som do adj que, acompanhando as rezas e as cantigas, se constituir num forte apelo para

    propiciar o transe, revivendo a ligao estabelecida durante a iniciao.

  • Podemos dizer destas cantigas de situaes rituais especficas que, embora sejam parte de um repertrio comum a

    todos os iniciados do mesmo terreiro, sua apropriao por parte de cada indivduo remete a contedos psicolgicos

    diferenciados. Alm disso, elas se somam a outras, como as de seu orix, da "qualidade" deste, da "nao" qual

    pertence etc. Como, por exemplo, a cantiga:

    "A, Od arer, ok

    orix er

    Co ma fa Akuer"

    (rito ketu)

    que sada Od (o orix Oxossi) na sua qualidade Akuer.

    Um exemplo de cantiga da "nao" ketu esta que, ao ser executada faz com que todos reverenciem o cho, em

    sinal de respeito:

    "Araketur, araketur

    Ara mi maw"

    (rito ketu)

    Aqui a referncia feita a Araketu, "gente de Ketu".

    O prprio nome religioso do indivduo (dijina) freqentemente inspirado por termos que compem a letra destas

    cantigas, sendo possvel identificar, atravs da dijina, o orix da pessoa. Exemplo: uma filha de Nan pode ser

    chamada Nandar, termo que aparece na seguinte cantiga de Nan:

    "Nana, nanjetu

    Nanjetu, nandar"

    (rito ketu)

    Filhas de Oxum podem ter seus nomes iniciados pela palavra Samba (Samba Diamongo, Samba Queuamzi, Samba

    Delec), inspirados na cantiga:

    "Samba, Samba monameta

    Ke zina Ke c

    Ki samba

    Samba monameta

    Ke sina ke c

    Ki samba"

    (rito angola)

  • Alm do repertrio pessoal, o indivduo participa, ainda, do repertrio do grupo, que consiste nas cantigas do orix

    do pai-de-santo, dos ebomis da casa como ogs, ekedes, me-criadeira, irmos de barco, enfim aquelas que, ao

    determinar a ordem das reverncias (quem pede e quem d a bno) estabelecem a hierarquia do terreiro e

    localizam o indivduo numa determinada posio. Existem, inclusive, cantigas prprias dos cargos da casa:

    ", , ekede zingu

    ekede zing

    , ekede kissang"

    (rito angola)

    Ou, do status religioso:

    "Xique xique nu atop

    Ebomi nu caiang"

    (rito angola)

    Alm disso, a chegada de ebomis na casa tambm obriga a uma ligeira interrupo da msica, para que os "couros"

    (atabaques) "dobrem" em homenagem ao recm-chegado.

    Estando a msica intimamente relacionada condio hierrquica, at mesmo as pausas entre uma cantiga e outra

    revelam isto: a roda dos ias deve agachar-se enquanto a roda dos ebomis permanece em p. Ainda o pa (palmas

    ritmadas), com o qual se louvam os orixs e se reverenciam os ebomis, indica, musicalmente, a alta posio de quem

    o recebe. E mais, se considerarmos terreiros de ritos diferentes, poderemos ver que esta identidade contrastiva

    "localiza" os grupos por "naes" construindo-se, musicalmente conforme j vimos, atravs dos ritmos, do modo de

    tocar, das letras, das melodias, enfim do repertrio que contempla cada panteo, associado, evidentemente, aos

    demais elementos do culto.

    Concluso

    A msica ritual do candombl, tanto em cerimnias pblicas quanto privadas, ultrapassa o valor meramente

    esttico, ou mesmo de elemento propiciador atmosfera religiosa, para exercer a funo de elemento constitutivo

    em todas as instncias do culto. Alm disso, ela tem funes de ordenao bastante claras, sendo tambm um dos

    elementos atravs dos quais as identidades dos adeptos e dos terreiros e "naes" so construdas e se expressam.

    No sem motivo, como registra Nina Rodrigues em 1932, que os jornais do final do sculo passado pediam

    providncias contra a atuao dos terreiros, chamando a ateno para os "estrondosos rudos dos atabaques e dos

    chocalhos" e "vozearia dos devotos" que perturbavam o "sossego" e o "silncio pblico" com "vergonhosos

    espetculos". O que demonstra a importncia da percepo sonora pelos "de fora" na construo da imagem do

    candombl. Percepo desagradvel ou no conforme o contexto social e cultural mais amplo onde ela se d. Assim,

    aos tempos de perseguio religiosa, quando a msica do candombl era tida como "estrondosos rudos", seguiu-se

    um tempo de tolerncia e um de valorizao da musicalidade de origem africana em geral (jazz. blues, reggae,

    samba, gospell, spirituals) que, num processo dialtico, contribuiu para a melhor compreenso tanto do candombl

    quanto de sua esttica musical.

    Para os "de dentro", a msica do candombl no se prende tanto a um julgamento esttico, na medida que uma

    linguagem, onde o que importa o sentido que o som adquire enquanto emanao do sagrado. Assim, at mesmo o

    "rudo" dos bzios, chocalhando entre as mos do pai-de-santo, pode ser entendido como a fala do deus da

    adivinhao que "escrever" na peneira, com os bzios, as respostas s dvidas do homem. Ou mesmo os rojes das

    "Fogueiras de Xang" que refazem no cu o som do deus-trovo.

  • claro que as religies em geral tm a msica como importante elemento de contato com o sagrado, seja no caso

    em que ela proporciona o contato mais ntimo com o eu, como o caso dos mantras das religies orientais, seja no

    caso em que sua funo a de integrar os indivduos numa "nica voz", como o caso das religies pentecostais,

    entre outras, em que os fiis cantam em unssono os hinos de louvao. O candombl, entretanto, parece reunir

    estas duas dimenses: a do contato com o eu, atravs das divindades pessoais, e a do contato com o outro,

    estabelecidas musicalmente. Mas, ao contrrio de outras religies, no candombl a msica no um momento

    entre os demais. Todos os momentos rituais so, em essncia, musicais. Assim, para que os deuses estejam entre os

    homens ou para que estes ascendam aos deuses preciso cantar; cantar para subir.

    Este trabalho foi apresentado pela primeira vez em 1988, nos Seminrios de Etnomusicologia, coordenados por

    Tiago Oliveira Pinto e Max B, no PPGAS/USP e publicado em 1992 na revista RELIGIO & SOCIEDADE n.16/2, ISER, Rio

    de Janeiro.

    Notas

    1 - Os aspectos do intenso intercmbio das prticas rituais afro-brasileiras e do processo transformativo pelo qual

    passam em So Paulo, tm sido o objeto das pesquisas que os autores deste trabalho vem desenvolvendo junto ao

    Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo.

    2 Pessoa iniciada pelo mesmo pai-de-santo, portanto atravs de rituais onde a "folha" um dos principais

    elementos.

    3 - Ogs e ekedes tambm passam pelo "toque de bolar", mas neste caso a inteno contrria: provar que no

    viram no santo em nenhuma hiptese.

    4 - Grupo de pessoas iniciadas juntas e portanto com mesma "idade de santo".

    5 - Sobre a relao do agog com a marcao do ritmo ver o que diz Edison Carneiro sobre a origem do termo,

    derivado de akok, relgio. (CARNEIRO, 1981:74).

    6 - Sobre a relao entre o xaor e os abiku, ver o que diz Pierre Verger a respeito do xaor como elemento de

    proteo. (VERGER,1983:138).

    7 - Nos candombls de So Paulo costume os alabs cantarem o xir dos orixs.

    8 - Esta no , evidentemente, caracterstica exclusiva do Angola.

    9 - "Quebrar muzenza" outra expresso usada pelo povo de santo que significa "danar muzenza".

    10 - Edison Carneiro j registrava essa cantiga em candombls bantu em 1939 (CARNEIRO,1981:189).

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