20702-89172-2-PB

18
146 RECEBIDO EM 17 DE MAIO DE 2014 E ACEITO EM 05 DE DEZEMBRO DE 2014. DOSSIÊ ESTUDOS SOBRE AS SOCIEDADES JÊ (KAINGANG E XOKLENG) NO SUL DO BRASIL DOI: 10.5433/2176-6665.2014v19n2p146 RESPEITO E RECIPROCIDADE, REFERENCIAIS DA MORALIDADE KAINGANG 1 Lucas Cimbaluk 2 RESUMO Este artigo propõe o conceito de moralidade para a análise da sociabilidade kaingang como fundada na reciprocidade e no respeito. Além da generosidade e da troca, a “lei” interna é um elemento retórico e prático a propor formas de comportamento vistas como necessárias para evitar a “bagunça” e garantir o respeito entre as famílias, condenando-se os “erros”. Reciprocidade e respeito são defendidos neste trabalho como elementos fundamentais ao próprio poder atribuído ao cacique, posição que condensa tais referenciais, uma vez que a chefia deve representar um exemplo a todos os demais e articular os diferentes grupos que compõem a comunidade. Desta maneira, a moralidade, marcada espacial e temporalmente, regula a própria composição da coletividade, enquanto parentagens e famílias vivendo em conjunto, e define possibilidades de oposição quando é preciso redefinir alteridades. Palavras-chave: Kaingang. Moralidade. Chefia. Terra indígena Apucarana RESPECT AND RECIPROCITY, REFERENCIAL ASPECTS OF KAINGANG MORALITY 1 Agradeço as sugestões de Miguel Carid Naveira a este texto. As críticas de Oscar Calavia Saez ainda rondarão o artigo. Que outras críticas sejam direcionadas apenas ao autor. 2 Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail para contato: [email protected]

description

a

Transcript of 20702-89172-2-PB

  • 146 RECEBIDO EM 17 DE MAIO DE 2014 E ACEITO EM 05 DE DEZEMBRO DE 2014.

    DOSSI ESTUDOS SOBRE AS SOCIEDADES J (KAINGANG E XOKLENG) NO SUL DO BRASIL

    DOI: 10.5433/2176-6665.2014v19n2p146

    RESPEITO E RECIPROCIDADE, REFERENCIAIS DA MORALIDADE

    KAINGANG1

    Lucas Cimbaluk2

    RESUMO Este artigo prope o conceito de moralidade para a anlise da sociabilidade kaingang como fundada na reciprocidade e no respeito. Alm da generosidade e da troca, a lei interna um elemento retrico e prtico a propor formas de comportamento vistas como necessrias para evitar a baguna e garantir o respeito entre as famlias, condenando-se os erros. Reciprocidade e respeito so defendidos neste trabalho como elementos fundamentais ao prprio poder atribudo ao cacique, posio que condensa tais referenciais, uma vez que a chefia deve representar um exemplo a todos os demais e articular os diferentes grupos que compem a comunidade. Desta maneira, a moralidade, marcada espacial e temporalmente, regula a prpria composio da coletividade, enquanto parentagens e famlias vivendo em conjunto, e define possibilidades de oposio quando preciso redefinir alteridades.

    Palavras-chave: Kaingang. Moralidade. Chefia. Terra indgena Apucarana

    RESPECT AND RECIPROCITY, REFERENCIAL ASPECTS OF KAINGANG MORALITY

    1 Agradeo as sugestes de Miguel Carid Naveira a este texto. As crticas de Oscar Calavia Saez ainda rondaro o artigo. Que outras crticas sejam direcionadas apenas ao autor. 2 Doutorando do Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail para contato: [email protected]

  • RESPEITO E RECIPROCIDADE, REFERENCIAIS DA MORALIDADE KAINGANG L. CIMBALUK 147

    ABSTRACT This article proposes the concept of morality to the analysis of the kaingang sociability as grounded in reciprocity and respect. Beyond generosity and reciprocation, the internal law is a rhetorical and practical element which indicates ways of behavior seen as necessaries to avoid misbehavior and ensure the respect between the families, with the condemnation of the faults. Reciprocity and respect are also proposed here as root elements to the caciques power. The chief position represents the referential example to all the others, and he articulates the different groups that compose the community. So, morality, with a spatial and temporal mark, regulates the composition of the collectivity, as parentagens and families living together, and defines possibilities of opposition when becomes necessary to redefine alterities.

    Keywords: Kaingang. Morality. Leadership. Apucarana indiginous land

    INTRODUO ste artigo tem como base a dissertao de mestrado intitulada A Criao da Aldeia gua Branca na Terra Indgena Kaingang Apucaraninha: poltica interna, moralidade e cultura (CIMBALUK, 2013), desenvolvida a partir de

    trabalho de campo realizado entre maro e maio de 2012, na Terra Indgena Apucarana. Durante este perodo pude acompanhar discusses nesta comunidade sobre a criao de uma nova aldeia que punha em xeque a unidade da chefia da Terra Indgena (TI). A constituio da nova aldeia implicava a nomeao de um cacique independente, algo incomum para os kaingang que tendem a identificar a unidade territorial da Terra Indgena a uma unidade poltica centrada em um cacique. A TI Apucarana tem aproximadamente 1500 habitantes em um territrio de pouco mais de 5,5 mil hectares, no norte do Estado do Paran, a cerca de 80 km de Londrina. A nova aldeia, denominada gua Branca, tinha ento em torno de 300 habitantes, sendo um movimento considervel de oposio chefia estabelecida na aldeia Sede, e s duas outras aldeias, Barreiro e Serrinha, que integravam o grupo poltico da Sede com representantes do cacique desta.

    Sendo conhecidos os casos de expulso de grupos faccionais opositores de terras indgenas quando h conflitos, a manuteno de um grupo opositor no mesmo territrio implicava uma situao tensa. Isto me levou a trabalhar na anlise de questes que culminaram na criao desta aldeia, especialmente focalizando os discursos que se faziam contra e a favor de sua criao. Neste ponto eram notveis questes relacionadas moralidade, com discursos que vinculavam

    E

  • 148 MEDIAES, LONDRINA, V. 19 N. 2, P. 146-163, JUL./DEZ. 2014

    diretamente o erro moral do cacique anterior sua destituio. Tambm a moralidade era levantada como elemento a legitimar e indicar diferenas da nova aldeia, onde seria garantida uma outra lei, onde estava garantido o respeito. Pela anlise deste contexto, portanto, pretendo aqui indicar de que forma o que chamo de moralidade, com os pilares da reciprocidade e do respeito, fundamental constituio e entendimento de um coletivo kaingang enquanto tal. Procurarei primeiramente caracterizar as formas de reciprocidade e sua relao com a constituio da parentagem e dos ndios puros, passando ento para a questo do respeito e da importncia da lei, indicando dois mbitos do que seria a moralidade kaingang. Finalmente, trago o contexto da formao da nova aldeia e sua diferenciao defendida com base nestes aspectos, apontado para a importncia da moralidade nos processos transformativos pelos que os kaingang tm passado.

    Este trabalho possui uma clara limitao temporal de contato com o grupo e bastante relacionado ao discurso, portanto, opto por citar falas que condensam a anlise proposta. Estas falas, a no ser quando h indicao contrria, so de um ndio kaingang de cerca de 55 anos, ento morador da aldeia Sede e com uma posio de liderana nesta aldeia.

    RECIPROCIDADE E PARENTAGEM

    Ns somos assim, se eu precisar do [Fulano], ele arruma pra mim. No que nem vocs tambm. Vocs que so branco, mais separado. E ns no, ns somos puro, ns somos tudo parentagem, tudo parentagem. Se ele precisar de mim eu arrumo pra ele. Ento, como eu sou bem civilizado, tem outro, tem um pobre, tem um que no tem, ns arrumamos pra ele. E ns somos assim. Agora vocs no, vocs quando eu precisar, vocs no arrumam nem uma colher de acar nem de sal pra mim.

    A parentagem uma categoria nativa j identificada por Fernandes

    (2003). Este autor a caracteriza como uma unidade social que representaria a conjuno de diversos grupos domsticos ao redor dos troncos velhos, ou seja, aqueles idosos reconhecidos como intimamente relacionados histria local da comunidade. A parentagem seria evidenciada, por exemplo, em trabalhos de ajudrio em torno das atividades produtivas. Tambm teria importncia fundamental quando de disputas faccionais, um trao caracterstico entre os kaingang, uma vez que uma comunidade seria formada por diversas parentagens e a posio de chefia estaria entre elas, como prope Almeida (2004).

  • RESPEITO E RECIPROCIDADE, REFERENCIAIS DA MORALIDADE KAINGANG L. CIMBALUK 149

    Na TI Apucarana poderamos ver tambm este referencial da parentagem, ainda que no seja necessariamente centrada nos velhos, e tenha uma constituio fluida e com outras formas de sociabilidade, tanto atravs do trabalho como em atividades recreativas, entrecruzadas com parentesco. Na fala acima, temos a vinculao entre a parentagem e a ajuda mtua, relacionando, da mesma forma, a caracterizao deles enquanto ndios puros e civilizados, de maneira mais generalizada, portanto, pela comparao aos brancos. Destaque-se aqui que a ajuda mtua e a reciprocidade, exemplificada pelos momentos de maior necessidade dos parentes, que marca a civilidade. Ela contraposta ao comportamento do branco, que tende a guardar tudo para si e ser mais separado. O estar junto, em troca, portanto, um grande diferenciador indgena, caracterstico do ndio puro.

    Tal caracterstica implica na prpria residncia, pois enquanto a reciprocidade mantm os ndios prximos, mesmo quando alguns deles tm mais estudo ou quando saem da aldeia temporariamente para venda de artesanato ou trabalho na cidade, a no reciprocidade dos brancos permite afastamento entre si, entre os parentes, muitas vezes de forma permanente.

    O uso da categoria civilizados como auto caracterizao indgena estudado por Peter Gow (1991, 2001, 2003) em contextos amaznicos. Este autor trabalha com a noo de sistemas de transformaes nos quais haveria uma distinta concepo de histria, implicando em permanente mudana a partir da relao com o Outro. Existiria, a partir disso, a identificao de certos referenciais destas transformaes que, em diferentes nveis de apropriao, permitem um posicionamento da comunidade frente a outras, em um processo contnuo e sem ponto de chegada de aproximao do branco, sem, evidentemente, deixar de ser indgena. Assim, por exemplo, marcadores como uso de roupas, presena de escola, habilidade de leitura e escrita nas comunidades marcam o carter civilizador, sendo este valorizado inclusive contra a possibilidade de escravizao como ocorrida no passado. Mesmo quando h uma identificao maior da comunidade com a cidade, esta tomada por redes de parentesco, marcadas por sua construo e manuteno atravs da reciprocidade, na qual a prpria construo da pessoa advm das relaes de afeto, cuidado e reciprocidade. O referencial branco sempre se mantm como potencialidade a partir da qual se torna possvel a manuteno do sistema de transformaes.

    No caso kaingang estudado, interessante notar a viso de que a civilidade indgena oposta do branco. Vemos a positividade pela identificao enquanto indgena (ndio puro), ligada ao parentesco e reciprocidade, em oposio ao

  • 150 MEDIAES, LONDRINA, V. 19 N. 2, P. 146-163, JUL./DEZ. 2014

    branco, caracterizado pelo egosmo. Os bens dos brancos so vistos como necessrios e desejados, mas o lucro comercial ou mesmo a produo em larga escala podem indicar um embranquecimento indesejado, j que iriam contra a troca e o auxlio mtuo, caractersticos do indgena. A diferena se localiza na dimenso tica e afetiva, portanto, no necessariamente na acumulao de objetos em si. Podemos tomar o referencial da reciprocidade aqui como forma de indicar o processo de consanguinizao, atravs de formas distintas de sociabilidade, reforando, portanto, os vnculos da parentagem como caracterizada.

    Este referencial, alm disso, implica em uma diferenciao entre os ndios puros e os mestios, considerados muitas vezes como mais brabos. Neste sentido, em princpio, teriam uma restrio da consanguinizao por substncia (sangue) que implica em seu comportamento agressivo e que no seria condizente ou compatvel com a moralidade dos ndios puros. Por isso, no plano do discurso, os mestios muitas vezes so identificados genrica e enfaticamente com os pontos vistos como problemticos nas aldeias, como os que introduzem as bagunas, ou seja, os comportamentos moralmente reprovveis, principalmente no que tange sexualidade. No entanto, em casos efetivos e no cotidiano, normalmente as relaes so amistosas entre ndios puros e mestios e estes so autorizados a morarem na TI. H casos de mestios diretamente ligados chefia ou assumindo o cargo de cacique, ainda que nestas situaes tenha havido rompimento com os parentes brancos.

    Vemos, portanto, que a moralidade, especialmente no que se refere reciprocidade fundamental definio dos ndios puros, implicando na possibilidade de manuteno da co-residncia. Podemos ver nestes referenciais, um ideal de convivncia enquanto constituidora do prprio coletivo, referindo-nos ao conceito de conviviality, proposto por Joana Overing e Passes (2000) ao estudarem povos amerndios. Segundo eles, tal conceito seria algo prximo ao conceito latino de convivir. Esta dimenso da socialidade se daria no contexto cotidiano, no cuidado, no afeto, nos sentimentos, nas relaes de mutualidade e generosidade, nas que no teria lugar a predao ontolgica. No mbito da conviviality, seria destacado o ideal de viver bem e sentimentos morais relativos ao ntimo e ao pessoal, ao espao harmonioso de relaes, em uma esttica caracterstica e prezada. Este referencial aqui tambm importante ao permitir a superao da diferena de sangue imposta entre ndios e mestios. Contudo, gostaria de diferenciar no mbito da moralidade outro aspecto para a possibilidade da convivncia.

  • RESPEITO E RECIPROCIDADE, REFERENCIAIS DA MORALIDADE KAINGANG L. CIMBALUK 151

    RESPEITO, LEI INTERNA, E ERRO Tem os mais novos, que j entendem essa lei que est acontecendo agora. Porque cada ano tem lei. Ento esses novos j esto cumprindo essa lei nova. No sabem o que aconteceu antes quando eu me criei. [...] Lei nova assim, porque muda o sistema. Por exemplo, eu vou sair daqui agora, vou mudar pra outro lugar. Assim que muda a ideia. Porque aqui pra mim mais apertado. Eu mudo a cerca pra c, ou no. Ento eu vou mudar pra l. Ento assim que as coisas mudam. esse que esses rapago agora esto seguindo, uma coisa que nova agora. lei nova agora. Porque quando minha famlia nascer, quando nascer... criou, j tem outra lei. Tem outro pensamento. Assim que ns somos tambm, que nem vocs. s vezes daqui uns dias ns vamos arrancar, tirar esses fazendeiros aumentando nossa rea indgena agora, daqui uns dias. Ento assim que estou falando pra voc, muda as coisas.

    Esta fala indica que o conhecimento e a maneira de se viver em cada tempo so diferentes e referentes a uma forma especfica da lei, sistema, que muda de acordo com a mudana de pensamento, relativa s condies prticas da vida em um determinado tempo e em determinado espao. Se hoje esto apertados em um local, pode-se mudar a cerca de um lugar para outro, ou ento conseguir mais terra em breve e isso ir alterar a forma de pensamento e de organizao, afetando as relaes entre as pessoas e assim, afetando a lei. O conhecimento dos velhos diz respeito ao passado, a uma lei antiga, que no necessariamente seguida e certamente no plenamente conhecida diretamente pelos mais novos. Assim, os mais velhos aconselham com base em sua experincia, mas a lei se transforma, conforme as condies atuais, em um estilo de vida distinto, relativo a uma lei nova.

    As transformaes do espao kaingang, em especial as ocorridas com a chegada dos brancos, so bastante significativas neste sentido, demarcando distintos tempos. Tommasino (1995) distingue em particular duas temporalidades, referenciando-as como o tempo antigo, vsy, ou wxi, contrastado ao tempo atual, uri. O wxi costuma ser visto como perfeito, e o uri imperfeito. Como fala a autora, um e outro no so separveis e se constroem mutuamente. A temporalidade relacionada pela autora a outra espacialidade, em que alm de um territrio mais amplo, de ocupao mais dispersa, marcada pela presena dos pinhais, muitos palmitos e perobas, a mata, os rios repletos de peixe, bem como o preparo de comidas tradicionais, ainda que muitas destas

  • 152 MEDIAES, LONDRINA, V. 19 N. 2, P. 146-163, JUL./DEZ. 2014

    continuem sendo feitas atualmente. A transformao do espao no tempo antigo histrica, relacionada aos chefes de posto e suas aes, tanto de realocao dos ndios, sempre procurando concentr-los em aldeias fixas, como de explorao dos recursos materiais da TI.

    Assim, a lei se transformou no decorrer dos tempos vividos, desde antes do contato com os brancos, depois com a poltica indigenista e hoje com os processos de autonomia poltica. Estes tempos tambm envolvem a poltica dentro da comunidade, com a funo do cacicado. A lei se refere, portanto, a uma forma de vida e conhecimentos em um dado momento, de acordo com condies fsicas e tambm polticas. De certo modo, a lei, o sistema, o pensamento, marcam a prpria diferena entre os distintos tempos, espaos e polticas, podendo incidir sobre a prpria considerao do ser ndio (kaingang) em um espao-tempo.

    Esta considerao se refora ao tratar comparativamente grupos J, como faz Souza (2002), que indica o respeito e a vergonha como uma das formas de estabelecimento de relaes constitutivas de alteridade entre estes grupos, produzindo separao e ao mesmo tempo a disposio de conduzir as relaes de maneira apropriada, conjugando alteridade e possibilidade de viver em conjunto. Neste sentido, podemos novamente evocar o estudo de Gow (2001), especialmente em relao a suas consideraes sobre a busca do viver bem e as sucessivas transformaes do mesmo.

    Com a concepo de lei, podemos tambm destacar o que seria o sistema jurdico Kaingang, a partir das formas existentes de controle sobre os comportamentos, que estar intimamente relacionado s formas compreendidas da moralidade em um dado perodo. A busca do viver bem indicada entre os Kaingang por Aquino (2008), justamente a partir do referencial da lei, dividindo esta em jykr, traduzido como o bom pensamento; e em kanhgg h kar (bom para todos ou bem viver), que juntos embasariam a vergonha (ma) e o respeito (tu h), estabelecendo regras de etiqueta. Assim, a busca deste bem viver est em transformao e pode ser vista como um dos referenciais que embasam a moralidade em um dado perodo e em um espao.

    Este bem viver, no entanto, implica na formulao do que Ramos (2008) chama de sistema jurdico dos Kaingang do Tibagi. Em Kaingang ela identifica a categoria jykr ou vnh jykr, com o sentido de lei, cultura, sistema ou costume, sendo o qualificativo vnh, conforme o dicionrio editado pelo Summer Institute of Linguistics (DICIONRIO..., 1981), significando de algum ou de si mesmo, e vnh-jykr, costume, pensamento. Por outro lado, Ramos identifica ki ha han ke como as regras morais, ou fazer a coisa certa. Seriam os

  • RESPEITO E RECIPROCIDADE, REFERENCIAIS DA MORALIDADE KAINGANG L. CIMBALUK 153

    comportamentos ideais, referentes sexualidade, aos parentes, aos chefes, aos co-cidados, etc. Sua violao reprovvel, mas tem consequncia penal apenas se publicamente questionados ou denunciados. J Jykr seriam regras menos flexveis e comandos gerais impessoais, ordenamento determinado mitologicamente ou por agente legtimo, indgena ou no indgena, do que fazer ou no fazer. Estas ltimas regras seriam arbitradas pelo cacique e lideranas, sendo sua transgresso erro grave.

    Ramos destaca a mudana nas formas do sistema jurdico, sendo que muito do que j foi lei, hoje no mais seguido, permanecendo apenas como referencial. Diria que a lei constitui um conjunto de referenciais que se atualizam constantemente ao se colocar em prtica. um referencial existente, mas que se elabora e se transforma, ou mesmo se efetiva como lei enquanto for posto em prtica, situacionalmente, constituindo as formas do viver e do conviver na comunidade.

    De forma prtica, podemos ver mais facilmente isso pela maneira em que as transgresses, chamadas de erros, vm a pblico e so tratadas. Neste caso, atuam lideranas, no passado denominadas de polcia, e atualmente denominadas de lideranas na comunidade, com a funo especfica de identificar culpados e efetuar prises em cadeia construda na poca do trabalho indigenista do SPI.

    Estas lideranas, polcias, no tm, em princpio, a autoridade de trazer a pblico juridicamente a questo a no ser que esta seja notificada, que alguma das partes em conflito exija avaliao por parte da liderana. Assim, a autoridade da liderana no est sobre a autoridade do grupo familiar ou domstico. atribuda uma autoridade moral aos chefes das famlias nucleares, os quais devem reagir ou no conforme a avaliao da atitude dos filhos. No entanto, a no repreenso dos mesmos, at por no considerar a conduta dos mesmos como erro, poder tornar a prpria famlia como alvo de crticas na aldeia, por ir contra os modelos de convivncia e pensamento. A forma de avaliao e penalizao pelo erro depender de diversos fatores, em especial pela qualidade das relaes entre os envolvidos. Da mesma forma, a opo de se levar ou no o caso para a liderana pode envolver tais fatores, avaliando-se os fatos e as possveis solues que o cacique dar ou no, com implicaes, seja morais ou de status, ao prprio delator, dentro de sua rede de relaes e uma tica pessoal de comportamento relacionada.

    Vemos, portanto, que se a moralidade relativa a uma reciprocidade, ela tambm relativa ao respeito. Este, enquanto entendido como uma forma de

  • 154 MEDIAES, LONDRINA, V. 19 N. 2, P. 146-163, JUL./DEZ. 2014

    pensamento, de costume, seria garantido pela lei indgena, que mais do que um cdigo, um referencial abstrato e relacional de comportamento no interior da comunidade, no qual a chefia cumpre importante papel.

    CHEFIA E MORALIDADE

    Porque o cacique est ali pra orientar todo mundo. At os homens, mulheres, as moas, os moos, est pra orientar as famlias da comunidade indgena. Ento assim eu gosto de ter cacique aqui. Se no tiver cacique baguna tudo. Baguna porque ningum respeitaria a famlia dos outros. Mas como que o cacique garante que se respeite a famlia dos outros? porque o cacique, ele fala que tem que respeitar a famlia. Famlia, os parente, que ns moramos aqui junto.

    O trabalho do cacique e das lideranas, mais do que julgamentos, aplicaes de pena e prises, diz respeito acima de tudo a aconselhamento e mediao de conflitos que surjam na comunidade, especialmente na medida em que estes no consigam ser resolvidos no mbito do grupo familiar ou domstico, sendo ento o cacique e demais lideranas demandadas a atuar, sob a autoridade do grupo familiar. Se as lideranas polcia prendem alguem, o cacique alm de determinar a pena para os casos de erros menos graves, aconselha os presos antes de serem soltos, para que no voltem a errar novamente. Estas funes so razes colocadas para que tanto o cacique como as lideranas tenham necessariamente uma postura correta, pois se eles cometem os mesmos erros que os presos no teriam como prender ou aconselhar. As lideranas no podem ser pessoas recm separadas e devem dar o exemplo. Como cita Ramos (2008), o cacique deve ser aquele que anda certo na frente dos outros (g jo tg han).

    Desta forma, a moralidade tem tambm peso constituinte na poltica. Isto tanto pela agncia do cacique e das lideranas em casos acontecidos, devendo ter a capacidade de resolv-los satisfatoriamente, como por sua prpria conduta pessoal. Isso relativo prpria funo do cacique perante a comunidade. Destaca-se que o cacique, ou melhor, a prpria existncia do cargo e a fala do cacique, que garante o respeito, em especial s outras famlias. Como se, uma vez destitudo o cargo de cacique, a relao entre as famlias no tivesse mais garantia de possibilidade de harmonizao, baguna tudo. Seria, ento, cada grupo de parentes por si.

  • RESPEITO E RECIPROCIDADE, REFERENCIAIS DA MORALIDADE KAINGANG L. CIMBALUK 155

    Devemos ressaltar tambm que no que tange funo do cacique, a reciprocidade seria fundada na necessidade da generosidade, da ddiva do chefe ao grupo, seguindo neste ponto o modelo de chefia discutido por Clastres (2003). O chefe kaingang tem a obrigao moral de dar. Neste caso, como os recursos muitas vezes so exguos nas Terras Indgenas, sua ddiva ser dependente da angariao de recursos do mundo dos brancos, seja diretamente ou atravs de projetos, preferencialmente centrados na chefia, ligando, sempre que possvel, a fartura de trabalho e de alimentos com o cacique, alm de favorecer a assimilao de bens manufaturados no esquema de apropriao de exterioridades (GOW, 1991; 2001; 2003; GORDON, 2006). Vemos esta funo tambm quando da realizao de festas, com distribuio de alimentos, alm de bailes, rodeios, campeonatos de futebol.

    Sendo assim, a moralidade, enquanto respeito e reciprocidade, fundamento da prpria chefia. Se por um lado esta necessria para garantia da convivialidade entre diferentes parentagens, ela representa troca para as diferentes parentagens, servido como modelo moral da convivncia.

    RESPEITO E RECIPROCIDADE COMO ELEMENTOS DE MORALIDADE Para pensar o que significa esta moralidade, resgato dois outros contextos

    em que autores viram nela modelos explicativos da ao e sociabilidade. Ao estudar o contexto das Pessoas do Centro (People of the Centre) na amaznia colombiana, Sulkin (2012) utiliza o referencial da moralidade como forma de designar as percepes avaliativas, reaes e entendimentos sobre subjetividades, aes, pessoas e formas de vida, como sendo admirveis, desprezveis, detestveis ou distintas. A moralidade seria associada a sensibilidades e julgamentos baseados em prticas simblicas e, portanto, abrange a capacidade reflexiva e avaliativa do eu, reconhecendo a qualidade intrinsecamente social da pessoa. Isto , considera-se o indivduo como produto das relaes sociais, e ao mesmo tempo autorreflexivo, operando com os smbolos mais ou menos objetificados ou institucionalizados, que sero interpretados e transformados. No caso das Pessoas do Centro, estes referenciais eram em grande medida dependentes de determinadas substncias relevantes naquele contexto, articulados a prticas, entendimentos e relaes de grupos, com os quais se constitua a pessoa moral.

    Por seu turno, Mrnio Teixeira-Pinto (1997) ao estudar os Arara, no vale do rio Iriri, no baixo Xingu, observa dois referenciais de moralidade, entendidos ao nvel dos valores como imperativos e das normas de atitude. Por um lado, uma

  • 156 MEDIAES, LONDRINA, V. 19 N. 2, P. 146-163, JUL./DEZ. 2014

    relao predatria fundante nas relaes estabelecidas no cosmos, caracterizada pelo egosmo e a violncia. Por outro lado, relaes de solidariedade no seio da sociedade Arara, com um sistema de ddivas e rituais, sempre em elaborao. A partir destes valores gerais, haveria um nvel de conduta, a tica, como princpio de ao, dividido ento entre uma sociabilidade primria, na que a regra da mutualidade imperativa dentro de determinados tipos de relaes especficas; e em uma sociabilidade secundria, na que h maior lugar espontaneidade nas relaes de solidariedade. Esta moralidade e tica seriam imperativos para afastar o egosmo e a violncia reinantes no cosmos.

    Se tomarmos a moralidade como estes referenciais mais abstratos de valores que permitem o estabelecimento e a atualizao da solidariedade, como coloca Teixeira-Pinto, no devemos perder de vista, como coloca Lodoo Sulkin, que apesar de valores serem simbolizados a partir de elementos mais ou menos objetificados, eles so tambm dependentes da reflexividade dos sujeitos e do mbito das relaes sociais especficas.

    Vimos que a reciprocidade entre os kaingang seria um valor importante a definir relaes entre parentes e entre a parentagem. Se este valor tem alto apreo na comunidade, a sua negao tem como consequncia um afastamento social daqueles que assim o fazem. Ou seja, negar a reciprocidade negar a sociabilidade, bem como as formas de consanguinizao. No entanto, em princpio, esta negao apesar de implicar afastamentos ou reposicionamentos dentro de parentagens no implica necessariamente em ruptura da corresidncia, situao que ocorre ou a partir de disputas faccionais ou individualmente quando algum rompe princpios que me parecem mais fundamentais, ligados ao respeito. Este ltimo seria importante para o que Teixeira-Pinto chama de sociabilidade primria. Sua garantia no seria exatamente a ajuda mtua, mas sim a lei indgena.

    Por outro lado, porm, se considerarmos que as disputas faccionais que implicam em violncias e expulses (FERNANDES, 2006; RAMOS, 2008) so diretamente influenciadas pelas relaes de parentagem, vemos que da mesma forma relaes de reciprocidade mais prximas, eletivas e no fixas, podem tambm se tornar fundamentais para a corresidncia como grau necessrio de sociabilidade elementar. No entanto, destaca-se que neste caso, no significa o desejo de no relao, mas de relao constitutiva de oposio. Ou seja, mesmo o plano da convivncia aqui no necessariamente ser sempre harmonioso, ainda que por vezes discursivamente se construa assim, mas ter outros includos na forma de parentagens (FERNANDES, 2003), que podem vir a ser exteriorizados.

  • RESPEITO E RECIPROCIDADE, REFERENCIAIS DA MORALIDADE KAINGANG L. CIMBALUK 157

    Para tornar mais clara esta relao constituinte, vejamos ento como tais avaliaes morais interferem na poltica, na avaliao de um cacique e sua poltica em um espao-tempo, e podem causar rupturas e proposta de um novo ou retomada de um antigo jeito de viver, em evidente oposio poltica.

    MORALIDADE E INDIGENIZAES POSSVEIS Quando estive em campo, no incio de 2012, ainda se falava muito sobre a

    criao de uma nova aldeia na TI Apucarana, ocorrida em meados do ano anterior. Esta aldeia, denominada gua Branca, foi criada em oposio direta ao grupo poltico do cacique da Sede. Coletei discursos bastante crticos ao cacique deposto em 2011. Estas crticas diziam respeito, em primeiro lugar, desconfiana sobre o ento cacique por apropriao indevida dos recursos financeiros pagos comunidade, decorrentes da indenizao pela construo de uma usina hidreltrica de pequeno porte no interior da TI, na dcada de 1940. Esta indenizao, conseguida em 2006, a partir de processo iniciado com manifestaes da comunidade no fim da dcada de 1990, foi repartida, sendo que apenas 20% de seu total foi repassado diretamente comunidade, e 80% restante fora destinado a projetos a serem propostos a partir de estudos interdisciplinares. No entanto, at 2012 tais projetos no tinham sido implementados.

    Este moroso processo gerou descontentamento na comunidade e teve implicaes para a chefia, especialmente no que diz respeito sua funo de generosidade e reciprocidade. Neste caso, tendo conseguido o recurso atravs de esforo coletivo da comunidade, mediante acampamento junto casa de mquina da usina e manifestao guerreira em reunio com o diretor da empresa de energia, o cacique teria que reverter comunidade este valor, distribuindo a fartura entre todos. Este contexto remete situao estudada por Gordon (2006) entre os Xikrin Mebngkre, pelo uso da agncia guerreira e predatria sobre representantes da Companhia Vale do Rio Doce, que realizava atividades de minerao em rea adjacente Terra Indgena. Naquele caso, a predao sobre os brancos fornecia subsdios diferenciao e ao mesmo tempo generosidade do chefe. No caso estudado aqui, aps a primeira fase de distribuio direta da indenizao, iniciaram-se os questionamentos quanto possvel apropriao indevida pela chefia do recurso restante. Mesmo com projetos emergenciais implementados e outras aes realizadas para acalmar os ndios, como festas e campeonatos de futebol, a existncia deste recurso em nome da comunidade sem poder ser utilizado colocava o cacique em uma tensa posio.

  • 158 MEDIAES, LONDRINA, V. 19 N. 2, P. 146-163, JUL./DEZ. 2014

    Em 2002, o ento cacique, que estivera nessa posio desde o incio das manifestaes, foi deposto, sendo a questo do cercamento do reservatrio da usina o estopim de sua destituio. O cacique que o sucedeu sofreu algumas tentativas de golpe pelo grupo que o antecedera, mas pde manter-se por muitos anos, apesar da questo da indenizao. Acabou desistindo da posio, porm, em 2011. Ele ligava a oposio sua chefia e a criao da nova aldeia diretamente ao problema gerado pelo impedimento da generosidade do chefe referente indenizao. No entanto, o movimento que causara sua renncia tambm estava relacionado ao outro aspecto da moralidade aqui proposto, partindo da viso de alguns outros interlocutores. Vimos que sobre o cacique se centraliza a viso de uma ordem na comunidade, e ele deve ser aquele que deve dar o exemplo, devendo possuir uma determinada tica pessoal, que envolve a no ingesto de bebidas alcolicas, ou ao menos sua restrio a determinados contextos, bem como restrio sexual, devendo ser homens casados e respeitadores da instituio familiar.

    Neste ltimo ponto, podemos destacar que a poliginia, instituio presente em vrios grupos amerndios, seria, segundo Clastres (2003), restrita a poucos homens e privilgio do chefe. Estaria relacionada condio de generosidade de chefe e troca com os grupos dentro da comunidade. Dentre os kaingang, a poliginia uma instituio presente poca do contato, horrorizando missionrios e sendo posteriormente suprimida. Ela indicaria uma outra esfera de diferenciao do chefe enquanto tal, com a sua funo privilegiada de troca com os demais grupos. Hoje regulada moralmente, sendo mesmo o adultrio eventual considerado erro, em especial quando se trata de lideranas. A fala de outra liderana, de cerca de 40 anos, comentando abstratamente sua prpria situao passada, indica que tal questo bastante problemtica para a chefia atualmente:

    Tem alguns cacique que quando... quando um cara, se ele se ergue mais um pouco... por exemplo, nas lideranas, sempre nas lideranas, quando o cara est trabalhando, de repente se ergue mais um pouco, como liderana, da tem uns pessoal que se envolvem, a tem aqueles problemas, com mulher ali, a, aquele ali no pode ser mais liderana da comunidade. [...] Da a comunidade no aceita aquele. Da como a liderana tem que ser certo e ter uma palavra s, se no mais pra frente ele no se... no vai saber como aconselhar aquela comunidade dele.

  • RESPEITO E RECIPROCIDADE, REFERENCIAIS DA MORALIDADE KAINGANG L. CIMBALUK 159

    Indica-se aqui que a posio de chefia implica na possibilidade de algum privilgio sexual, todavia, este mesmo privilgio condenado moralmente, pois ao se tratar da chefia, o caso ganha uma dimenso poltica ampla e mais imediata. Alguns relatos indicavam que justamente este problema teria causado o questionamento da posio deste ltimo cacique. Com esta acusao, o grupo do ex-cacique opositor, que j tentara previamente destitu-lo, ganhou fora e causou sua renncia. No entanto, a testemunha no se manifestou quando do questionamento feito publicamente a este cacique, deixando dvida sobre a veracidade da acusao. Desta forma, a renncia se deu como forma de reconciliao, propondo eleio em que este cacique apontou como candidato seu vice. Este ltimo ganhou a eleio, mantendo-se o mesmo grupo poltico no poder. O grupo perdedor ento resolveu retirar-se, criando a nova aldeia, no interior da atual TI, mas com um cacique proclamando-se independente, contrapondo-se assim unidade poltico-territorial ento estabelecida.

    O discurso e algumas prticas na nova aldeia indicam que para alm do erro da antiga chefia, tambm se avaliava que esta no estava garantindo a lei na aldeia como um todo, sendo permissiva quanto ao consumo e venda de bebidas alcolicas e ao comportamento sexual, especialmente dos jovens, quanto presena e circulao de brancos, e residncia de mestios. Todos fatores teriam alguma restrio na nova aldeia, que teria, em conseqncia, outra lei.

    A legitimao da gua Branca era colocada sobre a moralidade tradicional, reforada por fazer valer a lei, pelo fato de s haverem ali ndios puros, que conversam em kaingang, por ali estarem sempre conversando com a comunidade toda, atravs de reunies nas quais se faziam as escolhas e no atravs de eleies. Ali, havendo erro eles amarrariam no tronco, forma tida como tradicional de punio (TOMMASINO, 1995, p. 179), apesar de ser criticada por ndios da Sede, por ser considerada cruel. Houve tambm proibio de circulao de motos noite, fato muito relacionado s bagunas dos jovens noite, restrio circulao de brancos e proibio da venda de bebidas alcolicas.

    Em um contexto bastante distinto, Aquino (2008) tambm chama a ateno para a instabilidade poltica em grupos kaingang de TIs do Rio Grande do Sul, a partir de atitudes do cacique vistas como reprovveis, e tambm das formas de se valorizar a lei e o respeito, ocasionando, na aldeia Lomba do Pinheiro, ruptura entre formas de liderana, uma tradicional, valorizando a lei dos ndios puros; e outra valorizando a democracia. A prpria diviso faccional transformada em relao a estes critrios. Algumas lideranas enxergavam como principal soluo a constituio de uma aldeia onde s se falasse a lngua

  • 160 MEDIAES, LONDRINA, V. 19 N. 2, P. 146-163, JUL./DEZ. 2014

    kaingang, buscando tambm simbolizar formas de ancestralidade e tradicionalidade vinculadas ao espao.

    possvel sugerir, portanto, que as formas da moralidade, especialmente nas dimenses do respeito e da reciprocidade so fundamentos que se colocam sobre o cacique, por representarem o ideal da prpria vida em conjunto de cada aldeia. Ao mesmo tempo, atravs desses referenciais que o cacique pode atuar sobre a comunidade, angariando recursos em seu nome, distribuindo, aconselhando e punindo. Assim, o poder coercitivo do cacique no o isenta da considerao moral e das relaes sociais necessrias sua manuteno e sua atuao.

    As formas de reforo moral parecem surgir com nfase quando necessrio se contrapor a processos que podem ser vistos como de embranquecimento. Tal processo visto no apenas em seu aspecto positivo, no sentido de um certo entendimento de civilidade e de potncia criativa ou transformativa, mas tambm em aspectos considerados negativos, que causam afastamento do ideal de convivncia kaingang presente, tornando-se impotentes ou destrutivos pelo apagamento dos limites, levando a movimentos de recontraposio interna mais radical.

    Neste sentido, podemos lembrar novamente a situao analisada por Gordon (2006), entre os Xikrin. Para o autor, a chefia ali estaria vinculada capacidade diferencial de incorporar as relaes sociais externas, que condicionariam as relaes internas (diferenciao interna), e vice-versa. Os chefes seriam o ponto de vinculao ao outro, mas ao mesmo tempo tentariam conter, atravs de seu sacrifcio cerimonial, suas idas e vindas, a mudana de perspectiva definitiva. Os chefes, porm, eram criticados por serem quase kub (brancos), quase no-parentes, justamente pela predao acentuada neles sobre os brancos, se kubenizando no processo de predao que implica no devir outro, que se por um lado seria fundamental ao ser mebngkre sempre traria o risco de no se saber mais onde esto os limites. A hiptese para o ponto de enraizamento do ns seria dada ento na produo dos corpos semelhantes, na moralidade que atesta o reconhecimento mtuo de humanidade das pessoas que pretendem viver juntas.

    Aproximando-nos leitura de Gordon, podemos dizer que haveria aqui a viso de um embranquecimento das lideranas, com a transformao de sua moralidade e a transformao consequente da moralidade da aldeia (a partir da viso centralizada da chefia), especialmente a partir de contextos como da indenizao ou de luta por terra, implicando uma agncia guerreira predatria

  • RESPEITO E RECIPROCIDADE, REFERENCIAIS DA MORALIDADE KAINGANG L. CIMBALUK 161

    que leva incorporao de elementos do branco. Vemos, a partir da, movimentos com um discurso focado na moralizao das relaes e no retorno a uma situao de respeito entre as famlias. Seria, ento uma resposta diferente frente indefinio de fronteiras. Seria o reforo de outra transformao, que remete ao passado, aos ndios puros, lei antiga, relao entre liderana e comunidade de forma mais prxima, mas ao mesmo tempo mais rgida, ainda que nesta tambm os esforos predatrios sejam igualmente necessrios. Seriam estas formas de diferenciao interna dentro de um sistema de transformaes do viver bem (GOW, 2001), que permitem ou que se torna um meio para a prpria identificao do grupo enquanto indgena kaingang, construindo-se mutuamente em contraponto ao tentar a domesticao poltica do outro, e ao estabelecer formas de relao entre alteridades, tornando a convivncia possvel.

    Desta forma, a questo do respeito pode ser vista como tambm fundamental poltica. E estes fundamentos aplicados tambm sobre as oposies faccionais, fazem com que o cumprimento das funes do cacique de reciprocidade e da manuteno do respeito sejam essenciais e possam produzir experincias potencialmente distintas em relao moralidade e, consequentemente, vivncia em conjunto e em oposio.

    REFERNCIAS ALMEIDA, Ledson Kurtz. Anlise antropolgica das igrejas crists entre os kaingang: baseada na etnografia, na cosmologia e no dualismo. 2004. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianpolis, 2004.

    AQUINO, Alexandre Magno de. n ga uyg n tg (ns conquistamos nossas terras): os Kaingang no litoral do Rio Grande do Sul. 2008. Dissertao (Mestrado em Antropologia Social) - Universidade de Braslia, Braslia, 2008.

    CIMBALUK, Lucas. A criao da aldeia gua branca na terra indgena Kaingang Apucaraninha: poltica interna, moralidade e cultura. 2013. Dissertao (Mestrado em Antropologia Social) - Universidade Federal do Paran, Curitiba, 2013.

    CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado: pesquisas de antropologia poltica. So Paulo: Cosac&Naify, 2003.

  • 162 MEDIAES, LONDRINA, V. 19 N. 2, P. 146-163, JUL./DEZ. 2014

    DICIONARIO: kaingng-portugus, portugus-kaingng. Braslia: Summer Institute of Linguistics, 1981.

    FERNANDES, Ricardo Cid. O 15 e o 23: polticos e polticas Kaingang. Revista Campos, Curitiba, v. 7, n. 2, p.27-47, 2006.

    FERNANDES, Ricardo Cid. Poltica e parentesco entre os Kaingang. 2003. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Universidade de So Paulo, So Paulo, 2003.

    GORDON, Csar. Economia selvagem: ritual e mercadoria entre os ndios Xikrin-Mebngkre. So Paulo: Ed. UNESP, ISA; Rio de Janeiro: NUTI, 2006.

    GOW, Peter. Ex-Cocama: identidades em transformao na amaznia peruana. Mana, Rio de Janeiro, v. 9, n. 1, p. 57-79, 2003.

    GOW, Peter. An Amazonian myth and its history. Oxford: Oxford University Press, 2001.

    GOW, Peter. Of mixed blood: kinship and history in Peruvian Amazonia. Oxford: Oxford Clarendon Press, 1991.

    OVERING, Joanna; PASSES, Alan. introduction: conviviality and the opening up of amazonian anthropology. In: ______. The anthopology of love and anger: the aesthetics of conviviality in Native Amazonia. London; New York: Routledge, 2000. p. 1-30.

    RAMOS, Luciana Maria de Moura. Vnh Jykr e Ke H Han Ke: permanncia e mudana do sistema jurdico dos kaingang no Tibagi. 2008. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Instituto de Cincias Sociais, Universidade de Braslia, 2008.

    SOUZA, Marcela S. Coelho. O trao e o crculo: o conceito de parentesco entre os J e seus antroplogos. 2002. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro -UFRJ, Rio de Janeiro, 2002.

    SULKIN, Carlos David Lodoo. People of substance: an ethnography of morality in the Colombian Amazon. London: University of Toronto Press, 2012.

    TEIXEIRA-PINTO, Mrnio. IEIPARI Sacrifcio e vida social entre os ndios Arara. So Paulo: HUCITEC; ANPOCS; Curitiba: Editora da UFPR, 1997.

    TOMMASINO, Kimiye. A histria dos Kaingang da bacia do Tibagi: uma sociedade J Meridional em Movimento. 1995. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Universidade de So Paulo, 1995.

  • RESPEITO E RECIPROCIDADE, REFERENCIAIS DA MORALIDADE KAINGANG L. CIMBALUK 163