23716960-Analise-Impressoes-Crepusculo
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IMPRESSÕES DO CREPÚSCULO
29-03-1913
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Pauis de roçarem ânsias pela minh'alma em ouro...
Dobre longínquo de Outros Sinos... Empalidece o louro
Trigo na cinza do poente... Corre um frio carnal por minh'alma...
Tão sempre a mesma, a Hora!... Balouçar de cimos de palma!...
Silêncio que as folhas fitam em nós... Outono delgado
Dum canto de vaga ave... Azul esquecido em estagnado...
Oh que mudo grito de ânsia põe garras na Hora!
Que pasmo de mim anseia por outra coisa que o que chora!
Estendo as mãos para além, mas ao estendê-las já vejo
Que não é aquilo que quero aquilo que desejo...
Címbalos de Imperfeição... Ó tão antiguidade
A hora expulsa de si-Tempo! Onda de recuo que invade
O meu abandonar-me a mim próprio até desfalecer,
E recordar tanto o Eu presente que me sinto esquecer!...
Fluido de auréola, transparente de Foi, oco de ter-se...
O Mistério sabe-me a eu ser outro... Luar sobre o não conter-se...
A sentinela é hirta - a lança que finca no chão
É mais alta do que ela... Para que é tudo isto... Dia chão...
Trepadeiras de despropósito lambendo de Hora os Aléns...
Horizontes fechando os olhos ao espaço em que são elos de erro...
Fanfarras de ópios de silêncios futuros... Longes trens...
Portões vistos longe... através de árvores... tão de ferro!
Fernando Pessoa
1. – Ideia vaga da ansiedade, tristeza, provocada por uma paragem ou estagnação
(até põe garras da Hora). Para isso contribuem:
- as frases nominais suspensas nas reticências;
- os desvios sintácticos (pauis de roçarem, tão sempre, azul esquecido em
estagnado);
- sinestesias (silêncio que as folhas fitam);
- imagens visuais que sugerem subtileza e requinte psicológico (minha alma em
ouro, louro trigo na cinza do poente, balouçam cimos de palma);
- o oximoro mudo grito;
- mas sobretudo o vocabulário e as imagens que sugerem a paragem e a
estagnação (empalidece, frio, tão sempre a mesma Hora, azul esquecido em
estagnado, põe garras).
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2. – Causas da ansiedade; a ânsia pelo que se não tem; o distante, o indefinível, o
inatingível – o Mistério (até Címbalos de Imperfeição), sugeridos por:
- a repetição da metáfora (estender as mãos);
- os verbos ligados à ideia de vontade (querer, desejar);
- frases negativas que anulam essa mesma ideia;
- o oximoro Címbalos de Imperfeição.
3. – A função anulatória do temo real (até oco de ter-se):
- o presente fugaz (oximoro recordar o presente);
- o presente ilusório e vazio (adjectivação fluído, transparente e oco);
- o presente destruidor da intemporalidade (Hora expulsa de si – Tempo).
4. – A procura do Mistério da transcendência do próprio eu (até É mais alta que
ela). O eu apresenta-se com uma dimensão superior a si próprio, o que é visível:
- na ideia da multiplicidade do eu (eu ser outro);
- na imagem de anulação dos limites (luar sobre o não conter-se);
- na imagem da sentinela, cujo carácter compósito (sentinela + lança), além de
sugerir a multiplicidade, apresenta um dos elementos (lança) com uma dimensão
superior à do outro (sentinela).
5. – Consciência da ilusão da busca do Mistério (até ao fim); dada através de:
- oposição Hora / Além, onde é visível a já referida oposição tempo
presente/intemporalidade, reforçada pela imagem insólita trepadeiras de
despropósito lambendo de Hora os Aléns;
- imagens-símbolo do silêncio, dadas pelo oximoro fanfarras de ópios de
silêncio;
- imagens-símbolo do fechamento (Horizontes fechando os olhos ao espaço,
portões e/ou árvores tão de ferro);
- imagens-símbolo da anulação do futuro e da distância (fanfarras de ópios de
silêncios futuros, longes trens).
P. – Leia o poema com muita atenção. Releia-o as vezes que for preciso e tente exprimir
por palavras suas o estado de espírito do poeta, isto é, os sentimentos que o dominam.
R. – Há, no poema, um conjunto e palavras e expressões que se situam no âmbito de um
campo semântico revelador dos sentimentos do poeta. Vamos ao texto pauis (paul é um
pântano, água estagnada), ânsias, empalidece, corre um frio carnal, estagnado, grito de
ânsia, pasmo de mim, desfalecer, oco, dia chão, sentinela hirta, silêncios futuros. Tudo
isto aponta para qualquer coisa e estático, projecção focada sobre qualquer coisa de
opressivo (Maria Aliete Galhoz). Mas aponta sobretudo para o poeta que se sente
sufocado, oprimido, (frio carnal na minha alma, pasmo de mim, o meu abandonar-me a
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mim próprio até desfalecer) e sentindo ainda o desejo de se libertar (grito de ânsia,
estendo as mãos para além, mas ao estendê-las já vejo que não é aquilo que desejo…
O poeta chega à conclusão de que não pode sair do círculo apertado onde e
meteu. Por isso, limita-se a olhar ansiosamente os horizontes distantes e, mesmo estes,
com limites de ferro: Trepadeiras… lambendo… os Aléns, silêncios futuros, longes
trens, portões vistos de longe… tão de ferro!
P. – É capaz de explicar o facto de o poeta ter grafado a palavra Hora com letra
maiúscula?
R. – Hora está aqui como personificação do tempo presente, do aflitivo tempo do poeta,
como se fosse uma prisão. O poeta sente-se encarcerado no presente, que o mesmo é
dizer, prisioneiro de si próprio. Tão sempre a mesma, a Hora é, afinal, equivalente a:
sempre esta minha angústia!... Quando o poeta afirma que a Hora expulsa de si tempo
quer dizer que o tempo vai passando; mas acrescenta logo que isso é apenas onda de
recuo que invade o seu abandonar-se a si próprio até desfalecer. Isto é, o tempo passa,
mas a situação angustiosa do poeta (a Hora) permanece. Por isso um mudo grito de
ânsia põe garras na Hora (no poeta).
P. – Certamente, na resposta anterior, deixou claro que Hora se situa no tempo presente
do poeta. Releve do texto frases ou expressões que se refiram ao passado e ao futuro.
R. – Referem-se ao passado: dobre longínquo de Outros Sinos (note a grafia em
maiúsculas). Estendendo as mãos para além… Ó tão antiguidade…, Onda de recuo que
invade o meu abandonar-me a mim próprio até desfalecer. Esta última expressão leva-
nos a concluir que as memórias do passado serviam ainda para alimentar a angústia do
presente.
Referem-se ao futuro: Trepadeiras de despropósito lambendo de Hora os
aléns…, silêncios futuros…, Longes trens…, Portões vistos de longe… tão de ferro!
Também este olhar para o futuro não suaviza o presente do poeta. Antes, é o presente
que projecta a angústia para o futuro (lambendo de Hora os Aléns), ou então é um
futuro que surge como inatingível (portões vistos de longe… tão de ferro!) Note-se
como aqui o espaço se identifica com o tempo: o poeta sente-se prisioneiro do espaço e
do tempo.
P. – Qual dos tempos (presente, passado ou futuro) provocam opressão, ou até uma
certa náusea ao poeta? Justifique a resposta.
R. – O fulcro da angústia situa-se no presente, na Hora. É verdade que o presente, como
se viu na resposta anterior, lança, por vezes, tentáculos para o passado e para o futuro.
Mas esses tentáculos recolhem ao presente carregados da mesma náusea. Vemos agora,
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mais claramente, a razão da maiúscula de Hora: esta é o presente que sintetiza o
passado e o futuro, é o poeta no seu cárcere invisível.
P. – É evidente, através do texto, a tendência de concretizar o abstracto e abstractizar o
concreto, por outras palavras: materializar o espírito e espiritualizar a matéria. Com base
no texto, demonstre que assim é.
R. – Logo no primeiro verso aparecem materializados dois conceitos: ânsias (roçarem
ânsias) e alma (alma em ouro). No segundo verso, ao contrário, é o concreto que
aparece como abstracto: dobre de Outros Sinos (outras recordações). Outros exemplos:
um frio carnal, silêncio que as folhas fitam, Que pasmo de mim anseia por outra coisa,
A Hora expulsa de si tempo, Horizontes fechando os olhos ao espaço (o abstracto torna-
se concreto). As sugestivas metáforas em que se revê a prodigiosa imaginação do poeta
são outros tantos exemplos de concretos abstractizados: Outono delgado de um canto de
vaga ave, címbalos de imperfeição, onda de recuo, a sentinela… a lança (sentinela e
lança são símbolos de qualquer coisa que assegura o cerco ao poeta), Longes trens,
portões vistos de longe.
P. – Como explica o predomínio da coordenação e a tão grande frequência de
reticências?
R. – Basta ler alguns versos do poema para se ver que as frases estão articuladas umas
com as outras por coordenação assindética. Em todo o texto, encontra-se apenas uma
meia dúzia de casos de subordinação, no geral orações relativas adjectivas.
Para quê tanta coordenação? É que o poeta vai soltando afirmações,
aparentemente desligadas, que terminam quase sempre por reticências. As reticências
são o que não se afirmou, o que se sugere. A força este poema, tal como no Simbolismo,
não está nas afirmações, mas nas sugestões. O pausado monólogo, que nos parece o
texto, é uma espécie de diálogo entre o poeta e o silêncio. O leitor, para sentir a
mensagem poética, tem que se meter entre o grito do poeta e o seu eco (o silêncio). As
reticências são esse eco… ou esse silêncio…
Note-se ainda que muitas frases nem sequer predicado têm (Dobre longínquo de
Outros Sinos…). É que (ainda dentro da técnica simbolista) é mais expressivo sugerir
do que afirmar.
Análise Impressões do Crepúsculo
Pessoa põe em destaque os elementos que melhor caracterizam o seu
pensamento sobre o que designa por poesia de hoje. Ela continha, segundo ele, um
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arcaboiço espiritual constituído por três elementos – vago, subtileza e complexidade, ao
nível das expressões características do seu verso e ao nível da sua ideação.
A ideação vaga, para que contribui o adjectivo, tem o vago ou indefinido por
constante objecto e assunto, procurando exprimir-se o menos nitidamente ou
definidamente possível.
A ideação subtil é a que traduz uma sensação simples por uma expressão que a
torna vivida, minuciosa, detalhada (…) em elementos interiores, sensações -, sem
contudo lhe acrescentar elemento que se não encontre na directa sensação inicial.
A ideação complexa é a que traduz uma impressão ou sensação simples por uma
expressão que a complica acrescentando-lhe um elemento explicativo, que, extraído
dela, lhe dá um novo sentido.
A expressão subtil intensifica, torna mais nítido. A expressão completa dilata,
torna maior.
A moderna poesia portuguesa é para Pessoa uma poesia de vida interior, uma
poesia de alma, uma poesia subjectiva (Fernando Pessoa, A Nova Poesia Portuguesa,
Lisboa, Ed. Inquérito, s/ data).
A revista A Águia, 2ª série, foi o órgão oficial da Renascença Portuguesa e
serviu de veículo ao Saudosismo, movimento fundado em 1912, no Porto, e dirigido por
Teixeira de Pascoaes, Leonardo Coimbra, Álvaro Pino, Jaime Cortesão, Augusto
Casimiro.
Esse movimento de ideias de orientação espiritualista e regeneracionista tinha
por objectivo explicitar as características da alma lusitana (como diz Pascoaes e
Unamuno, em carta de 23-09-11), de perfil eterno e original e que deve ser revelada
aos Portugueses.
Segundo o mesmo Pascoaes, é preciso chamar a nossa raça desperta à sua
própria realidade essencial, ao sentido da sua própria vida, para que ele saiba quem é
e o que deseja. E então poderá realizar a sua obra de perfeição social, de amor e de
justiça, e poderá gritar entre os povos: Renasci. (A Águia, II série, nº 1, Jan. 1912).
Ora Pessoa, empenhado como Pascoaes num conceito português de vida (Da
República, Lisboa, 1978, p. 201), e ainda que possuindo ideias muito próprias para o
realizar, deixou-se atrair pelo movimento – aliás como Sá-Carneiro, que também deu
colaboração a A Águia. Contudo, Pessoa desligou-se de A Águia em 1913. Alegou para
isso que o movimento de que ela servia de veículo não possuía tom europeu, se bem que
o motivo mais profundo pareça ter radicado no facto de lhe ter sido recusada a
publicação, nas páginas de A Águia, do seu drama estático o Marinheiro.
E isso não obstante o paulismo ter sido bem recebido, de um modo geral, pelos
membros da Renascença Portuguesa, que viram nele uma manifestação da moderna
poesia portuguesa. Contudo, tal entusiasmo acabou por esfriar com a sequência da
viagem de Pessoa para outros ismos, como o interseccionismo e o sensacionismo, que
vieram a seguir.
De qualquer modo, a passagem de Pessoa por A Águia foi importante, já que é
nela que o poeta se estreia como crítico e é nela que se enunciam alguns pontos
importantes do seu pensamento.
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Tal como diz Pessoa acontecer com um poema de Mário Beirão a que alude
(justificando com ele as características da moderna poesia portuguesa), há igualmente
em Pauis um desdobrar, como em leque, de uma sensação crepuscular.
É à volta do título (Impressões do Crepúsculo) que todo o texto se organiza.
Aliás, a titulação de textos levanta por vezes problemas não só ao autor que a ela
procede, como (e talvez sobretudo) ao receptor-leitor que se vê a braços com a sua
decifração. De um modo geral (e na nossa opinião), os títulos poderão organizar-se em
três tipos: ocorrentes, decorrentes, incorrentes.
Um título ocorrente será aquele que funciona como o primeiro de outros
elementos do texto, que abre o texto, não por qualquer motivo especial, mas porque
algum dos elementos de índole idêntica disseminados pelo texto teria de ser o primeiro
a aparecer. Um título decorrente será aquele que aparece como consequência do texto,
como uma espécie de súmula de tudo quanto ao longo do texto se vai referir. O título
incorrente será aquele que origina o texto, que lhe serve de tema a desenvolver.
No presente caso, o título será incorrente, já que é nele que todo o texto se
alicerça: o crepúsculo desperta no poeta impressões, desdobradas em elementos
exteriores e interiores. O recurso ao título é pois prévio e fundamental, tendo-se em
vista uma correcta compreensão do texto.
O poema desenvolve-se em torno de impressões, sensações sugeridas, à volta de
uma motivação exterior – o crepúsculo. Deste modo, os elementos objectivos
disseminados pelo texto mais não são que um pretexto para a viagem interior, intimista,
habitual em Pessoa.
O crepúsculo é um momento de indefinição que, prolongando o dia, antecipa a
noite. É o ponto onde confluem a luz e a sombra, não sendo já luz nem sendo ainda
sombra. É a Hora. Mesmo assim, o texto constitui-se sobre uma curta mas clara
evolução, já que se inicia com a referência a um crepúsculo menos acentuado do que
aquele a que alude no ponto em que termina.
Como elementos objectivos que servem de ponto de partida ao poeta para as
suas impressões, temos o decair da tarde, o clarão diluído do sol (o louro/Trigo) a
desaparecer (pois se diz que Empalidece o louro/Trigo na cinza do poente… - vv. 2-3),
comparado com pauis e identificado com a Hora. Possivelmente ouvem-se sinos (no
poeta desperta um Dobre longínquo de Outros Sinos – v. 2), os sinos que significam
apelos, vozes de estímulo, e se ligam aqui às ânsias da alma, mas são sugeridos pelo
costume popular e secular do toque das ave-marias.
Quietude e silêncio: Balouçar de cimos de palma! (v. 4), Silêncio que as folhas
fitam em nós (v. 5). É Outono: Outono delgado/Dum canto de vaga ave (vv. 5-6). Há o
luar a divisar-se: Luar sobre o não conter-se (v. 16).
Dessa realidade objectiva que é o crepúsculo da tarde, o poeta parte para a
realidade subjectiva que lhe marca profundamente a alma. Começa por comparar,
através da metáfora, o crepúsculo a pauis. Pela quietude e cor devotada, o céu
assemelha-se ao pântano, à água estagnada, de que o v. 6 ajuda a esclarecer o sentido:
Azul esquecido em estagnado. O adjectivo expressivo estagnado (a caracterizar o azul e
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complementado através da construção impressionista, pela circunstância modal em
estagnado) sugere o pântano e estabelece ligação com os pauis do v. 1.
É então a realidade exterior crepúsculo que lembra pauis ao poeta, que lhe
sugere a impressão que ele revela. A sua alma está em ouro – por influência exterior do
clarão moribundo do sol (relação exterior/interior), mas ainda por se tratar de uma hora
especial (a Hora): de uma espécie de febre, de mais perfeita lucidez e maior
sensibilidade (dado o valor alquímico que o ouro representa), e receptividade, de
transfiguração da alma, de envolvimento em mistério (já que em ouro se poderá
relacionar tanto com alma como com ânsia). Aliás, aqui é a ambiguidade sintáctica que
confere características de vago ao texto. Os pauis sugerem (despertam) ânsias na alma
do poeta (de roçarem ânsias – notar o verbo expressivo).
Teremos, então, que a alma do poeta fica receptiva, transfigurada, em ouro,
perante a contemplação do crepúsculo (imagem decadente), que é como pauis que lhe
sugerem ânsias (sensações, desejos, anseios espirituais em face dos apelos de absoluto).
Outros Sinos assomam à alma do poeta. O crepúsculo sugere desilusão,
decepção, solidão, angústia. É que corre na alma do poeta um frio carnal (v. 3), sempre
sugerido pelo crepúsculo (Tão sempre a mesma, a Hora - v. 4), sem que o problema do
poeta se resolva (repare-se na maiúscula, para destacar a importância e significado – a
Hora exprime ainda urgência em encontrar soluções).
Outros Sinos (repare-se também a maiúscula, por razões idênticas às referidas –
a urgência de uma solução), cujo dobre é longínquo, poderiam dizer respeito a sinos
reais; mas estes sinos são mais do que isso, referem-se às solicitações de absoluto que
abrasam a alma do poeta (vêm de longe). Outros Sinos, que são estes, que porventura o
poeta escutasse.
A apóstrofe e o tom emotivo presentes no v. 7 continuam o sentido expressivo –
a ânsia revela-se num mudo grito. Em mudo grito encontra-se um paradoxo indefinível
– mas indiscutivelmente expressivo. Alias, muitas das construções elaboradas por
Pessoa destinam-se sobretudo a ser meditadas e sentidas; explicá-las, além da
dificuldade que implica, é quase sempre complicar. Está neste caso sobretudo o
paradoxo, que Pessoa cultivou esmeradamente, esforçando-se sempre por fazê-lo
significar e não valer apenas como mero artifício.
É o que aqui se verifica com o paradoxo mudo grito, que se destina a mostrar a
ansiedade angustiada do poeta. A sua expressividade é reforçada pela interjeição, pela
exclamação (com continuidade no verso seguinte), pela maiúscula, pelo verso longo,
pelo ritmo e pelas rimas.
A Hora tem garras, o tempo urge. O que o poeta quer, e de que tem necessidade,
é indefinível e ilocalizável. Ele insiste no indefinido outro (vv. 2 e 8). A única certeza é
a realidade negativa em que se encontra mergulhado (o que chora, v. 8). E exprime, em
seguida, a incongruência de que se reveste o seu espaço interior: Estendo as mãos para
além, mas ao estendê-las já vejo/Que não é aquilo que quero aquilo que desejo… (vv.
9-10). As mãos, símbolo do agir; o além, símbolo do progresso interior, da procura do
absoluto; a adversativa mas a impedir possibilidade de sucesso, pois que existe, no
poeta, incompatibilidade entre o querer e o desejar.
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O querer representa o irreal que o poeta procura como meio (nunca como fim, já
que a sua insatisfação aposta em cada momento na procura, aos níveis mais variados)
para atingir o ideal, que é o que ele deseja.
E temos aqui o poeta, na esteira da escola simbolista, à procura de uma
linguagem que o defina, empenhado em exprimir o estado de insatisfação de que é
vítima, a busca do inalcançável a que se balança, a inquietação de alma que o
acabrunha.
Mas assim Pauis, para além de texto-programa, é também expressão daquilo que
mais profundamente marcou Pessoa. A metáfora que se segue completa o desabafo do
poeta: Címbalos de Imperfeição (v. 11), e com ela assiste-se (como um tanto por todo o
poema) à aproximação da poesia à música – outra marca de simbolismo no poema (que
aliás Pessoa reconhece ser característica da moderna poesia portuguesa). Referem-se os
Címbalos… pela característica vibrante que apresentam.
O poeta mostra assim ter consciência da imperfeição que caracteriza a sua alma.
Numa morfossintaxe de tom impressionista, com erros de concordância, silepses e
zeugmas à mistura, o poeta continua (nos vv. 11-12) o sentido do v. 4 (em que a Hora já
tinha um duplo sentido – exterior, o crepúsculo, e interior, o despertar das impressões
do poeta) na identificação da Hora com o crepúsculo. Ele dá-a como não pertencendo
ao tempo, expulsa do seu seio, pois se trata de um momento à parte, de reflexão, de
intimidade. E isso, há tempo incomensurável (tão antiguidade).
É essa Hora que, identificada com o crepúsculo, sugere o indeterminado. O
tempo define as coisas, a Hora não, deixa-as suspensas.
Seguem-se outras construções apoiadas na metáfora e dependentes da Hora:
onda de recuo… (v. 12) e Fluido de auréola, transparente de Foi, oco de ter-se… (v.
15). A Hora é onda de recuo, faculta o recurso à memória necessário para recordar a
realidade (…desfalecer… que me sinto esquecer…). Recordar o Eu presente é pensar. O
paradoxo recordar/esquecer é mais um elemento a indicar a complexidade da Hora-do-
crepúsculo.
Quanto ao v. 15, ele constitui outra tentativa de caracterização da indefinição da
hora crepuscular vivida pelo poeta, e ao mesmo tempo mostra a intensificação do
crepúsculo, que entretanto evoluiu e é o quase-quase anoitecer – o fluido da auréola, a
claridade solar mesmo a esvair-se, o transparente de Foi, a fugacidade, o oco de ter-se,
a vacuidade, a indefinição.
O Mistério a que o poeta alude no v. 16 é sugerido pela Hora, pelo Crepúsculo,
pela ânsia em transformar-se, em ser outro. Cai luar sobre o não conter-se, com um
duplo sentido – o do real (o crepúsculo intensifica-se e o luar surge), e o do íntimo do
poeta, que vê abater-se sobre si a negatividade que o crepúsculo também representa.
O abatimento do poeta é cada vez mais nítido, à medida que o poema se
aproxima do final.
Surge uma sentinela, símbolo do próprio poeta (os vv. 17-18 ligam-se aos vv. 9-
10), que vigia, está atenta e disponível (anseia, estende as mãos). Mas a lança (aquilo
com que se defende, as defesas que cria) é mais alta do que ela (é inacessível,
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ultrapassa-a, é-lhe inadequada). Daí o poeta querer saber da oportunidade de todo o seu
esforço, mas sem interrogar, insinuando a resposta negativa através das reticências. Ele
classifica o dia de chão, de raso, de inútil, de sem-sentido, declara existirem trepadeiras
de despropósito lambendo de Hora os Aléns… (v. 19).
A Hora é a urgência com que ele trepa, se agarra e procura sempre, embora ela
seja de despropósito, inútil, na sua ânsia dos Aléns, da solução buscada.
Há Horizontes fechando os olhos ao espaço em que são elos de erro… (v. 20) –
o crepúsculo ainda é mais cerrado, no sentido real e último do poeta; a luz vem de fora,
o horizonte fecha os olhos ao espaço, retira-lhe a luz (já que o circunda de elos de erro,
de sombras, de negatividade).
Há Fanfarras de ópio de silêncios futuros… (v. 21 – tudo a fechar-se, a ficar
sem luz, ambiente de mistério – fanfarras de ópios de silêncios futuros – o crepúsculo
antecipa a noite, e prolonga o dia – é momento de indefinição e mais negatividade). Há
longes trens… (v. 21 – as soluções vindas de fora, a comunicação, a superação das
dificuldades, apodadas de longes, são cada vez mais difíceis).
Há portões vistos longe… através de árvores… tão de ferro! (v. 22 – o
crepúsculo tudo fecha, na alma do poeta tudo fecha, as ânsias saíram debalde… tão de
ferro).
E deverá notar-se que este adensar final do crepúsculo que se abate é
acompanhado por uma mudança no tipo de rima. Enquanto na generalidade do poema
os versos surgem rimados dois a dois (rima emparelhada, nos 18 primeiros versos), os
quatro últimos possuem rima cruzada.
Ora, como se verifica, não só se nota em Pauis um exercício de aplicação do
pensamento de Pessoa, anteriormente expresso, como um acompanhar de perto dos
próprios exemplos que foram apresentados pelo poeta nos seus artigos de A Águia.
Como Pessoa aí defendia, em Pauis reflecte-se uma poesia de vida interior, uma
poesia de alma, uma poesia subjectiva. As suas expressões e ideação são vagas, subtis e
complexas. Até o próprio exemplo tirado de Mário Beirão para ideação subtil (onde há
simplesmente um desdobrar, como em leque, de uma sensação crepuscular, que cada
termo maravilhosamente intensifica, mas não alarga) deixou a sua semente no poema
de Pessoa.
Mas embora o poeta mostre ter assimilado e aplique nas suas linhas mais
vincadas a técnica do paulismo que expõe, há que não perder de vista que, para lá de
tudo, estão sempre presentes os grandes rasgos do seu pensamento e personalidade. Se,
quanto ao processo de composição que usa, Pauis documenta uma fase passageira do
poeta (uma das muitas a que recorreu na sua febre incontrolada de procura), na
profundidade do texto são claramente detectáveis as marcas mais vincadas daquilo que
ele sempre foi.
Considerando esquematicamente o estudo que realizámos do texto, teremos o
seguinte:
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motivo exterior que desperta as impressões do
poeta e predispõe a sua alma para eles
impressões despertadas pelo crepúsculo na
alma em ouro do poeta -
são de ordem dupla:
C R E P Ú S C U L O realidade da alma
do poeta
ânsias da alma
do poeta
Pauis Outros Sinos
o entardecer
os Sinos
frio carnal, negativida-
de (angústia simboliza-
da no crespúsculo)
mudo grito
de ânsia
o clarão do Sol
a esvair-se
o que chora outra coisa que o que
chora
a quietude e o
silêncio outonais
aquilo que quero
(irreal)
aquilo que desejo
(ideal)
o luar a Mistério eu ser outro
divisar-se a Hora os Aléns
Porque estamos em face do poema-manifesto do Paulismo, demos, por último,
um pouco de atenção a este ismo de Pessoa.
Como se pôde verificar, ao longo do estudo do texto, encontram-se presentes em
Pauis muitas características do simbolismo. Este movimento, surgido em França em
1885 e tendo como mestres reconhecidos Baudelaire, Verlaine, Rimbaud, Mallarmé (e
em Portugal sobretudo Eugénio de Castro, cujo prefácio a Oaristos é um autêntico
programa do simbolismo), constitui-se como uma reacção de tom individualista e
subjectivista contra o positivismo e o cientificismo que caracterizavam o
realismo/naturalismo, bem como contra os rigores formais do parnasianismo.
A proposta dos simbolistas voltava-se para um aproveitamento da música e dos
símbolos na poesia (a poesia-música e a poesia-símbolo). Trata-se de um retorno a um
romantismo caracterizado pelo tom lírico, o vago, a melancolia, o pessimismo, os
ambientes outonais e crepusculares, a procura da verdade e da autenticidade.
A poesia simbolista dirigia-se a iniciados, dadas as subtilezas sobre que se
construiu e as preocupações que pôs na renovação linguística e poética. Numa fase
inicial, o simbolismo não se distinguia nitidamente do decadentismo, o que se verifica,
por exemplo, através da reacção que manifesta contra o real, igualmente uma
característica do decadentismo (Exclus-en… le réel, parce que vil – Mallarmé).
Além dessa reacção contra o real, o decadentismo insiste na atracção pelo
anormal, o mórbido, o patológico, o aberracional, o abismo, as sensações inéditas – que
por vezes as primeiras manifestações do simbolismo também não escondem.
A temática simbolista anda à volta do pessimismo profundo, das paisagens
outonais, da efemeridade, da mágoa de viver, da doença da alma, do amor sem
realização…
O paulismo fez um aproveitamento muito cuidado do simbolismo e daquilo que
o caracterizava. O que Pessoa disse ser específico da moderna poesia portuguesa
encontra-se presente nesse ismo que criou. Nomeadamente o vago, que é sugerido
através das reticências, da interacção Objectividade/subjectividade, do aproveitamento
da métrica (por exemplo, em Pauis a métrica estabelece-se na base de 7 + 7 sílabas
11
métricas, mais ou menos), da musicalidade impressionista, das referências à desilusão
profunda, ao tédio, à procura do ilocalizável e inacessível, ao Além, a uma visão
fugidia, ao negativismo, ao misterioso e indefinível, das quebras de ritmo (que
provocam uma leitura arrastada), dos adjectivos, da sintaxe desconexa e com
propositados erros de lógica, dos contínuos transportes entre os versos…
E também o subtil, que é sugerido através de frases exclamativas, liberdades
métricas, alusão a pormenores mínimos, aparentemente sem significado, a aspectos
insólitos, mal perceptíveis, que sugerem evocação e ambientes estranhos, o grafismo em
maiúsculas despertando sentidos fora do comum, a associação forçada de palavras
organizadas sem lógica aparente, a exploração das sensações…
E ainda o complexo, que é sugerido através da ligação entre o que aparentemente
não possui ligação, sobreposição de sentidos inesperados, aproveitamento da sonoridade
e ritmos aos mais diversos níveis, sentidos enunciados parcialmente, frases com falta e
concordância sintáctica, omissão forçada de predicados, excesso de construções
nominais, frases iniciadas por substantivos, oposições e contradições…