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Estudos de Sociologia, Rev do Progr. de Pós-Graduação em Sociologia da UFPE, v. 12. n. 2, p. 97-118 AGÊNCIA E ESTRUTURA: O conhecimento praxiológico em Pierre Bourdieu PéricIes Andrade Resumo Este artigo apresenta uma introdução aos conceitos de campo e habitus da sociologia de Pierre Bourdieu (1930-2002). O trabalho está dividido em três partes. Na primeira são esboçados alguns traços do seu pensamento. Em seguida enfoca-se o conceito de habitus como prática mediadora do agente em relação à estrutura social. Por fim, demonstra-se como a sociedade é representada como espaço de luta a partir da noção de campo. Palavras-chave Campo. Habitus. Bourdieu. AGENCY AND STRUCTURE: praxiological knowledge in the work of Pierre Bourdieu. Abstract This article provides an introduction to the concepts oifield and habitus in Bourdieu's sociology. It is divided in three parts. ln the first part, some traits of Bourdieu's thinking are outlined. After that, we focus on the concept of habitus as the mediating practice ofthe agent in relation to the social structure. To conc1ude, we demonstrate how society is represented as a space of struggle bascd on the notion of field. Keywords Field. Habitus. Bourdieu. 1 A sociologia de Pierre Bourdieu Durante a década de 1950 formou-se no campo das ciências sociais uma geraçào que formulou novas análises teóricas, as quais discutiam 97

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Pierre Bourdieu

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  • Estudos de Sociologia, Rev do Progr. de Ps-Graduao em Sociologia da UFPE, v. 12. n. 2, p. 97-118

    AGNCIA E ESTRUTURA:O conhecimento praxiolgico em Pierre Bourdieu

    PricIes Andrade

    ResumoEste artigo apresenta uma introduo aos conceitos de campo e habitus dasociologia de Pierre Bourdieu (1930-2002). O trabalho est dividido em trspartes. Na primeira so esboados alguns traos do seu pensamento. Emseguida enfoca-se o conceito de habitus como prtica mediadora do agenteem relao estrutura social. Por fim, demonstra-se como a sociedade representada como espao de luta a partir da noo de campo.

    Palavras-chaveCampo. Habitus. Bourdieu.

    AGENCY AND STRUCTURE: praxiological knowledge in the work ofPierre Bourdieu.

    AbstractThis article provides an introduction to the concepts oifield and habitus inBourdieu 's sociology. It is divided in three parts. ln the first part, some traitsof Bourdieu's thinking are outlined. After that, we focus on the concept ofhabitus as the mediating practice ofthe agent in relation to the social structure.To conc1ude, we demonstrate how society is represented as a space ofstrugglebascd on the notion of field.

    KeywordsField. Habitus. Bourdieu.

    1 A sociologia de Pierre Bourdieu

    Durante a dcada de 1950 formou-se no campo das cincias sociaisuma gerao que formulou novas anlises tericas, as quais discutiam

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    primordialmente sobre o carter da cincia e apresentavam vrios elementoscomuns: desconfiana da metafisica, preocupao em definir com exatido oque possa ser 'cientfico', nfase na verificabilidade de conceitos eproposies, e simpatia por formas hipottico-dedutivas de construo deteorias (GIDDENS; TURNER, 1999, p. 8). Vale ressaltar que nos ltimosdecnios desenvolveu-se na teoria sociolgica uma constante tentativa desintetizar as diversas abordagens, mais ou menos unilaterais, sobre a vidasocial que autores anteriores avanaram. Isso tomou impulso na dcada de1970, sucedendo-se ento um movimento de sntese que buscava superar afragmentao terica que se acentuara na dcada anterior (DOMINGUES,2001, p. 57).

    Nesse perodo o estruturalismo institucionalizou um 'megaparadigma'transdisciplinar, contribuindo para integrar as chamadas 'humanidades' e ascincias sociais. Sua pretenso ao status de 'megaparadigma' baseava-se nacentralidade da linguagem na vida cultural, considerada como sistemasemitico ou como sistema de significao auto-reflexivo. Entretanto, valeressaltar que o estruturalismo no se constitui um movimento unificado, muitomenos uma escola. , mais exatamente, um estilo de pensamento que sedifundiu como um modismo intelectual parisiense no incio e em meados dosanos 1960, representando um violento ataque ao modo de pensar associadoao existencialismo, sobretudo suas duas tnicas: o humanismo e ohistoricismo. O estruturalismo firmou-se ento como anti-humanista e anti-historicista: combatia a primazia da conscincia, do sujeito; e criticava a crenana lgica da histria e na liberao atravs da mesma (MERQUIOR, 1991, p.13).

    Dentre os adeptos do estruturalismo destaca-se o antroplogo francsClaude Lvi-Strauss (1908). No incio dos anos 1940, Lvi-Strauss conheceua lingstica estrutural, e a partir da passou a entender que podemos chegar estrutura inconsciente por meio do emprego do mtodo estrutural.Argumentava que a fonologia no podia deixar de desempenhar perante ascincias sociais o mesmo papel renovador que a fisica nuclear, por exemplo,desempenhara no conjunto das cincias exatas. Utilizando esse mtodo, Lvi-Strauss sugeria que as cincias sociais fossem capazes de formular relaesnecessrias e que novas perspectivas se abrissem, permitindo que, sobretudoo antroplogo, estudasse sistemas de parentescos da mesma forma queestudava formas lingsticas.

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    Em As estruturas e/ementares do parentesco, Lvi-Strauss comparaexplicitamente seus objctivos com os da lingstica fonolgica no interior doestruturalismo. O antroplogo esforou-se muito para adaptar o paradigmalingstico s cincias sociais, relacionando o conceito de estrutura com anoo de signo. A estrutura apresentada como algo total, constituindo-senum sistema preservado ou enriquecido pelo prprio jogo das leis detransformao, que nunca levam resultados externos ao sistema nemempregam elementos que lhe so externos. Conceitualmente a estrutura composta de trs idias-chave: totalidade, transformao e auto-regulao. Aprimeira surge da distino entre estruturas e agregados e remete naturezarelacional, ligada tese do carter arbitrrio do signo e da primazia dosignificante sobre o significado. Apenas as estruturas podem ser consideradascomo totalidades, enquanto os agregados so formados de elementos que soindependentes dos complexos nos quais eles entram. A natureza dos todosestruturais depende de suas leis de composio, as quais, por sua vez,governam as transformaes do sistema (PETERS, 2000, p. 20-34).

    A atividade intelectual de Pierre Bourdieu (1930-2002)1 estaria inseridanesse movimento. A obra de Lvi-Strauss lhe ofereceu, nos anos de formao,um exemplo de ambio intelectual extraordinrio. Inicialmente a pretensode Bourdieu era concluir uma tese de filosofia, rea da sua primeira formao.Porm, aos poucos ele passou a realizar trabalhos de campo em etnologia esociologia. Isto ocorreu principalmente com o servio militar e a docncia nafaculdade de Argel (1958- I960), levando-o a descobrir outros objetos e pontosde vista que no os de um filsofo, embora a filosofia esteja presente emquase toda a sua obra. Seus primeiros escritos foram dedicados a sociedadestradicionais - a partir do seu contato com a sociedade cabila - e os efeitosdas transformaes econmicas e polticas sobre elas, sofrendo a influnciamarcante do estruturalismo de Lvi-Strauss. Em entrevista realizada em Paris

    I Pierre Bourdieu estudou na colc Normale Supricur e foi professor de filosofia. Depoisde um ano de ensino no Lyce de Moulins, tornou-se assistente na Faculdade de Letras deArgel e depois em Paris. Em 1961, ensinou em Lille. Em 1964, assumiu o cargo de diretorde estudos na cole Pratique des Hautes Etudes. A partir de 1972, 1ecionou em vriasuniversidades estrangeiras: Princeton, Chicago, Harvard, Max Planck Institut de Berlim.Em 1981 tomou-se diretor da Revista Actes de la Recherche en Sciences Sociales e catedrticode Sociologia no College de France. Em 1982. foi nomeado professor no College de France.(HESS, 2001, p. 168).

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    no ano de 1985. publicada sob o ttulo 'Fieldwork in philosophy', PierreBourdieu demonstra essa dvida. Segundo ele, com o estruturalismo pelaprimeira vez uma cincia social se imps como disciplina respeitvel edominante. Lvi-Strauss, que batizou sua cincia de antropologia, ao invsde etnologia - reunindo o sentido anglo-saxo e o velho sentido filosficoalemo -, enobreceu a cincia do homem, assim constituda, graas refernciaa Saussure e lingstica, como cincia real, qual os prprios filsofoseram obrigados a se referir. Naquele momento Bourdieu precisava colocarem jogo seu estatuto de filsofo e todos os seus prestgios para operar umaverdadeira reconverso cientfica, tentando, inclusive, o modo de pensamentoestrutural ou relacional na sociologia (BOURDIEU, 1990a, p. 20).

    Apesar dessa filiao ao estruturalismo, os estudos etnolgicosconduziram Bourdieu a descobrir que os agentes no obedeciam a regras semelaborar suas estratgias (DURAND: WEIL, 1990, p. 187). A partir daexperincia na Arglia e entre camponeses da regio francesa de Barn (suaterra natal), ele passou a enfocar essencialmente a questo da mediao entreo agente social e a sociedade.' Em seu terceiro ensaio de etnologia, 'La parentcomme representation et comme volont', voltado para as prticasmatrimoniais em diversas regies de Cablia, Bourdieu intensificou seuquestionamento da etnologia clssica c aprofundou seu distanciamento daantropologia estrutural. O pano de fundo dessa investigao era a problemticado "casamento rabe", ou seja, o presumido predomnio numa sociedadepatrilinear de unio preferencial ou prescritiva com a prima paralelapatrilinear, Os resultados empricos de sua investigao apontaram que aproporo relativa de tipos de casamento variava em razo da extensogeogrfica das unidades consideradas. sendo que o casamento com a primaparalela patrilinear constitua antes uma exceo do que a regra delineadapelos pressupostos antropolgicos em geral e, de modo particular, doestruturalismo (MARTINS, 2002, p. 168-169).

    As pesquisas realizadas na Arglia nos anos 1950 e 1960 tambmpossibilitaram a Bourdieu uma nova constatao: a situao de desamparo deindivduos arrancados de um universo rural e submetidos a um ambienteurbano e capitalista. O conhecimento por ele elaborado encaminhava-se na

    2 Vale ressaltar que essa a querela mais antiga da sociologia: agncia versus estrutura.

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    direo de um quadro conceituai c uma estratgia prprios, no se limitandoaos pressupostos estruturalistas, mas constituindo-se num enriquecimento deseus princpios e crticas, como afirmou em entrevista:

    Resistir com todas as foras s formas mundanas doestruturalismo [...]. Mas foi preciso muito tempo pararomper realmente com certos pressupostos fundamentaisdo estruturalismo [...]. Primeiro, foi preciso que eudescobrisse, pelo retorno s reas de observaofamiliares, de um lado a sociedade beamesa, de onde souoriginrio, e, de outro, o mundo universitrio, ospressupostos objetivistas (...] que esto inscritos naabordagem estruturalista. E em seguida foi preciso, acho,sair da etnologia como mundo social, tornando-mesocilogo, para que certos questionamentos impensveisse tomassem passiveis. (BOURDIEU, 1990, p. 20).

    Buscava-se reintroduzir de algum modo os agentes, que Lvi-Strausse os estruturalistas, especialmente AIthusser, tendiam a abolir, transformando-os em simples epifenmenos da estrutura. Bourdieu falava ento em agentese no em sujeitos, nos quais a ao no simplesmente a execuo e obedinciaa regras. Aos poucos ele percebia que os indivduos, tanto nas sociedadesarcaicas, como nas complexas, no so apenas autmatos regulados comorelgios, segundo leis mecnicas que lhes escapam (BOURDIEU, 1990, p. 21).

    Uma questo crucial era colocada e assumia um papel fundamentalem seus trabalhos: como se renovam e se reproduzem as estruturas? O dilemado clculo do comportamento dos agentes era restabelecido. Diante de umestruturalismo mecnico que confundia estrutura social e estrutura simblica,Bourdieu apresentava uma reflexo gentica, no introduzindo uma respostadogmtica em termos de uma reflexo unidimensional, mas em termos dedialticas mltiplas. Pode-se afirmar que Bourdieu formulou aquilo que sedenominaria de "estruturalismo gentico", argumentando que o mundo social constitudo por estruturas objetivas, independentes da conscincia e vontadedos atores, que em larga medida tendem a orientar as suas prticas erepresentaes. Bourdieu reconhecia a objetivao dos fenmenos sociais,postulada pelo estruturalismo, principalmente devido s suas contribuiesquanto ao processo de ruptura com o saber imediato e ao distanciamento das

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    posturas que tendiam a negar a prpria validade da cincia para a compreensoda ao humana. No entanto, buscava ressaltar a partir da dimensoconstrutivista o aspecto social subjacente tanto gnese dos esquemas depercepo e ao dos atores quanto na constituio dos diversos campos(MARTINS, 2002).

    Essa postura de Bourdieu se opunha sistematicamente a dois modosde conhecimento terico que implicam em cada caso um conjunto de tesesantropolgicas: o objetivista e o fenomenolgico. A antiga polrnica entre osdois modelos de abordagem citados emerge em suas reflexes. Para resolv-la, explicita um outro gnero de conhecimento, distinto dos anteriores, quepretende articular dialeticamente o ator e a estrutura social: o praxiolgico. Apartir deste conhecimento Bourdieu centra-se na mediao entre a agncia ea estrutura, recuperando a noo ativa dos sujeitos como produtos da histriade todo campo social e de experincias acumuladas no curso de trajetriasindividuais (SETTON, 2002). Isto supe uma ruptura com. o modo deconhecimento objetivista, quer dizer, um questionamento das condies depossibilidade e dos limites do ponto de vista objetivo e objetivante queapreende as prticas de fora, em lugar de construir seu princpio gerador,situando-se no prximo movimento de sua efetivao. Seu objeto no seconstitui somente no sistema das relaes objetivas que o modo deconhecimento objetivista constri, mas tambm nas relaes dialticas entreessas estruturas e as disposies estruturadas nas quais elas se atualizam eque tendem a reproduzi-Ias, isto , o duplo processo de interiorizao daexterioridade e de exteriorizao da interioridade (BOURDIEU, 1994b). Aofiliar-se ao conhecimento praxiolgico e criticar o objetivista, Bourdieutambm se ope ao conhecimento fenomenolgico, que na sua tica explicitaa verdade da experincia primeira do mundo social, apreendendo-o comonatural e evidente, excluindo a questo de suas prprias condies depossibilidade. Entretanto, sua oposio mais explcita ao modelo objetivista.

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    2 - O conhecimento praxiolgico

    A partir do conhecimento praxio/gico Bourdieu repensou a nooescolstica de habitus,' Elaborada a partir da sntese e tentat va de superaodos mtodos objetivista (Durkheim) efenomenologico (Weber) da ao social,esta noo deve ser compreendida como uma gramtica gerativa de prticasconformes com as estruturas objetivas que o produz. Juntando dois aspectos,um objetivo (estrutura) e outro subjetivo (percepo, classificao, avaliao),pode-se dizer que o habitus no s interioriza o exterior, mas tambmexterioriza o interior. Neste sentido, toda a empresa intelectual de Bourdieuvoltou-se para a construo de uma teoria da ao. Buscando na utilizao doconceito de habitus em Panofsky um antdoto ao paradigma estruturalistacom o qual se defrontava, ele contestava particularmente a ausncia de umateoria da ao estruturalista, tal como proposta na noo de inconsciente deLvi-Strauss, segundo a qual os homens seriam suportes ou vtimas dasestruturas. A partir desse primeiro enfrentamento, e dialogando com Chomsky,Bourdieu foi construindo sua teoria da ao, nela destacando as capacidadescriadoras, ativas , para alm das esferas consc entes e inconscientes dos agentes,mas considerando-os efeti vamente em ao no campo, outro conceitofundamental que suporta o anterior. Bourdieu procurava fugir da filosofia daconscincia, sem contudo tirar do cenrio o prprio agente em atividade,estabelecendo para com este uma "cumplicidade ontolgica com o mundo"(MALERBA, 2000) .

    Como destacou Pierre Bourdieu em conferncia apresentada em maiode 1983'1, no incio do seu trabalho quis reagir contra a tendncia dos etnlogosde descrever o mundo social na linguagem da regra, fazendo com que asprticas sociais estivessem explicadas desde que se tivesse enunciado a regraexplcita segundo a qual elas supostamente so produzidas. A compreenso

    J De acordo com Maria da Graa Jacintho Setton, o conceito de habitus tem uma longahistria nas cincias humanas. uma palavra latina que traduz a noo grega hexis utilizadapor Aristteles para designar ento caractersticas do corpo e da alma adquiridas em umprocesso de aprendizagem . (Sfi'Tl'GN, 2002 . p. 61).4 Conferncia publicada em Actes de la Recherehe em Sciences Sociales, 64, setembro de1986. No Brasil o texto foi publicado em 1990 na coletnea Coisas ditas (So Paulo:Brasiliense), com o titulo'A codificao' .

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    das prticas sociais nesta tica destaca a existncia de um princpio mediador,de correspondncia entre as prticas individuais e as condies sociais deexistncia. Entretanto, Bourdieu percebeu como o desajustamento dos agentesera possvel. Aos poucos as noes como a de habitus nasceram da vontadede lembrar que, ao lado da norma expressa e explcita ou do clculo racional,existem outros princpios geradores das prticas. Para saber o que as pessoasfazem preciso supor que elas obedecem a uma espcie de "sentido do jogo",como se diz em esporte, e, para compreender suas prticas, necessriooreconstruir o capital de esquemas informacionais que lhes permite produzirpensamentos e prticas sensatas e regradas sem a inteno de sensatez e semuma obedincia consciente a regras explicitamente colocadas como tal. Nocaso da sociedade cabila, Bourdieu afirma ter conseguido mostrar que o maiscodificado, isto , o direito consuetudinrio, apenas o registro de veredictossucessivamente produzidos, a propsito de transgresses particulares dosprincpios do habitus. De acordo com o seu pensamento, h entre os agentese o mundo social uma relao de cumplicidade infraconsciente,infralingstica: eles utilizam constantemente em suas prticas teses que noso colocadas como tais. Desta forma, os agentes sociais que tm o sentidodo jogo, que incorporaram uma cadeia de esquemas prticos de percepo ede apreciao que funcionam, seja como instrumentos de construo darealidade, seja como princpios de viso e de diviso do universo no qual elesse movem, no tm necessidade de colocar como fins os objetos de sua prtica(BOURDIEU, 1996).

    O habitus, ento, organiza e gera as prticas e representaes quepodem tomar-se hbridas conforme os contextos de produo e realizao,adaptadas objetivamente para seus efeitos, sem pressupor uma conscinciapr-estabelecida ou uma expresso superior de operaes necessrias na ordempara atingi-los. O mundo prtico constitudo a partir das suas relaes como habitus, agindo como um sistema cognitivo e estruturas motivadoras, ummundo com fins j realizados e com objetos dotados com um cartertecnologicamente permanente. Ele um produto da histria, produzido porprticas individuais e coletivas acordadas com os esquemas criados. Estesistema de disposies o princpio da continuidade e regularidade que soobjetivamente percebidas nas prticas sociais, ao invs de serem aptas para oclculo. Como um sistema de esquemas gerativos, o habitus cria apossibilidade da produo livre de todos os pensamentos, percepes e aes

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    inerentes nas condies particulares. Ele est conectado estrutura da qual o produto de prticas dirigidas, no como uma trajctria do determinismomecanicista, mas como constrangimentos e limites condicionadoshistoricamente e situados socialmente. (BOURDIEU, 1994a).

    O habitus produz prticas, individuais e coletivas, em conformidadecom os esquemas engendrados pela histria. Ele o resultado do trabalho deinculcao e de apropriao necessrio para que esses produtos da histriacoletiva, que so as estruturas objetivas, consigam reproduzir-se sob a formade disposies durveis, em todos os organismos duravelmente submetidosaos mesmos condicionamentos, colocados, portanto, nas mesmas condiesmateriais de existncia. Desde que a histria do individuo nunca mais doque certa especificao da histria coletiva de seu grupo ou de sua classe,podemos ver nos sistemas de disposies individuais variantes estruturais dohabitus de grupo ou de classe, sistematicamente organizadas nas prpriasdiferenas que as separam e onde se exprimem as distines entre as trajetriase as posies dentro ou fora da classe (BOURDIEU, 1994b).

    Como toda arte de inveno, o habitus possibilita a produo de umnmero infinito de prticas que so relativamente imprevisveis, mas tambmlimitadas em sua diversidade. Ele cuida da produo de todos oscomportamentos razoveis (senso comum), como so possveis entre os limitesregulares e aptos para ser sancionados, pois so obviamente ajustados caracterstica lgica de um campo particular. Ao mesmo tempo, sem violncia,arte ou argumento, o habitus tende a excluir todas as extravagnciasincompatveis com as condies objetivas.

    A partir do habitus identifica-se a ao social nas relaes entre asestruturas incorporadas de ao e as estruturas objetivas - regras de ao,educao formal, gostos, relaes de produo e concorrncia - de cada espaosocial (campos). O conhecimento praxiolgico proposto por Bourdieu buscaresponder a questes relativas s aes sociais: O que desencadeia umapresso externa? o indivduo que busca fins racionais? Bourdieu respondeque a prtica humana um encontro do habitus com o campo, levando o atorsocial a desenvolver um senso prtico. Tal postura no afirma que a maiorparte das aes cotidianas sejam calculadas, mecnicas, quase automticas,regidas por um princpio estruturador de aes, percepes e comportamentos.A idia bsica da noo de habitus estabelece que a incorporao progressivadas prticas faz com que as aes percam a condio de prticas estruturadas

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    e comecem a parecer prticas naturais, constituindo-se "estruturas estruturadasestruturantes" que viabilizam a prpria vida social. Os rituais so desenroladoscomo um 'drama', uma ao representada num 'palco' -num espao sagrado- , como nas cerimnias que consagram o poder, onde a ao reveste a formado espetculo. Aqui a problemtica da representao tem como principaldesdobramento a da recepo do que representado, questo de extremacomplexidade que se traduz na 'crena', pelo pblico espectador, da mensagemritualizada (MALERBA, 2000).

    As prticas podem encontrar-se ajustadas s chances objetivas, semque os agentes procedam ao menor clculo ou mesmo a uma estimao, maisou menos consciente, das chances de sucesso. Nesta tica, ao contrrio doprincpio de coero social proposta por mile Durkheim, Bourdieu afirmaque o individual, o pessoal e o subjetivo so orquestrados. Podemos, porexemplo, ajustar-nos s necessidades de um jogo, fazer uma belssima carreiraacadmica, sem nunca ter a necessidade de postular tal objeti voo Ter o sentidodo jogo ter o jogo na pele. perceber no estado prtico o futuro do jogo.Enquanto o mau jogador est sempre fora do tempo, sempre muito adiantadoou muito atrasado, o bom jogador aquele que antecipa, que est diante dojogo. Como pode o agente antecipar o decorrer do jogo? Ele tem as tendnciasimanentes ao jogo no corpo, incorporadas: ele se incorpora ao jogo. nestesentido que se insere a noo de Izabitus. Bourdieu considera-o como umcorpo socializado, um corpo estruturado, um corpo que incorporou asestruturas imanentes de um mundo ou de um setor particular desse mundo,de um campo, e que estrutura tanto a percepo desse mundo como a ao nomesmo. (BOURDIEU, 1996).

    A aplicabilidade do conceito de habitus pode ser verificada quandoBourdieu analisa o sentido das prticas no campo cientfico, demonstrandocomo os agentes so estimulados pelas conjunturas deste campo. De acordocom o autor, a comunidade cientfica est condicionada sociedade, aossujeitos, s suas relaes de fora e monoplios, lutas e estratgias, interessese lucros, ou seja, constituindo-se em espao de jogo concorrencial. Ospesquisadores neste universo buscam, como nos demais campos sociais,reconhecimento e uma posio nas hierarquias institucionais, levando-os, emalguns casos, procura de temas mais 'lucrativos', simbolicamente maisvisveis. O reconhecimento marcado e garantido somente por um conjuntode sinais de consagrao que os pares-concorrentes concedem a cada um de

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    seus membros. E isto dar-se-ia atravs de mecanismos tais como: acesso aoscargos administrativos, s comisses governamentais, aos fundos de pesquisa,aos alunos de qualidade, s subvenes e bolsas, convites, consultas edistines. Desta forma, no possvel separar as determinaes propriamentecientficas e as determinaes propriamente sociais das prticas essencialmentesobre determinadas. Enquanto lugar de luta poltica, o campo cientfico quedesigna a cada pesquisador - em funo da posio que ele ocupa, seusproblemas e seus mtodos - estratgias cientficas que, pelo fato de sedefinirem expressa ou objetivamente pela referncia ao sistema de posiespolticas e cientficas constitutivas deste campo, so, ao mesmo tempo,estratgias polticas. No h escolha que no seja uma estratgia poltica deinvestimento objetivamente orientada para a maximizao do lucropropriamente cientfico, isto , a obteno do reconhecimento dos pares-concorrentes. (BOURDIEU, 1994a).

    O exemplo do campo cientfico demonstra como Bourdieu ressalta anecessidade do abandono de todas as maneiras que tomam explcita ouimplicitamente a prtica como reao mecnica, diretamente determinadapelas condies antecedentes e inteiramente redutvel ao funcionamentomecnico de esquemas preestabelecidos, 'modelos', 'normas' ou 'papis' quedeveramos, alis, supor que so em nmero infinito, como o so asconfiguraes fortuitas dos estmulos capazes de desencade-los. Mas estarecusa no implica conceder a um livre-arbtrio criador o poder livre e arbitrriode, no instante, constituir o sentido da situao ao projetar os fins que visamtransformar esse sentido. Nem, por outro lado, reduzir intenes objetivas esignificaes constitudas de aes e obras humanas a intenes conscientese deliberadas de seus autores. A prtica , ao mesmo tempo, necessria erelativamente autnoma em relao situao considerada imediata, porqueela o produto da relao dialtica entre uma situao e um habitus, e tornapossvel a realizao de tarefas infinitamente diferenciadas, graas stransferncias analgicas de esquemas, que permitem resolver os problemasda mesma forma (BOURDIEU, 1994b). Dito de outro modo, o conhecimentopraxiologico pressupe uma relao dialtica entre agente e estrutura social.As aes, comportamentos, escolhas ou aspiraes individuais so produtosda relao entre um habitus e as presses e estmulos de uma conjuntura(SETTON,2002).

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    Novamente a anlise do campo cientfico pertinente paracompreenso das escolhas possveis contidas nas estruturas sociais. Naperspectiva de Bourdieu h duas estratgias de reconhecimento neste campo.A primeira a sucesso. Os novatos podem orientar-se para estas colocaesseguras, que lhes garantem os lucros prometidos aos que realizam o idealoficial da excelncia cientfica pelo preo de inovaes circunscritas aoslimites autorizados. Isto se materializa atualmente nas bolsas de pesquisa,estgios, monitorias, dentre outras formas oferecidas aos iniciantes pelosprofessores. Esta estratgia pode significar tambm a adoo de teorias eautores consagrados na conjuntura social. Por exemplo, a opo pelaaproximao entre marxismo e estruturalismo estabelecida por Louis Althusser(1918-1990) na dcada de 1960 possivelmente no ignorou a fora desteparadigma no campo intelectual francs. A segunda estratgia dereconhecimento a subverso. Como destaca Bourdieu, um investimentomais custoso e arriscado, que s pode assegurar os lucros prometidos aosdetentores do monoplio da legitimidade cientfica em troca de umaredefinio completa dos princpios de legitimao da dominao. O campointelectual brasileiro do final do sculo XIX, por exemplo, esteve dominadopelas leituras da realidade nacional a partir dos conceitos de raa e meio. Emcerto sentido, isto explicaria o sucesso da obra Os Sertes (1902), de Euclidesda Cunha (1866-1909), e o ostracismo a que foi levado o pensamento deManoel Bonfim (1868-1932), que optou por uma subverso das teorias racistasvigentes. medida que a intelectualidade brasileira mudou suas orientaestericas na primeira metade do sculo XX, o intelectual sergipano foiressuscitado e consagrado.

    Estes exemplos mostram como o habitus um princpio geradorduravelmente armado de improvisaes regradas: as prticas sociais s podemser compreendidas numa perspectiva co-relacional estrutura objetiva. Estadefine as condies sociais de produo do habitus com as condies do seuexerccio, isto , com a conjuntura que, salvo transformao radical, representaum estado particular dessa estrutura. Se o habitus pode funcionar enquantooperador que estabelece uma ligao entre esses dois sistemas de relao nae pela produo da prtica, porque ele histria feita natureza, isto , negadaenquanto tal porque realizada numa segunda natureza. Ele no nada maisdo que uma lei imanente, lex insita, depositada em cada agente pela educaoprimeira, condio no somente da concertao das prticas, mas tambm

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    das prticas de concertao. posto que: as correes e os ajustamentosconscientemente operados pelos prprios agentes supem o domnio comum;e os empreendimentos de mobilizao coletiva no podem ter sucesso semum mnimo de concordncia entre os habitus dos agentes mobilizadores e asdisposies daqueles cujas aspiraes eles se esforam em exprimir.(BOURDIEU, 1994b).

    Enfim, o habitus enfatiza a dimenso de um aprendizado passado(ORTIZ, 1994). a incorporao que o ator absorve na vida, sistema durvelde disposio que o leva a perceber, sentir, fazer determinadas 'coisas'.Estrutura estruturada que funciona como estruturante, o habitus to forteque gera prtica. O campo s funciona na medida em que existem indivduoscompatveis, que sofreram a aprendizagem. Dito de outro modo, ele definidocomo o conjunto de 'traos' distintivos (gestos, comportamentos, smbolos,vestimentas, linguagem, etc.) de um determinado grupo social, em oposioa outros grupos ou segmentos. Ele conforma e orienta a ao, pressupondoum conjunto de esquemas generativos que presidem a escolha, reportando aum sistema de classificao que anterior ao, e se refere ao social e aoindividual.

    3 - A sociedade como campo de luta

    A aplicabilidade do habitus est associada ao conceito de campo. apartir deste que Pierre Bourdieu representa sua perspectiva de totalidade social.Incorporando a base material da tradio marxista e a viso weberiana depoder, Bourdieu leva at as ltimas conseqncias a imagem da sociedadecomo um campo de batalha operando com base na fora e no sentido, onde asposies dos agentes se encontram fixadas anteriormente, definindo-se comoo focus da luta concorrencial entre os atores em torno de interesses especficosque distinguem a rea em questo. Cada campo caracterizado pormecanismos especficos de capitalizao dos recursos legtimos que lhe soprprios. No h, ento, para Bourdieu, uma espcie de capital comotendencialmente para Marx e os 'marxistas' (o capital econmico), mas umapluralidade de capitais (capital cultural, capital poltico, etc.). No se temuma representao unidimensional do espao social, mas sim umarepresentao pluridimensional: ele composto por uma pluralidade de

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    campos autnomos, que definem cada um dos modos especficos dedominao. Estamos diante de vrias capitalizaes e dominaes: relaesassimtricas entre indivduos e grupos estabilizados em proveito dos mesmos,sendo algumas relaes transversais aos diferentes campos, como a dominaodos homens sobre as mulheres. Dito de outro modo, Bourdieu chama de campode poder o lugar em que se colocam em relao campos e capitais diversos. a que se confrontam os dominantes dos diferentes campos, "um campo delutas pelo poder entre detentores de poderes diferentes" (CORCUFF, 2001,p.54-56).

    O espao social seria ento marcado pelos 'estilos de vida', que seconstituem unidades de anlise requeridas pelo estudo dos gostos individuaissocialmente condicionados. Ele pode ser relacionado, conforme asnecessidades do trabalho emprico, seja com o espao das posies sociais,seja com um subespao como o dos gostos culinrios, dos objetosvestimentrios, etc. Na medida que o espao social apresentado como umlocal de disputa, onde os agentes se diferenciam pelo capital simblico, anoo de diferenciao rompe com a viso marxista ortodoxa de classe. Decerto modo, Bourdieu toma a concepo weberiana de estratificao social,sobretudo a noo de status. A partir deste princpio distintivo, ele demonstracomo as diferenas propriamente econmicas so duplicadas pelas distinessimblicas na maneira de usufruir estes bens, ou melhor, atravs do consumosimblico que transmuta os bens em signos. As diferenas se apresentam emdistines significantes em 'valores', privilegiando a forma da ao ou doobjeto em detrimento de sua funo. Em conseqncia, os traos distintivosmais prestigiosos so aqueles que simbolizam mais claramente a posiodiferencial dos agentes na estrutura social- por exemplo, a roupa, a linguagemou a pronncia e, sobretudo, 'as maneiras', o bom gosto e a cultura -, poisaparecem como propriedades essenciais da pessoa, como um ser irredutvelao ter, enfim, como uma natureza, mas que paradoxalmente uma naturezacultivada, uma cultura tornada 'natureza', uma graa e um dom. (BOURDIEU,1998a).

    As funes sociais cumpridas pelos sistemas simblicos so evidentes.Elas tendem a se transformar em funes polticas na medida em que a funolgica da ordenao do mundo subordina-se s funes de diferenciao social

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    e de legitimao das diferenas.' Tal tipo de sistema possui seu capital, quese constitui num conjunto de rituais simblicos, sinnimos de distino ecrdito, fundamentais nas lutas entre grupos e indivduos para aquisio doreconhecimento.

    O campo se fundamenta na circulao de um capital simblico"reconhecido por todos os concorrentes, de modo que a acumulao dessecapital pode levar um determinado agente a conquistar a hegemonia dentrode um campo. Este o local de manifestao das relaes de poder, tomando-se como referncia dois plos opostos: o dos dominantes e o dos dominados.Todo campo social estrutura-se nesta dicotomia, definindo, inclusive, a posiodos grupos e agentes:

    A posio na estrutura das relaes de fora,inseparavelmente econrnicas e simblicas, que define ocampo da produo, ou seja, na estrutura da distribuiodo capital especfico (e do capital econmico correlato)orienta, por intermdio de uma avaliao prtica ouconsciente das oportunidades objetivas de lucro, ascaractersticas dos agentes ou instituies, assim como

    j De acordo com Louis Pinto, "o mundo social visto como domnio de leis exatas, pormveladas por uma espcie de fsica-matemtica que d a concepo diferente, mas relacionadacom a economia domstica: um agente se adapta s situaes mediante uma aprendizagemque lhe poupe um trabalho constante de clculo e reflexo. Nessa concepo, se lida semprecom termos opostos ou equivalentes e com as contradies geradas pelo embate dos mesmos(alto/baixo, direita/esquerda, sagrado profano, masculino/feminino etc.), mas seu status comose dessacraliza: enquanto simples esquemas, as estruturas funcionam de modo flexvel,limitado, condicional; seu lugar no o pensamento puro nem o jogo formal de suascombinaes [... ], mas o corpo enquanto condio essencial de possibilidade dosautomatismos e de sua organizao; ligadas s propriedades dos agentes e, logo, aos seusinteresses, elas cumprem funes sociais, enfim, as estruturas cognitivas, longe de seremabsolutizadas como transcendentais. devem relacionar-se com as estruturas objetivas ou, sepreferirmos, com as oposies constitutivas de uma formao social, visto que resultam deimposies que no se fundam unicamente no 'entendimento humano' ." (PINTO, 2000, p.47-48).6 O capital simblico o conjunto de bens utilizado na luta pela imposio da viso legtimado mundo pelos agentes, que detm um poder proporo do seu capital, quer dizer, emproporo ao reconhecimento que recebem de um grupo. Este capital associa-se ao podersimblico, uma forma transfigurada e legitimada das outras formas de fora e dos modelosque fazem delas relaes de comunicao.

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    as estratgias que eles acionam na luta que os ope. Deum lado dos dominantes, todas as estratgias,essencialmente defensivas, visam conservar a posioocupada, portanto, perpetuar o status quo, ao manter efazer durar os princpios que servem de fundamento dominao. Os dominantes tm compromisso com osilncio, discrio, segredo, reserva: quanto ao discursoortodoxo, sempre extorquido pelos questionamentos dosnovos pretendentes e impondo pelas necessidades daretificao, no passa nunca da afirmao explcita dasevidncias primeiras que so patentes e ser portam melhorsem falar delas. [...] Quanto aos dominados, estes s teropossibilidades de se impor no mercado atravs deestratgias de subverso que no podero prodigalizar, aprazo, os ganhos denegados a no ser com a condio dederrubarem a hierarquia do campo sem contrariarem osprincpios que lhe servem de fundamento. (BOURDIEU,1998a, p. 31-32).

    A diviso do campo em dominantes e dominados implica uma distinoentre ortodoxia e heterodoxia. Ao plo dominante correspondem as prticasde uma ortodoxia que pretende conservar intacto o capital social acumulado;ao plo dominado, as prticas heterodoxas que tendem a desacreditar osdetentores reais de um capital legtimo. Pode-se, desta forma, instituir umprocesso de legitimao dos bens simblicos, assim como estabelecer umsistema de filtragem que determine aqueles que devem ou no ascender nahierarquia cultural. Os que se encontram no plo dominado procurammanifestar seu inconformismo atravs das estratgias de 'subverso', o queimplica um confronto permanente com a ortodoxia. (ORTIZ, 1994, p. 22-23).

    Entretanto, os embates no ocorrem apenas pelo uso da fora material.As relaes de poder que permeiam um campo, entre dominantes e dominados,se estruturam naquilo que Bourdieu denomina de "violncia simblica".Prope-se uma anlise do poder onde ele se deixa ver menos, maiscompletamente ignorado. Caracterizados os smbolos como poder invisvel,estes so os instrumentos por excelncia da 'integrao social'. Enquantoinstrumentos de conhecimento e de comunicao, eles tomam possvel o

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    consenso acerca do sentido do mundo social , contribuindo fundamentalmentepara a reproduo da ordem social. (BOURDIEU, 1998b).

    Como instrumentos estruturados e estruturantes de comunicao econhecimento, os sistemas simblicos cumprem a funo poltica deinstrumentos de imposio ou de legitimao da dominao, que contribuempara assegurar o domnio de uma classe sobre outra, dando o reforo da suaprpria fora s relaes de poder que as fundamentam e contribuindo, assim,segundo a expresso de Weber, para a domesticao dos dominados. Nestarepresentao da sociedade efetua-se a luta simblica entre as classes e suasfraes para impor seus interesses no espao das tomadas de posiesIdeolgicas e sociais. Elas podem conduzir esta luta diretamente nos conflitossimblicos quotidianos e por procurao, estando em jogo o monoplio daviolncia simblica legtima. (BOURDIEU, 1998b).

    Partindo deste princpio, Bourdieu afirma que no campo os indivduose as instituies, em funo de sua posio na estrutura da distribuio deautoridade, lanam mo do .capital' na concorrncia peIo monoplio da gestodos bens e do exerccio legtimo do poder, enquanto modificam asrepresentaes e as prticas. O capital de autoridade de que dispem os agentesdepende da fora material e simblica que possuem . Neste sentido, todo campo regido pela concorrncia entre os subcampos. As ideologias produzidaspara as necessidades desta concorrncia esto mais ou menos propensas aserem retomadas e utilizadas em outras lutas, conforme a funo social quecumprem em favor de produtores que ocupam posies diferentes neste campo.(BOURDIEU,1998b).

    Apesar das suas especificidades, trs leis gerais se aplicam a qualquercampo. A primeira o reconhecimento de um objeto de luta em comum. Porexemplo, no campo cientfico evidencia-se uma disputa entre seuscomponentes pela aquisio de um capital simblico, representado pelaposio de autoridade cientfica. Esta seria uma espcie particular de capitalque pode ser acumulado, transmitido e at mesmo, em certas condies,reconvertido em outras espcies. Acumular capital fazer um 'nome', prprio,conhecido e reconhecido, marca que distingue imediatamente seu portador,arrancando-o como forma visvel do fundo indiferenciado despercebido,obscuro, no qual se perde o homem comum. (BOURDIEU, 1994a).

    A segunda a necessidade de que haja pessoas para jogar o jogo, ouseja, atores que denotem conhecimento das suas regras. Como ilustrativo,

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    pode-se tomar o campo religioso. Aqui, cabe ao sacerdcio produzir osinstrumentos e os meios adequados transmisso e a inculcao de suadoutrina: manuais, livros cannicos, dogmas, etc. E a produo de taisinstrumentos tanto maior nas situaes de crise por que passa o camporeligioso, quando se torna necessrio enfrentar as doutrinas concorrentes pelaconsagrao do sentido que se associa tradio dominante.

    A terceira lei do campo a unidade manifestada por seus agentescontra todo ataque que tente denunciar os interesses reais em jogo. Seufuncionamento se baseia em classificaes e hierarquias que favorecemindissociavelmente valores, qualidades, assim como os agentes mais ajustadosa esses valores e possuidores dessas qualidades. O espao religioso novamentepode ser tomado como exemplo. Ele se apresenta como uma luta entre trsprotagonistas centrais: os sacerdotes, os profetas e os leigos. Os dois primeirosconstituem agentes a servio da sistematizao e racionalizao da ticareligiosa, cujo alvo ltimo o grupo de leigos. O que os separa no tantosua tarefa, mas sua posio respectiva em face das relaes de foras vigentes.Em uma posio esto os sacerdotes como funcionrios profissionais, a serviode uma empresa religiosa que administra e reproduz a matriz de significaesimpostas pela cultura da classe dominante. Em outra, os profetas comoportadores de um discurso e prticas 'novas' e exemplares que representamas demandas de grupos sociais fora do poder. Por ltimo, os leigos que ocupamposies determinadas na estrutura social confundem-se com os grupos e/ouclasses sociais onde so recrutados e de cuja situao material e simblicaderivam seus interesses, valores, disposies, constituindo, desta maneira, ofiel da balana no interior do campo religioso. Do resultado das lutas entre osdiversos grupos de leigos e de suas relaes com os sacerdotes e com osprofetas, bem como do grau de autonomia de que dispe a igreja dominante,teremos as diferentes modalidades de remanejamento do prprio camporeligioso (MICELI, I998b).

    3 Consideraes finais

    Este artigo teve como objetivo analisar a resposta de Pierre Bourdieua um dos debates de longa data neste campo: a mediao entre agncia eestrutura. Demonstrou-se que o estruturalismo foi influncia decisiva nas suas

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    primeiras pesquisas. Porm, aos poucos Pierre Bourdieu repensou o mtodoe a anlise estrutural, interrogando os determinados pressupostosantropolgicos que orientavam os estudos sobre a prtica dos agentes. Sualeitura das prticas dos agentes sociais indica como essas so condicionadase estimuladas pelas estruturas sociais.

    No universo bourdiesano as prticas so condicionadas pelo campo egeradas pelo habitus, o qual faz com que os agentes que o possuemcomportem-se de uma maneira orquestrada em determinadas circunstncias.O conceito de habitus nessa perspectiva permite pensar a relao, as mediaesentre os condicionamentos sociais exteriores e a subjetividade dos agentes.Tal conceito expressa o dilogo, a troca constante e recproca entre o mundoobjetivo e o mundo subjetivo das individualidades.

    A obra de Pierre Bourdieu fornece subsdios fundamentais para oconhecimento do mundo social, principalmente quando evidencia o papeldecisivo das estruturas simblicas. Sua ampliao do conceito marxista deideologia permitiu a explorao de novas formas de desigualdades, a superaoda oposio economia/cultura e a ampliao da noo de dominao. Suasociologia contribuiu para modificar, de diferentes modos, as classificaespropriamente intelectuais, o que no to evidente se considerarmos a forados interesses, das disposies e das resistncias. Noes como as de campoe habitus - basilares na sua compreenso da sociedade - tm conseqnciaspara o modo de fazer teoria que vo alm dos domnios empricos onde elasforam criadas e testadas (PINTO, 2000).

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