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    UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM GEOGRAFIA HUMANA

    DESENVOLVIMENTO ECONMICO E QUESTO NACIONAL NA ARGENTINA

    LUCAS DOS SANTOS FERREIRA

    So Paulo

    2014

  • 2

    UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM GEOGRAFIA HUMANA

    DESENVOLVIMENTO ECONMICO E QUESTO NACIONAL NA ARGENTINA

    LUCAS DOS SANTOS FERREIRA

    Dissertao de mestrado apresentada ao

    Programa de Ps-Graduao em Geografia

    Humana FFLCH/USP.

    Orientador: ARMEN MAMIGONIAN

    So Paulo

    2014

  • 3

    DESENVOLVIMENTO ECONMICO E QUESTO NACIONAL NA ARGENTINA

    LUCAS DOS SANTOS FERREIRA

    Esta dissertao foi julgada adequada para a obteno do Ttulo de Mestre em Geografia

    e aprovada em sua forma final pelo Programa de Ps-Graduao em Geografia Humana

    da Universidade de So Paulo.

    BANCA EXAMINADORA

    __________________________________________________

    PROF. DR. ARMEN MAMIGONIAN

    UNIVERSIDADE DE SO PAULO USP

    (ORIENTADOR)

    __________________________________________________

    PROF. DR. ELIZABETH FORTUNATO

    FACULDADES METROPOLITANAS UNIDAS FMU

    __________________________________________________

    PROF. DR. MARIA ADLIA APARECIDA DE SOUZA

    UNIVERSIDADE DE SO PAULO USP

    __________________________________________________

    PROF. DR. FRANCISCO CAPUANO SCARLATO

    UNIVERSIDADE DE SO PAULO USP

    (SUPLENTE)

    __________________________________________________

    PROF. DR. JOS MESSIAS BASTOS

    UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA UFSC

    (SUPLENTE)

    __________________________________________________

    PROF. DR. MARA MNICA ARROYO

    UNIVERSIDADE DE SO PAULO USP

    (SUPLENTE)

    APROVADA EM 03/07/2014

  • 4

    Dedico este trabalho ao amigo e mestre Armen

    Mamigonian, brilhante intelectual e ser humano de

    primeira grandeza.

  • 5

    AGRADECIMENTOS

    Ns sabemos:

    O dio contra a baixeza

    Tambm endurece os rostos!

    A clera contra a injustia

    Faz a voz ficar rouca!

    Infelizmente, ns,

    Que queramos preparar o caminho para a amizade,

    No pudemos ser, ns mesmos, bons amigos.

    Mas vocs, quando chegar o tempo

    Em que o homem seja amigo do homem,

    Pensem em ns

    Com um pouco de compreenso.

    Bertold Brecht

    Aos que vierem depois de ns

    Todo ser humano um complexo produto de seus convvios. Sem a menor

    sombra de dvidas devo minha formao como intelectual e ser humano a pessoas

    fantsticas, a quem gostaria de registrar a mais sincera gratido.

    minha famlia, que com muito esforo ofertou todas as condies necessrias

    aos estudos e qualificada insero no mercado de trabalho.

    companheira Giselli Ventura, que tem demonstrado um amor indispensvel

    em meio as mais rduas batalhas. Na medida em aceitamos nossos limites individuais se

    consolida a possibilidade de um belo e duradouro caminho futuro.

    A Armen Mamigonian, que muito me ensinou sobre o marxismo, a Amrica

    Latina e a vida em geral. Tenho certeza de que a relao mantida com o mestre uma

    das coisas que faro valer minha existncia no mundo.

    A Fbio Napoleo, cuja amizade infinitamente maior do que o mbito

    universitrio em que nos conhecemos. O mximo que posso fazer nestas linhas pedir

    desculpas por no ter palavras para expressar o gigantismo da gratido e do carinho que

    tenho pelo amigo.

  • 6

    Em meio crise moral do mundo ocidental que est deformando a universidade,

    indispensvel a existncia de pessoas como a madrinha Maria Graciana Vieira, que

    num misto de carinho e elevado rigor cientfico sintetiza melhor do que ningum o

    significado da palavra professora. Saiba que o convvio que tivemos no LABPLAN-

    UDESC iluminou o caminho de um menino que acabara de ingressar no ensino

    superior.

    Isa de Oliveira Rocha, pelo apoio que me ofertou assim que ingressei na

    universidade e pelo trabalho indispensvel existncia do LABPLAN-UDESC. Creio

    que todos que conviveram com sua pessoa saibam que o que est por baixo da

    blindagem germnica um corao bom e generoso.

    A Jos Messias Bastos, amigo que na hora da verdade no abandona a trincheira

    e enfrenta o combate. Conte comigo para o que der e vier!

    Aos professores Maria Adlia Aparecida de Souza (FFLCH-USP) e Francisco

    Capuano Scarlato (FFLCH-USP) por aceitarem o convite para participar das bancas de

    qualificao e defesa de mestrado, ofertando importantes contribuies para a melhoria

    do trabalho. Igualmente agradeo s professoras Elizabeth Fortunato (FMU) e Mara

    Mnica Arroyo (FFLCH-USP) por aceitarem realizar a avaliao final da dissertao.

    Aos professores Leda Paulani (FEA-USP), Marcos Aurlio da Silva (UFSC),

    Matthew M. Taylor (FFLCH-USP) e Wanderley Messias (FFLCH-USP) pelos

    ensinamentos de suas disciplinas de ps-graduao.

    s servidoras da FFLCH-USP Rosngela Garcez e Ana Pereira (Aninha) pela

    simpatia e apoio ofertados ao longo do perodo de mestrado.

    A Matias Daniel Petruf e seus pais Daniel Petruf e Cristina Gonzalez, com quem

    mantenho inquebrvel amizade desde a escola bsica. Foram tantos momentos

    divertidos que creio necessitariam um livro para contar.

    Aos companheiros do LABPLAN-UDESC Natan Dolejal, Gilson Leonel, Bruno

    Bergmann, Filipe Ramos, Helton Rosa, Leandro Vidal, Thais Baslio, Aurora Maria e

    Eduardo Micheff pela vivencia cotidiana que permitiu muitos aprendizados.

    Aos professores Ricardo Veado, Nadir Azibeiro, Marcos Herter, Lucia Ayala e

    Maria Paula Marimon, pelos ensinamentos compartilhados no curso de Geografia da

    UDESC.

    Aos amigos e companheiros de graduao Fabio Pequeno, Eduardo Pereira, Saul

    Ribeiro, Felipe Armani, Samuel Fernndez, Tbata Sell, Marcelo Nicolazzi, Andr

    Salvaro, Maycon Bastos, Joel Souza, Guilherme Pontes, Joo Severo Martins, Gislene

  • 7

    Martins, Cristiano Neto, Misael Correa, Ary Pinheiro, Fbio Prates, Felipe FFC,

    Rodrigo de Freitas (Spinoza) e Joo Gabriel

    Tamna Amandio, Virginia Boff, Silvio Ferreira, Lilian Leepkaln, Daniel

    Lacerda e demais Amig@s do Sambaqui, pelas ocasies festivas e no festivas que

    passamos juntos. Espero que o distanciamento provocado pelas contingncias da vida

    seja superado e possamos ter novos bons momentos.

    Aos companheiros Breno Viotto, Caio Zarino, Evandro Andaku, Vinicius Justo e

    Washington da Silva pelas agradveis ocasies em que estivemos juntos na USP e em

    So Paulo.

    Aos companheiros professores do PVC-Eletrosul/Amocam, do IEE-SC, e das

    demais escolas em que lecionei. A batalha por melhores condies de trabalho docente,

    alm de inspiradora, indispensvel construo de um Brasil mais justo, pois como

    bem colocou Monteiro Lobato, um pas se faz de homens e livros.

    Aos companheiros do Tnis de Mesa de Florianpolis, por nossos mais de dez

    anos de fundamentais momentos recreativos.

    Aos companheiros de militncia poltica Janete Teixeira, Elias Jabbour/ngela

    Albino, Adalberto Monteiro, Bernardo Joffily, Marco Fernandez, Renato Marciano,

    Carlos Thadeu Pires, Marilu Campagner, Gilberto dos Santos, Daniela Milidiu, Diva

    Carlos, Carlos Antnio Vieira, Antnio Lopes, Drique Hohn, Elenira Vilela, Murilo

    Silva, Ricardo Camargo Vieira, Diego Luzia, Eleonora Kaczur e Teresa Fantini.

    Por fim, registro agradecimento aos trabalhadores de todos os lugares, que com

    sangue e suor dignificam o mundo de hoje e transformaro o amanh.

  • 8

    Durante sculos, a humanidade sofreu sob o jugo dum nfimo punhado de exploradores que oprimiam

    milhes de trabalhadores. Mas se os exploradores da

    poca precedente, os grandes senhores agrrios,

    pilhavam e oprimiam os camponeses servos divididos, disseminados, incultos os exploradores dos tempos modernos, os capitalistas, viram erguer-se

    diante deles, entre a massa dos oprimidos, o seu

    destacamento de vanguarda, os operrios industriais

    das cidades, das fbricas e oficinas. A fbrica uniu-

    os, a vida urbana esclareu-os, a luta grevista comum

    e as aes revolucionrias aguerriram-nos.

    V.I. Lnin

    Discurso na inaugurao do monumento a Marx e Engels (nov. 1918)

  • 9

    RESUMO

    A dissertao em tela objetiva desvendar os impactos do neoliberalismo e da

    posterior recuperao econmica nacionalista (2003-2014) na Argentina. Para tanto, por

    intermdio do paradigma interpretativo de formao scio-espacial, busca descortinar

    processos necessrios compreenso da atualidade nacional, como as razes do

    latifndio feudal portenho, os impactos da chegada de imigrantes europeus e a

    construo de avanado projeto de desenvolvimento por parte do governo de Juan

    Domingo Pern (1946-1954).

    A via norte-americana de transio capitalista (pequena produo mercantil) ser

    fundamental consolidao de provncias empresarialmente dinmicas (principalmente

    Buenos Aires, Crdoba, Santa F e Mendoza) em contraposio s provncias que

    mantiveram-se por mais tempo ligadas estruturas econmicas do passado (Tucumn,

    Salta, Jujuy, etc.).

    O neoliberalismo, concepo de mundo dominante ao largo do regime militar

    (1976-1983) e da dcada de 1990 (Carlos Saul Menem), provocar a destruio de

    considervel parte da estrutura fabril argentina e deteriorar os bons indicadores sociais

    historicamente obtidos. A economia nacional ter seu tamanho reduzido principalmente

    a partir do plano de conversibilidade do ministro D. Cavallo (ncora cambial).

    Aps metade da populao argentina atingir condio de vulnerabilidade social

    em decorrncia do neoliberalismo, os governos de Nestor Kirchner e Cristina Kirchner,

    apoiados no movimento sindical peronista e em setores da burguesia nacional, adotaram

    agressiva poltica de investimentos combinada com prticas macroeconmicas

    heterodoxas (brusca desvalorizao cambial, reduo dos juros, estatizaes, parcerias

    pblico-privadas, etc.) que provocaram altas taxas de crescimento econmico e

    restauraram a dignidade nacional.

    PALAVRAS-CHAVE: Argentina; Formao Scio-Espacial; Transio Feudalismo-

    Capitalismo; Questo Nacional; Desenvolvimento Econmico.

  • 10

    RESUMEN

    La disertacin tiene como objetivo desentraar los impactos del neoliberalismo y

    la recuperacin econmica nacionalista (2003-2014) en Argentina. Para ello, a travs

    del paradigma interpretativo de la formacin socioespacial, se busca develar los

    procesos necesarios para la comprensin nacional actual, como las races del latifundio

    feudal de Buenos Aires, el impacto de la llegada de los inmigrantes europeos y la

    construccin del proyecto de desarrollo avanzado por el gobierno Juan Domingo Pern

    (1946-1954).

    La pequea produccin mercantil ser fundamental para la consolidacin de las

    provincias empresarialmente dinmicas (principalmente Buenos Aires, Crdoba, Santa

    F y Mendoza) a diferencia de las provincias que permanecan ms tiempo vinculadas a

    las estructuras econmicas del pasado (Tucumn, Salta, Jujuy, etc.).

    El neoliberalismo, la concepcin dominante en el rgimen militar (1976-1983) y

    la dcada de los 90 (Menem), provoca la destruccin de parte de la estructura industrial

    argentina y se deterioran los buenos indicadores sociales obtenidos histricamente. La

    economa nacional se ha reducido en tamao principalmente por el plan de

    convertibilidad del Ministro D. Cavallo.

    Despus que la mitad de la poblacin argentina alcanza la condicin de

    vulnerabilidad social como consecuencia del neoliberalismo, los gobiernos de Nstor

    Kirchner y Cristina Kirchner, apoyados en el movimiento obrero peronista y sectores de

    la burguesa nacional, adoptaron la poltica de inversin agresiva combinada con

    prcticas macroeconmicas heterodoxas (depreciacin repentina de cambio, reducciones

    de tasas de inters, nacionalizaciones, asociaciones pblico-privadas, etc.) que causaron

    altas tasas de crecimiento econmico y restaurado la dignidad nacional.

    PALABRAS LLAVE: Argentina; Formacin Socioespacial; Transicin del

    Feudalismo al Capitalismo; Cuestin Nacional; Desarrollo Econmico.

  • 11

    SUMRIO

    INTRODUO...................................................................................................15

    1. FUNDAMENTAO TERICO-METODOLGICA

    1.1. O paradigma interpretativo de formao scio-espacial..........................................19

    1.2. A interpretao leninista da questo nacional..........................................................21

    1.2.1. Estado e Nao......................................................................................................22

    1.2.2. Imperialismo e questo nacional: atualidade do debate........................................27

    1.2.3. O papel do nacionalismo na transio socialista...................................................29

    2. TEORIAS SOBRE O DESENVOLVIMENTO LATINO-AMERICANO

    2.1. Comisso Econmica para a Amrica Latina e o Caribe (CEPAL).........................33

    2.2. Teoria da Dependncia.............................................................................................35

    2.3. Ciclos de Acumulao (Ignacio Rangel)..................................................................39

    3. FORMAO SCIO-ESPACIAL ARGENTINA: PANORAMA GERAL

    3.1. Gnese do Estado-Nacional

    3.1.1. Conquista ibrica e organizao territorial...........................................................43

    3.1.2. Limites do sistema colonial..................................................................................47

    3.1.3. Buenos Aires e o processo de independncia.......................................................48

    3.1.4. O feudalismo argentino do sculo XIX................................................................51

    3.2. O auge do modelo agro-exportador

    3.2.1. Imigrao, novas infra-estruturas e expanso agropecuria.................................59

    3.2.2. O desenvolvimento das economias regionais.......................................................64

    3.3. O processo de substituio de importaes

    3.3.1. A via norte-americana de transio capitalista.....................................................69

    3.3.2. Bases do pensamento industrialista argentino......................................................74

    3.3.3. O governo de J.D. Pern: via prussiana e desenvolvimento econmico..............76

    3.4. O movimento operrio argentino..............................................................................80

  • 12

    4. NEOLIBERALISMO E DESTRUIO NACIONAL

    4.1. O dogma neoliberal

    4.1.1. Alicerces fundamentais.........................................................................................90

    4.1.2. O problema inflacionrio......................................................................................92

    4.2. O sistema econmico internacional no sculo XX

    4.2.1. Bretton Woods: a mitigao da anarquia..............................................................94

    4.2.2. Imperialismo e desregulamentao.......................................................................96

    4.3. Autoritarismo poltico e retrocesso econmico........................................................99

    4.4. Currency Board: a eliminao da autodeterminao argentina..............................103

    5. A RECUPERAO ECONMICA ARGENTINA

    5.1. O novo projeto nacional de desenvolvimento.......................................................110

    5.1.1. O dinamismo econmico regional......................................................................118

    5.1.2. Investimentos em infra-estruturas.......................................................................127

    5.2. O desenvolvimentismo argentino est esgotado?..................................................132

    CONSIDERAES FINAIS...........................................................................136

    BIBLIOGRAFIA GERAL...............................................................................143

    BIBLIOGRAFIA ESPECFICA.....................................................................150

    ANEXOS

    A. Indicadores Industriais (1990-2013)

    B. Substituio de Importaes (2003-2013)

    C. Investimentos por Provncia (Buenos Aires, Crdoba, Mendoza e Santa F)

    D. Disciplinas Cursadas

    E. Curriculum Vitae (Plataforma Lattes)

  • 13

    LISTA DE MAPAS

    MAPA 1 ALTIMETRIA DO TERRITRIO ARGENTINO

    MAPA 2 REGIES CLIMTICAS ARGETINAS

    MAPA 3 PRINCIPAIS NCLEOS POPULACIONAIS DO VICE-REINADO DO

    RIO DA PRATA

    MAPA 4 PRINCIPAIS REAS DE PRODUO DE GADO

    MAPA 5 DISTRIBUIO DA POPULAO ITALIANA NA ARGENTINA

    MAPA 6 REDE FERROVIRIA NACIONAL

    MAPA 7 AMRICA LATINA: CRESCIMENTO REGIONAL

    MAPA 8 DINMICAS ECONMICAS REGIONAIS

    MAPA 9 COMPOSIO SETORIAL E PERCENTAGEM DE PARTICIPAO

    PROVINCIAL NO PIB NACIONAL

    MAPA 10 INFRA-ESTRUTURAS ARGENTINAS

    LISTA DE GRFICOS

    GRFICO 1 LONGITUDE DA REDE FERROVIRIA (1860-2010)

    GRFICO 2 POSTOS DE TRABALHO EM GRANDES ESTABELECIMENTOS

    (1993-2002)

    GRFICO 3 NDICE DE QUANTIDADE DE EXPORTAES POR SETOR

    (1993-2010)

    GRFICO 4 EVOLUO DO EMPREGO NA INDSTRIA MANUFATUREIRA

    EM BUENOS AIRES, CRDOBA E SANTA F (2001-2006)

    GRFICO 5 NVEL DE ATIVIDADE E TRABALHADORES OCUPADOS NA

    INDSTRIA (2004-2013)

    GRFICO 6 EXPORTAES ARGENTINAS (1991-2013)

  • 14

    LISTA DE TABELAS

    TABELA 1 EXPORTAES DE BUENOS AIRES (1822, 1829 E 1837)

    TABELA 2 EXPORTAES ARGENTINAS DE CARNE (1880-1929)

    TABELA 3 CAPITAL ESTRANGEIRO INVESTIDO NA ARGENTINA EM 1910

    TABELA 4 PERCENTUAL DE PARTICIPAO DOS IMIGRANTES POR

    ATIVIDADE ECONMICA (1914)

    TABELA 5 NMERO DE OPERRIOS INDUSTRIAIS EM 1895, 1914 E 1935

    TABELA 6 PRODUO INDUSTRIAL POR SETOR (1935, 1946 E 1954)

    TABELA 7 INDICADORES INDUSTRIAIS 1954-1961

    TABELA 8 INDICADORES INDUSTRIAIS 1964-1974

    TABELA 9 MOVIMENTOS GREVISTAS NO BRASIL E EM BUENOS AIRES

    (1906-1929)

    TABELA 10 MOVIMENTOS GREVISTAS EM BUENOS AIRES (1924-1963)

    TABELA 11 ENDIVIDAMENTO EXTERNO E FUGA DE CAPITAIS NOS

    QUATRO MAIORES DEVEDORES DA AMRICA LATINA (1976-1983)

    TABELA 12 QUANTIDADE DE EMPRESAS CONTROLADAS POR GRUPOS

    ECONMICOS NACIONAIS E ESTRANGEIROS (1973-1990)

    TABELA 13 EVOLUO PATRIMONIAL (CAPITAIS ARGENTINOS E

    ESTRANGEIROS) 1995-2003

    TABELA 14 INDICADORES INDUSTRIAIS (1993-2001)

    TABELA 15 NVEIS DE POBREZA EM % DE INDIVDUOS (2001-2004)

    TABELA 16 VALOR BRUTO DA PRODUO E VALOR AGREGADO BRUTO

    POR SETOR DA INDSTRIA MANUFATUREIRA (1997-2001)

    TABELA 17 REMUNERAO DO TRABALHO E POSTOS DE TRABALHO

    POR SETOR DA INDSTRIA MANUFATUREIRA (1997-2001)

    TABELA 18 TAXA DE CRESCIMENTO DO PIB E TAXA DE DESEMPREGO

    (1999-2012)

    TABELA 19 INVESTIMENTO INTERNO BRUTO (1993-2011)

    TABELA 20 BALANA COMERCIAL ARGENTINA (1993-2011)

    TABELA 21 DINMICAS ECONMICAS REGIONAIS (2012)

    TABELA 22 INVESTIMENTOS EM INFRA-ESTRUTURA (2006-2010)

  • 15

    INTRODUO

    O debate acadmico no Brasil e no mundo sofreu uma grande inflexo com a

    queda da URSS e o fortalecimento do dogma neoliberal. A cincia econmica ampliou

    sua nfase em modelos matemticos questionveis enquanto as demais cincias sociais

    se afastaram da Economia Poltica e de anlises generalizantes em favor do interesse de

    compreenso dos chamados micro-poderes1. A busca de percepes sobre pequenas

    realidades tornou-se mais importante do que a verdade, empobrecendo o entendimento

    das formaes scio-espaciais.

    A Amrica Latina, menos interessante aos intelectuais brasileiros do que Europa

    ou Estados Unidos, permaneceu pouco estudada mesmo representando o campo de

    influncia geopoltica direta do Brasil. O erro condenado por Nelson W. Sodr2 de falta

    de estudos sobre nossas reas vizinhas continuou ocorrendo, salvo honrosas excees.

    O que se pretende no presente trabalho retomar a tradio marxista-leninista

    de estudo das realidades nacionais e aproximar os brasileiros do continente latino-

    americano. A violenta crise que assolou a Argentina em 2001, desdobramento de

    praticamente um quartel de sculo de subservincia ao governo de Washington, foi o

    pice da destruio de uma economia industrial pujante e de uma situao de relativo

    equilbrio social difcil de ser encontrada na periferia do mundo. Vrias viagens

    realizadas pela Amrica Latina em geral e pelas provncias argentinas em particular

    motivaram a escolha do recorte de estudo, qual seja, os impactos do neoliberalismo e da

    recuperao nacionalista na Argentina.

    A construo de dois captulos tericos teve o intuito de explicitar as idias que

    nortearam a leitura nacional posterior. Em primeiro momento sintetizado o paradigma

    de formao scio-espacial3, ferramenta marxista de interpretao da realidade que

    permite avaliar a combinao dos modos de produo em certa localidade e conectar as

    mltiplas determinaes de um processo histrico. A leitura da questo nacional

    arrolada ainda no primeiro captulo tem o objetivo de clarificar a relevncia do direito

    de autodeterminao dos povos. V I. Lnin o responsvel pela estruturao de viso de

    1 FOUCAULT, Michel. Microfsica do Poder. Rio de Janeiro: Edies Graal, 1979.

    2 SODR, Nelson Verneck. Formao Histrica do Brasil. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1976.

    3 SANTOS, Milton. A formao social como teoria e como mtodo. In: Espao e Sociedade. Petrpolis:

    Vozes, 1982 e

  • 16

    mundo que conecta os interesses dos trabalhadores ao das naes oprimidas pelo

    imperialismo, demonstrando o rumo histrico cientfico em direo ao socialismo.4

    O segundo captulo, ao versar sobre as teorias do desenvolvimento latino-

    americano, acusa a grande divergncia existente no interior de nosso campo

    democrtico-popular. Para cada anlise esboada teremos um programa poltico-social

    distinto, o que torna necessria a avaliao de seus acertos e equvocos. Enquanto a

    CEPAL busca a realizao de reformas estruturais associadas substituies de

    importaes, a Teoria da Dependncia desacredita qualquer plataforma nacionalista de

    desenvolvimento. Ignacio Rangel, a partir de leitura de K. Marx e V.I. Lnin, absorve

    ideias inerentes interpretao cepalina (substituies de importaes, etc), todavia

    divergindo de noes como a de deteriorao dos termos de intercmbio e no perdendo

    de vista a transio capitalismo-socialismo.

    Nas trilhas do materialismo histrico, apresenta-se um panorama geral da

    formao scio-espacial argentina com o interesse de exposio de algumas de suas

    caractersticas centrais.

    A descrio dos processos de conquista e colonizao ibrica das terras platinas,

    visando o abastecimento de regies mineradoras prximas (Noroeste argentino) ou

    mesmo proteo territorial (Buenos Aires), integram a primeira parte do captulo trs.

    Conforme a ao de mltiplos determinantes se consolidam as diferenciaes

    territoriais.

    Aps apresentar o declnio do sistema colonial e a independncia inaugurada

    com a Revoluo de Maio de 1810, so apontadas caractersticas que nos permitem

    classificar o mundo estancieiro argentino como predominantemente feudal, fugindo de

    interpretaes circulacionistas tpicas da Teoria da Dependncia5. A consolidao do

    modelo de crescimento hacia afuera6, a entrada de contingentes migratrios e a

    expanso das economias regionais encerram o bloco intermedirio do captulo histrico.

    4 LNIN, V.I. Imperialismo: fase superior do capitalismo. So Paulo: Global, 1985.

    5 MARINI, Rui Mauro. Subdesenvolvimento e Revoluo. In: BARSOTTI, Paulo; PERICS, Luiz

    Bernardo (orgs). Amrica Latina Histrias, Idias e Revoluo. So Paulo: Ed. Xam, 1999.

    6 PREBISCH, Raul. O desenvolvimento econmico da Amrica Latina e alguns de seus problemas

    principais. In: BIELSCHOWSKY, Ricardo (org). Cinqenta anos de pensamento na CEPAL. Rio de

    Janeiro: CEPAL/COFECON, 2000.

  • 17

    As regies receptoras de maior populao imigrante oriunda da Europa em crise

    sero as pioneiras do processo de industrializao.7 A via norte-americana de transio

    capitalista em Buenos Aires, Crdoba, Mendoza e Santa F ofertar inclusive apoio a

    posterior expanso econmica de reas latifundirias do Chaco e do Noroeste argentino.

    Somente com o advento do nacionalismo, cujo auge encontra-se no governo de Juan

    Domingo Pern (1946-54), o Estado se posicionar como um indutor do

    desenvolvimento industrial, criando empresas pblicas, carreando volumosos recursos

    para as infra-estruturas e sustentando mecanismos de defesa alfandegria.8 Com a

    apresentao dos pontos indicados encerrado o captulo trs.

    Avanando para as conjunturas mais recentes, so sintetizadas a evoluo do

    sistema econmico mundial no sculo XX, as caractersticas do pensamento neoliberal e

    algumas referncias sobre a questo inflacionria. No existem dvidas de que

    interesses externos na Amrica Latina foram alicerados na eliminao de barreiras

    alfandegrias, na permissividade excessiva dos agentes financeiros e na conteno de

    investimentos, sendo o discurso de controle da inflao e gerao de supervits

    primrios cortina de fumaa para ocultar a realidade.9

    Apesar de experincias neoliberais precoces (Ongania, etc), a partir da

    instalao do regime autoritrio em 1976 que se inicia o desmantelamento da economia

    nacional argentina, com a poltica de elevao dos juros e promoo de importaes

    concebida por J. A. Martinez de Hoz. O presidente Menem, aplicando o plano de

    conversibilidade na dcada de 1990, o consolidador de uma brutal destruio de foras

    produtivas e de uma das grandes catstrofes sociais do fim de sculo. Na crise de 2001

    os indicadores sociais argentinos estavam mais prximos da periferia mundial do que do

    centro dinmico, diferentemente de outrora, o que provocou a queda de presidentes

    exigindo mudana de rumos. A anlise de tal trajetria compe o quarto captulo do

    trabalho.

    7 CORNBLIT, Oscar. Os imigrantes europeus na indstria e poltica argentina. In: VELIZ, Claudio (org).

    Amrica Latina: estruturas em crise. So Paulo: Instituio Brasileira de Difuso Cultural S.A, 1970.

    8 FERRER, Aldo. La economia argentina: desde sus orgenes hasta princpios del siglo XXI. Buenos

    Aires: Fondo de Cultura Econmica de Argentina, 2004.

    9 MAMIGONIAN, Armen. Qual o Futuro da Amrica Latina. In: LEMOS, Amlia Ins Geraiges de;

    SILVEIRA, Maria Laura; ARROYO, Maria Mnica (org). Questes Territoriais na Amrica Latina.

    So Paulo: CLACSO/EDUSP, 2005.

  • 18

    Aps o enorme desastre de 2001, a conduo da nao platina sofreu uma

    drstica reverso, com o PIB chegando a crescer 71,8% entre 2003 e 2012, ndice

    semelhante ao de Cingapura e Vietn e muito superior ao do Brasil. O captulo que

    encerra o trabalho inicia com interpretao da recuperao econmica dirigida pelos

    Kirchner a partir de 2003 e finalizado com anlise da atual situao das regies

    argentinas e dos investimentos em infra-estruturas que esto apoiando o novo projeto

    nacional de desenvolvimento. A ideia de dialtica da capacidade ociosa de Ignacio

    Rangel foi fundamental para a compreenso do ocorrido, assim como seu prognstico

    de planificao do comrcio exterior.10

    Acredito que as naes latino-americanas esto se levantando depois de

    vivenciar alguns dos piores momentos de sua histria moderna. O movimento dos

    trabalhadores e de setores das burguesias nacionais, em diferentes ritmos de acordo com

    particularidades nacionais, esto aprofundando as reformas democrticas que haviam

    sido abandonadas (poltica, agrria, trabalhista, etc), promovendo o desenvolvimento e

    enfrentando a opresso imperialista (Mercosul, Alba, UNASUL, etc). As geraes

    futuras havero de reconhecer a importncia do processo emancipatrio que

    encaminharam lderes como Fidel Castro, Evo Morales, Hugo Chvez, Luiz Incio Lula

    da Silva e Nestor Kirchner.

    10

    RANGEL, Ignacio. Recursos ociosos e poltica econmica. So Paulo: Hucitec, 1980.

  • 19

    1. FUNDAMENTAO TERICO-METODOLGICA

    1.1. O paradigma interpretativo de formao scio-espacial

    Atravs da anlise da evoluo histrica de diversos pases e regies, K. Marx

    observou a existncia de traos fundamentais, leis de desenvolvimento, comuns a todos

    eles. Destacando do conjunto de relaes humanas as relaes de produo (trabalho e

    propriedade), em grande medida determinantes das demais, o filsofo alemo

    caracterizou os modos de produo antigo, feudal, capitalista e socialista como pocas

    progressivas da formao econmica das sociedades.11

    A sustentao de sistema classificatrio rigoroso e a anlise da natureza dos

    modos de produo exigem, alm do exame das relaes de produo, tambm a

    observao do meio de produo fundamental, aquele que subordina as suas

    necessidades todos os demais, visto que nosso ponto de partida nesta questo a esfera

    da produo propriamente dita, e no a da circulao. Desta forma em cada um dos

    modos de produo da histria da humanidade teremos um meio de produo

    fundamental, a saber: 1) modo de produo escravista escravo, 2) modo de produo

    feudal terra e 3) modo de produo capitalista capital.12

    Todavia, os modos de produo, concebidos como um conjunto de foras

    produtivas com suas respectivas relaes de trabalho e propriedade, somente adquirem

    feio concreta nas formaes scio-espaciais, cuja estruturao dependente dos

    nveis qualitativos e quantitativos dos modos de produo e da maneira como eles se

    combinam, de onde conclumos que toda sociedade existe sob um invlucro

    historicamente determinado, um todo concreto localizado.13

    Segundo V.I. Lnin, a anlise das relaes sociais materiais permitiu

    imediatamente que se observassem a repetio e a regularidade e se sintetizassem os

    sistemas dos diversos pases num nico conceito fundamental de formao social.

    Somente esta sntese permitiu que se passasse da descrio dos fenmenos sociais (e de

    sua avaliao do ponto de vista do ideal) anlise rigorosamente cientfica dos mesmos,

    11

    MARX, Karl. Prefcio. In: Contribuio crtica da Economia Poltica. So Paulo: Expresso

    Popular, 2009.

    12

    RANGEL, Igncio. Dualidade bsica da economia brasileira. So Paulo: Bienal, 1999.

    13

    MAMIGONIAN, Armen. A geografia e a formao social como teoria e como mtodo. In: SOUZA,

    Maria Adlia (org.), O Mundo do Cidado. Um Cidado do Mundo. So Paulo: Hucitec, 1996.

  • 20

    a qual evidencia, por exemplo, que que diferencia um pas capitalista de outro e

    investiga o que comum a todos eles.14

    Importante sntese do raciocnio esboado encontra-se na obra do gegrafo M.

    Santos, de onde destacamos que todos os processos que juntos, formam o modo de

    produo (produo propriamente dita, circulao, distribuio, consumo) so histrica

    e espacialmente determinados num movimento de conjunto, e isto atravs de uma

    formao social.15 G. Doquois auxilia-nos na resoluo desta questo afirmando que

    todo modo de produccin se especifica de modo particular en una multitud de ejemplos

    regionales permaneciendo totalmente fiel al tipo general. El modo de produccin

    feudalista en Il-de-France en el siglo XIII puede ser clsico...pero en el Bordelais, el

    sur de Inglaterra, etc., se puede hablar de ejemplos regionales clsicos del modo de

    produccin feudalista.16

    Em razo de tais premissas, a compreenso das similitudes e diferenas entre as

    realidades, bem como da execuo de distintos papis dentro de uma determinada

    diviso do trabalho, obriga-nos a considerar a lei do desenvolvimento desigual e

    combinado sintetizada por L. Trotsky em sua Histria da Revoluo Russa. Para o

    autor, as leis histricas no tm nada em comum com o esquematismo pedantesco. O

    desenvolvimento desigual, que a lei mais geral do processo histrico, no se revela,

    em nenhuma parte, com maior evidncia e complexidade do que no destino dos pases

    atrasados. Aoitados pelo chicote das necessidades materiais, os pases atrasados se

    vem obrigados a avanar aos saltos. Desta lei universal do desenvolvimento desigual

    da cultura decorre outra que, por falta de nome mais adequado, chamaremos de lei do

    desenvolvimento combinado, aludindo aproximao das distintas etapas do caminho e

    confuso de distintas fases, ao amlgama de formas arcaicas e modernas. Sem recorrer

    a esta lei, enfocada, naturalmente, na integridade de seu contedo material, seria

    impossvel compreender a histria da Rssia, nem a de nenhum outro pas de avano

    cultural atrasado, seja em segundo, terceiro ou dcimo grau.17

    14

    LNIN, V.I. Quem so os amigos do povo e como lutam os social-democratas? In: Obras Escolhidas. Rio de Janeiro: Ed. Vitria, 1955, p. 114.

    15

    SANTOS, Milton. A formao social como teoria e como mtodo. In: Espao e Sociedade. Petrpolis:

    Vozes, 1982, p. 14.

    16

    DOQUOIS, Guy. La formacin econmico-social como combinacin de modos de produccin. In:

    Cuadernos de Pasado y Presente. Cidade do Mxico: Ed. Siglo XXI, 1976, p. 187.

    17

    TROTSKY, Leon. Peculiaridades do desenvolvimento da Rssia. In: Histria da Revoluo Russa.

    So Paulo: Ed. Sundermann, 2007, p. 21.

  • 21

    Desta forma, consideramos como Vieira que no possvel supor que uma

    categoria (modo de produo e formao scio-espacial) seja mais relevante que a

    outra; tampouco pensar que uma seja terica e outra emprica; ou mesmo idealizar que a

    mudana de linguagem, - uma abstrata, a outra concreta -, tenha fora de milagre para

    desvendar esta relao.18

    Na esteira da argumentao apresentada, devem ser sublinhados os dois

    diferentes tipos de transio capitalista, que apesar de possurem especificidades

    regionais/nacionais prprias, produzem duas grandes modalidades de formaes scio-

    espaciais com caractersticas econmicas e superestruturais distintas (notadamente mais

    democrticas nas transies de tipo norte-americano).

    A estes dois caminhos de desenvolvimento burgus objetivamente possveis

    chamaramos de caminho do tipo prussiano e caminho do tipo norte-americano. No

    primeiro caso, a fazenda feudal do latifundirio se transforma lentamente numa fazenda

    burguesa, junker, condenando os camponeses a decnios inteiros da mais dolorosa

    expropriao e do mais doloroso jugo, ao mesmo tempo que se destaca uma pequena

    minoria de lavradores abastados. No segundo caso, no existem fazendas de

    latifundirios ou so liquidadas pela revoluo, que confisca e fragmenta as glebas

    feudais. Neste caso predomina o campons, que passa a ser o agente exclusivo da

    agricultura e vai evoluindo at converter-se no granjeiro capitalista. No primeiro caso, o

    contedo fundamental da evoluo a transformao do feudalismo em sistema

    usurrio e em explorao capitalista das terras dos feudais-latifundirios-junkers. No

    segundo caso, o fundo bsico a transformao do campons patriarcal no granjeiro

    burgus.19

    18

    VIEIRA, Maria Graciana Espellet de Deus. Formao social brasileira e Geografia: reflexes sobre

    um debate interrompido. Florianpolis: UFSC, 1992. (Dissertao de mestrado). A autora em questo

    destaca ainda que ao discutir a relao entre a categoria de formao social e geografia cincia definida pela diversidade dos homens e dos lugares importa retomar os vrios pontos de aproximao entre geografia e marxismo, entre eles: preocupao pela totalidade, relao sociedade/natureza, relao

    geral/regional ou unidade e diversidade, localizao no tempo e no espao, inter-relao de mltiplos

    elementos ou mltiplas determinaes. Para prosseguir necessrio tambm resgatar o debate sobre a

    categoria de formao social, quando ento se impe, para aprofundamento da investigao, a categoria

    de modo de produo. A definio por oposio destes dois conceitos, um relativo diversidade e

    unidade no tempo, o outro diversidade e unidade no espao, ressaltou a interdependncia destas

    categorias na anlise de qualquer realidade histrico-geogrfica, ou seja, na anlise das formaes scio-

    espaciais... (Consideraes a respeito do paradigma de formao scio-espacial, In: Anais do 12 Encuentro de Gegrafos da Amrica Latina, Montevideo, 2009).

    19

    LNIN, V.I. O programa agrrio da social-democracia na primeira Revoluo Russa de 1905-

    1907. Rio de Janeiro: Ed. Vitria, 1954.

  • 22

    1.2. A interpretao leninista da questo nacional

    ... nas naes oprimidas, a separao do proletariado em um partido independente acarreta, s

    vezes, uma luta to encarniada contra o

    nacionalismo da nao em questo que se deforma a

    perspectiva e se esquece o nacionalismo da nao

    opressora.

    V. I. Lnin

    Do direito de autodeterminao nacional

    O processo de transio do feudalismo ao capitalismo, alm de gerar mudanas

    concernentes s foras produtivas e relaes sociais de produo, responsvel pelo

    reordenamento das ligaes estabelecidas entre os distintos territrios, tal qual aponta o

    Manifesto do Partido Comunista.20

    A expropriao dos meios de produo dos trabalhadores, o rompimento da

    estratificao social formada por suseranos e vassalos, o fim de obrigaes tarifrias

    entre territrios prximos (Zollverein, por exemplo), a criao de amplas infra-

    estruturas de transportes e o soerguimento de aparelho burocrtico-institucional cujo

    objetivo central mediar os novos conflitos de classe e viabilizar a acumulao de

    capital solidificam uma construo histrica representativa da modernidade chamada

    Nao.21

    As caractersticas dos Estados-Nacionais, lapidadas por aspectos econmicos e

    histrico-culturais especficos, vm se apresentado como um dos principais objetos de

    anlise dos cientistas sociais. Considerando a enorme relevncia do pensamento

    marxista-leninista em termos tericos e polticos, buscar-se- apresentar em linhas

    gerais sua interpretao da questo nacional.

    20

    MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. O Manifesto do Partido Comunista. Porto Alegre: L&PM, 2007.

    21

    O fenmeno nacional, na verdade, recente no ocidente, como fruto do processo de transio feudalismo-capitalismo e muito antigo no oriente, pois o nascimento nacional da China data de mais de

    dois mil anos, na poca de sua unificao, da construo da famosa muralha contra as invases

    monglicas, da constituio do Imprio, na vigncia do modo de produo asitico. No ocidente, a

    constituio do capitalismo e, conseqentemente, de uma formao nacional e sua expresso poltica, o

    estado nacional, j traz em seu cerne a estruturao de um sistema tambm mundial, que comea a se

    gestar, na prpria transio, atravs da constituio do sistema colonial, pertinente acumulao

    primitiva do capital, quando frica, Amrica Latina e sia foram conquistadas e saqueadas pelas

    potncias da poca, algumas ainda em fase feudal mercantil (Portugal e Espanha). VIEIRA, Maria Graciana E. de Deus; PEREIRA, Raquel Maria Fontes. Formaes Sociais Nacionais. In: KOCHER,

    Bernardo (org). Globalizao: atores, idias e instituies. Rio de Janeiro: Ed. Mauad X, 2011, p. 129.

  • 23

    1.2.1. Estado e Nao

    O processo de apreenso das realidades concretas, em sua complexa totalidade,

    bem caracterizado nos escritos de K. Marx, cabendo destaque para seu Mtodo da

    Economia Poltica.22

    Recorrendo abstrao como procedimento analtico, ao

    sistemtico estudo das estruturas fundamentais e posterior reconstituio da totalidade

    a partir da compreenso delas, o fundador do socialismo cientfico apresenta o processo

    de acumulao de capital (condies naturais, tcnicas e organizacionais e relaes de

    produo) como ponto de partida dos estudos sociais, como chave para a compreenso

    do mundo poltico e cultural.

    Conforme o autor, a populao uma abstrao, se desprezarmos, por exemplo,

    as classes que a compem. Por seu lado, essas classes so uma palavra vazia de sentido

    se ignorarmos os elementos em que repousam, por exemplo: o trabalho assalariado, o

    capital etc. Estes supem a troca, a diviso do trabalho, os preos etc. O capital, por

    exemplo, sem o trabalho assalariado, sem o valor, sem o dinheiro, sem o preo etc., no

    nada. Assim, se comessemos pela populao, teramos uma representao catica

    do todo, e atravs de uma determinao mais precisa, atravs de uma anlise,

    chegaramos a conceitos cada vez mais simples; do concreto idealizado passaramos a

    abstraes cada vez mais tnues at atingirmos determinaes as mais simples.

    Chegados a esse ponto, teramos que voltar a fazer a viagem de modo inverso, at dar de

    novo com a populao, mas desta vez no com uma representao catica de um todo,

    porm com uma rica totalidade de determinaes e relaes diversas.23

    O que prope a citada assertiva de K. Marx a efetivao, em primeiro

    momento, da anlise da diviso social e territorial do trabalho e das etapas do processo

    universal de produo da mercadoria, a saber, produo propriamente dita, circulao

    (troca), distribuio e consumo. Somente a partir destas bases tm-se elementos para

    compreender a estrutura jurdica da sociedade e o conjunto de funes executadas pelo

    Estado, que conforme V.I. Lnin, ... um produto da sociedade numa certa fase do seu

    desenvolvimento. a confisso de que essa sociedade se embaraou numa insolvel

    contradio interna, se dividiu em antagonismos inconciliveis de que no pode

    22

    MARX, Karl. O mtodo da Economia Poltica. In: Contribuio crtica da Economia Poltica. So

    Paulo: Expresso Popular, 2009.

    23

    Idem, p. 255.

  • 24

    desvencilhar-se. Mas, para que essas classes sociais antagnicas, com interesses

    econmicos contrrios no se entredevorassem e no devorassem a sociedade numa luta

    estril, sentiu-se a necessidade de uma fora que se colocasse aparentemente acima da

    sociedade, com o fim de atenuar o conflito nos limites da ordem. Essa fora, que sai

    da sociedade, ficando, porm, acima dela e se afastando dela cada vez mais, o

    Estado.24

    Essa concepo, j apresentada por F. Engels em Anti-During25

    , ao posicionar os

    antagonismos sociais e os movimentos relativos s foras produtivas, tal qual as

    caractersticas histrico-culturais especficas dos povos, como balizadores do complexo

    jurdico-institucional mantenedor de uma determinada dominao de classe (Estado),

    representa significativo salto qualitativo em termos tericos, superando vises como a

    do gegrafo-poltico alemo F. Ratzel, segundo a qual o Estado um organismo

    espiritual e moral responsvel pela articulao entre o povo e o solo que sustenta a

    coeso e unidade por toda a extenso do ecmeno.26

    Igualmente o cientista poltico Samuel P. Huntington, numa das obras

    fundadoras do pensamento institucionalista nos anos 1960, insistiu na leitura do Estado

    como uma espcie de caixa preta. Para o autor, a modernizao das sociedades

    deveria ser conduzida por instituies complexas e fortes com interesses prprios que

    estariam acima dos interesses de classe e atenderiam os anseios do conjunto da

    populao, evitando possibilidades de transio ao socialismo.27

    Alis, a superioridade dos fundadores da teoria marxista em termos de

    compreenso do problema permitiu sofisticadas anlises no somente do quadro

    europeu do sculo XIX, como avanou para questes ligadas Geografia Poltica, como

    a derrota britnica no Afeganisto na dcada de 1840, em boa medida decorrente de

    24

    LENIN, V.I. O Estado e a Revoluo. So Paulo: Hucitec, 1986, p. 9.

    25

    ENGELS, Friedrich. Anti-Dring. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

    26

    COSTA, Wanderley Messias da. Geografia Poltica e Geopoltica: discursos sobre o territrio e o

    poder. So Paulo: Hucitec, 1992.

    27

    HUNTINGTON, Samuel P. Ordem poltica nas sociedades em mudana. Rio de Janeiro: Forense

    Universitria, 1975. O destaque do autor deve-se a influncia exercida em pensadores ligados a entidades

    como o Banco Mundial (D. Rodrik, p. ex), assim como por sua participao direta no governo

    estadunidense como Coordenador do Planejamento de Segurana da Casa Branca para o Nacional

    Security Concil entre 1977 e 1978.

  • 25

    caractersticas da formao scio-espacial centro-oriental28

    que posteriormente

    influenciaram perdas da URSS e dos Estados Unidos.

    No que tange a questo nacional, mister destacar que Marx e Engels nunca

    produziram uma teoria sistemtica sobre o tema ou mesmo uma definio precisa do

    conceito de nao. A argumentao dos autores, entretanto, possui o grande mrito de

    proclamar uma viso internacionalista do movimento operrio, destacando que a

    burguesia no apenas no tem tendncia a abolir os antagonismos nacionais, mas, bem

    ao contrrio, tende a agrav-los porque, primeiramente, a luta pelos mercados engendra

    conflitos entre as potncias capitalistas; em segundo lugar, a explorao de uma nao

    por outra produz dios nacionais; por fim, o chauvinismo um dos instrumentos

    ideolgicos que permitem burguesia manter sua dominao sobre o proletariado.29

    Apesar de avaliaes excessivamente economicistas sobre a Arglia, a ndia e a

    Nova Califrnia, por exemplo, ressalvas devem ser feitas com relao aos apontamentos

    sobre a Polnia, principalmente em razo do combate contra a Rssia czarista, e a

    Irlanda, quando Marx defende sua libertao da Inglaterra sustentando princpios

    importantes ao futuro desenvolvimento da teoria marxista como o da luta pela

    autodeterminao dos povos e sua ligao direta com o movimento operrio.30

    Somente com V.I. Lnin, na interpretao do imperialismo, a questo nacional

    passou a figurar como ponto fulcral do pensamento marxista, uma vez que foi

    sobremaneira ampliada a opresso dos povos perifricos pelas potncias econmicas,

    destacando a relevncia do conceito de desenvolvimento desigual e combinado.

    Para o lder bolchevique, em seu clssico Imperialismo: fase superior do

    capitalismo (1916), a realidade concorrencial descrita por A. Smith e K. Marx, em razo

    de seu prprio desenvolvimento histrico, converteu-se num sistema caracterizado por

    1) elevada concentrao da produo (monoplios/oligoplios); 2) brutal evoluo da

    dimenso das operaes bancrias e acoplagem das finanas esfera produtiva; 3)

    28

    ENGELS, Friedrich. A derrota britnica no Afeganisto (The New American Cyclopaedia). In: Folha

    de S. Paulo Online, publicado em 15 de outubro de 2001.

    29

    LWY, Michael. Nacionalismos e internacionalismos. So Paulo: Ed. Xam, 2000, p. 50.

    30

    Idem. M. Lwy destaca que em textos posteriores Marx efetiva a reviso da anlise de Engels sobre a

    Arglia e a Nova Califrnia, descrevendo essas empreitadas colonialistas como responsveis pela

    promoo de verdadeiros massacres humanos.

  • 26

    crescente fortalecimento das camadas rentistas; 4) ampliao das exportaes de

    capitais e 5) perversa partilha do mundo pelas potncias imperialistas.31

    Acompanhando o processo histrico de transformao do capitalismo e das

    caractersticas assumidas pela luta de classes, diferentemente de R. Luxemburgo

    (questo polonesa) e L. Trotsky que continuaram defendendo um pensamento

    internacionalista anacrnico, V.I. Lnin sistematizou a defesa do direito de

    autodeterminao dos povos, distinguindo o papel negativo do nacionalismo das

    potncias imperialistas do papel positivo do nacionalismo dos pases oprimidos, cuja

    soberania estaria de acordo com a emancipao do proletariado.32

    Inspirando lideranas do quilate de Mao Tsetung33

    e Ho Chi Min, o autor, em

    amplo debate realizado no interior do bloco poltico alinhado s idias de Marx,

    sintetizou: Igualdade completa entre as naes; direito das naes a disporem de si

    mesmas; unio dos operrios de todas as naes; eis o programa nacional ensinado aos

    operrios pelo marxismo, pela experincia do mundo inteiro e pela experincia da

    Rssia.34

    A contribuio de J. Stlin para o avano do entendimento da temtica, esboada

    na obra O Marxismo e o Problema Nacional e Colonial (1913), elaborada a pedido de

    31

    LNIN, V.I. Imperialismo: fase superior do capitalismo. So Paulo: Global, 1985.

    32

    Os ministros liberais e radiais da Inglaterra, uma infinidade de publicistas avanados da Frana (que se encontraram plenamente de acordo com os publicistas da reao), um sem-nmero de escribas oficiais,

    democratas constitucionalistas e progressistas (incluindo alguns populistas e marxistas) da Rssia todos celebram de mil modos a liberdade e a independncia da ptria, a grandeza do princpio da independncia nacional. impossvel distinguir onde termina aqui o venal enaltecedor do verdugo

    Nicolau Romnov ou dos torturadores dos negros e dos habitantes da ndia, onde comea o filisteu

    medocre que vai na corrente por estupidez ou por falta de carcter. Mas nem sequer importa diferenci-lo. Temos diante de ns uma corrente ideolgica muito ampla e muito profunda, cujas razes

    esto ligadas muito solidamente aos interesses dos senhores latifundirios e capitalistas das naes dos

    Estados que so grandes potncias. LENIN, V.I. Acerca do orgulho nacional dos gro-russos. In: Obras Escolhidas (v. 1). Lisboa: Ed. Avante, 1977, p. 565.

    33

    Pode um comunista, que internacionalista, ser, ao mesmo tempo, patriota? Sustentamos que no apenas pode, como deve s-lo. O contedo concreto do patriotismo determinado pelas condies

    histricas. Existe o patriotismo de Hitler e existe o nosso patriotismo. Os comunistas devem se opor resolutamente ao patriotismo dos agressores japoneses e de Hitler. Os comunistas japoneses e alemes so derrotistas a respeito das guerras sustentadas por seus pases. do interesse do povo do Japo e

    Alemanha fazer todo o possvel para que fracassem as guerras dos agressores japoneses e de Hitler e

    quanto mais completa seja a derrota, tanto melhor... O caso da China diferente, porque ela vitima da

    agresso. Em conseqncia, ns, os comunistas chineses, devemos combinar patriotismo com o

    internacionalismo. MAO, Tsetung. Patriotismo e Internacionalismo. In: PINSKY, Jaime. Questo Nacional e Marxismo. So Paulo: Ed. Brasiliense, 1980, p. 211.

    34

    LNIN, V.I. Do direito de autodeterminao nacional. In: PINSKY, Jaime. Questo Nacional e

    Marxismo. So Paulo: Ed. Brasiliense, 1980, p. 165.

  • 27

    V.I. Lnin, consistiu em precisar o conceito de nao mantendo a idia leninista de

    autodeterminao. Para o autor, posteriormente nomeado Comissrio das

    Nacionalidades do regime sovitico instaurado em 1917, as cinco caractersticas

    elementares de uma nao seriam 1) uma comunidade estvel e permanente; 2) a

    existncia de idioma comum; 3) possuir territrio prprio; 4) ter coeso econmica e 5)

    ter uma psicologia, manifestada numa comunidade de cultura.35

    1.2.2. Imperialismo e questo nacional: atualidade do debate

    O ltimo quartel do sculo XX, caracterizado pela entrada da economia mundial

    em fase recessiva, foi marcado pelo declnio da URSS e pela ampla difuso do

    neoliberalismo no mundo, responsveis pela deteriorao das cincias humanas de

    modo geral, uma verdadeira Hiroshima Ideolgica, conforme classificao do filsofo

    italiano D. Losurdo.36

    Por um lado, as escolas americanas de administrao ampliaram a divulgao de

    idias como a de globalizao, com o intuito de justificar o agravamento da opresso

    dos pases perifricos pelas potncias imperialistas gestado por R. Reagan e M.

    Thatcher; por outro, intelectuais com grande prestgio no espectro poltico progressista

    passaram a negar a importncia das fronteiras nacionais (Z. Bauman), a existncia das

    relaes centro-periferia (H. Capel), a centralidade da questo partidria (D. Harvey) e

    mesmo a alegar o gradativo enfraquecimento dos Estados (M. Castells), constituindo o

    que J. Salem chamou de esquerda autofgica37.

    Para M. Castells, por exemplo, o Estado-Nao vem sendo cada vez mais

    destitudo de poder para exercer controle sobre a poltica monetria, definir o

    oramento, organizar a produo e o comercio, arrecadar impostos de pessoas jurdicas

    e honrar seus compromissos visando proporcionar benefcios sociais. Em suma, o

    Estado-Nao perdeu a maior parte de seu poder econmico, embora detenha ainda

    35

    STALIN, Joseph. O Marxismo e o Problema Nacional. So Paulo: Livraria Cincias Humanas,1979.

    36

    LOSURDO, Domenico. Fuga da histria? A revoluo russa e a revoluo chinesa vistas de hoje.

    Rio de Janeiro: Revan, 2004.

    37

    SALEM, Jean. Lnin e a Revoluo. So Paulo: Ed. Expresso Popular, 2008.

  • 28

    certa autonomia para o estabelecimento de regulamentaes e relativo controle sobre

    seus sujeitos.38

    A nova realidade mundial, entretanto, em muito divergiu de tais interpretaes.

    Ao passo que instituies supostamente multilaterais apregoavam o livre-comrcio e

    ativistas defendiam a existncia de uma aldeia global, slidas barreiras alfandegrias

    permaneceram soerguidas nos pases do centro dinmico capitalista (sobretudo na

    agricultura), guerras unilaterais continuaram a ser promovidas (Iraque e Palestina, por

    exemplo) e os processos de fuso e aquisio se intensificaram, favorecendo as naes

    mais desenvolvidas (praticamente todos os investimentos realizados na Amrica Latina

    nos anos 1990 pela Trade voltaram-se aquisio de empresas rentveis e com

    capacidade de realizao de investimentos); isso sem mencionar o evidente fato de que

    todos os capitais continuam a ter plataforma nacional.

    Somente os pases que enrijeceram suas fronteiras e mantiveram polticas

    econmicas de carter industrializante, contrariando o iderio preconizado pelo

    chamado Consenso de Washington, obtiveram bons resultados em termos de conquistas

    de avanos sociais. Enquanto a sia Oriental apresentou bom desempenho, com

    destaque para a China que retirou mais de 400 milhes de indivduos da linha da

    pobreza, a Amrica Latina nos anos 1990 perdeu a pujana econmica que marcou seu

    perodo desenvolvimentista (1930 - 1980), retomando seu dinamismo somente com a

    vitria de projetos nacionalistas na primeira dcada do sculo XXI (Argentina, Bolvia,

    Venezuela, etc).

    Poucos foram os pensadores progressistas que mantiveram postura altiva com

    relao ao desmonte do Estado e a continuidade da opresso imperialista no ltimo

    quartel do sculo, cabendo destacar as elucidativas anlises de M. Santos e I. Rangel no

    Brasil, A. Born e F. Solanas na Argentina, A. Linera na Bolvia, E. Galeano no

    Uruguai etc. A necessidade de construo de uma outra globalizao defendida por

    estes pensadores vem sendo guia para a ao poltica transformadora que promove a

    conciliao do nacionalismo com o socialismo.

    O cenrio instaurado com o declnio sovitico igualmente foi alvo de

    preocupao de intelectuais vinculados instituies ligadas ao planejamento da

    interveno geopoltica do imperialismo estadunidense, que explicitaram em suas

    anlises a atualidade da noo de sistema mundial centro-periferia.

    38

    CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002, p. 298.

  • 29

    Francis Fukuyama acreditou inicialmente no triunfo da democracia liberal

    ocidental como forma ltima de governo humano e difundiu ironicamente o fim da

    histria, proclamando que a guerra de idias chegou ao fim. Ainda podem existir os

    que acreditam no marxismo-leninismo em lugares como Mangua, Pyongyang e

    Cambridge, Estado de Massachusetts, porm, de forma geral, a democracia liberal

    triunfou. O futuro ser dedicado no a grandes lutas estimulantes sobre ideais mas sim

    soluo de mundanos problemas econmicos e tcnicos.39 Seu pensamento foi bastante

    relativizado com a expanso do poderio chins e a decorrente criao de ameaas

    consolidao da democracia liberal como forma hegemnica de governo no mundo.

    Por sua vez, Samuel P. Huntington deslocou sua anlise das instituies e de

    fatores de ordem econmica para o espectro cultural, dividindo o mundo em grandes

    civilizaes. Sua obra O choque de civilizaes e a recomposio da ordem mundial,

    descrita por H. Kissinger como um dos livros mais importantes que apareceram desde

    o fim da Guerra Fria, posicionou os choques de civilizaes como novos propulsores

    dos conflitos mundiais, enfatizando a contradio entre o Ocidente e os no ocidentais,

    o que significou dura crtica ao triunfalismo pr-ocidental em voga na poca.

    Assim, alm da histria concreta, o posicionamento de autores de distintos

    matizes ideolgicos parece expressar a atualidade da questo nacional e do conceito

    leninista de imperialismo.

    1.2.3. O papel do nacionalismo na transio socialista

    Como nos lembra A. Singer, a aplicao mecnica de conceitos atrapalha a

    apreenso do objeto. Bem usados, entretanto, os conhecimentos gerados pela explicao

    de circunstncias histricas anteriores podem ser aliados na iluminao do presente.40

    Nesse sentido, acreditamos que a noo de direito de autodeterminao dos

    povos de V.I. Lenin, tal qual o conceito stalinista de nao, formulada com centro nos

    processos de conquista das independncias e de inaugurao da industrializao dos

    pases mais atrasados, atualmente tem como um dos focos o problema da poltica

    econmica dos pases perifricos, ncleo da luta de classes ao menos na Amrica

    39

    FUKUYAMA, Francis. In: HUNTINGTON, Samuel P. O choque de civilizaes e a recomposio

    da ordem mundial. Rio de Janeiro: Objetivo, 1997.

    40

    SINGER, Andr. Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador. So Paulo:

    Companhia das Letras, 2012, p. 36.

  • 30

    Latina, uma vez que a adoo de posturas progressistas vem dependendo do

    enfrentamento de instituies em que as naes do centro dinmico detm maior

    protagonismo, por vezes direcionado imposio do neoliberalismo (FMI, BM, etc).

    J.E.Spilimbergo, em raciocnio nessa direo, destaca a importncia do

    nacionalismo perifrico para o encaminhamento de revolues burguesas no efetivadas

    pelas classes dominantes, que impelem as organizaes polticas dos trabalhadores a

    execut-las.41

    Concretamente o que se verifica no caso da Argentina, dirigida por governos

    peronistas legtimos (Nstor e Cristina Kirchner), que vem aplicando os volumosos

    dividendos de suas exportaes agro-pastoris em desenvolvimento industrial e

    programas sociais, na Venezuela chavista, no Estado plurinacional boliviano, no

    Equador de Rafael Correa (aperfeioamento institucional, distribuio de renda, reforma

    agrria, etc) e em menor medida no Brasil (destruio de currais eleitorais via

    programas sociais e investimentos em infra-estrutura, etc).

    Mesmo em Cuba, a valorizao dos mrtires da luta anti-colonialista travada

    contra a Espanha (Jose Marti, Manuel Cspedes, etc), a promoo de valores intrnsecos

    da cultura afro-cubana e a constante retratao do carter patritico do processo

    revolucionrio iniciado em 1959 tem demonstrado o papel positivo do nacionalismo na

    construo socialista.

    O pioneiro marxista latino-americano J.C. Maritegui, avanando na discusso,

    admite que s em pases como a Argentina, onde existe uma burguesia numerosa e

    rica, orgulhosa do grau de riqueza e poder em sua ptria, e onde a personalidade

    nacional tem por estas razes contornos mais claros e ntidos que nestes pases atrasados

    (Peru), o anti-imperialismo pode (talvez) penetrar facilmente nos elementos burgueses;

    mas por motivos de expanso e crescimento capitalistas, no por razes de justia social

    e doutrina socialista, como nosso caso42

    Nos casos em que o anti-imperialismo possui penetrao em elementos

    burgueses e no existe suficiente acmulo de foras por parte do movimento operrio

    para sustentao de hegemonia poltica, seguindo o raciocnio leninista anteriormente

    esboado, o caminho a ser trilhado no sentido do fortalecimento poltico no rumo do

    socialismo consiste na eliminao dos restos feudais ainda existentes, notadamente

    41

    SPILIMBERGO, Jorge Enea. A questo nacional em Marx. Florianpolis: Insular, 2002.

    42

    MARITEGUI, Jos Carlos. Ponto de vista anti-imperialista. In: www.marxists.org (2012).

  • 31

    maiores nas formaes scio-espaciais em que a transio capitalista foi conduzida por

    classes dominantes oriundas do modo de produo anterior (via prussiana).

    O raciocnio de V.I. Lnin, procedendo no sentido da realizao de

    flexibilizao da ttica poltica, o de que a lei fundamental da revoluo, confirmada

    por todas as revolues, e em particular pelas trs revolues russas do sculo XX,

    consiste no seguinte: para a revoluo no basta que as massas exploradas e oprimidas

    tenham conscincia da impossibilidade de continuar vivendo como vivem e exijam

    transformaes; para a revoluo necessrio que os exploradores no possam

    continuar vivendo e governando como vivem e governam. S quando os de baixo no

    querem e os de cima no podem continuar vivendo moda antiga que a revoluo

    pode triunfar. Em outras palavras, esta verdade exprime-se do seguinte modo: a

    revoluo impossvel sem uma crise nacional geral (que afete explorados e

    exploradores). 43

    Esse posicionamento, no campo da economia poltica, tanto marxista quanto

    keynesiana, implica em lutar pela aplicao de medidas como: 1) a defesa alfandegria

    das indstrias infantes; 2) a aplicao da renda monetria oriunda das exportaes na

    importao de mquinas e insumos para a montagem de indstrias modernas e para

    manuteno de taxas de cmbio competitivas; 3) o carreamento de crdito para

    empresas-chave; 4) a pirataria de produtos e tecnologias por pequenos negcios, que por

    vezes tornaram-se promissores etc.44

    Assim sendo, havemos de considerar que a nao , sem dvida, uma categoria

    histrica, uma estrutura que nasce e morre, depois de cumprida sua misso. No tenho

    dvida de que todos os povos da Terra caminham para uma comunidade nica, para

    Um Mundo S. Isto vir por si mesmo, medida que os problemas que no

    comportem soluo dentro dos marcos nacionais se tornem predominantes e sejam

    resolvidos os graves problemas suscetveis de soluo dentro dos marcos nacionais.

    Mas no antes disso. O Mundo S no pode ser um conglomerado heterogneo de

    povos ricos e de povos miserveis, cultos e ignorantes, hgidos e doentes, fortes e

    fracos.45

    43

    LNIN, V.I. Esquerdismo, doena infantil do comunismo. So Paulo: Ed. Smbolo, 1978, p. 96.

    44

    CHANG, H-Joon. Maus Samaritanos: o mito do livre-comrcio e a histria secreta do

    capitalismo. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009.

    45

    RANGEL, Igncio. Recursos ociosos e poltica econmica. So Paulo: Hucitec. 1980.

  • 32

    2. TEORIAS SOBRE O DESENVOLVIMENTO LATINO-AMERICANO

    A Amrica Latina, desde as lutas pela independncia continental capitaneadas

    por libertadores como Simn Bolvar, San Martn e Bernardo OHiggins, vem sendo

    palco de conflitos entre classes sociais defensoras de interesses nacionais e foras

    forneas difusoras do atraso.

    A poltica exterior dos Estados Unidos (tal qual da Inglaterra) visou

    tradicionalmente promover interesses privados, interesses empresariais, com nfase na

    promoo de mercados abertos, livre iniciativa e boas vindas aos investimentos

    estrangeiros... Tambm sua estratgia global sempre foi determinada pelos interesses e

    necessidades do seu processo produtivo e de sua sociedade, e assegurar as fontes de

    materiais estratgicos, tais como os campos de petrleo na Venezuela, as minas de

    estanho na Bolvia, as minas de cobre no Chile etc., existentes na Amrica do Sul, e

    manter abertas as linhas de acesso, as vias de comunicao e transporte, no Atlntico

    Sul e no Caribe.46

    Visando desvendar este complexo emaranhado de conflitos e ofertar sustentao

    terico-ideolgica para as classes sociais em luta, so estruturadas vises de mundo

    voltadas ao enfrentamento dos desafios da realidade latino-americana. digno de

    destaque o precoce surgimento de intelectuais que contrapuseram o determinismo

    colonialista, como o sergipano Manuel Bonfim47

    , que discordava da tese de que o clima

    tropical, a miscigenao e as chamadas raas inferiores eram os principais geradores

    do atraso latino-americano, e o peruano Jos Carlos Maritegui, que propunha a

    peruanizao do Peru.48

    Na atual etapa do desenvolvimento histrico, tratando especificamente do campo

    democrtico-popular latino-americano, continuam a destacar-se em termos de

    penetrao social e acadmica trs principais vertentes de pensamento: 1) cepalina,

    estruturada a partir do pensamento de Raul Prebisch, introdutor da teoria keynesiana na

    Amrica Latina; 2) dependentista, alicerada sobretudo nas idias de Andr Gunder

    Frank e Rui Mauro Marini e 3) rangeliana, baseada na noo de ciclos de acumulao.

    46

    BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. A importncia geopoltica da Amrica do Sul na estratgia dos

    Estados Unidos. In: Revista Espao Acadmico, n 89, outubro de 2008.

    47

    BONFIM, Manuel. Amrica Latina: males de origem. Rio de. Janeiro: Topbooks, 2005.

    48

    MARITEGUI, Jos Carlos. Peruanicemos al Peru. In: Obras completas. Lima: Ed. Amauta, 1975.

  • 33

    2.1. Comisso Econmica para a Amrica Latina e o Caribe CEPAL

    Fundada em fevereiro de 1948 com o intuito de monitorar e planejar as polticas

    voltadas promoo da integrao e do desenvolvimento econmico latino-americano,

    a Comisso Econmica para a Amrica Latina e o Caribe (CEPAL) atualmente uma

    das cinco comisses econmicas regionais da ONU.49

    Sua teoria do subdesenvolvimento, centrada na idia de sistema centro-periferia,

    destaca a industrializao como nico caminho para a superao da misria e das

    desigualdades territoriais, sendo forte contraponto aos postulados da economia clssica

    inglesa.

    Do ponto de vista terico, a corrente liberal no apresentava maior criatividade,

    limitando-se a repetir os velhos princpios da regulao automtica do mercado, com

    sua alocao tima de recursos e a sublinhar a excelncia da Teoria das Vantagens

    Comparativas. A novidade ficava por conta dos desenvolvimentistas que vo encontrar

    na CEPAL o laboratrio para a elaborao e divulgao das novas idias. De fato, com

    a morte de Roberto Simonsen, na segunda metade da dcada de 40, a Comisso

    Econmica para a Amrica Latina e o Caribe tornou-se o grande bastio da

    industrializao e de seu planejamento, que iria congregar os principais pensadores

    dessa nova ideologia.50

    No que se refere aos impactos do comrcio internacional sobre os pases

    subdesenvolvidos, a CEPAL enfatiza a noo de deteriorao dos termos de intercmbio

    (R. Prebisch), que contrape fortemente o princpio das vantagens comparativas de

    David Ricardo. Para a CEPAL, a ampliao das disparidades entre o centro e a periferia

    do sistema capitalista decorre da reduo da taxa de expanso das importaes medida

    que prossegue o progresso tcnico poupador de insumos primrios (menor elasticidade-

    renda dos produtos primrios), provocando desequilbrios estruturais dos balanos de

    pagamento e elevao das taxas de desemprego (tambm gerado por insuficincia de

    poupana). Para agravar a situao, o ritmo de absoro do progresso tcnico

    considerado maior nas economias avanadas do que nas economias atrasadas (ganhos

    49

    Compete recordar que na Argentina e no Brasil dos anos 1950 a existncia da CEPAL foi sustentada

    pelo patritico esforo dos presidentes J.D. Pern e Getlio Vargas (estabelecimento do acordo de

    colaborao CEPAL BNDE em 1952, por exemplo). 50

    MANTEGA, Guido. A Economia Poltica Brasileira. Petrpolis: Ed. Vozes, 1984, p. 12.

  • 34

    de produtividade so transferidos, gerando uma diferenciao da renda em favor das

    naes desenvolvidas).51

    Segundo R. Prebisch, se por coletividade entende-se to somente o conjunto

    dos grandes pases industrializados, verdade que o fruto do progresso tcnico

    distribui-se gradativamente entre todos os grupos e classes sociais. Todavia, se o

    conceito de coletividade tambm estendido periferia da economia mundial, essa

    generalizao passa a carregar em si um grave erro. Os imensos benefcios do

    desenvolvimento da produtividade no chegaram periferia numa medida comparvel

    quela de que logrou desfrutar a populao desses pases. Da as acentuadssimas

    diferenas nos padres de vida das massas destes e daquela, assim como as notrias

    discrepncias entre as suas respectivas foras de capitalizao, uma vez que a massa de

    poupana depende primordialmente do aumento de produtividade.52

    As economias latino-americanas teriam desenvolvido estruturas com baixo nvel

    de diversificao e desarticuladas de um setor primrio-exportador dinmico

    (crecimiento hacia afuera), que, por si s, seria incapaz de espraiar progresso tcnico

    para o restante do sistema, de empregar de forma racional o conjunto da mo-de-obra e

    de permitir o crescimento da renda mdia da classe operria.53

    O angariamento de apoio ao desenvolvimento industrial (substituio de

    importaes) por parte do ente estatal, abarcaria medidas como: 1) emprego de

    dividendos oriundos do setor exportador no fomento da atividade industrial (estmulos

    de mercado ao setor exportador so considerados fora desnorteadora); 2) proteo

    contra a concorrncia externa desigual para defender o crescimento das indstrias

    infantes (F.List, Sistema Nacional de Economia Poltica); 3) utilizao da

    produtividade social marginal como critrio para a seleo dos investimentos e 4)

    realizao de investimentos estatais diretos e planejamento da utilizao da moderna

    tecnologia.54

    51

    BIELSCHOWSKY, Ricardo. Pensamento econmico brasileiro: o ciclo ideolgico do

    desenvolvimento. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004.

    52

    PREBISCH, Raul. O desenvolvimento econmico da Amrica Latina e alguns de seus problemas

    principais. In: BIELSCHOWSKY, Ricardo (org). Cinqenta anos de pensamento na CEPAL. Rio de

    Janeiro: CEPAL/COFECON, 2000.

    53

    COLISTETE, Renato Perim. O desenvolvimentismo cepalino: problemas tericos e influncias no

    Brasil. In: Estudos Avanos, n 41, jan./abr. 2001.

    54

    ... teria ocorrido uma mudana de direo do crescimento perifrico a partir da I Guerra Mundial, num processo que ganharia um impulso decisivo na depresso dos anos 30. At ento o crescimento havia sido

  • 35

    Compete mencionar, a propsito da viso em questo, a enorme relevncia da

    realizao de reformas como forma de superao de distores histrico-estruturais: a

    Cepal apontava como medidas corretivas dos bloqueios a adoo de reformas estruturais

    levadas a efeito pelo Estado, principalmente a reforma agrria, pois a concentrao de

    terra provocava restries insuperveis ao mercado interno, impedindo o avano

    industrial, alm de que a agricultura latifundiria trabalhava com tcnicas primitivas,

    gerando baixa produtividade e insuficincia de alimentos e matrias-primas nas cidades,

    e assim elevao dos custos industriais. A transferncia de mo-de-obra da agricultura

    para a indstria provocaria automaticamente, na viso da Cepal, distribuio de renda,

    decorrente do aumento de produtividade, e a reforma agrria ampliaria o mercado

    interno, atendendo s necessidades do avano da industrializao.55

    2.2. Teoria da Dependncia

    Nascida como suposta superao do desenvolvimentismo cepalino, a teoria da

    dependncia buscou compreender o enfrentamento do subdesenvolvimento latino-

    americano abandonando a questo do vencimento de etapas histricas (W.W. Rostow).

    Escrita entre 1966 e 1967 na cidade de Santiago do Chile por Cardoso e Faletto,

    Dependncia e desenvolvimento na Amrica Latina procurou explicitar a natureza social

    e poltica do desenvolvimento latino-americano, demonstrando que as condies,

    possibilidades e formas deste processo so influenciadas por relaes de dependncia

    com os plos hegemnicos do sistema capitalista.

    Os autores sintetizam que ... o problema terico fundamental constitudo pela

    determinao dos modos que adotam as estruturas de dominao, porque por seu

    intermdio que se compreende a dinmica das relaes de classe. Ademais, a

    configurao em um momento determinado dos aspectos poltico-institucionais no

    pode ser compreendida seno em funo das estruturas de domnio. Em conseqncia,

    para fora, dentro do padro primrio-exportador. As transformaes na economia mundial... teriam sido responsveis por um processo espontneo de industrializao, dinamizado por problemas de

    desequilbrios no balano de pagamentos. BIELSCHOWSKY, Ricardo. Pensamento econmico brasileiro: o ciclo ideolgico do desenvolvimento. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004. p. 17.

    55

    MAMIGONIAN, Armen. Teorias sobre a industrializao brasileira. In: Cadernos Geogrficos (n

    2). Florianpolis: DGC/UFSC, 2000. O autor destaca ainda o equivoco interpretativo desta escola no que

    se refere ao Regime Militar Brasileiro, que no encaminha reformas estruturais de cunho social para

    acelerar vitoriosamente a concluso do parque fabril nacional (Departamento I Bens de Produo).

  • 36

    tambm por intermdio de sua anlise que se pode captar o processo de transformao

    da ordem poltica institucional. Esta opo terica fica apoiada empiricamente pelo fato

    de que as transformaes histricas significativas do processo de desenvolvimento

    latino-americano tm sido acompanhadas, seno de uma mudana radical na estrutura

    de dominao, pelo menos pela adoo de novas formas de relaes, e portanto de

    conflito, entre as classes e grupos.56

    A hiptese apresentada na obra a de que a vida poltica e o perfil das

    sociedades latino-americanas assumiram conotaes diferenciadas conforme se tratasse

    de pases que mantiveram o controle nacional do sistema exportador ou em que

    prevaleceram economias de enclave na fase de crescimento para fora. Segundo os

    autores ... a reao ao sistema que supe o enclave, por parte dos grupos locais que

    controlavam a economia, permitiu, em certos pases, uma poltica do retraimento que

    tratava de manter o controle de parte do sistema produtivo e, ao mesmo tempo, de

    avano poltico no sentido de que por intermdio da mesma burguesia mercantil-

    financeira ou rural alcanou-se o acordo bsico com os setores do enclave. Em outros

    pases, a prpria debilidade do sistema exportador exposto presso dos grupos

    intervencionistas internacionais no permitiu, seno de forma muito dbil, a referida

    poltica de retraimento e acomodao. De atores do processo produtivo passaram a ser

    gestores de empresas estrangeiras, limitando-se assim o alcance econmico do setor

    nacional ao controle regional da produo agrcola ou mineira destinada ao mercado

    interno.57

    Mesmo a tima conjuntura do perodo desenvolvimentista inaugurado com a

    crise de 1929, que permitiu o desencadeamento de substituies de importaes do

    chamado Departamento II (bens de consumo) e a complexificao das sociedades

    latino-americanas, no impediram a posterior abertura de uma fase de estagnao, visto

    que no foram reorganizados os sistemas social e poltico, com determinados grupos

    no sendo apeados do poder.

    Avanando para o processo de mundializao do capital que ento se iniciava,

    visando um contraponto s teses sobre a inevitabilidade da estagnao decorrente da

    contradio entre imperialismo e questo nacional, os autores mencionados defendem a

    56

    CARDOSO, Fernando Henrique; FALETTO, Enzo. Dependncia e desenvolvimento na Amrica

    Latina: ensaio de interpretao sociolgica. Rio de Janeiro: Ed. Civilizao Brasileira, 1970, p. 22.

    57

    Idem, p.53.

  • 37

    equivocada idia de que pode ser processada a ampliao dos mercados internos das

    economias mais frgeis por intermdio da entrada de investimentos industriais externos.

    Para tanto, Cardoso e Faletto cunham a noo de desenvolvimento dependente-

    associado com o intuito de mostrar a convergncia dos interesses nacionais e

    internacionais para superar a estagnao.

    Em resumo, insistindo que as teias de relaes polticas que uniam dois tipos de

    economia as desenvolvidas e as subdesenvolvidas , moldavam s formas de

    desenvolvimento poltico e social de cada pas da regio58

    , os autores defendiam que as

    alianas dos grupos e foras sociais internas esto afetadas por sua vez pelo tipo e

    intensidade das mudanas, e estas dependem, em parte, do modo de vinculao das

    economias nacionais ao mercado mundial; a articulao dos grupos econmicos

    nacionais com os grupos e foras externos realiza-se distintamente e com conseqncias

    diferentes, antes e depois de comear um processo de desenvolvimento. O sistema

    interno de alianas polticas altera-se, alm disso, muitas vezes em conseqncia das

    alianas existentes no plano internacional.59

    A propsito da referida anlise, mister destacar que seu posicionamento difere

    significativamente de outros autores da chamada escola dependentista que viam no

    socialismo a nica alternativa para superao do subdesenvolvimento. Para os

    dependentistas de esquerda60

    , a dominao imperialista s passvel de sustentao em

    decorrncia da existncia de elites locais incapazes de pensar suas naes sem

    58

    Ao apresentar essas relaes desiguais estabelecidas entre as economias avanadas e atrasadas -

    referendando empiricamente os casos de Argentina, Brasil e Mxico - como determinantes do

    desenvolvimento dos pases latino-americanos, so contrapostos os determinismos culturalistas de

    Lawrence Harrison (The Central Liberal Truth) e M. Novak (Why Latin America is poor?), bem como o

    desenvolvimento linear rostowiano que inspirou a parbola The Grocer and the Chief de Daniel Lerner.

    59

    CARDOSO, Fernando Henrique; FALETTO, Enzo. Dependncia e desenvolvimento na Amrica

    Latina: ensaio de interpretao sociolgica. Rio de Janeiro: Ed. Civilizao Brasileira, 1970, p. 29.

    60

    Andr Gunder Frank (Capitalismo y subdesarrollo em America Latina. Buenos Aires, Signos, 1970), ao

    colocar que o capitalismo comeou a caracterizar a sociedade latino-americana e chilena no sculo XVI,

    torna procedentes as consideraes de George Novack (Formaes hbridas e a revoluo permanente na

    Amrica Latina. In: O desenvolvimento desigual e combinado na histria. So Paulo: Ed. Sundermann,

    2008) a propsito de sua interpretao dependentista da histria, visto que esta: 1) concentra-se

    excessivamente na esfera das trocas em detrimento das relaes estabelecidas no mbito da produo,

    desconsiderando que os artigos de consumo podem ser confeccionados em condies pr-capitalistas,

    sendo o capital mercantil uma forma que antecede e cria as condies (antediluviana) para a instalao do

    modo de produo capitalista; 2) no atenta para a possibilidade de coexistncia de formas menos

    desenvolvidas do capital com condies estruturais pr-capitalistas; e 3) perde de vista a questo do uso

    das condies pr-capitalistas como mecanismo central da explorao colonial e de beneficiamento do

    nascente capitalismo europeu.

  • 38

    orientao externa, ou seja, de encaminhar revolues burguesas prprias (burguesias

    associadas).

    Igualmente o reformismo de governos com tendncia mais popular

    considerado insuficiente por estes tericos da dependncia, dada a situao de

    superexplorao dos trabalhadores configurada pelo fato de que estes recebem um

    salrio inferior ao nvel de subsistncia com carga de trabalho ampliada e que parte da

    mais-valia transferida para o centro dinmico do sistema pela troca desigual de

    mercadorias no comrcio internacional e pelas multinacionais (mais-valia

    extraordinria).61

    Andr Gunder Frank escreveu, nessa poca, vrios artigos na Revista

    Brasiliense e outros tantos livros tentando demonstrar as caractersticas do

    desenvolvimento do subdesenvolvimento, trazendo para o Brasil as idias da nova

    esquerda norte-americana, cujos expoentes, como Paul Baran, Paul Sweezy, Harry

    Magdoff e Leo Huberman, tornavam-se conhecidos no pas. Se o Brasil j era capitalista

    e subdesenvolvido, porque explorado pelo imperialismo, como se dava a produo do

    excedente nacional? Coube a Rui Mauro Marini responder a essa questo com sua teoria

    da superexplorao dos trabalhadores perifricos, explorados, a uma s vez, tanto pela

    burguesia local quanto pela imperialista, e sem condies aquisitivas de consumir as

    mercadorias produzidas pela indstria nacional. Nessa circunstncia, diante da

    precariedade do mercado interno, s haveria uma maneira de se expandir a acumulao

    industrial brasileira: invadir os mercados dos pases da Amrica Latina ainda menos

    desenvolvido do que o Brasil. E assim surgia a tese do subimperialismo brasileiro

    juntamente com a tese do capitalismo colonial, com a tese do desenvolvimento do

    subdesenvolvimento e com a tese da superexplorao da fora de trabalho...62

    De acordo com Marini, o desenvolvimento das foras produtivas a nvel

    mundial, dentro dos padres capitalistas, sequer permite avanos em termos de

    superao desse circulo vicioso, considerando a maior integrao do sistema e os

    crescentes investimentos externos realizados na periferia capitalista: Se certo que a

    estatizao e a militarizao imperialista se realizam em funo do campo socialista,

    tambm certo que obedecem a dinmica prpria do sistema e expressam os

    61

    BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. Do Iseb e da Cepal teoria da dependncia. In: TOLEDO, C. N.

    de. (org.) Intelectuais e poltica no Brasil: a experincia do Iseb. Rio de Janeiro: Revan, 2005.

    62

    MANTEGA, Guido. A Economia Poltica Brasileira. Petrpolis: Ed. Vozes, 1984, p. 15.

  • 39

    mecanismos bsicos que os regem. Em ltimo caso, esta dinmica e estes mecanismos

    se referem acumulao de capital no interior do sistema, que tende a concentrar pela

    superexplorao do trabalho nas economias perifricas partes sempre crescentes de

    mais valia nos centros integradores. O aumento do excedente aplicvel de que dispe,

    mesmo que seja dissipado em atividades no produtivas, como indstria blica e a

    publicidade, acarreta um incremento constante dos investimentos diretos nas economias

    perifricas, atravs das quais se realiza progressivamente a integrao do sistema

    produtivo destas ao sistema do centro integralizador63

    A anlise apresentada culmina com a proposio do socialismo como nico

    mecanismo de superao do subdesenvolvimento, desconsiderando, em diversos casos

    concretos, a necessidade de agravamento da contradio entre as foras produtivas e as

    relaes de produo, bem como de enorme acumulao de foras polticas de cunho

    revolucionrio, para a efetivao do processo de transio socialista.

    Por lo tanto, la propuesta de avanzar en la construccin del socialismo del siglo

    XXI es una invitacin que no debe ser desechada. Claro esta que, en el terreno

    econmico, se trata de un socialismo superador de la anacrnica antinomia

    planificacin centralizada o mercado incontrolado y que, en cambio, abre espacios

    para la imaginacin creadora de los pueblos en la bsqueda de nuevos dispositivos de

    control popular de los procesos econmicos, dotados de la flexibilidad suficiente para

    responder con rapidez al torrente de innovaciones que da a da modifica la fisionomia

    del capitalismo contemporneo... en caso de que no logremos constituirlo, lo que resta

    es ser testigos de la perpetuacin y agravamiento de esta barbarie que pone en peligro la

    sobrevivencia misma de la especie humana64

    2.3. Ciclos de Acumulao (Ignacio Rangel)

    Ignacio Rangel, como bem destaca R. Bielschowsky65

    , o mais original

    intrprete do desenvolvimento econmico brasileiro. Economista maranhense,

    63

    MARINI, Rui Mauro. Subdesenvolvimento e Revoluo. In: BARSOTTI, Paulo; PERICS, Luiz

    Bernardo (orgs). Amrica Latina Histrias, Idias e Revoluo. Ed. Xam, So Paulo, 1999, p. 117. 64

    BORON, Atlio Alberto. Socialismo del siglo XXI - Hay vida despus del neoliberalismo? Ciudad

    de Buenos Aires: Ed. Luxemburg, 2008, p. 41.

    65