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    HISTRIA E HERMENUTICA: A COMPREENSOCOMO UM FUNDAMENTO DO MTODOHISTRICO PERCURSOS EM DROYSEN,

    DILTHEY, LANGLOIS E SEIGNOBOS30Julio Bentivoglio1

    Resumo: Este artigo procura de-monstrar a importncia que a herme-nutica e a abordagem compreensivativeram na constituio do mtodohistrico, a partir do nal do sculoXIX, de maneira decisiva, no histori-

    cismo e na escola histrica alem.Palavras-chave: hermenutica, teo-ria da histria, metodologia da hist-ria, compreenso.

    Abstract: This article looks for todemonstrate the importance thatthe hermeneutics and the compre-hensive boarding had in the con-stituition of the historical method,from the end of century XIX, as

    decisive way in the historicism andthe german Historical School.Key-words: hermeneutics, theoryof history, methodology of his-tory, understanding.

    Este texto procura apontar como as teorias sobre a interpre-

    tao de textos e a abordagem compreensiva desenvolvidas na Ale-manha em meados do sculo XIX encontram-se na gnese da cons-

    tituio de uma metodologia para a histria. No momento em que acincia histrica fundamentava-se epistemologicamente, ao realizar acrtica das losoas da histria, do idealismo hegeliano e dos modelosnomolgicos aplicados ao estudo do passado, a hermenutica surgiucomo a pedra angular na construo do mtodo.

    Compreendida como uma arte e tcnica de interpretaocorreta de textos, a hermenutica remonta aos gregos, mas conheceugrandes aperfeioamentos na tradio judaico-crist, com a traduo e

    a exegese dos textos bblicos redigidos em aramaico, hebreu e grego. Apartir do Renascimento sofreu sensveis transformaes se dividindoem trs especialidades: hermenutica losca-lolgica, teolgica ejurdica. A meu ver, tanto a hermenutica losca quanto a jurdicativeram forte impacto sobre o desenvolvimento da histria no sculoXIX, visto os documentos assumirem para os historiadores oitocen-tistas tanto o valor de provaquanto o de evidncia(da vida, do ser).

    1 Professor Adjunto de Teoria da Histria e Histria do Brasil II na UFG CampusCatalo. E-mail: [email protected]

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    Ao mesmo tempo, esforos empreendidos na traduo, publicao einterpretao de grandes sries documentais na Alemanha e na Franaserviram para aperfeioar as tcnicas existentes. Naquele momento,no somente textos greco-latinos foram relidos e retraduzidos, mas

    tambm grandes obras literrias redigidas em outras lnguas. Assim,inspirando-se em procedimentos largamente utilizados pelos herme-neutas, pelos tradutores e pelos antigos llogos, pode-se vislumbraro aperfeioamento do mtodo histrico.

    A hiptese aqui defendida a de que na base do mtodo his-trico verica-se a presena decisiva de reexes e tcnicas herme-nuticas, algo patente na leitura da obra de Dilthey, no Grundir der His-torik de Johann Gustav Droysen, publicado em 1882 em Leipzig, cujo

    manual ou verso sinttica comeou a circular restritamente como no-tas para suas aulas desde 1858 e na Introduction aux tudes historiquesdeCharles-Victor Langlois e Charles Seignobos publicada em 1898 emParis. E esta herana encontra-se explicitada em diferentes manifesta-es destas escolas histricas e mesmo nos Annales. indcio seguroque Marc Bloch e Lucien Febvre trouxeram para a historiograa fran-cesa elementos considerveis desta tradio germnica, depois de suapassagem por Estrasburgo. A percepo da ponte entre a produo

    epistemolgica alem com a francesa apareceu pela primeira vez naobra de Raymond Aron, em 1938 e, depois, na Inglaterra com Collin-gwood.

    De fato, conforme consideram Iggers (1995) e Cassirer (apudREIS, 2001, p. 216), foram frutos genunos do historicismo alemo:a inveno da histria como objeto especco para o conhecimen-to que dene princpios e mtodos de abordagem do passado, ummovimento intelectual que se expande s demais Cincias Humanas,

    distinguindo-as das Cincias da Natureza, a necessidade da histriapara a compreenso dos fenmenos humanos visto que tudo pode serinscrito na temporalidade e, por m, a de que o passado persiste nopresente (REIS, 2001: 216-7).

    Em ns do sculo XIX observava-se um duplo movimento:de denio da cincia da histria e de aperfeioamento das tcni-cas de pesquisa existentes. Contemplar a hermenutica, retomando-se alguns de seus pressupostos mais elementares em Schleiermacher,

    Droysen e Dilthey, permite constatar a contribuio deste campo histria, sua inuncia junto escola histrica alem, metdica fran-

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    cesa, e mesmo nos Annalesonde a compreenso [Verstehen], nas pala-vras de Marc Bloch, dene a atividade do historiador (BLOCH, 2001,p. 128). Naquele contexto, a hermenutica tambm renava tcnicase reexes ao problematizar o entendimento sobre a compreenso e

    a interpretao, sobre a interferncia da subjetividade na produo doconhecimento e a respeito do impacto do tempo nas manifestaesda vida. Descortinava-se a questo da subjetividade na produo dossaberes e na formao das cincias humanas. Em relao histria, ahermenutica entrava como um dos fundamentos do mtodo, tantono cuidado com a anlise documental, quanto nas questes referentesao sujeito cognoscente.

    Poucos autores discutiram a relao entre histria e herme-nutica, podendo-se indicar, em especial, as reexes mais rigorosasde Gadamer (2002) e Koselleck (1997)231 e, tambm, as contribuiesde Verena Alberti (1996) e de Edmrcio Testa (2004). Mas, longe dequerer esgotar tema to complexo e amplo, o propsito aqui o deretomar algumas pistas para evidenciar a presena da hermenutica noaperfeioamento e denio de um mtodo especco para a histria.Vale lembrar a dvida explcita com este campo manifestada por We-ber, Heidegger, Foucault, Benjamin e Ricoeur. Para Maria Odila Dias,

    2 Na conferncia Histria e hermenutica, proferida em 16 de fevereiro de 1985, em ho-menagem ao aniversrio de Hans-Georg Gadamer, Reinhart Koselleck se esfora parademonstrar que a Teoria da Histria conguraria um terreno no hermenutico, dis-tinguindo Historik de Geschichte. Esta ltima abarcaria as narrativas e estudos sobre opassado, enquanto a primeira conguraria um domnio das reexes e descries dasmodalidades possveis de histria, enquanto uma cincia terica. Semelhantemente aesta posio, encontram-se as reexes de Jrn Rsen(2001), ou ainda a perspectivade Gumbrecht em valorizar a pragmtica histrica, ou seja, o extra-textual, para sereencontrar a emergncia dos sentidos. Koselleck se empenha na tarefa de denirum estatuto autnomo para a Historik, visto Gadamer reivindicar para a hermenu-tica tarefa que seria objeto da teoria da Histria, a saber: tematizar as condies depossibilidade de histrias (Bedingungen mglicher Geschichten) (KOSELLECK, 1997, p.68). Para ele, Historik um campo de estudos sobre as possibilidades de histrias,inquirindo sobre suas pretenses, tornando inteligvel sua concretizao, apontandopara a bilateralidade prpria de toda histria. Ela seria uma doutrina transcendentalsobre as histrias. Nesse sentido, este autor prope cinco pares antitticos que po-deriam expressar aquilo que denomina de estrutura temporal de possveis histrias: aameaa da mortee os limites do uso efetivo da fora e os pares: amigo e inimigo, paise lhos, pblico e privado e, por m, senhor e escravo. Tais pares seriam responsveispela formao, desenvolvimento e eccia das histrias. Com essas categorias seriapossvel vislumbrar um telosespecco para o histrico.

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    a importncia do historicismo e da hermenutica est em redenir otempo absoluto dos matemticos e dos fenomenlogos, colocando emseu lugar uma pluralidade de temporalidades assimtricas. Assim, odevassar dos meandros dos ritmos dessas diferentes temporalidades

    aparece como um dos principais triunfos da hermenutica contem-pornea do cotidiano, praticada por autores como Certeau, Deleuze,Gadamer, Lefort ou Walter Benjamin (DIAS, 1998, p. 258).

    Talvez fosse o caso de reputar o historicismo com um dosgrandes paradigmas da histria, pois embora se possa armar, como

    faz Verena Alberti (1996), que seus preceitos angulares soem como o

    bvio ululante para os historiadores como o entendimento histricodas manifestaes humanas que se do sempre historicamente, dasespecicidades do passado que no se deve confundir com o presente

    e ainda que o olhar do historiador est limitado pelos horizontes desua prpria poca , ela se esquece que aspectos decisivos tanto da es-cola histrica alem, quanto da hermenutica losca, inspirados no

    historicismo, oferecem rico painel para o debate disciplinar e para seentender a formao de uma cinciadahistria, marcando ainda todoo pensamento social do sculo XX. Face ao avano do relativismo, problematizao da narrativa na histria, complexidade da noo dedocumento, reduo de escala de anlise do social ao individual, ouainda em relao ao sentido do passado, as contribuies de ambos historicismo e hermenutica foram decisivas.

    Anal, desde a gnese da histria, enquanto campo autnomo

    junto aos demais saberes, processo vericado a partir do nal do s-culo XVIII, sua relao com a lologia e a hermenutica era bastante

    estreita. Foram os avanos vericados no campo da traduo e na in-

    terpretao de textos antigos em que se vericaram sensveis avanosda crtica textual contempornea. Meinecke arma que depois da Re-forma o historicismo teria sido a grande revoluo intelectual alem;desconsiderando, como se v, a importncia do idealismo kantiano ehegeliano. Reis, no sem exagero, arma que,

    metodologicamente, o historicismo foi fundador da her-menutica losca. Sua gura maior, seu representanteclssico foi Ranke, que fundou na prtica a autonomia dopensamento histrico. Ranke foi profundamente inovador.Foi o novo Herdoto, o refundador da histria nos tem-pos modernos (REIS, 2000, p. 48).

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    Esse alargamento da importncia histrica corresponde a umaverdadeira revoluo cultural que afetou ainda a losoa, a lologia,o direito e a economia. Segundo Iggers (1995), suas formulaes maisdecisivas foram realizadas por Humboldt e Droysen. Para Koselleck, adenio do campo da histria, na Alemanha, no sculo XVIII, ocor-reu quando Historielentamente foi substitudo por Geschichtee, Historikpassou a ser usado com sentido especco. Historiepassou a designarrelatos, no necessariamente uma narrativa dotada de reexo, sendoGeschichteusado nesta acepo, como uma narrativa especca sobrealgo. Para Droysen, histria tornou-se o conhecimento de si prpria.Assim, acima das histrias estaria a histria (KOSELLECK, 2006, p.49).

    Tudo est conectado: o estudo crtico das fontes autnti-cas, a concepo imparcial, a exposio objetiva; a meta que se faa presente a verdade plena, mesmo que no sepossa alcanar o todo. A auto-suspenso do ponto de vis-ta partidista se dirigia sempre historicamente contra par-tidos concretos, diversos cada vez. Epistemologicamente,detrs do postulado de supraparcialidade, necessria parareproduzir a realidade passada aproximando-se da verdadeplena, se praticava uma espcie de realismo ingnuo. Chla-

    denius foi o primeiro a perceber isto ao dizer que a histria uma coisa, mas a representao dela diversa e mltipla.(KOSELLECK, 2004, p. 114).

    A escola histrica alem problematizou a histria universaliluminista buscando apoio na hermenutica romntica, na discussosobre a vida e a singularidade do passado. Coube a Dilthey tornar essahermenutica uma preocupao histrica e a dimenso histrica doconhecimento um fundamento das cincias do esprito. Ao lado deDroysen e de Ranke, Dilthey se opunha losoa da histria, poisentendia que preceitos idealistas e metafsicos como os de idia, es-sncia ou liberdade, no encontravam expresso perfeita na realidadehistrica. Droysen, por sua vez, arma que a histria uma soma emcurso ao reconhecer a dinmica e a variedade das expresses de vida.Renegando o Iluminismo e o caminhar de uma histria universal dascivilizaes, certamente sob a inuncia do pensamento de Hume eHerder, Dilthey, como Droysen, no pouparia crticas Kant, ao rea-

    lizar a crtica da razo histrica (REIS, 2004), e Hegel, pois, era-lheinaceitvel uma fundamentao histrica baseada no conceito idealista

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    e metafsico de esprito (GADAMER, 2002, v.1, p. 286). Heinrich Ri-ckert, ao escrever Os limites da formao conceitual das cincias da natureza,conrma essa crtica, ao denir o objeto da histria e sua busca, nopelo descobrimento de leis universais, mas, pelo reconhecimento da

    importncia do singular, do particular no passado. Ou seja, a questoda histria afeta a humanidade no como um problema de conheci-mento cientco, mas como um problema da prpria conscincia davida (RICKERT apud GADAMER, 2002, v.2, p. 39). Desprezando aimportncia do conhecimento metafsico,

    a escola histrica alem, compreendendo-se como umacincia que tem por objeto o passado, logrou elevar a his-tria [Geschichte] categoria de uma cincia da reexo,

    fazendo uso pleno do duplo sentido da palavra Geschichte(KOSELLECK, 2006, p. 59).

    Ranke, Droysen e Dilthey tambm combateram o positivismo,que, segundo este ltimo mutilava a realidade histrica. Para Diltheya fundamentao do conhecimento histrico deveria ser encontradanos fatos da conscincia. E desferiu um golpe mortal nos pensadoresque mais o inuenciaram ao dizer que nas veias do sujeito conhece-dor construdo por Locke, Hume e Kant no circula sangue de verda-

    de, mas sim a seiva rarefeita da razo, na qualidade de mera atividadeintelectual (DILTHEY apud AMARAL, 1994, p. 14). Para Dilthey oque o historiador faz compreender as objetivaes de vida, pois

    o conhecimento histrico seria o resultado do dilogo en-tre o historiador em sua vivncia (presente) e os outroshomens em seu tempo vivido (passado). O mundo his-trico um mundo de expresses, de sinais, smbolos,mensagens, gestos, aes, criaes, artes, cores, formas,posturas, produzidas por sujeitos vivos e agentes. Por seexpressarem de forma to eloqente, os homens se doa conhecer uns aos outros. Ao contrrio da natureza, queno sujeito, mas coisa exterior, silenciosa e submetida aleis (REIS, 2001, p. 117).

    Da a importncia da hermenutica, resultante da expresso e da com-preenso das aes e expresses humanas. E foi na hermenutica queescola histrica alem foi buscar critrios objetivos, racionais e com-provveis para a crtica das fontes. Como diz Dilthey,

    a compreenso e a interpretao constituem o mtodoadequado para as cincias humanas. Todas as funes en-

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    contram-se integradas nesse mtodo. Em si, ele contmtodas as verdades das cincias humanas. A interpretaocria, em cada ponto, um mundo novo (DILTHEY apudKOSELLECK, 2006, p. 162).

    Mesmo na hermenutica losca de Gadamer ou de Hei-degger, a compreenso e as prticas hermenuticas deixam de ser so-mente uma doutrina ou mtodo para se converterem numa teoria daexperincia humana (GADAMER, 2002, v. 2, p. 41). Dilthey nega,portanto, a existncia de um modelo idealizado de indivduo, prefe-rindo reconhecer indivduos histricos. De acordo com Gadamer, aescola histrica acabou induzindo a atividade hermenutica a ler a his-tria como se l um livro, isto , como algo que tem sentido at a sua

    ltima letra.A hermenutica ajudou a evidenciar os condicionamentos

    dos produtores de saber. Gervinus e Ranke pediam cuidados com ossentidos, com as crenas e as hierarquias ou ainda a imerso na vidapoltica por parte dos historiadores. Dilthey, dialogando com Vico re-petira que a primeira condio de possibilidade da cincia da histriaconsiste em que eu mesmo sou um ser histrico, e que aquele queinvestiga a histria o mesmo que a faz (DILTHEY apud GADA-

    MER, 1998, v.1, p. 300). Ou seja, a razo s pode existir como real ehistrica, pois no a histria que pertence a ns, mas ns que a elapertencemos (TESTA, 2000, p. 55).

    Quando o historiador vai em busca das manifestaes his-tricas e pesquisa sobre o seu interior, ele pretende recons-truir o particular a partir do todo, do qual ele emerge e,inversamente, o todo a partir do particular, no qual ele seexpressa (GRONDIN, 2003, p. 143).

    As vivncias tomam conscincia de si mesmas, ao reconhecero outro, de modo que o nexo histrico constitui um nexo de sentidoque supera o horizonte vivencial do indivduo, exigindo a compreen-so e a alteridade. O conceito de vivncia representou para Dilthey abase psicolgica de sua hermenutica, complementado pela distinoentre a expresso e signicado, anal, no se conhece o passado pormeio de conceitos, mas atravs da conscincia histrica, das vivnciashistricas particulares. Citando Goethe, pondera:

    uma pessoa que no pode ser apreendida claramente, por-que a incongruncia entre o seu anseio e as suas obras,

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    entre as suas exigncias perante a vida e o seu poder pararealmente a determinar, se reecte em tantos matizes queo observador ca cego ( GOETHE apud DILTHEY,2002, p. 129).

    A discusso volta-se para o problema da conscincia histri-ca, tratado por Hegel e por Dilthey, como um processo de constantecrescimento da autoconscincia, como uma constante ampliao dohorizonte da vida (GADAMER, 2002, v.2, p. 43-44). Nesse sentido, aconscincia histrica representaria o m da metafsica. Diz Gadamer:

    escutar a tradio e situar-se nela o caminho para a ver-dade que se deve encontrar nas cincias do esprito. A pr-pria crtica que fazemos tradio, enquanto historiadores,

    acaba servindo ao objetivo de localizar-nos na autnticatradio em que nos encontramos. O condicionamentoportanto, no prejudica o conhecimento histrico, sendoum momento da prpria verdade (GADAMER, 2002, v.2, p. 53).

    A conscincia histrica torna-se evidente quando determina-dos acontecimentos abalam a tradio, ou o uir do tempo, comodisse Kant em relao Revoluo Francesa: um acontecimento as-

    sim no se esquece, ou como algo que permanece na conscinciado ser humano [...] subjaz ali a experincia de uma diferena e de umadescontinuidade, de uma permanncia em meio s mudanas inces-santes (GADAMER, 2002 v.2, p. 163). Assim, um pensamento ver-dadeiramente histrico tem que ser capaz de pensar ao mesmo temposua prpria historicidade. S ento deixar de perseguir o fantasma deum objeto histrico, pois, o verdadeiro objeto histrico no um ob-jeto, mas a unidade de um e de outro, uma relao na qual permane-ce tanto a realidade da histria como a realidade de um compreenderhistrico (apud TESTA, 2003, p. 67). Isso leva a desacreditar a crenaingnua da objetividade do mtodo histrico, ou ainda os limites dohistoricismo, que procurava recuperar os conceitos e representaode uma poca, anulando-se os atuais, forando uma passagem para aobjetividade histrica, quando importante seria estabelecer o dilogoentre as tradies, tendo conscincia da distncia temporal e dos pr-conceitos.

    No que tange consolidao de um mtodo para a histria,passo decisivo foi dado por Droysen. Ele redigiu sua Historik entre1858 e 1882, e intitulada Grundir der Historik, cujos excertos circula-

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    ram desde 1858. Nela apresenta uma original e inovadora reexo emtorno das diferentes fases da operao historiogrca, divididas emheurstica, crtica, interpretao e exposio, operando uma verdadeirainexo em torno do mtodo e do conhecimento histrico, propon-

    do-se a nada menos que combater a difuso de aporias e lacunas te-ricas da historiograa moderna (DROYSEN, 2002, p. 17). Em ntidacruzada contra o positivismo, distinguiu Methodik e Systematik, ou seja,entre teoria da histria e crtica documental, recusando-se a entender aHistria somente como uma cincia de textos do passado e sua expo-sio. A respeito da narrativa, tema hoje angular em muitas discussesem torno da escrita da Histria, Droysen arma que de acordo como material disponvel e a qualidade das informaes obtidas possvel

    encontrar quatro tipos fundamentais: exposio investigativa, narrati-va, didtica e discursiva.

    A contribuio de Droysen ao mtodo histrico reside emliberar o conceito de compreenso da indeterminao que havia ad-quirido na obra de Ranke. A partir de Kant, mas, sobretudo, de Hum-boldt, ele entende os indivduos como unidades em relao constante,cuja compreenso no deve ser buscada somente nos textos ou nalinguagem, mas, na realidade histrica. Os interesses individuais se

    concatenariam em torno das foras que constituem em histria ospoderes ticos, tendo em vista objetivos comuns. Ainda em torno domtodo elaborou a frmula para o conhecimento histrico que devecompreender investigando.332 Naquela altura j percebia que o estu-do do passado avana num movimento innito. Ou seja,

    Para poder conhecer, a investigao histrica somentepode perguntar a outros, tradio, a uma tradio semprenova, e perguntar-lhe sempre de novo. Sua resposta no

    ter nunca, como o experimento, a univocidade do que visto por si mesmo (KOSELLECK; GADAMER, 1997,p. 293).

    Desse modo, a impossibilidade de leis em histria justica-sepela mediao das tradies, em constante mudana. Em sua Historik,Droysen projetou uma metodologia das cincias histricas e Grondinaponta que o problema metodolgico do historicismo s se tornouperceptvel com esta obra (GRONDIN, 1999, p. 139). Para denir

    3 DROYSEN ( p. 316 apud KOSELLECK; GADAMER, 1997, p.292.)

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    metodologicamente a histria, Droysen recusou tanto o positivismoquanto os mtodos matemticos das cincias naturais. Foi ainda oprimeiro a perceber que existe uma funo orientadora da reexoterica sobre a histria na sua relao com a prtica. De acordo com

    Rsen,a teoria da histria de Droysen parte da questo de sabercomo se tem de estudar a histria, como se deve comear,o que se deve fazer, a m de se tornar historiador. A res-posta de Droysen uma exposio sistemtica do campo edo mtodo de nossa cincia. (RSEN, 2001, p. 24-25).

    No manual de Langlois e Seignobos, Introduo aos estudos his-tricos, tambm torna-se patente a presena da hermenutica. Logonas primeiras pginas eles tentam minimizar a inuncia de Droysen,ao considerar que os nicos trabalhos publicados que revelam umesforo original para abordar os verdadeiros problemas do mtodohistrico so os de Fresnoy e de Chladenius, dizendo que Droysenseria apenas pesado e gongrico, (LANGLOIS; SEIGNOBOS, 1946,p. 09) e na seo II intitulada Crtica Interna, abordam o que denomi-nam de crtica de interpretao ou hermenutica. Armam que analisarum documento discernir e isolar todas as idias expressas pelo autor.

    Reivindicam a supremacia do intrprete, pois para aqueles franceses, aanlise se reduz crtica de interpretao [...] por dois graus: o sentidoliteral e o sentido real (LANGLOIS; SEIGNOBOS, 1946, p. 103). Osentido literal deve ser buscado na lologia, pois segundo os autorestrata-se de uma operao lingstica; j o sentido real uma operaoque envolve o compreender sobre o que denominam a lngua do tempo,em outras palavras, o sentido das expresses na poca em que o tex-to foi escrito, a lngua do autor, ou seja, seu estilo e, por m, o contextoem que o texto foi produzido (LANGLOIS; SEIGNOBOS, 1946, p.109s). Ainda sobre a crtica interna, o procedimento utilizado por elesfundamenta-se na dvida cartesiana, que denominam de desconanametdica. Ou seja, no questionamento da veracidade das informaescontidas na fonte. Evidentemente que tais proposies identicam-se hermenutica psicologizante, ou romntica, algo bastante diferentedo que prope Dilthey e mesmo Rickert.

    Na Introduo Langlois e Seignobos, dizem que ao se junta-

    rem inmeros fatos incoerentes e pequeninos, o historiador precisaclassic-los e que para classic-los a prtica dos historiadores no

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    conseguiu estabelecer um mtodo prprio; a histria, nascida de umgnero literrio [o romance?], continua a ser a menos metdica das ci-ncias (LANGLOIS; SEIGNOBOS, 1946, p. 150). E alertam que sedeveria evitar tentao de imitar o mtodo das cincias biolgicas

    (LANGLOIS; SEIGNOBOS, 1946, p. 152). Como se v, a aproxi-mao com as idias de Dilthey, neste particular, so evidentes, muitoembora se distanciem das consideraes de Droysen sobre a narrati-va histrica, que para ele, bastante distinta das narrativas ccionais.Armam que em Resumo, at o ano de 1850, aproximadamente, ahistria no passou, tanto para historiadores como para o pblico, deum gnero literrio (LANGLOIS; SEIGNOBOS, 1946, p. 211). Emseguida, corroborando tal constatao, eles consideram que uma obra

    cientca de histria deveria ser constantemente refundida, revista eatualizada.

    Em suma, ao dirigirem seu olhar para o passado, os historia-dores se deparam com documentos, retornando questo dos senti-dos e dos signicados das palavras, da relao entre textos e contextos,defrontando-se com a linguagem. Eis a importncia e o espao dahermenutica para a histria, cujo marco foi a obra de Scheleierma-cher, ao ampliar o horizonte hermenutico, denindo seus pressupos-

    tos fundamentais e concebendo a compreenso como uma possibili-dade concreta de se conhecer todasdimenses da vida humana. Seuprincipal discpulo, Dilthey, enfatizou a compreenso da historicidadehomem e da realidade:

    Dilthey, seguindo o exemplo de Scheleiermacher, tornou oproblema da compreenso o ponto central de uma losoadas cincias do esprito e atribuiu hermenutica a tarefade indicar as condies de possibilidade de conhecimentodo nexo do mundo histrico e de encontrar os meios de

    sua concretizao (AMARAL, 1994, p. 10).

    Referncias Bibliogrcas

    ALBERTI, Verena. A existncia na histria: revelaes e riscos da her-menutica. Estudos histricos, Rio de Janeiro, 17, p. 31-57, 1996.

    AMARAL, Maria N. de Camargo P. Perodo clssico da hemenutica los-ca na Alemanha.So Paulo: EdUSP, 1994.

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