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    sem medo de voar

    Apresentao de

    Igncio de Loyola Brando

    Padre Beto

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    Fui floresta porque queria viver profundamente

    e sugar a essncia da vida.

    Eliminar tudo o que no era vida.

    E no, ao morrer, descobrir que no vivi.

    (Henry David Thoureau)

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    PREFCIO

    Padre Beto: um cronista

    Padre Beto (nada a ver com Frei Betto) me faz inveja. Inveja danada, saud-vel. Primeiro, porque morou anos em Munique, fala alemo correntemente,

    enquanto morei em Berlim e nunca falei a lngua. Somente ao ler os textosdele que percebi o quanto perdi, o quanto poderia ter aproveitado a mais,se falasse a lngua.

    Padre Beto viajou muito. Um dia estava em vora, no outro em Hamburgo,em seguida aparecia na Ilha de Skye (Esccia), em Edimburgo, depois surgiaem Flandres, em Frankfurt, em Varsvia, e assim indefinidamente. Bem,

    viajar, muita gente viaja. No entanto, de cada viagem Padre Beto extrai ummomento no qual se apia para transform-lo em crnica. E aqui est outroponto em que minha inveja se acentua, sendo eu tambm um cronista. Por-

    que parece-me que, finalmente, surgiu no Brasil um cronista que, partindodo cotidiano, no fica na superfcie, faz observaes profundas, sagazes, sar-csticas, humanas, sobre comportamento, religio, f, esperana, mudanade vida, solidariedade, prazer.

    Ele inaugura um gnero diferente de crnica no Brasil porque, sendo reli-gioso at o mago, sabe ver Deus, amor, comunicao, arte, erotismo, con-fisso, comunho, espiritualidade e assim por diante. Melhor ainda, PadreBeto fala de tudo isso sem ser dogmtico nem pedante. Enfim, sem ser cha-to, para usar expresso coloquial. Ele flui suavemente e nos d o amor ao

    prximo, a felicidade, o tempo, a inteligncia, o profano, a mediocridade,a culpa, o perdo. Ah, como eu queria ser um cronista assim. Ah, como euqueria que todos os cronistas fossem assim, com essa docilidade (sem perdera dureza) diante do mundo e do homem. Todavia, o que me deixou perple-

    xo foi ver que este cronista da vida tambm essencialmente um cronistade cinema. Porque suas observaes passam invariavelmente pelo cinema,por filmes que vo de Matrixa O pescador de iluses, Dogma, Quero ser John

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    Malkovich, Sociedade dos poetas mortos, Show de Trumane outros. Padre Beto

    fala de Bon Jovi, Rod Stewart, Raul Seixas, Drcula, Pink Floyd, LegioUrbana, Van Gogh, Plato. No, no, no! No pensem que uma salada.Jamais vi tantas coisas equilibradas, bem balanceadas, colocadas cada uma(direitinho) no lugar.E chego ao que quero: este um livro que me fez bem. Li de uma assentadapor que impossvel no faz-lo. Mas ento percebi que deveria reler lenta-mente, segmento a segmento, trecho a trecho. Porque cada segmento meconduz por uma trilha nova a cada releitura. Este livro me ajudou a refletirsobre as coisas e a aprender a refletir. Ele me acalmou, me levou a aprender

    a me concentrar, a olhar para mim mesmo, meus atos, gestos, minhas atitu-des em relao aos outros. Quero dizer, no posso mais esconder, que estelivro (por favor, me entenda bem) pode ser (por que no?) de auto-ajuda.De auto-ajuda? Sim. No melhor sentido da palavra. No verdadeiro. Sempreconceitos. Na acepo que o gnero deve ter tido primordialmente. PadreBeto me faz inveja. Por ser um cronista de viagem, de cinema, de auto-ajuda,do cotidiano, da alma, da tica, do prazer, da ironia, da crtica. E para mimrecolhi um fragmento. Eu, que sempre pensei na esperana como acomoda-o (quem espera sempre alcana), descobri que o contrrio. Aqui aprendi

    que, segundo Padre Beto, ela (a esperana) no de forma alguma sinni-mo de comodismo, mas sim uma motivao que nos impulsiona para viver.Quem possui esperana na verdade, no espera. Como uma verdadeira foraprogrediendi, a esperana o impulso de vida que nos retira da passividade enos faz lutar Quem esperanoso est orientado para o futuro, e espera,ativamente, pela realizao de algo desejado. Demais, Beto!

    Igncio de Loyola Brando

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    INTRODUO

    Sem medo de voar: crnicas de jornal

    As crnicas reunidas neste pequeno livro so fruto de experincias vividasdurante minhas andanas pela Europa. Ao ser aceito como seminarista pela

    Diocese de Bauru, foi-me oferecida a oportunidade de fazer o curso deTeologia na cidade de Munique, Alemanha. Em julho de 1992, eu embarcavapara um pas estranho que mais tarde se tornaria minha segunda ptria.

    Assim comeava para mim uma rica experincia de descoberta de novoscostumes e de outra mentalidade. Nesses anos de Europa, tive o prazer deconhecer pessoas de diversas culturas, visitar diferentes pases e me aproxi-mar de realidades at ento completamente estranhas. Durante meu cursode Teologia, foi crescendo o interesse pelo dilogo entre duas reas aparen-temente diversas: o Cinema e a Religio. Justamente a relao entre estasduas reas tornou-se o tema central de minha tese de Teologia publicada na

    Alemanha, na qual fiz uma anlise teolgica do clssico brasileiro Deus e oDiabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha. Ao terminar o curso de Teologia edepois de ordenado padre no Brasil, retornei para a Alemanha e iniciei meudoutorado. Continuando com a obra cinematogrfica como objeto de an-lise, desenvolvi minha tese na rea de tica Social, na qual procurei provar aimportncia do Cinema para a memria histrica de uma sociedade. J nosmeus ltimos anos de estudo comecei a contribuir com crticas e anlises defilmes para alguns jornais brasileiros. Esse exerccio possibilitou-me aceitar,em julho de 2000, a oferta feita peloJornal da Cidade, de Bauru. A propostaera escrever uma coluna semanal abordando os mais variados temas e nar-rando experincias pessoais vividas na Europa. As crnicas deveriam abor-dar mundos diversos: o mundo individual e o social, o mundo brasileiro eo alemo, o latino-americano e o europeu, o mundo da poltica, da religio,da arte... Este objetivo de sobrevoar diversos mundos e diferentes realida-des levou-nos a batizar a coluna com o ttulo de Sobre Mundos. Assim, acoluna procurou ser um espao de reflexo sobre os diferentes aspectos da

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    vida, os quais, na verdade, no se constituem em mundos paralelos, mas sim

    em dimenses de uma mesma vida humana que interagem entre si constan-temente formando uma verdadeira unidade orgnica, como diz FernandoPessoa: O que em mim sente est pensando.

    Ao terminar meu doutorado, em novembro de 2001, e retornando terranatal, fui incentivado pelos leitores a publicar uma coletnea de meus arti-gos. Pois bem, aqui est Sem medo de voar, o livro. Esta coletnea pretendeno s lanar impulsos para uma reflexo sobre o ser humano, sua realidadefamiliar e social, como tambm sua relao com o Ser Transcendente quecostumamos chamar de Deus. Este livro possui a pretenso de incentivar o

    leitor a buscar uma vida cada vez mais ativa, integrando os diversos mun-dos de seu universo na perspectiva de sua realizao pessoal. Espero queeste pequeno livro possa realmente convencer o leitor de que necessrioque cada um plante seu jardim e decore sua alma, em vez de esperar quealgum lhe traga f lores (William Shakespeare).

    Padre Beto

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    saiu da minha boca o Por qu? de costume. claro que eu aguardava

    tambm uma tpica resposta do tipo: mdico ganha muito dinheiro, possuitimo status, eu quero ter uma Mercedes ou uma BMW... Mas no era bemnesse mundo capitalista que estava o objetivo de Alfredo. Aquele garotinhofranzino de olhar triste ficou iluminado de entusiasmo e, com um sorriso,comeou a me contar que queria ser mdico para ir trabalhar na frica, poisnaquele continente havia muitas crianas, como ele, que morriam por faltade cuidados mdicos, que perdiam a vida por causa de doenas que hoje emdia so facilmente curadas. Eu fiquei ali, na cozinha, com o prato de saladanas mos, a ouvir o Alfredo contando de seu futuro como mdico na frica

    por quase vinte minutos. Foram minutos nos quais me recordei do meuprprio idealismo e dos sonhos que um dia me entusiasmaram e me fizeramsonhar com uma vida cheia de sentido e repleta de boas aes. Comeceiento a me questionar como os seres humanos diante da chamada vidaadulta, com seus problemas e dificuldades, com sua rotina e monotonia,preferem enterrar o santo idealismo, taxando-o de infantil, em vez de realiz-lo. Diante de Alfredo fiquei pensando quem era realmente o adulto nacozinha. Aquele italianinho comunicativo no havia estudado filosofia,e provavelmente no conhecia Karl Marx, mas incorporava a postura de

    ser sujeito da histria, j compreendia que, mais importante que pensar ahistria, transform-la em algo melhor. Alfredo no conhecia nenhumdos existencialistas, mas j parecia entender que depende de ns mesmosdar ou no um sentido para a vida. Provavelmente ele s ouvira falar de

    Jesus Cristo, e mesmo sem entender muito bem a sua mensagem, j sentiaem si prprio o to almejado amor ao prximo, amor que pode eternizarmomentos. Por fim me veio mente o Brasil e o pensamento de como nessepas a fartura e o bem-estar deixariam de ser monoplio de poucos, se cadaum de ns no abandonasse seus sonhos e seus desejos altrustas.

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    HOMOPOLITICUS

    NOFINALDOSANOS1960deveria ser construdo em Munique o CentroOlmpico para ser a sede das Olimpadas de 1972. A administrao da cida-de escolheu ento uma rea despovoada nos arredores de Munique. Quandoos engenheiros comearam a estudar o local detalhadamente, descobriram

    um morador inesperado: um ermito, que h muitos anos vivia na rea. Omonge russo havia feito a opo de viver sozinho, em completo silncio e emorao. Para a prefeitura, a soluo do caso seria simples, o ermito deveriaprocurar outro lugar. A notcia da presena do ermito e de seu despejo, po-rm, espalhou-se por toda a cidade. Iniciou-se ento uma discusso nos jor-nais e em diversas organizaes sobre o monge e o Centro Olmpico. A po-pulao acabou ficando do lado do ermito e mobilizou-se para pressionar aadministrao da cidade a no o retirar do to cobiado lugar. A presso foitamanha que a prefeitura de Munique no teve outra alternativa: o Centro

    Olmpico foi construdo no lugar planejado, mas uma rea verde foi deixadaintacta, a rea na qual o ermito vivia. Esta histria, at hoje lembrada, temdois aspectos que merecem ateno. O primeiro o fato de um ermito,uma pessoa que fez opo pelo silncio, ter sido a causa de um barulho togrande. Um homem sozinho e solitrio acabou mobilizando uma cidade dotamanho de Campinas. O segundo o fato de que o isolamento e a solidoparecem ser realmente impossveis.

    Todos ns, seres humanos saudveis, possumos dentro de nossa almaprimitiva um movimento que nos conduz para fora, um impulso natural

    de personificao. No por menos que nos denominamos pessoas,termo que exprime o estado de ser aberto, de manter-se em expanso. Apalavra pessoa tem sua origem na expresso personare, o que significa soaratravs de. Esta expresso designava as mscaras que os atores de teatro,na Grcia antiga, usavam para que suas vozes fossem projetadas, j que napoca no havia microfones. Alm disso, as mscaras davam aos atores asfeies dos personagens que deveriam representar, que normalmente eramgrandes personalidades. Toms de Aquino tirou da a idia de utilizar a pala-

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    vra pessoa para esclarecer melhor a nossa natureza humana. Como os ato-

    res gregos utilizavam as personas para representar grandes personalidades,Toms de Aquino achou por bem chamar de pessoa o ser que possua o queele denominava de dignidade especial (magna dignitas): a potncia da razo,do pensamento. A partir da, o ser humano passou a ter o statusde pessoa,ou seja, aquele que capaz de fazer soar de forma consciente sua voz atravsdo Universo.

    Como pessoas, ns possumos duas dimenses bsicas: ns existi-mos e nos relacionamos. Bocio j definia o ser humano como naturaerationalis individua substancia, ou seja, ns somos substncia que existe em

    si e pensa. Ningum pode me substituir. Ningum pode pensar por mimou ser o que sou. Todos ns somos nicos, insubstituveis. O que faz, porexemplo, da clonagem uma grande iluso, pois caso algum dia algum

    venha a fazer a clonagem de um ser humano, o resultado ser simplesmentegmeos de laboratrio e no pessoas iguais. Por outro lado, ns surgimoscomo nicos a partir da unio de duas pessoas e existimos como pessoa atra-

    vs do relacionamento com nossos semelhantes, ou seja, ser pessoa viverem relao. Tudo que vive no vive sozinho nem para si mesmo (WilliamBlake). Aqui necessrio pensar dialeticamente. Somos pessoa pois somos

    capazes de nos relacionar, e na relao comunicativa com outros e como mundo que nos tornamos cada vez mais pessoa. A personalidade desen-volve-se somente na interpersonalidade, na comunicao. Justamente essacumplicidade que possumos uns com os outros que nos define como serespolticos. Viver como pessoa significa tornar-se cada vez mais poltico, ouseja, viver de forma consciente as relaes em sociedade.

    Ser poltico no significa necessariamente ser candidato nas prximaseleies, mas, por exemplo, saber a ligao existente entre os impostos quepago, o chopinho que tomo com os amigos em um barzinho e a situaodos menores que cuidam do meu carro l fora enquanto deveriam estarcom suas famlias em casa. Ser poltico sempre, nas relaes do dia-a-dia,procurar pensar tambm na situao do outro, tornando-se assim cada vezmais humano. Ser poltico ser pessoa: um ser aberto para o outro. Certa

    vez, escreveu Bernard Shaw sobre aqueles que negam sua natureza de pessoa:O pior pecado contra nossos semelhantes no o de odi-los, mas o de lhesser indiferentes.

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    NINGUMNASCEUPARASERANJO

    EXISTIACERTAVEZUMANJOchamado Seth que vivia na cidade de Los An-geles. Seth levava uma vida normal como a de qualquer outro anjo: passavadia e noite observando os seres humanos. Acompanhava-os em suas diversasaventuras e, no momento da morte, Seth os conduzia para a to sonhada

    eternidade. Durante o nascer e o pr-do-sol, Seth reunia-se com os outrosanjos beira do mar para ouvir o canto celestial de glria ao Criador. Ummomento mgico que somente alguns seres humanos so capazes de perce-ber por possurem uma sensibilidade toda especial.

    Durante suas andanas por Los Angeles, Seth comeou a percebernitidamente a diferena entre a vida dos seres humanos e a dos anjos: umanjo , por natureza, imortal, j um ser humano surge para a existnciaem um determinado momento. Esse momento nico e acontece normal-mente quando duas pessoas se amam. Estando na existncia, o ser humano

    comea a se desenvolver, primeiro em sua vida intra-uterina isso vistopela perspectiva dos humanos adultos, pois para o novo ser o tero umuniverso prprio, repleto de emoes e coberto de segurana. Depois de umcerto tempo esse mundo ameaado e passa por uma destruio, por uma

    verdadeira morte: o nascimento. O novo ser humano nasce para um mundomuito maior do que o anterior. Nesse novo mundo ele continua a desenvol-

    ver-se, passa pela infncia, adolescncia, juventude, at atingir uma idade, naqual considerado suficientemente maduro, a chamada vida adulta. Masesta no dura eternamente, em algum momento o ser humano salta para

    outra dimenso, para outro mundo que com certeza muito maior do queeste. Essa passagem j no chamada nascimento, mas sim morte. Sethfoi percebendo ento que diante da vida dos humanos sua imortalidade erasinnimo de monotonia. Enquanto um anjo observador da vida, um serhumano vivencia a cada minuto o prazer e a dor de estar na vida. Enquantoum anjo um observador da histria, um ser humano vive nela, podendoconstru-la e transform-la. O ser humano o verdadeiro protagonista dahistria. Diante dessas diferenas, Seth comeou a sentir o desejo de deixar

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    aquela vida de anjo e tornar-se humano. Esse desejo tornava-se desesperada-

    mente forte sempre que Seth aproximava-se de uma jovem chamada Meg,uma mdica que se debatia em uma crise existencial desde o momento emque havia perdido um paciente na mesa de operao. Ela, que confiara tantona cincia, sentia-se agora impotente diante de uma fora muito maior queseus conhecimentos mdicos. A situao de Meg foi aos poucos sensibilizan-do Seth e fazendo nascer algo verdadeiramente mgico: o amor. Por meio donovo sentimento, Seth foi tornando-se cada vez mais humano at cair defi-nitivamente na realidade humana, tornando-se inteiramente gente. A partirdesse momento Seth passou finalmente a sentir de forma radical o prazer e

    a dor de ser humano.Esta pequena histria na verdade o roteiro do filme Cidade dos Anjos,do diretor Brad Silberling, com Nicolas Cage e Meg Ryan. Com a histriade Seth, Cidade dos Anjosno tem a inteno de fazer especulaes sobre aexistncia de anjos e muito menos de ser uma descrio de suas vidas. Maisimportante que isso, o filme uma metfora da prpria vida humana. Aquiencontramos uma parbola que nos questiona sobre a postura diante da

    vida e quer ser um apelo para que nos tornemos mais vivos, mais humanos.Muitos homens e mulheres vivem a vida, do nascimento at a morte, como

    se fossem verdadeiros anjos: so simples observadores da histria. Deixamque outras pessoas decidam sobre suas vidas, no expressam livremente suasopinies, no lutam para realizar seus sonhos, por medo da reao do gruposocial em que vivem, e acabam, finalmente, aceitando aquilo que a maioriadetermina como correto. Dessa forma o ser humano perde a chance nicaque lhe foi dada: a de viver realmente, a chance de ser protagonista da hist-ria, transformando-a com sua autenticidade. Se somos mais um na massa,deixamos de ser humanos e a vida perde totalmente seu sentido. Segundo ahistria de Seth, o caminho perfeito de humanizao o concreto sentimen-to de amor. o amor que cria em ns uma orientao ativa e produtiva emtodas as esferas da vida. Se verdadeiramente amo algum, escreveu ErichFromm, ento amo a todos, amo o mundo, amo a vida.

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    VIVERARELAOCENTRALDAAMIZADE

    ERAAMINHAPRIMEIRASEMANAna Alemanha. Depois de um vo inter-nacional de doze horas e de ter sobrevivido ao movimentado aeroportode Frankfurt, um dos maiores da Europa, havia alcanado meu destino:Munique, a capital da Baviera. Fui recebido no aeroporto por um dos fun-

    cionrios da Arquidiocese e levado imediatamente minha nova residncia,o seminrio internacional Herzoglisches Georgianum. Com 504 anos deexistncia, o Georgianum o segundo seminrio mais antigo do mundo e oprimeiro a ser construdo no mundo germnico. Mantido pela Confernciados Bispos da Alemanha, o Georgianum fora no passado a casa de nomesimportantes na Europa, entre eles o prefeito da Congregao para a Doutri-na da F, Josef Cardial Ratzinger. Localizado em uma das avenidas principaisda cidade de Munique, o Georgianum impressiona pela grandeza de suaconstruo em estilo renascentista, um presente do rei Lus I da Baviera.

    Minha primeira impresso do seminrio no poderia ter sido melhor, poiso clima naquele dia era de festa. O Georgianum realizava a chamada Festade Vero. Uma festa tradicional que promovida em vrias casas alems,sempre nos ltimos dias de julho, e que proclama o incio das frias para osestudantes. O significado da festa ficou claro para mim no dia seguinte. Seminha primeira noite no mundo germnico foi marcada por muitas risadas,expresses de boas-vindas e uma tima cerveja alem, a partir do segundodia aquele casaro parecia mais um museu fechado para reformas. Quandoacordei no dia seguinte, o Georgianum estava praticamente vazio, todos os

    estudantes j haviam viajado para a casa. Na Baviera, as aulas na universi-dade terminam no final de julho e recomeam somente em outubro. Assimeu iniciava um perodo que deveria ser marcado pelo isolamento em umacidade de 1,5 milho de habitantes. Alguns poucos estudantes ainda ha-

    viam ficado, mas a gente se encontrava somente por acaso nos corredores eescadarias da casa. Alm disso, as bases para estabelecer contatos no eramas ideais: faltava-me o instrumento principal de comunicao, meu alemoresumia-se praticamente em Ja e Nein, e os alemes sempre precisam de

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    uma cerveja para realmente se sentir vontade na frente de estranhos. Ape-

    sar da cidade e da cultura parecerem atraentes e fascinantes, eu comeava aexperimentar o significado da palavra solido. Foi ento que, em uma tarde,algum bateu em minha porta. Ao abri-la, deparei com um jovem de culose estatura pequena. Thomas era um seminarista alemo vindo de uma regioque faz fronteira com a Blgica, e em Munique estudava Sociologia na Uni-

    versidade Estadual da Baviera. Depois de vrios gestos e risadas, tive a ntidaimpresso que naquele momento eu havia encontrado um amigo. Nos diasseguintes encontrvamo-nos sempre tarde, no jardim do seminrio, e onosso meio de comunicao passou a ser um pequeno dicionrio alemo-

    portugus. Com aquele dicionrio de bolso, Thomas e eu acabamos reali-zando um milagre. Atravs dele trocvamos idias sobre praticamente tudo:nossos pases, msica, o sistema capitalista, arte ou a estrutura da Igreja. Na

    verdade, o maior milagre era a amizade que nascia entre ns, duas pessoasde culturas, lnguas e mentalidades diferentes que tentavam se conhecer pormeio de um pequeno dicionrio de bolso. O tempo foi passando, algumasbarreiras foram ultrapassadas e outras diferenas foram aparecendo, mas aamizade continua at hoje. Quando Thomas deixou o seminrio, entreguei-lhe o pequeno dicionrio de bolso, que no usvamos mais, mas que havia

    se transformado em um sacramento da nossa amizade.Muitos outros amigos surgiram durante esses anos na Europa, masa amizade de Thomas sempre ficou para mim como a mais significativa. Abase de uma verdadeira amizade o amor descomprometido, o interessedesinteressado. Este tipo de sentimento surge da experincia de que todossomos um, ou seja, quando deixo de olhar na periferia das pessoas (nacio-nalidade, lngua, nvel econmico, cultura...) e passo a v-las em seu ncleohumano comum a todos os homens. Se deixo as diferenas perifricas quenos separam e penetro no ncleo humano de cada um, passo ento a sentiro que significa fraternidade, solidariedade humana. Assim estou em umarelao central com as pessoas, a base para se construir uma verdadeiraamizade. Esta relao central como condio para a verdadeira amizade tematizada pelo diretor Peter Chelson em seu filme Sempre Amigos (TheMighty), uma pequena obra de arte com a bela Sharon Stone que traz o que

    Vincius de Morais certa vez escreveu: A vida a arte do encontro.

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    TOM:VIDADEFEPAZDECONSCINCIA

    NAFIGURABBLICADEUMdos discpulos de Jesus encontramos um conecristo que exemplifica muito bem o significado do fenmeno da f. Eusou como So Tom, eu quero ver para crer. Infelizmente a incredulidade

    vem sempre relacionada ao discpulo de Jesus chamado Tom, porque ele

    no acreditou na apario do Mestre. Porm, quem observa a prtica deTom no grupo de Jesus redescobre o verdadeiro significado da f e comeaa ver Tom como um exemplo que deve ser seguido por todos aqueles quequerem ter um relacionamento vivo e profundo com o ser superior quechamamos de Deus.

    Tom aparece trs vezes no Evangelho de Joo. Na primeira, Jesus eseus discpulos encontram-se fora da regio da Judia onde esto ameaadosde morte. Porm, ao receber a notcia da morte do amigo Lzaro, Jesus resol-

    ve voltar Judia. Os discpulos ficam tomados pelo medo: Rabi, h pouco

    os judeus procuraram apedrejar-te e vais outra vez para l?. Apesar do medodos companheiros, Tom toma a palavra e diz: Vamos tambm ns, paramorrermos com ele! (Jo 11, 1-43). Na segunda participao, o discpulo pro-

    voca uma das frases mais comoventes de Jesus. Ao fazer referncia sobre suamorte, Jesus diz aos discpulos: E para onde vou, conheceis o caminho.Os discpulos ficam todos em silncio, apesar de no terem compreendidoo que o Mestre quis dizer. Tom, porm, toma a palavra e questiona: Se-nhor, no sabemos para onde vais. Como podemos conhecer o caminho?.Ento, o Cristo responde: Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida (Jo 14,

    1-6). A terceira participao de Tom ocorre depois da morte de Jesus. Osdiscpulos esto fechados em uma casa, com medo de ter o mesmo fim que oMestre. Jesus ento aparece para o grupo. Como Tom no estava presente,os discpulos relatam a ele todo o acontecido. Tom, porm, diz com sinceri-dade que no acredita. Esta postura de Tom provoca uma nova apario doMestre, diante do qual o discpulo pronuncia a profisso de f mais simplese bonita que o mundo cristo conhece: Meu Senhor e meu Deus! (Jo 20,19-29).

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    Nessas participaes de Tom percebemos duas caractersticas que

    mostram uma profunda e viva relao com Deus. A primeira a autenti-cidade. Tom no de forma alguma hipcrita. Ele puro, transparente,diz o que sente. Tom no quer representar diante dos outros um papel decrdulo. A autenticidade, a franqueza, base de qualquer relacionamentoe base obrigatria para o relacionamento com Deus. Tom procura ser elemesmo diante de seu Mestre.

    A segunda caracterstica de Tom a coragem. Nas trs passagens ci-tadas podemos perceber duas posturas radicalmente opostas. De um lado omedo dos discpulos: o grupo tem medo de questionar o Mestre, de mostrar

    suas dvidas, o grupo tem medo da perda da prpria vida. Tom representaa anttese do medo. Ele tem coragem de morrer pelo Mestre, mas tem a cora-gem tambm de question-lo e de duvidar de suas aes. Se a autenticidade a base do relacionamento com Deus, a coragem a sua prpria expresso.Ter f viver como Tom, ser autntico diante de Deus e diante dos homens,ter a coragem de dizer o que pensa, no ter medo de duvidar, de discutir e atmesmo de brigar com Deus. ter a coragem de fazer de Deus uma presena

    viva no dia-a-dia. Muitas pessoas cumprem os preceitos religiosos (missa,culto...), mas so, na verdade, indiferentes a Deus. Deus no participa de

    seu cotidiano e a religio constitui-se em uma tradio. Outras pessoas vivemum verdadeiro paradoxo: porque tm medo diante da vida se refugiam nasacristia. So pessoas que no conseguem admitir suas dvidas e incertezas,mostram-se carregadas de verdades sobre Deus e as realidades da vida ps-morte, mas no fundo so portadoras de uma grande insegurana, tm medodiante da vida e de si mesmas. F significa justamente o contrrio: coragemde viver na autenticidade. Ter a coragem suficiente de dizer sim para a vida epara Deus, jogando-se em suas mos.

    E quem vive na f tem paz. Esta paz no aquela que encontramosno cemitrio: silenciosa, esttica, muda, porque, na verdade, todos ali estomortos. A paz que nasce da verdadeira f uma paz de vivos. a paz acompa-nhada de conflitos, crises, dvidas, mas, apesar de tudo, uma paz de consci-ncia por no representarmos um papel, mas sermos verdadeiros, autnticose humanos diante de Deus e dos homens. Somente em uma relao vivacom Deus que provocamos, como Tom, manifestaes verdadeiramentedivinas e encontramos a paz criativa e dinmica que nos movimenta para amudana, para a vida nova, para a luz.

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    DIFERENTESFORMASDESERPAI

    A EXPRESSOELECOMOum pai para mim! no s diz muito sobreuma determinada relao com um grande amigo, mas tambm umadas provas de que o ser pai no somente um fenmeno biolgico (gerarum ser), mas principalmente um fenmeno tico e cultural. Na verdade,

    ser pai um relacionamento construdo e definido por papis e funesdeterminadas pela cultura e mentalidade do grupo social. Por isso, a fi-gura do paizo est sujeita a transformaes, dependendo da poca edo local em que se vive. O significado de ser pai no sculo passado noera o mesmo que temos no incio deste novo milnio. Sendo tambmum fenmeno cultural, o ser pai vivido hoje de forma diferenciada nosdiversos cantos do mundo, apesar da atual globalizao e virtualidade on-line. No h necessidade de irmos para as tribos indgenas da Amazniaou para pases orientais, como ndia ou Japo, para encontrarmos dife-

    rentes formas de ser pai. Com toda a certeza, a alegria de ganhar um filho normalmente a mesma, tanto em uma cultura anglo-germnica (Ingla-terra, Alemanha, Holanda ou pases escandinavos) como em uma culturalatina (Portugal, Espanha, Itlia ou Brasil). Mas, a partir da, comeam asurgir as diferenas ticas que acabam caracterizando diferentes formas deser pai. Por exemplo, a responsabilidade do pai em relao a seus filhosparece ser mais prolongada no Brasil do que na Alemanha. Os pais ale-mes sentem-se responsveis pelos filhos durante sua infncia e parte dajuventude. Mas, quando os filhos atingem os seus vinte e poucos anos, j

    so convidados pelo pai a encontrar seu prprio canto. Aqui o tema aindano casamento, mas sim independncia. Normalmente, um jovem de

    vinte e poucos anos visto pelos pais como adulto e, portanto, no devecontinuar morando junto com eles. J no nosso mundo latino a juven-tude parece ser mais longa, o que faz que os pais sintam-se responsveispelos filhos por muito mais tempo. claro que a situao socioeconmicaacaba levando a isso, pois quando o filho est desempregado o paizo talvez a nica ajuda.

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    Mas se na Alemanha a independncia do filho em relao ao pai che-

    ga mais cedo, o tornar-se pai demora um pouco mais. O jovem alemo nor-malmente torna-se pai depois dos trinta. A tendncia na sociedade alem os jovens viverem sozinhos durante um bom tempo para depois resolveremse casar. Para o jovem, a prioridade o curso universitrio ou profissionali-zante, as muitas viagens pelo mundo (dentre os europeus, os alemes so osque mais investem em viagens) e a estabilidade financeira. Outra forte ten-dncia namorados viverem juntos e s depois de alguns anos (cinco ou seteanos), quando h uma segurana na relao, tomarem a deciso de ter umfilho. Aqui sim, entra em questo o tema casamento. Bem antes da gravidez

    ento oficializada a relao dos dois com o casamento civil e religioso. Nonosso mundo latino, o ser pai chega muito mais cedo, apesar de muitas vezesos filhos no terem ainda a necessria maturidade e independncia em rela-o aos pais (s vezes at a aposentadoria do paizo entra em jogo). Em mui-tos casos uma gravidez no planejada a razo para o incio de uma vida adois. Por se casar normalmente depois dos trinta, os alemes geralmente tmpoucos filhos (a mdia de duas crianas por casal); j no mundo latino, asfamlias numerosas e a falta de planejamento familiar ainda predominam.

    Outra diferena do ser pai a expectativa em relao ao futuro dos

    filhos. Como os alemes estabelecem bem cedo uma independncia entrepais e filhos, os primeiros parecem no criar expectativas em relao ao fu-turo dos ltimos. Normalmente as decises dos filhos sobre suas vidas soaceitas com grande liberdade pelos pais. J na nossa mentalidade, o pai tema tendncia de influenciar o futuro dos filhos, que se torna muitas vezesuma forma de realizao dos sonhos dos pais. Se os pais alemes exigem dosfilhos que tenham cedo sua independncia, quando atingem a velhice noadmitem tambm a dependncia deles em relao aos seus filhos. O nmerode asilos para idosos na Alemanha impressionante. Apesar de serem con-domnios de muito conforto, a solido, porm, companheira do dia-a-dia.Sem dvida alguma, o aforismo de Marx no deixa de ser uma verdade:No a conscincia dos homens que determina o seu ser, o seu ser socialque determina a sua conscincia. O importante no esquecer que este sersocial no absoluto, mas sim, mutvel.

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    UMDOGMAFUNDAMENTAL:ALIBERDADEDEEXPRESSO

    DOISANJOSREBELDES, OSANTIGOSjusticeiros de Deus, aqueles que tinhamdestrudo Sodoma e Gomorra, haviam sido expulsos do Cu e condenadosa viver, por toda a eternidade, nos Estados Unidos. Pois Deus no queriamais ser confundido com um Pai castigador e vingativo, mas procurava

    revelar sua verdadeira imagem: o Ser todo amoroso e misericordioso. Tudocorria bem at chegar o ano 2000, o ano do Jubileu proclamado pela IgrejaCatlica e que traria a possibilidade de receber em determinadas igrejas asfamosas Indulgncias Plenrias. Muito espertos, os dois anjos tiveramuma idia: se recebessem as indulgncias estariam perdoados de seus peca-dos e dessa forma poderiam voltar ao Cu, e Deus teria de aceitar a decisotomada por sua Igreja na Terra. Assim, os dois colocaram-se a caminhode uma cidade americana, onde as indulgncias poderiam ser recebidas.Descobrindo os planos de seus anjos rebeldes, Deus envia seu mensageiro

    a uma jovem, chamando-a para uma misso: impedir que os anjos cheguemao seu objetivo. Para a tarefa, a jovem recebe como reforo dois garotos-pro-fetas e um apstolo negro. Depois de muitas confuses e muita matana,das quais o capeta em pessoa toma parte, o prprio Deus acaba aparecendona histria, como a salvao da humanidade. A parbola na verdade oroteiro do filme Dogma, de Kevin Smith, com a participao de Ben Afflecke Matt Damon. Dogmano nenhuma obra cinematogrfica excepcional,mas mesmo assim oferece, com uma histria bem-humorada, material sufi-ciente para que o pblico reflita sobre sua vida de f e seu relacionamento

    com Deus. Temas como a funo da Igreja na sociedade, indulgncias, ra-cismo, inculturao da f, ou mesmo a imagem de Deus (Dogmaapresenta,alis, uma das aparies do Criador mais bonitas e singelas da histria docinema), no recebem do filme nenhuma abordagem profunda, mas soapresentados de forma to provocativa que nos levam a rir e a pensar sobrediversas concepes e especulaes teolgicas. Assim, Dogma um filmeessencialmente religioso, ou seja, um instrumento que nos questiona sobrea vida de f.

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    Uma pena que este filme de Kevin Smith tenha sido mal-entendido,

    principalmente por alguns grupos religiosos, no Brasil e nos Estados Uni-dos, que o acusaram de pura heresia e, o que pior, exigiram sua proibio.Graas a Deus, Dogmano foi censurado, mas acabou tendo sua exibiolimitada a alguns cinemas das capitais. O triste desta histria a posturaautoritria e intransigente de muitos grupos religiosos que ainda no com-preenderam o que vida em sociedade, e muito menos o que vida de f.Exercer a crtica a uma obra de arte um direto de todo ser humano, masexigir sua proibio confundir o pblico com o privado (uma tradiobrasileira!), cercear a liberdade de pensamento e criao, o que significa

    opresso. Por outro lado, religio vida de f, ou seja, postura de coragemdiante da vida e dilogo aberto com Deus e com o mundo. O que exige ahumildade de compreender que as verdades da f (Deus, Jesus Cristo, VidaEterna...) no so monoplio de nenhum grupo religioso, podendo ser re-fletidas e questionadas por todo ser humano. O verdadeiro homem religiosono um alienado que vive para sustentar uma tradio, mas sim um ser cr-tico que deseja compreender a essncia da vida. Outro ponto fundamental entender que religio e tica devem estar intimamente ligadas. Uma religio a manifestao de uma f por meio de doutrina, celebraes e preceitos

    ticos. Mas, onde h tica, deve reinar a liberdade. Se a tica nos lembra denormas que devem ser seguidas, nos lembra tambm da possibilidadede que elas no sejam seguidas. A tica s pode ser construda em umabase de liberdade. Se devemos obedecer, porque podemos desobedecer.Tambm no h motivo para falarmos de responsabilidade, palavra quederiva de resposta, se o condicionamento e o determinismo so to fortesque a resposta aparece como mecnica ou automtica. Se a f deixa de serquestionadora e crtica, e passa a ser um aglomerado de normas seguidasmecanicamente, torna-se simplesmente ritualismo, o que significa fuga darealidade e sintoma de medo.

    Na verdade, todo padre, pastor, lder religioso ou todo aquele queprofessa uma religio deveria sempre refletir sobre suas posturas ticas e noesquecer que as religies devem ser caminhos de libertao e auto-realizaodo ser humano. Afinal, como escreveu So Paulo: Foi para a liberdade queCristo nos libertou (Gal 5, 1).